Silvia Adela Kohan
Como
esCrever
diálogos
A arte de desenvolver o diálogo
no romance e no conto
Guias do Escritor
Silvia Adela Kohan
Tradução: Gabriel Perissé
Como
esCrever
diálogos
A arte de desenvolver o diálogo
no romance e no conto
Copyright desta tradução © 2011 Autêntica Editora/Gutenberg
TíTULO ORIGINAL
Cómo escribir diálogos
TRADUçãO
Gabriel Perissé
REVISãO TéCNICA
Cristina Antunes
PROJETO GRáFICO DE CAPA E MIOLO
Patrícia De Michelis
EDITORAçãO ELETRôNICA
Patrícia De Michelis
REVISãO
Ana Carolina Lins
EDITORA RESPONSáVEL
Rejane Dias
Revisado conforme o Novo Acordo Ortográfico.
Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta
publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos,
seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.
AutênticA EditorA LtdA./gutEnbErg
Rua Aimorés, 981, 8º andar . Funcionários
30140-071 . Belo Horizonte . MG
Tel: (55 31) 3222 68 19
Televendas: 0800 283 13 22
www.autenticaeditora.com.br
dados internacionais de catalogação na Publicação (ciP)
(câmara brasileira do Livro, SP, brasil)
Kohan, Silvia Adela
Como escrever diálogos : a arte de desenvolver o diálogo no romance e no
conto / Silvia Adela Kohan. – Belo Horizonte : Gutenberg Editora, 2011. – (Guias
do Escritor ; 1)
Título original: Cómo escribir diálogos.
Bibliografia
ISBN 978-85-89239-88-2
1. Contos - Arte de escrever 2. Escrita criativa 3. Romances - Arte de escrever
I. Título. II. Série.
11-01542
CDD-809
índices para catálogo sistemático:
1. Arte de escrever diálogos : Retórica 809
sumário
introdução............................................................................................... 7
1. o diálogo narrativo ................................................................. 9
Definição .............................................................................. 10
Características ...................................................................... 10
Constituição ......................................................................... 11
Condições necessárias ........................................................ 11
Funções do diálogo ............................................................. 15
Outras operações que o diálogo permite ......................... 18
2. tipos de diálogos ...................................................................... 21
Discurso direto .................................................................... 22
Discurso indireto ................................................................. 22
Discurso livre ....................................................................... 24
Combinações e variações ................................................... 24
O monólogo ......................................................................... 26
O solilóquio .......................................................................... 29
O diálogo no cinema e no teatro ....................................... 30
Mescla de gêneros................................................................ 31
3. Formas de representação dos diálogos ................. 33
As formas clássicas .............................................................. 34
A pontuação correta............................................................ 35
O uso das aspas .................................................................... 36
Os matizes expressivos........................................................ 36
Sem o verbo “dizer” ............................................................. 37
4. a arte do inciso .......................................................................... 38
Os objetivos .......................................................................... 39
O uso adequado do inciso .................................................. 40
O lugar do inciso ................................................................. 41
O uso do verbo “dizer”........................................................ 41
Ampliar o efeito ................................................................... 42
Outras modalidades de diálogo ......................................... 43
5. os recursos linguísticos.................................................... 47
Quem fala ............................................................................. 48
Como fala ............................................................................. 49
Modismos verbais................................................................ 50
Gírias ..................................................................................... 51
A expressão adequada......................................................... 51
6. o personagem se revela ....................................................... 57
A voz identificada ................................................................ 58
A voz única ........................................................................... 58
Várias vozes .......................................................................... 59
Uma etapa a cumprir .......................................................... 60
Dizer e ser ............................................................................ 60
O idioleto ............................................................................. 61
De que mundo ele vem ....................................................... 61
O sentido de suas palavras ................................................. 63
A ficha e o esquema dos relacionamentos........................ 64
A voz dos personagens secundários ................................. 65
O interlocutor ...................................................................... 65
7. diálogo ou narrador? .................................... 69
Quem tem o poder dentro do texto .................................. 70
O grau de intervenção ........................................................ 71
Modalidades em contraste ................................................. 71
O narrador mais adequado ................................................ 72
Como empregar o diálogo ................................................. 73
8. tema, local e diálogo ..................................... 75
Cada situação implica um tema ........................................ 76
Enfoques do tema ............................................................... 76
O estereótipo ........................................................................ 77
Um teste ................................................................................ 78
O local .................................................................................. 79
9. Ferramenta ou armadilHa? ............................. 81
Benefícios ............................................................................. 82
Riscos: os problemas mais comuns ................................... 82
Diálogo eloquente versus diálogo pobre ........................... 84
14 passos ............................................................................... 85
A adequação de um diálogo ............................................... 86
notas ................................................................... 81
introdução
Somos seres que falam. Por isso é uma tentação poder ocupar o
lugar de outras pessoas e escrever o que dizem no vazio da página.
