ABASTECER A CIDADE
NA EUROPA MEDIEVAL
Provisioning Medieval
European Towns
IEM – Instituto de Estudos Medievais
Coleção ESTUDOS 22
ABASTECER A CIDADE
NA EUROPA MEDIEVAL
Provisioning Medieval
European Towns
Amélia Aguiar Andrade
Gonçalo melo da Silva
editores
Lisboa, 2020
Textos selecionados das IV Jornadas Internacionais de Idade Média “Abastecer a Cidade na Europa
Medieval” (Castelo de Vide, de 10 a 12 de Outubro de 2019) e da Escola de Outono (Castelo de Vide,
8 e 9 de Outubro de 2019 ).
Arbitragem Científica:
Adelaide Millán da Costa (Universidade Aberta)
Antonio Collantes de Terán (Universidade de Sevilha)
Beatriz Arizaga Bolumburu (Universidade de Cantábria-Santander)
Catarina Tente (Universidade Nova de Lisboa)
Denis Menjot (Universidade Lyon 2)
Dolores Villalba Sola (Universidade de Granada)
Emilio Martín Gutiérrez (Universidade de Cádiz)
Eduardo Aznar (Universidade de La Laguna)
Hermenegildo Fernandes (Universidade de Lisboa)
Hermínia Vilar (Universidade de Évora)
Isabel del Val Valdivieso (Universidade de Valladolid)
João Luís Fontes (Universidade Nova de Lisboa)
Jonathan Wilson (Instituto de Estudos Medievais, NOVA FCSH)
Luísa Trindade (Universidade de Coimbra)
Manuel Fialho Silva (Centro de História da Universidade de Lisboa)
Manuela Santos Silva (Universidade de Lisboa)
María Asenjo González (Universidade Complutense de Madrid)
Maria Filomena Barros (Universidade de Évora)
Maria Helena da Cruz Coelho (Universidade de Coimbra)
Mário Farelo (Universidade Nova de Lisboa)
Mário Jorge Barroca (Universidade do Porto)
Michel Bochaca (Universidade de La Rochelle)
Pere Verdes Pijuan (Institución Millá y Fontanals (CSIC))
Santiago Macías (Universidade Nova de Lisboa)
Sara Prata (Instituto de Estudos Medievais, NOVA FCSH)
Sauro Gelichi (Universidade Ca’Foscari Veneza)
Wim Blockmans (Universidade de Leiden)
O Instituto de Estudos Medievais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de
Lisboa (NOVA FCSH) é financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito do Projecto UID/
HIS/00749/2020.
Publicação financiada pela Câmara Municipal de Castelo de Vide.
Título
Editores
Edição
Imagem de capa
Coleção
ISBN
Paginação e execução
Revisão
Depósito legal
Impressão
Abastecer a Cidade na Europa Medieval | Provisioning Medieval European Towns
Amélia Aguiar Andrade, Gonçalo Melo da Silva
IEM – Instituto de Estudos Medievais / Câmara Municipal de Castelo de Vide
Muralha da vila de Castelo de Vide, fotografia de Eduardo Alves ©
Estudos 22
978-989-54529-2-7 (IEM) | 978-972-9040-17-7 (C. M. de Castelo de Vide)
Marcel L. Paiva do Monte, com base no design de Ana Pacheco
Mariana Alves Pereira
474746/2020
Tipografia Priscos, Lda.
Índice
Apresentação ............................................................................................................. 11
António Pita
Abastecer a cidade na Europa medieval: algumas reflexões em torno
de um colóquio, de um livro e de um tema ........................................................... 13
Amélia Aguiar Andrade, Gonçalo Melo da Silva
PARTE I
A Intervenção dos Poderes
The Intervention of Powers
Strange Cities on the Waters: North Adriatic settlements between
7th–9th centuries AD................................................................................................... 23
Sauro Gelichi
Some problems about urban transitions in 12th and 13th Iberia .......................... 37
Hermenegildo Fernandes
Ciudades y procesos de “agrarización” en Andalucía Occidental
durante el siglo XV.................................................................................................... 63
Emílio Martín Gutiérrez
Lisboa e o abastecimento de vinho para Ceuta
na primeira metade do século XV .......................................................................... 91
José Miguel Zenhas Mesquita
Do cultivo ao consumo: o abastecimento de cereal
na Gafaria de Coimbra nos séculos XIV e XV ................................................... 111
Ana Rita Rocha
O abastecimento alimentar da cidade em finais do século XIV:
o contributo do Livro das Posturas Antigas de Évora ....................................... 129
Rodolfo Petronilho Feio
PARTE II
Gerir Crises e Conflitos no Abastecimento
Managing Crises and Conflicts in Supply
Defender la ciudad medieval contra el hambre:
abastecimiento y políticas anonárias.................................................................... 151
Denis Menjot
8
Uma pequena cidade medieval e o seu pão
na Baixa Idade Média: o caso de Loulé .................................................................. 179
Iria Gonçalves
El abastecimiento cerealista de Manresa
durante la hambruna de 1333-1334 ..................................................................... 215
Adrià Mas i Craviotto
A luta pelo controlo do abastecimento e repartição da carne e do peixe
na cidade de Braga nos séculos XIV e XV .......................................................... 237
Raquel Oliveira Martins
Del mar Cantábrico a la meseta castellana. Las dificultades de los
mercaderes de las Cuatro Villas de la Costa en la distribución del pescado
en el norte de Castilla a finales de la Edad Media .............................................. 253
Javier Añíbarro Rodríguez
Problemas en el abastecimiento del pescado en la meseta
meridional castellana a finales de la Edad Media ............................................... 271
Julián Sánchez Quiñones
PARTE III
Ao Gosto da Cidade: Matérias-Primas e Produtos
To the Taste of the City: Raw Materials and Products
Provision in Medieval Rome: data on the building activities ........................... 295
Nicoletta Giannini
Matérias-primas para o Paço da Alcáçova: a intervenção régia num
Paço lisboeta (1507-1513) ...................................................................................... 309
Diana Martins
Provisioning the building sites of the mendicant convents in Auvergne
(Realm of France) in the Middle Ages (early 13th-early 16th centuries) .......... 329
Claire Bourguignon
Abastecer um estaleiro construtivo: O exemplo do
Colégio da Graça (1543–1548) .............................................................................. 347
João Paulo Graça Pontes
A louça quotidiana e identidade social em Santarém na Idade Média
(séculos XI-XIV) ..................................................................................................... 365
Tânia Manuel Casimiro; Carlos Boavida; Telmo Silva
9
PARTE IV
Espaços, Equipamentos e Rostos do Abastecimento
Spaces, Infrastructure, and Faces of Supply
Espaços e arquiteturas de abastecimento da cidade medieval .......................... 383
Maria do Carmo Ribeiro
Las alhóndigas. Análisis de una nueva arquitectura civil. Importancia de
su implantación en las ciudades de Castilla y León en el siglo XVI ................ 403
José Miguel Remolina Seivane
Moleiros, moinhos e azenhas no Porto nos séculos XIV e XV:
um setor-chave do abastecimento cerealífero urbano ....................................... 423
Arnaldo Melo
O armazenamento e a gestão dos recursos nas cidades do
Gharb al-Andalus: o exemplo de Alcácer do Sal ................................................ 449
Marta Leitão
As estruturas de produção e armazenamento da vila medieval
de Sesimbra .............................................................................................................. 467
Rui Filipe Gil; Rafael Santiago
Os mercadores e os mesteres na paisagem urbana do século XV:
o contributo da documentação notarial vimaranense ....................................... 483
André Moutinho Rodrigues
“quallquer […] rregateira que conprar quaaesquer mantjmentos
em quaisquer lugarees”: o papel das regateiras no abastecimento
alimentar urbano..................................................................................................... 497
Mariana Alves Pereira
PARTE V
Tempos de comércio: mercados e feiras, fiscalidade e moeda
Times of Trade: Markets, Fairs, Taxation, and Money
Na Lisboa de D. João I (1385-1433): fiscalidade régia e
abastecimento .......................................................................................................... 511
Catarina Rosa
El diezmo de los trigos del cabildo catedralicio del Reino de
Mallorca: estructura y recaudación (1400-1420) ................................................ 527
María del Camí Dols Martorell
The Crown, Towns and Currency: The Constitutional Restraint of
Coinage in León and Castile, 1157-1230 ............................................................. 551
James Todesca
Entre o abastecimento da vila e o comércio regional: feiras mensais e
quinzenais na Idade Média Portuguesa ............................................................... 573
Paulo Morgado e Cunha
Vegetais nos mercados do Ġarb al-Andalus. Entre os tratados agronómicos
e a arqueo-botânica (séculos X-XIII).. ................................................................. 589
António Rei
La saca de pan y el almirantazgo castellano: jurisdicciones, conflictos
institucionales y tensiones sociales....................................................................... 607
Lorenzo Lage Estrugo
Apresentação
“A Arte é tudo – tudo o resto é nada.
Só um livro é capaz de fazer a eternidade de um povo.”
Eça de Queirós in “A Correspondência de Fradique Mendes.”
Com esta quarta publicação dos artigos produzidos no âmbito das Jornadas
Internacionais de Idade Média, as quais, desde 2016, ininterruptamente, se têm
vindo a realizar nesta Notável Vila, reforça-se a firmeza do compromisso assumido
entre a Câmara Municipal de Castelo de Vide e o Instituto de Estudos Medievais,
da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Na realidade, as vivências e a oralidade intrínsecas à realidade presencial própria
dos dias em que se desenrolam as Jornadas, caraterizam-se por terem um sabor
insubstituível, tão específico do inigualável prazer que brota do diálogo nas relações
entre seres humanos. E, por assim ser, contamos mentalmente os meses que faltam
para mais um reencontro anual neste espaço-projeto, onde, entre a riqueza das
apresentações pluridisciplinares e os profícuos debates em diferentes línguas, há
sempre um intervalo para desfrutar do tempo – deste tempo denso e sedimentado
que só as terras fundadas na Idade Média possuem. É, pois, nesta atmosfera plácida
e tranquila, entre prenúncios de outono, que esta Notável Vila (onde nasceu Garcia
de Orta, Mouzinho da Silveira, Laranjo Coelho e Salgueiro Maia), sente o orgulho de
ser palco desta feliz cooperação entre Academia, Universidade e Poder Local, cujos
resultados, ano após ano, subsidiam indelevelmente o conhecimento histórico.
De facto, por um lado, é neste ambiente telúrico e de entusiasmo que decorrem as
Jornadas da Idade Média, sentindo-se a riqueza intrínseca na descontraída interação
entre investigadores, alunos e colaboradores – e ainda com o próprio lugar! Um espaço
de experiências, de reflexões, de diferentes abordagens, de distintas perspetivas, que
em sala, nos corredores ou no jardim, resulta em enriquecimento dos participantes
e alimenta a harmonia entre medievalistas. Contudo, será sempre através da forma
de LIVRO que o conhecimento transcrito ganha garantias da sua perenidade, na
medida em que essa materialidade substantiva ultrapassa as coordenadas do Tempo
12
e dos Lugares, cumprindo assim (ainda) a sua primordial missão de transmissão do
saber entre as sociedades. Por cada ano que passa, e verificando-se a continuidade
deste projeto, cresce o orgulho de Castelo de Vide, na medida em que, embora
participando de forma muito modesta mas muito empenhada, cumpre e faz jus ao
compromisso formal e público assumido desde a primeira hora: “proporcionar as
condições necessárias para que Castelo de Vide, durante longos e frutuosos anos,
se afirme como um fórum de discussão entre investigadores que tragam luz sobre
os infindos mistérios que envolvem a cidade medieval europeia!” Porém, há no
tempo presente uma ameaça latente que rasga o planeamento e torna a decisão sobre
a realização da iniciativa depender da realidade circunstanciada quase ao dia. De
facto, no momento em que estas linhas são escritas importa sublinhar o período
verdadeiramente excecional em que vários países do mundo, e particularmente
Portugal, estão assolados pela pandemia COVID-19, cuja evolução e desfecho a
ciência ainda não domina.
Porém, não obstante este contexto de risco – e naturalmente porque Castelo
de Vide iça a sua bandeira de lugar “Clean and Safe”, sendo, portanto, e por ora, um
território sanitariamente seguro –, reiterámos ao Instituto de Estudos Medievais a
nossa determinação em prosseguir com as Jornadas no presente ano de 2020, ou
seja, daqui a poucas semanas. E a resposta intrépida foi: “– Vamos a isso! Seguindo
obviamente os protocolos de segurança!” E, é precisamente neste acreditar de que
podemos ser proprietários do nosso destino que sentimos a profunda convicção de
2021 trazer mais um livro a esta fantástica coleção. Queremos muito acreditar que todo
o esforço já produzido até à data será justamente compensado pela força providencial
de repetirmos esta tarefa concretizando as Jornadas dedicadas à Governança da
Cidade Medieval, servindo assim a investigação histórica e ganhando conhecimento
à Idade Média. Por último, importará sempre – e uma vez mais! –, como ato da
mais elementar justiça, agradecer genuinamente à Direção do Instituto de Estudos
Medievais. A ilustre plêiade das Professoras/Investigadoras/Diretoras que têm sido
verdadeiras construtoras desta arquitetura de conhecimento em torno da cidade
medieval, graças ao empenhamento e dedicado trabalho produzido na organização
e coordenação desta iniciativa, semearam frutos que, ano após ano, evidenciam um
inestimável sucesso consubstanciado com esta notável obra fundada já em 4 livros.
E Castelo de Vide agradece reconhecidamente o privilégio por associar o seu nome
a este singular projeto de investigação que assim vai fazendo a sua própria história!
António Pita
Presidente da Câmara Municipal de Castelo de Vide
Abastecer a Cidade na Europa Medieval:
algumas reflexões em torno de um colóquio,
de um livro e de um tema
Amélia Aguiar Andrade1
Gonçalo Melo da Silva2
Em Outubro de 2019 decorreram em Castelo de Vide a 3ª Escola de Outono
em Estudos Medievais e as 4ªs Jornadas Internacionais de Idade Média, estas últimas
em torno do tema Abastecer a cidade na Europa medieval. Um ano depois, graças
ao apoio da Câmara Municipal de Castelo de Vide disponibiliza-se ao público
uma recolha de textos selecionados de entre os apresentados nesses dois eventos,
depois de terem sido alvo de uma dupla avaliação por pares. Apesar das dificuldades
colocadas pelo actual contexto pandémico ao desenvolvimento de trabalhos de
investigação, é possível publicar um conjunto de trinta textos elaborados por trinta
e três investigadores provenientes de Portugal, Espanha, Itália, França e Estados
Unidos da América. Esta obra, revelando e ampliando o que foram as lições da
Escola de Outono e as conferências plenárias e comunicações das Jornadas, vem dar
continuidade ao desiderato que desde sempre se quis associar à organização destes
dois eventos: ultrapassar o âmbito mais restrito dos que neles participaram para
chegar a públicos mais vastos, através da divulgação, em formato papel e digital, de
conhecimento novo e de qualidade sobre a cidade medieval.
Contudo, este livro não recolhe os posters apresentados pelos alunos da
Escola de Outono, reveladores de trabalhos em curso destinados à obtenção do
grau de mestre ou de doutor, que suscitaram não só animadas discussões como
novas interpelações que constituíram importantes contributos para a melhoria das
problemáticas e das metodologias de trabalho a empreender pelos estudantes. A sua
1
2
IEM - NOVA FCSH.
IEM - NOVA FCSH.
14
diversidade temática foi reveladora de que, apesar dos constrangimentos no apoio à
investigação, continua a haver jovens disponíveis para desbravarem novos caminhos
para um melhor conhecimento da Idade Média. A adesão de um número cada vez
mais elevado de estudantes e a participação, para além dos professores convidados,
de outros professores e/ou investigadores interessados em participar nas discussões,
comprovam a importância deste tipo de actividade para a formação de jovens
investigadores e de como a Escola de Outono de Castelo de Vide se tem vindo a impor,
paulatinamente, na agenda de trabalho de mestrandos e doutorandos nacionais e
estrangeiros.
Condicionalismos de vária ordem impedem também, a transcrição nesta
obra, dos debates que tiveram lugar no final das distintas sessões das Jornadas, a
partir dos quais se alargaram perspectivas, se sugeriram outras interpretações dos
dados, se contextualizaram de forma mais ampla resultados. Contributos que muitos
autores inseriram nas versões escritas das suas apresentações agora publicadas, o
que é revelador da importância que o debate científico sempre tem para a melhoria
da qualidade dos estudos históricos. A diversidade da proveniência, formação e
interesses historiográficos dos participantes bem como a saudável mistura entre
investigadores experientes e jovens em início de carreira que caracteriza as Jornadas,
tem sido particularmente estimulante para uma frutuosa troca de ideias, que não se
esgota nas sessões e, se prolonga nos momentos de convívio, abrindo caminho ao
estabelecimento de futuras redes de trabalho colaborativo.
Os textos agora apresentados comprovam a pertinência da escolha do tema do
abastecimento da cidade medieval para as Jornadas, não só porque este surge como
um elemento incontornável na subsistência das comunidades urbanas medievais
como também se revela com um objecto historiográfico de enorme potencialidade,
uma vez que pode interligar-se com problemáticas bem presentes na sociedade actual,
como o equilíbrio dos ecossistemas, a exploração regrada dos recursos naturais, a
protecção do ambiente, entre outras. Apresenta ainda uma especial disponibilidade
para o desenvolvimento de estudos de carácter interdisciplinar em que a História
e a Arqueologia medievais podem beneficiar muito do diálogo com outros ramos
do saber que estão para além das Ciências Sociais e Humanas como é o caso, por
exemplo, da Geologia, da Biologia ou, da Agronomia.
Contudo, quando um encontro científico resulta, como acontece com as Jornadas
Internacionais de Idade Média de Castelo de Vide, de um apelo a comunicações
amplamente divulgado, tende sempre a ocorrer um certo distanciamento entre o
que desejam os organizadores – plasmado no texto de apresentação e nas sugestões
temáticas – e a resposta da comunidade científica, expressa nas propostas de
comunicação. Os organizadores pretendem que o programa seja temático, espacial e
cronologicamente o mais completo e abrangente possível, enquanto os investigadores
15
traduzem, nas suas propostas, as dinâmicas actuais da investigação desenvolvida nos
contextos historiográficos em que se inserem. As palestras dos oradores convidados
pretendem por isso ser, nesse contexto, as âncoras que possibilitam que a temática
central encontre um levantamento de problemáticas inovadoras e/ou a proposta
de metodologias capazes de lhe responderem com a maior eficácia. Circunstâncias
que se reflectem no conteúdo desta publicação, em que se mesclam as propostas
de escopo mais profundo e reflexivo com os estudos de caso, mais circunscritos
temática e espacialmente. Em todos, o leitor pode ainda encontrar remissões para
uma vasta bibliografia complementar ou, a referência a colecções documentais
que poderá consultar. A riqueza desta obra, que nos apraz salientar, assenta na
complementaridade entre as perspectivas apresentadas, a diversidade de espaços de
observação considerados e a amplitude das problemáticas equacionadas.
De entre os textos apresentados pelos oradores convidados cumpre destacar os
que equacionaram as questões de abastecimento urbano de uma forma mais profunda
lançando perspectivas e metodologias de trabalho muito estimulantes e os que, não
tendo o abastecimento como cerne das suas apresentações, todavia traçaram quadros
de reflexão problematizantes sobre espaços, cronologias e protagonistas do processo
urbano em espaços e cronologias menos glosados. No primeiro caso contam-se
os artigos de Emílio Martín Gutiérrez e de Denis Menjot. No seu texto Ciudades y
processo de “agrarizacíon” en Andalucía Occidental durante el siglo XV, o primeiro
dos autores referidos parte de uma escala regional e do estabelecimento de uma
cartografia exemplar para realçar a interacção entre a cidade e o campo na construção
das paisagens sociais medievais. Valorizando a interdisciplinaridade reflecte sobre
a importância da análise dos ecossistemas em que se inserem os núcleos urbanos
pois estes constituem a base da exploração dos recursos naturais, fundamentais no
abastecimento urbano e na sua inserção em circuitos de consumo mais vastos. O
texto de Denis Menjot – Defender la ciudad contra el hambre: las políticas anonarias
de los gobiernos urbanos en la Europa bajomedieval – assume-se como uma síntese
reflexiva que tem como espaço de observação a Europa medieval e que glosa as
principais problemáticas sobre as questões relacionadas com o abastecimento de
cereal e com a capacidade de resposta das cidades ao problema das carestias de
cereal, na perspectiva dos poderes em presença. Um texto que se completa com o
excelente estudo de uma pequena cidade no contexto português que Iria Gonçalves,
oradora convidada desenvolve em Uma pequena cidade e o seu pão na Baixa idade
Média: o caso de Loulé.
Sauro Gelichi por seu turno, em Strange Cities on the waters: north Adriatic
settlements between 7th-9th centuries AD, tendo como espaço de observação a
região lagunar de instalação das cidades de Veneza e Commachio, estabelece um
reflexão sobre um adequado entrosar de fontes escritas e arqueológicas e do seu
16
questionamento para a recuperação de cronologias mais recuadas e para equacionar
a problemática da instalação de comunidades urbanas em espaços marginais. No seu
texto de Hermenegildo Fernandes – Alguns problemas em torno de uma transição
urbana no Sudoeste da Península Ibérica (séculos XI-XII) – reencontramos a afirmação
das potencialidades da utilização simultânea e completar de fontes narrativas
e resultados da investigação arqueológica, no esclarecimento dos processos de
transformação sociais e espaciais urbanos. Aplicada ao estudo das transformações
sofridas pelas cidades do al-Andalus no contexto das ocupações de Almorávidas e
Almóadas permite apontar ainda permanências que se prolongam no pós-conquista
cristã e consequentemente, um melhor entendimento das transformações que a
ocupação cristã vai gerar.
A maioria dos textos agora disponibilizados têm como cronologia dominante
os séculos XIV e XV, tanto mais esperável quanto predominam os estudos que têm
a Península Ibérica como quadro espacial de observação e dentro desta, sobretudo
os reinos medievais cristãos. A conjuntura peninsular de guerra com o Islão,
que se prolongou de forma mais evidente até à 2ª metade do século XIII, gerou
uma afirmação tardia da cidade ibérica em relação a outras regiões europeias e
consequentemente, a sua presença nas fontes disponíveis. Este predomínio espacial
peninsular tem o seu contraponto nas aproximações a espaços de além Pirinéus que
tanto privilegiam a escala regional – o Auvergne considerado na cronologia longa que
se estende entre os séculos XIII e XVI e em função de um elemento específico como
era a presença mendicante – como uma cidade de referência de tradição romana e
feição mediterrânica como foi a Roma medieval e o seu abastecimento de matérias
primas, aqui também analisados, numa ampla diacronia.
Desde sempre que as comunicações resultantes das distintas edições das
Jornadas têm vindo a revelar que a Europa urbana medieval tende a organizar-se em
função da dicotomia grande cidade/média e pequena cidade, com claro predomínio
deste último modelo, por isso cada vez mais presente na agenda de investigação
sobre a cidade medieval. É pois maioritariamente em função de pequenas e de
médias cidades que os problemas de abastecimento se encontram apresentados, quer
estas se apresentem articuladas em redes de contactos ou de espaços regionais quer
consideradas per si.
A elaboração dos estudos inseridos nesta obra recorreu a uma enorme diversidade
de fontes: materiais, documentais, normativas, iconográficas, numismáticas,
arqueológicas às quais há que acrescentar todos os materiais – especialmente os de
natureza cartográfica – produzidos pelos autores dos textos e resultantes do tratamento
de informação inédita, alguns constituindo propostas interpretativas inovadoras.
Destacam-se as que traduzem as preocupações das comunidades e dos poderes seus
enquadradores com as questões de abastecimento, especialmente em momentos de
17
crise ou, as que decorrem da organização dos sistemas produtivos, de circulação
de produtos ou, da fiscalidade que lhe estava associada. Metodologicamente é de
salientar, como cada vez mais, os estudiosos da cidade medieval tendem a utilizar, de
forma crítica, informação muito diversa, contornando, ainda que nem sempre com
facilidade, barreiras disciplinares ou cronológicas.
A multiplicidade de fontes utilizada explica, em parte a diversidade de
perspectivas desenvolvidas quer estas sejam protagonizadas pela fiscalidade, pela
normativa ou pela expressão material de marcas sobre as paisagens urbanas e periurbanas e a sua articulação com a afirmação dos diferentes poderes em presença.
Não admira por isso, que as problemáticas decorrentes surjam também variadas
podendo salientar-se as mais frequentemente glosadas, como é o caso das resultantes
das preocupações com o abastecimento alimentar urbano, geradas pelas recorrentes
situações de carestia e pelos fenómenos que lhe estavam associados como as fomes,
a alta de preços e, a especulação. Associáveis aos problemas de abastecimento de
aglomerados humanos concentrados e com de alguma dimensão, são sem dúvida,
as questões decorrentes das difíceis dinâmicas de articulação entre os diferentes
poderes em presença, sobretudo quando em momentos de crise, se torna evidente a
necessidade de garantir a paz social e a simultânea afirmação da sua eficácia como
garantes do bem comum.
Outras problemáticas subjacentes às investigações reveladas nesta publicação
centram-se na posse e usufruto de recursos naturais e agrícolas sendo que estes têm
inerentes processos de enriquecimento que podem estar em directa correlação com
a posse da terra, dos meios de produção e do transporte desses mesmos recursos e
produtos. O crescimento urbano e a maior complexidade das sociedades urbanas
e a sua consequente hierarquização fomentavam situações de conflitividade entre
os possidentes mas, não menos importante situações de pluriactividade quer entre
as oligarquias urbanas como nos sectores artesanais, acrescentando complexidade à
análise dos grupos sociais intervenientes no processo de abastecimento urbano.
Fica também evidente que o abastecimento da cidade medieval e as suas
problemáticas específicas se entrosam com outras que, não as integrando directamente
lhe são paralelas e por vezes até sistémicas, como as que se associam com os níveis
de produção agrícola, com o trabalho, sobretudo o de natureza artesanal, com as
dinâmicas da actividade mercantil, ou ainda, com ao enquadramento fiscal das
actividades económicas em contexto urbano.
Torna-se claro ainda, que tal como muitos autores têm chamado a atenção, é
indispensável, para estudar o abastecimento urbano medieval, equacionar a cidade
como um simultâneo centro consumidor, produtor, transformador e distribuidor,
mas levando sempre em conta as diferentes escalas urbanas e o estabelecimento da
relação entre o consumo e a organização e hierarquização social que caracteriza
18
cada vila ou cidade. Mas também emerge destas distintas abordagens a necessidade
de não equacionar a cidade medieval como um espaço fechado, antes o integrando
em redes de abastecimento e circuitos comerciais, quer por via terreste quer por via
fluvial e/ou marítima com escalas que encontram denominadores diversos tais como
a relação cidade-campo, os contactos inter-regionais e os de escala internacional.
Tendo em vista o que já se conhece sobre a natureza das fontes disponíveis
para o estudo da cidade medieval europeia teria sido esperável que outras temáticas
tivessem estado presentes nestas Jornadas, que tinham como objectivo estudar e
reflectir sobre o abastecimento urbano. Sem preocupações de exaustividade podem
referir-se alguns, bastante sugestivos. Seria o caso do estudo dos circuitos de produção
e distribuição de produtos de luxo como os livros ou os tecidos de elevado preço. Ou,
os problemas levantados pelo abastecimento de minorias confinadas como judeus e
mouros nos contextos urbanos e seus conflitos com as maiorias cristãs em momentos
de crise ou em relação a práticas alimentares específicas. A disponibilidade de fontes
normativas, por seu lado, permite o esclarecimento do papel arbitral e regularizador
dos poderes em presença nas vilas e cidades sobre as actividades associadas ao
seu abastecimento. A arqueologia do edificado, se bem que constituindo uma
orientação recente, permite recuperar a presença dos equipamentos urbanos
associados à produção, transformação e venda de produtos – moinhos, mercados,
carniçarias, entre outros – permitindo aclarar os lugares de abastecimento quer no
entre muralhas quer no espaço urbano. E é surpreendente a presença discreta de
uma parte substancial dos protagonistas do processo de abastecimento urbano: os
mercadores, os mesteirais, os vendedores e vendedoras de retalho, os oficiais da
máquina administrativa e fiscal de enquadramento.
A análise do abastecimento das cidades e vilas medievais necessita da
arqueologia para ajudar a melhor interpretar dados documentais existentes ou, a
minimizar omissões de informação documental. E no desenho dos seus quadros
espaciais de observação necessita de recorrer, cada vez mais, à interdisciplinaridade
de modo a recuperar com fiabilidade os ecossistemas e as intervenções antrópicas em
que se desenvolveram as cidades medievais e as suas envolventes. Mas, mais precisa
de equacionar esta problemática através de investigações tendencialmente sistémicas,
que saiam da análise de um cidade, de uma região ou de um reino específicos em
favor de perspectivas mais globais, que possam captar circuitos interligados de
abastecimento.
*
*
*
Os editores querem ainda deixar público o seu agradecimento a todas as
instituições e pessoas que contribuíram para tornar este conjunto de iniciativas –
19
Jornadas Internacionais de Idade Média, Escola de Outono e publicação desta obra
– um êxito, garantindo ainda, a sua continuidade no tempo. À Câmara Municipal
de Castelo de Vide na pessoa de António Pita, seu Presidente temos a agradecer a
aceitação incondicional das nossas propostas e o modo como criou as condições
humanas e materiais necessárias para a sua concretização. Através da Drª Patrícia
Martins queremos agradecer aos funcionários e funcionárias da Câmara Municipal
de Castelo de Vide, muitos dos quais não se deixam ver durante a Semana Medieval
mas que, nos bastidores, asseguram que os eventos decorram sem falhas e com
o maior profissionalismo. Ao Instituto de Estudos Medievais, na pessoa da sua
Diretora, Profª Maria João Branvco, devemos não só o acolhimento destas iniciativas
desde o primeiro momento mas também o apoio às tarefas de organização e o
financiamento da participação dos oradores convidados e de estudantes da Escola de
Outono. O Marcel L. Paiva do Monte tornou possível com o seu saber, rigor e bom
gosto toda a linha gráfica de divulgação da Semana Medieval bem como a concepção
e paginação deste livro. A Mariana Pereira, recém-chegada à equipa de organização,
agradecemos a sua capacidade de aceitar as tarefas correntes e as inesperadas com a
mesma eficácia.
A quantos participaram na Escola de Outono e nas Jornadas – conferencistas
convidados, comunicantes, estudantes e assistentes – bem como aos revisores
científicos desta obra queremos deixar o nosso obrigado uma vez que a sua
participação empenhada transformou a Escola de Outono e as Jornadas Internacionais
de Idade Média em consolidados pontos de encontro e discussão entre todos os
que se interessam pelo estudo da cidade medieval. E por fim, o nosso obrigada aos
habitantes de Castelo de Vide, pois também é deles o sucesso desta Semana Medieval.
PARTE I
A Intervenção dos Poderes
The Intervention of Powers
Strange Cities on the Waters:
North Adriatic settlements
between 7th–9th centuries AD
Sauro Gelichi1
Abstract
The paper discusses, through archaeological and written sources, the characters
of some cities (or new settlements that aspired to become cities) that arose in the
northern Adriatic arc during the early Middle Ages: one of the characteristics
of these new settlements (such as Venice and Comacchio) is that they arose
in marginal and unsuitable places, such as the lagoons. The paper also wants
to understand what were the reasons that pushed to colonize these lagoons
(first areas of natural resources then points of commercial mediation) and tries
to follow the times of their various life cycles. Finally, it aims to enhance the
concept of marginality as a determining component in creating the ‘fortune’ of
these places.
Keywords
Cities; North-Adriatic; Lagoon; Early Middle Ages.
Strane città sulle acque: gli insediamenti dell’area nord adriatica
tra VII e IX secolo
Riassunto
Questo articolo discute, attraverso la documentazione archeologica e scritta,
i caratteri di alcune città (o nuovi insediamenti che aspirarono a diventare
città) che si svilupparono dell’arco nord adriatico durante l’alto medioevo: una
delle caratteristiche di questi nuovi insediamenti (come Venezia e Comacchio)
1
University of Ca’ Foscari, Venice.
24
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
è quello di essere sorti in luoghi marginali e non particolarmente idonei,
come le lagune. L’articolo vuole anche comprendere le ragioni che spinsero a
colonizzare questi spazi (in un primo momento aree di risorse naturali, poi
snodi commerciali) e tentare di seguire nel tempo i loro diversi “cicli di vita”.
Infine, esso intende valorizzare il concetto di marginalità come componente
determinante nel favorire la ‘fortuna’ di questi luoghi.
Parole chiave
Città; Adriatico del Nord; Lagune; Alto Medio Evo.
1. Why Colonize a lagoon.
A lagoon is not an easy place to colonize. While it does have a few advantages (e.g.,
in terms of security), it also presents several drawbacks. The need to build on firm
ground requires a continuous monitoring of the dry land. Moreover, although
lagoons consist almost exclusively of water, drinking water is not always available:
this has indeed always been a problem for the Venice area, lacking as it is in natural
freshwater springs. Finally, food supply too can be quite a challenge if one wishes to
avoid relying entirely on external sources.
And yet, despite these objective difficulties, as many as two coastal saline
lagoons in the Northern Italy – Venice and Comacchio – were colonized in the
early Middle Ages2. Not only were they colonized, but they also gave birth to two
communities that developed into considerably populated and, later, institutionally
prominent settlements. One of them was to become Venice, a city built on the water.
Asking why as well as how it all came to be is therefore a highly promising project
for archaeology.
2
About Venice, on the archaeological point of view: GELICHI, Sauro – “La storia di una nuova città
attraverso l’archeologia: Venezia nell’alto medioevo”. In WEST-HARLING, Veronica (ed.) – Three Empires,
three Cities: Identity, Material Culture and Legitimacy in Venice, Ravenna and Rome, 750-1000. Turnhout:
Brepols 2015, pp. 51–98; GELICHI, Sauro – “Venice in the Early Middle Ages. The material structures and
society of the “civitas apud rivoaltum” between the 9th and 10th centuries”. In C. LA ROCCA, Cristina;
MAJOCCHI, Piero (eds.) – Urban Identities in Northern Italy (800-1100 ca.). Turnhout: Brepols, 2015, pp.
251-271; GELICHI, Sauro; FERRI, Margherita; MOINE, Cecilia – “Venezia e la sua laguna tra IX e X secolo:
strutture materiali, insediamenti, economie”. In GASPARRI, Stefano; GELICHI, Sauro (eds) – I tempi del
consolidamento. Venezia, l’Adriatico e l’entroterra tra IX e X secolo. Turnhout: Brepols, 2017, pp. 79-128. About
Comacchio: GELICHI, Sauro et alii – “The history of a forgotten town: Comacchio and its archaeology”.
In GELICHI, Sauro; HODGES, Richard (eds.) – From one sea to another. Trading places in the Europe and
Mediterranean Early Middle Ages. Turnhout: Brepols, 2012, pp. 169-205; GELICHI, Sauro – “Comacchio:
A Liminal Community in a Nodal point during the Early Middle Ages”. In GELICHI, Sauro, GASPARRI,
Stefano (eds.) – Venice and Its Neighbors from the 8th to 11th Century. Through Renovation and Continuity.
Leiden: Brill, 2018, pp. 142-167.
STR ANGE CITIES ON THE WATERS: NORTH ADRIATIC SETTLEMENTS...
25
2. When and why. The North Adriatic sea during the 8th and 9th centuries (Fig. 1)
Fig.1 – Location of the main cities and settlements mentioned in the text
(Laboratorio di Archeologia Medievale, University of Ca’ Foscari, Venice).
During the Early Middle Ages, the entire northern Adriatic arc appears to have
been affected by a very marked phenomenon: the movement of cities. This was a
clearly distinctive sign compared to that recorded throughout the rest of the north
of the peninsula, where the ancient cities were either abandoned or they survived,
26
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
yet no new cities were founded. Instead, in the northern Adriatic arc, new urban
settlements were established; or, in any case, settlements developed which aspired
to become cities or, at least which markedly reflected the urban model. The other
peculiarity is that these centres developed especially along the coast and in locations,
such as lagoons or river estuaries,that were used rather infrequently in the ancient
world as a location in which to establish cities, although there are some exceptions,
such as Ravenna and Altinum.
There are various issues that may lead to providing an explanation for this
phenomenon, yet generally these are summarised by the need of the local population
to defend and protect themselves from their enemies: we seem to be faced with
the migration of entire populations originating from the mainland areas towards
the safer lagoon areas. Security was the main reason, but security is not always a
permanent status.
Such narratives basically derive from historical-narrative texts, of more or less
recent origin and writing. These are complex texts, that normally tend to simplify
complex social, political and economic phenomena. Moreover, these refer to
paradigms of an ancient mythographic nature, such as that relating to migrations.
Such paradigms are used in order to explain – definitely in retrospect – a new state
of affairs: in short, to report historical processes in a well-known, legendary and, as
such, reassuring context. Thus, they are functional in order to establish new identities
of populations, drawing on historic episodes that have more value for the present, in
which they were elaborated, than for the past to which they were attributed.
The traditional explanations would have produced new narratives about the
settlements. In the lagoon area direct descendants of ancient cities situated on the
mainland (in decline or abandoned) will be: Grado for Aquileia, Cittanova or Equilo
for Oderzo, Torcello for Altinum, and Metamauco for Padua. The reasons for this
‘construction’ are rather clear and can be easily identified in the future history,
especially of Venice, that needed to re-create its own past, the moment in which the
new city took on a decisive, pre-eminent political and economic role; and the text
that aided the construction of these narratives is the Istoria Veneticorum, written
most likely by a certain Giovanni Diacono towards the beginning of the eleventh
century3.
In fact, by examining the narratives in detail, focusing on the individual areas
and, when possible, integrating them with archaeological data, we realise that these
describe quite a variety of situations which are necessary to bear in mind if one
wishes to critically analyse what we can define as ‘traditional explanations’.
3
GIOVANNI DIACONO – Historia Veneticorum. Ed. L. A. Berto. Fonti per la Storia dell’Italia
Medievale. Bologna: Zanichelli, 1999.
STR ANGE CITIES ON THE WATERS: NORTH ADRIATIC SETTLEMENTS...
27
3. Old and new towns: the vocabulary of the written sources.
We still know very little of the Roman cities situated along the coast – or in
neighbouring areas – belonging to the ancient Regio X Venetia et Histria, which were
either abandoned or presumed to be in decline: like ancient Adria, Este (Ateste),
Oderzo or Padova (Padua).
We’ve more archaeological data about the Roman city of Altinum, because was
abandoned. However, the later historical phases of the city (sixt, seventh, eight c.
AD) remain little known4.
Basically, with the exception of Altinum, none of the ancient Roman cities
founded near the Venetian Lagoon, or slightly further south, disappear completely,
rather these continue being inhabited towns, also of a significant nature, during the
Middle Ages and up to the present day. The overall picture that emerges from this
appears therefore to agree with ‘traditional explanations’: but is this really the case?
These written sources make of vocabulary relating to inhabited areas is
particularly significant for this study. With regards to our areas, it would be sufficient
to consult a text that has already been cited, the Istoria Veneticorum, in order to
demonstrate this: the same locations are defined in a different way depending on
the passage in which they are mentioned. There are several reading options available
in order to explain these differences: a different origin of passages taken from the
Istoria, different political-social circumstances in which the same places would have
been mentioned, perhaps also a different overall intention to treat the role played by
these locations on a hierarchical basis5. In any case, such a situation calls for overall
reflection and advises caution, especially as concerns terms such as civitas and
castrum, that, in this period, no longer represent material and institutional entities
that can be compared with those that existed in the ancient world.
Currently, archaeology does not seem to have been used in the best possible
way. It is necessary to admit that the profound changes in the components of
‘material culture’ make these interpretative options easier. The antinomy of masonry
structures vs wooden buildings for housing purposes gives us the idea of complexity
4
About Altinum during the Late Antiquity: CALAON, Diego – Altino (VE) – “Strumenti diagnostici
(GIS e DTM) per l’analisi delle fasi tardoantiche ed altomedievali”. In ZACCARIA RUGGIU, Annapaola
(a cura di) – Le missioni archeologiche dell’Università di Venezia. 5 Giornata di Studio, Venezia: Università
Ca’ Foscari, 2006, pp. 143-158; TIRELLI, Margherita; POSSENTI, Elisa – “Sepolture e ritualità funeraria in
Altino tardoantica”. In RINALDI, Federica; VIGONI, Alberto (a cura di) – Le sepolture nella media e tarda
età imperiale (III-IV secolo D. C.) a Iulia Concordia e nell’arco altoadriatico. Organizzazione spaziale, aspetti
monumentali e strutture sociali. Rubano (PD): Fondazione Colluto, 2015, pp. 245-261.
5
About this subject BERTO, Luigi Andrea – Il vocabolario politico e sociale della “Istoria Veneticorum”
di Giovanni diacono. Padova: Il Poligrafo, 2001; see also GELICHI, Sauro – “Flourishing places in NorthEastern Italy: towns and emporia between late antiquity and the Carolingian Age”. In HENNING, Joachim
(ed.) – Post Roman Towns, Trade and Settlement in Europe and Byzantium, vol. 1. The Heir of the Roman West.
Berlin-New York: De Gruyter, 2007, pp. 77-104.
28
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
vs poverty and simplification. In this context the phenomenon of urbanism, a
conceptual category and a material entity that transitions from the Early Middle Ages
to the present day, is read in this perspective. The impression is that of archaeology
as unable to fill in the gaps or to correct the distortions in historical narratives. The
problem is that the settlement stages during the Early Middle Ages require different
archaeological methods and approaches, not only of an instrumental kind, but also
of a conceptual nature. An interesting theoretical concept could be to consider the
history of the cities not in a biological sense (birth, growth and death = foundation,
life, decline), yet as spaces where various lifecycles alternate.
A suitable area in which new conceptual and methodological approaches
can be experimented with in order to create a different quality of archaeological
record, as well as a different type of narrative, can be represented precisely by what
we are currently dealing with here; where new cities are established, or better still,
where there are places aspiring to become cities, regardless of the fact of whether
they actually do become one or not. I will take two examples into account: the first,
extremely famous, regarding a ‘successful’ site, or rather Venice, the second one the
case of Comacchio.
