“transportando fortunas para povoar
deserta e inculta campanha”: brasileiros
e produção pecuária no norte do uruguai
em meados do século xix*
“transporting fortunes to populate a desert
and uncultivated campaign”: brazilians and
livestock production in northern uruguay in the
mid-19th century
Carla Menegat **
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense, Gravataí, Rio Grande
do Sul, Brasil
RESUMO
ABSTRACT
Em 1850 o governo imperial brasileiro,
através de suas autoridades militares na
fronteira da Província do Rio Grande do Sul
com o Estado Oriental do Uruguai, listou
1.353 propriedades pertencentes a brasileiros
no país vizinho. À produção dessa lista,
seguiu-se a intervenção militar conhecida
como Campanha contra Oribe e Rosas, que
levaria ao fim da Guerra Grande no Uruguai
em 1851 e à assinatura de uma série de cinco
tratados entre os dois países que privilegiariam
os pecuaristas brasileiros estabelecidos na
campanha norte oriental. Observando essa
lista como parte de uma relação entre
produtores de gado brasileiros residentes no
Uruguai, autoridades daquele país e do Império, o objetivo da pesquisa a ser apresentada
foi discutir o impacto da presença desses
pecuaristas no país vizinho, em termos da
constituição de redes de comércio e produção.
In 1850 the Brazilian imperial government,
through its military authorities on the border
of the Province of Rio Grande do Sul with
the Eastern State of Uruguay, listed 1.353
properties owned by Brazilians in the neighboring country. The production of this list
was followed by the military intervention
known as the Campaign against Oribe and
Rosas, which would lead to the end of the
Guerra Grande in Uruguay in 1851 and the
signing of a series of five treaties between the
two countries that would favor Brazilian
cattle ranchers established in north countryside. Observing this list as part of a relationship
between Brazilian cattle producers resident
in Uruguay, authorities of that country and
Brazil, the objective of the research to be
presented was to discuss the impact of the
presence of these ranchers in the neighboring
country, in terms of the constitution of networks of trade and production.
Palavras-chave: Rio de La Plata. Pecuária.
Brasil Império.
Keywords: Rio de La Plata. Livestock. Imperial Brasil.
* Submissão: 19/01/2019; aprovação: 15/11/2019.
** Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense. E-mail: carlamenegat@gmail.com. ORCID: <https://orcid.org/0000-00017602-6416>.
história econômica & história de empresas vol. 23 no 1 (2020), 63-95
| 63
Em 1853 o alcaide da Villa de Melo enviou nota ao Ministério de
Governo uruguaio manifestando a impossibilidade de eleger as autoridades departamentais de Aceguá devido à ausência de cidadãos orientais
naquele partido. A situação era agravada pela negativa dos brasileiros que
ali viviam de serem arrolados nos padrões e censos do Estado Oriental
(Borucki; Chagas; Stalla, 2004, p. 162). Ao se manterem alheios às estatísticas e registros daquele Estado, os brasileiros acreditavam poder
manter-se como se estivessem no território do Império. As implicações
desse tipo de prática impactaram a relação que esses súditos imperiais
estabeleceram com o Estado Imperial em meados do século XIX.
A ocupação da metade norte da atual República Oriental do Uruguai por luso-brasileiros remonta ao fim do período colonial e marca a
própria conformação da espacialidade da região. A fonte mais utilizada
pela historiografia (Souza; Prado, 2004) para estudar os proprietários
brasileiros estabelecidos no Uruguai tem sido o Relatório da Repartição
de Negócios Estrangeiros (RRNE), do ano de 1850. No anexo A do relatório constam quinze listas, distribuídas em documentos e envios diferentes e produzidas pelos Comandos Militares da Fronteira com a relação
dos brasileiros e suas propriedades e extensões no país vizinho. Juntar
essas listas, tão distintas na sua configuração, para realizar uma análise
que busque entender o conjunto dos estancieiros exige cuidados. Para
tanto, optei por confrontar e completar os dados da lista com outro
conjunto documental que reflete a situação do patrimônio dos brasileiros no Estado Oriental: os inventários post-mortem1. O objetivo foi, a
partir de vestígios produzidos em contextos distintos, observar a forma
como esses sujeitos ocuparam esse território, estabelecendo um quadro
no qual seja possível visualizar como suas atividades produtivas se organizavam.
O contexto de produção dos inventários post-mortem implica o desejo dos herdeiros, de seus responsáveis ou de seus credores, de recorrerem
de alguma forma ao Estado imperial no sentido de ele garantir o justo
1
Sobre a amostra de inventários post-mortem que contribuem com a análise realizada
aqui, preciso também realizar algumas considerações. Foram consultados 1.042 processos das Comarcas de Piratini – que incluía a vila de Jaguarão – Pelotas, Rio Grande,
Bagé, Santana do Livramento e Alegrete, no período entre 1835 e 1870, depositados
no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Desses processos, 12%, ou seja,
126 apresentavam propriedades no Estado Oriental, e foram estes que analisei.
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reconhecimento da posse e propriedade desses bens. Essa característica
se torna especialmente importante ao avaliarmos que os bens não se
encontram no território do Império e, portanto, respondem a outras
leis. As informações constantes de um inventário têm um sentido de
ordenação legal que as diferencia das listas de proprietários, fruto de
uma tentativa de estatística estatal improvisada. Os dados dos inventários
têm a força do reconhecimento do Estado sobre o patrimônio material
dos indivíduos que tomam parte nos processos, enquanto a natureza das
listas era política, ao reconhecerem um volume de patrimônios em
território estrangeiro. Ambos são manifestações diferentes da presença
do Estado imperial na fronteira meridional. Os contextos de produção
desses diferentes documentos permitem o acesso a informações de
pontos de vista distintos.
As listas do RRNE foram produzidas por comandantes de fronteira,
a pedido do presidente da província, segundo informações coletadas
entre contatos locais. Diferentes indivíduos compilaram os dados dos
documentos apresentados; ao menos cinco oficiais enviaram listas, contendo no total, 1.353 propriedades listadas e 1.198 nomes de súditos do
Império. Essa diversidade de relatores parece ser fonte de alguns problemas de sobreposições, duplicações e imprecisões em torno de dados
e nomes.
Provavelmente, esses problemas também estivessem ligados ao alcance
do conhecimento que esses homens tinham sobre os brasileiros no
Estado Oriental. O período de produção das listas foi reduzido em relação ao tamanho da tarefa e as informações não foram colhidas a partir
de uma verificação in loco, como num censo, ou padrón, ou listagem de
fogos. De fato, se observarmos o caráter do método, poderíamos defini-lo pelo “rumor”: as listas são fruto de informação indireta, manipulada
sem condições práticas de verificabilidade. De qualquer forma, sua legitimidade não fica comprometida por sua imprecisão
O RRNE impresso apresentado pelo ministro e secretário de Estado
Paulino Soares de Souza na terceira sessão da oitava legislatura da Assembleia Geral Legislativa, tinha no seu Anexo A, intitulado “Negócios
do Rio da Prata”, uma série de notas de discussão. Nas suas primeiras
quarenta páginas e nas vinte finais, estão impressos documentos diplomáticos que dão conta da comunicação com a República Argentina,
especialmente através do Ministro Thomaz Guido e com as autoridades
“Transportando fortunas para povoar deserta e inculta campanha”: brasileiros e produção... | 65
uruguaias, incluindo Dom Manuel Oribe, sobre os procedimentos do
Barão do Jacuí na República Oriental; todavia, tais dados não compõem
o corpo principal das preocupações deste trabalho.
As relações de brasileiros que têm propriedades no Uruguai complementam essa discussão diplomática, como um adendo de comprovação,
dado que uma das acusações realizada por Thomaz Guido era a de que
as reclamações sobre as violências sofridas pelos brasileiros são vagas e
sem precisão, não apresentando provas dos fatos que permitiriam a
Oribe processar, julgar e condenar criminosos.As listas foram compiladas
pelo presidente da província do Rio Grande do Sul, encontrando-se
entre as páginas 41 e 73, divididas em dois envios ao Ministério dos Negócios do Estrangeiro.
As mais completas dessas listas, as que se referem às propriedades
localizadas na região ao sul do Quaraí, produzidas pelo Comandante das
Fronteiras do Quaraí e Missões, carregam informações importantes, como
a localização dentro da região, indicada por limites naturais e pelos lindeiros e sua situação de posse; as listas que tratam das propriedades nas regiões
da fronteira do Chuí e da fronteira de Jaguarão e Bagé e a de Tacuarembó trazem dados como a localização da propriedade e em posse de quem
se encontrava; as demais, divididas por regiões, apresentam apenas o nome
do proprietário e o tamanho da propriedade, às vezes declarando se estava
embargada ou não e se estava em processo de partilha de herança. Muitas propriedades dessa lista têm o tamanho ignorado. Essas diferenças
impedem que se observem os dados de forma homogênea e se possam
estabelecer grandes comparações entre as propriedades. Ainda assim, essa
configuração das listas merece algumas considerações.
