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Projeto de Pós-Doutorado para Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura - PUC-Rio Ideias, sem ideal: trabalho e genericidade na forma estética, a partir de Alain Badiou Linha de pesquisa: História da arte e da arquitetura Candidato: Gabriel Tupinambá gabriel.tupinamba@egs.edu 1 1. Apresentação geral O ambicioso projeto filosófico de Alain Badiou articula-se em torno da relação entre a filosofia e aquilo que o pensador franco-marroquino chama de “procedimentos genéricos”1: os processos de pensamento imanentes à ciência, à política, ao amor e à arte. Essa circulação entre as diferentes práticas subjetivas, entendidas por Badiou como campos heterogêneos de produção de verdades, e a filosofia, responsável pela apreensão e sistematização daquilo que uma época foi capaz de pensar em seus diferentes domínios, traz consigo uma série de consequências inovadoras, tanto para a filosofia quanto para os procedimentos de verdade. Para dar conta dos desafios que se interpõem à afirmação de que tanto a prática artística quanto a científica, a amorosa e a política são capazes de universalidade, mesmo permanecendo absolutamente heterogêneas entre si, Alain Badiou desenvolveu uma complexa ontologia matemática e uma teoria do sujeito com base na psicanálise lacaniana. De um lado, por meio da matemática, buscou demonstrar que podemos apostar no exame do mundo a partir de uma perspectiva racional e universalista, sem portanto estabelecermos um compromisso com sua reprodução ideológica. Do outro, com a ajuda da psicanálise, desenvolveu uma teoria geral das práticas, na qual demonstra a possibilidade de haver um pensamento cuja universalidade excede a particularidade dos seres pensantes - ou seja, práticas materiais, imanentes e finitas que, mesmo localizadas no tempo e no espaço, são capazes de operar construções simultaneamente singulares e universais, aquelas que o filósofo denomina de verdades. 1 Badiou, Alain (1996) Ser e Evento Rio de Janeiro: Editora UFRJ 2 Ao mesmo tempo que desenvolveu, do ponto de vista da filosofia e de seu compromisso sistemático, um pensamento do ser (ontologia matemática) e do evento (procedimentos genéricos), Badiou também contribuiu para o movimento oposto, explorando a singularidade de cada uma das condições da filosofia, dedicando livros inteiros à especificidade da ciência, do amor, da política e da arte. Se o primeiro esforço de síntese expõe os diferentes campos, sem abolir suas diferenças, preservando um certo regime comum, o segundo, mais analítico, é guiado principalmente pela afirmação de que há pensamento imanente a cada um desses diferentes campos e práticas. Esse sistema filosófico parte da afirmação de que o horizonte de expectativas de uma dada época é historicamente construído pelos eventos de pensamento que marcam os diferentes procedimentos genéricos. Hipótese que nos oferece uma contraposição interessante ao diagnóstico de pensadores que, partindo do trabalho do teórico e historiador Reinhart Koselleck2 , reconhecem hoje uma “era das expectativas decrescentes” ou mesmo um novo tempo do mundo3. Ao mesmo tempo que a teoria crítica foi capaz de reconhecer, no encaminhamento contemporâneo da experimentação artística, as consequências dos últimos desenvolvimentos do sistema capitalista - o novo papel das crises, a ideologia neoliberal, a flexibilização das relações de trabalho - pouco foi feito para atualizar, para além desse diagnóstico, as ferramentas conceituais capazes de identificar, na especificidade do pensamento artístico, aquilo que efetivamente tem a vocação de promover a transformação das expectativas. É essa intuição, de que a teoria badiouiana da arte pode servir de contraponto construtivo à teoria crítica das formas estéticas que , nos leva a buscar um ponto de contato entre ambas. 2 Koselleck, Reinhart (2006) Futuro Passado Rio de Janeiro: Contraponto 3 Arantes, Paulo (2014) O novo tempo do mundo São Paulo: Boitempo 3 Dessa maneira, a presente investigação parte de uma hipótese política a respeito do enquadre sistemático da filosofia badiouiana para então se debruçar sobre suas consequências para uma analítica do pensamento estético contemporâneo. Nossa hipótese preliminar é que há uma interlocução silenciosa entre Marx e Badiou, para além do enquadre estritamente político de um dos procedimentos genéricos, que nos permite mapear os diferentes componentes do conceito marxista de processo de trabalho às quatro condições da filosofia. No primeiro volume do Capital, encontramos uma análise do processo de trabalho dividido em três elementos: (a) a atividade adequada a um fim, o trabalho como atividade; (b) a matéria a que se aplica o trabalho; (c) os meios de trabalho - ao qual Marx adiciona ainda (d) a força de trabalho4. Nossa hipótese é que podemos