4. Life cycles and settlements: the case of the Venetian Lagoon.
In Roman times, the lagoon was neither mainland nor was it densely inhabited (or
permanently inhabited), as has been imagined by some scholar6. This does not mean
that it had never been frequented, or exploited, but no permanent settlement of any
sort is known prior to the Late Antique period.
The analysis of the Venetian Lagoon ecosystem has shown how its environmental
conditions changed between the fifth and the sixth centuries, in an interesting
coincidence with the initial processes of settlement that we can deem as being of
a permanent nature, meaning buildings with structures partly in masonry, the
topographical organisation of spaces, the preparation of waterfronts, reclamations
and backfills. At that time, a worsening of the climate would have caused a strong sea
ingression, and this could have also contributed to a more intensive exploitation in
the production of salt.
However, these environmental changes could have affected the development of
the settlement in another way. The nearby city of Altinum underwent a progressive
process of transformation from the late imperial period. The port functions of the
city were slowly delegated to other locations, situated in the Lagoon, some of which
have been archaeologically surveyed, such as Torcello, San Lorenzo di Ammiana,
6
1983.
In particular DORIGO, Wladimiro – Venezia Origini. Fondamenti Ipotesi Metodi. Milano: Electa,
STR ANGE CITIES ON THE WATERS: NORTH ADRIATIC SETTLEMENTS...
29
San Francesco del Deserto (St. Francis in the Desert)7. Such settlements had to fulfil
a commercial and itinerary function.
From an archaeological point of view, this process is linked to two types of
data. The first is the presence of permanent forms of occupation, characterised
by buildings of a residential nature and of good quality, in relation to wooden
warehouses and waterfronts (such as those found in San Francesco del Deserto),
that bear witness to the constant interest in preserving the inhabitable and usable
area. The second archaeological data consists of a substantial quantity of imported
products, such as pottery and amphoras, of Mediterranean origin, numerically not
to scale when compared to the density of the lagoon settlement and above all, to
what we could define as its key social factor8. A letter by Cassiodorus (6th c. AD)
(Cassiodorus, Variae, XII 24) tells us that the lagoon played an important role in
maritime communications, by constituting a transit point in transporting Istrian oil,
wheat and wine towards Ravenna, the new capital of the empire (and subsequently of
the Ostrogothic Kingdom). In this period, the entire north lagoon, seemed anything
but in crisis.
The next step must be to acknowledge a process in the selection and
concentration of the settlements. This process is currently rather evident, always in
the north lagoon area, in certain settlements that were abandoned, or re-converted
into funerary areas such as San Lorenzo di Ammiana, between the sixth and the
seventh centuries. Thus, between the sixth and the seventh centuries, the progressive
loss, by the Altinum district, of its urban functions conversely produces the birth
and the development of the residential area: residential area which later became
the emporium, of Torcello and, in the middle of the lagoon, of that of Olivolo.
Significantly, both in the first case, Torcello in the seventh century, and in the second,
Olivolo in the eighth century, these cities became episcopal sees.
In short, up to the eighth century, the Venetian Lagoon appeared to be at the
centre of a pluri-focal process, at least in terms of settlements. This multitude of
settlements obtained visibility especially in the political formations that they took
on or that, subsequently, they were attributed. Basically, places qualified by either the
presence of the bishop emerged; first Torcello, then Olivolo Cittanova, Metamauco,
7
About the movement of the settlements in the Venetian lagoon area see GELICHI, Sauro; MOINE,
Cecilia (eds.) – “Isole fortunate? La storia della laguna nord di Venezia attraverso lo scavo di San Lorenzo di
Ammiana”. Archeologia Medievale XXXIX (2012), pp. 9-56.
8
In particular see the variety and quantity of imported pottery: GRANDI, Elena – “Ceramiche fini
da mensa dalla laguna veneziana. I contesti di San Francesco del Deserto e Torcello”. In GELICHI, Sauro;
NEGRELLI, Claudio (a cura di) – La circolazione delle ceramiche nell’Adriatico tra Tarda Antichità ed
Altomedioevo. III Incontro di Studio Cer.am.Is. Mantova: SAP, 2007, pp. 127-153. On the anphoras: TONIOLO,
Alessandra – “Anfore dall’area lagunare”. In GELICHI, Sauro; NEGRELLI, Claudio (a cura di) – La circolazione
delle ceramiche nell’Adriatico tra Tarda Antichità ed Altomedioevo. III Incontro di Studio Cer.am.Is. Mantova:
SAP, 2007, pp. 91-106.
30
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
and finally Equilo; or by that of a position that was to take on a political role and
meaning, especially at a later stage, that of a ducal nature. It is very likely that this
situation reflected tensions, conflicts and competition among the members of the
aristocracy that were slowly freeing themselves from imperial power. The transfer of
the palatium from Cittanova, initially to Metamauco, and then to Rialto – and with
it also the ducal power –, as is described in the historic-narrative sources, can be
explained both following this logic and in this context.
Among all the places in the Venetian Lagoon, the islands of the Rialto
archipelago play an extremely significant role. A recent reconstruction of the paleoenvironmental picture gives us a very useful starting point.
In Roman times (and Late Antiquity), the lagoon was slightly different compared
to the period immediately afterwards. The most interesting fact is that the ancient
coastal cords coincide, more or less, with those of today; and above all that the port
mouths coincide, i.e. the accesses to the lagoon from the sea. The proximity between
these latter and the easternmost islets of the Rialto archipelago help us to explain the
reason for the colonisation of the island of Olivolo that seems to constitute, given
the current state of our knowledge, the most ancient and significant settlement of
the entire complex. Excavations carried out between the end of the 1980s and the
early 1990s have brought to light the ruins of a commercial headquarters that was
operational between the fifth and the sixth centuries, perhaps directly linked with
Byzantine power, as the three seals and the golden coin discovered inside a residential
complex appear to imply9. Such hypothesis is in line with the same position of the
site in Olivolo, at the far end of the Rialto archipelago and in close proximity to the
port inlets, a protected area yet, at the same time, near to the accesses to the Adriatic
Sea, therefore, an ideal area for the Byzantine fleet to be stationed.
Viewed in this context, the choice to transfer the youthful ducal power –
or simply the centre of power – to the Rialto archipelago, even if slightly more
inland when compared to Olivolo, can be best explained. The choice of Rialto, is
explained by its centrality, not only in the lagoon, but also by its communications
with the outside world. Moreover, here the fleet, first Byzantine, then of a ducal
nature could well have found its logical ragion d’être. The willingness, I would also
add the necessity, to colonise this specific archipelago, is reflected very well also in
the proven reclamation activities. These appear not only as a constant presence in
urban archaeological research, but they also can be seen with extreme clarity if one
places the map of the lands that have naturally emerged, on top of the location of
9
TUZZATO, Stefano – “Venezia. Gli scavi a San Pietro di Castello (Olivolo). Nota preliminare sulle
campagne 1986-1989”. Quaderni di Archeologia del Veneto 7 (1991), pp. 92-103; TUZZATO, Stefano; FAVERO,
Vito; VINALS, Maria Jose – “San Pietro di Castello a Venezia. Nota preliminare dopo la campagna 1992”.
Quaderni di Archeologia del Veneto 9 (1993), pp. 72-80.
STR ANGE CITIES ON THE WATERS: NORTH ADRIATIC SETTLEMENTS...
31
the ecclesiastical foundations, namely churches and monasteries. Their imperfect
matching is a clear indication of the efforts that the nascent Venetian community
made so as to occupy as much land as possible, as we are reminded once again, by
the main source for this period, the Istoria Veneticorum.
5. A settlement in a grey zone: Comacchio.
I will start with a brief introduction to Comacchio10. In the written sources
Comacchio is famous for being at the centre of a treaty drawn up between the
Lombards and the inhabitants of the site in question in relation to trading activities
that occurred along the Po and its tributaries. This treaty is the first historical text
referencing Comacchio and it dates to 715 (or to 730). A number of references about
Comacchio are then in the Historia Veneticorum attributed to John the Deacon. In
875, the settlement would have been damaged by an attack from the Saracens, who
had previously attempted to conquer Grado. The Saracens, who had been put to
flight by a fleet of Venetics, had bent towards Comacchio, sacking it. But another war
episode seems to have been even more terrible and definitive. In 932, the Venetian
duke, Peter II Candiano, send an army against the Comaclenses, to respond to an
insult. This time, the use of weapons seems really decree the end of the settlement.
According the Historia Veneticorum, Comacchio was burned and its inhabitants
deported to Venice.
The archaeological excavations, conducted between 2007 and 2009 in two
areas of the historical town (around the cathedral and within the zone of Villaggio
San Francesco) have brought to light a sequence that spans the time periods over
which the settlement developed (it started in the second half of the 6th century,
progressed towards the 7th century and consolidated in the 8th century)11. They have
also revealed its economic and social characteristics and, above all, they confirm that
the settlement had been an important trading centre. These excavations have also
directly confirmed Comacchio as an episcopal see over the course of the 8th century,
and they provide evidence of a crisis having occurred towards the 10th century,
represented by the destruction and reconstruction of the Episcopal church and by
the abandonment of the area of Villaggio San Francesco (according to the written
sources). This area (now outside the historical town centre) has been very important
during the early middle age because the presence of port structures and warehouses;
and, above all, because it was in an interconnection point between the waterways
and the sea communications. Comacchio remains a bishopric, but the economic
10
The bibliography on Comacchio is enormous. However, in relation to the most recent archaeological
research and its results see note 1.
11
GELICHI, Sauro et alii – “The history of a forgotten town…”, pp. 169-205.
32
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
situation changed radically. Archaeological excavations have shown that there are no
import pottery or amphorae in the layers back to the 10th century onwards.
In the debate about Comacchio (and, in some respects, about Venice), the
term emporium is brought up; a word infrequently used in relation to the Early
Medieval Period (and, of consequence, in our historiography). Conversely, and as is
well known, emporium is commonly used in relation to discussions about northern
Europe, where it is used to define a series of trading settlements that, in many cases,
would have formed the grounds for the origin of the urbanization in these territories.
A comparison between the emporia of northern Europe and these settlements
appearing near the littoral areas of the Mediterranean has been proposed, not only
to identify possible typological similarities (albeit on rather dangerous grounds), but
also in order to help contextualise a phenomenon that has been largely within the
scientific debate until now. There are a number of similarities, including temporal
overlapping, between the phenomena of the emporia of northern Europe and the
birth of these new settlements on the North Adriatic Sea that are worth highlighting.
Furthermore, there are many similarities between Comacchio and the class
B emporia originally proposed by Richard Hodges (some of them are mentioned
above): the fact that it developed in a previously unsettled area (or that it did not
evolve directly from an ancient city); the fact that it was mainly based on trade,
including long-distance trade; the fact that it was a place where crafts activities
developed; finally, the fact that it was not directly established by the central power,
and that, in the initial stage at least, it had no direct link with ecclesiastical power.
But was Comacchio also at that heart of dependant territory? Did it exercise the
functions that we usually assign to a central place?
In a recent article Soren Sindbæk re-examined central places, organizing them
according to a hierarchy of basic concepts (such as open access and nodal points)
characterizing coastal settlements12. This approach appears to be equally applicable
in explaining the existence of a centre like Comacchio (and, why not?, Venice). In
an initial phase at least, Comacchio seemed to fall into the category of nodal points:
favourable position for trade routes protected by a lagoon, thus offering safe landing
places and berths for ships; arrival and nodal point for international goods; absence
of a strong power. At the same time, until the first quarter of the 8th century at least,
Comacchio does not seem to have controlled a territorial district or to have carried
out a specific function of redistribution of goods in its immediate hinterland given
that its trading sphere covered the entire Po plain. It was only during a subsequent
phase (from the second quarter of the 8th century at least) that the presence of a
12
SINDBAEK, Søren – “Open access, nodal points, and central places. Maritime communication and
locational principles for coastal sites in South Scandinavia, c. AD 400-1200”. Estonian Journal of Archaeology
13, 2 (2009), pp. 96-109.
STR ANGE CITIES ON THE WATERS: NORTH ADRIATIC SETTLEMENTS...
33
bishop (directly appointed by the archdiocese of Ravenna) would introduce a figure
of institutional rank and with a high political profile playing a key role in the centuries
to come. It is in this period moreover that the few surviving documents testify to the
existence of a landowning aristocracy. Comacchio, therefore, seems to be evolving
towards functions causing it to resemble a central place, while at the same time
maintaining the prerogatives of a place for the long-distance redistribution of goods,
also because in this circumstance “long-distance transport can be understood as a
simply extension of the central place function.”
Comacchio’s decline after the 9th century would not only lead to the collapse
of a maritime trading link, but would also constrain its community within an
increasingly lifeless dimension of localism. Comacchio had not time to elaborate its
mythography like Venice, so we don’t know almost anything about its previous past
through narratives.
6. Why strange cities?
The cases we have presented are different (in the times, in the ways, above all in the
outcomes), but they also have different points in common, as we have seen. I would
like to highlight the ones that seem most interesting to me. McCormick writes that
Venice was not founded by a king13 and the same we could say about Comacchio.
Both settlements arise in marginal spaces, and most probably owe their fortune to
arise in marginal spaces. In a different way, the Comacchio and Venetic aristocracies
were able to free themselves from the neighboring strong powers: Longobards,
Byzantines and then Franks. For example, Comacchio is not an extension of a great
city, like Ravenna: Comacchio is not the port of Ravenna. These centers owed their
fortune to being raised in a “grey zone”.
Another aspect that should not be underestimated is the ability to move in a new
economic space. The private dimension of this space is not absolutely determinable
(even if the contemporary sources speak of the existence of mercatores), but
unquestionably Comacchiesi (before) and Venetic (then) were able to exploit their
geographical position in an economic opportunity. Both areas had been producing
goods deriving from the specific resources of those territories (salt and fishing), but
it was not only salt and fishing that decreed its fortune. Both became nodal points,
junctions and connections between the Adriatic sea and the interior. The fortunes
of Comacchio are probably due to the role played by the economy of the Lombard
kingdom; those of Venice, to relations that it was able to establish with the Franks.
In terms of settlement, Comacchio and Venice are two new cities, built in a
13
McCORMICK, Michael – “Where do trading towns come from? Early medieval Venice and the
northern emporia”. In HENNING, Joachim (ed.) – Post Roman Towns…., p. 44.
34
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
very special environment. But they had very little of the ancient cities, not only
because they were not originated from ancient cities, but because they were not even
the result of a planned action, as instead seems to be the case with Leopoli, founded
by Pope Leo IV in Lazio in the 854. Although they did not have much of the ancient
cities, they continued to have, as a model, the ancient city. More than for Comacchio
(which did not have its own narrator), this is evident for Venice, where the Istoria
Veneticorum is able to indicate this passage very well. Not only because it is explicitly
explained (“Circa hec vero tempora domnus Petrus dux cum suis civitatem aput
Rivoaltum edificare cepit”: Istoria Veneticorum II, 39), but also because the text
refers to some qualifying “aspects” of ancient cities, such as the presence of the city
walls. In any case, it is the whole of the Istoria Veneticorum a creative document of
an urban identity. Venice (and also Comacchio) were abnormal cities that wanted
to look normal.
The short history of Comacchio does not allow us to appreciate its evolution
well. In the 9th century, the Adriatic emporium was put out of action by the more
aggressive and better equipped neighbors of Venice. Something more we know
about Venice, even if archaeology has to tell us much more than we know. The fact is
that, even in the tenth century, much of the city had to be made of wood, except for
churches, monasteries and the ducal palace. Fires particularly devastating between
the 11th and 12th centuries canceled many of the ancient traces: the city was now
ready. After the Fourth Crusade (1198-1204) Venice had become a maritime power,
and ruled over large parts of the Adriatic, up to Constantinople. From here will
come the marbles that will adorn the new churches, the new monasteries and, now,
even the new brick houses: now finally the city could show its new sparkling face,
what we are still able to appreciate.
STR ANGE CITIES ON THE WATERS: NORTH ADRIATIC SETTLEMENTS...
35
36
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Alguns problemas em torno
de uma transição urbana no Sudoeste
da Península Ibérica (séculos XI-XII)
Hermenegildo Fernandes1
Resumo
No quadro cronológico da segunda transição na Península Ibérica, discutirei
como as redes urbanas do sudoeste da Península Ibérica suportaram (e
conseguiram sobreviver) à crescente militarização do território e da estrutura
social durante os períodos almorávida e almóada e, finalmente, a conquista
cristã. A primeira questão a ser considerada é o crescimento constante a partir
do século X, revelado pela arqueologia urbana recente, que deve ser interpretado
como um sinal de uma recuperação económica precoce na Península Ibérica.
O equivalente no domínio social e político a esse crescimento, como mostram,
por exemplo, os dicionários biográficos, é um sistema social de base urbana,
ainda ligado a famílias de origem árabe, mas agora muito mais vertical do
que tribal. O regime dos muluk at-tawa’if, principalmente no Gharb, deve ser
visto como resultado desse crescimento urbano e da capacidade de promover
a autonomia local ou regional. A conquista almorávida absorverá essa rede
social e territorial sem colocá-la em risco e vai até mesmo depender dela para
controlar uma parte do império (o sudoeste ibérico) que se está tornando mais
estratégica, protagonismo que se acentuará durante o período almóada. A crise
do sistema durante este período deve, portanto, ser vista menos como resultado
da dissidência entre os governantes berberes e a população urbana andaluza, do
que como uma combinação de agitação social interna e ampla militarização do
território e da sociedade. A transformação da rede urbana numa sociedade de
fronteira parece potenciar fracturas sociais, problemas de abastecimento e, em
alguns casos, crises graves que produzem o abandono do sítio. Este ambiente,
argumentarei, não mudará, no seu todo, de forma duradoura após a conquista
1
CH, Universidade de Lisboa.
38
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
portuguesa do baixo vale do Tejo em meados do século XII e permanecerá até
à massiva reorganização territorial de Afonso III no terceiro quartel do século
XIII. As principais transformações no urbanismo que marcam a transição
urbana estudada por L. Trindade e M. Fialho também são principalmente desse
período.
Palavras-chave
Transições; Redes urbanas; Militarização; Gharb al-Andalus.
Some problems about urban transitions in 12th and13th centuries
Iberia
Abstract
In the chronological framework of the second transition in Iberia, I will discuss
how southwest Iberia urban networks endured (and managed to survive)
growing militarization of territory and social structure during almoravid and
almohad rule and, finally, christian conquest. The first issue to be considered
is the steady growth from the 10th century onwards revealed by recent urban
archaeology, which should be interpreted as a sign of an early economic
recovery in Iberia. The social and political counterpart, as shown for example
by biographical dictionaries, is an urban based social system, still connected
to Arab origin hassa families but now much more vertical than tribal. The
muluk at-tawa’if regime, mainly in Gharb, should be seen both as a result of
urban growth and the ability to promote local or regional autonomy. Almoravid
conquest will absorb this social and territorial network without putting it
into jeopardy and even depending on it to control a part of the empire (the
Iberian southwest) which is becoming more strategic, and will become more
so during the Almohad period. Crisis in the system during this period must
thus be seen less as a result of dissidence between berber rulers and andalusian
urban population, than as a combination of internal social unrest and extensive
militarization of territory and society. Complete transformation of the urban
network into a frontier society seems to enhance social fractures, problems
of supplies and in some cases severe crisis that produces abandonment of the
site. This environment, I will argue, will not, in the whole, change durably after
Portuguese conquest of lower Tagus valley in the mid 12th century and will
stand until Afonso III’s massive territorial reorganization in the third quarter
ALGUNS PROBLEMAS EM TORNO DE UMA TR ANSIÇÃO URBANA [...]
39
of the 13th century. The major transformation in urbanism that marks urban
transition studied by L. Trindade and M. Fialho are also mostly from this
period.
Keywords
Transitions; Urban Networks; Militarization; Gharb al-Andalus.
I
É ponto consensual entre os historiadores, removida a concepção romântica que via
nas cidades do sul de Portugal um testemunho vivo do “urbanismo islâmico”, que a
conquista cristã promoveu por toda a parte no al-Andalus, o Gharb não sendo aqui
excepção, uma renovação urbanística profunda. Essa mudança será particularmente
visível no caso do parcelário, em resultado da substituição do modelo da casa
pátio e de uma planta orgânica voltada para o interior e formando aglomerados
que expressam materialmente potenciais relações de parentela (ex. da casa XVI de
Mértola)2, por um modelo de loteamento “gótico”3, organizando perpendicularmente
às vias parcelas compridas e estreitas que forçam o estilhaçamento do parcelário
islâmico, com consequências no sistema viário. Às diferenças nas formas de habitar,
somam-se ainda opções diversas do ponto de vista político e religioso, observáveis
por exemplo nas reconfigurações dos bairros da alcáçova de Mértola, ou de Lisboa,
ocupados num caso por um cemitério, e no outro, pelo menos em parte, pelo paço
do bispo. Numa e noutra situação a descontinuidade é marcada pela demolição dos
anteriores bairros.
Embora seja de admitir que essa descontinuidade foi mais profunda em algumas
zonas do al-Andalus do que noutras, registando-se exemplos de persistência da casa
pátio na arquitectura diferenciada das zonas de conquista do reino de Castela, não
restam dúvidas de que a transição nos territórios incorporados na coroa portuguesa
foi rápida e extensiva4. Por estas razões, e também pela radical substituição de elites
2
PALMA, Maria de Fátima − “Configurações singulares do urbanismo da Casa XVI do Bairro Islâmico
da Alcáçova do Castelo de Mértola”. In VII Encuentro de Arqueología del Suroeste Peninsular. Arroche:
Ayuntamento de Arroche, 2015, pp. 1081-1095.
3
TRINDADE, Luísa − Urbanismo na Composição de Portugal. Coimbra: Imprensa da Universidade,
2013.
4
Cite-se a este respeito a relativamente rápida demolição do bairro da Alcáçova de Lisboa após a
conquista cristã, entre os reinados de Afonso Henriques e o de Sancho I. GOMES, Ana; SEQUEIRA, Maria
José − “Continuidades e descontinuidades na arquitectura doméstica do período islâmico e após a conquista
da cidade de Lisboa: Escavações arqueológicas na Fundação Ricardo Espírito Santo Silva”. Arqueologia
Medieval 7 (2001), pp. 103-110.
40
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
urbanas, pelo movimento de mudança da posse da terra e pelo desmoronamento,
ao menos aparente, do sistema institucional, o período subsequente à conquista
cristã, de resto de cronologia muito variável, tem sido associado, com razão, a uma
transição urbana tão importante como aquela que, a partir do século VII ou VIII
ditou o fim da cidade antiga.
Esta visão tem o atrativo de ser verdadeira ainda que o seja apenas em parte. Em
primeiro lugar porque, como tentarei provar noutro lado5, os indícios inequívocos de
uma transformação da forma urbana não são acompanhados, à mesma velocidade,
por idênticos sinais de ruptura institucional, sendo muitas, as soluções de governo e
regulação encontradas, citações com semântica reconstruída ou reinterpretações das
formas de governo urbano como praticadas no al-Andalus. No Sharq, em Valência ou
em Múrcia, zonas de conquista respectivamente das coroas aragonesa e castelhana, já
se sabe isto há bastante tempo, muito por culpa dos sistemas de governo da água que
regulam a economia regional em que a feudalização da exploração é montada em cima
do sistema pré-existente6. Já para a área de conquista portuguesa o hibridismo das
estruturas da sociedade que nasce da conquista cristã tem sido menos considerado.
Em segundo lugar porque – e é deste porque que aqui me ocuparei – o peso
simbólico e material da conquista cristã, sobretudo por ter durado, obscurece
anteriores transformações na rede urbana, deixando sempre marcada a oposição
entre o antes e o depois. Esse ponto de observação, creio, tem impacto directo
quer sobre a interpretação dos textos quer sobre a do registo arqueológico e, pela
nitidez de limites que propõe, contribui para escurecer mais do que para iluminar
a complexa realidade de um período, que, no caso do território português, não está
sempre servido pela abundância das fontes diplomáticas. A essa delimitação precisa
preferiria sempre, porque muito mais próxima da realidade, a procura simultânea
dos cortes e das hibridações, do que muda, do que vai mudando e do que fica. A
mesma coisa aliás se pode aplicar ao período do antes da conquista cristã na maior
parte dos sítios. E é sobre esse período de aproximadamente século e meio, o que
medeia entre as vésperas da conquista das cidades do vale do Tejo (a primeira metade
de Undecentos) e a das do vale do Guadiana (até aos meados de Duzentos) que aqui
me proponho reflectir do ponto de vista do sistema urbano. O objectivo é o de testar
a aplicabilidade do conceito de transição, isto é, tentar discernir o que muda antes
5
Interessa-me particularmente a reformulação semântica de formas institucionais, quer do ponto de
vista da sua evolução em período islâmico, quer na adopção dessas instituições pelos conquistadores cristãos.
Estudei já o problema em várias comunicações sobre as instituições de mercado (“From Suq to Açougue:
Market and Public Policies from Al-Andalus to Christian Kingdoms”, comunicação apresentada a Money,
Power and Profit. A conference on the economy of medieval Portugal and Europe, Lisboa – Porto, 26-29 Abril
2017, org. CITCEM/IEM) a retomar em breve em livro que ultimo sobre a transição.
6
Cf. os estudos clássicos de GLICK, Thomas F. − Irrigation and Society in Medieval Valencia. Belknap
Press of Harvard University Press, 1970 e BARCELÓ, Miquel; KIRCHNER, Helena; NAVARRO, Carmen − El
Agua que no duerme. Fundamentos de la arqueologia hidráulica andalusí. Granada: El Legado andalusí, 1996
ALGUNS PROBLEMAS EM TORNO DE UMA TR ANSIÇÃO URBANA [...]
41
da mudança política que será a conquista e consequente saída do Dar al-Islam. E
procurar assim antes da transição outra transição7.
II
Partirei de um pressuposto geral sobre a evolução e os ritmos de regressão/
crescimento urbano no al-Andalus que discuto noutro lugar8: a retoma urbana fazse aqui mais precocemente do que no mundo carolíngio e pós-carolíngio, em parte
porque o surto urbano do mundo antigo mostra alguns sinais de continuar até um
período bastante tardio, no limiar do século VII, o exemplo mais evidente sendo a
fundação visigótica de Recópolis9, o que não exclui algumas quebras contemporâneas
(a Ammaia, por exemplo10); em parte porque a conquista arabo-berbere assente, aqui
como no Mediterrâneo oriental, na fórmula urbana, mantém ou mesmo revitaliza
a monetarização da economia e a centralidade do mercado. O robustecimento
da máquina do estado omíada pela proclamação do califado (929) e a criação de
uma sociedade de corte enquanto centro de consumo de luxo, cria condições para
reproduzir na Ibéria um modelo económico análogo ao do oriente abássida, o que
me parece aliás decisivo para a revitalização da economia em todo o Mediterrâneo
ocidental. Isso deve-se em grande medida ao facto de esse processo ter lugar em
contraciclo com a Europa pós-carolíngia que atravessa por então uma fase recessiva
muito acentuada, só se fazendo sentir uma viragem nessa tendência durante o
século XI. A excepção a esta excepcionalidade da Ibéria estará na península itálica
7
Um estado da questão para a evolução urbana no extremo ocidente do Mediterrâneo pode ser encontrado
em CRESSIER, Patrice; GARCÍA-ARENAL, Mercedes (eds.) − Genèse de la ville islamique en al-Andalus et
au Maghreb occidental. Casa de Velásquez, CSIC, 1998; FIERRO, Maribel; STAEVEL, Jean-Pierre Van (eds.) −
L’urbanisme dans l’Occident musulman au Moyen Âge. Aspects juridiques. Madrid: Casa de Velásquez, CSIC,
2000. E ainda: ACIÉN ALMANSA, Manuel – “La formación del tejido urbano en al-Andalus”. In PASSINI, Jean
(coord.) − La casa medieval: de la casa al tejido urbano. Cuenca: Universidad de Castilla-La Mancha, 2001, pp. 1132; NAVARRO PALAZÓN, Julio; JIMÉNEZ CASTILLO, Pedro − Las ciudades de al andalus: nuevas perspectivas.
Zaragoza: Instituto de Estudios Islámicos y del Oriente Próximo, Conocer Alandalús, 2007. Com particular
atenção ao caso do Gharb, GÓMEZ-MARTÍNEZ, Susana – “Las ciudades del Garb al-Andalus”. In Al-Andalus:
un país de ciudades. Actas del Congreso celebrado en Oropesa (Toledo) del 12 al 14 de marzo de 2005. Toledo:
Dip. Prov. De Toledo, 2008; GÓMEZ-MARTÍNEZ, Susana; MACIAS, Santiago; TORRES, Cláudio – “Las
ciudades del Garb al-Andalus”. In Al-Andalus: país de ciudades. Toledo: Diputación Provincial de Toledo,
2007, pp. 115-132. Para o caso português: ANDRADE, Amélia Aguiar; COSTA, Adelaide Millán (eds.) − La
ville medieval en débat. Lisboa: IEM, 2013 e, sobretudo, ANDRADE, Amélia Aguiar − “Medieval portuguese
towns: the difficult affirmation of a historiographical topic”. In MATTOSO, José (dir.) − The historiography of
medieval Portugal, c.1950-2010. Lisboa: IEM, 2011, pp. 283-301.
8
No capítulo 1 da obra colectiva coordenada por Pedro Lains, Iberian Economic History, em publicação
na Cambridge University Press.
9
HENNING, Joachim; MCCORMICK; Michael; ENCISO, Lauro Olmo; RASSMANN, Knut; EYUB,
Eyub Fikrit − “Reccopolis revealed: the first geomagnetic mapping of the early medieval Visigothic royal
town”. Antiquity 93,369 (2019), pp. 735–751. Disponível em https://doi.org/10.15184/aqy.2019.66.
10
PEREIRA, Sérgio − A cidade romana de Ammaia: escavações arqueológicas, 2000-2006. Lisboa:
Colibri, 2009. Aguardam-se os resultados muito promissores das escavações da equipa liderada por Carlos
Fabião e Amílcar Guerra.
42
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
contemporânea 11, em cidades que, como as hispânicas, beneficiam da ligação às redes
de comércio mediterrânico, ocidental, representando aqui o Magrebe um papel que
deverá ser reavaliado, e oriental, com o Rum, a Síria e o Egipto à cabeça. É o caso de
cidades novas, como Veneza, ou antigas revitalizadas, como Pisa ou Palermo.
Um segundo pressuposto prende-se com o reconhecimento de importantes
variações regionais no interior da Ibéria, no que ao comportamento do sistema
urbano diz respeito (e aliás em vários outros sentidos). Dessas diferenças regionais,
uma Ibéria dividida em pelo menos três áreas distintas, têm consciência os próprios
historiógrafos andaluzes do período omíada ou os seus compiladores. Veja-se por
exemplo o Muqtabis (II,2), onde é clara a distinção para o século IX de três zonas de
domínio ou reinos: o dos emires de Córdova, o dos Banu Qasi na marca superior, em
torno de Saragoça, e o reino da Jilliqyia, ou asturiano12. A tentação de sobrepor esta
geografia política e de dominação territorial ao esboço de zonamento económico que
acabei de traçar é inevitável.
Estas variações diferenciam não só o sul islamizado e arabizado do norte cristão,
mas também as duas partes da península no seu interior, o norte asturiano ou pirenaico
apresentando índices de urbanização muito menores que a área mediterrânica da
marca hispânica onde a velha Barcino parece mostrar precocemente poder aguentar
a comparação com as cidades italianas, enquanto na área atlântica, apesar da revisão
em alta que as escavações das últimas décadas talvez autorizem, continuam a dominar
as transações sem mercado de que fala E. Páscua para a “Galiza foral”, o que só por si
chegaria para explicar a anemia comparativa do fenómeno urbano que sobrevive até
bem entrado o século XIII e porventura para além dele. Creio que prova suficiente
disso será o facto de, uma vez conquistado o essencial do al-Andalus, pelos meados
de Duzentos, todas as cidades maiores da coroa de Castela (Toledo, Sevilha, Córdova,
Jaén, Múrcia), várias das da coroa de Aragão (Saragoça, Valência, Maiorca) e quase
todas as da coroa portuguesa (Coimbra, Santarém, Lisboa, Évora) fazerem parte do
sistema urbano andaluz pelo menos até ao meio do século XI, e várias delas até ao
fim do domínio almoáda na península.
Essas diferenças regionais afectam também o próprio al-Andalus, apesar do
verniz de uniformidade garantido pelo acesso generalizado à economia de mercado
e os níveis de monetarização de que o estado cordovês é o garante material,
simbólico e ideológico e que por isso mesmo os seus sucessores regionais do século
11
WICKHAM, Chris − Framing the Early Middle Ages. Europe and the Mediterranean, 400-800.
Oxford: Oxford UP, 2005, pp. 591 e seguintes; e, explorando o caso de três cidades italianas, WEST-HARLING,
Veronica − Identity, Material Culture and Legitimacy in Venice, Ravenna and Rome, 750-1000. Turnhout:
Brepols, 2015.
12
Cf., por exemplo, IBN HAYYAN, Crónica de los emires Alhakam I y ‘Abdarrahman II entre los años
796 y 847 [Almuqtabis II-1]. Tradução de Mahmud ‘Ali Makki e Federico Corriente. Zaragoza: Instituto de
Estudios Islâmicos y del Próximo Oriente, 2001, fl. 188r-188v, pp. 320-321.
ALGUNS PROBLEMAS EM TORNO DE UMA TR ANSIÇÃO URBANA [...]
43
XI irão assegurar e que, talvez paradoxalmente, o domínio dos impérios berberes
construídos sobre as rotas do ouro, vai reforçar durante os séculos XII e XIII. Uma
simples observação do mapa do mapa urbano do al-Andalus reconstruído por
Mazzoli-Guintard a partir das informações do Sharif al-Idrisi, no Kitab Rudjar,
reportando-se aos meados do século XII (a obra é de 1154)13, isto é, ao período que
medeia entre o eclipse almorávida e o total controle almóada que se desenrolará
nas décadas seguintes, mas incorporando algumas informações já anacrónicas (por
exemplo Toledo surge ainda como uma das cidades andaluzas, o que sugere que o
quadro geral será válido para o século XI) mostra essa desigualdade regional14.
Assim, as maiores concentrações urbanas encontram-se no que é hoje a
Andalusia, como expectável, desenhando um sistema estruturado pelo vale do
Guadalquivir e pela cordilheira montanhosa que o separa a sul do Mediterrâneo, que
em grande medida prolonga o da província romana Bética. Aí está a zona da maior
concentração de distritos (9), logo seguida do Sharq (Levante) com cinco. Esse pode
ser aliás um indício relevante, uma vez que apenas os núcleos urbanos com uma
suficiente acumulação de funções centrais aparecem referenciados, testemunhando
o número de cabeças de distritos em cada área não só da densidade populacional
relativa mas também da aglomeração dessa população em cidades e, portanto, da
relevância económica e do peso dos mercados. Nas regiões de marca com o mundo
cristão al-Idrisi regista três distritos em cada uma (na região do Ebro, a Superior, na
de Toledo, a Média, e na da antiga Lusitânia, a Inferior). O modelo é bem conhecido
e corresponde ao da instalação muçulmana na Hispânia (e antes dela ao da romana e
da púnica), produzindo uma organização territorial basculada para oriente e para o
Mediterrâneo e um contraste entre as áreas litorais ou articuladas com o mar através
de vias fluviais e o interior ocupada pelas Tughur que organizam um povoamento
menos denso que faz a articulação com o norte cristão. Mesmo entre os distritos
do Sul ou do Levante, como se sabe, as diferenças são consideráveis em resultado
de ecologias contrastantes que tornam esta última área fortemente dependente do
desenvolvimento e manutenção de sistemas de irrigação que virão a constituir um
traço de ligação entre o al-Andalus e os reinos de reconquista.
O traço que me importa aqui relevar é no entanto outro e prende-se com a
posição no sistema das cidades da marca Inferior, que grosso modo correspondem
às que integravam a província da Lusitânia e que, no século XII constituem a zona de
conquista de facto do reino de Portugal. Num mundo em que as ligações atlânticas
entre o Mediterrâneo e a Europa do norte tinha deixado praticamente de funcionar
13
AL-IDRISI, Description de l’Afrique et de l’Espagne. Edição de Reinhardt Dozy e Michaël de Goeje.
Amsterdam: Oriental Press, 1969.
14
MAZZOLI-GUINTARD, Christine − Ciudades de al-Andalus. España y Portugal en la época
musulmana (siglos VIII-XV). Granada: Ediciones ALMED, 2000, p. 471.
44
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
(a relativa raridade das incursões vikings no al-Andalus e a sua total ausência no
século que medeia entre o emirado de Muhammad e o califado de al-Hakam II são
testemunho disso15) é natural que o Finisterra tenha perdido a relevância que outrora
tivera, tanto nos ricos centros cerealíferos de Emmerita Augusta ou de Pax Iulia quer
nos portos onde se situavam os grandes entrepostos conserveiros. E se essa geografia
está ainda activa aquando da conquista árabe, como o mostram textos com o Fath
al-Andalus16, que dão bem a medida da importância do controle de Mérida e Beja,
o futuro de modelo de ocupação do território pelos omíadas, apesar de algumas
tentativas feitas em finais do século X durante o regime amirida, mostra senão o
desinteresse, pelo menos um desinvestimento do poder central de Córdova na região
do extremo ocidente. Desinvestimento que só será realmente contrariado durante o
período almoáda com resultados variáveis, mas tão duráveis quanto o regime.
Ora o questionário que me interessaria seguir aqui é precisamente o do impacto
dessa variação regional interna ao al-Andalus no sistema urbano do Gharb.
III
Começaria por interrogar a escala das cidades em medida relativa, como forma
de aferir do seu peso no sistema global do al-Andalus. Mais uma vez recorrerei à
sistemática do cálculo das áreas urbanas feita por Mazzoli-Guintard já no século
passado17 e que por isso mesmo carece de actualizações pontuais em grande medida
resultantes dos dados novos trazidos pela arqueologia ou por novas investigações
documentais resultantes da utilização de fontes cristãs. No caso português, em que
o conhecimento arqueológico das cidades islâmicas deu, nos últimos vinte anos um
salto assinalável18, a calibração desses resultados é ainda mais necessária.
Há pelo menos três formas de aferir essa posição relativa: a primeira, o
cálculo da área dos perímetros urbanos, facilitado pela sobrevivência de muitos
dos redutos defensivos, alguns de origem romana, todos reutilizados em contexto
cristão, mantendo-se pelo menos até ao século XIV como estruturas funcionais; a
segunda, um indício que mede o nível de islamização mas que pode servir para aferir
o peso relativo de cada madina, num universo social progressivamente dominado
pelas elites escrituralísticas, o do número de ulemah associados a cada madina pelos
15
PIRES, Hélio − Os Vikings em Portugal e na Galiza. As incursões nórdicas medievais no ocidente
Ibérico. Lisboa: Zéfiro, 2017. FERNANDES, Hermenegildo − “Os Madjus através do espelho: algumas glosas
em torno da incursão de 844”. In BARROCA, Mário Jorge; SILVA, Armando Coelho Ferreira da (coords.) −
Mil anos da Incursão Normanda ao Castelo de Vermoim. Porto: CITCEM, 2018, pp. 87-110
16
La conquista de al-Andalus [Fath al-Andalus], trad. Mayté Penelas. Madrid: CSIC, 2002.
17
MAZZOLI-GUINTARD, Christine − Ciudades de al-Andalus. España y Portugal…, pp. 458-459.
18
Veja-se, embora a arqueologia da última década já tenha dado muitos mais resultados, MACIAS,
Santiago − “Islamic and Christian Medieval Archaeology”. In MATTOSO, José (dir.) − The Historiography of
Medieval Portugal. C. 1950-2010, Lisboa: IEM, 2011 p. 153-177.
ALGUNS PROBLEMAS EM TORNO DE UMA TR ANSIÇÃO URBANA [...]
45
sucessivos dicionários biográficos; a terceira, a consideração da dimensão política
representada pela hierarquia das funções centrais, que permite considerar a evolução
do peso político do Gharb no conjunto do al-Andalus, assim como perceber as
variações cronológicas na geografia das centralidades dentro do próprio extremo
ocidente. Comecemos pelo primeiro, capaz de nos garantir uma medida comparativa
aparentemente mais segura.
O cálculo das áreas resultante da soma entre o perímetro muralhado, a alcáçova,
o arrabaldes ou arrabaldes e, nalguns casos, a parte do recinto que ficava vazia,
feito por Mazzoli-Guintard19, permite estabelecer alguns intervalos que, mesmo
que de forma imprecisa, dão uma medida da escala das cidades andaluzas, muito
grande aliás se comparada com a de cidades do mundo carolíngio e pós-carolíngio
contemporâneas, como Paris. Considerada a longa duração (séculos IX-XIII), o
primeiro lugar é ocupado por Sevilha, muito por culpa do grande crescimento em
contexto almóada, que a faz ultrapassar Córdova em importância (tendência que se
faz anunciar logo durante o período taifa abádida), a única madina a atingir 300ha.
Segue-se depois um grupo de cidades de grande dimensão (100-200ha), composto
pela mesma Córdova, com quase 200ha, aos quais na segunda metade do século
X se poderiam juntar os 100ha da cidade áulica de al-Zahra e por Toledo. Num
terceiro grupo (50-100ha), aparece a primeira cidade do Gharb, Badajoz, com 75
ha, acompanhada por Almeria, Ecija, Granada, Jaén, Múrcia, Maiorca e Valência.
Todas, excepto Ecija, são no século XI cabeças de reinos Taifa, o que diz bem da
sua capacidade para aglutinar funções centrais. Quase todas são levantinas, o que
é consentâneo com o modelo de povoamento de matriz mediterrânica e com a
hipótese da relativa anemização dos centros urbanos atlânticos já antes levantada.
Mesmo num quarto grupo (25-50ha) onde poderemos encontrar Carmona, Denia,
Jerez de la Frontera, Lérida, Málaga e Saragoça, mais uma vez todas capitais taifa,
continuam ausentes cidades ocidentais que vamos encontrar apenas no grupo abaixo,
das cidades com menos de 25ha: Cáceres, Évora, Lisboa, Mértola, Saltes, Silves.