O espaço e sua divisão: uma percepção de projeto
político
As listas de 1850 foram produzidas usando limites que muitas vezes
dividiam departamentos uruguaios em áreas menores do que estes tinham
contemporaneamente. O curioso é que essas divisões coincidem em
certa medida com a atual configuração departamental do norte do Uruguai2, mostrando que a conexão dos homens com o espaço tem raízes
2
As regiões descritas na lista correspondem aos atuais departamentos: Rocha – Fron-
66 | Carla Menegat
em processos históricos, e, em parte por isso, optei por respeitar essa
divisão ao apontar a distribuição dessas propriedades pelo Estado Oriental.
A própria divisão departamental uruguaia tem como importante
componente o período de ocupação luso-brasileira durante a Cisplatina,
especialmente quando pensamos nos territórios ao norte. Cerro Largo
foi um dos três departamentos criados por Carlos Federico Lecor, o
Barão de Laguna, chefe em armas e governante brasileiro na Cisplatina.
A região, considerada desabitada por Artigas menos de uma década
antes, foi largamente ocupada por brasileiros interessados pela criação
de gado (Arocena, 2011, p. 55-56).
A participação direta de Dom Fructuoso Rivera no processo de
conformação do departamento de Durazno esclarece como esse processo se deu durante o período da Cisplatina. Até 1822 o território
entre os rios Yí e Negro fazia parte da jurisdição do departamento de
San José. Parte das povoações que datavam do período em que portugueses e espanhóis disputavam o território da Colônia de Sacramento,
San José era administrado por famílias há muito ali estabelecidas e que
eram profundamente antipáticas à anexação ao território brasileiro.
Rivera, que nesse período estava servindo ao Império do Brasil como
comandante da campanha, envolveu-se pessoalmente na fundação da
Vila de San Pedro de Durazno. A intenção de Dom Fructo era reduzir
a jurisdição de San José e abrir um espaço político para seus aliados
(Arocena, 2011, p. 57).
Durazno compôs uma nova frente de ocupação da campanha, ao sul.
Alguns brasileiros que participavam das forças comandadas pelo General
Lecor receberam de Rivera grandes extensões de terras nas proximidades
do Rio Negro, em direção ao departamento de Cerro Largo. Outras
grandes áreas foram concedidas a homens que acompanhavam as tropas
do próprio Rivera, beneficiando o grupo que era conhecido como Club
del Barón e que pode ser considerado o precursor do partido colorado
(Rilla, 2004). A possibilidade de conceder terras, tão característica dos
teira do Chuí e São Miguel; Rivera – Fronteira do Jaguarão e ao norte do Rio
Negro, Fronteira de Bagé; Tacuarembó – Tacuarembó; Artigas – Norte do Arapehy
e ao Sul do Quaraí; Salto – Ao sul do Arapehy-Grande e ao norte da Coxilha do
Haedo e Salto; Cerro Largo e Treinta y Tres – Cerro Largo; Durazno; Maldonado e
Lavalleja – Maldonado; San Jose; Colonia; Montevideo e Canelones – Montevidéu;
Paysandú – Paysandú e Rio Negro; Soriano – Soriano e Mercedes.
“Transportando fortunas para povoar deserta e inculta campanha”: brasileiros e produção... | 67
comandantes militares portugueses, foi amplamente usada por Dom
Fructo na construção de seu cabedal político e social enquanto serviu
aos portugueses e depois aos brasileiros, para depois se voltar contra o
próprio Império, quando da adesão ao grupo dos Treinta y três orientales.
No mesmo período do início da década de 1820 formaram-se os povoados de Rincón de Tía Ana – que depois se tornaria Tacuarembó – e
Salto. Resultado do incremento da população indígena através da migração
resultante das disputas entre o General Artigas e Francisco Ramírez, a
ocupação do centro do Estado Oriental foi bastante tardia.A necessidade
de incorporar esses povoados – especialmente Salto, tão próximo do território das Províncias Unidas – levou à criação de novos departamentos
no Norte.
A criação de postos de autoridade política não respondia apenas à
necessidade de firmar a posse dos portugueses e depois dos brasileiros
sobre o território. As rivalidades políticas e a possibilidade de reivindicação do território pelas Províncias Unidas exigiam a criação de espaços
para gratificação dos homens fiéis à Coroa. Avançar em direção do interior da Cisplatina era a forma como os luso-brasileiros pensavam
garantir condições de prosperar. Mas no caso das duas povoações citadas,
fixar homens confiáveis era um contrabalanço da sempre instável população indígena. Em muitos momentos, tribos nômades como os
charruas, tornavam-se os piores inimigos dos pecuaristas, assaltando os
rebanhos (Klein, 2007). Ocupar o território era também uma tentativa
de ordenar a campanha, tanto mais que essa onda de migração indígena
se encontrava com uma das mais importantes frentes de avanço da pecuária desde o Rio Grande do Sul, marcada pela criação de posições
militares ao sul do Quaraí.
Quando finda a segunda campanha pela independência uruguaia,
em 1828, o governo provisório de Lavalleja ratifica a existência de nove
departamentos: Montevidéu, Maldonado, Soriano, Guadalupe (Canelones), San José, Colonia, Cerro Largo, Durazno e Paysandú. Ao fazê-lo,
também afirma a presença estatal com maior força ao sul do rio Negro,
dado que todo o norte era formado por duas dessas unidades administrativas. O Estado Oriental do Uruguai só iria se preocupar com a organização administrativa do território norte quase uma década depois,
permitindo com essa postura que a região permanecesse com vínculos
mais próximos com a província brasileira do Rio Grande do Sul e
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mesmo com a Argentina do que com a capital Montevidéu. De fato, é
possível aventar que nos primeiros anos do Uruguai independente,
muitos pontos do território eram mais bem conhecidos por autoridades
brasileiras que tinham servido na Cisplatina do que pelas orientais.
As exceções a essa paralisia sobre o território ao norte do rio Negro
foram a fundação de San Servando, a campanha de pacificação iniciada
por Rivera em 1831 e a criação de San Fructuoso de Tacuarembó em
1832 (Michoelsson, 1990, p. 50).As tropas da campanha foram compostas
pelos guarani-missioneiros que haviam migrado do território argentino
e iniciado a colônia de Bella Unión no ponto mais extremo do noroeste
do Estado Oriental (Favre, 1996, p. 323). A campanha visava diminuir a
presença de bandos de desordeiros e ladrões de gado e principalmente
fixar famílias no vasto território. Mas, de fato, essa campanha significou
o extermínio dos grupos nômades de charruas que ainda subsistiam na
campanha oriental, no episódio conhecido como a Matanza del Salsipuedes 3.
Os anos 1830 no Estado Oriental contaram ainda com outro movimento institucional que acabou por consolidar a propriedade da
terra de muitos brasileiros, não sem antes estabelecer pontos de conflito. Um grande processo de regularização fundiária foi iniciado e basicamente seu ponto nefrálgico tratava da questão do reconhecimento ou
não da propriedade das terras confiscadas e repassadas a aliados de Artigas durante o período revolucionário, além do reconhecimento da
propriedade sobre uma miríade de posseiros. A questão era complexa,
dado que estava marcada também por uma série de reclames realizados
por proprietários coloniais ou brasileiros que haviam recebido as terras
das coroas espanhola ou portuguesa e de fato nunca tinham conseguido
ocupar essas terras, ou ao menos, não completamente. A questão ainda
passava pelas terras públicas ocupadas por muitos indivíduos sem autorização, baseados no princípio de que, se o ocupante possuía gado na
terra, tinha o direito de ocupá-la; por sua vez, muitos líderes orientais,
entendiam que a compra, pelos posseiros, dessas terras públicas representaria a solução para as rendas estatais deficitárias.
3
Esse episódio marca a chacina ordenada pelo presidente Rivera da maioria das lideranças indígenas e de seus povos, numa emboscada armada quando estes estavam
reunidos próximos ao Arroio Salsipuedes para reafirmar sua amizade com a autoridade
presidencial uruguaia.
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Durante os dois primeiros anos da década de 1830, Rivera e Lavalleja usaram dessas disputas para fazer amigos e inimigos, favorecendo
quando possível os aliados, imputando a culpa ao adversário sobre as
perdas, enquanto os desalojamentos massivos e as exigências de aquisição
da terra pública ocupada levaram a agitação à campanha. A prática da
Cámara de Justicia era aplicar uma política de defesa irrestrita da propriedade colonial e brasileira, o que favorecia em muito os estancieiros na
fronteira norte. Em 1832, a situação estava beirando a revolta, largamente incentivada por Lavalleja e seus partidários. O Estado começa uma
política de intermediação entre os proprietários e os posseiros, fazendo
com que os segundos comprassem as terras dos primeiros. Caso os
proprietários não concordassem com o preço negociado, o Estado desapropriava as terras pagando valores largamente vantajosos aos proprietários e colocava as terras à venda para outros posseiros com melhores
recursos. Esse processo implicou o desalojamento de um número considerável de posseiros, que passaram a se amontoar nas terras públicas ao
redor dos povoados – protegidas desse processo – e garantiu a formação
de propriedades maiores (Bertino; Millot, 1991, p.133-134).
A partir de 1834, com o país às voltas com mais uma disputa eleitoral que virtualmente poderia se transformar em revolta armada e com
as dívidas públicas tornando impraticável sustentar a defesa do governo,
estabelece-se a exigência da aquisição das terras públicas por parte de
seus ocupantes, aumentando o efeito de concentração fundiária.