mapear cada um desses elementos a um diferente procedimento genérico: ao trabalho como atividade corresponde à arte; à matéria-prima, a política; aos meios de trabalho, à ciência - e à força de trabalho, o amor. Cada procedimento de verdade começa ali onde o pensamento excede a dimensão funcional própria ao modo de produção capitalista: onde a atividade não tem fim (arte), onde a vida não se submete à economia (política), onde o saber não se reduz à tecnologia (ciência) e onde a libido não se reduz ao gozo (amor). A filosofia, como pensamento da compossibilidade das verdades, pode ser rigorosamente entendida como pensamento do ser genérico no sentido dado por Marx ao termo, isso é, como o pensamento daquilo que a humanidade é historicamente capaz. O que nos conecta, mais uma vez, ao debate da teoria crítica quanto à temporalização da história e o fechamento da capacidade do homem de se expor àquilo que, enquanto possibilidade, permanece não-experimentado. 2. Recorte temático 4 Marx, Karl (2013) O capital, volume I São Paulo: Boitempo 4 O presente projeto de pesquisa tem três objetivos interligados: (1) explorar as implicações do conceito badiouiano de pensamento artístico entendido como procedimento genérico para a própria teoria estética; (2) investigar as consequências da hipótese de que a prática artística como campo de experimentação das regras genéricas para uma teoria de transformação social baseada nos modos de produção, como é o marxismo, e, por fim, (3) produzir, a partir dessas duas trajetórias conceituais, um panorama do pensamento filosófico de Alain Badiou, que permanece ainda muito pouco conhecido no Brasil. Em suma, um primeiro objetivo é interno à teoria estética, um segundo circula entre arte e política, e o terceiro demanda uma exposição, ainda que em grande parte descritiva, dos alicerces de um complexo sistema filosófico. Nos restringiremos aqui principalmente às obras do próprio Badiou, buscando antes de mais nada esclarecer sua teoria dos procedimentos genéricos, bem como a especificidade do procedimento artístico. Uma vez compreendido o trânsito interno em seu sistema entre a filosofia e suas condições, iremos então nos dedicar a um estudo comparativo entre a teoria badiouiana do processo artístico e a teoria marxiana do trabalho no modo de produção capitalista. A literatura que aborda a relação entre trabalho artístico e trabalho produtor de mercadorias é por demais extensa e, sendo assim, nós focaremos aqui exclusivamente na relação direta entre Badiou e Marx, analisando outras tentativas de pensar a relação entre arte, trabalho abstrato e genericidade apenas com o intuito de distinguir a singularidade da proposta badiouiana. 5 No caso de Marx, nosso foco será principalmente na relação entre os Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 e o primeiro volume de O Capital, cuja comparação nos permite esclarecer o conceito de ser genérico, bem como demonstrar o impasse para qualquer teoria do trabalho estético que se pretenda romper ontologicamente com a forma do valor. Buscando conectar essa pesquisa comparativa com a teoria da história, retomaremos aqui algumas categorias de Reinhart Koselleck, em especial o binômio conceitual “espaço de experiência” e “horizonte de expectativas”, através das quais re-interpretaremos a teoria badiouiana do pensamento artístico, dando maior ênfase à historicidade da experimentação formal. 3. Metodologia Uma das mais importantes consequências da proposição badiouiana de que o pensamento artístico é imanente à sua prática é que para “pensarmos seu pensamento” é necessário um engajamento direto com esse procedimento. Desta maneira, seguindo a metodologia proposta por Badiou, iremos intercalar a investigação filosófica com o exame de algumas sequências na história da arte. Buscando tanto consolidar algumas das hipóteses badiouianas quanto desafiá-las, proporemos tanto exemplos usados pelo próprio filósofo - como a análise da poesia de Wallace Stevens, do teatro de Brecht ou Pirandello - quanto outros mais afastados do universo do filósofo, retirados principalmente da música e do cinema. Retomando as sequências artísticas estudadas pelo próprio Badiou nós poderemos avaliar a criatividade e o rigor das categorias de sua teoria dos procedimentos genéricos, enquanto que o estudo de alguns casos advindos da música e 6 do cinema nos permitirão, por conta do privilégio dado à dimensão temporal em ambos os campos, preparar o terreno para o estudo comparativo que se segue. É a partir do tensionamento entre os fragmentos de pensamento artístico, estudados de um ponto de vista imanente à prática da arte, e a teoria do pensamento como genericidade desenvolvida por Badiou que iremos então nos voltar para a relação entre processo artístico e a teoria do trabalho na crítica da economia política de Marx. Aqui, mais