É evidente que a lista é muito incompleta, por um lado, e os dados necessitam de
revisão, pelo outro. Assim se calibrarmos a lista pelo mapa das mudun estabelecido
por Picard20 há quase quatro décadas, chama a atenção a ausência das três capitais
de conventii do período romano, uma delas também capital provincial, Emmerita,
Pax Iulia e Scallabis, todas elas mudun importantes em período islâmico, embora
com percursos urbanos distintos, e ainda de outro centro administrativo de peso,
Ocssónoba, para falar apenas dos centros urbanos mais importantes. É verdade
que duas dessas ausências, Pax Iulia (Baja) e Scallabis (Shantarin), são difíceis de
19 MAZZOLI-GUINTARD, Christine − Ciudades de al-Andalus. España y Portugal..., pp. 458-459.
20 PICARD, Cristophe − Le Portugal musulman, VIIIe-XIIIe siècle: L’Occident d’al-Andalus sous
domination islamique. Paris: Maisonneuve et Larose, 2000.
46
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
preencher do ponto de vista do cálculo do perímetro muralhado: no primeiro caso
os historiadores ainda não se puseram de acordo quanto à extensão da cidade no
período islâmico21, as muralhas sobreviventes necessitando de um estudo urgente
de arqueologia do edificado, mas podendo datar da reconstrução de Afonso III; no
segundo caso, o problema da extensão da cidade islâmica para a área de Marvila
não está ainda resolvido, porque as campanhas de escavação iluminam melhor o
espaço da alcáçova22 (e apesar dos esforços da importante tese de Mário Viana23).
Finalmente, se Ocssónoba corresponde à madina dos Banu Harun, daí não virá
nenhuma revisão desta hierarquia relativa de cidades.
A revisão mais significativa, talvez a única com impacto, diz assim respeito
a Lisboa que beneficiou nos últimos vinte anos de uma sequência aleatória de
intervenções arqueológicas que permitiram reescrever a sua história24. A maior
parte dessas descobertas foram utilizadas na tese recente de Manuel Fialho25, que
cobre precisamente o período transicional aqui em discussão. Se, no que respeita ao
perímetro amuralhado (a “Cerca Moura”) as novidades são de precisão, destacandose por exemplo a hipótese muito plausível de localização dos mercados (aswaq),
junto à mesquita aljama, depois Sé, o arrabalde oriental, o de Alfama, e, sobretudo, o
ocidental, são agora muito melhor conhecidos, neste último caso muito por efeito das
escavações de emergência na Baixa. E aqui o mapa varia muito consideravelmente,
com as áreas que se suponham resultantes de uma ocupação do vale posterior a 1147,
dando aliás origem a uma intensificação da rede paroquial, já urbanizadas em período
islâmico26. O que sai desta pequena revolução é uma cidade muito maior do que se
21
MACÍAS, Santiago − La küra de Beja et Le territoire de Mértola entre l’Antiquité tardive et la
Reconquête chrétienne. CAM, 2005, 3 vols e ainda MACIAS, Santiago − “Islamização no território de Beja:
reflexões para um debate”. Análise Social 173 (2005), pp. 807-826. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0003-25732005000100005&lng=pt&nrm=iso. Perspectivas diferentes
sobre a dimensão do intra-muros de Beja em periodo islâmico foram partilhadas em MACÍAS, Santiago;
FERNANDES, Hermenegildo − “Beja islâmica - problemas de topografia”. Xelb 9. Actas do 6º Encontro de
Arqueología do Algarbe: O Gharb no al-Andalus: síntesis e perspectivas de estudo. Silves: Câmara Municipal,
2009.
22
FERNANDES, Hermenegildo − “Em torno de Shantarin: posição e funções”. In ARRUDA, Ana
Margarida; VIEGAS, Catarina; ALMEIDA, Maria José de (coords.) − De Scallabis a Santarém. Catálogo da
Exposição no Museu Nacional de Arqueologia. Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia, 2002, pp. 47-59.
23
VIANA, Mário − Espaço e povoamento numa vila portuguesa: (Santarém 1147-1350). Lisboa:
Caleidoscópio, CHUL, 2007
24
Um panorama, muito completo à data, em BUGALHÃO, Jacinta; GOMEZ-MARTÍNEZ, Susana −
“Lisboa, uma cidade do Mediterrâneo islâmico”. In BARROCA, Mário Jorge; FERNANDES, Isabel Cristina
(coords.) − Muçulmanos e cristãos entre o Tejo e o Douro, sécs. VIII-XIII: actas dos seminários realizados em
Palmela, 14 e 15 de Fevereiro de 2003, Porto 4 e 5 de Abril de 2003. Palmela: Câmara Municipal, Faculdade de
Letras da Universidade do Porto, 2005, pp. 237-262. E mais actualizado em BUGALHÃO, Jacinta − “Lisboa
Islâmica: uma realidade em construção”. In Xelb 9 – Actas do 6º Encontro de Arqueologia do Algarve: O Gharb
no al-Andalus: sínteses e perspectivas de estudo, Silves, 23, 24 e 25 de Outubro de 2008. Homenagem a José Luís
de Matos. Silves: Câmara Municipal de Silves, 2009, pp. 377-395.
25
FIALHO, Manuel − Mutação urbana na Lisboa Medieval: das Taifas a D. Dinis. Lisboa: FLUL, 2017.
Tese de Doutoramento. Disponível em: http://hdl.handle.net/10451/29987.
26
FIALHO, Manuel − Mutação urbana na Lisboa Medieval…, pp. 231 e ss. e em síntese pp. 406 e ss.
ALGUNS PROBLEMAS EM TORNO DE UMA TR ANSIÇÃO URBANA [...]
47
pensava até aqui, transcendendo largamente os cerca de 14 ha que o Atlas de A. H. de
Oliveira Marques lhe atribuíra27 e podendo mesmo ombrear, nos seus cerca de 45 ha,
com as cidades daqui a que chamei o quarto grupo, todas elas, como vimos, capitais
taifa no século XI, ao contrário de al-Ushbuna (se exceptuarmos o breve episódio
de Sabur) e aproximando-se muito das capitais regionais que constituem o selecto
terceiro grupo. Isso e a sua posição portuária atlântica que é para o melhor e o pior
(Lisboa foi em 844 o primeiro alvo, falhado, dos ataques vikings28) parte decisiva de
uma identidade histórica de longa duração que transcende a futura capitalidade do
reino português, talvez permitam explicar melhor a razão porque essa capitalidade
se irá afirmar progressivamente como um facto natural depois de ter sido palco do
desembarque do conde de Bolonha em 1245.
Já no que respeita a Évora, o cálculo, conservador, foi feito com base no
perímetro amuralhado da cidade romana, que se manteve operacional durante o
período islâmico, embora com reconstruções como aquela empreendida pelos Banu
Marwan, protectores da cidade, depois do assalto de Ordonho II (913). Sendo certo
que a cidade só conhece uma nova e muito mais ambiciosa cintura de muralhas
durante o século XIV (Vilar e Fernandes)29, está ainda por estabelecer se se verificam
ou não pré-existências para os arrabaldes cristãos já perfeitamente documentados na
segunda metade do século XIII 30. A intensa militarização do território que se verifica
no período imediatamente anterior à conquista cristã, assim como no meio século
posterior, seguramente até à conquista de Alcácer de 1217, e, mesmo depois disso,
até à década de 30, a proximidade da fronteira, aconselham no entanto a ver essa
possibilidade com alguma prudência. A subsidiariedade histórica da madina Yabura
em relação a Badajoz, patente já durante o período dos Banu Marwan e depois
durante o regime taifa Aftássida, no século XI, converge também para considerar
com moderação a sua escala.
No conjunto, mesmo após revisão, e enquanto aguardamos dados que permitam
resolver de vez as questões pendentes que afectam duas importantes mudun de origem
romana, Baja e Shantarin, o sistema urbano do Gharb, grosso modo correspondente
à zona de conquista do reino português, acusa uma significativa diferença de escala
face ao resto do al-Andalus, em particular às zonas Bética e Levantina, o que não
pode deixar de afectar o modelo da transição, quer a resultante da militarização
do século XII, quer a da conquista cristã. Importaria agora calibrar essa diferença
27
MARQUES, A. H. de Oliveira; GONÇALVES, Iria; ANDRADE, Amélia Aguiar − Atlas de Cidades
Medievais Portuguesas Séculos XII-XV, s.v. “Lisboa”. Lisboa: Centro de Estudos Históricos da Universidade
Nova de Lisboa, 1990.
28
FERNANDES, Hermenegildo − Os Madjus…
29
VILAR, Hermínia; FERNANDES, Hermenegildo − “O Urbanismo de Évora no período medieval”.
Monumentos 26 (2007), p. 6-15.
30
PEREIRA, Gabriel − Documentos Históricos da Cidade de Évora. Évora: Typographia da Casa Pia,
1885, aliás [Lisboa, INCM, s.d.], p. 32 e ss.
48
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
de escala através de outra variável, a do número de ulemah representados, antes de
considerarmos a evolução interna do jogo de funções centrais.
IV
A grande auto-prosopografia deixada pelo grupo cada vez mais dominante dos
ulemah, a partir do século X, no ocidente islâmico como no oriente, serve várias
funções. Para os próprios assegurava a legitimidade das cadeias de transmissão
intelectual, que era também e sobretudo religiosa, garantindo a prova da pertença
a um contínuo que garante cargos urbanos e na corte e por isso mesmo fortuna,
estando a administração urbana cada vez mais oligarquizada, e através dela o
consenso da comunidade em torno da sua função. Para os historiadores permite
conhecer socialmente o grupo, na sua composição e origens, estudar a mobilidade
social e geográfica assim como a circulação no interior do mundo islâmico. Foi tudo
isto que permitiu a Maria Luísa Ávila uma tentativa de reconstrução da demografia
no califado tardio e no período taifa31. A mim os dados recolhidos em três sucessivos
e complementares Diccionários biográficos, datáveis entre o século X e o XIII
interessam aqui como indício suplementar da escala das cidades do Gharb, por
comparação interna e face ao conjunto do al-Andalus, assim como primeiro indício
de uma redefinição dos lugares centrais em curso a partir do século XI32.
A consideração dos dados totais permite-nos formar uma imagem da posição
do Gharb no conjunto do al-Andalus assim como dos equilíbrios regionais, dando
uma medida dos níveis de islamização da sociedade assim como da escala dos espaços
urbanos que a difundem. Aguarda-se, para uma maior precisão, o trabalho em
conclusão sobre Letrados do Gharb al-Andalus, que servirá de tese de doutoramento
a Ana Luísa Miranda (na FLUL sob orientação do autor destas linhas), que revê
profundamente todos os dados permitindo uma análise fina das famílias, dos seus
percursos e da sua implantação regional33. Assim, e por ora, a observação dos dados
sobre ulemah para o conjunto da cronologia no Gharb, permite detectar duas mudun
31
ÁVILA NAVARRO, María Luisa − La sociedad hispanomusulmana al final del califato: aproximación
a un estudio demográfico. Madrid: CSIC, 1985.
32
MARÍN, Manuela; ÁVILA NAVARRO, María Luisa (coord.) − Biografías y género biográfico en el
occidente islámico. Madrid: CSIC, 1997, assim como a série EOBA (Estudios Onomástico-Biográficos de
al-Andalus), também publicada pelo CSIC e a base de dados online ÁVILA, M. L. (coord.); MOLINA, L.;
PENELAS, M.; LÓPEZ, M. − Prosopografía de los ulemas de al-Andalus (PUA). Disponível em: http://www.
eea.csic.es/pua/.
33
MIRANDA, Ana Luísa − Redes de circulação numa periferia do mundo islâmico: o Gharb al-Andalus
do século XI entre o Mediterrâneo e o Atlântico, tese de doutoramento em História Medieval (em conclusão
na FLUL). Alguns resultados preliminares apresentados em Ana L. S. Miranda − “The 11th century scholars
in a periphery of the Muslim world: travel and conflict between Gharb, al-Andalus, Maghreb and the East”,
trabalho apresentado em Travel and Conflict in the Medieval and Early Modern World Conference, Bangor,
2015.
ALGUNS PROBLEMAS EM TORNO DE UMA TR ANSIÇÃO URBANA [...]
49
com mais de quarenta letrados, Badajoz (43) e Beja (41), uma com mais de vinte,
Silves (27), e outras quatro com dez ou menos, Mérida (10), Lisboa (10), Santarém
(6) e finalmente Évora (5). Outro centro urbano próximo, Niebla, que no século XIII
será gémeo de Silves enquanto outra capital do reino do Algarve, surge representado
com 27 letrados; já Sevilha, indubitavelmente o maior núcleo andaluz do período
tardio tem documentados 467 ulemah, mas Córdova, a capital original, 1561. Outras
capitais regionais apresentam também números avultados, como Elvira/Granada
(314), Jaén (100), Málaga (114), Tudmir/Múrcia (150), Toledo (231), apesar da
conquista cristã e tendo ulemah documentados ainda para além dela, Valência (235)
e Saragoça (126)34.
Se comparados com os dados apresentados antes sobre os perímetros
amuralhados, estes não mostram novidade relativa, quase os mesmos grandes
centros urbanos aparecendo entre o primeiro e o terceiro nível, agora com afinações
posicionais, por exemplo Córdova trocando com Sevilha, o que dá consistência
sociológica à extensão do edificado, mostrando que a dimensão da cidade é
directamente proporcional ao nível de islamização e ao peso das suas elites. Ainda
geograficamente se regista uma grande constância: o sul, o levante, as marcas média
e superior. Nada de inesperado também na posição secundária do Gharb, variando
apenas a escala, porque do ponto de vista social a diferença parece ainda mais cavada
do que do ponto de vista do edificado, como se poderia constatar fazendo a ratio ha/
ulemah. Quer isso dizer que a capacidade para atrair população diminui na direcção
do Gharb e do Atlântico, por contraste com o centro da Andaluzia ou o Levante,
mas diminui ainda mais o potencial de polarizar as elites que governam a sociedade
andaluza.
Internamente os números relativos ao Gharb permitem estabelecer uma
hierarquia regional, que merece afinação cronológica. Badajoz, que desde o final do
século IX assume a capitalidade de Mérida, surge sem surpresa num primeiro lugar,
facto que respeita a antiga tradição provincial emeritense e a geografia da conquista,
assim como a evolução dos poderes regionais sob os Banu Marwan. Esta é a base sobre
a qual se irá construir a capitalidade regional durante os séculos XI e XII, primeiro
sob os aftássidas, depois no regime almóada. Beja, um caso estudado para este efeito
por Manuela Marin35, encontra-se no entanto praticamente a par e parece ser mesmo
até ao fim do reinado de ’Abd al-Rahman III a cidade do ocidente extremo com
mais letrados documentados. Tudo isto aponta, diria, para uma manutenção até um
período muito tardio da ordem urbana romana, quer nas mesmas cidades quer em
34
A fonte é por ora o anexo de MAZZOLI-GUINTARD, Christine − Ciudades de al-Andalus. España
y Portugal…, pp. 462-464.
35
MARÍN, Manuela − “Los Ulemas de Beja: formación y desapariciόn de una elite urbana”. In BARATA,
Filipe Themudo (ed.) − Elites e Redes Clientelares na Idade Média. Évora: CIDEHUS, 2001, pp. 27-44.
50
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
cidades ersatz, interpretação corroborada pela presença, ainda que mais modesta,
da própria Mérida, de Lisboa (estudada por Maribel Fierro36) de Santarém e de
Évora. O caso de Silves fornece uma pista para o momento da mudança, dado que
a sua ascensão em número de ulemah, que corresponde à queda dos velhos centros,
como Beja, coincide com a última fase documentada pelos dicionários biográficos,
o período almóada.
Noutros lugares regista-se o mesmo aumento espectacular em época almóada.
É o caso de Almeria, Denia, Málaga, Múrcia, Maiorca e Valência, todas Levantinas,
todas ocupando posições modestas ou irrelevantes do ponto de vista do protagonismo
na nomina de ulemah antes do século XII, mas transformadas agora, pelo encontro
combinado da sua posição privilegiada enquanto cidades portuárias (à excepção de
Múrcia, no entanto ligada à costa pelo Segura), do protagonismo de algumas delas
no centro de uma economia do regadio, da política regional dos impérios berberes
no al-Andalus e, finalmente, do crescente protagonismo intelectual do al-Andalus
no quadro do Islão do século XII, em centros urbanos de primeira grandeza. Essa
progressão já havia de resto sido anunciada no século precedente pela capitalidade
de reinos taifa que todos esses casos partilham.
A ocidente Sevilha, Niebla e Silves partilham desse movimento. Aquela
organizando-o e tornando-se a maior cidade que há nestas Espanhas de que falava
Fernando III em 1248. Estas substituindo-se a Beja enquanto capital regional. O
quase eclipse da madina Baja durante o século XII, se contrastado, simetricamente,
com o vazio referente a Silves durante o primeiro período islâmico, parece ser o
testemunho eloquente de uma importante transição em curso. Se pensarmos que
também Badajoz, apesar do investimento material e militar feito na cidade e na
rede de centros urbanos que a defendem, tal Elvas, pelos almóadas, conhece um
decréscimo muito substancial no número de ulemah documentados, não poderemos
deixar de associar essa transição à mudança das condições sociais nos centros
urbanos do sudoeste peninsular ditadas pela instalação dupla de uma sociedade de
fronteira e de uma economia de guerra.
V
Caberá agora discutir a cronologia e as condições dessa transição. A proposta é a
de um crescimento assinalável, apenas parcialmente, e em alguns centros urbanos,
condicionado ou mesmo neutralizado pelo impacto da fronteira e da economia de
guerra. Isso colocaria o crescimento urbano no Gharb em linha com o crescimento
global do al-Andalus e do ocidente mediterrânico (ainda que se admita uma maior
36
FIERRO, Maribel − “Os Ulemas de Lisboa”. In KRUS, Luís; OLIVEIRA, Luís Filipe; FONTES, João
Luís − Lisboa medieval: os rostos da cidade. Lisboa: Livros Horizonte, 2007, pp. 33-59.
ALGUNS PROBLEMAS EM TORNO DE UMA TR ANSIÇÃO URBANA [...]
51
precocidade em relação ao mundo latino, se exceptuarmos alguns casos itálicos). É
verdade, como já se provou, que no Gharb se parte de uma escala diferente da do alAndalus central ou mesmo do Sharq, quer porque o modelo de ocupação territorial
islâmico tenha descurado a fachada atlântica, quer porque aí as cidades de velha
matriz romana, que assim se tinham mantido durante o período visigótico, tenham
resistido pior ao efeito das dissidências durante a crise da segunda metade do século
IX e à posterior recomposição califal. Será este processo, talvez, que explica a descida
das cidades do Gharb na hierarquia urbana hispânica assim como a anemização
evidente dos principais centros urbanos romanos (sobretudo afectando o único de
primeira dimensão, Mérida).
Pelo século XI, ou talvez um pouco antes, sendo a cronologia dos fenómenos
tanto menos precisa quanto dependente dos dados da arqueologia, começa a
desenhar-se uma mutação que se traduz não só por um crescimento mas por uma
reorganização material e social dos centros urbanos assim como da hierarquia relativa
entre eles. Dela restam indícios ainda fragmentários do ponto de vista urbanístico,
mas muito claros se nos ativermos às sucessivas recomposições politicas e territoriais
e aos testemunhos da mudança social.
Começando pelos indícios arqueológicos, a maior novidade estará na
estruturação das alcáçovas de que o caso de Mérida, datando ainda do século IX,
constituirá antecedente. Trata-se aqui de um corte maior com o modelo urbanístico
romano tradicional, embora em sítios de limites do Baixo Império se possam registar
precedentes de uma deslocação do centro de poder do fórum para um pretório
situado excentricamente ao eixo da cidade (no limes do Eufrates, por exemplo em
Dura Europos, Zenóbia e, especialmente na última fase de Palmira, contemporânea
de Diocleciano)37. Nas mudun do Gharb que conhecemos mais de perto (Lisboa,
Évora, Silves, Mértola), a estruturação da alcáçova parece tardia. Assim, em Lisboa
não deverá ser anterior ao século XI, estando com toda a probabilidade o topo da
acrópole vazio de assentamento desde o período romano até a um período islâmico
avançado38. Neste caso aliás, as datações para o bairro da alcáçova apontam para
o momento almorávida, nas casas, ou mesmo anterior, do período taifa, o que
configuraria um uso muito tardio, relacionável com o investimento na marca inferior
e na fronteira atlântica que a profundidade da ofensiva de Afonso VI na região, assim
como a própria estruturação territorial do império almorávida, muito basculado
para o oceano, aconselham. Já para Évora propus noutro lugar uma cronologia mais
precoce, ainda assim provavelmente não anterior ao século XI39. O que é certo é que
ISAAC, Benjamin − The Limits of Empire: The Roman Army in the East. Oxford: Clarendon, 1993
FIALHO, Manuel − Mutação urbana na Lisboa Medieval…, pp. 155 e ss.
39
VILAR, Hermínia; FERNANDES, Hermenegildo − “O Urbanismo de Évora no período medieval…”,
pp. 6-15.
37
38
52
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
aquando do ataque de Ordonho II a alcáçova não existia, servindo o antigo templo
da praça como fortificação, pelo que a criação de um reduto na zona mais elevada do
perímetro urbano poderá ser relacionada com a redução das dissidências regionais
durante o califado, ou, talvez mais plausivelmente, com a importante posição da
cidade enquanto segundo polo do reino aftássida. Seria neste quadro, talvez, que
se poderiam explicar os alcáçeres (palácios) velhos de que fala Afonso Henriques
na doação aos cavaleiros de Évora. Cronologias análogas, predominantemente do
século XII, se poderiam aplicar aos bairros das alcáçovas de Silves e Mértola 40.
Se é verdade que os usos do edificado exigem aqui alguns cuidados na datação,
podendo como sabemos uma casa ter ocupação ao longo de muitas décadas ou mesmo
centenas de anos, como aliás as transformações internas de algumas delas sugerem,
e sendo as datações correspondentes amiúde a níveis de abandono, podermos no
entanto pensar, sem muita margem de erro, numa intervenção global nos espaços
urbanos do sudoeste, tendente a dotá-los de áreas fortificadas no seu interior, a
decorrer entre os séculos XI e XII, o que se liga, creio, não só à militarização do
território ditada pela fronteira, mas também e talvez sobretudo, à militarização da
própria estrutura social e às tensões sociais, proporia, que as acompanham, com a
consequente criação de zonas áulicas de onde governam elites locais ou, durante o
longo período dos impérios berberes, alcaides e talibes representantes dos poderes
magrebinos.
O investimento nas alcáçovas é acompanhado por uma reestruturação
das estruturas defensivas que atinge um ponto alto durante o período almóada,
particularmente bem documentado do ponto de vista da arqueologia do edificado
em Alcáçer do Sal, Elvas, Silves, Tavira, Loulé, e nos husun algarvios de Salir e
Paderne e do ponto de vista documental em Beja. Esse movimento de grande alcance,
que apresenta soluções técnicas inovadoras nas dimensões militar e construtiva,
sobre as quais não é o lugar para nos determos, revela um programa consciente
de intervenção no território que indica claramente uma revalorização da fronteira
ocidental (ou marca inferior), e do antigo reino de Badajoz, percepcionada como
uma das chaves da presença almóada na península, por permitir o acesso a Sevilha,
o lugar de residência do califa no al-Andalus. Esse programa só foi possível graças a
uma imensa capacidade de mobilização de recursos e estrita organização e também
a técnicas construtivas, sobretudo em taipa, que permitem uma grande rapidez de
execução e, no limite, uma certa modularidade. Tudo isto implica um poder central
GOMES, Rosa Varela − Silves (Xelb), uma cidade do Gharb Al-Andalus: a Alcáçova. Instituto
Português de Arqueologia, 2003; MACIAS, Santiago − Mértola islâmica: estudo histórico-arqueológico do
Bairro da Alcáçova (séculos XII-XIII). Mértola: Campo Arqueológico de Mértola, 1996; GÓMEZ, Susana
(coord) − Alcáçova do Castelo de Mértola, 1978-2008: trinta anos de arqueologia. Mértola: Câmara Municipal,
2008. Cf. ainda, para o exemplo de um hisn, MACIAS, Santiago − Castelo de Moura. Escavações Arqueológicas
1989-2013. Moura: CM Moura, 2016
40
ALGUNS PROBLEMAS EM TORNO DE UMA TR ANSIÇÃO URBANA [...]
53
robusto, organizado e bem articulado com as elites regionais que constitui a marca
de água do modelo social e político almóada apesar das frequentes fissuras que ele
esconde e que se tornarão evidentes após o seu colapso, no século seguinte. O caso
da refundação tentada de Beja, a que me referirei abaixo, é bem sintomático desses
métodos.
A militarização global implícita no que acabo de dizer não impede o crescimento
de arrabaldes muito visível em Lisboa, mas também na ribeira do Arade, Silves, este
último escavado por Maria José Gonçalves41. Aliás, o crescimento de arrabaldes
parece contrariar uma interpretação demasiado estrita das alcáçovas enquanto
estrutura defensivas viradas para ameaças, externas, embora o fossem também a
espaços, como se prova pelo desenvolvimento do cerco de Badajoz em 1169, onde
a al-Qasaba salva os defensores almóadas do ataque de Afonso Henriques, depois
deste se ter apoderado da madina42. Este episódio sublinha ainda que, no quadro
da poliorcética da época, a cidade não está rendida de facto antes da tomada do
bairro áulico. Porém, sendo os cercos em forma apenas um pouco mais frequentes do
que as batalhas campais, o mesmo é dizer raros, creio que a definição das estruturas
defensivas deverá ser tanto ligada, nas cidades do al-Andalus, ao robustecimento
das cidades contra os inimigos cristãos, ou contra poderes islâmicos rivais, como
à definição de espaços de poder e à representação, simbólica e material da sua
preeminência sobre o restante espaço urbano. E é isso que explica, a contrario, a
constância de arrabaldes, nem sempre fortificados. No caso de Lisboa sabemos com
segurança que nenhuma muralha circunscreve o crescimento urbano que extravasa
a “cerca moura” até ao muro da ribeira mandado erigir por D. Dinis, com finalidades
militares duvidosas 43 e é a própria parede exterior das casas que garante no arrabalde
ocidental alguma espécie de protecção informal no cerco de 1147.
Os dados muito pontuais não permitem ainda conclusões suficientemente
seguras sobre a cronologia do crescimento desses arrabaldes mas parece plausível
que a sua difusão seja concomitante com o processo de formação das alcáçovas,
durante o século XI, ou talvez um pouco antes, formando o seu contraponto social.
Um bom exemplo disso será, mais uma vez em Lisboa, o contraste entre o bairro
da Alçáçova e o bairro da praça da Figueira, ambos planeados, mas contrastantes
na qualidade das casas e por isso na posição dos grupos sociais a que se destinam44.
41
GONÇALVES, Maria José da Silva − Silves islâmica: a muralha do arrabalde oriental e a dinâmica de
ocupação do espaço adjacente. Faro: Universidade do Algarve, 2008. Tese de Mestrado. Cf. quanto à cronologia
de ocupação a “Síntese 1 - Períodos de Ocupação do Espaço do Arrabalde”, que evidencia uma estatigrafia
predominantemente almóada.
42
IBN SAHIB AL-SALA − Al-mann bil-imama, est. preliminar, trad. e índices de Ambrosio Huici
Miranda. Valência: Editorial Anubar, 1969.
43
FIALHO, Manuel − Mutação urbana na Lisboa Medieval…, pp. 310 e ss.
44
GOMES, Ana; GASPAR, Alexandra − “O Castelo de S. Jorge: da fortaleza islâmica à alcáçova cristã.
Contribuição para o seu estudo”. In Mil Anos de Fortificações na Península Ibérica e no Magreb (500-1500):
54
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Assim, se o crescimento da alcáçova se liga à oligarquização também promovida
pelos impérios berberes, o desenvolvimento de arrabaldes poderá ser resultado
do dinamismo demográfico da população urbana durante o século XI, mas será
dificilmente explicado sem recorrer à variável êxodo rural, numa sociedade em que
o mundo rural é sempre campo de uma cidade.
Essas mudanças remetem para um segundo campo de observação no quadro da
mutação urbana dos séculos XI e XII, o dos indícios sociais. Começaria por registar
um movimento de oligarquização que consolida a posição da hassa, estimulada
pela integração das elites nos quadros do império almóada que opera a benefício
de famílias pré-existentes mas sem protagonismo aparente durante o primeiro
período taifa. Estas emergem politicamente no segundo período taifa mantendo-se
até à conquista cristã de Alcáçer. São ainda aparentes tensões sociais entre a hassa e a
plebe, assim como uma oposição campo cidade, expressas politicamente na difusão
do movimento sufi45. Creio que estas tensões, parcialmente resolvidas pela integração
no império almoáda (que não as resolverá completamente e lhes junta outras, como
aquelas que opõem as elites andaluzas aos dignitários berberes, mas funciona
enquanto dura como um verniz unificador), são sintomas da maturidade do sistema
urbano andaluz e em particular do Gharb, tendo paralelo na evolução da sociedade
urbana na Síria e no Egipto contemporâneos, em que os vestígios dos vínculos tribais
estavam a dar lugar a um modelo verticalizado das relações sociais. Essa mutação
caracteriza-se, por um lado, por um peso cada vez maior das elites escrituralísticas
(o que vai no sentido da oligarquização)46 e, por outro, pela manifestação de
fenómenos de contra-poder de matriz popular quase sempre expressos através de
formas alternativas de religiosidade (sufismo). A militarização geral da sociedade,
estimulada na Síria pela presença do elemento turco (e também curdo) e no alAndalus pelo berbere, e em ambos os casos pelo confronto com reinos cristãos
organizados pela Cruzada, faz com que essas tensões sejam capitalizadas a favor da
hassa que acumula quer o capital simbólico que lhe é garantido pelo controle das
cadeias de transmissão intelectual, quer o capital de domínio político que lhe advém
da presença na corte e da liderança militar (uma estrutura de poder mais complexa,
Actas do Simpósio Internacional sobre Castelos. Lisboa: Edições Colibri, Câmara Municipal de Palmela, 2001;
SILVA, Rodrigo Banha da − “O bairro islâmico da Praça da Figueira (Lisboa)”. In Cristãos e Muçulmanos
na Idade Média Peninsular: Encontros e Desencontros. Navarra: Instituto de Arqueologia e Paleociências das
Universidades Nova de Lisboa e do Algarve, 2011.
45
FERNANDES, Hermenegildo − “O Campo Muçulmano - Crises e pressão fiscal. Fracturas sociais”.
In SERRÃO, Joel; MARQUES, A. H. de Oliveira (dir.) – Nova História de Portugal, Vol. III: Portugal em
Definição de Fronteiras (1096-1325): Do Condado Portucalense à crise do Século XIV, coord. de Maria Helena
da Cruz Coelho e Armando Luís de Carvalho Homem. Lisboa: Presença, 1996, pp. 73-81; FERNANDES,
Hermenegildo − Entre Mouros e Cristãos. A sociedade de fronteira no sudoeste peninsular interior (séculos
XII-XIII). Lisboa: FLUL, 2000. Dissertação de doutoramento.
46
CHAMBERLAIN, Michael − Knowledge and Social Practice in Medieval Damascus, 1190-1350.
Cambridge: Cambridge University Press, 1994.
ALGUNS PROBLEMAS EM TORNO DE UMA TR ANSIÇÃO URBANA [...]
55
integrada e, sobretudo urbana do que a nobreza cristã do período, embora algumas
analogias possam ser feitas, se tivermos em conta a apropriação parcial desta da ordo
clerical). Proporia aqui que esta estrutura, de base inteiramente urbana, atingiu no
entanto um grau de complexidade tal que necessita para funcionar do principado,
leia-se do império, com uma administração suficientemente robusta para precisar da
hassa e um domínio territorial capaz de lhe garantir as bases do seu assentamento.
Essa interdependência é bem visível no mais notório caso de intervenção territorial
programática do império almóada no Gharb, a tentativa de refundação urbana de
Beja.
Este caso, que analiso num artigo a publicar em breve47, é eloquente já do ponto
de vista da reconstrução do sistema de funcionamento do império à escala regional,
permitindo perceber o papel da comunicação política e o protagonismo das elites,
berberes e andaluzas que constituem a sua ossatura, já do ponto de vista das estruturas
materiais e dos esforço envolvido na refundação de uma cidade gravemente afectada
pela guerra de fronteira. Aproveitando a trégua pedida, segundo o Bayan, por Afonso
Henriques (ou por Sancho I, visto todos os descendentes de D. Henrique serem
tratados pelos cronistas árabes seus contemporâneos com o nasab, ou patronímico,
de Ibn al-Rink) em 1174, o califa Yusuf, estando em Sevillha com toda a corte, decide
empreender a intervenção em Beja que se inicia em Novembro de 1174, estando
por Março do ano seguinte os trabalhos de reconstrução muito avançados. O espaço
ocupado pela narrativa no Bayan48, que esclarece a magnitude do empreendimento,
permite conhecê-lo em detalhe. Por enquanto deixarei aqui apenas alguns leitmotiven. Em primeiro lugar, a perda não é associada à ameaça cristã mas às
contradições internas na cidade: verticais: entre a hassa, apoiada pela amal e a sufal
(que inclui aqui o campesinato); horizontais sendo notória a subliminar tensão entre
o patriciado andaluz e os berberes. Outro problema prende-se com a necessidade do
califa servir como equilibrador dos poderes em confronto na cidade o que revela o
difícil funcionamento de uma administração central periférica. O repovoamento é
assim um balão de ensaio de soluções integradoras que juntam andaluzes e almóadas:
povoar é submeter à máquina do império e tem por isso razões que transcendem o
interesse militar. Por outro lado, os espaços dessa intervenção (alcáçova, casas, tendas,
agricultura) revelam os interesses califais, centrados na reposição de uma fiscalidade
e em fazer cidade através de uma reconstrução da capitalidade. Beja faz desta forma
parte de um programa mais amplo de matriz dinástica que inclui a própria Sevilha,
Em submissão. Resulta da comunicação “As mudun e a fronteira: o projecto almóada de reocupação
de Baja” nas Jornadas Internacionais Terra, Pedras e Cacos do Garb al-Andalus. Org. Grupo CIGA, Palmela,
23-25 de Janeiro, 2020.
48
IBN ʻIḎĀRĪ AL-MARRĀKUŠĪ − al-Bayān al-mugrib fi ijtiṣār ajbār muluk al-Andalus wa al-Magrib.
Los Almohades. T. I-II., trad. Ambrosio Huici Miranda. Tetuán: Editora Marroquí, 1953-1954. 2 vol. A
narrativa ocupa os primeiros capítulos do vol. 1 da tradução, cf. pp. 13 e ss.
47
56
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Rabat, Marrakush e, nesta cronologia, se encontra ligado ao programa de Yusuf I de
capitalidade no ocidente do al-Andalus.
Por estas razões parece evidente que o exame da mutação urbana no sudoeste
peninsular dos séculos XI e XII terá de ter também em conta os indícios políticos que
apontam no sentido de uma redefinição da hierarquia das funções centrais, assim
como a definição de espaços de articulação política e territorial potenciais. A matriz
dessa reconfiguração parece já assumida de forma práctica no século XI, qualquer
que seja a valia das divisões administrativas constantes das obras dos geógrafos. Ela
pressupõe uma estruturação da rede urbana em função de três unidades, o reino
de Badajoz, o complexo urbano dos estuários (Tejo e Sado), a parte ocidental do
reino abádida de Sevilha, que seria o reino do Algarve, acompanhada por um novo
sistema de lugares centrais. Creio que essa reestruturação tem um impacto decisivo
na evolução dos centros urbanos envolvidos per se e no sistema urbano do Gharb
no seu conjunto, assim como na forma da sua recepção pelo reino português e pela
coroa de Leão Castela.
O ponto de partida da mutação no sistema é a configuração que resulta do
conflito entre os muluk al-tawa’if e das áreas de influência definidas durante o século
XI49. Distingue-se aí claramente a área do extremo meridional, composta pelas
cidades litorais do futuro reino do Algarve, repartidas em cinco taifas diferentes,
numa margem e noutra do Guadiana, todas nalgum momento incorporadas no
reino abádida de Sevilha, a que se junta Beja, que sempre esteve nessa esfera de
influência, do interior no Entre Guadiana e Tejo, e além deste, centrado em Badajoz
e Évora e pertencente ao reino aftássida de Badajoz. A terceira zona, a dos estuários
do Tejo e do Sado, tem uma definição e vinculação política menos clara, embora no
primeiro caso nominalmente dependente de Badajoz. A autonomia mesma dessa
região explica a cedência feita pelos aftássidas a Afonso VI, de Lisboa e Santarém
(entendem seguramente que não estão a ceder uma parte nuclear do seu reino) mas
não deixa de ser revelador quanto à sua composição social que nunca se tenha aí
declarado nenhuma solução monárquica durável (excepto, como disse, o episódio
de Sabur), o que pode ser o resultado de um certo nivelamento da oligarquia. As
mesmas razões, explicam, creio, as condições territoriais da conquista de 1147, que
não inclui, de forma imediata, nenhuma cidade principal do antigo reino de Badajoz.
Proporia, assim, que data do período taifa a reorganização política do sistema
urbano que define a hierarquia dos lugares centrais que se manterá durante os séculos
seguintes e cuja lógica os rumos da conquista cristã se esforçarão por manter. Que a
razão principal do fracasso final de ambos os reinos (Portugal e Leão) nesta tentativa
e a consequente reorganização das hierarquias territoriais a partir da década de 30
49
GUICHARD, Pierre; SORAVIA, Bruna − Les royaumes de Taifas: apogée culturel et déclin politique
des émirats andalous du XIe siècle. Paris: Geuthner, 2007
ALGUNS PROBLEMAS EM TORNO DE UMA TR ANSIÇÃO URBANA [...]
57
de Duzentos, seja a impossibilidade de manter a integridade territorial do que fora
o reino taifa de Badajoz, finalmente dividido entre as duas coroas, diz muito sobre
a forma como o sistema urbano do sudoeste hispânico se organizava durante os
séculos XI e XII.
Enunciaria aqui algumas dessas características. Em primeiro lugar, o eixo
vertebrador continua mais interior que litoral sendo claramente a região dos estuários
supletiva do ponto de vista dos poderes andaluzes mas não dos berberes, que se
mostram mais atentos à importância do mar e da frota. Essa mesma contradição
explica a relativa facilidade da conquista de Santarém e Lisboa, mas também a
tentativa de recuperação de Santarém (1184) e o encarniçamento em torno de
Alcácer do Sal. A tensão entre o peso do litoral e da região articulada à costa e as
cidades das peneplanícies interiores que prolongam a meseta, vai percorrer todo
o plano de conquista do reino português no período intermediário de meados do
século XII e durante todo o período almóada, resolvendo-se, apesar dos interesses
iniciais da coroa portuguesa, a favor do eixo litoral e de uma divisão da zona interior
que a vai menorizar, assim como aos seus centros urbanos. O destaque de Lisboa,
que é a maior cidade da fachada atlântica andaluza, assim como de Santarém, que é
a fortificação mais importante a dominar a melhor região cerealífera, e, num plano
secundário, de al-Qasr Abi Danis, que controla o Sado, nunca poderá ser sublinhado
o suficiente, antecedendo, com toda a evidência em muito a conquista cristã.
Nas peneplanícies interiores, o reino de Badajoz recupera todas as funções
centrais de Mérida encontrando-se agora investido da capitalidade de marca inferior.
A sua importância resulta não apenas do território que estrutura mas também da
função de tampão em relação a Sevilha. Todos os centros urbanos da região se
referem concentricamente à cidade do Guadiana que lhe serve de matriz. Qual fosse
essa organização pode inferir-se à posteriori pelo circuito das conquistas de Geraldo
Sem Pavor nos anos 60 do século XII, que culminam nos assaltos finais frustrados
à própria madina, a lógica sendo de envolvimento da periferia para o centro: Évora,
Trujllo, Cáceres, Montanchéz, Serpa e Juromenha50. Isso explica o investimento
de recuperação urbana feita pelos almóadas na região, quer em Badajoz quer por
exemplo em Elvas. O colapso de Beja e a posterior tentativa de refundação almóada
mostra as dificuldades que este sistema está a sofrer no século XII e seguramente
ajuda a explicar a sua debilitação e dificuldade de recuperação após a conquista
cristã. Finalmente, na região de Beja e Évora mas sobretudo mais a sul, o período
intermediário de meados do século XII é marcado por autonomias políticas que de
50
FERNANDES, Hermenegildo − Entre Mouros e Cristãos. A sociedade de fronteira…, sobretudo
o capítulo III. LOPES, David − O Cid Português: Geraldo Sempavor. Coimbra: Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, Instituto de Estudos Históricos Dr. António de Vasconcelos, 1940. PEREIRA,
Armando de Sousa − Geraldo sem Pavor. Um guerreiro de fronteira entre cristãos e muçulmanos, c. 1162-1176.
Porto: Fronteira do Caos, 2008.
58
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
certa forma evocam os reinos taifa do extremo ocidente no século anterior. É certo
que as realidades sociais são agora outras e se no lugar dos Banu Harun ou dos Banu
Muzayn se encontram também famílias da hassa como os Banu Wazir, o dinamismo
vem de novos grupos, como aqueles representados pelo sufi Ibn Qasi. Mas não se
pode deixar de pensar numa individualização do sistema urbano dessa região, de
organização policêntrica, em que Silves assume desde o século XII, capitalidade
crescente. Esse mesmo esquema será repetido na década de 30 do século XIII pela
constituição do reino de Ibn Mahfud. Numa escala mais reduzida, a manutenção no
interior do reino português do reino do Algarve como entidade diferenciada é um
testemunho evidente desse percurso.