El proceso de reversión y enajenación y transacciones se hizo por
intermedio de Comisarios y produjo el definitivo dislocamiento de las
relaciones solidarias entre los poseedores, iniciadas por Lecor: los poseedores
no escapaban a la ley de concentración. Todo dependía de la capacidad
económica porque el campo se poseía con ganado y se defendía con peones,
agregados y esclavos y de las relaciones que se pudiera tener con los caudillos
o con el centro de poder montevideano. Al norte, los brasileños ocupaban
la tierra de muchos donatarios y emigrados desaparecidos. [...] La política
de Obes condenó al desalojo o sometió a la mayoría de los pequeños
donatarios y poseedores. Consolidó a grandes e medianos poseedores sobre
todo vinculados al grupo ministerial y a Rivera y em general a los que
tenían recursos, con las mejores tierras. (Bertino; Millot, 1991, p. 136)
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Foi nesse período, que coincidiu com a eclosão da Revolução Farroupilha, que muitos brasileiros compraram grandes extensões de terra
no Estado Oriental, especialmente nas regiões recentemente pacificadas
na margem norte do rio Negro, dado confirmado pelas declarações em
inventários, pela documentação diplomática e por anotações na versão
manuscrita do RRNE. As terras eram baratas – segundo Barrán (1990),
durante a Guerra Grande o preço da terra caiu a um terço de seu valor
anterior, custando $0,60 o hectare – e a produtividade da pecuária alta,
provavelmente compensando a distância do mercado comprador.
Assim, a concentração de grandes propriedades de terras de brasileiros nos departamentos de Tacuarembó, Salto e Paysandú esteve diretamente ligada ao desalojamento dos posseiros pequenos e daqueles que
não tinham recursos para manter grupos armados para defender suas
terras, nem contavam com recursos políticos para acionar em Montevidéu. Os colorados financiaram sua manutenção no executivo oriental
favorecendo a consolidação da ocupação do Norte pelos estancieiros
rio-grandenses.
Um espaço em três gerações: Cerro Largo e sua
ocupação num período alongado
O departamento de Cerro Largo, mais próximo ao litoral, teve uma
conformação distinta, ou melhor, conformações distintas. Conformações
porque o que correspondia ao departamento de Cerro Largo durante
a Guerra Grande, ao menos no que toca às propriedades dos brasileiros,
eram três regiões com diferenças de ocupação. As porções norte e leste,
que é boa parte do atual departamento de Cerro Largo, tinham uma
concentração de propriedades menores, ligadas a uma ocupação mais
antiga, paralela àquela que ocupou os campos entre a lagoa Mirim e o
oceano Atlântico. No centro e no oeste, onde hoje é a maior parte do
departamento de Treinta y Tres, o tamanho das propriedades era maior.
Essas duas áreas tinham alta concentração de brasileiros. Naporção mais
ao sul, nas margens do rio Cebollati, que corresponde hoje ao norte de
Lavalleja – que reuniu Minas e essa região – a ocupação era maior de
nacionais, que descendiam de ocupantes do período do Vice-Reinado
do Rio da Prata.
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A proporção da ocupação brasileira nessa última zona, no entanto,
não deve ser subestimada. Como apontam Borucki, Chagas e Stalla, as
cifras sobre a ocupação brasileira podem ser enganosas. Em Minas, em
1855 – já reunindo o sul do antigo departamento de Cerro Largo ao
antigo departamento de mesmo nome –, os brasileiros consistiam em
7% da população, mas esses dados precisam ser observados de forma
localizada geograficamente. Ao sul, os brasileiros não chegavam a 1% da
população; no centro, a 7,3%; e no norte, a 17,3% (Barrios Pintos, 2000).
Contudo, esses não me parecem os dados mais expressivos, e sim os de
que, no norte de Minas, os brasileiros constituíam-se em donos de 34%
das estâncias, de 42% do gado de rodeio e de 92% dos bovinos alçados
(Borucki; Chagas; Stalla, 2004, p. 163).
As propriedades listadas em Cerro Largo – com este nome no rol
do RRNE – contavam com a predominância da porção de menor tamanho de terras. Esse índice estava diretamente ligado ao fato de que
as propriedades daquela região parecem ter sido atingidas com maior
intensidade por processos de partilha sucessivas. Corroborando esse dado,
o número de inventários que tratam de propriedades nessa região é
maior, correspondendo a 84% do conjunto analisado.Ainda, 34,78% dos
inventários analisados tinham como forma de aquisição da propriedade
declarada como sendo através de herança, e a esmagadora maioria se localizava em Cerro Largo. Correspondendo a uma ocupação mais antiga
e, ao mesmo tempo, mais adensada, a região não apenas encontrou um
índice de partilhas grande, como a dificuldade de realizar a reconcentração
da propriedade nesses casos, e dificuldades para realizar a expansão das
propriedades por simples ocupação de terras devolutas. Possivelmente o
fato de ser uma região com proximidade do mercado consumidor do
gado tenha influenciado nesse adensamento, não verificado nas áreas mais
afastadas da fronteira, que exigiam maior investimento.
A maioria dos 483 proprietários estava estabelecida na porção mais
a leste e ao norte do departamento de Cerro Largo. Essa área de ocupação antiga correspondia àquela que permitia acesso à lagoa Mirim,
facilitando o escoamento da produção pelo porto de Rio Grande. Essa
porção, assim como o atual departamento de Rocha, então a porção
norte de Maldonado, e o norte de Minas, hoje Lavalleja, contrastavam
com a ocupação de açorianos e descendentes de espanhóis do período
do Vice-Reinado. Os descendentes dos colonos que fundaram as po72 | Carla Menegat
voações ao sul tinham seus negócios concentrados na agricultura e nas
pequenas criações, enquanto o modelo expandido pelos lusitanos desde
o norte era o da pecuária extensiva (Diaz de Guerra, 1988). Essas diferenças contribuíam significativamente para o estabelecimento de uma
economia voltada para o mercado rio-grandense, ainda que tivesse
produtores de menor porte que aqueles que se estabeleceram posteriormente no território em direção ao centro do Estado Oriental.
Essa presença tão pesada de brasileiros se refletia na dificuldade política e militar dos orientais em controlar a região: era através de Cerro
Largo que Lavalleja acessava o Rio Grande do Sul no início dos anos
1830, buscando apoio em seus aliados brasileiros; da mesma forma que
procedeu Rivera na década seguinte. Em 1831, Rivera ordena a fundação
de San Servando, depois Vila Artigas e atual Rio Branco, como uma
guarda de fronteira, numa tentativa de instituir um posto de aduana na
região. Ao contrário de suas iniciativas na campanha da margem norte
do rio Negro, San Servando foi erguida sob uma área densamente povoada, como uma presença estatal que buscava garantir a soberania do
território. Lembrando da reclamação do alcaide da Vila de Melo citada
no início deste texto, a presença dos brasileiros na região era tão forte
que praticamente excluía a existência de orientais em alguns partidos –
como eram chamados os distritos administrativos – da fronteira. A desconfiança num ponto onde a fronteira era tão indefinida era justificável.
Foi o governo blanco de Oribe, já avançada a Guerra Grande, que
realmente intentou implementar uma política que timidamente apontaria para a orientalização do território ao norte do rio Negro.A ocupação
por nacionais das regiões com maciça presença de brasileiros era imprescindível para a derrota dos colorados, tanto militar quanto politicamente.
Nos dizer de Lucia Sala de Touron e Rosa Alonso Eloy, a campanha se
blanqueó (Touron; Eloy, 1986). Os bens dos inimigos, muitas vezes brasileiros, foram vendidos e distribuídos para partidários do Gobierno del Cerrito.
A divisão de Paysandú em três departamentos – Paysandú, Salto e Tacuarembó, em 1837, assim como a criação do departamento de Minas –,
contando parte de Cerro Largo e Maldonado, as tentativas de diminuir
a área das jurisdições do norte uruguaio e criar aparelhos administrativos
que implicassem a presença direta de mais agentes do Estado, eram coerentes com a concepção de nação que os blancos defenderiam dali para
frente. Essa concepção incluía a necessidade do monopólio do controle
“Transportando fortunas para povoar deserta e inculta campanha”: brasileiros e produção... | 73
legal do território, diminuindo a influência que os brasileiros tinham
sobre este (Arocena, 2011, p. 64).
Orientalizar a República: um território ocupado por
“estrangeiros”.
A afirmação generalizada por muitos historiadores (Souza, Prado,
2004), retirada de El Mensaje del Poder Executivo al Poder Legislativo, de
que os brasileiros ocupariam com predominância 30% do território
oriental em 1857 (Bertino; Millot, 1991, p. 128) é de difícil comprovação, embora pareça ser corroborada por outras fontes contemporâneas
(Zabiela, 2002, p. 23-25). Segundo o RRNE, em 1850, pertenceriam a
brasileiros, apenas na fronteira do Chuí 342 léguas, e na de Bagé, 331
léguas, indicando de fato um acréscimo da presença brasileira. Se tomarmos a declaração de um deputado oriental em abril de 1862, que
denunciava possuírem os brasileiros perto de quatro mil léguas, quase o
equivalente à metade do território da República, o índice de 30% para
1857 parece plausível, muito embora siga sendo uma suposição.A inexistência do tamanho de muitas propriedades no RRNE, além da apontada
imprecisão e a divergência na forma do registro dos dados, não permite
que se realize essa averiguação.
