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Produtos da sociobiodiversidade e cadeias curtas: aproximação socioespacial para uma valorização cultural e econômica Janaína Deane de Abreu Sá Diniz & Claire Cerdan 1. Introdução Ao longo das últimas décadas no Brasil, de um modo geral, os circuitos de comercialização de produtos agroalimentares têm se expandido, complexificado e diversificado. As regiões de produção situadas a montante dos grandes centros urbanos se multiplicaram e os circuitos de comercialização aumentaram (CERDAN; SAUTIER, 2011). Na maioria das regiões, ainda que tenha havido um aumento na participação da grande distribuição, formas tradicionais de transformação e distribuição da produção local ainda vem sendo conservadas, o que pode ser observado especificamente com produtos típicos dos diferentes biomas brasileiros, onde ainda existe grande consumo em escala local. Associados às formas tradicionais de produção e consumo, vem surgindo igualmente alternativas de comercialização em circuitos curtos, como estratégias de valorização da produção local desses biomas, mas também como iniciativas para garantia da segurança e da soberania alimentar de populações rurais e urbanas dessas regiões. Diversos termos relacionados às cadeias curtas têm sido empregados para designar um conjunto de configurações alternativas que buscam uma ruptura com o sistema agroalimentar dominante, podendo ser denominados de “iniciativas agroalimentares alternativas”, “sistemas alimentares locais”, “sistemas alimentares sustentáveis”, “práticas alimentares alternativas”, “cadeias curtas agroalimentares”, dentre outros (DEVERRE; LAMINE, 2010; RENTING; MARSDEN; BANKS, 2003). Por abordarem novas relações entre produtores e consumidores, eles vem sendo considerados como novos paradigmas do desenvolvimento rural, principalmente no que se refere ao debate sobre a relocalização da produção e do consumo. Exemplos bastante mencionados desses sistemas alternativos são as associações para a manutenção da agricultura camponesa (AMAP), na França, as lojas de produtores, as feiras camponesas e a renovação de formas tradicionais de circuitos curtos, como as vendas na beira das estradas, presença dos próprios produtores nas feiras livres ou o abastecimento de lojas do varejo por produtores locais (DEVERRE; LAMINE, 2010). No Brasil, também podem ser citadas diversas experiências atuais de circuitos curtos de comercialização e consumo, nas diferentes regiões do país, como feiras agroecológicas, grupos de consumo, hortas comunitárias e escolares, entre outros (DAROLT, 2013; FERRARI, 2011), além das políticas mais recentes de compras institucionais que DINIZ, J.D.A.S.; CERDAN, C. Produtos da sociobiodiversidade e cadeias curtas: aproximação socioespacial para uma valorização cultural e econômica. In: GAZOLLA, M.; SCHNEIDER, S. Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas: negócios e mercados da agricultura familiar. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2017, p. 259-280. 1 tem priorizado a compra de produtos locais1, mas também o fortalecimento e profissionalização de organizações coletivas, como associações e cooperativas da agricultura familiar. De forma complementar à aplicação das políticas de compras institucionais como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e a aquisição de produtos da agricultura familiar pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o Governo Federal lançou, por meio da Portaria Interministerial MDA/MDS/MMA n° 239, de 21/07/2009, o Plano Nacional para a Promoção das Cadeias de Produtos da Sociobiodiversidade – PNPSB (BRASIL, 2009), uma política que também pode representar um importante mecanismo de desenvolvimento local, sendo um dos desafios a sua adaptação à lógica e às configurações predominantes nos circuitos de comercialização já existentes para esses produtos. Desde o seu lançamento, o PNPSB já conseguiu provocar algumas mudanças em termos de associação com outras políticas, como a sua inserção no novo Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PLANAPO), a ser iniciado em 20162. O PNPSB enfoca os bens e serviços gerados a partir de recursos da biodiversidade local voltados à formação de cadeias produtivas de interesse dos povos e comunidades tradicionais e de agricultores familiares. Este plano foi resultado de um longo processo, envolvendo as esferas pública, empresarial e da sociedade civil, de construção de uma política de conservação e valorização da biodiversidade brasileira, associada à geração de renda para as comunidades envolvidas. De 2009, quando foram priorizados a castanha-do-brasil e o babaçu3, até os dias atuais, foram incorporados produtos de todos os biomas brasileiros, sendo que hoje são apoiados, no âmbito do PNPSB, uma dezena de arranjos produtivos locais (APL) nos biomas Amazônia, Caatinga, Cerrado e Mata Atlântica4. Alguns desses produtos atualmente considerados da sociobiodiversidade possuem histórico de participação em longas cadeias que anteriormente visavam principalmente mercados de grandes centros urbanos, alguns inclusive internacionais, sendo o caso da borracha extrativista e da castanha-do-brasil na Amazônia, ou da piaçava na Caatinga. Em contrapartida, outros produtos, apesar de estarem vinculados a diversas formas de transformação e consumos tradicionais nos diferentes biomas, com importante demanda local e regional, ainda não participam de circuitos de distribuição significativos em outras regiões do país. Existem ainda aqueles produtos que não 1 O artigo 25 da Resolução CD/FNDE n. 26/2013 define que os projetos de grupos de fornecedores locais terão prioridade sobre os demais grupos, seguido pelos projetos do território rural e do estado, que, por sua vez, possuem prioridade sobre os projetos de fornecimento de outros estados do país. 2 O Plano é o principal instrumento de execução da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, Decreto federal nº 7.794/2012. 3 Por representarem cadeias de relevância socioeconômica e ambiental, beneficiando, na época, cerca de 500 mil famílias de extrativistas e gerando R$160.000.000,00 anuais (BRASIL, 2009). 4 http://www.mma.gov.br/perguntasfrequentes?catid=17&start=0. Consulta em 19/06/2015. DINIZ, J.D.A.S.; CERDAN, C. Produtos da sociobiodiversidade e cadeias curtas: aproximação 2 socioespacial para uma valorização cultural e econômica. In: GAZOLLA, M.; SCHNEIDER, S. Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas: negócios e mercados da agricultura familiar. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2017, p. 259-280. apresentam nem tradição local nem são conhecidos nacional ou internacionalmente, mas que, em função de pesquisas que reconhecem sua importância nutricional e terapêutica, começam a despertar o interesse da população em geral. As especificidades das cadeias da sociobiodiversidade estimulam a busca por um maior entendimento sobre em que medida esses produtos podem ser pensados e promovidos no contexto dos sistemas alimentares alternativos e, mais precisamente, das cadeias curtas, a partir de propostas que não se mantenham nas configurações convencionais. É importante se identificar as oportunidades e dificuldades para se propor e consolidar políticas que favoreçam também os circuitos curtos de comercialização e de consumo locais para esses produtos, levando em conta a diversidade dos produtos ofertados, e não apenas produtos isolados. No presente capítulo serão apresentados alguns casos de produtos da sociobiodiversidade a partir de uma análise sobre o estágio atual de suas cadeias produtivas e canais de comercialização, assim como das principais dificuldades para que se consolidem nessas estruturas. Ao longo do texto serão descritos os circuitos de comercialização de quatro produtos da sociobiodiversidade nos biomas Amazônia e Cerrado5, trazendo alguns aspectos bastante específicos a estes produtos, mas também semelhantes a outras realidades não apenas brasileiras, quando se trata de encurtamento de canais a partir da aproximação entre produtores e consumidores. O texto está organizado em cinco seções, incluindo esta introdução. Na seção 2 é apresentado o histórico da construção do conceito de sociobiodiversidade e de noções derivadas como “produtos da sociobiodiversidade” e “cadeias de produtos da sociobiodiversidade”, que, no caso brasileiro, estão atualmente incorporadas em diversas políticas públicas. A temática específica deste livro, sobre sistemas alimentares alternativos e cadeias curtas é abordada na seção 3, numa tentativa de identificar aspectos que mais se relacionem (já em aplicação ou não) às cadeias de produtos da sociobiodiversidade no Brasil. A seção 4 é dedicada aos casos de quatro produtos da sociobiodiversidade, nos biomas Amazônia e Cerrado, enquanto que a seção 5, de caráter conclusivo, traz uma discussão em torno dos desafios e perspectivas para que esses produtos se mantenham em sistemas agroalimentares alternativos e cadeias curtas, a partir da associação entre usos tradicionais e ações inovadoras para uma valorização local e regional. 