Assim, a conquista cristã tem uma lógica que é determinada por um conjunto
de eixos pré-existentes: 1. O controle dos estuários que tem uma aparente rápida
resolução em 1147 aproveitando o vazio de poder entre impérios berberes e a
debilidade relativa do senhores regionais, tais os Banu Wazir ou Ibn Qasi, mas fica
incompleto até à conquista final de Alcácer do Sal de 1217, o que mantém Lisboa
e Santarém numa posição de fronteira durante setenta anos (quase todo o período
almóada) e adia a construção da capitalidade do reino português em torno desse
eixo urbano. 2. A luta pelo reino de Badajoz, que envolve todos os protagonistas em
presença, o reino português, sendo este o grande projecto da última fase do reinado
de Afonso Henriques, o leonês e os almóadas que defendem. Prolonga-se desde antes
de 1169 até 1230 e aqui está a grande área vertebradora da fronteira durante esse
longo período. As consequências para o sistema urbano pré-existente são variáveis
mas em muitos locais devastadoras, o que nunca pressupõe porém o vazio. 3. A
batalha pelo reino do Algarve que se estende também durante bastante tempo (11891249), embora com o grosso das operações concentradas no biénio 1189-1191 e nas
décadas de 30 e 40 de Duzentos. Isso permite que a exposição dos centros urbanos às
condições da fronteira seja mais breve havendo mais de meio século de recuperação
entre um e outro momento, durante o qual o reino tem um papel importante na
política almóada (é o caso de Abu Ula Idris, que antes de ser califa com o laqab
de al-Ma´mun governa o Gharb e deixa uma importante epígrafe fundacional em
Silves51) o que, juntamente com a consciência da sua importância estratégica para
o controle do al-Andalus e dos Estreitos explica o investimento urbanístico que aí é
feito numa cronologia próxima às importantes obras que estão a ser realizadas em
Sevilha. A preservação do sistema resultante da menor exposição à fronteira explica
que aqui a conquista cristã encontre estruturas muito intactas, justificando também
51
MIRANDA, Ambrosio Huici − Historia poltica del imperio almohade. II. Instituto General Franco de
Estudios e Investigacion Hispano-Árabe. Tetuán: Editora Marroquí, 1957. BORGES, Artur Goulart de Melo −
“Epigrafia Árabe no Garb”. In Portugal Islâmico. Os últimos sinais do Mediterrâneo. Catálogo da Exposição.
[s.1.]: Museu Nacional de Arqueologia, [s.d.], p. 227 e seguintes.
ALGUNS PROBLEMAS EM TORNO DE UMA TR ANSIÇÃO URBANA [...]
59
a permanência da memória do cadastro do período islâmico.
VI
Do que se disse parece-me poder destacar-se um modelo para uma mutação urbana
no al-Andalus do período tardio, que se destaca, já dos problemas que envolvem
a primeira transição, a que assegura a transformação da cidade romana antes e
imediatamente a seguir à conquista árabe-berbere, assim como daqueles que se
colocam a seguir à conquista cristã, pelo ajustamento dos sistemas de controle
político e social e das próprias formas de vida. Creio ainda poderem deduzir-se
algumas características que permitem individualizar o sistema urbano do Gharb alAndalus no conjunto das cidades islâmicas da península ibérica.
Assim e em primeiro lugar, refira-se que essa mutação está em linha com
o crescimento europeu dos séculos XI e XII traduzindo-se numa significativa
reurbanização da vida social. Duas particularidades, a primeira delas constitutiva
porque anterior na cronologia, destacam o al-Andalus: não só a retoma se verifica
mais cedo como a velha estrutura urbana romana dá lugar à cidade islâmica sem
hiatos cronológicos e sem cortes tão profundos como aqueles que se registam na
maior parte do antigo império do ocidente, ficando essa retoma a dever-se aos
processos de orientalização proporcionados pela conquista árabe; ao contrário do que
sucede no conjunto do ocidente europeu neo-latino, as condições desse crescimento
são, a partir do fim do século XI, e plenamente nos séculos XII e XIII, interferidas
pela generalização da fronteira enquanto modelo social e económico, assim como
pela omnipresença da economia de guerra. Isso não quer dizer, evidentemente, que
a guerra seja um fenómeno especifico da Hispânia medieval, mas que a luta pelo
espaço, investida ideologicamente pelos conceitos de reconquista, cruzada e jihad,
atinge um paroxismo capaz de influir duradouramente nos modelos de organização
social e territorial, tal como em atmosfera mais restrita e controlada está a acontecer
na Síria (Outremer), na mesma cronologia.
O al-Andalus e as cidades que constituem a sua ossatura, sofrem esse impacto
de formas variadas, dependendo da exposição e proximidade à área de fronteira, do
investimento feito pelos impérios berberes, da solidez do tecido social das cidades
e, finalmente, da sua capacidade de ligação à esfera mediterrânica e magrebina que
assegura a sobrevivência para lá da crise dos meados do século XIII de um último alAndalus escorado no triângulo Granada/Málaga/Almeria. O que parece ser comum
é o facto de essas circunstâncias imporem uma transição urbana anterior à conquista
cristã (que dela em certa medida faz parte), como acontece também em Shams (Síria)
nos casos de Alepo, Homs ou Damasco, nunca conquistadas pelos reinos cruzados
mas cuja vida social e forma urbis serão fortemente dominadas pela generalização
60
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
da guerra. No caso do Gharb al-Andalus essa transição faz-se sentir de forma talvez
ainda mais nítida e precoce do que no resto da península.
Em primeiro lugar porque o relativo desinvestimento omíada, que a operação
amirida na zona de Coimbra não chega para contrariar de forma duradoura, permitiu
um avanço muito mais rápido, em latitude, do reino leonês, do que nas outras
zonas da Hispânia. Em segundo lugar, o que decorre do anterior, porque nunca até
Zalaca, o ocidente foi um palco militar de primeira grandeza para os omíadas e seus
epígonos. Essas condicionantes explicam que Coimbra, no extremo da fronteira
ocidental, tenha sido a primeira cidade importante do al-Andalus perdida de forma
permanente para os cristãos do norte. Explicam ainda que o reino de Afonso VI
esteja no ocidente mais a sul do que em qualquer outro lugar a partir do fim do
século XI, incluindo Toledo, e que mais ou menos todas as cidades do Gharb se
encontrem a partir dessa data numa situação de fronteira52. Excluiria da equação, por
enquanto e até à segunda metade do século XII, quando a sua posição litoral acaba
por desencadear as operações militares que tornam visível uma outra dimensão
da fronteira, a marítima, o reino a que depois se chamará do Algarve, com Silves à
cabeça.
Assim, do meu ponto de vista, o sistema urbano do sudoeste está já em
transição antes da conquista cristã e os fenómenos que caracterizam essa mutação
da última fase de domínio islâmico são precocemente visíveis no Gharb, deixando
uma marca na paisagem urbana que só a grande revitalização do reinado de Afonso
III começará a apagar. A mutação, determinada pela militarização do território e da
estrutura social, pode ser observada quer à escala macro da hierarquia dos lugares
centrais, quer à escala micro dos principais centros urbanos considerados per se.
No primeiro caso tem lugar um redesenho territorial que privilegia cidades antes
de segunda linha, ou recentes, em detrimento das velhas centralidades herdadas
do período romano. Assim Beja cede o passo a Silves e, em menor grau, também a
Évora, como Mérida já o cedera a Badajoz; no Atlântico a antiquíssima al-Ushbuna
ganha uma nova preponderância urbana, mesmo se Shantarin continua a ser a chave
militar e agrícola da região. Esse redesenho de centralidades, quando combinado
com a variável “fronteira”, está por detrás das individualizações políticas efémeras
durante o primeiro período taifa, antes da absorção pela Sevilha abádida, assim
como da constituição do reino de Badajoz; do volátil mapa político regional do
período intermédio que antecede o controle almóada; da constituição do reino de
Ibn Mahfud depois do fracasso de Ibn Hud, na década de 30 de Duzentos e ainda da
constituição de um senhorio contemporâneo de contornos quase desconhecidos, o
52
cf. LOURINHO, Inês Bailão − Fronteira do Gharb Al-Andalus: terreno de confronto entre almorávidas
e cristãos (1093-1147). Lisboa: FLUL, 2018. Tese de Doutoramento. Disponível em: http://hdl.handle.
net/10451/34780.
ALGUNS PROBLEMAS EM TORNO DE UMA TR ANSIÇÃO URBANA [...]
61
do infante D. Fernando em Serpa. Quer os almorávidas quer sobretudo os almóadas,
parecem validar essa redefinição de hierarquias urbanas, o que poderá ser visto
como uma necessidade de adaptação aos interesses das elites locais que constituem
a base do seu poder na região. E é precisamente em linha com esses interesses que
se programa e executa parcialmente a mais ambiciosa tentativa de resistir à erosão
provocada pela presença da fronteira nas estruturas urbanas regionais, o projecto de
repovoamento de Beja.
No segundo caso, o da escala micro, espreita uma variedade de casos que parece
diluir a tentação de um modelo único. O contraste entre os centros urbanos em
crescimento e estruturação e a anemização de outros não podia ser mais evidente.
Essa diversidade a que já aludi e que as intervenções arqueológicas dos últimos
trinta anos iluminam com bastante rigor, do crescimento inesperado de Lisboa ao
quase desaparecimento de Beja, parece no entanto não invalidar um quadro geral
de crescimento apesar da fronteira e da economia de guerra, nalguns casos talvez
beneficiando dela, que atinge um ponto alto através da grande injecção de capital
providenciada pelo império almóada. Apesar de muito durável no tempo, ele já não
abrangeu a totalidade do sistema urbano do sudoeste, várias das cidades citadas
estando já dentro da esfera cristã. Os anos que se seguem à conquista por Afonso IX
de Badajoz e que fecham com a conquista de Faro por Afonso III, ou talvez melhor
ainda, com a rendição da Niebla de Ibn Mahfud e, depois deles o tratado de Badajoz
de 1267, vão pôr à prova a sobrevivência desse sistema, determinando uma nova
redefinição.
62
Ciudades y procesos de “agrarización”
en Andalucía Occidental
durante el siglo XV
Emilio Martín Gutiérrez1
Resumen
Durante el siglo XV en Andalucía Occidental – que contaba con una importante
tradición urbana de época andalusí – cada localidad controlaba un término
donde se ubicaban las explotaciones agrarias que sirven de guía para establecer
la equivalencia entre tierra cultivada y tierra productiva. Y, por supuesto, hubo
una orientación pecuaria – el papel de los espacios incultos es fundamental
– muy intensa que debe ser interpretada en esta misma línea. Mediante dos
estudios de casos – el estuario del Guadalquivir y la Bahía de Cádiz – se presta
atención al litoral – en estrecha relación con las ciudades, como centros de
consumo, y con los complejos portuarios – con la creación de poblaciones, la
organización de sus correspondientes parcelarios rurales y la explotación de
sus recursos naturales. Se trata de un proceso muy interesante de “agrarización
tardía” fechada a finales de la Edad Media.
Palabras clave
Ciudades; Agrarización; Andalucía Occidental; Siglo XV.
1
Universidad de Cádiz.
64
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Cities and processes of land reclamation in Western
Andalusia during the 15th century
Abstract
During the 15th century in Western Andalusia – which had an important
urban tradition from the Andalusian era – each town controlled a term where
located the agricultural farms that serve as a guide to establish the equivalence
between cultivated land and productive land. And, of course, there was a
livestock orientation – the role of uncultivated spaces is fundamental – very
intense that must be interpreted along these same lines. Through two case
studies – the Guadalquivir estuary and the Bay of Cádiz – attention is paid
to the coast – in close relationship with cities, as centers of consumption, and
with port complexes – with the creation of populations, the organization of
their corresponding land plots and the exploitation of its natural resources. It
is a very interesting process of land reclamation dated to the end of the Middle
Ages.
Keywords
Cities; Land reclamation; Western Andaluzia; 15th century.
1. A modo de introducción.
El miércoles 10 de febrero del año 1500 el concejo de Jerez de la Frontera accedía
a la petición presentada por los labradores Francisco Berrocal, Pedro Guillén y
Antón López y por los carpinteros Gonzalo Martínez y Pedro Sánchez. Todas estas
personas, que tenían sus correspondientes cartas de vecindad lo que les permitía
demostrar que vivían en la ciudad, habían solicitado permiso para cortar madera en
el bosque de la Jardilla ubicado en el alfoz jerezano. La decisión del gobierno de la
ciudad fue que cada uno de ellos pudiese cortar, como máximo, una “carretada” de
madera: los labradores, para el servicio de su labor, y los carpinteros, para sus tiendas.
En este procedimiento administrativo, los implicados aceptaban y se sometían a la
normativa vigente incluida en el articulado de las Ordenanzas Municipales2.
He seleccionado este ejemplo, uno de los muchos susceptible de ser localizado
en la documentación de archivo de las poblaciones andaluzas, porque dibuja
2
[A]rchivo [M]unicipal de [J]erez de la [F]rontera, Actas Capitulares, Año 1500, fol. 191v.
CIUDADES Y PROCESOS DE “AGRARIZACIÓN” EN ANDALUCÍA OCCIDENTAL [...]
65
con nitidez la gobernanza de la ciudad, las políticas desplegadas en lo tocante al
abastecimiento, el carácter proteccionista de la normativa legal y la interacción entre
el espacio urbano y el rural a finales de la Edad Media. No entra entre los objetivos
de este estudio plantear un estado de la cuestión en torno al papel de la ciudad
como agente galvanizador en las políticas de abastecimiento durante el siglo XV. En
cualquier caso, sí quisiera valorar de forma positiva el trabajo de los investigadores
que han analizado esta problemática. En las siguientes páginas, iré incluyendo las
referencias bibliográficas que me han parecido más significativas y que me han
ayudado a sostener las siguientes reflexiones.
2. Planteamiento de la problemática.
Resulta un lugar común en la historiografía europea sostener que “sul finire del
XIII secolo, l’Italia comunale è l’Italia del trionfo delle città, trionfo politico,
economico e culturale che si traduce concretamente in un tasso di popolamento
sorprendentemente alto rispetto ad altre realtà europee”3. En este sentido, y tomando
como referente el desarrollo urbano en el centro y norte de Italia entre los siglos XII
y XV, Maurizio Vitta ha puesto el acento sobre el hecho de que la calle, la plaza, la
fachada de un palacio o la construcción de un puente no sólo fueron respuestas a las
exigencias de la praxis cotidiana, sino que formaron parte de un proyecto político
de organización jerárquica de las relaciones sociales4.
Estos planteamientos se asientan, evidentemente, en una lectura interdisciplinar
en la que el historiador debe atender otros presupuestos generados desde la sociología,
la antropología, la geografía o el urbanismo por citar algunas disciplinas. En estos
mismos términos, y en relación con la historiografía portuguesa, se manifestaba
recientemente Amélia Andrade:
“Mais l’urbanisation intensive de la population portugaise, tout comme les
interrogations face à la croissance désordonnée des villes et la conséquente
complexification des expériences urbaines qui se sont développées au
Portugal à partir des années 1960, a coïncidé avec l’affirmation universitaire
d’autres branches des sciences humaines et sociales, telles que la sociologie et
l’anthropologie, qui considèrent la ville et surtout les sociétés urbaines comme
l’un de leurs objets d’étude”5.
3
CROUZET-PAVAN, Elisabeth – Le città viventi. Italia XIII-XV secolo. Siena: Salvietti & Varabuffi
Editori, 2014, p. 178.
4
VITTA, Maurizio – Il paesaggio, Una storia fra natura e architettura. Torino: Enaudi, 2005, pp. 110115 y 128.
5
ANDRADE, Amélia Aguiar – “La ville médiévale au Portugal. Perspectives et tendances”. In
ANDRADE, Amélia Aguiar; COSTA, Adelaide Millán da (eds.) – La ville médiévale en débat. Lisboa: IEM,
2013, pp. 145-156, pp. 151-152.
66
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Estas lecturas, que me interesa como formulación metodológica, las pongo en
relación con la interpretación, defendida por Patrick Boucheron y Denis Menjot,
que aboga por comprender la ciudad medieval de una forma global y que ha sido
formulada en términos de “ser”: la ciudad “es un paisaje organizado y [es], a la vez,
una sociedad y un centro” que interactuaba con el campo6. Así pues, la ciudad y el
campo no pueden ser considerados, desde luego, ni espacios opuestos ni neutrales.
No es una novedad que focalice la atención en la interacción ciudad y campo en
los siglos medievales. En efecto, “città e campagne – como en su momento señaló
Giuliano Pinto – furono elementi complementari di un processo unitario, che non
può essere correttamente inteso senza che se ne studino nessi e rapporti, dipendenze
e reciproche interferenze”7. Un diálogo entre el ámbito urbano y el rural que se fue
materializando en la “creazione di nuovi paesaggi sociali”8.
Fig. 1 – Andalucía en el siglo XIII9.
6
BOUCHERON, Patrick y MENJOT, Denis – La ciudad medieval. In PINOL, Jean-Luc (dir.) – Historia
de la Europa urbana, Vol. II. Valencia: Universidad de Valencia, 2010, pp. 14-15.
7
PINTO, Giuliano – Città e spazi economici nell’Italia comunale. Bologna: CLUEB, 1996, p. 15. Son,
también, muy sugerentes las reflexiones del mismo autor incluidas en el siguiente trabajo: PINTO, Giuliano
– “I rapporti economici tra città e campagna”. In GRECI, Roberto (ed.) – Economie urbane ed etica economica
nell’Italia medievale. Roma-Bari: Laterza, 2005, pp. 3-73.
8
RAO, Riccardo – I paesaggi dell’Italia medievale. Roma: Carocci Editore, 2015, p. 176.
9
La cartografía SIG ha sido realizada en el Seminario Agustín de Horozco de la Universidad de Cádiz
por el profesor Enrique José Ruiz Pilares.
CIUDADES Y PROCESOS DE “AGRARIZACIÓN” EN ANDALUCÍA OCCIDENTAL [...]
67
La ubicación de Andalucía Occidental – en las cercanías de El Estrecho
de Gibraltar – es un factor, no determinante pero sí a tener en cuenta, a la hora
de comprender la integración de las ciudades en las rutas comerciales entre el
Mediterráneo y el Atlántico. Tras la conquista feudal de mediados del siglo XIII,
Andalucía Occidental, que contaba con una sólida tradición urbana de época
andalusí, pasó a formar parte del Reino de Sevilla, un territorio que superaba los
45.000 km2 y en el que cohabitaron las jurisdicciones realengas y señoriales con una
clara incidencia en la organización del territorio o en las políticas fiscales.
Los medievalistas han tratado de dar respuesta al fenómeno urbano en
Andalucía Occidental mediante propuestas de jerarquización de las ciudades en
función del número de habitantes o de la extensión de las zonas urbanizadas dentro
y fuera de las murallas o de la ampliación del recinto defensivo10. De esta manera, se
ha estimado que a finales del siglo XV la mitad de los andaluces vivían en ciudades
y en “agrociudades” con más de 5.000 habitantes11.
Localidades
Habitantes
Sevilla
50.000
Écija
22.500
Jerez de la Frontera
19.000
Utrera
10.025
Carmona
9.405
Aracena
7.740
El Puerto de Santa María
7.680
Ayamonte
5.692
Moguer
5.258
Sanlúcar de Barrameda
5.080
Cazalla de la Sierra
5.000
Tabla 1 – Ciudades en Andalucía Occidental con más de 5.000
habitantes. Algunos ejemplos. Año 153312.
10
Véase, con las referencias biográficas oportunas, el trabajo de COLLANTES DE TERÁN, Antonio –
“Las ciudades de Andalucía desde el siglo XIII a comienzos del XV”. In COLLANTES DE TERÁN, Antonio
– Una gran ciudad bajomedieval. Sevilla. Sevilla: Universidadde Sevilla, 2008, pp. 225-262, p. 231. En torno
a esta problemática, resultan también oportunas las reflexiones de PINTO, Giuliano – “I nuovi equilibri tra
città e campagna in Italia fra XI e XII secolo”. In CASTAGNETTI, A. (dir.) – Città e campagna nei secoli
altomedievali, 56° Settimana di studio, Spoleto marzo 2008. Spoleto: CISAM, 2009, pp. 1055-1082, pp.
1064-1065.
11
La problemática en torno a las pequeñas ciudades, con referencias explícitas a la historiografía italiana,
francesa e inglesa, puede seguirse en GINATEMPO, Maria – “Vivere ‘a modo di città’. I centri minori italiani
nel basso medioevo: autonomie, privilegio, fiscalità”. In Città e campagne del Basso Medioevo. Studi sulla
società italiana offerti dagli allievi a Giuliano Pinto. Firenze: Olschki Editore, 2014, pp. 1-30, pp. 2-3 y 7-12.
12
DOMÍNGUEZ ORTIZ, Antonio – “La población del Reino de Sevilla en 1534”. Cuadernos de Historia.
68
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Sin entrar a discutir estos planteamientos, sería conveniente prestar atención
al dinamismo de la ciudad, a su capacidad para atraer productos y personas o
para establecer contactos con otros centros. Pero no quisiera olvidar la clave
medioambiental, con especial mención al ecosistema en el que se ubica el núcleo de
población. En este sentido me llama poderosamente la atención el enfoque de Richard
Hoffmann al plantear el estudio de las ciudades medievales como ecosistemas
especiales en la que la urbanización no es entendida como “a transformation of
nature, but creation of an entire second nature”. Así, en su opinión:
“Cities are unusual ecosystems because, unlike most others, urban ecosystems
cannot maintain or replace themselves. City ecosystems are formed and
maintained by cultural inputs, really in one sense by inputs of information.
Much as rural decisions made woodlands into fields, urban cultural ferment
generated programmes, which generated work, in this case the construction
and maintenance of the city itself. Cities are not colonized ecosystems either,
but rather wholly artificial ones. Urbanization was not a transformation of
nature, but creation of an entire second nature. Natural processes certainly
go on in every city, but many of those processes were not in that place, did not
exist, until the city was created”13.
Al igual que en otras comarcas europeas, en Andalucía Occidental hay una
amplia variedad de ecosistemas – campiñas adecuadas para el desarrollo de la
agricultura, bosques, montañas, ríos, marismas, costas – que constituye la base
para la comprensión del aprovechamiento de los recursos naturales. Las políticas
de abastecimiento de las ciudades se acoplaron a esta realidad y estuvieron en
consonancia con la diversidad de paisajes del entorno. Por ejemplo, aunque el
abastecimiento de la carne estaba en manos de los arrendadores de la carnicería, el
concejo de Sanlúcar de Barrameda controlaba y fiscalizaba su actuación: una misión
que recaía en el fiel ejecutor y en los almotacenes. Los arrendadores de la carnicería
– ubicada en las cercanías de la actual iglesia de la Caridad – estaban “obligados”14
a proveer a la población de carne de vaca y puerco desde el día de Santa María de
agosto hasta Carnestolendas, carne de vaca y carnero desde Pascua Florida hasta
Anexos de la revista Hispania 7 (1977), pp. 351-355.
13
HOFFMANN, Richard C. – An Environmental History of Medieval Europe. Cambridge: Cambridge
University Press, 2015, p. 231.
14
“Con características similares en todas las ciudades que lo adoptaron, el sistema de obligados consistía,
a grandes rasgos, en lo siguiente. Se dejaba la gestión de la venta en manos de particulares que, mediante
contrato y con la contrapartida de la exclusividad, es decir, del monopolio sobre el abasto, se comprometían
a suministrar la carne al consumidos a unos precios, durante un tiempo y con unas condiciones previamente
estipuladas con representantes de la ciudad. En el caso de Córdoba hay que señalar que el sistema tardó mucho
en establecerse, pues en la segunda mitad del siglo XV aún no se encontraba plenamente definido y sólo a
partir de la última década de esta centuria comienza a desarrollarse de forma continuada y más o menos
estable”. HERNÁNDEZ ÍÑIGO, Pilar – “Abastecimiento y comercialización de la carne en Córdoba a fines de
la Edad Media”, Meridies VIII (2006), pp. 73-120, p. 74.
CIUDADES Y PROCESOS DE “AGRARIZACIÓN” EN ANDALUCÍA OCCIDENTAL [...]
69
el día de San Juan y carne de vaca y ternera hasta finales de agosto. Los precios
de la carne seguían las tarifas de las ciudades de Sevilla y Jerez de la Frontera. Ya
que el ganado existente en el término sanluqueño era insuficiente para abastecer
a la población, las reses sacrificadas procedían de las comarcas próximas como
Trebujena, Lebrija, Las Cabezas de San Juan, Bornos, Paterna, Alcalá de los Gazules
o Arcos de la Frontera. Hay constancia documental del total de carne vendida en
Sanlúcar de Barrameda en 1532: 253 bueyes, 58 toros, 206 vacas, 75 terneras, 638
puercos y 2.967 carneros. Estas reses, en su mayoría, fueron compradas a ganaderos
de Rota, Jerez de la Frontera y Medina Sidonia. La venta de todas estas carnes supuso
para la carnicería una ganancia de 2.417.187 maravedíes15.
Como tendré ocasión de comentar posteriormente, los procesos de
“agrarización” estuvieron en consonancia con las relaciones contractuales entre los
propietarios y los campesinos, de una parte, y entre los artesanos-mercaderes y los
comerciantes, de otra.
La narrativa que aborda el siglo XV está marcada por un signo optimista:
desarrollo económico-demográfico y presencia de comerciantes que animaban
las transacciones comerciales internacionales16. De aquí se deriva, en palabras
de Mercedes Borrero, “el fuerte desarrollo del comercio de productos agrarios
especulativos, como el vino o el aceite, base de la potencia imparable de la oligarquía
andaluza ya sea la urbana o la rural”17. En efecto, en un contexto económico y social
marcado por el signo del cambio – donde algunas personas podían perderlo todo y
otras obtener sustanciales ganancias – hubo personajes que llevaron a cabo políticas
especulativas aprovechándose de las condiciones del mercado urbano y rural. Este
fue el caso, por ejemplo, del contador mayor de la Casa de la Contratación Juan
López de Recalde. Entre 1515 y 1528 invirtió casi tres millones de maravedíes
comprando casas, molinos y propiedades rústicas en Lebrija. Más del 85% de las
tierras adquiridas fueron de olivar. Aunque se convirtió en el principal propietario
de la villa, López de Recalde continuó viviendo en Sevilla. Desde esta ciudad dirigía
sus negocios mercantiles con América y con Flandes; de hecho, fue también un
propietario de barcos18.
15
MORENO OLLERO, Antonio – Sanlúcar de Barrameda a fines de la Edad Media. Cádiz: Diputación,
1983, pp. 100-104.
16
MARTÍN GUTIÉRREZ, Emilio – “El Golfo de Cádiz durante el siglo XV: una prospectiva ambiental”,
Pequenas cidades e ambiente. Da Idade Média à Época Contemporânea. Castelo de Vide. 14 a 16 de março 2019,
En prensa.
17
BORRERO FERNÁNDEZ, Mercedes – “Andalucía ante las crisis agrarias. La incidencia decisiva del
factor endeudamiento a fines de la Edad Media”. In BENITO I MONCLÚS, Pere (ed.) – Crisis alimentarias en
la Edad Media. modelos, explicaciones y representaciones. Lleida: Milenio, 2013, pp. 231-250, p. 235.
18
FRANCO SILVA, Alfonso – “Las inversiones de Juan López de Recalde, Contador Mayor de la
Casa de la Contratación”. In GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel (ed.) – I Jornadas de Historia de Lebrija. Edad
Media. Lebrija, 28-30 de octubre de 2004. Lebrija: Ayuntamiento-Universidad, 2005, pp. 101-162, pp. 105-106
y 121-123.
70
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
La conectividad es un factor clave que ayuda a valorar la inclusión de los
productos en las redes comerciales locales, comarcales e internacionales. A modo de
ejemplo, y entre los muchos casos que podrían ilustrar esta afirmación, me detengo
en los mecanismos de compraventa y distribución del carbón desde el pueblo de
Hinojos en el Aljarafe hacia Sevilla. Desde los primeros años del siglo XVI la Casa
de Medina Sidonia mostró un claro interés por controlar estas actividades mediante
su regulación a través de las Ordenanzas Municipales19.
La conectividad también podría aplicarse a la hora de valorar el paisaje
cultural: esto es, estudiar los mecanismos a través de los cuales las ciudades se
fueron autoalimentando con su propia imagen. Tomando como referente Venecia,
Bolonia, Parma o Siena, Elisabeth Crouzet-Pavan ha evidenciado que a partir del
siglo XIII se fue creando “la memoria viva di un’azione politica” asentada tanto en
el “paesaggio urbano” como en el “paesaggio documentario”20. Esta lectura también
se aprecia en las ciudades andaluzas, aunque en un momento algo más tardío: es
lo que, de forma acertada, Richard L. Kahan ha denominado “orgullo cívico”: una
expresión con la que explicaba la elaboración de historias urbanas asentadas en “un
retrato fantasioso, casi mitológico, del pasado”21. La “Civitates Orbis Terrarum”, que
incluye varias vistas de ciudades, fue publicado entre 1572 y 1617 en la ciudad de
Colonia gracias a Goerg Braun y Franz Hongenberg22. La localidad de Écija, por
ejemplo, según aparece en el grabado de Joris Hoefnagel incluido en las “Civitates
Orbis Terrarum”, fue representada desde el exterior, junto al río Genil, y en armonía
con los caminos que la unían con Sevilla y Córdoba. En el caserío sobresalen las
torres, las construcciones, los edificios monumentales, como los arcos ubicados en
cada uno de los extremos del puente, y las puertas que dan acceso a la ciudad.
“El texto que explica la imagen [se refiere a la indicación aquí se lava la lana]
reafirma el concepto de una ciudad en la que la riqueza y los negocios consisten
en mercancías de lana producida en tierras fértiles para el pastoreo, a través de
un ganado que se alimenta y engorda muy bien. Asimismo, da cuenta que por
medio de él sus habitantes sacan provecho”23.
19
ALÁN PARRA, Isabel – “Las Ordenanzas de 1504 para Huelva y el Condado de Niebla”. Huelva en su
Historia. Miscelánea Histórica 3 107-174, (1990), p. 149; OTTE SANDER, Enrique – Sevilla, siglo XVI: Materiales
para su Historia económica. Edición a cargo de Antonio Miguel BERNAL RODRÍGUEZ et al. Sevilla: Centro
de Estudios Andaluces. Consejería de la Presidencia, 2008, pp. 122-123; MARTÍN GUTIÉRREZ, Emilio – “En
los bosques andaluces. Los carboneros a finales de la Edad Media”. In ARIZAGA BOLUMBURU, Beatriz et alii
(ed.) – Mundos medievales. Espacios, sociedades y poder. Homenaje al profesor José Ángel García de Cortázar,
Vol. 2. Santander: Universidad, 2012, pp. 1561-1572.
20
CROUZET-PAVAN, Elisabeth – Le città viventi. Italia XIII – XV secolo…, pp. 167-168.
21
KAGAN, Richard L – “Ciudades del siglo de Oro”. In KAGAN, Richard L. (dir.) – Ciudades del Siglo
de Oro. Las vistas españolas de Anton van den Wyngaerde. Madrid: ediciones El Viso, 1986, pp. 68-83, p. 80.
22
MADERUELO, Javier – El paisaje. Génesis de un concepto. Madrid: Abada, 2005, p. 306.
23
MARIANA NAVARRO, Andrea – Ciudades de Andalucía: paisajes e imágenes. Siglos XIII-XVII,
Madrid: Dykinson, 2017, p. 87.
CIUDADES Y PROCESOS DE “AGRARIZACIÓN” EN ANDALUCÍA OCCIDENTAL [...]
71
3. Las ciudades y los paisajes de agua desde la “Riparia”.
Sin defender planteamientos deterministas, creo que el componente geográfico es
una clave imprescindible para adentrarse en la problemática del abastecimiento:
el historiador debe reconsiderar el fenómeno urbano en estrecha relación con
las características ambientales del territorio. En mis investigaciones vengo
prestando atención al concepto “Riparia”: según la propuesta de Ella Hermon, este
planteamiento integra interpretaciones ambientales y culturales en una lectura
holística de la gestión del agua. Mediante su aplicación se analizan tres ámbitos
diversos: el paisaje conocido con sus elementos naturales, el paisaje construido
gracias a la intervención antrópica y en función de los recursos naturales del medio
y el paisaje percibido por una sociedad en una época determinada24.
El agua es un componente fundamental del paisaje y su gestión – desde las
ciudades o desde las comunidades campesinas – es clave para entender las sociedades
bajomedievales. En Andalucía, el papel del Guadalquivir es incuestionable a la hora
de abordar la configuración y ordenación de este territorio. Desde su nacimiento en
la Cañada de las Fuentes hasta su desembocadura en Sanlúcar de Barrameda, este río
recorre una distancia de casi 650 km. marcando a la región andaluza25. Durante los
siglos medievales el Guadalquivir fue utilizado como vía de comunicación y como
vehículo para transportar productos. Los “rebaños de pinos”, que se trasladaban
desde la Sierra de Segura hasta Sevilla, satisfacían la demandada de madera por parte
de las atarazanas sevillanas y también por parte de las ciudades y villas situadas en
su ribera26. Esta conectividad tuvo consecuencia en la organización de los paisajes:
en Aracena y Constantina, pueblos de la Sierra Norte de Sevilla, se acotaron los
montes más aptos para el crecimiento del roble con el objeto de aportar madera para
los astilleros sevillanos que también se nutrían de la extraída en las Marismas del
Guadalquivir27.
El río también servía para conectar el trabajo campesino con el mercado
urbano. Se han analizado los contratos de venta de ceniza de almarjos para la
fabricación de jabón, estudiándose la conexión entre su recolección y distribución
en las marismas lebrijanas y su transporte hacia Sevilla a través de los caños de agua
de Ester de Cañas y Tarfía. El destino final del producto era el mercado sevillano.
24
HERMON, Ella (dir.) – “Riparia dans l’Empire Romain pour la définition du concept”. Actes des
Journées d’étude de Québec, 29-31 Octobre 2009. Oxford: BAR, 2010, pp. 4-5.
25
RUBIALES TORREJÓN, Javier – El río Guadalquivir. Sevilla: Junta de Andalucía, 2008.
26
GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel – “El Guadalquivir Medieval”. In RUBIALES TORREJÓN, Javier
(ed.) – El río Guadalquivir. Sevilla: Junta de Andalucía, 2008, pp. 213-221, p. 220.
27
PÉREZ-EMBID, Javier – “Deforestación y reforestación en Sierra Morena Occidental (siglos XIIIXVI)”. In CLEMENTE RAMOS, Julián (ed.) – El medio natural en la España Medieval. Actas del I Congreso
sobre Ecohistoria e Historia Medieval. Cáceres: Universidad de Cáceres, 2001, pp. 451-473, pp. 456-457.
72
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
La recolección de esta planta se efectuaba durante el verano una vez recogido el
trigo y antes de abrirse el mercado de trabajo temporal del olivar. Sevilla fue uno
de los centros principales de la industria del jabón blanco. Según las investigaciones
de Enrique Otte, durante el reinado de los Reyes Católicos este mercado estuvo
controlado por la familia genovesa de los Ripparolio. Fueron los genoveses los que
“introdujeron en Sevilla el jabón blanco, o duro, hecho con sosa, que se obtuvo con
la ceniza de plantas marinas”28.
La conexión de las ciudades de interior con el mar facilitaba el transporte de
mercancías y personas. En 1525 el humanista Fernán Pérez de Oliva escribía “El
razonamiento sobre la navegación del río Guadalquivir”, a petición de un grupo de
caballeros del cabildo de Córdoba. El discurso, estructurado en torno al binomio
ciudad-río, pretendía recuperar una vieja idea: hacer navegable el Guadalquivir entre
Córdoba y Sevilla. Una empresa de esta envergadura – no llevada a cabo, pero cuyo
impacto ambiental hubiese sido notable – exigía la eliminación de los obstáculos
que impedían el tránsito de las embarcaciones: presas, molinos, azudas, etc. Según
Pérez de Oliva la prosperidad de las ciudades estaba asociada a la navegabilidad de
sus cursos fluviales como ocurría en El Cairo y el Nilo, París y el Sena, Londres y el
Támesis, Milán y el Po y, por supuesto, Roma y el Tíber29.
El “Razonamiento” de Pérez de Oliva – que incluyo dentro de una perspectiva
urbano-céntrica de gran predicamento en la historiografía – no fue un hecho aislado.
Durante el siglo XV la gestión del agua – que no dejaba de ser una preocupación
por un bien común, como ha puesto de relieve Denis Menjot30 – estuvo ligada al
discurso político de las ciudades: no sólo fue un signo del poder urbano sobre el
territorio sino también una manifestación de honor, fama y honra de los poderosos
como se ha encargado de evidenciar María Isabel del Val en sus investigaciones31.
28
OTTE SANDER, Enrique – Sevilla y sus mercaderes a finales de la Edad Media, eds. Antonio Miguel
BERNAL y Antonio COLLANTES DE TERÁN. Sevilla: Universidad de Sevilla, 1996, pp. 65-72; BORRERO
FERNÁNDEZ, Mercedes – “Lebrija en la Baja Edad Media. Población y economía”. In GONZÁLEZ JIMÉNEZ,
Manuel (ed.) – I Jornadas de Historia de Lebrija. Edad Media. Lebrija, 28-30 de octubre de 2004. Lebrija:
Ayuntamiento, 2005, 81-100, p. 96.
29
PÉREZ DE OLIVA, Fernán – Diálogo de la dignidad del hombre. Razonamientos. Ejercicios. Edición
de María Luisa CERRÓN PUGA. Madrid: Cátedra, 1995, 188-204, p. 200. CARRIAZO RUBIO, Juan Luis
– “Fernán Pérez de Oliva y el proyecto de navegación del Guadalquivir: teoría y práctica del Humanismo”.
In GÓMEZ CANSECO, Luis (ed.) – Anatomía del Humanismo. Benito Arias Montano 1598-1998. Huelva:
Diputación, 1998, pp. 395-397; COLLANTES DE TERÁN, Antonio – “Del Betis a Guadalquivir: la victoria
de Mercurio”. In COLLANTES DE TERÁN, Antonio – Una gran ciudad bajomedieval. Sevilla. Sevilla:
Universidad, 2008, pp. 195-224, pp. 202-203; SUÁREZ QUEVEDO, Diego – “Navegación fluvial e ingeniería
militar en España, siglos XVI-XVII. De Pérez de Oliva y Antonelli a Leonardo Torriani y Luis Carduchi”,
Anales de Historia del Arte 17 (2007), pp. 177-153, 118-125. MARTÍN GUTIÉRREZ, Emilio – “Entre ambos dos
mares. Una visión orgánica de los paisajes ribereños desde la cultura del siglo XV”. In MORALES SÁNCHEZ,
María Isabel; ROBLES ÁVILA, Sara; PIRES, Maria da Natividade (eds.) – Lecturas del agua. Un acercamiento
interdisciplinar desde la cultura y el turismo. Madrid: Catarata, 2016, pp. 167-179, 170-171.
30
MENJOT, Denis – “La élite dirigente urbana y los servicios colectivos en la Castilla de los Trastámaras”.
Dominar y controlar en Castilla en la Edad Media. Málaga: Diputación, 2003, pp. 140-170.
31
VAL VALDIVIESO, María Isabel – Agua y poder en la Castilla bajomedieval. El papel del agua en
CIUDADES Y PROCESOS DE “AGRARIZACIÓN” EN ANDALUCÍA OCCIDENTAL [...]
73
Me detengo en un ejemplo que ha sido estudiado recientemente. Entre los miembros
más conspicuos de la sociedad sevillana hubo casos notables de evergetismo desde
principios del siglo XV. Así, las investigaciones de Rafael Sánchez han revelado las
acciones emprendidas por doña Guiomar Manuel para suministrar agua a la cárcel
de la ciudad desde los Caños de Carmona32. Este acueducto, los Caños de Carmona,
conducía el agua desde el manantial de la ermita de Santa Catalina, en Alcalá de
Guadaíra, hasta Sevilla. Junto a esta instalación, la ciudad tenía acceso a otros
recursos hídricos: la Fuente del Arzobispo o los Pilares de la Alameda; a ello hay
que sumar las fuentes particulares cuyas licencias se fueron concediendo durante
el siglo XV33.
En el despegue urbanístico de Sevilla el Guadalquivir siempre estuvo presente.
En las inmediaciones del río se llevó a cabo una profunda reordenación urbanística:
así, a finales del siglo XVI y según las palabras del comendador de la orden de
Santiago don Luis de Zapata y Chaves, en este espacio se localizaba el “mejor
cahiz de tierra”. Con esta expresión aludía a la zona donde se habían construido la
Catedral, el Alcázar Real, la Casa de Contratación, el almacén de Aceite, la Aduana,
las Atarazanas, el Cabildo, la Lonja de los Mercaderes, las Gradas y la Audiencia
Real34. Una realidad, desde luego, que venía de tiempo atrás: a finales del siglo XIV,
y en el entorno de la Catedral, del barrio de los Castellanos y de la collación de
San Salvador, “se daba la más alta concentración de poder municipal”35. En este
sentido, y al reflexionar sobre la problemática de la retórica política que sostenían las
actividades constructivas entre los siglos XV y XVI, Patrick Boucheron ha señalado
tres líneas argumentales que deben ser tenidas en cuenta:
“Aussi peut-on envisager, dans cette perspective, l’efficacité persuasive du
signe architectural comme la résultante d’une configuration monumentale qui
el ejercicio del poder concejil a fines de la Edad Media. Valladolid: Junta de Castilla y León, 2003, pp. 50-60;
MARITANO, Cristina – “Paisajes escritos y paisajes representados”. In CASTELNUOVO, Enrico; SERGI,
Giuseppe (eds.) – Arte e Historia en la Edad Media. Vol. I: Tiempo, espacios, instituciones. Madrid: Akal, 2009,
pp. 253-281; VAL VALDIVIESO, María Isabel – “Usos del agua en las ciudades castellanas del siglo XV”,
Cuadernos del CEMYR 18 (2010), pp. 145-166, pp. 162-165; TOSCO, Carlo – Il paesaggio storico. Le fonti e i
metodi di ricerca. Bari: Laterza, 2011, pp. 99 y 107.
32
SÁNCHEZ SAUS, Rafael – La Sevilla de doña Guiomar Manuel. Un ejemplo medieval de evergesía
cívica y cristiana. Sevilla: Real Maestranza, 2015, pp. 118-133.
33
FERNÁNDEZ CHAVES, Manuel F. – Los Caños de Carmona y el abastecimiento de agua en la
Sevilla Moderna. Sevilla: Emasesa, 2011; MARIANA NAVARRO, Andrea – Ciudades de Andalucía: paisajes e
imágenes. Siglos XIII-XVII…, pp. 182-184.
34
LLEÓ CAÑAL, Vicente – Nueva Roma. Mitología y humanismo en el Renacimiento sevillano. Madrid:
CEEH, 2012.