Apesar da inexistência de dados censitários confiáveis para os anos
anteriores e imediatamente posteriores, que poderiam dar conta com
precisão da presença de brasileiros no norte do território do país vizinho,
esse parece ser um consenso largamente estabelecido pela historiografia
de ambos os países. O primeiro censo estatístico geral realizado no
Estado Oriental data do ano seguinte ao fim da Guerra Grande, em
1852. Muito embora os dados desse censo sejam bastante incompletos,
não permitindo diferenciar brasileiros de outros estrangeiros, possibilitam
algumas aproximações.
Observado o percentual de estrangeiros nos departamentos de Paysandú, Salto, Tacuarembó e Cerro Largo, que é o mesmo, 40,36%, é possível supor que esse contingente fosse formado predominantemente por
brasileiros. Excluindo Montevidéu, que por sua situação portuária e pelo
caráter internacional de seu corpo de comerciantes possuía muitos imigrantes de nacionalidades diversas, os números dos demais departamentos,
74 | Carla Menegat
raramente chegando a ultrapassar 15%, indicam que a presença dos brasileiros nos departamentos fronteiriços era responsável pelos altos índices
de estrangeiros.
Tabela 1 – Censo geral uruguaio de 1852:habitantes nacionais e estrangeiros por
departamento
DEPARTAMENTO
HABITANTES
NACIONAIS
ESTRANGEIROS
SEM
CLASSIFICAÇÃO
Montevidéu
33.994
18.590
15.404
-
%
ESTRANGEIROS
45,31
Canelones
17.817
14.400
3.417
-
19,18
San José
13.114
11.738
1.376
-
10,49
Colonia
7.971
6.442
1.529
-
19,18
Durazno
5.591
4.873
754
-
13,48
Maldonado
9.733
8.421
1.312
-
13,48
Soriano
9.031
7.757
1.274
6.462
14,10
Paysandú
6.247
2.726
2.521
1.000
40,36
Salto
7.364
4.392
2.972
-
40,36
Tacuarembó
6.567
3.917
2.650
-
40,36
Cerro Largo
6.541
3.847
2.604
-
40,36
Minas
8.089
6.998
1.091
-
13,48
13.1969
9.4085
36.884
6.462
27,90
Total
Fonte: adaptado de Bertino e Millot (1991, p. 130).
Se tomarmos como fidedigno o depoimento de Dom Diego Lamas,
comandante-geral em Salto em 1848, de que estava cercado de estancieiros brasileiros e com eles não podia contar (Magariños de Mello,
1948, p. 342), ou o do ministro do Exterior oriental em 1852, que
afirma que em Tacuarembó os brasileiros eram em maior número que
os nacionais, podemos estimar que os números de estrangeiros nesses
departamentos, assim como outros do norte, como Cerro Largo, Paysandú (Winn, 1997, p. 68-69) e mesmo em parte de Maldonado, correspondessem majoritariamente a brasileiros. Segundo Magdalena
Bertino e Júlio Millot (1991, p. 128), a partir de 1851 a presença de
brasileiros nos departamentos de fronteira se acentua. No censo de 1860,
onde estão faltando os dados de Paysandú e Maldonado, os brasileiros
seriam 19.106, estimando-se conservadoramente que chegassem a 21.700
“Transportando fortunas para povoar deserta e inculta campanha”: brasileiros e produção... | 75
com os que viviam nos dois departamentos, o que por baixo resultaria
em 10% da população nacional. Não eram os 40 mil brasileiros declarados pelo general Antônio de Souza Netto (Barrán; Nahum, 1967) três
anos depois, ao argumentar pela intervenção militar brasileira a favor de
Venâncio Flores, mas ainda assim, mostrava-se um número impactante,
especialmente se observada a concentração dessa população brasileira na
faixa da fronteira norte.
O problema da desproporção entre o número de orientais e de brasileiros era antigo. Na década de 1830 não era incomum encontrar brasileiros exercendo funções administrativas e de justiça no Estado Oriental
(Zabiela, 2002, p. 26). Analisando o censo de 1852, segundo Bertino e
Millot (1991, p. 130), observa-se que em algumas seções judiciais dos
atuais departamentos de Artigas e Rivera os brasileiros representavam o
dobro, às vezes o triplo, dos habitantes orientais. Na região entre os rios
Arapehy e Quaraí, todas as propriedades pertenciam a brasileiros. Mais
uma vez, o governo oriental respondeu à questão criando novas municipalidades, buscando estender a presença estatal e garantir o controle do
território. Criam-se Cuareim (posteriormente renomeada como Artigas),
Treinta y Tres, Santa Rosa del Cuareim, Arredondo e Rio Branco, todas
próximas da fronteira. Esse movimento se mostra bastante condizente
com aquele da fixação da propriedade da terra.
Até o fim da Guerra Grande, a posse e mesmo a propriedade da terra no Estado Oriental não eram completamente seguras. Como apontei
anteriormente, o processo de regularização fundiária iniciado nos anos
1830 desacomodou um número grande de pequenos posseiros e de proprietários menores que não tinham título válido. Essa pode ter sido a
motivação para muitos brasileiros inventariarem em comarcas do Império
seus bens existentes no Estado Oriental. Como aponta Joseph Younger,
ao pesquisar disputas judiciais no espaço platino, buscar a legitimidade
de tribunais e cartórios em um ou outro país foi procedimento bastante
utilizado para garantir a propriedade (Younger, 2008). Tanto pela insegurança reinante em períodos de conflito, quanto em momentos de paz,
esse expediente podia ser empregado.
A viúva Eugênia Chagas de Oliveira foi um dos inventariantes que
fez solicitação nesse sentido. Seu falecido marido possuía uma estância
de 3 ¾ de sorte de estância no Cerro de Carpintería, no então departamento de Tacuarembó, a pouquíssima distância de Aceguá, um campo
76 | Carla Menegat
em Acharate, em Cerro Largo, além de um campo em Piratini. Ao abrir
o inventário, em 1859, em Bagé, a viúva solicitou que os bens no Estado Oriental fossem levantados pelas autoridades locais, mas que “por
ser de justiça”, o juiz autorizasse que a partilha fosse realizada no Brasil.
O juiz autoriza desde que as autoridades orientais permitam. O pedido
foi enviado à Junta de Carpintería, que se pronuncia aceitando a situação
desde que a viúva pague todas as taxas pela transmissão da terra, respondendo por si e por seus filhos menores. Depois de dois anos, Eugênia
Chagas de Oliveira consegue fazer a partilha no Brasil. Ainda que tenha
respeitado os trâmites burocráticos, a desconfiança da viúva em relação
à justiça oriental fica clara, demonstrando que não considerava que a
partilha naquele país tivesse o mesmo reconhecimento que se realizada
no Império.
No início dos anos 1850 e mais ainda nos anos anteriores, nas décadas de 1840 e 1830, os inventários trarão bens partilhados no Brasil sem
nenhum registro de comunicação com as autoridades orientais. Muitas
vezes, o expediente remeterá realmente à total desconsideração da soberania do Estado Oriental (Benton, 2001). No caso das terras, essa postura
pode estar bastante ligada à certeza de que a posse era a melhor garantia
da propriedade, expediente que acompanhou a expansão lusitana na
região. De toda forma, é possível observar que os herdeiros não costumam
ignorar a existência de uma mudança de legislação e instituições, eles
buscam manejar essas diferenças a seu favor, observando possibilidades
nas brechas. Em todos os inventários verificou-se que os herdeiros recebiam sempre uma quantidade equivalente de bens no Brasil e no Uruguai,
não acontecendo nenhum caso em que as heranças ficassem localizadas
exclusivamente em um outro país. De certa forma, os envolvidos reconheciam que existia uma diferença entre os bens possuídos de um lado
a outro da fronteira.
Uma possibilidade pelo uso desse artifício era a de garantir o reconhecimento de bens em um país, diante da impossibilidade de reconhecimento no outro, semelhante aos casos analisados por Joseph Younger
e Lauren Benton. Esse é o caso do legado de Flora Gertrudes Maciel de
Faria. Flora era tia-avó de Eliseu Antunes Maciel – pai do futuro Barão
de São Luís – e do tenente-coronel Aníbal Antunes Maciel – pai do futuro
Barão de Três Cerros, dois de seus herdeiros.Tendo falecido em novembro
de 1852 e com inventário aberto no ano seguinte, Flora possuía, entre
“Transportando fortunas para povoar deserta e inculta campanha”: brasileiros e produção... | 77
outros bens, uma estância em Tacuarembó, nas proximidades do Arroio
Hospital que contava com nada menos que 19 léguas.
Contudo, o dado mais interessante na partilha dos seus bens não se
encontra na divisão das terras e ou do gado. Na propriedade do Hospital viviam dois escravos, um de nome Serafim, de 36 anos, e outro
chamado Manoel, de 48 anos, ambos crioulos e campeiros. Esses dois
escravos, que pelas leis orientais seriam livres, foram partilhados. Manoel
foi dado por conta da legítima de Eliseu Antunes Maciel e permaneceu
em sua propriedade em Paysandú, em escravidão ilegal, provavelmente
considerada legítima por ser avalizada por um processo estabelecido no
Império. Esse não foi um caso isolado: nos inventários analisados foram
encontradas dezesseis ocorrências nos anos entre 1848 e 1862,de escravos vivendo em propriedades no Estado Oriental e sendo partilhados
em inventários no Império, ou seja, todas claramente transgredindo a
abolição da escravidão no Estado Oriental.