5 Para apresentar os casos específicos dos produtos da sociobiodiversidade nesses dois biomas brasileiros, as autoras lançaram mão de dados de levantamentos de campo em diversos projetos de pesquisa, com destaque para os projetos “Inovações sociotécnicas e institucionais para conservação e valorização do bioma Cerrado”, no âmbito do edital Capes-Embrapa-Fundação Agropolis 2014 e “Agroextrativismo e as cadeias de produtos da sociobiodiversidade no Brasil: entre a especialização e a perda de biodiversidade”, financiado pela Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD), entre 2013 e 2015. DINIZ, J.D.A.S.; CERDAN, C. Produtos da sociobiodiversidade e cadeias curtas: aproximação 3 socioespacial para uma valorização cultural e econômica. In: GAZOLLA, M.; SCHNEIDER, S. Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas: negócios e mercados da agricultura familiar. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2017, p. 259-280. 2. Produtos da sociobiodiversidade: construção de um conceito e de políticas públicas atualmente associadas Antes de se abordar diretamente o tema dos produtos da sociobiodiversidade, é importante se apresentar o processo histórico em que esta noção foi ganhando importância, até a associação com as políticas públicas de conservação da biodiversidade e de desenvolvimento rural nas diversas regiões brasileiras, com foco nos agricultores familiares e populações tradicionais. Assim, apresenta-se inicialmente uma breve contextualização sobre a importância ambiental, socioeconômica e cultural de alguns produtos provenientes do extrativismo vegetal, relacionando esta atividade principalmente às ações de promoção de produtos florestais não-madeireiros (PFNM) e que se mostram fortemente vinculadas à introdução da noção de cadeia de produtos da sociobiodiversidade nas políticas públicas brasileiras. No segundo tópico, será abordada a gênese do termo sociobiodiversidade, a partir dos conceitos de biodiversidade ou diversidade biológica e etnobiodiversidade, assim como outras noções relacionadas. 2.1 Produtos florestais não-madeireiros e comunidades extrativistas: mudanças nas estratégias de valorização e conservação A coleta de produtos florestais é uma das primeiras atividades humanas e que, segundo diversos autores, tem tido sua importância diminuída ao longo dos tempos (HOMMA, 1993; SILLS et al., 2011), à medida que as populações modificam suas demandas por alimentos, energia, medicamentos, entre outros, e muitos desses produtos passam a ser substituídos, domesticados ou até mesmo extintos. Em alguns casos onde houve crescimento da demanda por alguns desses recursos, que anteriormente eram obtidos exclusivamente em áreas naturais, é possível encontrá-los atualmente adaptados a sistemas mais organizados, seja na forma consorciada ou em monocultivos. Entretanto, apesar dessas mudanças nos sistemas de produção e no acesso a esses produtos, a coleta e uso de PFNM ainda possui relevância econômica e cultural em contextos locais específicos e em diversas regiões do planeta. Esse é o caso da coleta de frutos e plantas silvestres em alguns países europeus, valorizada como uma grande herança cultural (GRIVINS; TISENKOPFS, 2014; COKS; LÓPEZ; DOLD, 2011), ou de diversos produtos, como o açaí na Amazônia e o pequi no Cerrado, que continuam bastante presentes na alimentação das populações locais. A Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO/ONU) define os PFNM como “bens de origem biológica, exceto a madeira, fornecidos por florestas, bosques e outras árvores em áreas não florestais”6. Fazem parte de um grupo de produtos que até recentemente não 6 http://www.fao.org/forestry/nwfp/6388/en/. Acesso em 02/07/2015. DINIZ, J.D.A.S.; CERDAN, C. Produtos da sociobiodiversidade e cadeias curtas: aproximação socioespacial para uma valorização cultural e econômica. In: GAZOLLA, M.; SCHNEIDER, S. Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas: negócios e mercados da agricultura familiar. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2017, p. 259-280. 4 era reconhecido como importante fonte de alimentos e nem de renda, principalmente, porque a maioria dos produtos coletados se destina basicamente à subsistência das famílias rurais ou aos mercados locais, além de as estatísticas sobre os volumes coletados nas florestas serem frequentemente incompletas e pouco confiáveis, e da exploração florestal moderna favorecer a larga escala, associando os PFNM a uma atividade incidental (FAO, 1995). Apesar de muitos dos PFNM serem principalmente voltados para o consumo local, alguns possuem um histórico de extração e distribuição com foco principalmente nos mercados internacionais. E esse também vinha sendo o foco dos primeiros projetos voltados para a promoção dos PFNM em associação com estratégias de desenvolvimento local e conservação ambiental7, uma vez que os mesmos tinham como objetivo organizar agricultores/extrativistas em associações e cooperativas para a produção, transformação e comercialização com foco no mercado internacional (comércio justo, certificação florestal, etc). Muitos desses projetos passaram por dificuldades, tanto por estarem inseridos em cadeias longas e globais, com grandes variações de demanda em função de qualquer mudança nos mercados internacionais, mas também pela pouca experiência em termos de valorização da produção e relação com o(s) mercado(s) por parte das comunidades extrativistas (DINIZ, 2008; MAGALHÃES, 2011). Da mesma forma que outros produtos de consumo mais frequente, durante as últimas décadas, a maioria dos projetos de promoção de PFNM também era voltada para circuitos globalizados, deslocalizados, com logística complexa para garantir o escoamento desde sua origem até os novos mercados desenvolvidos. Assim, cerca de vinte anos depois do lançamento de diversas estratégias para manutenção da floresta em pé a partir da inserção de PFNM em mercados internacionais, diversos autores têm afirmado que esses produtos não possuem capacidade para promover o desenvolvimento local nesta lógica, pois muitos ainda continuam restritos exatamente aos circuitos e mercados locais (SILLS et al., 2011) e com grandes obstáculos (técnicos, comerciais, organizacionais, sociais e culturais) para atender outros mercados dentro dos níveis de regularidade e qualidade exigidos. Apesar de ainda pouco divulgados, os produtos advindos da (socio)biodiversidade brasileira já representam uma importante fonte de renda para diversos produtores em diferentes regiões do país. Entretanto, em vez de se insistir e muitas vezes, na sequência, se desistir de trabalhar na perspectiva dos mercados internacionais e distantes - com logística extremamente difícil, seria importante se estudar os fatores que dificultam a manutenção de mercados locais, para que seja 7 A maioria teve início na década de 1990, com destaque para os projetos ligados ao Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PPG7). DINIZ, J.D.A.S.; CERDAN, C. Produtos da sociobiodiversidade e cadeias curtas: aproximação 5 socioespacial para uma valorização cultural e econômica. In: GAZOLLA, M.; SCHNEIDER, S. Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas: negócios e mercados da agricultura familiar. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2017, p. 259-280. promovido um fortalecimento dos circuitos de proximidade, garantindo a conservação dos recursos e das culturas tradicionais locais. É nessa perspectiva de reconhecimento da importância cultural e social de determinados produtos de comunidades tradicionais, mas também de sua relação com os ecossistemas existentes, que o conceito de sociobiodiversidade foi sendo desenvolvido dentro de um grupo interinstitucional, coordenado pelo Ministério de Meio Ambiente (MMA). O próximo tópico abordará resumidamente este conceito e outras noções relacionadas, especificamente no contexto brasileiro. 