35
SÁNCHEZ SAUS, Rafael – Las élites políticas bajo los Trastámaras. Poder y sociedad en la Sevilla
del siglo XIV. Sevilla: Universidad, 2009, pp. 182-183. Sobre la pujanza económica y artesanal de la collación
de la collación de San Salvador durante el siglo XV: COLLANTES DE TERÁN, Antonio – “Relaciones entre
espacio urbano y actividades artesanales: algunas consideraciones a partir de la imagen que ofrece la Sevilla
bajomedieval”. In COLLANTES DE TERÁN, Antonio – Una gran ciudad bajomedieval. Sevilla, Sevilla:
Universidad de Sevilla, 2008, pp. 115-141, p. 133.
74
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
combinerait trois variables principales: le rapport des édifices aux traces du
passé de la ville dont ils réaffectent la portée mémorielle en l’actualisant; le
rapport des objets urbains entre eux par des jeux symboliques d’opposition, de
compensation et de polarisation que l’on doit envisager à plusieurs échelles,
du quartier au territoire; le rapport des lieux aux usagers de la ville qui, en
situation, par le seul fait de l’habiter, de la parcourir ou de l’énoncer, trament
leur sens social”36.
Si se centra la atención en la construcción de la Catedral, iniciada en 1433, hay que
poner en relación la organización de los circuitos productivos y la comercialización
de los materiales37. En efecto, Juan Clemente Rodríguez ha estudiado el esfuerzo
económico y organizativo de la Fábrica de la Catedral de Sevilla en lo tocante a la
extracción y transporte de la piedra desde la Sierra de San Cristóbal – en la Bahía
de Cádiz – hacia Sevilla: la piedra era transportada en carros hacia un embarcadero
en el Guadalete, desde el río se emprendía la ruta por el Atlántico hacia Sanlúcar
de Barrameda y desde esta localidad se remontaba el Guadalquivir hasta alcanzar
Sevilla38. Es decir, y como señalaba al principio de mi intervención, la ciudad es poder
político y económico, es centro comercial y financiero, es una puerta interconectada
con el exterior.
Quisiera, finalmente, añadir, aunque sea con brevedad, una pequeña reflexión
sobre la incidencia de las frecuentes riadas que condicionaron la vida de las personas
que habitaban en las ciudades y pueblos ribereños. Si desde mediados del siglo XIV
las referencias documentales a inundaciones catastróficas se multiplican en toda
Europa39, lo mismo podría decirse de las avenidas del Guadalquivir: entre 1297
y 1510 hay referencias documentales a dieciocho desbordamientos del río40. Por
citar único ejemplo, me detengo en la riada del año 1485 descrita por el cronista
castellano Andrés Bernáldez. La avenida afectó a varias localidades desde Córdoba
hasta Sevilla: Palma del Río, Guadagenil, Écija, Cantillana, Brenes, El Copero o
El Rincón. Junto a unas consecuencias que son fáciles de imaginar – muerte de
36
BOUCHERON, Patrick – “L’implicite du signe architectural: notes sur la rhétorique politique de l’art
de bâtir entre Moyen Âge et Renaissance”. Perspective. Actualité en histoire de l’art 1 (2012), pp. 173-180, p. 174
37
RODRÍGUEZ ESTÉVEZ, Juan Clemente – “Cambio y continuidad en el proyecto gótico de la catedral
de Savilla”, Laboratorio de Arte 23 (2011), 33-64, p. 47; JIMÉNEZ MARTÍN, Alfonso – Anatomía de la catedral
de Sevilla. Sevilla: Diputación, 2013, p. 11.
38
RODRÍGUEZ ESTEVEZ, Juan Clemente – Cantera y obra. Las canteras de la Sierra de San Cristóbal
y la Catedral de Sevilla. El Puerto de Santa María: Ayuntamiento, 1998, pp. 54 y 96.
39
MOUTHON, Fabrice – Le sourire de Prométhée. L’homme et la nature au Moyen Âge, Paris: La
Découverte, 2017, p 228.
40
COLLANTES DE TERÁN, Antonio – Sevilla en la Baja Edad Media. La ciudad y sus hombres,
Sevilla: Ayuntamiento, 1984, pp. 431-440; MARTÍN GUTIÉRREZ, Emilio – “Sistemas socio-ecológicos. El
aprovechamiento de las marismas en la región del Golfo de Cádiz durante el siglo XV”. In ARIAS-GARCÍA,
Jonatán; GARCÍA-CONTRERAS RUIZ, Guillermo; MALPICA CUELLO, Antonio (eds.) – Los humedales
de Andalucía como sistemas socio-ecológicos. Aproximaciones multidisciplinares, Granada: Alhulia, 2019, pp.
61-119, p. 104.
CIUDADES Y PROCESOS DE “AGRARIZACIÓN” EN ANDALUCÍA OCCIDENTAL [...]
75
personas, pérdida de ganado y cultivos – quisiera subrayar la percepción que el
cronista transmite de la ciudad y el lenguaje utilizado para describir los problemas
ocasionados por las inundaciones: miedo, destrucción, falta de abastecimiento.
“Estuvo la ciudad [de Sevilla], en aquellos once días, en muy gran temor de
ser perdida por agua. E entró el agua en ella, por las Atarazanas, e andavan
cópanos [esto es, pequeños barcos] por la ciudad. E por la Laguna andavan
barcos, que pasavan la gente de un cabo a otro. Cayéronse infinitas casas.
Derribó el río gran parte de Triana e bañó todo el monasterio de las Cuevas.
E sacaron los monjes en barcos e recibió muy gran daño el monasterio […]
Derribó el río la media parte de los arrabales de Sevilla que dicen Cestería e
Carretería. E estovo Sevilla cercada de aguas de todas partes: en manera que en
tres días no le entró pan cocido de fuera, ni otra cosa; ni podían entrar en ella
ni salir con las muchas aguas”41.
Estas situaciones fueron frecuente hasta tiempos relativamente recientes. Si la
supresión de los grandes meandros – las denominadas “cortas” – no se llevó a cabo
hasta el siglo XVIII logrando proteger a la ciudad de Sevilla, la fuerza del río no fue
controlada hasta la segunda mitad del XX gracias a las obras hidráulicas42.
4. Las ciudades y los procesos de “agrarización”.
La construcción del paisaje medieval ha sido explicada como producto de la
colonización llevada a cabo por la expansión de la sociedad feudal entre mediados
del siglo X y mediados del XIV. Las roturaciones – y la consiguiente apuesta por el
cultivo del cereal, lo que el medievalista británico Robert Bartlett ha denominado
“cerealización” – caminaron al mismo ritmo que la expansión del cristianismo en
diversas regiones europeas. Las crónicas que relataron estas empresas en las que
participaron diferentes sectores de la sociedad, recrearon el pasado inmediato a
esta colonización como “un período bárbaro y primitivo” donde predominaban los
“yermos salvajes y boscosos”. Al optar por esta lectura, los cronistas buscaban un
“efecto estético” poniendo el énfasis, de forma positiva, en la fundación de pueblos y
en la introducción de cultivos, contrarrestando, de esta forma, el “horror y soledad
desolada” del territorio y justificando, de la misma manera, la adquisición de la
propiedad por parte de los nuevos colonos43. En un artículo reciente Josep Torró ha
41
BERNÁLDEZ, Andrés – Memoria del Reinado de los Reyes Católicos. Edición y estudio por Manuel
GOMÉZ MORENO y Juan de Mata CARRIAZO. Madrid: Real Academia de la Historia, 1962, pp. 166-167.
GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel – “El Guadalquivir Medieval…”, pp. 213-221, p. 221.
42
SUÁREZ JAPÓN, Juan Manuel – “Sobre el río Guadalquivir y las riadas que asolaban a sus pueblos
y campos”. In CASTILLO MARTOS, Manuel; RODRÍGUEZ MATEOS, Joaquín; SUÁREZ JAPÓN, Juan
Manuel – Sevilla y su río en el siglo XVIII. Un proyecto ilustrado para la mejora del cauce del Guadalquivir.
Sevilla: Universidad, 2012, 65-94, p. 67.
43
BARTLETT, Robert – La formación de Europa. Conquista, civilización y cambio cultural. Valencia:
76
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
reflexionado sobre el concepto de “agrarización”, un neologismo que considera más
apropiado que el de “cerealización” utilizado por Robert Bartlett. El planteamiento
de Torró es muy interesante y resulta válido para analizar la expansión de la
sociedad feudal en detrimento de la andalusí en la península Ibérica. En su opinión,
los procesos de “agrarización” incluyen no sólo la apuesta por el cereal, sino también
por otros cultivos especulativos, como el viñedo o el olivar. De esta manera, establece
una equivalencia entre tierra cultivada y tierra productiva, un binomio “que se halla
en el núcleo de la ideología colonizadora cristiana entre los siglos XI y XIII”44.
He reflexionado recientemente en torno a esta problemática tomando como
objeto de estudio las comarcas litorales del Golfo de Cádiz. En este espacio geográfico
hubo una equivalencia entre explotación agropecuaria y “tierra productiva” y
las políticas de abastecimiento estuvieron en consonancia con la adquisición de
productos: vino, aceite, carne; pero, también, hubo un aprovechamiento de los
recursos naturales de litoral que consolidó el poblamiento y cuyos productos – sal
y atún, fundamentalmente – abastecieron los mercados de las ciudades y formaron
parte de las redes comerciales45.
4.1. Los procesos de “agrarización” en el interior.
A finales del siglo XV había cristalizado una red socioeconómica con tres nodos
activos en el estuario del Guadalquivir: Sevilla, Jerez de la Frontera y Sanlúcar de
Barrameda. En este espacio las ciudades más pobladas estaban situadas en el interior:
Sevilla con 50.000 habitantes y Jerez de la Frontera con 19.000 habitantes según
el censo de 1533-1534. Ambas fueron ciudades realengas, mientras que Sanlúcar
de Barrameda formó parte del señorío de los Medina Sidonia. Los tres núcleos, en
los que el mercado y las actividades financieras internacionales tuvieron un papel
primordial, dejaron su impronta sobre el paisaje, garantizaron el abastecimiento y
actuaron como centros exportadores hacia otras redes en Andalucía, en la península
Ibérica y en Europa.
Dejando a un lado Sanlúcar de Barrameda, que será analizada más adelante, me
detengo en los casos de Sevilla y Jerez: aunque estaban comunicadas con el Atlántico
gracias al Guadalquivir y al Guadalete, respectivamente, ambas ciudades dejaron
sentir su influencia sobre el interior. Durante el siglo XV la presión antrópica tuvo
un impacto en cada uno de los ecosistemas que formaban parte de los términos
Universidad de Valencia, 2003, pp. 208-213.
44
TORRÓ, Josep – “Paisajes de frontera: conquistas cristianas y transformaciones agrarias (siglos XII
al XIV)”, Edad Media. Revista de Historia. Monográfico 20 (2019), pp. 13-46, pp. 28-32.
45
MARTÍN GUTIÉRREZ, Emilio – “Sistemas socio-ecológicos. El aprovechamiento de las marismas
en la región del Golfo de Cádiz durante el siglo XV…”, pp. 61-119, pp. 73-79.
CIUDADES Y PROCESOS DE “AGRARIZACIÓN” EN ANDALUCÍA OCCIDENTAL [...]
77
municipales de las localidades andaluzas. Así pues, en este epígrafe me centraré en
estas dos ciudades y en Utrera y Cazalla de la Sierra.
Fig. 2 – Comarcas de la Tierra de Sevilla y término de Jerez de la Frontera.
Sevilla, gracias a su puerto fluvial, se convirtió en un centro comercial y
financiero internacional46. Tras la conquista de 1248, la ciudad ejercía su jurisdicción
sobre un amplio territorio de 12.000 km2 en los que había más de setenta poblaciones.
Su alfoz fue diseñado “como un gran marco económico” asentado en las comarcas
de La Campiña, La Sierra, La Ribera y El Aljarafe. Cada una de estas comarcas
desempeñaba funciones complementarias en virtud de la orientación de sus cultivos,
cuyos productos abastecían el mercado sevillano. Las “Ordenanzas para la tierra”
son un ejemplo claro de la influencia sevillana en la economía rural de su entorno:
en esta normativa, en palabras de Mercedes Borrero,
“Priman los cultivos orientados al mercado urbano – caso del olivar –, se regula
la utilización de las zonas de pastos – siempre a favor de determinados intereses
46
COLLANTES DE TERÁN, Antonio – “Del Betis a Guadalquivir: la victoria de Mercurio…”, pp.
195-224, pp. 217-218; GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel; BELLO LEÓN, Juan Manuel – “El puerto de Sevilla
en la Baja Edad Media”. In ABULAFIA, David; GARÍ, B. (eds.), En las costas del Mediterráneo occidental.
Las ciudades de la península Ibérica y del reino de Mallorca y el comercio mediterráneo en la Edad Media.
Barcelona: Omega, 1997, pp. 213-241.
78
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
ciudadanos – o se controla el mercado interior local para canalizar en el mismo
determinados productos”47.
De este amplio espacio geográfico, tomo en consideración dos situaciones
diversas que me servirán de guía para ilustrar mi argumentación. La primera
alude a las comunidades campesinas de los pueblos de la Sierra Norte de Sevilla
integrados en un sistema económico marcado por las actividades pastoriles, apícolas
y cinegéticas. El territorio estuvo vinculado a ciudades realengas y éstas, a su vez,
a Sevilla. La necesidad de abastecer a una población en crecimiento propició la
siembra del cereal en los llanos próximos a las poblaciones, junto con los cultivos de
huertas y viñas. Este incremento de los espacios cultivados no implicó el abandono
de las actividades vinculadas a la caza, a la apicultura y al pastoreo48. El segundo
ejemplo se refiere a la relación estrechísima entre el olivar del Aljarafe, la oligarquía
sevillana y las grandes instituciones religiosas. Los argumentos que sostienen esta
afirmación apuntan hacia el buen rendimiento del cultivo y a la introducción del
aceite en el mercado nacional e internacional a través de Sevilla49.
Jerez de la Frontera fue organizando su amplio alfoz, cuya superficie era de
139.320 hectáreas, en dos momentos diferentes: cuando fue conquistada en 1264 y
al recibir la aldea y término de Tempul en 1333. Como en el caso anterior, la ciudad
creó las condiciones adecuadas para el establecimiento de un cuerpo mercantil
y favoreció que la oligarquía urbana ejerciese su preeminencia mediante sus
propiedades agropecuarias50.
Al igual que en otras comarcas andaluzas, la ganadería dejó su impronta en los
paisajes jerezanos. En este sentido fue notable la relevancia de la industria del cuero
en cuyo trabajo participaba el 14% de la población artesana jerezana según el padrón
de 1533. La ciudad emitió varias ordenanzas en la que buscaba proteger los recursos
naturales de los bosques – casca, arrayán, lentisco, zumaque – en estrecha relación
con esta actividad artesanal. La industria del cuero estuvo conectada con el comercio
mediterráneo y atlántico: los mercaderes portugueses, genoveses e ingleses tuvieron
un peso notable. El siguiente caso es revelador: en los años centrales del siglo XVI
el curtidor genovés Guillermo Conde de Gave compraba zumaque, vendía cueros
47
BORRERO FERNÁNDEZ, Mercedes – “Influencia de la economía urbana en el entorno rural de
la Sevilla Bajomedieval”. In BORRERO FERNÁNDEZ, Mercedes – Mundo rural y vida campesina en la
Andalucía Medieval. Granada: Universidad de Granada, 2003, pp. 221-238, p. 228.
48
PÉREZ-EMBID, Javier – “Deforestación y reforestación en Sierra Morena Occidental (siglos XIIIXVI)…”, pp . 451-473.
49
BORRERO FERNÁNDEZ, Mercedes – La organización del trabajo. De la explotación de la tierra a las
relaciones laborales en el campo andaluz (Siglos XIII al XVI). Sevilla: Universidad de Sevilla, 2003, pp. 48-50.
50
MARTÍN GUTIÉRREZ, Emilio – La identidad rural de Jerez de la Frontera. Territorio y poblamiento
durante la Baja Edad Media. Cádiz: Universidad de Cádiz, 2003, pp. 71-139.
CIUDADES Y PROCESOS DE “AGRARIZACIÓN” EN ANDALUCÍA OCCIDENTAL [...]
79
a zapateros y chapineros e invertía sus ganancias comprando bienes inmuebles y
viñas en la ciudad y término de Jerez de la Frontera51.
Utrera es un buen exponente de la explotación de cereal en La Campiña y de
su comercialización hacia la ciudad de Sevilla. El dibujo de la propiedad muestra
la presencia de grandes propietarios nobles absentistas, de arrendatarios o grandes
propietarios incluidos en el grupo dirigente de la localidad, de receptores de
traspasos de partes de la renta y de campesinos que trabajaban en las explotaciones.
En aquel contexto económico, el mercado es el factor clave al vincular al propietario
absentista con el arrendatario directo.
Fig. 3 – La Campiña sevillana. La villa de Utrera.
En una encuesta elaborada en 1533 el concejo de Utrera declaraba que
anualmente se cogían hasta 70.000 fanegas de trigo y cebada y que los vecinos de
la villa vendían cada año en Sevilla hasta 20.000 fanegas de pan. El dato es, en mi
opinión, significativo: así, “algo menos del 30% de la producción de cereales del
término de Utrera era comercializado en el mercado ciudadano”. No debe extrañar,
por tanto, que la ciudad considerase a Utrera como su “despensa de pan”. Y esta
51
MARTÍN GUTIÉRREZ, Emilio – Paisajes, ganadería y medio ambiente en las comarcas gaditanas.
Siglos XIII al XVI. Cádiz-Extremadura: Universidad, 2015, pp. 75-83.
80
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
percepción cobraba aún más fuerza en los períodos de carestía. Así, según las
investigaciones de José Luis Villalonga que es el autor a quien estoy siguiendo en
estas líneas:
“La ciudad acapara de manera coercitiva tanto el grano como la fabricación
de pan de Utrera y – cuando, al traerse trigo del extranjero, se produzca una
sobreoferta – obligará a que su villa dependiente se haga cargo de una parte
muy importante del cereal que la ciudad ha comprado y ahora no puede
vender”.
Las instalaciones de transformación del grano en pan – molinos, atahonas,
hornos – es otro índice de la gobernanza de Sevilla: era la ciudad la que tomaba la
decisión sobre sus construcciones y controlaba la fuente de energía procedente del
río Guadalete y de los arroyos Salado y Utrera52.
Pero el caso de Utrera no es un ejemplo aislado. En 1533-1534 Carmona contaba
con 9.405 habitantes. Es muy probable que su proximidad a Sevilla, auténtico “polo de
atracción” para las poblaciones de su entorno, limitase su crecimiento demográfico53.
En esta localidad se observa el mismo modelo: el interés de la oligarquía sevillana
por las tierras de cereal existentes en su término municipal. Entre 1503 y 1528, el
75% de los contratos de arrendamiento de tierras de cereal fueron realizados por
propietarios que vivían en Sevilla54. En definitiva, los casos de Utrera, Carmona o
Alcalá de Guadaíra revelan la existencia:
“de un mercado que proporciona, allí donde la demanda de arrendatarios es
más intensa o donde hay menor oferta para arrendar – caso posible en el término
de Alcalá de Guadaíra –, la satisfacción de las necesidades económicas de
estos propietarios sevillanos para sus fincas situadas en términos colindantes.
También es cierto que puede influir en ello la cercanía a la urbe, pero no
creemos que éste sea un factor decisivo para el fenómeno detectado”55.
Al igual que en otras regiones peninsulares y europeas el viñedo tuvo un
carácter eminentemente social que se tradujo en propiedades familiares de pequeñas
dimensiones entre 1 y 1,5 aranzadas. Pero este minifundio no tenía capacidad para
responder a la fuerte demanda de vino de las ciudades. La necesidad de atender el
consumo interno de Sevilla y el comercio internacional focalizó la atención de la
52
VILLALONGA SERRANO, José Luis – Las estructuras agroganaderas de la campiña sevillana a
finales de la Edad Media. El caso de Utrera. Sevilla: Diputación, 2008, pp. 160-173.
53
GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel – Carmona Medieval. Sevilla: Fundación José Manuel Lara, 2006,
p. 91.
54
BORRERO FERNÁNDEZ, Mercedes – La organización del trabajo. De la explotación de la tierra a las
relaciones laborales en el campo andaluz (Siglos XIII-XVI)…, p. 142.
55
BORRERO FERNÁNDEZ, Mercedes – La organización del trabajo. De la explotación de la tierra a las
relaciones laborales en el campo andaluz (Siglos XIII-XVI)…, p. 140.
CIUDADES Y PROCESOS DE “AGRARIZACIÓN” EN ANDALUCÍA OCCIDENTAL [...]
81
oligarquía sevillana en una zona concreta de su alfoz: la Sierra Norte o Sierra de
Constantina. No en balde, como señaló en su momento Antonio Miguel Bernal,
la apuesta por la vid fue uno de los signos más notables de las transformaciones
capitalistas experimentadas por la agricultura andaluza durante el siglo XVI56.
En Cazalla de la Sierra en 1482 había 35 propietarios sevillanos – miembros de
la oligarquía de la ciudad – con propiedades vitivinícolas. Éstos, que habían invertido
su capital comprando viñas, contaban con el mercado sevillano para introducir
el producto57. Sin embargo, los vecinos de Sevilla – exceptuando los períodos de
carestía o la visita de los monarcas – no podían introducir libremente sus cosechas
de vino en la ciudad. Así pues, la falta de vino en determinados momentos estuvo
más relacionada con los problemas de comercialización que con una carencia del
producto58. Como apunta Mercedes Borrero, “la única forma no penalizada de
vender vino sería hacerlo in situ [es decir, en el mismo pueblo de Cazalla de la Sierra]
a sevillanos que lo introducirían en el mercado urbano”. El mecanismo empleado
consistió en la venta anticipada de las cosechas entre los propietarios sevillanos y los
vecinos de la Sierra59.
4.2. Los procesos de “agrarización” en el litoral.
Hasta ahora estoy aludiendo a productos obtenidos de la puesta en explotación de
espacios cultivados. Pero, como decía con anterioridad, los recursos naturales del
litoral también deben ser tenidos en cuenta a la hora de valorar este proceso de
“agrarización” tardía.
En efecto, durante el último cuarto del XV y las primeras décadas del XVI
hubo una intensificación del poblamiento en el litoral de Andalucía Occidental,
como fue el caso de Sanlúcar de Barrameda, núcleo rector de la Casa de Medina
Sidonia. Aunque carecía de un término amplio – 174 km2, nada comparable a los
casos de Sevilla y Jerez de la Frontera a los que acabo de referirme – los duques de
Medina Sidonia apostaron por esta localidad desde donde llevar a cabo sus empresas
africanas y atlánticas. Hubo una relación entre el crecimiento urbanístico de esta
villa – la edificación del “Barrio Bajo” en terrenos ganados gracias al alejamiento
del río – el volumen del tráfico comercial y la presencia de hombres de negocios.
Dicho de otra manera, el dinamismo de Sanlúcar de Barrameda – ubicada en la
56
BERNAL RODRÍGUEZ, Antonio Miguel – “Andalucía, siglo XVI. La economía rural”. In Historia de
Andalucía, Vol. IV. Madrid: Planeta, 1982, p. 151.
57
BORRERO FERNÁNDEZ, Mercedes – “Las élites rurales en Andalucía bajomedieval. Singulares
perfiles según comarcas”, Archivo Hispalense 297-298 (2015), pp. 235-262, pp. 249-250.
58
GARCÍA-BAQUERO LÓPEZ, Gregorio – Sevilla y la provisión de alimentos en el siglo XVI. Sevilla:
Diputación, 2006, pp. 201-218.
59
BORRERO FERNÁNDEZ, Mercedes – “Las élites rurales en Andalucía bajomedieval. singulares
perfiles según comarcas…, pp. 235-262, pp. 252-253.
82
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
desembocadura del Guadalquivir, puerta de entrada y salida de productos y personas
hacia Sevilla – se fue asentando en su puerto y en las actividades comerciales
conectadas con esta instalación. Como en los casos anteriores, los mercaderes
foráneos – ingleses, flamencos y, en menor medida, bretones y genoveses – tuvieron
un peso determinante60.
La complementariedad entre los espacios cultivados y los incultos fue habitual
en el término sanluqueño y la ciudad de Sanlúcar de Barrameda supo aprovecharse
de los recursos naturales incluidos en su término municipal: me refiero al Coto de
Doñana que, ubicado en la margen derecha de la desembocadura del río, estuvo
vinculado a la Casa de Medina Sidonia desde el año 1309. En este ecosistema hubo
un aprovechamiento de los recursos naturales – pastos, pesca, caza, madera – y sus
productos abastecieron a Sanlúcar de Barrameda y a otras ciudades61. En efecto,
los ecosistemas marismeños del estuario del Guadalquivir no fueron espacios
marginales, tuvieron un papel significativo y deben tener cabida en la narrativa.
Asociadas al antiguo “Lacus Ligustinus”, las Marismas del Guadalquivir tienen una
extensión aproximada de 200.000 hectáreas62.
Como decía con anterioridad, la carrera hacia el litoral fue tomando cuerpo
mediante la fundación de pueblos63. La creación de nuevas poblaciones tuvo un
impacto ambiental y generaron cambios en los paisajes. El modelo se repite en todos
los casos: las autoridades – la corona, las ciudades o los señores laicos – crearon
las condiciones adecuadas para la instalación de nuevos pobladores: entregaron
casas y solares para su construcción y lotes de tierras para que fuesen roturadas.
Así ocurrió en Chipiona en 1477, en Puerto Real en 1483, en Trebujena en 1494 o
en Villafranca de las Marismas en 1501. Y, desde luego, estos no fueron los únicos
ejemplos conocidos64. En definitiva, el binomio cereal y viñedo – pan y vino, base
60
IRADIEL MURAGARREN, Paulino – “Metrópolis y hombres de negocios”. In XXIX Semana
de Estudios Medievales. Las sociedades urbanas en la España Medieval. Estella: Gobierno de Navarra,
Departamento de cultura, Turismo y Relaciones Institucionales, 2002, pp. 277-310; LADERO QUESADA,
Miguel Ángel – Guzmán. La casa ducal de Medina Sidonia en Sevilla y su reino. 1282-1521. Madrid: Dykinson,
2015, pp. 127-127.
61
MUÑOZ BORT, Domingo – La ganadería caballar en la villa de Almonte. Introducción histórica,
Almonte: Ayuntamiento, 2004, pp. 31-35; GRANADOS CORONA, Manuel – “La Casa de Medina Sidonia y
el Coto de Doñana”. In RUBIALES TORREJÓN, Javier (coord.) – El río Guadalquivir. Del mar a la marisma.
Sanlúcar de Barrameda. Sevilla: Junta de Andalucía, 2011, pp. 143-159, p. 157.
62
ARTEAGA MATUTE, Oswaldo y ROSS, Ana María – “El proyecto geoarqueológico de las Marismas
del Guadalquivir. Perspectivas arqueológicas de la campaña de 1992”, Anuario Arqueológico de Andalucía
92 II, Sevilla, (1995), pp. 329-339; LAGÓSTENA BARRIOS, Lázaro – La percepción de la ribera en la costa
atlántica de la provincia Hispania Ulterior Baetica. El Lacus Ligustinus. In HERMON, Ella, WATELET, Anne
(dirs.) – Riparia un patrimoine culturel. La gestion intégrée des bords de l’eau. Actes de l’atelier Savoirs et
pratiques de gestion intégrée des bords de l’eau. Sudbury, 2012. Oxford: BAR, 2014, pp. 187-197.
63
COLLANTES DE TERÁN, Antonio – “Nuevas poblaciones del siglo XV en el Reino de Sevilla”,
Cuadernos de Historia VII (1977), pp. 283-336.
64
COLLANTES DE TERÁN, Antonio – “Nuevas poblaciones del siglo XV en el Reino de Sevilla…”,
pp. 283-336; FRANCO SILVA, Alfonso – “Población y reparto de la propiedad en Chipiona en el primer
cuarto del siglo XVI”. In ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz et al. – Mundos medievales. Espacios, sociedades
CIUDADES Y PROCESOS DE “AGRARIZACIÓN” EN ANDALUCÍA OCCIDENTAL [...]
83
de la alimentación, y productos fundamentales en las políticas de abastecimiento –
tuvo un peso decisivo en esta “agrarización” tardía:
“Para fazer e hedificar las dichas casas e poner e plantar la dicha arançada
de viña cada uno, mando que les sean dados solares en que aya e puedan asy
mesmo fazer sus corrales e pertenençia para seruidumbre de las dichas casas,
syn que por ello paguen tributo ni otra cosa alguna. E asy mesmo les sean
dadas en lugar perteçiente e prouechoso a ellos tierra en que aya dos arançadas
a cada uno, de la manera que se dauan a los otros vezinos que allí solían biuir
e poblar”65.
El binomio salinas-almadrabas es una guía válida para analizar la “agrarización”
como proceso que permite comprender la consolidación del poblamiento en el litoral.
Además, sus productos – la sal y el atún – fueron demandados por las ciudades y
formaron parte de las rutas comerciales.
El desarrollo de las almadrabas se asentó en la comprensión del ciclo biológico
de los túnidos. Los duques de Medina Sidonia pretendieron hacer valer el control
absoluto sobre las almadrabas en el litoral atlántico andaluz. Pero este monopolio
fue siempre cuestionado, originándose enfrentamientos con otros señores
jurisdiccionales – como fue el caso, por ejemplo, del Marqués de Cádiz – que no
hacían sino revelar la importancia de estas instalaciones en lo tocante al control
del territorio y al valor del producto. Así, por ejemplo, las almadrabas ubicadas en
Cádiz y que formaron parte del patrimonio de la Casa de Arcos.
Los gastos para armar una almadraba eran elevados: según el Libro de Cuentas
del duque de Medina Sidonia, en 1513 se invirtieron 769.116 maravedíes y 730
fanegas de trigo en las almadrabas de Conil. Este dato puede completarse con la
información que, para el mismo complejo, tenemos de 1528: en aquel año alrededor
de 225 personas trabajaron en las almadrabas de Conil66.
El atún de las almadrabas del duque de Medina Sidonia se dirigía hacia
Barcelona, Valencia, Tarragona, Alicante, Cartagena y hacia las ciudades del sur de
Italia: Cagliari, Nápoles, Livorno. En los años treinta del siglo XVI se exportaban
anualmente alrededor de 600 barriles grandes. Junto al consumo de atún en las
y poder. Homenaje al profesor José Ángel García de Cortázar y Ruiz de Aguirre. Vol. II. Santander: Universidad
de Cantabria, 2012, pp. 1319-1338; GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel – La Carta Puebla de Trebujena (1494).
Trebujena: Ayuntamiento, 1994; COLLANTES DE TERÁN, Antonio; CARRIAZO RUBIO, Juan Luis,
VILLALONGA SERRANO, José Luis (eds.) – Carta Puebla de Villafranca de las Marismas. Sevilla: Diputación,
2003.
65
GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel – La Carta Puebla de Trebujena (1494)…, p. 18.
66
LADERO QUESADA, Miguel Ángel – “Las almadrabas de Andalucía”. Boletín de la Real Academia
de la Historia CXC t. III (1993), pp. 345-354, p. 351; FRANCO SILVA, Alfonso; MORENO OLLERO, Antonio –
“Datos sobre el comercio del puerto de Sanlúcar de Barrameda en el primer tercio del siglo XVI”. In Actas del II
Coloquio de Historia Medieval Andaluza. Hacienda y comercio. Sevilla, 8-10 de abril, 1981. Sevilla: Diputación,
1982, pp. 284-296, p. 292.
84
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
ciudades, los duques de Medina Sidonia entregaban varias piezas a los monasterios
y conventos de su señorío, a sus familiares, criados y procuradores encargados de
tramitar sus pleitos en la Chancillería de Granada. Se trataba, por tanto, de un
sistema socioeconómico “fundamentado en una “economía de prestigio”67.
Tipo de captura
Año 1514
Año 1515
Año 1516
Atún blanco y
badán
1.912.639 mrs.
235.000 mrs.
940.423 mrs.
Cabezas y menudos
164.969 mrs.
63.808 mrs.
54.234 mrs.
Atunes a la vara
73.971 mrs.
35.246 mrs.
Mojama seca
41.818 mrs.
12.211 mrs.
17.530 mrs.
44.059 mrs.
76.275 mrs.
Mojama verde
-
-
Tabla 2 – Valor, en maravedíes, de las capturas de atunes
en las almadrabas de Cádiz. Años 1514-151668.
A finales de la Edad Media el paisaje salinero del Golfo de Cádiz se concentraba
en el Algarve, en el litoral onubense, en el Estuario del Guadalquivir, en la Bahía de
Cádiz, en la desembocadura del río Barbate y en las marismas de Palmones en el
Estrecho de Gibraltar.
Las explotaciones salineras de los duques de Medina Sidonia – en la costa
onubense, en el estuario del Guadalquivir y en la Bahía de Cádiz – estaban en
estrecha relación con las almadrabas. Los duques llevaron a cabo una intensa
actividad roturadora que conllevó la transformación de los ecosistemas en las
desembocaduras de los ríos Guadalquivir y Barbate y en la bahía gaditana69.
A finales de la Edad Media se intensificaron las roturaciones de marismas y la
creación de paisajes salineros en la bahía gaditana. Estos movimientos roturadores
fueron dirigidos y alentados por los concejos, los grandes señores y las oligarquías
67
FRANCO SILVA, Alfonso y MORENO OLLERO, Antonio – “Datos sobre el comercio del puerto de
Sanlúcar de Barrameda en el primer tercio del siglo XVI…”, pp. 284-296, pp. 292-293; BELLO LEÓN, Juan
Manuel – “Almadrabas andaluzas a finales de la Edad Media. Nuevos datos para su estudio…”, pp. 81-113, p.
95; FLORIDO DEL CORRAL, David – “Las almadrabas andaluzas: entre el prestigio y el mercado”. In CHIC,
Genero (dir.) – Economía de prestigio versus economía de mercado. Sevilla: Padilla Libros, 2006, pp. 193-214,
pp. 2-11.
68
BELLO LEÓN, Juan Manuel – “Almadrabas andaluzas a finales de la Edad Media. Nuevos datos para
su estudio”. Historia. Instituciones. Documentos 32 (2005), pp. 81-113, p. 95.
69
LADERO QUESADA, Miguel Ángel – “Las almadrabas de Andalucía…”, pp. 345-354.
CIUDADES Y PROCESOS DE “AGRARIZACIÓN” EN ANDALUCÍA OCCIDENTAL [...]
85
urbanas. Desde el último cuarto del siglo XV y durante las primeras décadas del
XVI y con la implicación del concejo de Jerez de la Frontera, del marqués de Cádiz y
del duque de Medinaceli las salinas se fueron instalando en los espacios marismeños
de Jerez de la Frontera-Puerto Real, El Puerto de Santa María y Cádiz. En los años
treinta del siglo XVI y en las décadas siguientes, estas explotaciones se fueron
extendiendo por los términos de Chiclana de la Frontera y la Isla de León, la actual
San Fernando, gracias a la labor emprendida por el duque de Medina Sidonia y el
duque de Arcos70.
Fig. 4. – Explotaciones salineras en el Golfo de Cádiz. Siglo XV.
A finales de la Edad Media El Puerto de Santa María, villa incluida en el
señorío del ducado de Medinaceli, era un núcleo comercial, salinero y pesquero.
Su ubicación en la bahía gaditana, junto a la desembocadura del Guadalete, había
resultado crucial para la consolidación y desarrollo de esas actividades económicas.
Un índice del valor alcanzado por la villa lo constituye la colonia de mercaderes
italianos, genoveses principalmente, que se habían asentado en ella. No es de
extrañar que en 1528 la población de El Puerto de Santa María alcanzase los 1.586
vecinos, alrededor de 7.000 habitantes71.
70
MARTÍN GUTIÉRREZ, Emilio – “Sistemas socio-ecológicos. El aprovechamiento de las marismas
en la región del Golfo de Cádiz durante el siglo XV…”, pp. 61-119, pp. 95-96.
71
IGLESIAS RODRÍGUEZ, Juan José – “Ciudad y fiscalidad señorial: las rentas del condado de El Puerto
86
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
El papel de Jerez de la Frontera, núcleo urbano de referencia en la bahía
gaditana, en relación con las salinas es significativo. Una vez depositada la sal en los
almacenes de la ciudad, una parte era distribuida entre los vecinos y otra entraba en
los circuitos comerciales. Al igual que había ocurrido en los años anteriores, el 22 de
agosto de 1489 el concejo repartía medio cahiz de sal entre los monasterios de San
Francisco, Santo Domingo y Santa María de la Merced.
Los repartos de sal entre las diferentes collaciones de la ciudad muestran un
incremento en el número de cahíces, lo que constituye un índice del valor de la
producción.
Años
Cahíces repartidos
Índice
1450
182
100
1454
180
100
1489
270
149,45
1490
275
151,09
1492
210
115,38
1494
254
139,56
1500
300
164,83
Tabla 3 – Distribución cahíces de sal en Jerez de la Frontera72.
Desde 1489 las cifras aumentan siendo sólo la cosecha de 1492 inferior a las
restantes, aunque superior al índice 100. Este incremento estaba en consonancia con
las explotaciones salineras en Puerto Real, villa incluida en la jurisdicción de Jerez
de la Frontera.
5. Consideraciones finales.
“L’Allegoria del Buon e Cattivo Governo” – fresco pintado por Ambrogio Lorenzetti
en 1338-1339 – se acoplaba al ideario político del Gobierno de los Nueve en Siena:
una ciudad bien gobernada generaba paisajes ordenados, favorecía el adecuado
aprovechamiento de los recursos naturales, amparaba el libre tránsito de las personas
y propiciaba el desarrollo de las actividades artesanales y comerciales73.
de Santa María en el siglo XVI”. In Actas del VI Coloquio Internacional de Historia Medieval de Andalucía. Las
ciudades andaluzas (Siglos XIII-XVI). Málaga: Universidad de Málaga, 1991, pp. 215-224, p. 215.
72
MARTÍN GUTIÉRREZ, Emilio – “Salinas y explotaciones salineras en la Bahía de Cádiz a finales
de la Edad Media”. In MORÈRE MOLINERO, Nuria (ed.) – Las salinas y la sal de interior en la Historia:
economía, medio ambiente y sociedad, Tomo I. Madrid: Dykinson, 2007, pp. 535-560, p. 547.
73
DESSÌ, Rosa Maria – “Il bene comune nella comunicazione verbale e visiva. Indagini sugli affreschi
CIUDADES Y PROCESOS DE “AGRARIZACIÓN” EN ANDALUCÍA OCCIDENTAL [...]
87
Aunque “L’Allegoria del Buon e Cattivo Governo” la interpreto como un
discurso político, como un panegírico – incluso, como un “miedo” que hay
que conjurar – aludo a este fresco porque me sirve para ilustrar con claridad la
interacción entre los ámbitos urbanos y rurales. De hecho, esta comunicación
estuvo vigente hasta las grandes transformaciones generadas por las revoluciones
industriales durante el siglo XIX o las urbanísticas desde la segunda mitad del XX.
Ambos procesos han provocado profundos cambios, marcando en la actualidad una
fractura entre estos dos ámbitos con una indudable repercusión en la historiografía.
Como sostiene el antropólogo y geógrafo norteamericano David Harvey, “los lugares
y las formas locales de vida se construyen en virtud de una variedad de procesos
socioecológicos entrecruzados que se producen a niveles espacio-temporales muy
distintos”. Su método, aplicado para analizar la problemática urbana de nuestra
contemporaneidad, es una herramienta teórica válida con la que adentrarse en las
ciudades y campos de época medieval74.
La construcción cultural del paisaje se fue haciendo desde la ciudad como
exponente paradigmático de la civilización. No conviene olvidar que durante los
siglos bajomedievales y modernos los discursos de las historias urbanas se ajustaron
al género de las “laudes civitates” y al tópico del “locus amoenus”75. Como ya he
comentado, las vistas de ciudades incluidas en las “Civitates Orbis Terrarum” son
un ejemplo notable:
“En gran medida, el carácter de las Civitates está determinado por sus mejores
vistas urbanas, las de Joris Hoefnagel, quien aportó más y mejores vistas que
ningún otro. Las ciudades españolas de Hoefnagel en particular fueron la
más perfecta expresión de lo que en su tiempo eran los grabados de paisajes
urbanos”76.
Esta lectura urbano-céntrica ha sido la predominante en la narrativa. Sin
embargo, este discurso se ha asentado en una lectura que ha evidenciado los
conflictos entre la ciudad y el campo o entre los espacios cultivados y los incultos.
Podría ser aconsejable ampliar nuestra mirada sobre los paisajes con lecturas
alternativas que presten atención a la interacción entre el ámbito urbano y el rural
del Buon Governo”. In Il bene comune: forme di governo e gerarchie sociali nel Basso Medioevo. Atti del XLVIII
Convegno storico internazionale. Todi, 9-12 ottobre 2011. Spoleto: Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo,
2012, 89-130; BOUCHERON, Patrick – Scongiurare la paura. La forza politica delle immagini. Milano: Jaca
Book, 2018.
74
HARVEY, David – Senderos del mundo. Madrid: Akal, 2018, p. 133.
75
MARIANA NAVARRO, Andrea – Ciudades de Andalucía: paisajes e imágenes. Siglos XIII-XVII…,
pp. 30-56.
76
HAVERKAMP-BEGEMANN, Egbert – “Las vistas de España de Anton van den Wyngaerde”. In
KAGAN, Richard L. (dir.) – Ciudades del Siglo de Oro. Las vistas españolas de Anton van den Wyngaerde.
Madrid: Ediciones El Viso, 1986, pp. 54-67, p. 65.
88
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
manifestada en la complementariedad entre las propiedades urbanas, agropecuarias
y el aprovechamiento de los recursos silvopastoriles y pesqueros.
Aunque sea con brevedad, no quisiera pasar por alto un tema que – aunque
ha estado presente en mi texto – no he podido abordar por cuestiones de espacio.
Me refiero a la profunda transformación derivada de la circulación de la moneda en
la ciudad y en el campo a finales de la Edad Media. Si, por un lado, los excedentes
propiciaron que se invirtiesen en procesos de comercialización, por otro, el aumento
de la población provocó que muchas personas formasen parte del mercado laboral77.