Ainda assim, terras são o bem mais inventariado. Apenas sete inventários não apresentavam nenhum tipo de propriedade fundiária. Três
desses inventários apresentavam propriedades de casas em áreas urbanas
e quatro eram casos de arrendatários que declaravam rebanhos. Nos
demais inventários, propriedade de campos e estâncias predominam,
indicando em parte o movimento do crescente mercado de terras e as
preocupações em assegurar sua propriedade em todos os meios legais
possíveis, num contexto de valorização. No fim dos anos 1850, num
momento de suspensão de conflitos, da quase inexistência de terras
públicas com bons pastos para ocupar e um novo impulso com os investimentos de estrangeiros, especialmente ingleses, na criação de ovinos,
o mercado de terras se encontrava bastante aquecido. O valor da terra
havia passado da média de $0,6 em 1852-1856 a $2,09 em 1857-1861
(Barrán; Nahum, 1967, p. 29), num momento em que a suspensão das
denúncias fixava a posse como propriedade.
Ainda que os maiores aumentos se concentrassem nas áreas de comportamento menos arcaico, onde estrangeiros compravam terras para a
criação de ovinos (Bertino; Millot, 1991, p. 147), essa fixidez da propriedade, acompanhada da valorização da terra, levou a um processo que
definitivamente garantiu aos brasileiros no norte não apenas segurança
em relação à propriedade, mas a manutenção da concentração fundiária
e seu gradativo aumento.Ao analisar algumas trajetórias, posteriormente
78 | Carla Menegat
pretendo exemplificar melhor essa relação, entendendo o que Bertino
e Millot (1991) chamaram de comportamento arcaico. Por enquanto,
basta apontar que essa concentração fundiária aumentava o poder dos
estancieiros brasileiros, na medida em que implicava estabelecimentos
cada vez maiores e num número proporcionalmente maior de agregados
e peões empregados que dependiam deles para obter seu sustento – seja
através de seu próprio trabalho, seja pela permissão para criar gado em
terras desses grandes proprietários –, dada a diminuição drástica da possibilidade de acessar a terra por meio da posse ou da compra.
Parece importante verificar semelhanças nesse movimento de aumento do valor das terras no outro lado da fronteira, especialmente se considerado que o período coincide com a aplicação da Lei de Terras no
Brasil. Datada de 1850 e regulamentada em 1854, a lei instituiu a aquisição
através da compra como única forma legal de acessar a posse da terra no
Império, não teve uma aplicação uniforme e muito menos imediata em
todos os pontos do Império. No que compete à fronteira meridional,
alguns estudos fornecem informações que se assemelham muito aos que
observamos em relação às propriedades de brasileiros e à questão fundiária em geral no Estado Oriental (Garcia, 2005).
Outro fator importante estava localizado no Tratado de Limites assinado em 1852, que definiria a linha divisória da fronteira. O reconhecimento do território entre os rios Quaraí e Arapehy como território
oriental, ao mesmo tempo que o Império detinha a integridade das
águas da lagoa Mirim e do rio Jaguarão, levou a uma definição dos
parâmetros legais sobre a ocupação, posse e propriedade das terras dessas
áreas. Muito embora os efeitos dessas transformações possam ser observados ao longo da segunda metade do século XIX, os sinais da chegada
dessas mudanças estavam presentes nas décadas anteriores e seus contemporâneos ofereceram resistência a essas mudanças.
Do total das propriedades, quase metade, 47,1%, estava localizada ao
norte do rio Negro. Se somada a proporção de estabelecimentos em
Cerro Largo, 35,6% das propriedades, podemos afirmar que essa distribuição aponta para a concentração das propriedades de súditos imperiais
no norte e no litoral atlântico, com um total de 82,7% dos proprietários
listados.
Esses dados, sem sombra de dúvida, demonstram que as grandes concessões de terras no primeiro quartel do século XIX, realizadas junto da
“Transportando fortunas para povoar deserta e inculta campanha”: brasileiros e produção... | 79
expansão militar luso-brasileira, acabaram por permitir a fixação de um
modelo de propriedade no norte oriental, o do latifúndio que, como
apontado anteriormente, parece ter sido aprofundado pela política dos
governos orientais nos anos 1830.
O mercado como regente da propriedade: gado e
escravos
Na virada da década de 1840 para a de 1850, alguns dos indícios das
dificuldades causadas pela diminuição das possibilidades de compra já
podiam ser localizados no RRNE. É importante atentar ao dado de que
esta era uma lista de criadores de gado com estabelecimentos no Estado
Oriental e não necessariamente de proprietários de estâncias. Nem
todas as propriedades declaradas são dos cidadãos brasileiros que as ocupam. Existiam arrendatários, inclusive de grandes propriedades, como
o caso da estância do Tacumbú, arrendada ao Barão do Jacuí pelo coronel Olivério José Ortiz, que contava com 18 léguas de extensão, além
de outros possuidores.
Entre agregados, arrendatários e posseiros que se declaram em terras
pertencentes ao Estado Oriental, temos 117 indivíduos declarados, totalizando 8,64% do total, um índice bem abaixo do verificado no Rio
Grande do Sul do mesmo período. Esses cidadãos foram listados como
possuidores de propriedades no país vizinho, mas deixava-se claro que
esta propriedade não era a das terras que ocupavam, mas do gado. Se
retirarmos os indivíduos que se declaram agregados e, portanto, provavelmente mantinham suas propriedades – possivelmente pequena quantidade de gado – nas terras dos seus patrões, restam-nos 76 cidadãos que
se declararam arrendatários privados ou ocupando campos de propriedade pública, alguns deles pagando taxas – e, portanto, em virtual
condição de se tornarem proprietários –, o que leva ao percentual significativo de 5,61%.
É importante questionar o que faria com que esses cidadãos fossem
incluídos nessa lista, formulada para, antes de tudo, enumerar os prejuízos
de brasileiros no Estado Oriental, geralmente ligados à tomada de propriedades. Creio ser esse um indício de que os maiores prejuízos não fossem
aqueles sofridos pelos brasileiros que viviam no Estado Oriental, mas os
80 | Carla Menegat
que a interrupção das atividades desses produtores causava aos que participavam do circuito comercial em que ela estava inserida. Essa percepção
me parece claramente reforçada pelo número de propriedades listadas
que não se encontravam em poder do proprietário, que totalizam 190.
A grande maioria dessas propriedades, 186, encontra-se nas listas com
dados mais completos e ficava localizada nas fronteiras do Chuí, de Jaguarão, em Tacuarembó e na região do rio Arapehy. Graças aos dados
mais completos de algumas delas pode-se compreender melhor o impacto que a Guerra Grande vinha causando na produção pecuária
desses estancieiros. Dos 190 estabelecimentos nessa condição, apenas 47%
foram listados como simplesmente embargados. Os demais estabelecimentos tinham sido abandonados em algum momento pelos proprietários, alguns sofrendo embargo posterior, outros quedando apenas sem
quem os administrassem.
As condições que implicavam o abandono das estâncias eram determinadas, grosso modo, pela impossibilidade de que cumprissem suas atividades
produtivas. O caso dos dois filhos de Olivério José Ortiz, Olivério Filho
e Gaspar, que criavam gado como agregados na estância do Tacumbú,
pode ser muito esclarecedor. Em 1848, o Barão do Jacuí arrendou a
propriedade com todos os gados de seu proprietário. Essa situação está
descrita no RRNE, logo acima da descrição das propriedades dos filhos
de Olivério. Possivelmente os gados dos filhos fossem vendidos conjuntamente com o do pai, separando-se apenas o valor correspondente, prática bastante comum. A necessidade de listar Olivério Filho e Gaspar
residia no fato de que a impossibilidade de tirar seus gados do campo
embargado prejudicava a condução de seus negócios. Não apenas por
lhes causar prejuízo imediato, com o gado perdido –essa também era
uma grande preocupação, dado que a quantidade de gado alegada pelo
Barão na Tacumbú chegava à cifra expressiva de 40 mil cabeças. O prejuízo dos irmãos Ortiz, caso a situação se prolongasse, residiria na incapacidade de manter seus compradores.
A possibilidade de que a escassez de matéria prima desarticulasse o
mercado de gado era real. Muitos charqueadores de Pelotas se viam em
sérias dificuldades depois de uma sequência de duas décadas ruinosas
(Vargas, 2013), marcadas pela derrota da Cisplatina, a eclosão da Revolução Farroupilha e a continuidade da Guerra Grande no Estado Oriental
(Bell, 1998).
“Transportando fortunas para povoar deserta e inculta campanha”: brasileiros e produção... | 81
A propriedade de Olivério José Ortiz se encontrava numa das listas
com maior detalhamento, aquelas que tratavam das regiões ao sul e ao
norte do rio Arapehy e que tiveram listas com detalhes que incluíam
nomes de capatazes e agregados. Essa era uma das porções do território
uruguaio reivindicadas como brasileira pelos sul-rio-grandenses, inclusive porque a totalidade das terras privadas lhes pertencia. Além disso,
essa foi uma das regiões particularmente envolvidas no episódio das
califórnias e, portanto, alvo tanto das investidas dos grupos armados brasileiros quanto das tropas do comandante blanco Dom Diego Eugênio
Lamas.A necessidade dessa lista ser particularmente detalhada se encontrava no fato político de que era uma região em disputa, ao menos na
perspectiva dos estancieiros daquela fronteira.