Neste sentido, escrever diálogos é entrar em contato com o que há de
mais genuíno no ser humano.
No entanto, devemos tomar cuidado. Se fizermos seres falarem,
suas palavras deverão ter sentido e equilíbrio para que sejam ouvidas
adequadamente. Apresentar um personagem falando de determinada
forma faz o leitor imaginar um modo de existir concreto. Se o autor for
bastante habilidoso, nem precisará utilizar descrições físicas ou explicar o modo de pensar de seus personagens. O diálogo, como parte da
trama do conto ou do romance, será suficientemente revelador.
Certamente, precisamos saber com clareza o que pretendemos
com um diálogo. Para isso, é fundamental conhecer profundamente
suas variações, suas funções e as diferentes estratégias disponíveis.
Neste livro, vamos aprender quando convém empregar o diálogo
num romance ou em outros tipos de relato e como podemos trabalhar as palavras e os enunciados para obter um diálogo eficaz.
COMO ESCREVER DIÁLOGOS
8
1.
o diálogo
narrativo
9
O diálogo bem construído é uma das formas narrativas mais convincentes, porque aparentemente não apresenta intermediários, e uma
das mais sugestivas, por provocar a curiosidade do leitor. Permite que
“escutemos” as vozes dos personagens e assistamos a uma conversa
sem que seus protagonistas percebam nossa presença. É como estar
entre eles sem ser visto.
Como estratégia literária, o diálogo é uma das mais eficazes e, ao mesmo tempo, uma das mais difíceis de se pôr em prática. Graças ao diálogo,
os personagens expressam o que só esta técnica possibilita. No conto, o
diálogo é uma ferramenta que ajuda a definir o personagem. No romance, contribui para o dinamismo geral da obra. Além disso, pelo que os falantes dizem, revela como são os interlocutores e oferece dados sobre os
outros personagens e sobre o ambiente em que a história se desenvolve.
Quando lemos um bom diálogo, acreditamos que aquelas vozes
pertencem a pessoas reais, sempre e quando as vozes estiverem bem
diferenciadas entre si, numa entonação adequada e transmitindo informações precisas. Neste caso, a conclusão é a seguinte: o personagem fala e, por isso, existe.
COMO ESCREVER DIÁLOGOS
10
deFinição
A palavra “diálogo” provém do grego diálogos, que equivale a “conversa”. É o intercâmbio discursivo entre dois ou mais personagens
que falam alternadamente, ora como emissores, ora como receptores,
emitindo suas mensagens. Em outras palavras, num discurso direto, o
diálogo exige a réplica de um interlocutor explícito (ou implícito, em
certos usos modernos do diálogo). É a forma narrativa que apresenta
a maior coincidência entre o que se diz e sua duração temporal. No
entanto, como imitação da linguagem conversacional que sai da boca
dos personagens, não é imitação literal, mas fruto de uma elaboração.
O diálogo pode harmonizar-se com a narração e a descrição.
Historicamente, o diálogo é a base do gênero teatral, mas pode
ser utilizado em qualquer tipo de ficção narrativa como um mecanismo que elimina ou limita a presença do narrador, potencializando a presença do personagem.
características
O diálogo apresenta os acontecimentos mediante as vozes dos personagens. Trata-se de uma forma de narração vinculada ao cinema
e ao teatro. Em sentido estrito, o diálogo é a defrontação (podendo
haver ou não convergências) entre duas visões de mundo (ou dois interlocutores) que participam de uma situação ou de uma cena. Ambos
os interlocutores devem ser necessários e se complementarem para
constituir a estrutura do diálogo, fazendo com que a trama progrida.
As principais características e vantagens do diálogo são as seguintes:
constituição
O diálogo é uma estrutura aberta, inconclusa, constituída por:
a. Discursos: são as palavras diretas dos personagens, que podem ser dois (um falante e um interlocutor) ou mais.
b. Incisos: são esclarecimentos feitos pelo narrador. Vêm depois
de um travessão e servem para situar os personagens na cena,
para indicar reações provenientes de seu pensamento, de seus
sentimentos ou de sua consciência, ou para registrar um gesto
ou ação do personagem enquanto está falando.