Durante el siglo XV Andalucía Occidental vivió una fase de expansión
– con un crecimiento de la producción agraria – que vino acompañada de un
desarrollo comercial basado en productos agrarios especulativos: vino y aceite,
fundamentalmente. Pero esta lectura – asentada en una narrativa optimista que
sostiene el relato del siglo XV – no puede poner sordina a los ciclos de crisis que
dejaron sentir sus efectos – aumento de los procesos de endeudamiento e incremento
de la pobreza – sobre los grupos más desfavorecidos. Desde los inicios del siglo XVI
la intensidad de los períodos de crisis se fue acentuando. La imposición de una
Tasa de precios para el cereal por los Reyes Católicos en 1502 tuvo unos efectos
desastrosos. Como apunta Mercedes Borrero esta política intervencionista “hizo
aún más compleja la adquisición de alimento y provocó una mayor incidencia
negativa en los niveles más bajos de la sociedad”78.
He analizado esta problemática a través de un caso de estudio: la crisis de
1503-1507 en Jerez de la Frontera. Las buenas cosechas de la década de los noventa
del siglo XV propiciaron un incremento en las exportaciones de cereal por motivos
comerciales y un aumento de las sacas por razones políticas. Si desde el año 1500
el precio del pan fue en alza, la Tasa de 1502 contribuyó a intensificar los signos de
una crisis anunciada: acaparamiento y especulación de cereal y endeudamiento de
los sectores más desfavorecidos. El gobierno de la ciudad intentó buscar soluciones:
prohibiendo que los particulares vendiesen el trigo y la cebada sin la licencia del
corregidor o concentrando la venta de cereal en la alhóndiga79.
La crisis de 1503-1507 – y otras que se fueron produciendo en diversas comarcas
– es una prueba de la transformación profunda que estaba afectando a las sociedades
europeas bajomedievales. Es desde la óptica del cambio, de la transformación,
desde donde he querido plantear la problemática del abastecimiento de las ciudades
77
BORRERO FERNÁNDEZ, Mercedes – “El subempleo agrario. Un modo de vida común en los
campos andaluces a finales de la Edad Media”. Studia Historica. Historia Medieval 32 (2014), pp. 23-45, p. 27.
78
BORRERO FERNÁNDEZ, Mercedes – “Andalucía ante las crisis agrarias. La incidencia decisiva del
factor endeudamiento a fines de la Edad Media…”, pp. 231-250, p. 235-237.
79
MARTÍN GUTIÉRREZ, Emilio – “La crisis de 1503-1507 en Andalucía. Reflexiones a partir de
Jerez de la Frontera”. In OLIVA HERRER, Hipólito Rafael; BENITO I MONCLÚS, Pere (eds.) – Crisis de
subsistencia y crisis agrarias en la Edad Media. Sevilla: Universidad de Sevilla, 2007, pp. 277-302, pp. 281-290.
CIUDADES Y PROCESOS DE “AGRARIZACIÓN” EN ANDALUCÍA OCCIDENTAL [...]
89
durante el siglo XV; y lo he querido hacer sin perder de vista la imbricación entre lo
urbano y lo rural. La respuesta a este problema es compleja, porque, al y fin y al cabo,
como apuntaba David Harvey en su análisis de los problemas de nuestra sociedad
contemporánea:
“Hay un problema ecológico, un problema urbano, un problema de comercio
internacional, y sin embargo parecemos incapaces de decir nada profundo
sobre ninguno de ellos. Cuando decimos algo, parece trillado y bastante
ridículo. En resumen, nuestro paradigma no está funcionando bien”80.
80
HARVEY, David – Senderos del mundo…, p. 30.
90
O abastecimento alimentar e vinícola
de Ceuta na primeira metade
do século XV
José Miguel Zenhas Mesquita1
Resumo
O presente artigo investiga o abastecimento alimentar, em particular de
vinho, a Ceuta na primeira metade do século XV. Uma vez determinadas as
características e especificidades do perfil da ocupação portuguesa no Norte
de África, serão expostas as diferentes formas de abastecimento encontradas
localmente e estruturadas a partir do reino. A Casa de Ceuta, como principal
instituição criada com a finalidade de gerir o abastecimento da praça norteafricana, conta com um conjunto de cartas de quitação, datadas da década
de 1450, que descrevem a sua atividade e fornecem elementos que permitem
compreender os mecanismos logísticos empregues na recolha e redistribuição
de vinhos, desde a sua origem até ao seu destino final. Desta forma poderá
concluir-se que as condicionantes militares necessárias à manutenção de Ceuta
levaram à criação de meios, que a partir do reino, garantiam o fornecimento
regular de cereais e vinho, oriundos maioritariamente das lezírias ribatejanas e
redistribuídos para África a partir de Lisboa.
Palavras-chave
Vinho; Abastecimento; Lisboa; Ceuta; Casa de Ceuta.
1
IEM, NOVA FCSH.
92
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
The food and wine supply of Ceuta in the first half
of the 15th century.
Abstract
This article investigates Ceuta’s food supply, namely wine, in the first half of
the 15th century. Once the characteristics and specificities of the Portuguese
occupation in North Africa have been determined, the different forms of supply
structured (locally and from the kingdom) will be presented and discussed.
The Casa de Ceuta, an institution created to manage the logistics and supply of
goods to that North-African port, has a set of letters of acquittance, dated from
the 1450s, which describe its activity and provide elements that help us recreate
the logistical mechanisms employed in the collection and redistribution of
wines from its origin to its final destination. In this way, it can be concluded
that the military conditions necessary for the maintenance of Ceuta, led to the
creation of logistical means which guaranteed the regular supply of cereals and
wine, mostly collected in the Tagus valley, channeled to Lisbon and then to
North Africa.
Keywords
Wine; Supply; Lisbon; Ceuta; Casa de Ceuta.
Introdução.
Após a conquista de Ceuta, em 21 de agosto de 1415, sucederam-se dias de pilhagem,
marcados pela destruição das infraestruturas urbanas e dos bens no seu interior2. Os
ceutís, debandaram perante a chacina generalizada, queimando e arrasando, à sua
passagem, as hortas, pomares e campos de cultivo que bordejavam a cidade, para
que as recém-chegadas forças de ocupação se vissem privadas da capacidade de se
abastecerem a partir do terreno3. Esta prática, vulgar em todo o período medieval4,
2
ZURARA, Gomes Eanes de – Crónica da Tomada de Ceuta por el Rei D. João I composta por Gomes
Eanes de Zurara. Ed. Francisco Maria Esteves PEREIRA. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1915, pp.
234-235.
3
ZURARA, Gomes Eanes de – Crónica da Tomada de Ceuta …, p. 240.
4
VERBRUGGEN, J. F. – The Art of Warfare in Western Europe during the Middle Ages from the Eight
O ABASTECIMENTO ALIMENTAR E VINÍCOLA DE CEUTA [...]
93
correspondia àquilo que Philip Slavin classificou como “ecocídio”5.
Foi perante este cenário que D. João I decidiu reclamar para Portugal uma
posição-chave na única via marítima de ligação entre o Mediterrâneo e o Atlântico.
A cidade que pouco antes da conquista era habitada por 20.000 a 25.000
habitantes, havia perdido a sua finalidade como entreposto comercial, tendo sido
convertida em reduto militar6. O istmo onde se localiza oferecia proteção natural
a investidas por mar, desde que fosse garantida a superioridade naval daqueles que
a defendiam, ficando o acesso ao interior limitado pelo sistema montanhoso que
permanecera em mãos inimigas7. Após a sua ocupação pelos portugueses, Ceuta
foi inicialmente povoada por cerca de 3.000 homens8, passando este novo reduto
a servir, na primeira metade do século XV, como base às incursões guerreiras
promovidas contra o reino de Fez e como porto de abrigo aos corsários portugueses
que operavam no estreito de Gibraltar9.
Uma vez determinado o número hipotético de habitantes e o perfil de ocupação
desta praça, nas primeiras décadas de presença portuguesa, cabe levantar a questão
de como a mesma foi abastecida de produtos alimentares.
Quem primeiro problematizou as questões da logística e do abastecimento
alimentar de Ceuta foi A. H. de Oliveira Marques na obra Introdução ao Estudo da
Agricultura em Portugal: a questão cerealífera durante a Idade Média10. Em capítulo
próprio dedicado ao Norte de África, os desafios do abastecimento de Ceuta
foram interpretados de forma complementar à produção e circulação de cereal em
Portugal. Com recurso às cartas de quitação existentes para meados do século XV,
o autor demonstrou que Ceuta, cronicamente deficitária em cereal, era abastecida
regularmente deste produto pela Casa de Ceuta, que recolhia em Lisboa a produção
das lezírias ribatejanas (Valada, Vila Franca, Muje, Toxe e Santarém) destinadas a
este efeito.
Century to 1340. 2ª ed. Woodbridge: The Boydell Press, 1998, pp. 331-338.
5
SLAVIN, Philip – “Warfare and Ecological Destruction in Early Fourteenth-Century British Isles”.
In Environmental History 19 (3), (2014), pp. 528-550. No mesmo sentido vejam-se as práticas guerreiras
de devastação dos recursos produtivos realizada em Portugal no século XIV descritas por Miguel Gomes
Martins. MARTINS, Miguel Gomes – “Ficou aquela terra estragada que maravylhosa cousa era de ver.
Guerra e paisagem no Portugal medieval (1336-1400)”. In GONÇALVES, Iria (coord.) – Paisagens Rurais e
Urbanas: fontes, metodologias, problemáticas – Actas das II Jornadas. Lisboa: Centro de Estudos Históricos –
Universidade Nova de Lisboa, 2006, pp.130-134.
6
ABULAFIA, David – Cambridge in Morocco. Perspectives on North African and Islamic Studies.
Cambridge: The University of Cambridge, 2013, p. 82; MONTEIRO, João Gouveia; COSTA, António Martins
– 1415. A conquista de Ceuta. Barcarena: Letras & Diálogos, 2015, p. 50.
7
ABULAFIA, David – Cambridge in Morocco …, p. 61.
8
MONTEIRO, João Gouveia; COSTA, António Martins – 1415. A conquista de Ceuta…, p. 39.
9
MESQUITA, José Miguel Zenhas – O abastecimento alimentar de Ceuta, 1415-1458. Porto:
Universidade de Letras, 2017. Dissertação de mestrado, pp. 24-25. Disponível em https://repositorio-aberto.
up.pt/handle/10216/110153.
10
MARQUES, A. H. de Oliveira – “O Norte de África”. In Introdução à História da Agricultura em
Portugal. A questão cerealífera durante a Idade Média. 2ª ed. Lisboa: Edições Cosmos, 1968, pp. 231-245.
94
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
David Lopes, em A Expansão Portuguesa em Marrocos11, recuperou as
problemáticas do abastecimento de Ceuta, através das cartas de quitação outorgadas
para este efeito a Gonçalo Pacheco, compreendidas entre os anos de 1451 e 1454.
O seu foco de análise foi sobretudo a orgânica administrativa da Casa de Ceuta,
a cujas cartas se referiam, e às questões da tutela em que recaía a designação dos
ofícios que a compunham. Contudo, não deixou de destacar os cereais, sobretudo
o trigo, como o principal produto a ser expedido com destino a África. Teresa
Ferreira Rodrigues, trabalhando as mesmas cartas de quitação, num artigo com a
finalidade de problematizar o papel do Algarve nas relações com Ceuta durante o
reinado de D. Afonso V12, concluiu que a Casa de Ceuta foi a manifestação de um
processo de centralização, em Lisboa, da recolha de financiamento e de alimentos
com destino à manutenção da praça africana. A atenção do seu trabalho seguiu
predominantemente as contribuições em dinheiro e a sua entrega a oficiais régios,
seguindo-se colateralmente a recolha de bens alimentares, onde pela primeira vez
foi destacado não só a recolha de grandes quantidades de cereal, mas também, a
existência de vinho, e em menor dimensão a carne.
A primeira monografia com um capítulo dedicado ao abastecimento de Ceuta
deve-se a Paulo e Isabel Drummond Braga13, no qual se descreveram as várias formas
de abastecimento da cidade, tais como a produção local, as pilhagens, o corso, o
mercado e as mercadorias providenciadas pela Casa de Ceuta. Esta exposição
referia-se predominantemente a uma cronologia posterior às primeiras décadas
de ocupação, situando-se mais precisamente na época moderna, altura em que as
problemáticas associadas à logística de abastecimento haviam mudado.
Em 2017, com a minha dissertação de mestrado intitulada O abastecimento
alimentar de Ceuta, 1415-145814, procurei determinar as características especificas da
ocupação portuguesa em Ceuta, na primeira metade do século XV, que orientavam
as necessidades de abastecimento alimentar e, consequentemente, os agentes e
instituições responsáveis pelo provimento, as diferentes formas de abastecimento
encontradas, tanto de origem local como de origem metropolitana, tendo destacado
o papel da Casa de Ceuta no quadro geral do abastecimento, à luz das informações
recolhidas nas cartas de quitação já aqui referidas.
O abastecimento alimentar de Ceuta na primeira metade do século XV não é,
portanto, um tema inédito na produção historiográfica portuguesa. Genericamente,
LOPES, David – A Expansão Portuguesa em Marrocos. Lisboa: Teorema, 1989.
RODRIGUES, Teresa Ferreira – “Relações entre o Algarve e Ceuta no reinado de D. Afonso V (As
Cartas de Quitação)”. In Actas das I Jornadas de História Medieval do Algarve e Andaluzia. Loulé: Câmara
Municipal de Loulé, 1987, pp. 243-269.
13
BRAGA, Isabel Drummond; BRAGA, Paulo Drummond – “Abastecimento”. In Ceuta Portuguesa
(1415-1656). Ceuta: Instituto de Estudios Ceutíes, 1998, pp. 81-98.
14
MESQUITA, José Miguel Zenhas – O abastecimento alimentar de Ceuta, 1415-1458….
11
12
O ABASTECIMENTO ALIMENTAR E VINÍCOLA DE CEUTA [...]
95
as formas de abastecimento que serviram a cidade é conhecido. De todos os bens
alimentares necessários à sobrevivência da guarnição portuguesa, coube aos cereais,
nas questões da sua origem, recolha e logística de transporte, o principal destaque
na produção científica de conhecimento até ao momento. Contudo, a par da ênfase
empregada à relevância do cereal pela tradição historiográfica portuguesa, de igual
modo será importante salientar as questões relacionadas com o abastecimento de
vinho, alimento inseparável do pão em todas as refeições.
Este artigo pretende investigar, precisamente, os problemas concretos que
a necessidade do seu abastecimento levantou. Em primeiro lugar, será feita uma
exposição das características e condicionantes do acesso à produção e recolha
de alimentos no território ao redor de Ceuta. Seguir-se-á a demonstração da
necessidade do transporte de mantimentos desde o reino até ao Norte de África, e os
consequentes mecanismos de abastecimento que foram criados para esse efeito. Por
fim, serão expostos os resultados da recolha de informação sobre vinho nas cartas
de quitação emitidas por Afonso V e outorgadas a Gonçalo Pacheco, tesoureiro da
Casa de Ceuta15, para os anos de 1451-1454, e a carta de quitação outorgada a João
Vaz, almoxarife do celeiro de Santarém, correspondente aos anos de 1451-145316.
Estes documentos, provenientes da chancelaria régia, foram editados por Pedro
de Azevedo e correspondem à fonte de informação mais detalhada sobre o vinho
como produto de abastecimento para Ceuta, na primeira metade da centúria de
quatrocentos. Com as ressalvas necessárias à sua interpretação, será possível traçar
uma visão radiográfica da origem dos vinhos, a sua recolha, o seu acondicionamento
e transporte, desde as lezírias ribatejanas, ou dos reguengos próximos à capital, até
à Casa de Ceuta, centro aglutinador e redistribuidor desta mercadoria para o seu
destino final.
1. Abastecimento local.
Nos anos em que permaneceu um bastião isolado, até 1458, Ceuta viu a capacidade
produtiva do seu hinterland seriamente condicionada pela estratégia de defesa iniciada
por D. Pedro de Meneses. Como forma de evitar a hipótese de um cerco prolongado
foi criada uma zona tampão de seis léguas, através da prática continuada de razias e
destruição sistemática de árvores de fruto, hortas e campos de cultivo. Junto à cidade
formou-se, assim, uma terra de ninguém livre de obstáculos e de barreiras visuais,
pontuada por atalaias e vigias17. Com o passar dos anos, a estabilização da ocupação
15
DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 relativos a Marrocos. Vol. 2. Ed. de Pedro de
Azevedo. Lisboa: Academia das Ciências, 1934, doc. CCCXXI, pp. 342-364, doc. XIX, pp. 669-709.
16
DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531…, Vol. 2, doc. CCLXXXIII, pp. 290-295.
17
ZURARA, Gomes Eanes de – Crónica do Conde D. Pedro de Meneses, ed. Maria Teresa Brocado.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 260. DUARTE, Luís Miguel – “África”. In BARATA,
96
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
portuguesa permitiu o aproveitamento das terras situadas à vista dos muros da
cidade, surgindo então herdades de pão, vinhas, hortas, pomares e unidades de
produção agropecuária, ciclicamente destruídas por ataques inimigos18.
As capacidades produtivas do espaço deveriam ser semelhantes em ambos
os lados do estreito, não tendo, por isso, sido particularmente custosa a adaptação
dos portugueses ao seu novo território, podendo manter inalterados os hábitos
alimentares que traziam do reino. Nestes, o pão e o vinho desempenhavam um papel
central, sendo complementados com carne de várias qualidades, peixe, vegetais e
frutas19.
O solo era propício à cultura de sequeiro, mas, dada a morfologia do território
e as condicionantes já referidas ao desenvolvimento desta cultura, a cidade carecia
do espaço necessário à produção em quantidade suficiente para se sustentar, ao
contrário de outras regiões mais a sul, como Arzila, Larache, Mazagão ou Safim20.
No mesmo sentido, as vinhas existentes junto à cidade eram manifestamente escassas
para a produção de vinho em quantidade suficiente para abastar a população.
No que respeita à carne produzida localmente, criavam-se aves de capoeira e
gado, sobretudo caprino, embora também bovino e suíno, em currais e pastos ao
redor da cidade, mas também nos seus montes adjacentes, que igualmente poderiam
fornecer os proventos da caça21. Quanto ao peixe, era capturado em barcas que
navegavam pelo estreito, ou recolhido em armadilhas denominadas almadravas22.
Podia ainda ser pescado à linha a partir do pano de muralha junto à montanha da
Almina23.
Outra forma de acesso a produtos alimentares decorria dos saques provenientes
das operações de corso no mar. A maioria das embarcações apreendidas seria de
média ou pequena dimensão, estabelecendo rotas de ligação entre o Norte de África
e o Sul da Península Ibérica, ainda sob o domínio muçulmano. Estas carregavam,
predominantemente, peixe, cereais, frutas e legumes. Por exemplo, quando o navio
que transportou o embaixador do reino de Fez foi corseado, a carga era composta por
Manuel Themudo; TEIXEIRA, Nuno Severiano (dirs.) – Nova História Militar de Portugal. vol. 1. coord. José
MATTOSO. Lisboa: Círculo de Leitores, 2003, pp. 411-412.
18
DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 relativos a Marrocos. Vol. 1, Ed. de Pedro de
Azevedo. Lisboa: Academia das Ciências, 1915, doc. CLXV, p. 200; Vol. 2, doc. CCLXXI, p. 279, doc. IX, p. 659.
ZURARA, Gomes Eanes de – Crónica do Conde D. Pedro de Meneses..., pp. 284, 347, 632.
19
GONÇALVES, Iria – “A alimentação”. In MATTOSO, José (dir.) – História da Vida Privada em
Portugal. Vol. 1: A Idade Média. Coord. Bernardo Vasconcelos e SOUSA. [s.l.]: Temas e Debates, 2010, pp.
226-230. MARQUES, A. H. de Oliveira – A Sociedade Medieval Portuguesa. 2ª ed., Lisboa: Livraria Sá da Costa
Editora, 1971, pp. 9-16.
20
LOPES, David – A Expansão em Marrocos..., p. 59; GODINHO, Vitorino Magalhães – A Expansão
Quatrocentista Portuguesa 3ª ed.. Lisboa: Dom Quixote, 2008, p. 162.
21
ZURARA, Gomes Eanes de – Crónica do Conde D. Pedro de Meneses…, pp. 254, 260, 411.
22
ZURARA, Gomes Eanes de – Crónica do Conde D. Pedro de Meneses…, pp. 349, 445. DUARTE, Luís
Miguel – Ceuta, 1415. Lisboa: Livros Horizonte, 2015, p. 144.
23
ZURARA, Gomes Eanes de – Crónica do Conde D. Pedro de Meneses…, p. 46.
O ABASTECIMENTO ALIMENTAR E VINÍCOLA DE CEUTA [...]
97
cavalas, figos e amêndoas24, outros navios capturados iam carregados com cavalas,
trigo, cevada, feijões e legumes genericamente identificados25.
Por terra, as almogavarias rendiam avultadas quantidades de carne. As
estimativas do número total de animais capturados variam. Para Nuno Silva Campos
teriam sido, até 1437, capturadas 4.412 cabeças de gado graúdo e miúdo e 78 cavalos26,
enquanto que Paulo Drummond Braga calculou um total de 232 cabras e bois, 53
podengos, 45 cavalos e 16 éguas, apreendidas entre 1415 e 146427. Nestas surtidas, o
ataque era precedido de uma sondagem aos locais de pasto e aos estábulos ou currais
onde se reuniam à noite as reses, de forma a que, quando a ação guerreira tivesse
lugar, se soubesse ao certo a localização dos bens mais valiosos que poderiam ser
tomados28. Aos animais – que, quando vivos, eram fáceis de transportar na evasão
de regresso à segurança de Ceuta, muitas vezes sob perseguição de hostes inimigas
– opunha-se o cereal, que para além de existir em quantidades residuais, seria mais
difícil de acondicionar e transportar, sendo por isso destruído no local.
No terreno, a responsabilidade do abastecimento alimentar recaía no capitão,
cargo que foi primeiramente ocupado por D. Pedro de Meneses logo após a
conquista29. Este estava investido de poder absoluto, era a cabeça da administração
militar, judicial e da fazenda, respondendo apenas perante o rei30. Caber-lhe-ia o
encargo de garantir que os armazéns da cidade se encontravam sempre atestados
de mantimentos necessários a suster a cidade, em especial perante o isolamento
repentino em situações de cerco. Permanece, em grande medida, desconhecido
o papel do capitão de Ceuta, e da sua administração, na alocação dos recursos
produtivos locais, com exceção da outorga de algumas cartas de doação, confirmadas
por D. Afonso V, de casas e terras destinadas à agricultura31.
Em suma, as diferentes formas de abastecimento local permitiam aos portugueses
o acesso a variadas fontes de alimentação, em maior ou menor quantidade, no diaa-dia, de carne, peixe, vegetais e fruta. Os bens essenciais – pão e vinho – eram, no
entanto, escassos, sendo, por isso, necessária a criação de uma rota regular que os
transportasse desde o reino.
ZURARA, Gomes Eanes de – Crónica do Conde D. Pedro de Meneses…, p. 491.
ZURARA, Gomes Eanes de – Crónica do Conde D. Pedro de Meneses…, pp. 304-305, 309, 380.
26
CAMPOS, Nuno Silva – D. Pedro de Meneses e a construção da Casa de Vila Real (1415-1437). Lisboa:
Sete Caminhos, 2008, p. 84.
27
BRAGA, Paulo Drummond – Uma Lança em África: História da conquista de Ceuta. Lisboa: Esfera
dos Livros, 2015, pp. 56-60.
28
ZURARA, Gomes Eanes de – Crónica do Conde D. Pedro de Meneses…, pp. 278, 330.
29
BRAGA, Isabel Drummond; BRAGA, Paulo Drummond – Ceuta Portuguesa (1415-1656) …, p. 187.
30
LOPES, David – A Expansão em Marrocos…, p. 41.
31
DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 1, doc. CLXV, p. 200; Vol. 2, doc.
CCLXXI, p. 279, doc. IX, p. 659.
24
25
98
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
2. Abastecimento a partir do reino.
A ausência de fontes sequenciais para a cronologia em estudo, com exceção das cartas
de quitação referentes a alguns anos das décadas de quarenta e cinquenta do século
XV, complica a compreensão daqueles que seriam os mecanismos de abastecimento
a Ceuta a partir do reino. Certamente que o capitão e outros agentes presentes no
terreno, dotados de casa senhorial própria, fariam chegar dos seus domínios, às
suas custas, alimentos para o seu sustento. Esta hipótese permanece, contudo,
no plano teórico, e serviria apenas os próprios e os seus séquitos. Para prover a
restante guarnição militar e população local, D. João I, logo em 1416, atribuiu ao
Infante D. Henrique tal incumbência32. Esta obrigação parece ter sido cumprida
de forma intermitente até ao momento em que D. Afonso V retirou ao seu tio a
responsabilidade pela administração da cidade, já em inícios dos anos de 145033. Da
sua atuação podemos saber que, para a preparação da expedição a Tânger, em 1437,
o Infante contribuiu, através do seu governador D. Fernando de Castro, com biscoito,
cevada, trigo, vinho, vinagre e carne34. E que, em 1453, Gonçalo Pacheco recebeu em
Lisboa o pão que, segundo a quitação, era devido à Casa de Ceuta por obrigação de
contribuição de D. Henrique. A logística do transporte e acondicionamento deste
cereal foi inteiramente paga pela Casa de Ceuta35.
Paralelamente à entrega de responsabilidades ao infante D. Henrique, o rei
continuou a garantir o abastecimento alimentar de Ceuta através de diferentes
mecanismos36. Assim, foram criados novos impostos como os “Dez reais para Ceuta”,
que oneraram particularmente as comarcas a norte do país, e os “Ferreiros de Ceuta”
que incidiam sobre as comunidades judaicas, bem como a subordinação de outros
tributos, já existentes, como as jugadas de Santarém37. Os rendimentos de alguns
mestrados e instituições religiosas foram igualmente canalizados para a mesma
finalidade. Foram ainda lançados pedidos em dinheiro ou alimentos, que por vezes,
originavam queixas, como as dos concelhos de Viana, Ponte de Lima e Guimarães,
nas Cortes de Lisboa em 1456, os procuradores alegavam que os navios locais eram
desviados das suas funções originais para o abastecimento cerealífero de Ceuta, em
alturas do ano que deveriam sair com mercadorias para comércio38. Seguia-se a
MONUMENTA Henricina. Vol. II, dir. e org. de António Joaquim Dias Dinis. Coimbra: Comissão
Executiva das Comemorações do Vº Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1960, doc. 116, pp. 240-241.
33
MONUMENTA Henricina …, Vol. VI, 1964, p. XXI.
34
DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 1, doc. CXXXI, pp. 163-168.
35
DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. XIX, pp. 670-672.
36
MESQUITA, José Miguel Zenhas – O abastecimento alimentar de Ceuta…, 1415-1458, pp. 44-48.
37
Para mais informações sobre o financiamento de Ceuta e as queixas que o mesmo originou em Cortes,
vejam-se os textos de Iria Gonçalves e Armindo de Sousa. GONÇALVES, Iria – Pedidos e empréstimos públicos
em Portugal durante a Idade Média. Lisboa: Centro de Estudos Fiscais e Aduaneiros, 1964; SOUSA, Armindo
de – As Cortes Medievais Portuguesas (1385-1490). Vol. I. Lisboa: INCM, 1990.
38
DESCOBRIMENTOS Portugueses: Documentos para a sua História. Sup. ao Vol. I, ed. de João Martins
32
O ABASTECIMENTO ALIMENTAR E VINÍCOLA DE CEUTA [...]
99
argumentação de que o rei possuía navios próprios para garantir a logística alimentar
da sua possessão africana, sendo por isso desnecessário o recurso às embarcações
dos concelhos agravados. Em resposta, o rei apenas aceitou parcialmente esta
argumentação, determinando que iria continuar a socorrer-se dos ditos navios, mas
apenas entre abril e dezembro, deixando os meses de janeiro a março, livres para o
transporte comercial de mercadorias39. Nas mesmas Cortes de 1456, o procurador de
Guimarães queixou-se do pagamento reduzido pelo rei dos cereais comprados aos
lavradores de Entre-Douro-e-Minho, assim como, do seu carreto até aos pontos na
costa de onde partiriam para a cidade norte-africana. Estes lavradores pretendiam
receber o mesmo que se recebia na Estremadura. Em resposta, o rei mandou que o
cereal fosse pago pelo seu valor corrente ao tempo em que o pedido fosse lançado40.
Na realidade, não sabemos se efetivamente estas queixas surtiram efeito positivo, mas
parece seguro que o cereal recolhido desta forma não passava pela Casa de Ceuta em
Lisboa antes de viajar para o seu destino.
Para o transporte exclusivo de alimentos para Ceuta, existia pelo menos durante
o reinado de D. Afonso V uma barca chamada de Santa Maria de África. A sua
manutenção, logística, aparelhagens e tripulação eram asseguradas pelo monarca.
A existência de embarcações designadas para o transporte alimentar não se deveria
restringir à barca Santa Maria de África, pois o documento legal que estipula os
direitos do escrivão e da sua tripulação era aplicável a outros escrivães e marinheiros
que desempenhassem as mesmas funções41.
3. Casa de Ceuta.
O principal expediente de abastecimento a Ceuta a partir do reino foi a Casa de
Ceuta. Fundada por iniciativa régia, possivelmente logo em 1415, era gerida por um
tesoureiro e o seu escrivão. Situada na Ribeira de Lisboa, contava com armazéns
próprios, moagens e fornos de biscoito, espaços de desmanche e salga de carne e
peixe, adegas e tanoarias, a par das casas de residência do tesoureiro42. A função
desta instituição consistia na centralização dos mecanismos de recolha e distribuição
de alimentos, na forma de cereal, carne, peixe e vinho, de várias regiões do país, com
destino a Ceuta, mas também a concentração das fontes de financiamento e material
logístico necessárias à manutenção dos ofícios e armadas destinados a garantir a
da Silva Marques. [reimpressão do original de 1956], Lisboa: INIC, 1988, doc. 987, p. 530.
39
DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCCLXIX, pp. 410-411.
40
DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCCLXXXIX, p. 430.
41
DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCXXXVIII, pp. 247, 248.
42
CAETANO, Carlos – “Um olhar sobre a Casa de Ceuta”. Cadernos do Arquivo Municipal, 2º Série, 4
(julho-dezembro 2015), pp. 70-83; MESQUITA, José Miguel Zenhas – O abastecimento alimentar de Ceuta,
1415-1458…, pp. 52-55.
100
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
presença portuguesa no Norte de África43. Da sua atividade apenas conhecemos
algumas cartas de quitação que indiciam a continuidade e permanência destas
funções ao longo da cronologia em estudo44.
4. Cartas de quitação.
No presente artigo, serão apresentados os resultados da recolha de informação em
três cartas de quitação relacionadas com a Casa de Ceuta, datadas da década de
cinquenta do século XV, pois são aquelas que permitem uma análise mais detalhada
às questões que pretendo abordar. Como já anteriormente foi referido, estas cartas
não são as únicas que abrangem a temática do abastecimento de Ceuta, contudo,
são aquelas que discriminam o total de receitas e despesas de uma forma mais
uniformizada, contrastando com outras cuja informação é apresentada de uma
forma menos esclarecedora para os objetivos deste trabalho45.
As duas primeiras quitações analisadas datam de 1456, referindo-se aos anos
de 1451-1454, e foram elaboradas por Gil Vaz, contador das coisas de Ceuta, que
quitou Gonçalo Pacheco, tesoureiro-mor46. Estas quitações apresentam um nível de
detalhe superior a outras do género, pois correspondem aos primeiros anos em que
o rei recuperou para si a responsabilidade do provimento a Ceuta, querendo saber,
detalhadamente, como esta instituição era gerida. A terceira quitação que irei abordar
data de 1455, e alude aos anos de 1451-1453, tendo sido feita por Gil Vaz, contador
das coisas de Ceuta, a João Vaz, almoxarife do celeiro de Santarém, e referindo-se aos
rendimentos e produtos que o celeiro de Santarém devia recolher e encaminhar para
a Casa de Ceuta em Lisboa47.
Antes de avançar com a exposição e interpretação destes resultados deve ser
referido que as cartas de quitação, em apreciação, correspondem a um resumo, feito
pelo contador do rei, para ser inserido na chancelaria régia. Este resumo resultava
da inspeção pelo contador, aos livros próprios de atividade que cada um dos oficiais
quitados e seus escrivães possuía. Os livros originais, que, entretanto, se perderam,
estavam estruturados segundo entrada e saída de produtos e dinheiro (recebeu e
despendeu), divididos de forma anual.
RODRIGUES, Teresa Ferreira – “Relações entre o Algarve e Ceuta no reinado de D. Afonso V (As
Cartas de Quitação)…” , pp. 245-250.
44
MESQUITA, José Miguel Zenhas – O abastecimento alimentar de Ceuta, 1415-1458…, pp. 44-48,
66-86.
45
Sobre as questões de abastecimento alimentar em relação às restantes cartas de quitação veja-se
RODRIGUES, Teresa Ferreira – “Relações entre o Algarve e Ceuta no reinado de D. Afonso V (As Cartas de
Quitação)…” , pp. 243-269. VIANA, Mário – Vinhedos Medievais de Santarém. Cascais: Patrimonia, 1998, p.
172. MESQUITA, José Miguel Zenhas – O abastecimento alimentar de Ceuta, 1415-1458…, pp.72-86.
46
DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCCXXI, pp. 342-364, doc.
XIX, pp. 669 – 709.
47
DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531…, Vol. 2, doc. CCLXXXIII, pp. 290-295.
43
O ABASTECIMENTO ALIMENTAR E VINÍCOLA DE CEUTA [...]
101
Talvez pelo facto de estes documentos serem um resumo, o critério de
estruturação por anos e entradas e saídas não é uniforme, podendo a informação
que diz respeito ao que se recebeu entrar no capítulo do que se despendeu e viceversa. Esta informação pode ainda surgir repetida e nem sempre a divisão por anos
é respeitada.
Acrescem a estes problemas a ocorrência de informação em diferentes níveis,
umas vezes de forma detalhada, outras vezes de forma lacunar, sem que para tal
se conheça um motivo que não seja o facto de estas quitações corresponderem a
um resumo dos livros de contas, tendo-se provavelmente optado por copiar certas
informações em detalhe, pois seriam essas as mais relevantes para a administração
régia.
Não existe um critério definido para designar a forma da receção dos produtos
alimentares e a quantidade enviada a partir de Lisboa, pelo que, estes produtos são
registados segundo várias unidades de medida, sem que exista uma referência clara
à equivalência das utilizadas pela Casa de Ceuta com as demais em vigor nesse
período. Não sabemos também se as medidas utilizadas pelo celeiro de Santarém
eram equivalentes àquelas utilizadas por esta instituição. Assim, a tentativa de
tratamento estatístico dos resultados alcançados deverá ser feita com as cautelas que
estes problemas colocam ao rigor dos resultados48.
5. Cartas de quitação outorgadas a Gonçalo Pacheco, tesoureiro da Casa de Ceuta
(1451-1454).
Nestes anos, Gonçalo Pacheco recebeu em dinheiro: os valores do imposto
dos Ferreiros de Ceuta da comuna de judeus de Alenquer, Lisboa e Setúbal; as
contribuições dos almoxarifados de Viseu, Lamego, Santarém; e ainda, do almoxarife
das lezírias, do paço da Madeira, do armazém da cidade de Lisboa, do tesoureiro real
em Lisboa e da renda da sisa da fruta de Lisboa. As contribuições recebidas foram
empregues: no pagamento da tença e no mantimento dos oficiais e trabalhadores
responsáveis pela administração e manutenção da Casa de Ceuta; no pagamento a
outros oficiais régios ligados a Ceuta, como o contador e o escrivão; na satisfação
de parte do soldo e mantimento a vassalos do Rei que se deslocavam ao Norte
de África; na compra de material logístico necessário ao acondicionamento dos
produtos recolhidos; na compra de bens alimentares (carne, peixe, cereais e vinho); e
no pagamento do frete às embarcações que levaram mantimentos para Ceuta desde
48
Para a análise das quantidades de vinho que estão discriminadas nas cartas de quitação, utilizei as
equivalências de medidas propostas por Mário Viana e Sérgio Ferreira. Estas são, 1 tonel igual a 2 pipas, 4
quartos, 50 almudes, 600 canadas e 2.400 quartilhos. VIANA, Mário – Vinhedos Medievais de Santarém…, p.
144; FERREIRA, Sérgio – Preços e Salários em Portugal na Baixa Idade Média. Porto: Universidade de Letras,
2007. Dissertação de Mestrado, p. 235. Disponível em https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/14653.
102
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Buarcos, foz do Mondego, Mira, Alcácer do Sal e Lisboa49.
Com destino a Ceuta foram recolhidos cereais (milho, trigo, centeio e cevada):
do celeiro de Santarém (jugadas de Santarém, e rendas do ramo de Muge e Valada),
do celeiro de Aveiro, do almoxarife de Vila Franca, do almoxarife da Azambuja, do
almoxarife dos fornos de Lisboa; das rendas dos reguengos de Ribamar, de Algés, e
de Oeiras, e do ramo de Calhariz. Recebeu ainda carne: do vedor da fazenda real,
do almoxarife das taracenas de Lisboa, e de Santarém; de Mem Rodrigues, morador
em Estremoz, como pagamento de uma dívida contraída junto do almoxarife real
dessa vila. Recebeu peixe (pescadas, raias, peixes minhotos, peixe-prego, cavalas
e sardinhas), por compra, e pela entrega do almoxarife do armazém da cidade de
Lisboa50.
Quanto ao vinho, deram entrada na Casa de Ceuta: em 1451, 22 tonéis
provenientes do celeiro de Santarém, 18 tonéis provenientes das rendas dos reguengos
de Ribamar, e 8,66 tonéis de vinho por compra; em 1452, 210, 52 tonéis oriundos do
celeiro de Santarém, e 25,5 tonéis das rendas dos reguengos de Ribamar51; em 1453,
o total de 365,24 tonéis recolhidos é de origem incerta52; e em 1454, 153 tonéis do
celeiro de Santarém, 15,25 tonéis dos reguengos de Ribamar, 0,52 tonéis do reguengo
de Oeiras, 10,52 tonéis comprados, e 5 tonéis que haviam ficado armazenados na
adega desde
Pela análise do gráfico 1, detetamos que os valores totais de vinho recolhido
oscilaram consideravelmente ao longo destes quatro anos. A principal fonte de
recolha foi o celeiro de Santarém, de onde provinham os vinhos das jugadas e das
rendas dos ramos de Muge e Valada, mas os valores de cada uma destas contribuições
não se encontram aqui discriminados. Segue-se o reguengo de Ribamar, cuja renda
anual correspondia a 18 tonéis. Se verificarmos os anos seguintes, em 1452 estes
reguengos renderam 25,5 tonéis, e em 1454, 15,24 tonéis. Este facto poderá estar
relacionado com a forma de pagamento da renda, que poderia corresponder a
uma parte proporcional da produção, oscilando assim de acordo com o sucesso do
ano agrícola para os vinhos. Quanto ao reguengo de Oeiras, parece ter tido uma
49
Para uma interpretação detalhada das formas de financiamento da Casa de Ceuta veja-se
RODRIGUES, Teresa Ferreira – “Relações entre o Algarve e Ceuta no reinado de D. Afonso V (As Cartas de
Quitação)…” , pp. 243-249.
50
Sobre a recolha de bens alimentares nas cartas de quitação veja-se a minha dissertação de mestrado
e o já referido texto de A. H. de Oliveira Marques para o caso dos cereais. MESQUITA, José Miguel Zenhas
– O abastecimento alimentar de Ceuta, 1415-1458…, pp. 69-86. MARQUES, A. H. de Oliveira – “O Norte de
África”…” , pp. 231-245.
51
Na carta de quitação, encontra-se ausente a referência à quantidade de vinho recolhida proveniente
das rendas do reguengo de Oeiras no ano de 1452. Apenas sabemos que os mesmos terão efetivamente chegado
à Casa de Ceuta, pois Lopo de Évora pagou 300 reais aos homens que efetuaram a sua recolha no dito reguengo.
52
No capítulo das despesas referentes a este ano são contabilizados 88 tonéis de vinho provenientes do
celeiro de Santarém e 166,5 tonéis provenientes dos reguengos de Ribamar e Santarém. A ausência de mais
informações impede a possibilidade de discriminar os valores quantitativos de cada uma destas origens no
total de vinhos recolhidos.
O ABASTECIMENTO ALIMENTAR E VINÍCOLA DE CEUTA [...]
800
700
600
500
400
300
200
100
0
1451
1452
1453
1454
Vinho recolhido na Casa de Ceuta
Vinho embarcado para Ceuta
Vinho entregue como mantimento a vassalos e tripulações
Gráfico 1 – Casa de Ceuta: recolha e distribuição de vinho (em tonéis)
250
200
150
100
50
0
1451
1452
1453
1454
Celeiro de Santarém
Reguengos de Ribamar
Origem desconhecida
Compra
Reguengo de Oeiras
Santarém e Ribamar
Gráfico 2 – Casa de Ceuta: proveniência dos vinhos (em tonéis).
103
104
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
contribuição diminuta para o vinho a ser entregue à Casa de Ceuta. Contudo, devem
ser tidos em consideração os diferentes níveis de informação que esta fonte apresenta.
Por fim, a compra, parece ter sido um expediente excecional e destinado a colmatar
necessidades do momento.
O vinho recolhido do modo acima descrito foi empregue da seguinte forma. Em
1451, embarcaram 64 tonéis de vinho, no navio de Lançarote, com destino a Ceuta.
Nos anos seguintes foram enviados para Ceuta em embarcações cuja denominação
não é precisa: 685,73 tonéis em 1452; 102,32 tonéis em 1453; e 136,46 tonéis em 1454.
Foram ainda entregues, como parte do mantimento devido a vassalos do rei que se
dirigiam ao Norte de África: 21,4 tonéis em 1451; 9,4 tonéis em 1452; 19,35 tonéis em
1453; e 215,26 tonéis em 1454.
Com exceção de 1453, o vinho recolhido foi sempre inferior ao vinho
distribuído. Mesmo assim, analisando as contas, o saldo do vinho que ficou na Casa
de Ceuta foi de 335,89 tonéis de vinho, tendo o tesoureiro, no ano seguinte, apenas
declarado que ficaram 5 tonéis de vinho disponíveis do ano anterior.