O conteúdo de algumas das listas parece ter sofrido influência de
outros documentos. A presença de refugiados da Guerra Grande em
terras pertencentes ao Estado imperial – os chamados “Rincões Nacionais”, denominação comum em vários pontos da fronteira para as terras
da União reservadas para o cuidado dos cavalos das tropas militares – foi
um dado que se reproduziu em quase todos os municípios sul-rio-grandenses do limite com o Estado Oriental, situação confirmada pelas
listas existentes nas correspondências das câmaras municipais ao presidente da província.
A lista de refugiados de Jaguarão foi produzida no final da década
de 1840 e trazia não apenas os nomes dos chefes de família como os
números de filhos, agregados, escravos, animais e, principalmente, de que
viviam.Todos os proprietários brasileiros ali listados – e não todos arrolados, dado que existiam refugiados orientais – aparecem nas diferentes
listagens de 1850 e curiosamente mesmo nas listas com poucas informações, a grande maioria das propriedades desses refugiados aparece com
a informação do embargo pelas tropas blancas ou do abandono causado
pela violência.
O casal Comba Barbosa de Alencastro e Jerônimo Batista Alencastro,
inventariados em 1852, eram parte desses refugiados instalados no rincão
nacional de Jaguarão, dos quais temos muitos dados. No processo, além
da propriedade de Catallán, que no RRNE aparece embargada pelo
comandante blanco Dom Diego Lamas, constam ainda 45 escravos e a
chácara de Jaguarão. A propriedade de Catallán tinha sido abandonada
pela viúva após o assassinato de Jerônimo Batista Alencastro, num caso
82 | Carla Menegat
que permanece pouco esclarecido na documentação. De toda forma, a
inexistência de outras propriedades – a chácara do rincão nacional foi
uma concessão para refugiados, portanto acessada depois do abandono
de Catallán –, que não a estância no Estado Oriental, indica que os 45
escravos do casal estivessem naquele estabelecimento. As notícias sobre
o recrutamento forçado de escravos de brasileiros e as reclamações diplomáticas que indicam que o assassinato de Alencastro teve o envolvimento
de autoridades orientais, podem apontar que a vítima demonstrou resistência ao recrutamento de seus cativos.
A presença de um número tão expressivo de escravos implica a percepção sobre como os brasileiros estabelecidos no Estado Oriental administravam suas estâncias. O caso dos Alencastro exige algumas considerações
necessárias. A primeira delas se refere àquilo que estudos mais recentes
têm afirmado (Osório, 2007), o reconhecimento do trabalho escravo nas
estâncias como importante para a lida com o gado e não apenas em
atividades secundárias, como supunham trabalhos mais antigos.
Quando a viúva Comba Alencastro foi arrolada como refugiada em
Jaguarão, em 1848, ocupava uma chácara de 10 quadros com benfeitorias
junto a um de seus filhos e 25 escravos, dizendo que vivia da agricultura.
Creio que a diferença no número apresentado no inventário quatro anos
depois se deva possivelmente a uma distribuição dos demais cativos entre
os herdeiros que não acompanhavam a mãe naquele estabelecimento. Esse
expediente, em que os herdeiros mantinham em seu poder bens que pertenciam aos pais, como em empréstimo, funcionava como um adiantamento de herança, bastante comum naquele contexto (Farinatti, 2010).
Ao se retirar do Estado Oriental com esse número de escravos, Comba protegeu seu patrimônio mais valioso: escravos podiam ser vendidos
facilmente ou alugados, especialmente se fossem trabalhadores especializados. Ainda, permitiu que seus filhos tivessem formas de acessar facilmente esse patrimônio, permitindo assim que ele fosse capitalizável. A
terra, esse era o bem mais instável e, ao mesmo tempo, indisponível como
capital, mesmo que fosse uma propriedade de médio porte como aquela
de Catallán. Infelizmente, como o inventário não foi concluído, não foi
possível avaliar qual o percentual que esses escravos representavam sobre
o montante dos bens, mas tendo a concordar com a historiografia que
aponta que, nesse período, a escravaria podia compor a maior porção do
patrimônio (Bell, 1998).
“Transportando fortunas para povoar deserta e inculta campanha”: brasileiros e produção... | 83
Fronteira política e fronteira agrária: dois territórios
distintos
Outro ponto a considerar sobre as propriedades de produção pecuária
– e aqui excluo propositalmente as propriedades de charqueadas abandonadas nas proximidades de Montevidéu – que sofreram embargo ou
foram abandonadas se refere à sua localização. Essas propriedades se
encontram nas áreas de maior concentração de brasileiros. Nenhuma
propriedade das listagens dos departamentos mais ao sul constava como
fora do poder de seu dono. Esse me parece um indicativo importante
de que as ações dos blancos objetivavam um confronto com os brasileiros de for ma sistemática nas regiões em que eles eram maioria.Tratava-se
de estabelecer o monopólio da ordem e da legalidade, não permitindo
a existência de outro entendimento que não o do projeto de Estado
Oriental defendido pelos partidários de Oribe.
O topo deste grupo com propriedades embargadas indiscutivelmente
está entre aqueles proprietários que tem mais de 20 léguas de terras. Nas
listas existem 44 propriedades com estas dimensões, pertencentes a 42
proprietários. Se acrescentarmos a estes os proprietários que, tendo mais
de uma propriedade, somavam essa extensão de terras, o número sobe
para 46 proprietários. Dentre esses, ao menos 11 proprietários, ou seja,
24%, declararam que suas terras haviam sido tomadas pelos blancos, quase um quarto dos maiores proprietários com terras no Estado Oriental
do Uruguai. Se considerarmos que o índice geral de embargos fica em
14%, podemos considerar que esse grupo foi atingido de forma mais
contundente. Os embargos, contudo, concentram-se no norte, enquanto
os abandonos têm maior expressão no sul, região com menor presença
de brasileiros.
De toda forma, a presença menor dos brasileiros ao sul indica também
que os investimentos dos grandes líderes orientais se direcionavam para
aquele espaço. Concordo com Bertino e Millot (1991, p. 125)quando
afirmam que o acesso à terra esteve ligado às relações mantidas com o
centro de poder em Montevidéu, mas acredito que essa condição estava
combinada a outra. Nas áreas com maior concentração de brasileiros,
suas práticas orientavam o mercado para uma racionalidade distinta, aquilo que Bertino e Millot denominaram rapidamente de um “comportamento arcaico”. As grandes disputas estabelecidas entre as autoridades
84 | Carla Menegat
blancas e os brasileiros a partir da Guerra Grande são produto do encontro
de duas fronteiras agrárias em fechamento: a que era empurrada desde
o sul pelos grandes estancieiros orientais e as diferentes frentes empurradas pelos brasileiros desde a fronteira norte. A escassez de terras para
serem distribuídas implicava uma alteração do jogo político, levando a
uma reorientação do próprio projeto político, o que, no caso dos blancos,
refletia-se em embargos e confiscos.
Mesmo que não disponhamos de dados para caracterizar o mercado
de terras nas áreas ocupadas por brasileiros – especialmente porque
cobrir todo esse território exigiria uma pesquisa de muito maior fôlego –, algumas considerações são cabíveis. Em pesquisa anterior me
deparei com dados sobre a venda de propriedades de criação de gado
no Estado Oriental realizadas por charqueadores brasileiros (Menegat,
2009). Naquele momento, minha atenção estava concentrada em entender as redes sociais que permitiram que um sujeito proveniente da
distante província de Minas Gerais se estabelecesse como charqueador
e se tornasse um dos principais líderes da Revolução Farroupilha. Para
isso, percorri todos os laços que aquele indivíduo criou; especialmente,
persegui a rede familiar de sua esposa, oriunda de uma grande família,
com pai e tios charqueadores e outros tios e primos criadores de gado.
Os Rodrigues Barcellos eram uma família de descendentes de açorianos que migraram para Rio Grande logo antes da tomada dessa vila
pelo governador espanhol do Rio da Prata, Pedro Cevallos, em 1863. A
fuga de Rio Grande levou a família a se instalar nos campos de Viamão,
até a retomada daquela vila, quando gradualmente os filhos de Antonio
Rodrigues Barcellos e Rosa Perpétua de Lima voltaram seus investimentos para o sul, alguns se estabelecendo nas proximidades de Rio Grande,
onde se fundaria alguns anos depois a Vila de São Francisco de Paula, a
futura Pelotas, outros se dirigindo para a campanha, alguns conseguindo
fazer ambos.