2.2 Biodiversidade, Etnobiodiversidade e Sociobiodiversidade A Convenção da Diversidade Biológica (CDB), redigida em1992 e ratificada em 1993, destaca a necessidade da conservação da biodiversidade, a partir da manutenção dos processos biológicos essenciais, da preservação da diversidade genética (inter e intra espécies) utilização sustentável de espécies e ecossistemas (DIEGUES, 2005). No caso do Brasil, considerado um país megadiverso por conter 22% da biodiversidade vegetal do planeta (BRASIL, 2009), além de outras espécies animais, também existe uma megadiversidade sócio-cultural, representada por mais de 200 povos indígenas e populações tradicionais, que possuem amplo conhecimento sobre o mundo natural, possibilitando o manejo de espécies da flora e da fauna e a conservação das áreas onde vivem. Diegues (2005) define etno-bio-diversidade como sendo “a riqueza da natureza da qual participam os humanos, nomeando-a, classificando-a, domesticando-a, mas de nenhuma maneira selvagem e intocada” (p. 307). Assim, ao considerar que a biodiversidade está relacionada tanto ao domínio natural quanto cultural pelas populações humanas, se estabelece uma nova etnociência da conservação, em que os inventários de etnobiodiversidade devem ser participativos e tenham a anuência e cooperação das populações tradicionais manejadoras da biodiversidade. Considerando esta ideia de etnobiodiversidade, entre 2006 e 2008, uma comissão interinstitucional de profissionais ligados a diferentes organismos e instituições, sob a coordenação da Secretaria de Extrativismo e Desenvolvimento Rural Sustentável (SEDR), do MMA, se reuniu para desenvolver políticas de promoção dos produtos e serviços de populações tradicionais, com foco no potencial econômico desses produtos como uma estratégia de desenvolvimento para diversas comunidades rurais brasileiras. Assim, em 2009, a noção de sociobiodiversidade é apresentada como sendo a relação entre bens e serviços gerados a partir de recursos naturais, voltados à formação de cadeias produtivas de interesse de povos tradicionais e de agricultores familiares. Como política dinamizadora desta ideia, é lançado o Plano Nacional de Promoção das Cadeias de Produtos da DINIZ, J.D.A.S.; CERDAN, C. Produtos da sociobiodiversidade e cadeias curtas: aproximação socioespacial para uma valorização cultural e econômica. In: GAZOLLA, M.; SCHNEIDER, S. Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas: negócios e mercados da agricultura familiar. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2017, p. 259-280. 6 Sociobiodiversidade (PNPSB)8, onde produtores, prestadores de serviço, agentes comerciais e empresários reconhecem neste setor uma oportunidade de negócio que a biodiversidade brasileira pode oferecer, tanto no mercado nacional como internacional. Derivam da noção de sociobiodiversidade, as definições contidas no PNPSB para produtos da sociobiodiversidade e cadeias de produtos da sociobiodiversidade, conforme segue: Produtos da sociobiodiversidade: bens e serviços gerados a partir de recursos da biodiversidade local voltados à formação de cadeias produtivas de interesse dos povos e comunidades tradicionais e de agricultores familiares – PCTAF, numa relação harmônica entre si, com sustentabilidade, justiça social e respeito às especificidades culturais e territoriais, que assegurem a manutenção e a valorização de seus laços sociais, suas práticas e saberes, dos direitos decorrentes, gerando renda e promovendo a melhoria do ambiente em que vivem e da sua qualidade de vida (BRASIL, 2009). Cadeia produtiva da sociobiodiversidade: sistema integrado e harmônico, constituído por atores interdependentes e por uma sucessão de processos de educação, pesquisa, manejo, produção, beneficiamento, distribuição, comercialização e consumo de produtos e serviços da sociobiodiversidade, com identidade cultural e incorporação de valores e saberes locais dos povos e comunidades tradicionais e de agricultores familiares - PCTAF e que asseguram a distribuição justa dos seus benefícios (BRASIL, 2009). As definições acima, de caráter bastante institucional, tentam associar estes produtos e cadeias produtivas a situações ideais para o sucesso de políticas públicas voltadas tanto para o desenvolvimento de populações tradicionais como para a conservação ambiental nos diferentes biomas brasileiros. Entretanto, para algumas situações nas diferentes regiões brasileiras, estas definições ainda estão muito distantes, uma vez que, apesar de envolverem populações tradicionais e produtos também tradicionalmente utilizados e consumidos, a organização da produção e comercialização em circuitos formais, principalmente em termos locais, ainda é pouco desenvolvida ou inexistente. Considerando que o histórico de participação de alguns desses produtos tem sido principalmente em circuitos longos, tanto em termos de distância entre as regiões produtoras e consumidoras, quanto pelos diversos níveis de intermediação, é importante se questionar a viabilidade e a 8 Nos dias 19 e 20 de maio do corrente, foi realizado o 2º Seminário Nacional da Sociobiodiversidade, com o objetivo de debater e elaborar, a partir do acúmulo das ações implementadas no PNPSB, o Programa Nacional da Sociobiodiversidade, que deve servir de instrumento de integração das diferentes ações referentes à sociobiodiversidade presentes na Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO). A realização do Seminário foi de responsabilidade do Ministério do Meio Ambiente (MMA), Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), em conjunto com o Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), a Rede Cerrado e demais parceiros do governo e sociedade civil. DINIZ, J.D.A.S.; CERDAN, C. Produtos da sociobiodiversidade e cadeias curtas: aproximação socioespacial para uma valorização cultural e econômica. In: GAZOLLA, M.; SCHNEIDER, S. Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas: negócios e mercados da agricultura familiar. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2017, p. 259-280. 7 sustentabilidade da inserção desses produtos em sistemas alimentares alternativos, principalmente quando considerados os circuitos curtos numa perspectiva de alternativa aos sistemas de produção e distribuição dominantes e de valorização econômica e cultural da produção local. Muitas das políticas atuais ainda se baseiam em cadeias centradas em um único produto, o que pode levar a possíveis especializações nos circuitos voltados para a valorização dos produtos da sociobiodiversidade (CIALDELLA; NAVEGANTES, 2014). Conforme será abordado nos próximos tópicos, as ações do Estado voltadas para a promoção dessas cadeias de produtos da sociobiodiversidade, a partir de programas e políticas públicas para fortalecer a organização da produção e comercialização, não devem deixar de considerar que, sendo produtos obtidos e consumidos em contextos bastantes específicos, tão ou mais importante do que buscar mercados em regiões diferentes daquelas de ocorrência de algumas espécies, envolvendo uma série de aspectos (logísticos, de aceitação e/ou aumento brusco da demanda), é também garantir e/ou promover os circuitos de comercialização e consumo em escalas locais e regionais, como uma estratégia não apenas de conservação biológica das espécies, mas também de manutenção das tradições e das relações existentes entre as populações locais, além dos aspectos relacionados à saúde que estão atrelados a esses produtos9. A temática dos sistemas alimentares alternativos e das cadeias curtas será a seguir contextualizada para os produtos da sociobiodiversidade, considerando-os como produtos que podem interessar a uma “demanda híbrida de consumo”, no sentido de Renting, Marsden e Banks (2013) e que devem ser tratados em um contexto de diversidade, evitando a tendência de cadeias (mono) produtivas. 9 Nesse sentido, é válido reforçar a importância da inserção dos produtos da sociobiodiversidade no segundo PLANAPO, não apenas como um incentivo a estes produtos, mas também como mais uma alternativa de acesso a produtos originários de sistemas sustentáveis pelas populações locais. DINIZ, J.D.A.S.; CERDAN, C. Produtos da sociobiodiversidade e cadeias curtas: aproximação socioespacial para uma valorização cultural e econômica. In: GAZOLLA, M.; SCHNEIDER, S. Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas: negócios e mercados da agricultura familiar. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2017, p. 259-280. 8 3. Sistemas agroalimentares alternativos e cadeias curtas: novas e tradicionais formas de acesso aos mercados pelos produtores familiares Os circuitos curtos são definidos como iniciativas que mobilizam no máximo um intermediário entre o produtores e consumidores (CHAFFOTTE; CHIFFOLEAU, 2007). Muitas dessas iniciativas, como observado por Deverre e Lamine (2010), são ainda pouco estruturadas, mesmo no caso dos circuitos alternativos da Europa. O retorno a algumas formas antigas de comercialização se mostra pertinente face a uma série de impactos atualmente conhecidos como cadeias agroalimentares globais, porém também apresenta um desafio, no sentido de viabilizar e manter essas configurações com menos níveis intermediários ao longo do tempo. Lamine (2014) observa também que, apesar de o paradigma da relocalização estar associado na literatura com os sistemas alimentares alternativos, propondo relações mais próximas entre agricultura e alimento, que favorecem o meio ambiente, ele não necessariamente garante uma reconexão entre agricultura e alimento, uma vez que as práticas agrícolas e alimentares são geralmente consideradas de forma assimétrica, além de não se considerar as interdependências existentes nos sistemas agroalimentares, e nem a diversidade de atores e instituições, pois o foco da ideia de relocalização estaria na relação direta entre produtor e consumidor e em atores alternativos. Neste tópico discutiremos as possibilidades e implicações atuais da comercialização de produtos originários da agricultura familiar, partindo dos produtores e chegando até os consumidores finais. Primeiramente serão apresentados aspectos gerais sobre níveis de intermediação nos canais, seguido por uma contextualização e proposição de alguns indicadores para se analisar o caso dos produtos da sociobiodiversidade à luz dos sistemas alimentares alternativos e das cadeias curtas. 3.1 Os diferentes níveis de intermediação nos canais de distribuição Os canais de distribuição podem ser compreendidos como conjuntos de organizações interdependentes que, em alguma medida, gerenciam os fluxos estabelecidos no processo de disponibilização de um produto ou serviço do produtor ou fornecedor ao usuário (TELLES; STREHLAU, 2006). Correspondem às alternativas possíveis para a disponibilização de um produto para os consumidores finais. No caso de um produtor ter pouca diversidade de itens, ao inserir seus produtos em um circuito de distribuição com outros produtos e produtores, ofertará maior diversidade para seus consumidores finais, sendo que esses circuitos de distribuição podem ou não contar ainda com a participação desse produtor, sendo o caso de quando o produto é passado para intermediários, quando se acrescenta mais níveis ao canal. Para o consumidor, também é interessante encontrar uma diversidade de produtos em um mesmo local ou circuito de compra, DINIZ, J.D.A.S.; CERDAN, C. Produtos da sociobiodiversidade e cadeias curtas: aproximação socioespacial para uma valorização cultural e econômica. In: GAZOLLA, M.; SCHNEIDER, S. Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas: negócios e mercados da agricultura familiar. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2017, p. 259-280. 9 pois significa maiores opções de escolha. Assim, os canais de distribuição, em estruturas formais ou informais, muitas vezes conseguem atender aos interesses de produtores e consumidores, mesmo que muitas vezes signifique passar por diversas intermediações. Em outra situação distinta daquela de produtores isolados, com dificuldade de acesso aos mercados, e que por isso dependem de agentes intermediários, cada vez mais se encontra produtores (a maioria de médio a grande porte) inseridos (ou integrados) em circuitos comandados pela grande distribuição. Mesmo sendo mais organizados, também não deixam de ser dependentes dessas empresas. Muitas vezes, como os produtores isolados, esses produtores continuam sem autonomia com relação aos preços praticados, não apenas por não terem noção dos custos de produção, mas também porque os preços são ditados pelas grandes redes varejistas. Em resposta a este domínio da grande distribuição, Deverre e Lamine (2010) destacam que os mercados tradicionais de produtores reaparecem como passíveis de favorecer a manutenção de pequenos produtores e são apresentados como fatores de resistência aos sistemas centrados em grandes empresas de distribuição principalmente. Representam, ainda, uma possibilidade de emergência de novas maneiras para se definir a relação entre produtores e consumidores, susceptíveis de questionarem os aspectos essenciais desse sistema, como as trocas a longas distâncias, a homogeneização dos produtos ou a desvinculação dos lugares e suas condições de produção. No caso de produtos da sociobiodiversidade, onde ainda existe relativa abundância10 de recursos nos locais de produção e pouca demanda nos mercados consumidores (locais ou externos), é necessário que sejam estimuladas e viabilizadas formas alternativas de criação de demanda e de acesso pelos consumidores, principalmente locais, a fim de se garantir circuitos de proximidade, que mantém/reforçam os hábitos e tradições locais, além de colaborarem com o desenvolvimento das regiões produtoras. Também é necessário reduzir os níveis de intermediação e/ou garantir que, no caso de produtos que seguem para outros mercados, funcionem circuitos alternativos aos dos grandes sistemas agroindustriais ou redes varejistas. Esses circuitos alternativos muitas vezes conseguem modificar as relações de dependência dos extrativistas às cadeias longas, com muitos intermediários, possibilitando maior autonomia às famílias e grupos que até recentemente não possuíam nenhuma alternativa de acesso aos mercados. Ploeg, Jinghzong e Schneider (2012) denominam estes mercados emergentes de nested markets, 10 É importante se considerar que esta relativa abundância de recursos existe exatamente porque algumas regiões produtoras ainda não foram pressionadas para atender a demandas maiores, que podem comprometer a capacidade de regeneração das espécies. DINIZ, J.D.A.S.; CERDAN, C. Produtos da sociobiodiversidade e cadeias curtas: aproximação 10 socioespacial para uma valorização cultural e econômica. In: GAZOLLA, M.; SCHNEIDER, S. Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas: negócios e mercados da agricultura familiar. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2017, p. 259-280. onde circuitos curtos, geralmente possuídos pelos próprios produtores, garantem a ligação entre produção e consumo de alimentos, permitindo uma maior participação no valor agregado, em contraste com a maioria dos atuais mercados agrícolas e de alimentos, que estão vinculados a impérios alimentares. 3.2 Comercialização de produtos da sociobiodiversidade: entre circuitos de nicho globais e um consumo tradicional local Apesar de uma parte dos produtos atualmente abrangidos pelo PNPSB já participar de circuitos estruturados de comercialização, alguns restringem-se a produtos de nicho ou de exportação para setores específicos, pouco presentes nos mercados convencionais e muitas vezes nos próprios circuitos locais de comercialização. Em outros casos, participam predominantemente do consumo das famílias, mas são pouco comercializados, mesmo localmente. Primeiramente, para que sejam identificadas as possibilidades para cada produto e comunidades envolvidas, é necessário que nos baseemos em alguns aspectos importantes que indiquem as especificidades de cada local ou bioma. As particularidades de cada espécie e/ou região devem ser consideradas para uma valorização dos produtos da sociobiodiversidade em cadeias ou circuitos curtos. Sonnino e Marsden (2006) citam o queijo parmesão Reggiano da Itália como um exemplo de produto regional que, a partir de uma (re)construção de sistemas de produção associados, promoveu desenvolvimento local, com geração de emprego e manutenção de técnicas tradicionais de produção, geralmente artesanais e com baixo impacto ambiental. Fournier e Touzard (2013) reconhecem a (co)existência de uma grande variedade de sistemas agroalimentares, que compreendem desde aqueles inseridos em sistemas agroindustriais convencionais, até aqueles que se apresentam como uma oposição contemporânea entre sistemas dominantes e sistemas alternativos. Uma tipologia de modelos alimentares que considera essa diversidade foi proposta pelos mesmos autores, onde apresentam cinco variantes possíveis: doméstico (autoconsumo), de proximidade (0 ou 1 intermediário e/ou proximidade geográfica), de comodidades (pequenas distâncias e baixos investimentos), agroindustrial (produção em massa e transformação) e de qualidade diferenciada (origem e práticas com preocupações ambientais e éticas). Além da tipologia utilizada por Fournier e Touzard (2013), alguns aspectos relacionados aos sistemas agroalimentares localizados (SIAL) propostos por Cândido, Malafaia e Rezende (2012) serviram de elementos comparativos para os quatro casos de cadeias da sociobiodiversidade selecionados, sendo eles: a) configuração geográfica dos produtos nos biomas (regiões específicas DINIZ, J.D.A.S.; CERDAN, C. Produtos da sociobiodiversidade e cadeias curtas: aproximação socioespacial para uma valorização cultural e econômica. In: GAZOLLA, M.; SCHNEIDER, S. Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas: negócios e mercados da agricultura familiar. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2017, p. 259-280. 11 onde existe maior ocorrência/produção e/ou consumo); b) características intrínsecas ao produto, oriundas do território ou de outros ativos específicos disponíveis nas regiões de ocorrência; c) existência de interação entre o âmbito local e global; d) fatores sociais, culturais e históricos que criam uma identidade para produtos e entre os produtores; e) interação real entre o território e a cadeia produtiva, com vistas à diferenciação do produto. Nesse sentido, além da descrição dos casos dos quatro produtos, serão identificados no conjunto de elementos e de atores associados a esses produtos, aspectos orientadores que devem ser observados em determinadas cadeias de produtos da sociobiodiversidade, a fim de se identificar a existência e/ou a possibilidade de construção de cadeias curtas para esses produtos. O fato de determinado produto ou local já ter alguma forma mais estruturada de comercialização pode favorecer o fortalecimento de circuitos curtos, mas nada impede que outros aspectos não necessariamente relacionados à comercialização, incentivem, no médio prazo, o desenvolvimento de cadeias curtas para alguns produtos da sociobiodiversidade. Como são muitas as possibilidades de aproximação entre produtores e consumidores, assim como as situações encontradas nos diferentes biomas brasileiros, é necessário se ter a clareza das potencialidades, limitações e riscos envolvidos em cada situação estudada. 4. Quatro casos emblemáticos de cadeias de produtos da sociobiodiversidade em dois biomas brasileiros Os produtos da sociobiodiversidade escolhidos para uma análise a partir do quadro dos sistemas alimentares alternativos e das cadeias curtas são bastante representativos para ilustrar as especificidades regionais, tanto em termos produtivos e de circuitos de distribuição, como em termos de apoio às suas cadeias por meio de ações e políticas de atores públicos e privados. Ao contrário de produtos geralmente relatados em experiências de valorização pela qualidade diferenciada, como as denominações de origem, parte desses produtos, apesar de atingirem mercados certificados, ainda são principalmente comercializados em circuitos tradicionais. Por se tratarem, muitas vezes, de relações informais e que iniciam em localidades distantes dos centros urbanos, esses circuitos muitas vezes permanecem invisíveis perante o Estado e a sociedade, geralmente devido às dificuldades de se registrar e se contabilizar estatísticas referentes a atores e processos locais, o que torna ainda mais difícil a proposição de alternativas mais adaptadas à realidade dessas regiões e populações. DINIZ, J.D.A.S.; CERDAN, C. Produtos da sociobiodiversidade e cadeias curtas: aproximação socioespacial para uma valorização cultural e econômica. In: GAZOLLA, M.; SCHNEIDER, S. Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas: negócios e mercados da agricultura familiar. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2017, p. 259-280. 12 Os casos dos quatro produtos serão descritos separadamente por bioma. Apesar de cada um ter sua especificidade quanto aos processos de produção, comercialização e consumo, os contextos regionais são relativamente semelhantes. 4.1 Produtos da sociobiodiversidade na Amazônia: dos ciclos extrativistas predatórios à valorização do bioma Com um histórico de sucessivos ciclos extrativistas (vegetais e minerais), a maioria deles predatórios (HOMMA, 1993), os produtos da sociobiodiversidade do bioma amazônico escolhidos para esta análise à luz dos sistemas alimentares alternativos e cadeias curtas foram o açaí (Euterpe oleracea), fruto típico de florestas de várzea e a castanha do brasil (Bertholletia excelsa), de ocorrência em florestas de terra firme. 4.1.1 Açaí (Euterpe oleracea) Em diversos locais da Amazônia, o açaí passou, nas duas últimas décadas, de cadeias curtas, típicas de sistemas domésticos ou de comodidade, para configurações agroindustriais, principalmente nas capitais da região, porém ainda com poucos casos de qualidade diferenciada. Apesar de ser um produto consumido atualmente em todo o país e que vem aumentando as quantidades exportadas, a cadeia ainda possui características fortemente tradicionais, onde as famílias de coletores representam os principais consumidores do produto. Para se ter uma ideia da importância deste produto no consumo local, Cialdella e Navegantes (2014) relatam que o consumo médio de açaí em 2013 na região metropolitana de Belém foi de 42,8 kg/hab/ano, ficando acima do consumo da carne bovina (39 kg/hab/ano) e da farinha de mandioca (34 kg/hab/ano). Até recentemente, o açaí era considerado um “fruto de pobre”, por ser um alimento de preço acessível e que fornecia as calorias diárias necessárias, principalmente para a população urbana de baixa renda (SILLS et al., 2011), e também por não ser muito demandado entre as elites das cidades amazônicas, não justificando, até recentemente, necessidade de se ofertar o fruto durante todo o ano. O interesse maior do mercado urbano, até então se concentrava no palmito, retirado do colmo (miolo) da mesma palmeira, sendo essa atividade classificada por Homma (1993) como extrativismo de aniquilamento, por causar a extinção da fonte. Atualmente, devido ao maior interesse pelo fruto, o palmito do açaizeiro só é retirado quando se realiza o manejo dos açaizais, ao se eliminar as palmeiras mais velhas. DINIZ, J.D.A.S.; CERDAN, C. Produtos da sociobiodiversidade e cadeias curtas: aproximação socioespacial para uma valorização cultural e econômica. In: GAZOLLA, M.; SCHNEIDER, S. Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas: negócios e mercados da agricultura familiar. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2017, p. 259-280. 13 Em termos de sistemas produtivos, tem-se observado o aumento do adensamento dos açaizeiros, e até mesmo os plantios em monocultivo em algumas localidades11, principalmente com espécies adaptadas à terra firme, e que geralmente não são muito apreciadas pelas comunidades locais, que conseguem identificar imediatamente as diferenças sensoriais. O manejo mais adequado também tem contribuído para a garantia da oferta do açaí fora da safra, mesmo que em menor quantidade. Por se tratar de um fruto de alta perecibilidade (SILLS et al., 2011; ROGEZ, 2000), o açaí deve ser beneficiado no mesmo dia ou então resfriado para alcançar mercados mais distantes. Localmente é consumido na forma de “vinho” (polpa) batido, principalmente acompanhado de complementos salgados (farinha, peixe ou charque) ou, ainda, com açúcar e farinhas de mandioca ou tapioca, sendo a base da alimentação de muitas famílias locais. Fora da região amazônica, é consumido na forma de polpa congelada, adicionada de outros produtos (frutas, guaraná, granola, entre outros). Os contrastes entre as formas de consumo localmente e fora da região fazem com que se mantenham, na prática, dois principais modelos de produção e distribuição do fruto: um doméstico, para atendimento das famílias das áreas rurais e consumidores urbanos da região, que o consomem diariamente e batido na hora, e outro para atendimento das indústrias e distribuidoras que enviam o produto congelado e/ou seus derivados para outras regiões do país e do exterior. Esses produtos seguem padronizados e respondendo a padrões de qualidade e eficiência (SONNINO; MARSDEN, 2006). As diferenças acima apresentadas são bastante presentes na fase atual da cadeia do açaí, uma vez que ela sugere, como relatam Sonnino e Marsden (2006), um novo processo de relocalização de atividades econômicas e práticas, transformações territoriais e batalhas contestáveis em torno de convenções que, devido à mudança dos consumidores e do mercado, podem provocar mudanças tanto no mercado local quanto em outras regiões. Conforme destacado por Zaneti (2015), a inserção desses produtos na alta gastronomia brasileira se deu somente a partir de um processo de valorização de fora para dentro, ou seja, principalmente quando passaram a ganhar notoriedade internacional. Um exemplo típico de produto que teve primeiramente um interesse estrangeiro pela sua utilização foi a castanha do brasil12, sendo o próximo caso abordado. 