Exemplo:
— Recuso-me a vê-lo — disse ele, batendo a porta.
discurso
inciso
condições necessárias
Há uma série de condições para produzir diálogos eficazes. São
as seguintes:
intencionalidade
Intencionalidade é a motivação que impulsiona uma frase. Tudo o que nossos personagens dizem nasce de uma determinada
intencionalidade. Quando falam, dizem algo mais do que estão falando.
O DIÁLOGO NARRATIVO
• O narrador desaparece e os personagens falam por conta própria.
• São os personagens que informam sobre a situação, o conflito e
a ação do relato.
• O leitor conhece os personagens diretamente, ao ler suas palavras e perceber suas formas de expressão.
• É a forma narrativa que mais se aproxima do leitor.
11
Estão acrescentando um aspecto à sua história, uma informação que
nos fará acompanhar o momento de conflito pelo qual eventualmente
estejam atravessando. Suas palavras estão conectadas à sua personalidade, ao contexto e à situação vivida e procuram provocar uma alteração no curso dos acontecimentos.
As palavras que colocamos na boca de nossos personagens devem ter uma justificativa. Se alguém, por exemplo, diz “estou com
dor de cabeça”, sua intenção poderia ser: apresentar-se como um ser
debilitado, chamar a atenção de outro personagem para que modifique sua relação, não participar de uma cena, antecipar um determinado desenlace, denunciar um ambiente contaminado, etc. Se diz
“estou com dor de cabeça, eu juro”, está acrescentando uma ênfase
cuja intenção é demonstrar que o interlocutor desconfia de que essa
dor seja verdadeira.
precisão
COMO ESCREVER DIÁLOGOS
12
As palavras que saem da boca de nossos personagens devem ser
cuidadosamente escolhidas. Esse cuidado decorre da busca de exatidão — a palavra empregada deve ter um significado preciso —, da
quantidade — não devemos multiplicar as palavras desnecessariamente — e da preocupação com a riqueza lexical — convém recorrer ao dicionário de sinônimos e não nos restringirmos ao território
empobrecido de palavras repetidas ou desgastadas pelo uso.
naturalidade
Deve soar de modo natural. Mais do que ler um diálogo, o leitor
escuta mentalmente a conversa dos personagens. Por que são tão
bons os diálogos escritos por Ernest Hemingway ou Isaac Asimov?
É que não parecem forçados, são absolutamente convincentes e não
têm rodeios e rebuscamentos. A naturalidade é sua característica
primordial.
Fluidez
O diálogo deve fluir com ritmo próprio, como num poema. A
perfeita adequação do coloquial ao literário deve ser complementada com uma perfeita adequação literária ao coloquial. Esse ritmo
não tem a mesma velocidade em todos os diálogos. A fluidez está
profundamente ligada ao tipo de situação representada. Raymond
Chandler trabalhava esse aspecto com maestria. Uma das situações
mais rápidas e mais ágeis é a do interrogatório do relato policial, que
pressupõe grande economia de linguagem, pois o interrogado costuma responder com fragmentos do que sabe.
Devemos estar atentos à caracterização de nossos personagens
para que o diálogo seja coerente. Se eles são camponeses, poderemos
recorrer à linguagem rural, como faz Miguel Delibes; se imaginamos
um personagem com tendência à dispersão, será preciso incluir digressões em sua fala. Seja qual for o lugar que ocupem no mundo
narrado, sejam protagonistas ou figurantes, o importante é conseguir que os personagens se expressem de acordo com sua personalidade. Um apresentador de TV não pode falar como um lutador de
boxe, por exemplo, se queremos que o diálogo traga informações
sobre as características do personagem.
Também é necessário levar em conta a carga emocional que está
em jogo. O personagem deverá usar as formas verbais adequadas
para aliviar suas tensões ou reforçar uma ideia. Se estiver morrendo de ódio, não caberá um “que pena!” ou um “veja bem!”. Reações
incoerentes com seu estado de ânimo enviarão uma mensagem ambígua para o leitor.
poder de sugestão
Durante a troca de discursos entre dois ou mais interlocutores,
o diálogo deve criar uma incógnita, que podemos traduzir como
capacidade de revelação. Escritores minimalistas como Raymond
Carver são mestres nisso. Henry James, por exemplo, emprega o
diálogo para dar a conhecer o quid do romance, sem o declarar
diretamente.