José Rodrigues Barcellos, que se tornaria uma das maiores fortunas
entre os charqueadores da primeira geração, serviu no comando da fronteira de Jaguarão até chegar ao posto de major, nos anos da conquista da
Cisplatina. Depois, fixou-se em Pelotas, onde possuiu um estabelecimento de charqueada e atuou no comércio atlântico. Naqueles anos, fora
descrito como um “dos maiores proprietários da fronteira do Rio Grande”
e de boa conduta quando no comando dos oficiais militares (Vargas,
“Transportando fortunas para povoar deserta e inculta campanha”: brasileiros e produção... | 85
2013, p. 458). Seu irmão, Luiz Rodrigues Barcellos, possuía uma grande propriedade em Bagé e outra na porção norte de Cerro Largo, com
10 léguas. Outro irmão, Bernardino, da mesma forma possuía uma
propriedade, da qual se ignorava a dimensão, no mesmo departamento.
Essa propriedade era administrada por um dos filhos de Bernardino,
Joaquim, que desde essa propriedade comprava gado de diferentes produtores não apenas para alimentar a charqueada do pai, mas também
para o do cunhado, Domingos José de Almeida.
Os laços entre os irmãos eram fortes, como diferentes documentos
atestam. No inventário de Dona Ana Bernarda da Cunha, esposa de José
Rodrigues Barcellos, o principal credor era outro irmão, Cipriano Rodrigues Barcellos. Cipriano foi descrito pelo visitador Dom José da
Silva Coutinho, em 1815, como um dos mais ricos da então pequena
freguesia de São Francisco de Paula. Assim como José, Cipriano foi um
dos mais ricos charqueadores da primeira geração em Pelotas.Tão rico,
que estabeleceu seus negócios também no Estado Oriental, primeiro
com uma propriedade de criação na Costa do Jaguarão e depois com
uma charqueada em Maldonado. Mas sua riqueza não permaneceu
investida nessas propriedades. Nos últimos anos de vida, Cipriano se
tornou um capitalista, vivendo principalmente de rendas.
No ano de 1845, o Comendador Cipriano Rodrigues Barcellos e
sua esposa Rita Bernarda da Silva compareceram ao 2º Tabelionato de
Notas para vender a estância situada na margem uruguaia do Jaguarão.
Os compradores eram os irmãos Joaquim e Florêncio Correa Mirapalheta.
Assim como o comendador e seus irmãos, os Correa Mirapalheta descendiam de famílias açorianas que se instalaram em Rio Grande ainda
no século XVIII. Assim como os Rodrigues Barcellos, eles haviam estendido suas atividades econômicas além da fronteira nas primeiras
décadas do século XIX.Além disso, membros de ambas as famílias tinham
contraído matrimônio nas décadas anteriores. Cipriano vendia sua propriedade para velhos conhecidos.
Caso semelhante se deu com a compra de um campo no Estado Oriental pelos filhos de José Pedro Rodrigues, no ao de 1857. O campo foi
vendido pelo comendador Domingos Faustino Correa a uma sociedade
formada por netos do comendador José Rodrigues Barcellos. Para entender sua relação com os Rodrigues Barcellos, tenho de remeter ao fato
de que ele participava, de forma bastante pronunciada, de uma rede fa86 | Carla Menegat
miliar que concentrava boa parte dos negócios na porção norte do
então departamento de Maldonado, hoje Rocha. Nas décadas anteriores
a esse negócio, especialmente nos anos 1830, o grande centro das compras de gado dos irmãos Barcellos parece ter se localizado nessa região.
Ali também Cipriano teria participado do comércio ilegal de escravos,
nos anos 1830, bem como montado uma charqueada durante a Revolução Farroupilha (Monquelat, 2010, p. 151).
Apesar de tímidos, esses são indícios de que esse mercado estava
orientado para venda dentro de um círculo de relações, excluindo especialmente a comercialização da terra com orientais. Em realidade,
todos os inventários que têm indicação da compra de campos no Estado Oriental – não são muitos, sete no total – indicam que a venda foi
realizada por brasileiros, bem como os arrendamentos indicados nos
processos. Outros oito inventários indicam que terras do inventariado
estavam arrendadas por outros brasileiros. Se for possível supor que
havia uma similaridade no funcionamento do mercado de gado com o
do mercado de terras, a possibilidade de que este fosse bastante refratário a negócios com orientais aumenta.
O mercado de gado tem uma dinâmica mais fácil de rastrear nos
inventários, por meio das contas correntes e das dívidas ativas e passivas.
61,9% dos inventários apresentam alguma indicação sobre a venda ou
compra de gado. A grande maioria dos inventariados tinha dinheiro a
receber pela venda de uma ou duas safras anteriores e nos permite verificar dois padrões de venda. O primeiro era constituído por um comerciante que comprava o gado. Esse padrão era mais comum nas áreas mais
próximas da fronteira, onde o acesso às casas de comércio me pareceu
ser regular. Em algumas situações, os criadores eram devedores desses
comerciantes, indicando que nem sempre o gado necessariamente era
pago em dinheiro, mas entrava numa conta corrente. Assim, fora da
safra os estancieiros se abasteciam dos gêneros necessários no comércio
e o acerto de contas era realizado na safra. Esse modelo foi particularmente empregado por criadores menores, ou ao menos pelos que tinham
quantias menores para receber nos inventários, e não estava ligado apenas ao abastecimento das charqueadas brasileiras, mas ao consumo de
gado da população em geral.
Outra forma de organizar o comércio de gado era aquela em que um
estancieiro intermediava a venda de outros criadores. Nessa modalidade,
“Transportando fortunas para povoar deserta e inculta campanha”: brasileiros e produção... | 87
as tropas eram formadas na safra e enviadas ao destino por um pecuarista que vivia no Estado Oriental, ou administrando terras de outrem
ou que tinha bons contatos nos mercados consumidores. O inventário
de João Simões Lopes, aberto em 1853, traz indícios interessantes de
como esse mercado se organizava. O pai do futuro Visconde da Graça
era um charqueador de grandes proporções (Vargas, 2013, p. 313), engajado no comércio atlântico (Berute, 2011, p. 91-92) e criador com
grandes propriedades no Brasil e no Estado Oriental. Em seu inventário
suas dívidas passivas foram classificadas entre “recebíveis, difíceis de
receber e dadas como perdidas”, um indicativo do volume movimentado em sua atividade mercantil. Porém, nas dívidas ativas, muitos valores
eram destinados a nomes que identifiquei no RRNE, com propriedades numa região acessível desde as propriedades de Simões Lopes.
Ao inventariar os bens que possuía com suas duas esposas falecidas,
Maria Faustina Furtado e Cipriana Gonçalves, o major Diogo Félix
Feijó indicava uma série de dívidas do segundo casal com Rafael de
Souza Netto. Sobrinho do general Antônio de Souza Netto, um dos
líderes farroupilhas, Rafael era casado com Bárbara Leonor Gonçalves
da Silva, sobrinha de Bento Gonçalves – o principal líder dos farrapos
– e era proprietário de uma grande estância próxima a Bagé. Aliás, entre os vizinhos de Rafael estavam parentes de outros líderes farroupilhas,
como outros Gonçalves da Silva e Silveira Brum, e também de muitos
charqueadores, como os Azevedo e Souza e os Rodrigues Barcellos,
além do dito major Feijó e seus filhos. Rafael de Souza Netto, assim
como seu tio mais ao sul, provavelmente arregimentava tropas de gado,
comprando de seus vizinhos, que eram levadas às charqueadas de Pelotas.
A dívida do segundo casal possivelmente era resultado de algum
adiantamento por tropas que não puderam ser entregues nos anos finais
da Revolução Farroupilha, indicando que as relações que mediavam as
compras eram ditadas também pela perspectiva de contar com o suporte
do comprador em momentos difíceis, numa rede de crédito que amarrava
o criador àqueles que mediavam a comercialização das tropas (Bell, 1998).
O mercado de gado parecia ser guiado por outras normas que não apenas a da oferta e procura. Jonas Vargas (2013, p. 299), ao analisar o grupo
de charqueadores de Pelotas, encontrou outros exemplos dessa prática.
Compreender que a lógica desse mercado era marcada pelas boas
conexões com os mercados consumidores e pelas relações de confiança
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estabelecidas e alimentadas ao longo dos anos não exclui o fato de que
eram os proprietários maiores que organizavam esse padrão de comércio
de gado na campanha. Entender os tamanhos das propriedades e o impacto que isso tinha sobre a produção pode ser esclarecedor. Do total
de 1.353 propriedades listadas no RRNE, 974 apresentavam dimensões
registradas, distribuídas segundo a Tabela 2. Como se pode perceber, o
maior número de propriedades ficava na faixa de menor dimensão, o que
não quer dizer que fossem pequenas propriedades.