11 Inclusive com uso de fertilizantes e defensivos químicos, não podendo mais ser considerado um produto orgânico. 12 Também denominada “castanha do pará”, émais conhecida no mercado internacional por “castanha do brasil” (brazil nut). Porém, atualmente esta nomenclatura vem sendo contestada por outros países produtores da Pan-Amazônia, que consideram a denominação “castanha da amazônia” mais justa e correta, principalmente Bolívia e Peru, que representam os maiores exportadores do produto, junto com o Brasil. DINIZ, J.D.A.S.; CERDAN, C. Produtos da sociobiodiversidade e cadeias curtas: aproximação socioespacial para uma valorização cultural e econômica. In: GAZOLLA, M.; SCHNEIDER, S. Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas: negócios e mercados da agricultura familiar. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2017, p. 259-280. 14 4.1.2 Castanha do brasil (Bertholletia excelsa) Produto que aproveitou a infraestrutura e atores ligados aos ciclos da borracha na Amazônia, era tradicionalmente explorado com foco na exportação, com diversos níveis de intermediação e chegando a ter 85% de sua produção vendida fora do Brasil (DINIZ, 2008). No início dos anos 2000, a crise das indústrias exportadoras, principalmente devido aos rechaços da União Europeia pelos níveis de aflatoxina acima do permitido, em certa medida acabou contribuindo para a busca de alternativas de mercados locais. Associado à crise da indústria, algumas das organizações sociais (associações e cooperativas) que conseguiram se reestruturar após vários projetos com financiamento internacional fracassados, começaram a se capitalizar. Em um primeiro momento, com o apoio de programas de compras institucionais (PAA modalidades formação de estoques e doação simultânea) e, posteriormente, a partir de um maior envolvimento das comunidades (principalmente mulheres) em atividades de pré-beneficiamento e beneficiamento local, com produção de biscoitos e farinhas à base de castanha para a alimentação escolar, principalmente nos estados do Acre e Amapá. Nesses estados também foram pioneiras as experiências de associações e cooperativas centrais que reúnem e beneficiam os produtos coletados por outras organizações locais, reduzindo a participação dos atravessadores que, durante muitos anos abasteceram os circuitos de intermediação até as indústrias exportadoras. Mesmo que essas ações já tenham provocado mudanças na cadeia, a estrutura de comercialização para atendimento das principais indústrias exportadoras ainda está ancorada em uma extensa rede de atravessadores, que mantém relações complexas com os extrativistas e que ainda coloca no mercado produtos com baixa qualidade e preços elevados para os consumidores finais de fora da Amazônia. Diferentemente do caso do açaí, a cadeia da castanha teve início já com a exploração coordenada por empresas exportadoras, que, com recursos dos países importadores, financiavam toda uma rede de intermediação que se sustentou durante muitos anos a partir de práticas de aviamento13 e de patronagem14 (DINIZ, 2008), em uma lógica de comercialização de produtos brutos e a granel 13O financiamento da produção com base no aviamento teve o seu apogeu na Amazônia durante o primeiro ciclo da borracha (séculos XIX e XX), sendo caracterizado por uma cadeia hierarquizada com vários agentes e atores, que servia de suporte a relações comerciais complexas para o fornecimento de mercadorias a crédito em troca de produtos regionais (escambo) (SILVA, 2010; FILOCREÃO, 2002). 14O termo patronagem empregado no contexto do extrativismo, principalmente na Amazônia, refere-se à relação de poder existente entre o patrão, aquele que tinha “o domínio do rio” e o extrativista, “isolado e eternamente preso à sua dívida” (AUBERTIN; PINTON, 2006). DINIZ, J.D.A.S.; CERDAN, C. Produtos da sociobiodiversidade e cadeias curtas: aproximação 15 socioespacial para uma valorização cultural e econômica. In: GAZOLLA, M.; SCHNEIDER, S. Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas: negócios e mercados da agricultura familiar. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2017, p. 259-280. (SONNINO; MARSDEN, 2006), sem nenhuma agregação local de valor. Quando a castanha é passada aos atravessadores em localidades próximas às áreas de coleta, maior é a diferença de preços entre o produto bruto e aquele que chega ao consumidor. Se o extrativista já consegue – individual ou coletivamente – transportar e reduzir a umidade da castanha, é quase garantido que consiga melhor qualidade e preço para o produto. Após a criação de unidades de conservação, diversas associações e cooperativas foram instituídas, com o apoio de organismos internacionais, iniciando um processo de aproximação dos extrativistas com diferentes mercados. Acostumados, durante muito tempo, a seguir as ordens dos patrões para realizar as rotinas durante a safra da castanha, muitos extrativistas enfrentam até hoje diversas dificuldades para garantir a qualidade dos produtos nas condições de armazenamento e transporte da Amazônia. A participação das cooperativas extrativistas nas compras institucionais e em feiras da agricultura familiar tem permitido a identificação de novos mercados e produtos que podem interessar não apenas ao mercado institucional, mas também consumidores preocupados em adquirir alimentos muitas vezes detentores de selos de qualidade (ambiental, social e intrínseca), numa articulação de novas formas de associação/organização política e de governança de mercado (SONNINO; MARSDEN, 2006). 4.2 Produtos da sociobiodiversidade no Cerrado: agroextrativismo e diversidade de produtos ainda pouco valorizados Em diversas regiões do Cerrado, o extrativismo é complementar à atividade agrícola, tendo ajudado a manter diversas famílias no campo pelo incremento de renda que tem possibilitado nos últimos anos (BISPO, 2014). Com grupos bem organizados, muitas iniciativas do Cerrado tiveram o apoio da Rede Cerrado15 e hoje servem de referência para aplicação de políticas de promoção de cadeias em outros biomas. Entre as diversas associações e cooperativas criadas principalmente em Minas Gerais, muitas mulheres e homens agroextrativistas passaram a se dedicar à coleta de espécies vegetais do Cerrado com finalidades comerciais. Diferentemente da Amazônia, durante muitos anos esta atividade era realizada exclusivamente para atender ao autoconsumo das famílias de agroextrativistas. Os produtos do Cerrado selecionados para uma análise sobre sistemas alimentares alternativos e cadeias curtas foram o pequi (Caryocar brasiliense), com forte tradição principalmente nos estados 15A Rede Cerrado congrega mais de 330 organizações da sociedade civil que atuam na promoção do desenvolvimento sustentável e na conservação do Cerrado, representando trabalhadores e trabalhadoras rurais, extrativistas, indígenas, quilombolas, geraizeiros, quebradeiras de coco, pescadores artesanais, entre outros. DINIZ, J.D.A.S.; CERDAN, C. Produtos da sociobiodiversidade e cadeias curtas: aproximação socioespacial para uma valorização cultural e econômica. In: GAZOLLA, M.; SCHNEIDER, S. Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas: negócios e mercados da agricultura familiar. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2017, p. 259-280. 