uma vez, partiremos do concreto para o abstrato, tentando evitar um certo laço já saturado entre arte e indeterminação proposto pela filosofia heideggeriana. Ao contrário, demonstraremos como a proposta de Badiou corrobora com a crítica ideológica feita por Marx a um certo uso da filosofia - aqui, da filosofia da arte - que visa naturalizar certos modos historicamente determinados de trabalho e organização social. A crítica de Badiou à própria existência da filosofia da arte - que negaria haver pensamento imanente à própria arte - nos traz ao cerne do debate marxista quanto à ontologia do trabalho e à relação entre funcionalidade, predicação e forma do valor. Uma vez compreendido o desafio de superar a divisão entre indeterminação e determinação no campo do trabalho, o estudo anterior sobre as práticas artísticas se revelará compossível com o debate marxista sobre o ser genérico, pelo menos naquilo que tange as formas de atividade do trabalho. Em suma, o presente projeto circula entre quatro matérias: (1) os principais livros de Alain Badiou - L’Être et L’Événement, Logiques des Mondes - bem como sua obra dedicada à arte - Petit Manuel d’inestétique, Rhapsodie pour le théâtre e Cinema; (2) os Manuscritos de 1844 e o Capital, de Marx; (3) a teoria da temporalização da história, de Koselleck, e seu desenvolvimento na teoria crítica, de Adorno à Paulo Arantes; (4) fragmentos da 7 história da arte, advindos principalmente da música moderna e do cinema contemporâneo. 4. Hipóteses de trabalho Esta pesquisa parte de duas hipóteses principais. A primeira diz respeito à relação entre a vocação da filosofia de acordo com Alain Badiou e o diagnóstico de Christopher Lasch, e outros pensadores, a respeito das expectativas decrescentes. Aqui, esta investigação acredita encontrar no sistema filosófico badiouiano uma resposta correspondente, uma vez que, para Badiou, o exercício filosófico é aquele que criativamente constrói a compossibilidade das invenções do pensamento humano, e com isso re-abre o horizonte de expectativas de uma dada época. Nossa segunda hipótese incide sobre o sistema filosófico de Badiou, encontrando ali uma possível correspondência com a teoria marxista do processo do trabalho. Desta vez, acreditamos que é possível mapear os procedimentos genéricos aos diferentes componentes da organização do trabalho, sugerindo que a arte, a ciência, o amor e a política começam justamente ali onde excedem o caráter funcional da organização do trabalho no modo de produção capitalista. Essas duas hipóteses informam, finalmente, uma pesquisa sobre a relação entre genericidade - a produção de indeterminação através de procedimentos regrados - e o trabalho - a esfera da produção de mercadorias, campo da síntese social no sistema capitalista - que tem as formas estéticas como ponto de incidência. A expressão ‘ideia, sem ideal’, encapsula bem o mote fundamental de nossa investigação: reconhecer, mais além da imersão das formas artísticas contemporâneas na cultura de seu tempo, a vocação das ideias de expor o sensível àquilo que, inacessível à experiência, ainda assim submete-se aos limites do pensável. 8 5. Fontes Arantes, Paulo (2014) O novo tempo do mundo São Paulo: Boitempo Badiou, Alain (1996) Ser e Evento Rio de Janeiro: Editora UFRJ Koselleck, Reinhart (2006) Futuro Passado Rio de Janeiro: Contraponto Marx, Karl (2013) O capital, volume I São Paulo: Boitempo 6. Bibliografia principal ADORNO, Theodor W. Filosofia da Nova Musica, São Paulo, Perspectiva 2004 – – Teoria Estética, Lisboa, Arte e Comunicação 2008 – – Introdução a sociologia da música, São Paulo, Unesp 2011 BADIOU, Alain Le Concept de modèle, Paris, Éditions Maspero, 1969 – – Théorie du sujet, Paris, éd. Seuil, 1982 – – Peut-on penser la politique ?, Paris, éd. Seuil, 1985 – – L’Être et l’Événement, Paris, éd. Seuil, 1988 – – Manifeste pour la philosophie, Paris, éd. Seuil, 1989 – – Conditions, Paris, éd. Seuil, 1992 – – Saint Paul. La fondation de l’universalisme, Paris, PUF, 1997 – – Abrégé de métapolitique, Paris, éd. Seuil, 1998 – – Court traité d’ontologie transitoire, Paris, éd. Seuil, 1998 – – Petit manuel d’inesthétique, Paris, éd. Seuil, 1998 – – Le Siècle, Paris, éd. Seuil, 2005 – – Logiques des mondes. L’Être et l’Événement, 2, Paris, éd. Seuil, 2006 – – Second manifeste pour la philosophie, Paris, éd. Fayard, 2009 9 CLARK, TJ Modernismos. São Paulo, Cosac Naify, 2007 HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas. São Paulo: Edições Loyola, 1998; – – Fenomenologia do Espirito. Rio de Janeiro: Vozes, 2011; KOSELLECK, Reinhart. O Futuro Passado. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2006; MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004; – – O Capital. V.1 São Paulo: Boitempo, 2013; NOWOTNY, Helga Time: the Modern and Post Modern Experience, Wiley 2015 10