As diferenças de valor entre o recolhido e o enviado poderão ser justificadas
pela omissão de grande parte dos valores recolhidos, como ficou evidente no
gráfico anterior, bem como, em muitos casos, da indicação das quantidades de
vinho transportadas para Ceuta, estando estas incluídas na referência genérica ao
pagamento dos fretes dos navios que se deslocavam de Lisboa para o Norte de África.
Assim, terá de ser interpretada a grande quantidade de vinho enviada para Ceuta
em 1452, face aos restantes anos, ou o aumento dos valores entregues como tença e
mantimento em 1454.
O vinho recolhido não tinha, exclusivamente, Ceuta ou as armadas que partiam
para o Norte de África como destino final. Em 1452 foram entregues 195 reais, 40
alqueires de trigo, 25 almudes de vinho, e 64 “sõas” de carne para o mantimento de um
mês, a Jorge, embaixador do Preste João, que o Rei enviou ao duque da Borgonha53.
No mesmo ano foi entregue 1 tonel de vinho para o mantimento dos tanoeiros que
nesse ano trabalharam na Casa de Ceuta54, e em 1454 a instituição contribuiu com
256 “soãs” de carne, 3 alqueires de trigo, e 1,72 tonéis de vinho para a armada que foi
enviada como represália ao ataque de navios ingleses55.
6. Carta de quitação outorgada a João Vaz, almoxarife do celeiro de Santarém
(1451-1453).
Entre 1451 e 1453, o almoxarife do celeiro de Santarém recebeu em dinheiro os
DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCCXXI, p. 357.
DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCCXXI, p. 361.
55
DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. XIX, p. 709.
53
54
O ABASTECIMENTO ALIMENTAR E VINÍCOLA DE CEUTA [...]
105
valores do imposto dos Ferreiros de Ceuta, das comunas dos judeus, de Leiria,
Abrantes, Alenquer, Santarém e Torres Novas. Este dinheiro foi aplicado na gestão
logística dos produtos recolhidos, na compra de material necessário à escrita dos
registos, e no pagamento da tença e mantimento a oficiais régios encarregados da
manutenção de Ceuta, como Martim Gomes Leitão, vedor da fazenda de Ceuta, ou
Vasco Gonçalves, contador de Ceuta.
A recolha de produtos alimentares, neste caso, cingia-se quase exclusivamente
ao trigo proveniente das rendas das jugadas de Santarém, estipuladas por uma
avença entre o Rei e os rendeiros. Estes comprometiam-se, segundo a condição do
arrendamento, a entregar anualmente em Lisboa 400 moios, o que não sucedeu em
1451, ficando por apurar as razões e consequências de tal falha. Só em 1453 haveria
uma nova referência à recolha de trigo e grão, que foram entregues pelo contador de
Santarém ao celeiro desta vila, e reencaminhados para a Casa de Ceuta no mesmo
ano.
Assim como o trigo, a recolha da maior parte do vinho correspondia aos frutos
da renda das jugadas de Santarém, estipulada por uma avença em 165 tonéis anuais56.
Em 1451 foram entregues no celeiro 171 tonéis referentes às jugadas, ficando os
16 tonéis que acresciam ao valor avençado, de ser descontados na quantidade de
vinho a entregar em 1452. Desta forma, quando em 1452 foram entregues ao celeiro
156,6 tonéis de vinho, referentes à avença das jugadas, deveriam novamente ser
descontados 7,5 tonéis de vinho a entregar no ano seguinte, uma vez que em 1452 só
haveria a obrigação de serem entregues no celeiro 149 tonéis. Neste mesmo ano, o
almoxarife do celeiro pediu emprestado a João Gonçalves “Folga na Palha” 3 tonéis
de vinho, que o segundo entregou como sendo de boa qualidade, quando na verdade
estavam estragados, ficando por isso declarados como perdidos nos registos. Em
1453 deveriam ter sido entregues 157,5 tonéis correspondentes às jugadas do vinho,
mas tal não se verificou, pois este “sse finou ante da novidade”57. As quantidades de
vinho provenientes das jugadas variavam, pois, consoante o sucesso das colheitas,
verificando-se a realização de ajustes ao valor fixo que deveria ser entregue
anualmente, tendo em consideração o que tinha sido entregue no ano anterior. A
requisição de vinho emprestado funcionou como uma forma complementar de
recolha.
Quando comparamos os valores da recolha no celeiro de Santarém, com
aqueles que o almoxarife João Vaz alegou ter entregue à Casa de Ceuta, e com os
valores que o tesoureiro Gonçalo Pacheco afirma ter recebido em Lisboa, inseridos
56
Sobre o âmbito de aplicação e cobrança da jugada do vinho de Santarém nos séculos XIV e XV veja-se
Mário Viana. VIANA, Mário – Vinhedos Medievais de Santarém…, pp. 169-173.
57
DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531..., Vol. 2, doc. CCLXXXIII, p. 293, doc.
XIX, p. 678.
106
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
no gráfico 1, constatamos que em 1451, fazendo jus ao cruzamento de informações,
de todo o vinho recolhido em Santarém, apenas chegaram a Lisboa 22 tonéis de
vinho, desconhecendo-se o destino dos restantes 149 tonéis. Em 1452 o almoxarife
declarou ter entregado à Casa de Ceuta 147 tonéis de vinho, enquanto que o
tesoureiro declarou ter recebido do celeiro de Santarém um total de 210,52 tonéis.
Por fim, o maior contraste surge no ano de 1453, perante a ausência da recolha de
vinhos em Santarém e a declaração em Lisboa de que do celeiro da vila Ribatejana
haviam chegado 88 tonéis de vinho.
250
200
150
100
50
0
1451
1452
1453
Celeiro de Santarém: recolha da renda das jugadas do vinho
Celeiro de Santarém: recolha de vinho por empréstimo
Celeiro de Santarém: vinho entregue à Casa de Ceuta
Casa de Ceuta: recolha de vinho proveniente do celeiro de Santarém
Gráfico 3 – Celeiro de Santarém e Casa de Ceuta: valores comparados (em tonéis)
7. Logística e transporte.
Para a recolha dos vinhos nos seus locais de origem, a Casa de Ceuta enviava tonéis
constituídos por vários arcos de madeira unidos por vimes. As “cabeças” destes
tonéis eram seladas por pregos, e a abertura, por onde o líquido passava, vedada por
um batoque58.
Os vinhos a serem recolhidos eram então colocados nestes tonéis, e
transportados em barcas, desde os reguengos de Ribamar e Santarém até Lisboa.
O trabalho de recolha, manutenção e transporte era pago pela Casa de Ceuta. De
destacar que o cereal proveniente dos reguengos de Ribamar era transportado de
58
DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCLXXXIII, p. 293, doc.
XIX, p. 678.
O ABASTECIMENTO ALIMENTAR E VINÍCOLA DE CEUTA [...]
107
forma diferente, nomeadamente por via terrestre, carregado por bestas conduzidas
por lavradores ou almocreves59.
Os vinhos correspondentes às jugadas de Santarém eram recolhidos nas adegas
dos lavradores logo após a vindima60. A partir deste momento, o acondicionamento
e transporte eram garantidos pela Casa de Ceuta, que enviava recursos financeiros e
material logístico ao celeiro de Santarém61. Assim, os vinhos eram recolhidos num
primeiro momento nas adegas de Muge e Valada, onde estagiavam sobre esteios de
pinho, e num momento posterior transportados por “alivadoiras” para a adega do
celeiro de Santarém62. Face à quantidade de vinho recolhida em 1452, foi necessário
complementar o espaço disponível na adega do celeiro com o recurso ao aluguer de
casas e “logeas” na vila63. Partindo das adegas de Santarém, o vinho era carregado por
“polinheiros”, em barcas que desciam o Tejo até Lisboa64.
Uma vez chegados a Lisboa, os vinhos eram descarregados das barcas e
arrumados nas adegas ou paióis da Casa de Ceuta por “ganhadinheiros” ou
“pulinheiros” e “afundadores”65.
A compra, em 1451, de 12 tonéis para servirem de balseiros, indica que nas
adegas da instituição se procedia à fermentação de vinho, talvez daquele oriundo dos
reguengos de Ribamar ou do reguengo de Algés, uma vez que os vinhos de Santarém
eram colocados em adegas locais antes de serem transportados para Lisboa66.
Assim, a recolha dos vinhos em locais geograficamente mais próximos poderia ser,
hipoteticamente, feito logo após a vindima, enquanto que os vinhos de Santarém
viriam já fermentados para Lisboa.
Antes de serem embarcados com destino a Ceuta, os vinhos eram “olhados” e
atestados.
Em 1452 gastaram-se 139 almudes neste processo67. Em 1453 gastaram-se 2
toneis e 39 almudes de vinho, sendo que, um destes dois toneis caiu ao chão e partiuse, após o “cantell” em que estava assente ter quebrado68. Em 1454, despenderam-se
174 almudes, dos quais se perderam, derramados pelo chão 24 almudes, pois, o tonel
onde estavam encontrava-se furado69.
DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCCXXI, p. 348.
DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCLXXXIII, p. 292.
61
DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCLXXXIII, pp. 291-292.
62
DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCLXXXIII, pp. 290, 292.
63
DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCLXXXIII, p. 293.
64
DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCLXXXIII, p. 292.
65
DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCCXXI, p. 360, doc. XIX,
59
60
p. 676.
DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCCXXI, pp. 343, 351.
DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCCXXI, p. 361.
68
DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. XIX, p. 679.
69
Em Santarém haveria mesmo um tanoeiro dedicado em exclusivo à reparação dos recipientes
destinados ao transporte dos vinhos provenientes das jugadas com destino a Ceuta. DOCUMENTOS das
Chancelarias Reais anteriores a 1531…, Vol. 2, doc. XIX, p. 697; VIANA, Mário – Vinhedos Medievais de
66
67
108
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Sobre o desembarque e armazenamento em Ceuta pouco ou nada sabemos,
apenas existindo uma quitação a Fernão de Andrade, tesoureiro das obras de Ceuta,
datada de 1454, e que nos informa de que nos anos de 1452 e 1453 os homens que
levaram o vinho e o pão desde as embarcações até ao celeiro de Ceuta receberam
8.878 reais70.
Conclusões.
Historicamente, o vinho era uma bebida e alimento de primeira necessidade para
a sociedade medieval portuguesa: assim o foi em tempos de paz e em tempos de
guerra. Mesmo perante a mudança para novas formas de vida, marcadas pela
beligerância guerreira, em territórios novos, de exigências climáticas diferentes
àquelas que muitos conheciam no reino, os hábitos alimentares quotidianos trazidos
de Portugal mantiveram-se. Na paisagem rural de Ceuta, apesar das condicionantes
espaciais impostas para defesa da cidade, com o passar dos anos reproduziram-se, em
pequena escala, as estruturas de produção agrárias, conhecidas desde há muito pelos
portugueses. Estas eram recorrentemente atacadas pelo inimigo e esporadicamente
ocupadas durante operações de cerco que isolavam a guarnição portuguesa no
interior dos muros da cidade. Durante os períodos de ocupação mais calmos, em
que a ofensiva estava do lado português, em campanhas de pilhagem ou ações de
corso, os frutos do saque não eram suficientes para complementar a produção local
de pão e vinho, produtos essenciais em qualquer refeição. Assim, foi necessário criar
mecanismos de abastecimento a partir do reino, desde o primeiro momento, após a
conquista e ocupação de Ceuta.
Das diferentes formas de abastecimento encontradas para abastecer Ceuta a
partir do reino, é a Casa de Ceuta aquela que melhor conhecemos, e aquela que
foi instituída exclusivamente para esse efeito. Sediada em Lisboa, esta instituição
procedia à recolha de financiamento, alimentos e material logístico, para garantir a
manutenção da praça africana e de uma rota marítima regular que a ligasse ao reino.
A recolha dos vinhos oriundos de rendas e direitos régios, era financiada e apoiada
logisticamente pela Casa de Ceuta, desde a sua origem até ao destino final. Lisboa
funcionaria assim como um centro redistribuidor de produtos recolhidos nas lezírias
ribatejanas e em reguengos geograficamente próximos à cidade. As cartas de quitação
analisadas neste artigo, referentes à década de 1450, permitem uma “radiografia” do
sistema logístico de abastecimento a partir da Casa de Ceuta num momento em que
a instituição e a presença portuguesa na praça marroquina estavam já consolidadas
por décadas de existência. Nos seus registos encontraram-se grandes quantidades
Santarém…, p. 173.
70
DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531…, Vol. 2, doc. CCCXIV, p. 333.
O ABASTECIMENTO ALIMENTAR E VINÍCOLA DE CEUTA [...]
109
de vinho enviadas para Ceuta, certamente suficientes para suprir as necessidades
da guarnição local. Recuperando a afirmação de A. H. de Oliveira Marques, que
acreditava que na década de 1450 o maior contingente de cereal para abastecer Ceuta
provinha das lezírias ribatejanas, podemos complementarmente afirmar, com base
nas informações recolhidas, que também o vinho que durante estes anos chegou à
cidade era originário da mesma região. Investigações futuras poderão trazer novos
dados sobre este assunto, como por exemplo o duplo impacto que a redistribuição
de vinhos desta região teve ao nível do consumo local, por um lado, a deslocação dos
vinhos do rei para novas finalidades poderá ter-se cifrado num decréscimo do vinho
disponível localmente, sobretudo durante o período do relego em que apenas estes
vinhos podiam ser vendidos. Por outro lado, o envio dos vinhos para Ceuta e a sua
consequente saída do circuito comercial traduziu-se na perda de rendimentos para
o seu proprietário, o rei. O trabalho de Doutoramento que tenho vindo a realizar
poderá, por seu turno, trazer novos dados que permitam avaliar o impacto desta
redistribuição sem fins comerciais nos circuitos de fornecimento e no mercado do
vinho de Lisboa.
110
Do cultivo ao consumo:
O abastecimento de cereal na Gafaria de
Coimbra nos séculos XIV e XV
Ana Rita Rocha1
Resumo
Na Idade Média, o pão ocupava um lugar central à mesa de todos os grupos
sociais. Neste sentido, as instituições medievais eram proprietárias de terras
destinadas à cerealicultura, desenvolvendo uma política de produção de trigo
e outros grãos panificáveis. A Gafaria de Coimbra não era exceção, detendo
um apreciável número de herdades onde se cultivavam os cereais, destinados,
em parte, ao seu próprio abastecimento. Este artigo tem por objetivo analisar o
processo de aprovisionamento de cereal da leprosaria conimbricense, desde o
cultivo até ao seu consumo. Primeiro, atentaremos no património que possuía
associado à produção e transformação de cereal, como herdades e moinhos,
focando-nos no modo como o administrava e nas rendas cobradas em
géneros. De seguida, abordaremos as práticas e estruturas de armazenamento
e tratamento do cereal, da competência do medidor da instituição, e o seu
destino, tanto para consumo dos gafos, merceeiros sãos e oficiais da casa, como
para venda. Por fim, focaremos a intervenção do poder régio no provimento
de cereal, sobretudo durante o reinado de D. Fernando e no contexto dos maus
anos agrícolas do século XIV, para avaliarmos o impacto destes no consumo de
pão numa gafaria medieval.
Palavras-chave
Produção de cereal; Consumo de pão; Abastecimento urbano; Gafaria de
Coimbra; Séculos XIV-XV.
1
IEM – NOVA FCSH; CHSC – UC
112
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
From farming to consumption: the Coimbra’s leper house cereal
provisioning in the 14th and 15th centuries
Abstract
In the Middle Ages, bread was the centrepiece in the table of all social groups.
Thus, the medieval institutions owned lands reserved for cereal farming,
developing a strategy to produce wheat and other breadmaking grains.
Coimbra’s leper house was no exception, owning a sizable number of properties
where cereal was the main crop. The goal of this paper is to analyse the process
of the cereal supply of Coimbra’s leper house, since cultivation to consumption.
First, we will study the property linked to cereal production and processing. We
will analyse farmsteads and mills, focusing in their management and how the
land rent was collected in foodstuffs. Next, we will approach the cereal storage
practices, structures and its handling, a task of the leper house mesurer. We will
also analyse the cereal’s distribution among the lepers, the healthy merceeiros
and the leper house officials and the cereal marked for sale. In the end, we will
focus on royal intervention in the cereal supply, mainly in D. Fernando’s reign
and in the bad farming years context, during the 14th century, to evaluate their
impact in the consumption of bread in a medieval leper house.
Keywords
Cereal production; Bread consumption; Urban provisioning; Coimbra’s leper
house; 14th-15th centuries.
Introdução.
Cultivado de norte a sul do país, o cereal, transformado, sobretudo, em pão, ocupava
um lugar central na alimentação da população medieval2, integrando os principais
fluxos de abastecimento urbano. O termo de Coimbra, onde se localizavam os
férteis campos do Mondego, contava-se entre as regiões do reino onde a produção
Sobre a importância do pão na mesa medieval, ver ADAMSON, Melitta Weiss – Food in Medieval
Times. Westport, Connecticut, London: Greenword Press, 2004, pp. 1-5; COELHO, Maria Helena da Cruz –
“Apontamentos sobre a comida e a bebida do campesinato coimbrão em tempos medievos”. In Homens, Espaços
e Poderes (séculos XI a XVI). I – Notas do Viver Social. Lisboa: Livros Horizonte, 1990, p. 10 e MARQUES, A.
H. de Oliveira – A Sociedade Medieval Portuguesa: Aspectos de Vida Quotidiana. Lisboa: A Esfera dos Livros,
2010, pp. 36-37.
2
DO CULTIVO AO CONSUMO: O ABASTECIMENTO DE CER EAL NA GAFARIA [...]
113
cerealífera atingia níveis bastante razoáveis, numa época em que esta tarefa não era
fácil nem simples, como a caracterizou Iria Gonçalves3. Era, pois, principalmente,
daqueles campos que chegava, à urbe conimbricense, a maior parte do trigo e outros
grãos panificáveis consumidos pela sua população, quer em contexto doméstico, quer
em contexto institucional. Neste sentido, as instituições medievais, nomeadamente
as de assistência, detinham terras e outras propriedades dedicadas ao cultivo de
cereais, com o intuito, não só de obterem os rendimentos necessários à sua correta
administração, mas também de se proverem autonomamente4.
Tomando como exemplo a Gafaria de Coimbra, também conhecida como
Hospital de S. Lázaro, proprietária de um vasto património, que se estendia por
todo o território envolvente, descreveremos o processo de abastecimento de cereal
numa leprosaria urbana medieval, desde a sua produção até ao seu destino final,
que consistia, maioritariamente, em alimentar os seus hóspedes e dependentes, tanto
leprosos, como merceeiros sãos, e os oficiais e funcionários que a serviam.
1. A produção e transformação de cereal nas propriedades da Gafaria de Coimbra.
Em 1210, D. Sancho I lançou as bases para a fundação da Gafaria de Coimbra, ao
doar, no seu segundo testamento, 10 000 morabitinos para esse fim5. Desde então,
os lázaros da cidade empenharam-se em construir um património imóvel capaz de
garantir o sustento material da nova instituição assistencial. Recorrendo ao valor
legado por D. Sancho, começaram por adquirir, em 1212, a herdade de Enxofães,
3
Ver GONÇALVES, Iria – “Lisboa e o seu abastecimento em cereais”. In ANDRADE, Amélia Aguiar;
FARELO, Mário; GOMES, Marta (eds.) – Catálogo da Exposição Pão, Carne e Água. Memórias da Lisboa
Medieval. Lisboa: Arquivo Municipal de Lisboa e Instituto de Estudos Medievais, 2019, pp. 49-51, onde a autora
salienta alguns fatores, como, por exemplo, o baixo rendimento da semente, a fraca potência dos instrumentos
aratórios e a deficiente força de trabalho humana e animal, que “contribuíam para [que] a produção cerealífera
fosse muitas vezes deficitária”, exigindo um elevado esforço por parte dos camponeses para se atingirem
resultados minimamente aceitáveis. Não obstante, Iria Gonçalves ressalva que, em Portugal, existiam algumas
regiões mais propícias ao cultivo de cereais e onde a produção era mais satisfatória, nomeadamente os campos
do Mondego, no geral, e o reguengo do Bolão, em particular. Sobre a cultura do cereal no Baixo Mondego,
ver COELHO, Maria Helena da Cruz – O Baixo Mondego nos Finais da Idade Média. Vol. I. Lisboa: Imprensa
Nacional – Casa da Moeda, 1989, pp. 130-152.
4
São inúmeros os estudos realizados em Portugal sobre o património das instituições medievais,
incluindo as de assistência, ou que abordam essa mesma questão, nos quais sobressai a importância das
propriedades onde se cultivavam cereais. Citemos, entre muitos outros, COELHO, Maria Helena da Cruz – O
Baixo Mondego... Vol. I, pp. 130-152; GONÇALVES, Iria – O Património do Mosteiro de Alcobaça nos Séculos
XIV e XV. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1989, pp. 65-81; GOMES, Saul António – “A propriedade
do hospital de Sta. Maria da Vitória (Batalha) no séc. XV”. Revista Portuguesa de História 27 (1992), pp. 4757; MATA, Luís António – Ser, Ter e Poder. O Hospital do Espírito Santo de Santarém nos finais da Idade
Média. Santarém: Magno Edições e Câmara Municipal de Santarém, 2000, pp. 117-119; ROCHA, Ana Rita – A
Assistência em Coimbra na Idade Média: Dimensão Urbana, Religiosa e Socioeconómica (Séculos XII a XVI).
Coimbra: FLUC, 2019. Tese de Doutoramento, pp. 444-448.
5
Sobre as origens da Gafaria de Coimbra, ver ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos.
O Hospital de S. Lázaro de Coimbra nos séculos XIII a XV. Coimbra: FLUC, 2011. Dissertação de Mestrado,
pp. 44-47.
114
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
no atual concelho de Cantanhede, e, em 1214, uma vinha, em Montarroio, nos
arrabaldes de Coimbra6. A primeira propriedade era, de acordo com os limites
descritos na carta de venda, uma herdade de grandes dimensões7, que veio a tornarse numa importante fonte de rendimento da leprosaria, fornecendo-lhe parte dos
seus recursos alimentares. Foi, precisamente, com esse objetivo que, em setembro
de 1275, os leprosos e o seu procurador, juntamente com os alvazis e concelho de
Coimbra, outorgaram aos caseiros e cabaneiros do lugar de Enxofães uma carta de
aforamento coletivo, que terá vigorado ao longo de toda a Idade Média8.
As rendas, foros e encargos cobrados aos moradores desta extensa propriedade,
composta por diversas herdades e terras, de culturas variadas, espelham já
perfeitamente a importância que os cereais tinham no território conimbricense e
que vieram a ter no aprovisionamento do Hospital de S. Lázaro. Com efeito, ao longo
de toda a carta de foro, recolhem-se referências à obrigação de entrega, pelos caseiros
e cabaneiros de Enxofães, de parte da produção de pão9 e também ao pagamento de
foros, como a eirádiga e a fogaça10, e de outros tributos e encargos em quantidades
variáveis de cereal. Em alguns casos, inclusivamente, este devia ser entregue já
panificado, como nos prova a obrigação de todos os foreiros, em conjunto, darem
três boas fogaças11 aos lázaros, por altura da Páscoa. Refira-se ainda que, em algumas
passagens do documento, são especificadas as variedades de grãos que compunham
estas rendas e foros e que, portanto, seriam cultivadas em maior escala nesta herdade,
salientando-se o trigo e a cevada, que abasteceriam os celeiros da Gafaria.
Mas terá sido ao longo dos séculos XIV e XV que o património do Hospital de
S. Lázaro de Coimbra aumentou de forma considerável e se consolidou, em grande
parte graças a uma intervenção mais atenta e eficaz na sua gestão. Assim nos provam
o regimento da instituição, outorgado por D. Afonso IV, em 1329, e as dezenas de
6
Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo (doravante ANTT), Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça,
1.ª incorporação, Documentos Particulares, mç. 3, n.os 15 e 21 ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização
dos Leprosos…, docs. 1 e 2, pp. 148-150.
7
Atendendo aos seus limites, cremos que esta herdade corresponderia, grosso modo, ao atual lugar de
Enxofães, na freguesia de Murtede, no concelho de Cantanhede.
8
Coimbra, Arquivo da Universidade de Coimbra (doravante AUC), Tombo do Hospital de S. Lázaro
(1515), cofre, fls. 8-9v ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, doc. 3, pp. 151-154. A cópia
desta carta de foro no tombo quinhentista da Gafaria de Coimbra é, por si só, reveladora da importância e
durabilidade deste contrato.
9
Relembremos que, na Idade Média, o vocábulo “pão” referia-se a qualquer cereal panificável e não
exclusivamente ao alimento que resultava do seu fabrico. Ver MARQUES, A. H. de Oliveira – Introdução à
história da agricultura em Portugal: a questão cerealífera durante a Idade Média. Lisboa: Edições Cosmos,
1978, pp. 85-86.
10
Sobre estes dois foros, em particular a fogaça, ver MARREIROS, Maria Rosa Ferreira – Propriedade
fundiária e rendas da coroa no reinado de D. Dinis: Guimarães. Vol. 2. Coimbra: FLUC, 1990. Tese de
Doutoramento, pp. 520-529 e 530-535.
11
Como a própria fonte o demonstra, a fogaça era, além de um foro, um tipo de pão. Ver GONÇALVES,
Iria – Por terras de Entre-Douro-e-Minho com as Inquirições de Afonso III. Porto: CITCEM / Edições
Afrontamento, D. L. 2012, pp. 107-109.
DO CULTIVO AO CONSUMO: O ABASTECIMENTO DE CER EAL NA GAFARIA [...]
115
contratos agrários que chegaram até nós e que constituem a principal fonte para o
estudo do abastecimento cerealífero da instituição12.
Antes de mais, o próprio regimento de 1329 oferece-nos um importante ponto
da situação das propriedades que a Gafaria possuía, das rendas e foros que delas
recebia e, consequentemente, da produção de grãos panificáveis nessas mesmas
terras13. Neste ano, a instituição detinha 24 casais nos lugares de Rio de Vide
e Vidual, no atual concelho de Miranda do Corvo, e 13 casais e 4 cabaneiros em
Condeixa, onde predominavam os cereais, nomeadamente o trigo, entre os géneros
que compunham as rendas e foros impostos. Enquanto em Rio de Vide e Vidual
cada casal pagava a oitava parte do pão, um alqueire de trigo e uma fogaça, por ano,
em Condeixa apenas sabemos que era cobrada uma ração do pão que “Deus der” a
todos os casais, cabaneiros e moinhos e que o casal de Fernão Lourenço pagava, de
foro, entre outros, dois alqueires de trigo14. Não obstante a informação parcelar, o
diploma normativo de S. Lázaro constitui já uma antevisão dos locais e processos
produtivos de cereal nas suas propriedades, revelados de modo mais consistente na
documentação enfitêutica.
Efetivamente, a análise dos contratos agrários, complementada com dados
recolhidos noutros diplomas, oferece-nos informações mais ricas e concretas acerca
do cultivo e transformação de cereal nas propriedades da Gafaria de Coimbra. No
total, recolhemos 74 documentos, entre aforamentos (28), emprazamentos (44) e
arrendamentos (2), datados entre 1355 e 147715. Embora nem sempre seja possível
discernir de forma clara em que terras eram produzidos os grãos panificáveis, as
12
Até 1329 não dispomos de documentação suficiente que nos permita analisar o património da Gafaria
de Coimbra, devido, ao que tudo indica, à negligência dos seus administradores, que D. Afonso IV procurou
combater, regulamentando o funcionamento do hospital. Tal como se pode ler no próprio documento
normativo, o rei determinou que devia existir, na Gafaria, uma arca, fechada à chave, onde se guardariam as
escrituras relativas às suas propriedades “porque foy certo que se perderam muytas scripturas por a malicia
dos vedores”. Coimbra, AUC, Regimento do Hospital de S. Lázaro, cofre, n.º 34, fls. 2-2v ou ROCHA, Ana
Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, doc. 5, p. 160.
13
A lista de propriedades incluída no final do regimento parece-nos, todavia, incompleta, como se
depreende do seu confronto com a nota explicativa que se encontra no início do documento. Com efeito,
são elencados apenas casais e cabaneiros em três localidades (Rio de Vide, Vidual, em Miranda do Corvo, e
Condeixa), enquanto no início do documento é referido que nele se encontram descritas as aldeias e herdades
que a Gafaria tinha no Campo do Mondego e fora dele, assim como casas, vinhas, olivais, almuinhas e
moinhos. Coimbra, AUC, Regimento do Hospital de S. Lázaro, cofre, n.º 34, fls. 1 e 3-3v ou ROCHA, Ana
Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, doc. 5, pp. 156 e 162-164.
14
AUC, Regimento do Hospital de S. Lázaro, cofre, n.º 34, fls. 3-3v ou ROCHA, Ana Rita – A
Institucionalização dos Leprosos…, doc. 5, p. 163.
15
Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 51, pt. 1, n.º 4 e IV, 3.ª, Gav. 53, pt. 3, n.º 89. Este corpus documental
corresponde ao que serviu de base à análise que fizemos do património da Gafaria de Coimbra, ao longo da
Idade Média, na nossa dissertação de mestrado. Ver ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…,
pp. 91-131. Recentemente, foi publicado o catálogo da coleção de pergaminhos do Hospital de S. Lázaro,
conservada no Arquivo da Universidade de Coimbra, no qual cada exemplar foi descrito de forma mais ou
menos completa, sendo bastante útil para a identificação e conhecimento dos contratos aqui analisados.
QUEIRÓS, Abílio; BANDEIRA, Ana Maria – “Catálogo da Coleção de Pergaminhos do Hospital de São
Lázaro de Coimbra (1197-1723)”. Boletim do Arquivo da Universidade de Coimbra 29 (2016), pp. 7-87.
116
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
caraterísticas de algumas delas e a descrição das rendas e foros a que os seus foreiros
estavam obrigados permitem-nos apresentar algumas conclusões.
Antes de mais, importa esclarecer que as vinhas e os olivais eram predominantes,
atingindo, no conjunto, um terço do total dos bens imóveis de S. Lázaro, a que se
juntam algumas herdades e terras onde eram plantadas estas culturas (Fig.1). Esta
situação está relacionada com a importância que tanto a vinha, como a oliveira
tinham na região de Coimbra, registando-se mesmo um período de expansão da
primeira ao longo de Trezentos e Quatrocentos16. Não obstante, em muitas das terras
de semeadura que compunham os casais e herdades da Gafaria cultivava-se pão, como
se depreende da análise das rendas e foros pagos em algumas dessas propriedades,
que, uma vez entregues à instituição, iriam engrossar as suas provisões cerealíferas.
Com efeito, os contratos indicam, com alguma frequência, que o pagamento da
renda era feito com uma parte (ou uma medida exata) dos géneros produzidos na
propriedade. Por exemplo, em fevereiro de 1420, ao emprazarem meio casal em
Quimbres (fr. São Silvestre, c. Coimbra), ao qual encabeçaram um outro meio casal,
o vedor, escrivão e leprosos de S. Lázaro determinaram que os foreiros deviam pagar,
entre outros, uma parte “de todo pam (…) que lhes Deus em cada hum ano der nas
erdades do dicto meo de casal e das outras de que ja ante tragia”17.
Fig. 1 – Património imóvel da Gafaria de Coimbra (1355-1477).
16
Sobre a importância da vinha e do olival na região de Coimbra e a sua evolução ao longo da Baixa
Idade Média, ver COELHO, Maria Helena da Cruz – O Baixo Mondego..., Vol. I, pp. 152-181.
17
Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 51, pt. 1, n.º 27.
DO CULTIVO AO CONSUMO: O ABASTECIMENTO DE CER EAL NA GAFARIA [...]
117
A produção de cereais nas propriedades da Gafaria de Coimbra sofreu, contudo,
algumas flutuações, durante o período em análise. Antes de mais, embora em número
muito reduzido, as condições impostas aos foreiros, em alguns contratos, refletem o
movimento mais vasto de expansão da vinha e consequente substituição do cereal
por aquela cultura, sobretudo ao longo dos séculos XIV e XV. Inversamente, outros
contratos refletem o movimento de recuperação da produção cerealífera, no Baixo
Mondego e áreas próximas, sobrepondo-se, novamente, à vinha18. Ilustremos com
os exemplos que temos ao nosso dispor. Em 1423, o vedor e escrivão da Gafaria
alteraram as condições de um contrato, determinando que o seu foreiro passava a
estar obrigado a plantar vinha numa herdade, onde até aí era obrigado a semear
pão, “porquanto a dicta herdade nom podia seer lançada a pam que con proveyto da
dicta cassa nem do dicto lavrador fosse”19. Alguns anos antes, em 1420, e alguns mais
tarde, em 1451, pelo contrário, denota-se um ligeiro incentivo ao cultivo de cereal,
em terras do campo, perante a possibilidade de os usufrutuários do aforamento
deixarem as vinhas aí plantadas morrer, adaptando-se a renda cobrada à cultura
produzida20.
Para além das terras vocacionadas para a produção de pão, o Hospital de
S. Lázaro era ainda proprietário de um pequeno, mas significativo, número de
azenhas e moinhos, que desempenhavam um papel fundamental na engrenagem
do abastecimento cerealífero urbano. Os engenhos de transformação do cereal em
farinha, utilizada na panificação, concentravam-se, maioritariamente, em Alfora, no
atual concelho de Cantanhede, onde existia uma ribeira, citada na documentação21,
enquanto os restantes se situavam em Condeixa22 e Casconha (fr. Cernache, c.
Coimbra), que correspondiam, de resto, a algumas das zonas de maior implantação
de imóveis deste tipo23. Aqui era produzida a farinha utilizada no fabrico do
pão, que haveria de alimentar a população urbana, entre a qual se contavam os
leprosos e seus servidores. Aos foreiros dos moinhos, a Gafaria exigia, por norma,
que vivessem nesses assentamentos e que os reparassem e zelassem pelo seu bom
funcionamento, mantendo-os “moentes e correntes”24. Porém, de acordo com a
Ver COELHO, Maria Helena da Cruz – O Baixo Mondego..., Vol. I, pp. 168-172.
Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 51, pt. 1, n.º 28.
20
Coimbra, AUC, Traslado do Livro Gótico (1774), IV, 2.ª E, 8, 3, 4, 6, fls. 199v-201v.
21
Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 52, pt. 2, n.º 38 e 40.
22
Mencione-se, a título de curiosidade, que as mós utilizadas nos moinhos de Condeixa eram levadas
da zona de Enxofães, ficando o seu transporte a cargo dos caseiros e cabaneiros desta localidade. Coimbra,
AUC, Tombo do Hospital de S. Lázaro (1515), cofre, fl. 9 ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos
Leprosos…, doc. 3, p. 153.
23
Ver COELHO, Maria Helena da Cruz – O Baixo Mondego... ,Vol. I, pp. 215-216.
24
Por exemplo, em janeiro de 1438, o vedor e escrivão da Gafaria de Coimbra aforaram uma azenha e
moinho, com o seu pomar, na ribeira de Alfora, impondo aos novos foreiros a obrigação de repararem as mós,
as rodas e a levada do engenho, para que este ficasse, precisamente, “moente e corrente”. Coimbra, AUC, IV,
3.ª, Gav. 52, pt. 2, n.º 40.
18
19
118
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
informação disponibilizada pela documentação, raramente a leprosaria recebia,
nos séculos XIV e XV, parte do resultado da produção destes engenhos. Com efeito,
apenas o aforamento de um moinho, a construir a expensas dos foreiros, estipulou o
pagamento anual da sétima parte “do que o dicto moynho gaanhar”25. Não podemos,
contudo, excluir a hipótese de S. Lázaro receber rendas e foros em farinha de
outros equipamentos moageiros, dos quais se poderão desconhecer os contratos de
alienação do domínio útil26.
2. O armazenamento e destino do cereal.
Todo o cereal arrecadado através das rendas e foros era, depois de seco, debulhado e
limpo na eira27, levado para os celeiros da Gafaria, maioritariamente implantados na
cidade, como iremos ver.
O transporte do pão podia ficar a cargo do próprio senhorio ou ser imposto
como obrigação aos foreiros, que o deviam assegurar às suas custas e com os seus
próprios animais. Não muito diferente de outros grandes proprietários, S. Lázaro
exigiu, algumas vezes, a prestação deste serviço, tornando as obrigações dos
usufrutuários mais onerosas. Nestas situações, em vez de cobrar o foro de carreto,
para poder suportar as despesas inerentes à condução das rendas, a Gafaria de
Coimbra estipulava que os enfiteutas ficavam responsáveis por levar os foros, em
particular os que eram compostos por géneros, aos locais de armazenamento, nas
suas próprias bestas, como se pode ler em alguns contratos do século XV28.
Chegado à cidade, o cereal proveniente das rendas e foros era, então, recebido
pelo vedor e escrivão, em conjunto29, e depositado num dos vários celeiros que
pertenciam à leprosaria e que eram, na definição de François-Olivier Touati,
instrumentos e símbolos da exploração rural destas instituições assistenciais, mas
também um meio imediato da sua sobrevivência30. Um deles, documentado desde
Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 51, pt. 1, n.º 5.
A referência a outros moinhos e azenhas, no tombo do Hospital de S. Lázaro, de 1515, que não
constam nos contratos agrários trecentistas e quatrocentistas analisados, parece comprovar que muitos
documentos enfitêuticos terão desaparecido, existindo a possibilidade de, em alguns deles, ser cobrada uma
parte da produção daqueles equipamentos, nos séculos anteriores. Coimbra, AUC, Tombo do Hospital de S.
Lázaro (1515), V-3.ª-cofre-39.
27
Alguns contratos especificam que o pagamento do pão ao senhorio apenas seria feito depois de
debulhado e limpo na eira. Ver, por exemplo, Coimbra, AUC, Traslado do Livro Gótico (1774), IV, 2.ª E, 8, 3, 4,
6, fls. 212-212v e Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 53, pt. 3, n.º 88.
28
Coimbra, AUC, Traslado do Livro Gótico (1774), IV, 2.ª E, 8, 3, 4, 6, fls. 199-202. Sobre o transporte
dos foros até aos celeiros ou outros locais de armazenamento dos senhorios, ver COELHO, Maria Helena da
Cruz – O Baixo Mondego..., Vol. I, pp. 356-357 e MARREIROS, Maria Rosa Ferreira – Propriedade fundiária
e rendas da coroa... ,Vol. 2, pp. 579-582.
29
Coimbra, AUC, Regimento do Hospital de S. Lázaro, cofre, n.º 34, fl. 1v ou ROCHA, Ana Rita – A
Institucionalização dos Leprosos…, doc. 5, p. 158.
30
TOUATI, François-Olivier – Maladie et société au Moyen Âge. La lèpre, les lépreux et les léproseries
dans la province ecclésiastique de Sens jusqu’au milieu du XIVe siècle. Bruxelas: De Boeck Université, 1998, pp.
25
26
DO CULTIVO AO CONSUMO: O ABASTECIMENTO DE CER EAL NA GAFARIA [...]
119
132931, localizava-se no próprio recinto hospitalar, à semelhança de outras gafarias
do reino32, e foi até palco de reunião e de redação de alguns atos escritos33. Com uma
escada de acesso, seria um edifício dividido em dois pisos ou localizado num piso
superior, podendo ficar por cima da adega ou mesmo de uma outra dependência,
desconhecendo-se, porém, as suas dimensões34. Embora se saiba muito pouco sobre
a arquitetura destas estruturas de armazenamento na Idade Média35, o celeiro de
S. Lázaro de Coimbra seria semelhante aos de outros grandes senhorios, como se
depreende da descrição do celeiro da Ordem de Cristo, em Castelo Branco, que, tal
como aquele, era sobradado e a ele se acedia por uma escada de pedra de 15 degraus36.
Por ordem do rei, esta dependência da Gafaria encontrava-se fechada e a sua
segurança era garantida pelos oficiais superiores da instituição, o vedor e o escrivão,
que ficavam responsáveis por guardar, cada um deles, uma chave, demonstrando
o valor e importância dos géneros aí armazenados37. Note-se, inclusivamente, que
esta medida régia consta no regimento de 1329, outorgado por D. Afonso IV na
sequência de queixas dos leprosos contra os administradores anteriores, que não
444-445.
31
Coimbra, AUC, Regimento do Hospital de S. Lázaro, cofre, n.º 34 ou ROCHA, Ana Rita – A
Institucionalização dos Leprosos…, doc. 5, pp. 156-164.
32
Como era o caso das gafarias de Santarém e de Lisboa, em cujos espaços se erguiam celeiros,
documentados, pelo menos, ao longo dos séculos XIV e XV. CONDE, Manuel Sílvio Alves – “Subsídios para
o Estudo dos Gafos de Santarém (Séculos XIII-XV)”. Estudos Medievais 8 (1987), pp. 140-141 e NÓVOA, Rita
Luís Sampaio da – A Casa de São Lázaro de Lisboa: Contributos para uma História das Atitudes face à Doença
(Sécs. XIV-XV). Lisboa: FCSH-UNL, 2010. Dissertação de Mestrado, pp. 92-93.
33
Entre estes documentos citemos, a título exemplificativo, a carta de doação do leproso Álvaro Dias,
redigida, a 27 de dezembro de 1474, “demtro no esprital de Sam Lazaro da cidade de Coimbra e aa porta da
escada do celeiro”. Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 53, pt. 3, n.º 86.
34
A escada do celeiro surge mencionada em alguns contratos enfitêuticos, além do documento citado
na nota anterior, como local adequado à reunião do cabido dos lázaros. Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 53, pt. 3,
n.º 68 e Coimbra, AUC, Traslado do Livro Gótico (1774), IV, 2.ª E, 8, 3, 4, 6, fls. 201v-202.
35
Manuel Sílvio Conde salienta, precisamente, esta ideia, acrescentando que os celeiros medievais
eram muito semelhantes aos edifícios correntes rurais, distinguindo-se deles apenas pela existência de
frestas de arejamento. O autor concluiu ainda, a partir dos exemplos ao seu dispor, que estas estruturas de
armazenamento eram, por norma, térreas. CONDE, Manuel Sílvio Alves – Uma paisagem humanizada. O
Médio Tejo nos finais da Idade Média. Vol. 1. Cascais: Patrimonia, 2000, pp. 318-320.