Além disso, o diálogo deve ser significativo, revelando a personalidade do falante.
verismo
Considera-se que o diálogo representa de modo claríssimo a
identidade entre o tempo da narração e o tempo do discurso, embora haja casos em que o diálogo pareça acontecer mais rapidamente
do que na realidade e em outros dê a sensação de durar mais tempo do que seria possível, prejudicando sua veracidade. No primeiro
caso, o leitor terá de deduzir por si mesmo o que falta à história, à
medida que ela for progredindo. No segundo caso, terá de pular algumas linhas do diálogo para tomar ciência do que está acontecendo.
O DIÁLOGO NARRATIVO
coerência
13
Um diálogo veraz por excelência foi desenvolvido por Miguel de
Cervantes, em Dom Quixote de la Mancha.
interação
As palavras que um personagem diz dependem, crescem, alteram-se em relação direta com o discurso de outro personagem. São
igualmente importantes os discursos do falante e do interlocutor.
A fala de um depende da do outro. Concordamos com o linguista
Oswald Ducrot quando ele escreve:
COMO ESCREVER DIÁLOGOS
14
O exame dos diálogos efetivos demonstra que o encadeamento das réplicas apoia-se menos no que o locutor “disse” do que nas intenções que, segundo o
destinatário, teriam levado o outro a dizer o que disse. À frase “parece que este filme é interessante” (p)
responde-se com “eu já fui ver” (q) porque se supõe,
por exemplo, que o locutor disse p para propor que
os dois fossem ver o filme, e a resposta de q dá um
motivo para não ir.
Portanto, devemos estabelecer um equilíbrio entre os discursos
dos interlocutores. A falta de conexão entre eles origina uma sucessão de monólogos no lugar de um diálogo.
continuidade
A continuidade e o progresso narrativo caminham juntos. Cada
frase é uma mensagem enviada pelo falante ao ouvinte; a resposta
deste último surge como consequência da mensagem, e esta resposta, por sua vez, afetará aquele que antes falou e a quem falará depois,
e assim por diante. O estímulo entre uns e outros é recíproco e constitui a continuidade narrativa.
Devemos estabelecer um fio condutor entre os diálogos, explorando dois veios principais:
1. Os estados de ânimo dos personagens e suas variações desenham
uma determinada curva.
2. É preciso saber com clareza em que cena e em que momento dessa cena se darão os pontos culminantes, o clímax, que devem ser
enfatizados de modo conveniente.
Um diálogo pode ser ambíguo (aludindo a algo que
não se expressa diretamente), mas jamais confuso. Por
outro lado, se não houver intencionalidade, evitemos
reforços explicativos.
Funções do diálogo
O diálogo é uma forma de apresentação e indica a relação entre os personagens; portanto, são várias as funções que desempenha
numa narrativa. Não é obrigatório que desempenhe todas, mas, ao
lançar mão do diálogo, podemos recorrer a uma ou a várias dessas
funções. Basicamente, são as seguintes:
Apresenta com vivacidade e imediatez uma cena do conflito ou
da situação, em vez do relato do narrador, no papel de mediador. O
diálogo, por exemplo, poderá contribuir para aumentar o suspense,
ao pôr o leitor em contato direto com os atores do drama, num momento de perigo, de inquietação, de ruptura com a normalidade. Os
próprios personagens contarão o que estiver acontecendo e o que
estiverem sentindo.
traz informações
Se, em vez de um fragmento narrativo, transcrevemos um diálogo entre personagens, é porque desejamos contar algo de modo
mais rápido e direto. À medida que as falas se sucedem, percebese que os personagens (e o leitor) sabem alguma coisa de interesse
para a história.
Um recurso muito comum entre alguns escritores do passado
era, em vez de mostrar a ação, colocar o leitor diante de dois personagens, um deles assistindo à ação, e o outro não. O primeiro relata
ao segundo o que está acontecendo. Esse recurso era usado no teatro, pois não se podia colocar no palco dois exércitos, por exemplo, e
então um criado, do alto de uma torre, contava ao seu senhor o que
estava acontecendo no campo de batalha.
Recurso semelhante é utilizar um diálogo para que o leitor tome
conhecimento de acontecimentos que se deram antes que o relato
começasse. Não há nenhum perigo nessa estratégia quando um dos
interlocutores desconhece o que o outro está contando. Mas se todos
já estão cientes dos fatos, convém ir em frente e desenvolver o diálogo
O DIÁLOGO NARRATIVO
configura cenas
15