Tabela 2 – Número de propriedades segundo as listas do RRNE
REGIÃO
NÚMERO DE
PERCENTUAL
PROPRIEDADES
Fronteira do Chuí e São Miguel
Fronteira do Jaguarão e ao norte do rio
Negro, fronteira de Bagé
Tacuarembó
Norte do Arapehy e ao sul de Quaraí
Ao Sul do Arapehy e ao norte da coxilha
do Haedo
Cerro Largo
36
2,6%
154
11,3%
87
6,4%
161
11,8%
78
5,7%
483
35,6%
Durazno
33
2,4%
Maldonado
39
2,8%
San José
79
5,8%
Colonia
15
1,1%
8
0,5%
124
9,1%
39
2,8%
Montevidéu
Salto
Paysandú
Soriano e Mercedes
Total
17
1,2%
1.353
100%
Podemos, ainda, tentar uma aproximação pela ocupação dos campos
por rebanhos. A média de criação das propriedades em que a dimensão
e a quantidade de gado foram declaradas nos inventários é de 1.000 cabeças por légua. Pouco mais de 1% (14) das propriedades tinha menos de
uma légua de campo – equivalente a 4.356 hectares de área – o suficiente
para criar ao menos 500 cabeças, o suficiente para sustentar uma família
(Gelman, 1998, p. 85). Em 1856 foi produzida uma lista dos hacendados
“Transportando fortunas para povoar deserta e inculta campanha”: brasileiros e produção... | 89
mais importantes de Cerro Largo e o cálculo aproximado do número
de gado que cada um possuía. Dos 127 listados, 105 eram brasileiros, a
grande maioria com rebanhos de mil a três mil bovinos (Zabiela, 2002,
p. 146). Quando os dados dessa listagem foram cruzados com o RRNE,
foi possível encontrar a dimensão de 46 propriedades. Analisando a média de ocupação a partir desses dois documentos, ela fica bem abaixo
da apresentada nos inventários, com 343,54 animais por légua. Esse dado
fica abaixo também das estimativas que o viajante francês Nicolau Dreys
fez para as estâncias do Rio Grande do Sul. Segundo Dreys, “calcula-se
que nas estâncias cada légua quadrada [4.356 hectares] pode receber e
criar de 1.500 a 2.000 cabeças de gado” (Dreys, 1990, p. 66).
Muitos poderiam ser os fatores que influenciavam numa baixa da
produtividade: dificuldade de encontrar trabalhadores para as lidas do
campo, dificuldades para a retomada do crescimento dos rebanhos após
a guerra, o crescimento progressivo de outras criações – especialmente
a de ovinos (Winn, 1998, p. 78) –, epizootias e ataques de cães selvagens.
De fato, na campanha rio-grandense, somente na década de 1860 apresentaram-se sinais de recuperação dos rebanhos, depois de quinze anos
de paz e de uma diminuição das calamidades naturais (Bell, 1998, p. 80),
não sendo improvável que o mesmo se verificasse na campanha oriental.
Ainda assim, arrisco a opinar que possivelmente alguns proprietários
tenham alegado rebanhos de menores dimensões por desconfiarem do
responsável pela elaboração da lista, o comandante Dionísio Coronel,
blanco, que durante a Guerra Grande foi frequentemente alvo de reclamações dos brasileiros estabelecidos em Cerro Largo. Porém, o fato de
Coronel ter listado produtores com mais de mil cabeças de gado como
os mais notáveis daquele departamento por si só constitui um importante corte para percebermos qual era o tamanho dos rebanhos que
garantiam notoriedade social a seus proprietários.
Dos 46 estabelecimentos com dimensão identificada, 38 ficavam na
faixa abaixo das cinco léguas, indicando que essa dimensão de propriedade era suficiente para classificar um produtor dentro de um grupo de
elite.Ainda que essas sejam as posses menores dentro do RRNE, possuir
entre uma e cinco léguas era o suficiente para garantir uma condição
econômica favorecida, em que não apenas o rebanho tivesse condições
de se reproduzir a ponto de garantir o exclusivismo da atividade.
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Tabela 3 – Propriedades segundo dimensões registradas no RRNE
DIMENSÕES
NÚMERO DE
PERCENTUAL
PROPRIEDADES
Até 5 léguas (até 21.780 ha)*
689
50, 88%
Entre 6 e 9 léguas (de 26.136 a 39.204 ha)
144
10, 63%
Entre 10 e 19 léguas (de 43.560 a 82.764 ha)
97
7,16%
Acima de 20 léguas (acima de 87.120 ha)
44
3,24%
380
28,6%
1.354
100%
Ignoradas
Total
* A conversão de medidas do período do Império, segundo o Ministério do Desenvolvimento Agrário,
pretende uma légua como correspondente a 6.600 m2 ou 4.356 hectares.
De toda forma, o fato de 21,03% das propriedades listadas no RRNE
– correspondendo a 29,26% das propriedades com dimensão apontada – terem capacidade de criar mais de cinco mil cabeças de gado é um
dado que indica que essas não eram propriedades voltadas a subsistência,
mas empreendimentos de médio e grande porte. Possivelmente esse número fosse maior se considerarmos que quase um terço das propriedades
não tinha extensão declarada, e por outros documentos é possível averiguar que muitas delas tinham mais de 10 léguas.
Se observarmos esses dados matizados por região, veremos que, em
relação às propriedades de menor tamanho a distribuição, eles se mantêm, apresentando pequenas alterações, porém em relação às propriedades de maior porte, a sua concentração na região de Tacuarembó
parece ser bastante significativa, chegando a quase metade (47,7%). Essa
região ocupada maciçamente pelos brasileiros corresponde àquela área
de ocupação indígena pacificada nos anos 1830 e que foi objeto de
concessões dadas por Rivera e, depois, alvo da regularização fundiária
por meio das denúncias de ocupação de terras públicas. Sua posição geográfica adjacente à fronteira seca do Upamarotim (a faixa de terras de
mais de cem quilômetros entre o Brasil e o Uruguai próximo a Bagé,
recortada por pequenos arroios e cerros), combinada à presença de tribos
indígenas nômades e hostis, como os charruas, retardou a ocupação daquela área.
Tacuarembó apresentava uma baixíssima densidade populacional, o
que aumentava o impacto da presença dos brasileiros. Segundo o censo
geral de 1852, Tacuarembó contava com 6.567 almas, das quais 40,36%
“Transportando fortunas para povoar deserta e inculta campanha”: brasileiros e produção... | 91
eram estrangeiras, como indicado na Tabela 1, sendo a esmagadora maioria
de brasileiros. Antes disso, o único dado populacional que se tinha da região dava conta da existência de 500 habitantes em San Fructuoso – Ciudad
de Tacuarembó, em 1837, ano da criação do departamento. Nas décadas
de 1830 e 1840, segundo o estudo de Raquel Pollero (1990, p. 221-222),
a população brasileira nesse departamento correspondia a 69,4% e 59,7%,
respectivamente. Mesmo que os números tenham caído conforme avançava o século, em 1860 os brasileiros eram donos de 50% dos bovinos de
Tacuarembó (Zubillaga, 1977, p. 51).
A própria expansão da fronteira agrária no Rio Grande do Sul também acabou por ditar o ritmo da ocupação daquela região, que foi feita
a partir de Jaguarão e Bagé. Essa era uma região entre as duas frentes mais
antigas de ocupação do norte uruguaio pelos luso-brasileiros que correspondem às ocupações militares das primeiras décadas do século XIX
(Borucki; Chagas; Stalla, 2004, p. 161).Ao contrário da frente de expansão
no litoral, que ocupou Maldonado e depois Cerro Largo, acessível através
do rio Jaguarão e da lagoa Mirim – além de ser parte do caminho para
Montevidéu, tanto por terra quanto pela Atlântico –, ou da outra frente
a oeste, aquela que ocupou o território entre o Arapehy e o Quaraí, junto
à fronteira com a Argentina e acompanhou o fluxo do rio Uruguay, a
ocupação de Tacuarembó não obedeceu a nenhum caminho fluvial próximo.
A essa combinação de fatores se juntaram outros. Nos anos 1830, com
as dificuldades encontradas pelos charqueadores do Rio Grande do Sul
e depois com a eclosão da Revolução Farroupilha – ela mesma relacionada diretamente a essas dificuldades –, alguns empresários do ramo buscaram se estabelecer nas proximidades de Montevidéu, levando parte do
mercado de gado dos produtores rio-grandenses a se direcionar nesse
sentido também. A possibilidade de aquisição de terras com títulos seguros e o menor preço da terra nas proximidades do rio Negro – inclusive
na margem sul, no departamento de Durazno – atraiu investimentos altos.
Das 33 propriedades de brasileiros listadas entres os rios Yí e Negro, ao
sul deste último, doze têm mais de 20 léguas, representando mais de um
terço de todas as estâncias de brasileiros da região e igualmente quase um
terço das propriedades de grande porte do RRNE.
O verão de 1842-1843 foi marcado por uma grande seca na campanha oriental, que praticamente dizimou os rebanhos em grandes áreas
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da campanha. A reação do Gobierno del Cerrito foi proibir as faenas, ou
seja, a marcação, venda e abate de gado em todo o território controlado
pelo seu exército. Ainda, na província do Rio Grande do Sul, no ano
anterior, uma grande peste tinha dizimado parte importante da produção
bovina. Nos arredores de Montevidéu e em San José, os charqueadores
rio-grandenses que tinham migrado seus negócios para o país vizinho,
em busca de condições mais vantajosas fecharam seus estabelecimentos
por conta da abolição da escravidão(que lhes retirou a mão de obra e
parte do patrimônio), além da escassez de matéria prima.
E com isso, o mercado para os estancieiros brasileiros, que produziam
num sistema baseado na mão de obra cativa e no extensivismo que
exigia imensas propriedades monocultoras, voltaria a ter seu ponto de
atração nas charqueadas de Pelotas, ou ao menos era o que pretendiam
os charqueadores daquela cidade. Estava marcado o impasse que impediria que esses homens que viviam no norte se identificassem com as
políticas pensadas para a República Oriental do Uruguai pelos sujeitos
que buscavam ocupar os postos desde Montevidéu.
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