16 de Minas Gerais e Goiás, e o baru (Dipteryx alata), fruto recentemente “descoberto” pela alta gastronomia nacional, mas ainda com pouca tradição de consumo pelas comunidades coletoras locais. 4.2.1 Pequi (Caryocar brasiliense) O estado de Minas Gerais tem sido referência para se estudar diversos casos de cadeias curtas para o pequi, por ter sido o palco de diversas políticas locais e nacionais para estruturação da cadeia produtiva desta espécie do Cerrado, com destaque para a criação do Núcleo Gestor da Cadeia do Pequi e do Arranjo Produtivo Local no estado (AFONSO, 2012). Fruto de consumo tradicional e muito valorizado na culinária pela cultura sertaneja, pode ser classificado como um produto doméstico nas áreas rurais, mas também de comodidade em áreas urbanas da maioria dos estados que compõem o Cerrado. Somente recentemente, como resultado de diversas ações voltadas para a promoção do fruto, como festivais culturais, apoio a organizações sociais e desenvolvimento de novos produtos, que a cadeia do pequi tem possibilitado uma aproximação dos produtos e seus atores com outros públicos consumidores. Cândido, Malafaia e Rezende (2012) destacam que entre as principais cooperativas produtoras de pequi do Norte de Minas (região do estado produziu 25% do pequi no país em 2009), 80% comercializam localmente através do PAA, mas também conseguem escoar seus produtos para os grandes centros de consumo. Outros usos para o pequi, como na indústria de cosméticos e farmacêutica, já despontam no mercado. É interessante se comentar o caso da Articulação Pacari, rede socioambiental formada por diversas organizações comunitárias que praticam medicina tradicional a partir do extrativismo de espécies do Cerrado. Apesar de não se tratar de processamento de alimentos, é uma das poucas organizações sociais de agroextrativistas do Cerrado dedicada a fitocosméticos e plantas medicinais, constituindo uma exceção em termos de agregação de valor por meio de produtos diferenciados, em circuitos alternativos de comercialização. Ao pesquisar a inclusão de produtos tradicionais nos circuitos da alta gastronomia de Brasília, Zaneti (2015) constatou que o pequi não apresenta potencial de inserção nesse mercado, mas se comporta como um elemento impulsionador de uma busca dos chefs por outros frutos do Cerrado, como o baru, bastante citado pelos chefs de sua pesquisa e que vem aumentando sua presença nos DINIZ, J.D.A.S.; CERDAN, C. Produtos da sociobiodiversidade e cadeias curtas: aproximação socioespacial para uma valorização cultural e econômica. In: GAZOLLA, M.; SCHNEIDER, S. Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas: negócios e mercados da agricultura familiar. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2017, p. 259-280. 17 cardápios de restaurantes de haute cuisine, apesar de ser pouco consumido pelas famílias coletoras. Assim, do contraste da tradição local e difícil aceitação em mercados mais sofisticados experimentados pelo pequi, passamos ao caso oposto e relativamente recente do baru. 4.2.2 Baru (Ditpteryx alata) Produto menos conhecido no mercado nacional, mas com cadeia emergente nas regiões de ocorrência, onde o fruto não possui tradição de consumo pelos seus coletores e nem pela população local, conforme observado por Bispo (2014) no Vale do rio Urucuia-MG. Nesta região, o baru e outros produtos da sociobiodiversidade do Cerrado, com exceção do pequi, ainda são coletados pelas famílias principalmente com finalidades comerciais, sendo pouco valorizados pela população local, uma vez que o baru era visto até recentemente como alimento para o gado, que apreciava o sabor adocicado do seu mesocarpo, mas que não conseguia comer suas amêndoas, que se assemelham em forma e sabor ao amendoim. O baru começou a ter demanda depois que alguns profissionais da gastronomia passaram a utilizá-lo como ingrediente em receitas sofisticadas. A espécie também fez parte das Fortalezas da Rede de Ecogastronomia Slow Food16, por meio de duas associações do município de Pirenópolis-GO, mas que atualmente não estão mais atuando coletivamente. Apesar de não possuir tradição de coleta e uso na região, o que é observado pelas práticas e ferramentas ainda incipientes, a cadeia do baru começa a se organizar, porém ainda encontra dificuldades para ações coletivas em algumas regiões. Em muitos casos, os coletores possuem autorização de fazendeiros locais para coletar os frutos nas suas propriedades. Antes esta coleta não era cobrada, porém, à medida que o fruto vai sendo valorizado, alguns proprietários já vem solicitando pagamento pelo acesso às árvores de baru e/ou participação nas vendas. A coleta e a quebra do baru tem merecido estudos para desenvolvimento de equipamentos, uma vez que as condições pouco ergonômicas (coletores precisam se abaixar para coletar os frutos no chão, geralmente em pastos), as dificuldades para quebra da casca tornam o trabalho com este produto pouco produtivo, o que encarece enormemente os custos de produção e, consequentemente, os preços, não apenas para o consumidor final, mas para outros atores intermediários. 16 Os projetos das Fortalezas do Slow Food buscam conectar produtores rurais isolados e mercados alternativos. DINIZ, J.D.A.S.; CERDAN, C. Produtos da sociobiodiversidade e cadeias curtas: aproximação 18 socioespacial para uma valorização cultural e econômica. In: GAZOLLA, M.; SCHNEIDER, S. Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas: negócios e mercados da agricultura familiar. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2017, p. 259-280. Dentre os casos selecionados, o baru é aquele que mais carece de ações voltadas tanto para a valorização e o consumo locais, como para facilitar as condições para a organização em torno de sua coleta, beneficiamento e comercialização. A maior parte da transformação e comercialização para os consumidores finais é feita por empreendedores individuais. Os preços elevados com que o baru consegue chegar ao mercado são causados por dois principais fatores, em parte complementares: baixa oferta, em função das dificuldades de acesso e escoamento, e organização social inexistente ou incipiente nas regiões de ocorrência, que dificulta ações coletivas para coleta, transporte e beneficiamento do produto. Como pontos em comum entre as quatro cadeias, pode-se destacar, pelo lado da produção, a associação entre o extrativismo e a agricultura, ou ainda com outras atividades, como a pesca para subsistência, especificamente no caso dos coletores de açaí. Pelo lado da comercialização, o aumento da demanda pelos quatro produtos também tem sido vetor de experiências interessantes de organização coletiva, desenvolvimento de produtos e construção de mercados alternativos nos dois biomas citados. Entretanto, por se tratarem de produtos e cadeias bastante sazonais e com diversos aspectos ambientais, socioeconômicos e tecnológicos ainda pouco conhecidos, diversos desafios se colocam à manutenção desses novos circuitos alternativos que tem surgido. 5. Desafios à sustentabilidade de cadeias de curtas de produtos da sociobiodiversidade As cadeias de produtos da sociobiodiversidade selecionadas neste capítulo – açaí, castanha do brasil, pequi e baru - representam realidades distintas daquelas geralmente abordadas na literatura sobre sistemas alimentares locais e alternativos, por se tratarem de produtos que, apesar de, na maioria dos casos, já possuírem importante consumo local, não apresentavam ainda uma organização em circuitos comerciais formais. Durante muitos anos fizeram parte do consumo das famílias de coletores, mas sem representarem oportunidades para o desenvolvimento rural local. Apenas a castanha do brasil já possuía interesse fora da região, mas a estrutura da cadeia, com longas redes de intermediários, era voltada quase que exclusivamente para a exportação. Os outros produtos apenas recentemente vieram experimentar demandas maiores pelos mercados externos, principalmente o açaí. Os produtos da Amazônia passaram a experimentar uma valorização e ações para a promoção de suas cadeias, principalmente a partir de projetos internacionais que associavam a valorização desses produtos florestais não-madeireiros à conservação da floresta em pé. Já os produtos e o próprio bioma Cerrado, por estarem em constante disputa com os projetos de agronegócios DINIZ, J.D.A.S.; CERDAN, C. Produtos da sociobiodiversidade e cadeias curtas: aproximação socioespacial para uma valorização cultural e econômica. In: GAZOLLA, M.; SCHNEIDER, S. Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas: negócios e mercados da agricultura familiar. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2017, p. 259-280. 19 priorizados para o Centro-Oeste e estados do Nordeste e Sudeste com ocorrência do bioma, se beneficiaram bem menos deste tipo de projetos aplicados à Amazônia. Além disso, enquanto que a Amazônia continua despertando o interesse dos mercados com produtos ofertados em larga escala, o pequi, principal produto da sociobiodiversidade do Cerrado, vem experimentando o desenvolvimento de sua cadeia, principalmente em Minas Gerais, com foco no atendimento ao consumo local, o que ainda não chega a ameaçar os sistemas de produção originais pelo aumento da demanda por esses produtos. Por outro lado, a concorrência com as atividades do agronegócio ameaça a manutenção dos recursos e das famílias que podem se beneficiar da venda desses produtos. Em se tratando de novas formas de promoção e de comercialização dos produtos da sociobiodiversidade, destacam-se, tanto na Amazônia como no Cerrado, as cooperativas centrais de comercialização, a organização de festivais temáticos locais e a promoção de feiras de produtores, com o apoio de governos municipais, estaduais e federal, além de alguns pontos de venda especializados, de iniciativas privadas, onde esses produtos são comercializados in natura e processados, possibilitando uma maior divulgação sobre suas propriedades e formas de produção, assim como o contato com novos produtos. Adicionalmente, quando se considera as possibilidades de inserção desses produtos nos mercados institucionais, principalmente via PAA e PNAE, diversos desafios se apresentam17. O primeiro deles está ligado ao fato de a maioria das políticas ainda se apoiar em estruturas econômicas, comerciais e de abastecimento clássicas, geralmente baseadas no modelo de uma região geralmente mais desenvolvida. Sonnino e Marsden (2006), considerando o contexto europeu após a reforma na Política Agrícola Comum (PAC), destacam a necessidade de situar os sistemas alimentares alternativos nos seus contextos regulatórios, institucional, sociocultural e espacial. É imprescindível, portanto, se reconhecer as especificidades estruturais e socioculturais regionais para que a inserção desses produtos seja garantida na alimentação das escolas e entidades locais, principalmente via abastecimento dos produtos in natura, o que reduziria os custos logísticos, mas também a partir de produtos derivados, que poderiam ser produzidos não apenas com foco nos mercados externos. Outro desafio está relacionado à existência de uma grande variação da produção de um ano a outro, impedindo que as organizações agroextrativistas assumam contratos regulares, até mesmo com os mercados institucionais, que exigem fornecimento constante ao longo do ano. Essas alterações nos 17Para mais informações sobre os desafios que enfrentam atualmente as comunidades agroextrativistas para produzir e comercializar seus produtos, recomenda-se a leitura de detalhado material elaborado por Simoni (2012), publicado pelo Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN). DINIZ, J.D.A.S.; CERDAN, C. Produtos da sociobiodiversidade e cadeias curtas: aproximação 20 socioespacial para uma valorização cultural e econômica. In: GAZOLLA, M.; SCHNEIDER, S. Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas: negócios e mercados da agricultura familiar. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2017, p. 259-280. ciclos produtivos já são conhecidas pelas comunidades tradicionais, mas ainda permanecem distantes do conhecimento dos clientes que demandam fornecimentos regulares. É necessário compreender os ciclos produtivos e criar condições comerciais que estejam adaptadas a essas variações. Também é importante evitar que os processos de relocalização da produção e do consumo de alimentos, no caso dos produtos da sociobiodiversidade, não sejam apropriados por aquelas organizações mais estruturadas como relatado por Deverre e Lamine (2010) para algumas regiões dos EUA, onde programas de fornecimentos de alimentos para as escolas pelos produtores locais (farms-to-school programs) acabaram sendo desenvolvidos somente naquelas coletividades com melhores condições produtivas e logísticas.Esta situação também é observada no Brasil, sendo imprescindível se garantir que outros grupos locais sejam incentivados e apoiados, porém com o cuidado de não deixar esses agroextrativistas dependentes exclusivamente dos mercados institucionais. Para Sonnino e Marsden (2006), um melhor entendimento conceitual dos canais alternativos de alimentos é necessário para desenvolver mecanismos regulatórios que consigam sustentar as práticas (alternativas) associadas, como na convencionalização da agricultura orgânica. As diferentes oportunidades para as cadeias curtas, não apenas nos mercados locais, devem ser buscadas. Mas também é importante se reconhecer e garantir as interações, entre produtores e consumidores de diferentes sistemas complementares, conforme proposto por Fournier e Touzard (2013). Deve-se considerar que a valorização local de produtos específicos, como os produtos da sociobiodiversidade, mesmo que não garanta e não se dê exclusivamente em locais próximos à produção, continua representando uma importante estratégia de geração de renda – e, portanto, de melhores condições de consumo e alimentação para as comunidades produtoras. O desafio é garantir que os agroextrativistas continuem inseridos nesses circuitos não apenas como fornecedores, mas também, como consumidores, pois, como mencionam Tregear et al. (2007), mais importante do que a oferta do produto em si, é a identidade territorial e suas associações com o produto, que estão na base da geração de valor e que permitem sua reprodução social. Por fim, propõe-se uma agenda de estudos, com alguns temas que poderiam ser aprofundados, a fim de fornecer um maior entendimento sobre as especificidades dessas cadeias e, consequentemente, se promover/acompanhar processos de encurtamento dos níveis de intermediação entre agroextrativistas e consumidores finais. Tão importante quanto estudos e ações com foco na melhoria das condições de coleta, escoamento e beneficiamento, está a demanda por uma apuração de custos de produção mais realistas para os produtos da sociobiodiversidade. Sabese que, na maioria dos casos, os preços mínimos propostos pela PGPMBio estão aquém daqueles oferecidos pelo(s) mercado(s). DINIZ, J.D.A.S.; CERDAN, C. Produtos da sociobiodiversidade e cadeias curtas: aproximação socioespacial para uma valorização cultural e econômica. In: GAZOLLA, M.; SCHNEIDER, S. Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas: negócios e mercados da agricultura familiar. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2017, p. 259-280. 21 Além disso, é essencial que sejam estudadas diferentes estratégias para a ampliação da participação de alguns destes produtos no consumo local, para uma maior valorização e consumo junto às famílias extrativistas, possibilitando mudanças culturais e incrementos nutricionais. Essas estratégias podem ter foco na produção, ao se incentivar pesquisa e desenvolvimento de novos produtos derivados destas espécies, mas também podem focar nas diferentes formas de consumo. Para que estas propostas de estudos sejam viabilizadas, é fundamental que seja conseguida uma integração entre instituições e políticas públicas já existentes, não apenas nos ministérios e órgãos diretamente envolvidos, como MDA, MDS e MMA. A título de exemplo, as pesquisas voltadas para a melhoria da qualidade do açaí (ROGEZ, 2000) não somente impulsionaram a inserção desse produto em outros mercados fora da região amazônica, como também possibilitaram identificar os gargalos à redução dos riscos de consumo, principalmente para os consumidores das áreas urbanas, garantindo a manutenção de uma das mais peculiares estruturas de cadeia curta do país. Referências AUBERTIN, C.; PINTON, F. Des nouvelles frontières du développement durable: la construction des espaces de droits en Amazonie brésilienne. Colloque International Les frontières de la questionfoncière: enchassement social des droits et politiques publiques. 17-19-mai, 2006. ENSAM/INRA, Montpellier. AFONSO, S.R. 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