36
GONÇALVES, Iria – “A construção corrente na Beira Interior nos finais da Idade Média”. In AMORIM,
Norberta; PINHO, Isabel; PASSOS, Carla (coord.) – III Congresso Histórico de Guimarães. D. Manuel e a sua
Época. Vol. III. População, Sociedade e Economia. Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães, 2004, p. 113.
37
Coimbra, AUC, Regimento do Hospital de S. Lázaro, cofre, n.º 34, fl. 1v ou ROCHA, Ana Rita – A
Institucionalização dos Leprosos…, doc. 5, p. 158. O celeiro da Gafaria de Santarém também se encontrava
protegido com fechadura, pelo menos desde 1483, competindo ao chaveiro guardar uma das chaves e ao
escrivão guardar a outra. CONDE, Manuel Sílvio Alves – “Subsídios para o Estudo dos Gafos…”, p. 130 e doc.
2, p. 161. A preocupação com a segurança dos géneros armazenados não se limitava aos cereais e aos celeiros.
Com efeito, na própria Gafaria de Coimbra, assim como na escalabitana, a adega, à semelhança do celeiro,
tinha duas chaves, que eram, igualmente, guardadas pelo escrivão e vedor (ou chaveiro, no caso de Santarém).
Fora do contexto assistencial, em Coimbra, no século XIV, existia uma casa, onde se conservava o vinho
vendido nos açougues do rei, que tinha duas chaves, uma entregue a um homem nomeado pelos porteiros e a
outra a um dos almocreves que aí tivesse o vinho. CORTES Portuguesas: Reinado de D. Afonso IV (1325-1357).
Ed. A. H. de Oliveira Marques, Maria Teresa Campos Rodrigues e Nuno José Pizarro Pinto Dias. Lisboa:
Instituto Nacional de Investigação Científica, 1982, p. 60. Esta referência foi partilhada pela colega Maria
Amélia Álvaro de Campos, a quem agradecemos.
120
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
os manteriam de acordo com o que o património do hospital permitia, sonegando
mesmo escrituras. Esta terá sido uma forma de evitar apropriação indevida de cereal,
um género indispensável ao sustento da instituição e, consequentemente, dos seus
hóspedes.
Mas o Hospital de S. Lázaro era ainda proprietário de outros celeiros e
estruturas de armazenamento de grão, em número incerto, espalhados pelo termo e
espaço urbano de Coimbra. Segundo uma carta régia de 1371, sabemos que alguns
deles se encontravam mesmo instalados em casas “dentro na cerca dessa cidade”,
beneficiando da proteção conferida pela muralha, enquanto outros estavam situados
“em outros logares da dicta gafaria que som em thermo dessa cidade”38. Estes, talvez de
arquitetura muito simples e dimensões reduzidas, estariam muito mais próximos das
terras de produção de cereal e neles seriam armazenados, num primeiro momento,
os géneros colhidos na área circundante e que se destinavam ao pagamento de rendas
ao senhorio39.
Uma grande parte do cereal produzido nas propriedades da Gafaria destinavase ao sustento de todos aqueles que dela estavam dependentes, como definido
no regimento de 1329 (Tab.1)40. Em primeiro lugar, os leprosos, razão de ser da
instituição, recebiam uma generosa quantidade anual de trigo e cereal de segunda
como ração, atingindo um total de 160 alqueires de grãos panificáveis por ano, por
pessoa41. A este sustento básico somavam-se algumas pitanças, que podiam, por
vezes, incluir pão, como a que era distribuída por ocasião da vindima da vinha que
se encontrava junto da casa. Aos merceeiros sãos42, por sua vez, era atribuída uma
quantidade anual de cereal idêntica, mas composta, maioritariamente, por cereal
de segunda, demonstrando que não eram tão privilegiados como os gafos43. Além
Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 51, pt. 1, n.º 7 ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos
Leprosos…, doc. 9, p. 170.
39
Ver, como exemplo, a distribuição espacial dos celeiros do rei, na região de Guimarães, em
MARREIROS, Maria Rosa Ferreira – Propriedade fundiária e rendas da coroa..., Vol. 1, pp. 420-421.
40
A alimentação dos leprosos foi por nós analisada num artigo anterior, onde, entre outros, prestámos
atenção ao pão consumido na Gafaria de Coimbra. Ver ROCHA, Ana Rita – “A dieta dos leprosos numa
gafaria medieval: o caso de Coimbra”. Revista de História da Sociedade e da Cultura 16 (2016), pp. 55-73.
Por esse motivo, não desenvolveremos aqui demasiado esta questão, descrevendo apenas as quantidades
globais de trigo e cereal de segunda atribuídos a cada hóspede e funcionário da instituição, no sentido de
compreendermos uma das principais funções dos grãos produzidos nas terras da Gafaria.
41
Na conversão de moios e quarteiros para alqueires, recorremos ao moio de 64 alqueires, comum
em Coimbra, embora este não seja um valor estanque. Sobre estas questões, ver, por todos, VIANA, Mário
– Estudos de história metrológica. Medidas de capacidade portuguesas. Lisboa: Centro de História da
Universidade de Lisboa, 2015.
42
Desde, pelo menos, as primeiras décadas do século XIV, o Hospital de S. Lázaro assistia indivíduos
sãos, por comparação com os leprosos, que, pela idade avançada ou por uma qualquer doença debilitadora,
não tinham condições para trabalhar e necessitavam de auxílio económico. Ver ROCHA, Ana Rita – A
Institucionalização dos Leprosos…, pp. 65-67.
43
Na Idade Média, a cor do pão, resultante do tipo de cereal utilizado na sua confeção, definia uma
hierarquia social. O pão alvo, de trigo, era consumido sobretudo pelos estratos mais elevados da sociedade,
enquanto o escuro, de mistura, marcava presença à mesa dos camponeses. Ver COELHO, Maria Helena da
38
DO CULTIVO AO CONSUMO: O ABASTECIMENTO DE CER EAL NA GAFARIA [...]
121
disso, a sua ausência na missa dominical, celebrada na igreja da Gafaria, era punida
com a perda de um alqueire do trigo a que tinham direito. Por último, o vedor e o
escrivão eram compensados, pelo desempenho dos seus ofícios, com 2 moios anuais
de trigo e a mesma porção de cevada44. As quantidades atribuídas a cada um dos
assistidos e oficiais do hospital atestam a sua capacidade de autossuficiência, mas
também a importância que os grãos panificáveis tinham na sua economia, sendo,
provavelmente, um dos seus principais motores.
Trigo
Cereal de
segunda
Leprosos
Merceeiros
sãos
Vedor e
escrivão
2 moios
1 moio
2 moios
2 quarteiros
+
[2 quarteiros]*
6 quarteiros
2 moios
* Distribuídos apenas quando o trigo esgotava no celeiro
Tab. 1 – Rações individuais de cereal distribuídas na Gafaria de Coimbra
(regimento de 1329).
Em todos estes casos, contudo, previam-se situações de escassez de pão no
celeiro, sobretudo trigo, estipulando-se, na própria ordenação e no seu aditamento,
datado de 1346, a sua substituição por outros grãos ou mesmo por dinheiro. Nestas
situações, especificamente “des que sair o trigo do celeiro”, os leprosos recebiam
o dobro da quantidade de cereal de segunda, quando este era suficiente. Caso
contrário, o vedor devia comprá-lo45. Já no referido aditamento pode ler-se que o
rei mandou que se “temperassem” as rações dos sãos “quando hy ouver pouco pam e
pouco vinho”, definindo que “quando o pam fosse pouco”, os merceeiros não deviam
receber trigo, nem segunda dobrada, mas antes 13 alqueires deste último cereal46.
Mais tarde, em 1367, ao fazer mercê de uma ração a 12 gafos, o rei D. Fernando
aproveitou para reduzir definitivamente as quantidades de cereal atribuídas a lázaros
Cruz – “Apontamentos sobre a comida e a bebida…”, p. 10 e GRIECO, Allen – “Food and social classes in
late medieval and renaissance Italy”. In FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (eds.) – Food: A
Culinary History from Antiquity to the Present. New York: Columbia University Press, 1999, p. 303.
44
Coimbra, AUC, Regimento do Hospital de S. Lázaro, cofre, n.º 34, fls. 1-2v ou ROCHA, Ana Rita – A
Institucionalização dos Leprosos…, doc. 5, pp. 157-161.
45
Coimbra, AUC, Regimento do Hospital de S. Lázaro, cofre, n.º 34, fl. 1 ou ROCHA, Ana Rita – A
Institucionalização dos Leprosos…, doc. 5, p. 157.
46
Coimbra, AUC, Regimento do Hospital de S. Lázaro, cofre, n.º 34, fl. 2v ou ROCHA, Ana Rita – A
Institucionalização dos Leprosos…, doc. 5, p. 161.
122
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
e sãos, tornando-as bem mais moderadas47. Até esta data, os lázaros recebiam dois
moios deste cereal, por ano, ou seja, 128 alqueires, que foram substituídos por 48
alqueires anuais, distribuídos pelos doentes em entregas mensais. Já os merceeiros,
além de verem a sua ração de trigo ser reduzida, perderam o direito de receber cereal
de segunda. Fruto de uma conjuntura muito particular, a que voltaremos com mais
atenção, esta alteração tornou-se definitiva, como nos comprova o regimento de 1502,
outorgado por D. Manuel, no qual as rações a distribuir pelos gafos eram compostas
pelo mesmo volume de grãos panificáveis que as concedidas pelo rei Formoso48.
A documentação, embora um pouco lacónica, dá-nos ainda conta de outros
destinos para as grandes quantidades de pão que chegavam aos celeiros do Hospital
de S. Lázaro, para além do sustento alimentar dos seus hóspedes e oficiais. Em
primeiro lugar, uma parte desse cereal era utilizada no pagamento de serviços
prestados por outras instituições à leprosaria. Contam-se entre estes a administração
dos sacramentos aos leprosos e às restantes pessoas ligadas à instituição e ainda a
celebração de algumas festas litúrgicas, na sua capela, da responsabilidade dos clérigos
da igreja de Santa Justa, sede da paróquia onde a Gafaria estava implantada. Por estes
serviços a Gafaria tinha, naturalmente, de pagar o dízimo, um dos mais importantes
tributos eclesiásticos, e as primícias, frequentemente associadas àquele49. Neste
sentido, S. Lázaro era obrigado a entregar, anualmente, à igreja paroquial, segundo
uma sentença de 1385, o dízimo do pão, vinho e azeite, e, de acordo com uma outra
sentença, de 1442, 20 alqueires de trigo e 20 alqueires de milho50. Ao longo deste
último documento são frequentes as referências ao celeiro do pão do hospital, de
onde eram retirados os cereais para o referido pagamento.
Em segundo lugar, algum do cereal arrecadado seria comercializado numa
venda que se realizava anualmente na própria Gafaria. Efetivamente, embora as
informações disponíveis sejam muito escassas, a referência às “vendas dos moyos
que se em cada hum anno vendem desse esprital”, numa carta de D. Afonso V, de
Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 52, pt. 2, n.º 33 ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos
Leprosos…, doc. 8, pp. 167-168.
48
Coimbra, AUC, Regimento do Hospital de S. Lázaro, cofre, n.º 34, fl. 9 ou ROCHA, Ana Rita – A
Institucionalização dos Leprosos…, doc. 44, p. 249. Sobre estas questões, ver ROCHA, Ana Rita – “A dieta
dos leprosos numa gafaria medieval…”, pp. 61-62, onde concluímos que os valores de cereal entregues a cada
leproso, em Coimbra, eram iguais aos da Casa de S. Lázaro de Lisboa.
49
Ver TORRES, Ruy d’Abreu – “Dízimos Eclesiásticos”. In SERRÃO, Joel (dir.) – Dicionário de História
de Portugal. Vol. II. Porto: Livraria Figueirinhas, 1985, pp. 328-329; TORRES, Ruy d’Abreu – “Primícias”.
In SERRÃO, Joel (dir.) – Dicionário de História de Portugal. Vol. V. Porto: Livraria Figueirinhas, 1985, p.
184 e COELHO, Maria Helena da Cruz – “Património Eclesiástico”. In AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.) –
Dicionário de História Religiosa de Portugal. Vol. J-P. Rio de Mouro: Círculo de Leitores, 2001, pp. 401-402.
50
Lisboa, ANTT, Colegiada de Santa Justa de Coimbra, mç. 15, n.º 321 e Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav.
52, pt. 2, n.º 45 ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, doc. 29, pp. 208-214. Sobre
esta questão, ver ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, p. 79 e CAMPOS, Maria Amélia
Álvaro de – Cidade e Religião: a colegiada de Santa Justa de Coimbra na Idade Média. Coimbra: Imprensa da
Universidade de Coimbra, 2017, p. 130.
47
DO CULTIVO AO CONSUMO: O ABASTECIMENTO DE CER EAL NA GAFARIA [...]
123
145451, aponta nesse sentido, além de nos levar a deduzir que a produção cerealífera
da instituição seria excedentária. Esta seria uma forma de o hospital obter um
rendimento extra e gerir a sua capacidade de armazenamento, libertando espaço
para novas colheitas52.
O regular abastecimento de cereal estava a cargo de alguns dos oficiais e
funcionários da Gafaria, dependendo do eficiente exercício das suas funções. Ao
vedor e escrivão, além de estarem responsáveis pela proteção do celeiro, cabia
receber e dividir, entre outros, o pão resultante do pagamento das rendas. Era ainda
obrigação do vedor distribuir as rações pelos leprosos e merceeiros53. Mas era ao
medidor que cumpriam as principais tarefas relacionadas com o aprovisionamento
de cereal. Este funcionário, documentado entre 1409 e 146154, estava, segundo o
compromisso outorgado por D. Afonso V em 1452, encarregado de medir o pão
nas eiras e, mais tarde, no celeiro do hospital, aquando da distribuição das rações,
assim como padejar o grão, para o libertar da moinha e outras partículas que
comprometessem a sua qualidade. Competia-lhe, ainda, manter os celeiros limpos,
varrendo-os e comprando, às suas custas, as vassouras destinadas a essa função55.
O cargo de medidor não seria de somenos importância, sendo, aliás, fundamental
e de grande responsabilidade, pois dele dependia a justa distribuição do cereal, sem
que aqueles que o recebiam, quer na forma de ração, quer na forma de pagamento
de serviços, ou mesmo através da compra, fossem prejudicados56. Talvez por isso, o
ofício de medidor era, à semelhança dos ofícios de vedor e escrivão, de nomeação
régia, o que resultava na sua ocupação por servidores da família real, como Fernando
Afonso, criado da rainha D. Leonor, indicado em 1450, por D. Afonso V57. Mas este
51
Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 53, pt. 3, n.º 67 ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos
Leprosos…, doc. 36, p. 232.
52
Na Gafaria de Santarém, no século XV, procedia-se de forma semelhante relativamente às reservas
de vinho. Sempre que, no final de cada ano, sobrasse vinho na adega, o provedor devia colocá-lo à venda e pôr
o dinheiro daí resultante em “boa Recadeçam”, para se despender no tratamento das vinhas e no que fosse
necessário à casa. CONDE, Manuel Sílvio Alves – “Subsídios para o Estudo dos Gafos…”, doc. 2, p. 161.
53
As funções do vedor e escrivão da Gafaria, relacionadas com o abastecimento cerealífero, encontramse descritas no regimento de 1329. Coimbra, AUC, Regimento do Hospital de S. Lázaro, cofre, n.º 34, fls. 1-1v
ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, doc. 5, pp. 157-158. Na Casa de S. Lázaro de
Santarém, a que temos recorrido como modelo de comparação, todas estas tarefas estavam reunidas no
chaveiro, que era o principal responsável pela gestão económica do hospital. Ver CONDE, Manuel Sílvio Alves
– “Subsídios para o Estudo dos Gafos…”, p. 130.
54
Ver ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, p. 62.
55
Coimbra, AUC, Regimento do Hospital de S. Lázaro, cofre, n.º 34, fl. 4 ou ROCHA, Ana Rita – A
Institucionalização dos Leprosos…, doc. 34, p. 228.
56
Sobre a importância do medidor, enquanto oficial concelhio, e da correta aferição dos pesos e medidas
dos produtos transacionados na cidade medieval, ver GONÇALVES, Iria – “Defesa do consumidor na cidade
medieval: os produtos alimentares (Lisboa-séculos XIV-XV)”. Arquipélago. História 1 (1995), pp. 40-43.
57
Ver ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, pp. 62-63. Neste aspeto, é importante
realçar que, para a cidade do Porto, Arnaldo Sousa Melo concluiu que a tarefa de medir o pão na feira era quase
exclusivamente de responsabilidade feminina, recebendo o cargo correspondente o nome de “medideira do
pão”. O autor salientou ainda que encontrou apenas um único caso em que esta função era exercida por um
homem. Mais recentemente, a dissertação de mestrado de Rodolfo Feio, sobre a cidade e o trabalho em Évora,
124
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
aspeto estaria, acima de tudo, relacionado com a crescente intervenção do poder
régio nas instituições de assistência, que se fez notar de forma particular na Gafaria
de Coimbra58.
3. A intervenção régia no abastecimento cerealífero da Gafaria de Coimbra.
Fatores de natureza diversa punham, por vezes, em causa as capacidades de
aprovisionamento cerealífero do Hospital de S. Lázaro. Nestas circunstâncias, os
monarcas viam-se obrigados a intervir, de modo a regularizar a situação e a defender
os interesses da instituição sobre a qual exerciam o seu poder, mas também, e talvez
sobretudo, a proteger os seus próprios interesses.
Embora a documentação não seja muito numerosa, a ingerência de D.
Fernando nesta matéria, que tomamos como exemplo, foi particularmente relevante,
relacionando-se com os anos de escassa produção agrícola que afetaram o país
durante o seu reinado e mesmo com a guerra que o opôs ao monarca castelhano e
que deixou um rasto de destruição nos campos por onde passou59.
Antes de mais, D. Fernando procedeu a uma reformulação das rações entregues
a lázaros e raçoeiros sãos, reduzindo as quantidades de cereal, especialmente de
trigo, e de vinho a que tinham direito. Em 1367, como já vimos anteriormente, esta
na Idade Média, confirma esta aceção, sendo numerosas as referências às medideiras do pão, enquanto as
menções ao medidor apontam para a sua ligação à aferição de pesos e medidas de outros géneros alimentares,
como o vinho, ou objetos, como os tecidos. MELO, Arnaldo Sousa – Trabalho e Produção em Portugal na
Idade Média: o Porto, c. 1320-c. 1415. Vol. 1. Braga: Universidade do Minho; Paris: École des Hautes Études en
Sciences Sociales, 2009. Tese de Doutoramento, pp. 271 e p. 346 e FEIO, Rodolfo – Por prol e bom regimento: a
cidade e o trabalho nas Posturas Antigas de Évora. Coimbra: FLUC, 2017. Dissertação de Mestrado.
58
Acerca da cada vez maior ingerência do poder régio nas instituições caritativas, em particular nas
conimbricenses, que conduziu à reforma assistencial, nos finais da Idade Média, ver ROCHA, Ana Rita –
A Institucionalização dos Leprosos…, pp. 80-89 e ROCHA, Ana Rita – A Assistência em Coimbra na Idade
Média…, pp. 473-482, onde citamos bibliografia específica sobre o tema.
59
Como é do conhecimento geral, o reinado fernandino ficou marcado por alguns anos de más
colheitas, registando-se uma reduzida produção cerealífera, e ainda pela guerra contra Castela, nos períodos
de 1369-1371, 1372-1373 e 1381-1382. Todos estes problemas têm sido associados à conjuntura de crise geral
que se vivia no século XIV. No entanto, estudos mais recentes têm questionado o conceito de “crise”, de “crises
agrárias”, de “carestias” e “fomes”. Destaca-se, entre nós, o artigo que Luís Miguel Duarte dedicou a este tema,
no qual procurou demonstrar que nem sempre estamos perante uma crise agrícola, mas antes dificuldades
pontuais que colocavam em risco o abastecimento alimentar das cidades. Ver MARQUES, A. H. de Oliveira
– Introdução à história da agricultura…, pp. 258-260; MARQUES, A. H. de Oliveira – “Portugal na Crise dos
Séculos XIV e XV”. In SERRÃO, Joel; MARQUES, A. H. de Oliveira (dir.) – Nova História de Portugal. Vol. IV.
Lisboa: Presença, 1987, pp. 509-523; COELHO, Maria Helena da Cruz – O Baixo Mondego..., Vol. I, pp. 30-31;
MENANT, François – “Crisis de subsistencia y crisis agrarias en la Edad Media: algunas reflexiones previas”.
In OLIVA HERRER, Hipólito Rafael; BENITO I MONCLÚS, Pere (ed.) – Crisis de subsistencia y crisis agrarias
en la Edad Media. Sevilha: Universidad de Sevilla, 2007, pp. 17-60 e DUARTE, Luís Miguel – “‘Tomar o pão
dos coitados’: Para Repensar a Crise do Século XIV em Portugal”. In GARRIDO, Álvaro; COSTA, Leonor
Freire; DUARTE Luís Miguel – Estudos em homenagem a Joaquim Romero Magalhães: Economia, Instituições e
Império. Coimbra: Edições Almedina, 2012, pp. 241-261. Muito recentemente, Alexis Wilkin também abordou
a questão do conceito de crise, procurando compreender se este é ou não útil à História Medieval. WILKIN,
Alexis – “Le concept de crise est-il utile pour l’histoire médiévale? Remarques conclusives”. Mélanges de
l’École française de Rome – Moyen Âge 131-1 (2019), pp. 79-85.
DO CULTIVO AO CONSUMO: O ABASTECIMENTO DE CER EAL NA GAFARIA [...]
125
alteração era já uma realidade, registando-se uma redução superior a 50%, no caso
da porção de trigo atribuída aos leprosos, e o desaparecimento da ração de cereal
de segunda distribuída pelos merceeiros, que passaram a consumir apenas trigo60.
Três cartas posteriores, outorgadas pelo mesmo monarca e datadas de 1371, 1375
e 1376, parecem esclarecer-nos acerca das razões desta mudança61. Em todas elas
transparece a ideia de escassez provocada por maus anos agrícolas e de baixos
rendimentos da instituição, que a impossibilitavam de distribuir as porções fixadas
pela ordenação fernandina de 1367. No segundo documento pode mesmo ler-se que
a Gafaria não conseguia suportar as novas rações de cereal, agora iguais para todos,
devido às “menguas das rendas pellos annos casos que foram”62, numa clara alusão a
um período de baixa produção cerealífera, que a impedia de prover ao sustento dos
seus assistidos e de conceder novas rações a outros lázaros que por elas aguardavam.
Acrescem ainda às causas desta medida as guerras fernandinas, que, não só destruíam
edifícios e culturas, como absorviam imensos recursos. Emanados da chancelaria
fernandina em anos em que se registaram quebras de produção, devido, por um lado,
às guerras com Castela e, por outro, a fenómenos naturais diversos, estes diplomas
poderão inserir-se nos esforços reguladores da Coroa, que, todavia, nada resolveram,
como salienta Luís Miguel Duarte63.
Ocorrido na mesma altura, um outro episódio é também bastante ilustrativo
dos tempos conturbados que se viviam. A 27 de março de 1371, D. Fernando deu
conta da queixa apresentada pelo vedor e escrivão da Gafaria contra os juízes e
almotacés do concelho de Coimbra, pela qual os acusavam de terem roubado, dos
celeiros da instituição, o cereal destinado ao mantimento dos gafos e raçoeiros sãos.
Inclusivamente, é salientado que aqueles oficiais concelhios mandaram “britar e abrir
as portas da dicta gaffaria dos celeiros em que teem o dicto pam”64. Daqui resultaram
grandes perdas e danos para a instituição, que a impediam de cumprir a entrega
de rações de cereal aos lázaros e outros raçoeiros. O rei, procurando defender os
60
Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 52, pt. 2, n.º 33 ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos
Leprosos…, doc. 8, pp. 167-169.
61
Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 51, pt. 1, n.º 14 ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos
Leprosos…, doc. 14, pp. 180-184. O segundo documento encontra-se trasladado numa carta de D. Fernando,
de 1380, trasladada, por sua vez, juntamente com os outros dois diplomas, num instrumento notarial, datado
de 12 de janeiro de 1383, com o objetivo de se regularizarem e cumprirem as rações do vinho.
62
Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 51, pt. 1, n.º 14 ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…,
doc. 14, p. 182. Nesta carta de D. Fernando é indicado que os sãos recebiam, segundo a sua ordenação, uma
ração igual à dos leprosos, composta por 4 alqueires de trigo e 2 alqueires de cereal de segunda, por mês.
Todavia, como vimos acima, de acordo com o diploma de 1367, os merceeiros não tinham direito a cereal de
segunda ou, à falta de indicação clara, receberiam a mesma quantidade definida em 1329 (6 quarteiros por
ano, ou seja, 8 alqueires mensais). Não sendo possível esclarecer esta questão, o que importa aqui é frisar a
diminuição das rações numa conjuntura muito específica.
63
DUARTE, Luís Miguel – ““Tomar o pão dos coitados”…”, p. 249. Ver também MARQUES, A. H. de
Oliveira – Introdução à história da agricultura…, pp. 258-260.
64
Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 51, pt. 1, n.º 7 ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos
Leprosos…, doc. 9, pp. 170-171.
126
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
interesses de S. Lázaro, proibiu os juízes e almotacés de tomarem o grão dos seus
celeiros e obrigou-os a devolver todo aquele que já tinham roubado.
A interpretação deste documento poderá ser um pouco mais complexa do
que, à primeira vista, aparenta, levando-nos a ponderar algumas hipóteses e a
estabelecer comparações. Em primeiro lugar, devemos procurar compreender o que
levou os oficiais do concelho a roubar uma instituição de assistência. Mais uma vez,
como é natural, estamos perante uma situação de escassez de pão na cidade, que
poderá ter esvaziado os celeiros do concelho, obrigando os seus oficiais a procurar
alternativas de abastecimento, neste caso, ilícitas. No entanto, o roubo protagonizado
por autoridades municipais lembra-nos, em certa medida, o comportamento de
prelados, mestres e ricos-homens, denunciado pelo povo, nas cortes de Lisboa de
1371. Aqueles consumiam, de forma abusiva, o pão e vinho dos outros e guardavam
os seus próprios géneros, com o intuito de os venderem apenas em épocas de carestia,
naturalmente por um preço mais elevado65. Seria esta a intenção do concelho de
Coimbra? Do mesmo modo, a reação de D. Fernando poderá não se resumir apenas
a uma comum atitude de intervenção em S. Lázaro. O rei poderia ter interesse em
proteger o cereal da Gafaria para, mais tarde, o poder comprar por um preço quase
simbólico, para fazer face à falta de pão na sua frota de guerra, tomando “o pam dos
coitados”66. Não passando de meras hipóteses e não nos sendo possível clarificar e
justificar as ações dos oficiais concelhios e do monarca, fica, no entanto, o convite à
reflexão.
A ausência de dados mais concretos exige-nos alguma cautela, parecendo-nos
talvez mais lógico que este documento se inscreva nas tentativas protagonizadas pelo
concelho de Coimbra para exercer o seu domínio sobre a leprosaria, disputando-o
com o rei, aqui num claro contexto de carestia. No entanto, tal como noutras
circunstâncias, o poder régio conseguiu sempre impor-se e intervir nos assuntos
de maior importância da administração do hospital, nomeadamente no que ao seu
aprovisionamento alimentar diz respeito67.
Conclusão.
Mesmo as dificuldades impostas por maus anos agrícolas ou por guerras, que
contribuíam para a diminuição acentuada da produção cerealífera, não impediram
a Gafaria de Coimbra de manter uma certa estabilidade no seu abastecimento de
pão. Detentora de numerosas terras onde se cultivavam os grãos panificáveis, aos
65
CORTES Portuguesas: Reinado de D. Fernando I (1367-1383). Ed. A. H. de Oliveira Marques e Nuno
José Pizarro Pinto Dias. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1990, pp. 48-49.
66
DUARTE, Luís Miguel – “‘Tomar o pão dos coitados…’, pp. 257-258.
67
Sobre as relações de domínio em torno da administração da Gafaria de Coimbra e a predominância
do poder régio sobre a mesma, ver ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, pp. 80-89.
DO CULTIVO AO CONSUMO: O ABASTECIMENTO DE CER EAL NA GAFARIA [...]
127
seus celeiros chegavam consideráveis quantidades de trigo e de cereal de segunda,
que serviam o propósito de alimentar aqueles que, de uma forma ou de outra, dela
estavam dependentes e contribuir para a sua subsistência económica, ao integrarem
os circuitos comerciais da cidade ou ao garantirem, enquanto forma de pagamento,
o cumprimento das suas funções assistenciais. Recorrendo a uma ideia de Françoise
Bériac, a existência de celeiros e, naturalmente, de reservas de trigo e outros grãos,
provenientes das propriedades da própria instituição, espalhadas por toda a região
de Coimbra, “evoca a perspetiva tranquilizadora de uma casa onde os doentes não
morriam de fome”68.
68
BÉRIAC, Françoise – Histoire des Lépreux au Moyen Âge: une société d’exclus. Paris: Éditions Imago,
1988, p. 256. Tradução nossa e ligeira adaptação do original.
128
O abastecimento alimentar da cidade
em finais do século XIV:
contributos do Livro das
Posturas Antigas de Évora1
Rodolfo Petronilho Feio2
Resumo
O presente artigo aborda a temática do abastecimento alimentar da cidade, em
finais do século XIV, enfatizando os elementos que podemos encontrar no Livro
das Posturas Antigas de Évora.
Iniciamos com um breve enquadramento, caracterizador do Livro das Posturas
Antigas, pondo em destaque a sua singularidade em contexto nacional e a sua
extraordinária riqueza documental.
Adotamos, em seguida, no capítulo do abastecimento alimentar, correspondente
ao cerne do artigo, uma divisão temática pelos principais produtos alimentares:
o pão; a carne e o peixe; a fruta e os legumes; o vinho e o azeite e a água.
Em termos gerais, a preocupação de localizar, no tecido urbano, os
palcos privilegiados do aprovisionamento alimentar e nomear os agentes
intervenientes neste processo não deixaram de estar presentes. Ainda assim,
pelas características da fonte que utilizámos, a tónica recai, maioritariamente,
em temas relacionados com a regulamentação do setor, através das normas
impostas pelas autoridades camarárias que têm, naturalmente, nas questões
relativas ao abastecimento alimentar uma das suas principais preocupações.
Palavras-chave
Abastecimento alimentar; Évora; posturas municipais.
1
Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a
Tecnologia no âmbito do projeto MedCrafts – “Regulamentação dos mesteres em Portugal nos finais da Idade
Média: séculos XIV e XV”, Ref.ª PTDC/HAR-HIS/31427/2017.
2
CHSC-UC.
130
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
The city’s food supply at the end of the 14th century:
contributions of the Livro das Posturas Antigas de Évora
Abstract
This article addresses the theme of the city’s food supply in the late 14th century,
emphasizing the elements that can be found in the Livro das Posturas Antigas
de Évora.
We begin with a brief framework, characterizing the Livro das Posturas Antigas,
highlighting its uniqueness in the national context and its extraordinary
documentary richness.
We then adopt, in the chapter on food supply, which corresponds to the core
of the article, a thematic division into the main food products: bread, meat and
fish; fruit and vegetables; the wine and the oil and the water.
In general terms, the concern to locate, in the urban fabric, the privileged
stages of food supply and to appoint the actors involved in this process were
not present. Nevertheless, due to the characteristics of the source we have used,
the focus is mainly on issues related to the regulation of the sector, through
the rules imposed by the municipal authorities that naturally have food supply
issues as one of their main concerns.
Keywords
Food supply; Évora; municipal ordinances.
Introdução.
O presente artigo retoma, essencialmente, o conteúdo da comunicação, com o mesmo
título, que apresentámos nas IV Jornadas Internacionais de Idade Média, dedicadas
ao tema Abastecer a Cidade na Europa Medieval3. Subordinado à temática em apreço,
põe em relevo alguns dos principais contributos do Livro das Posturas Antigas de
Évora4 para o estudo do abastecimento alimentar daquela cidade, em finais do século
3 As referidas jornadas contaram com uma organização conjunta da Câmara Municipal de Castelo de
Vide e do Instituto de Estudos Medievais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lisboa, tendo-se realizado em Castelo de Vide, entre os dias 10 e 12 de outubro de 2019.
4
O Livro das Posturas Antigas de Évora constitui, a par com o de Lisboa, um dos dois únicos livros de
posturas, datados do período medieval, conservados em Portugal. A par disto, e não obstante a sua compilação
apenas ser realizada em 1466, algumas das posturas ali trasladadas datam de 1375, e das décadas seguintes,
O ABASTECIMENTO ALIMENTAR DA CIDADE EM FINAIS DO SÉCULO XIV
131
XIV, retomando parte de uma temática que abordámos já na nossa dissertação de
mestrado5.
A tónica está colocada no papel e na atuação dos agentes diariamente responsáveis
pela efetivação do abastecimento alimentar da cidade, a que correspondiam rostos
concretos, hoje impossíveis de identificar, mas também práticas baseadas em
costumes enraizados, que a legislação municipal permite conhecer. A preocupação
de localizar os palcos privilegiados do aprovisionamento alimentar não deixa de
estar presente, embora, devido às características da fonte que utilizámos, o destaque
recaia, maioritariamente, nas medidas adotadas pelas autoridades municipais para
a regulamentação do setor, através das normas impostas, traduzidas nas posturas
aprovadas, que têm, naturalmente, nas questões relativas ao abastecimento alimentar
uma das suas principais preocupações.
O vasto conjunto de medidas adotadas no sentido de proteger a produção
agrícola e pecuária destinada ao abastecimento alimentar da cidade, bem como
com as que, genericamente, se destinam à regulamentação do mercado, sobretudo,
tendo em conta os locais, os horários e as condições de venda e que, evidentemente,
correspondem também, na outra face da mesma moeda, às condições de
acesso do consumidor, são alvo de uma análise mais aprofundada. Deixámos,
consequentemente, de fora, questões relacionadas com o afilamento de pesos e
medidas, com o tabelamento de preços e salários ou com a cobrança da sisa que,
contudo, não deixam de, abundantemente, estar presentes ao longo da fonte que
compulsámos e que, de resto, explorámos no âmbito da nossa dissertação6.
1. A fonte: o Livro das Posturas Antigas de Évora.
O Livro das Posturas Antigas de Évora, composto por um conjunto de 254 posturas
e dois documentos régios, foi elaborado em 1466, por Fernão Lopes de Carvalho,
constituindo algumas das posturas municipais mais antigas que se conhecem em Portugal. Formam um longo
corpo legislativo, dedicado a diversos temas, principalmente de cariz socioeconómico, da vida na cidade de
Évora, na transição do século XIV para o XV, cobrindo um período fundamental na compreensão da história
do Portugal medievo, como a crise de 1383-1385. As referidas posturas têm sido utilizadas por diversos
historiadores, no âmbito dos mais variados tipos de estudo, destacando-se, pela vasta utilização desta fonte,
autores como A. H. de Oliveira Marques, Maria Ângela Beirante, Maria Helena da Cruz Coelho, Arnaldo de
Sousa Melo, Joaquim Bastos Serra ou Sérgio Carlos Ferreira, para além, entre muitos outros, de nós mesmos.
A título de exemplo, será ainda pertinente referir que, no contexto nacional, não obstante a não existência de
outros livros de posturas medievos, se conservam, no âmbito dos livros de atas de vereação, posturas relativas
aos concelhos do Alcochete e Aldeia Galega, Coimbra, Funchal, Loulé, Montemor-o-Novo, Porto, Vila do
Conde, entre algumas outras existências pontuais.
5
Cf. FEIO, Rodolfo Petronilho – Por prol e bom regimento: a cidade e o trabalho nas Posturas Antigas
de Évora. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2017. Dissertação de Mestrado, pp.
124-136.
6
Cf. FEIO, Rodolfo Petronilho – Por prol e bom regimento…, especialmente, pp. 136-166.
132
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
cavaleiro cidadão e escrivão do concelho de Évora7. A 16 de dezembro de 1662,
atendendo ao seu estado de conservação, foi reencadernado pelo escrivão Francisco
Cabral8.
O traslado original contém diversas gralhas e erros que, por vezes, dificultam a
compreensão do conteúdo de algumas posturas. A forma como o escrivão realizou
o traslado compromete também a datação da maioria daquelas que o integram,
uma vez que esta está, em alguns casos, indevidamente transcrita, tanto por falta
de alguns elementos cronológicos, como por lapsos do escrivão9. Nesse sentido, no
âmbito da nossa dissertação de mestrado, procurámos datar criticamente cada uma
das posturas, trabalho que, ainda assim, não se revelou frutuoso. Sabíamos que a sua
maioria fora produzida entre finais do século XIV e princípios do século XV; mais
concretamente, de acordo com as datas expressas, entre 1375 e 1395. Não obstante,
importa reter que foi possível datar criticamente posturas do ano camarário de 14061407, podendo balizar-se outras ad quem até 141410.
Cremos que seja também útil fazer uma breve incursão no conteúdo das
posturas. Para esse efeito, partimos dos núcleos temáticos Mesteirais e Ofícios;
Agricultura e Pecuária; Comércio; Caça, Pesca e Silvicultura; Urbanidade; Pesos e
Medidas; Justiça e Oficiais; Sociedade e Vária. Posto isto, verificámos que as posturas
se distribuíam, pelos núcleos temáticos, da forma como o quadro e o gráfico
apresentados demonstram:
7
LIVRO das Posturas Antigas de Évora. Apr. Maria Filomena Lopes de Barros e Maria Leonor F. O. Silva
Santos. Transc. Ana Sesifredo, Fátima Farrica e Miguel Meira. In Posturas Municipais Portuguesas: séculos
XIV-XVIII. Ed. Maria Filomena Lopes de Barros e Mário Viana. Ponta Delgada: Centro de Estudos Gaspar
Frutuoso/Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades, 2012, pp. 110. Quando, sem qualquer
outra indicação, aludirmos ao Livro das Posturas Antigas de Évora referimo-nos sempre à sua transcrição
publicada nesta obra, pp. 21-110.
8
LIVRO das Posturas Antigas…, pp. 29. Importante será acrescentar que o presente Livro das Posturas
foi alvo de duas transcrições. A primeira, parcial, da autoria de Gabriel Pereira, publicada no século XIX, no
âmbito da coletânea DOCUMENTOS Históricos da Cidade de Évora (Ed. de Gabriel Pereira. Ed. fac-similada.
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988, pp. 127-154) e a segunda, da autoria de Ana Sesifredo,
Fátima Farrica e Miguel Meira, primeiro disponibilizada on-line e, posteriormente, publicada na obra Posturas
Municipais Portuguesas…, pp. 21-110.
9
Estas questões foram já colocadas em relevo na apresentação da mais recente transcrição do LIVRO das
Posturas Antigas…, p. 11-26. Sobre elas e outros aspetos relevantes para uma caracterização mais aprofundada
do Livro das Posturas, veja-se também FEIO, Rodolfo Petronilho – “Som servidores d’El Rey e do Concelho:
a presença judaica no Livro das Posturas Antigas de Évora”. Revista de História da Sociedade e da Cultura 18
(2018), pp. 34-37, e, mais amplamente, FEIO, Rodolfo Petronilho – Por prol e bom regimento…, pp. 19-22.
10
Para um melhor conhecimento deste processo, e dos resultados que foi possível obter, veja-se FEIO,
Rodolfo Petronilho – Por prol e bom regimento…, pp. 22-27. A mesma questão havia já sido preliminarmente
aflorada em FEIO, Rodolfo Petronilho – “A Cidade e o Trabalho nas Posturas Antigas de Évora: um projeto de
dissertação”. In SILVA, André; TEIXEIRA, Carlos; FERREIRA, João Martins; FERREIRA, Leandro; LEITE,
Mariana (coords.) Incipit 6. Porto: Universidade do Porto, Faculdade de Letras, 2018, p. 143.
O ABASTECIMENTO ALIMENTAR DA CIDADE EM FINAIS DO SÉCULO XIV
Núcleo
N.º de posturas
Mesteirais e Ofícios
61
24,02%
Agricultura e Pecuária
51
20,08%
Comércio
40
15,75%
Caça, Pesca e Silvicultura
28
11,02%
Urbanidade
21
8,27%
Pesos e Medidas
20
7,87%
Justiça e Oficiais
20
7,87%
Sociedade
7
2,76%
Vária
6
2,36%
254
100%
133
Percentagem
Quadro I – Distribuição das Posturas, existentes no Livro das Posturas Antigas de Évora,
por núcleos temáticos (1375-[1411]).
Mesteirais e Ofícios
Agricultura e Pecuária
Comércio
Caça, Pesca e Silvicultura
Urbanidade
Pesos e Medidas
Justiça e Oficiais
Sociedade
Vária
Gráfico 1 – Distribuição das posturas, existentes no Livro das Posturas Antigas de Évora,
por núcleos temáticos (1375-[1411]).
Uma análise superficial dos elementos apresentados permite concluir que os
três primeiros núcleos temáticos, isto é, as questões relacionadas com os mesteirais e
ofícios, com a agricultura e pecuária e com o comércio, correspondem a quase 60%
134
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
das posturas existentes no Livro. De facto, as grandes preocupações das autoridades
municipais encontram a sua nota dominante na regulamentação do mercado, não
somente através do tabelamento de preços dos diversos artigos e serviços, mas
também procurando garantir a qualidade e a acessibilidade dos produtos, sobretudo
alimentares. Controla-se a circulação dos produtos, bem como a forma como se devia
(ou podia) proceder à sua comercialização. Outro tópico de grande importância
prende-se ainda com medidas tomadas com o que, avant la lettre, poderíamos
chamar higiene e segurança alimentar, procurando garantir a qualidade dos produtos
comercializados. Uma outra das questões de maior premência é o estabelecimento
de um valor considerado justo para a moagem do cereal, claramente no contexto
do aprovisionamento alimentar da cidade, campo onde se enquadram também as
medidas tomadas no âmbito da proteção da cultura da vinha, da cultura cerealífera
e da pecuária11.
Conhecida a fonte que estrutura o estudo que ora apresentamos, convidamos
o leitor a mergulhar no seio do Livro das Posturas. Aí procuraremos conhecer os
principais produtos alimentares, cujo abastecimento mais preocupou as autoridades
camarárias, levando-as a produzir um número mais elevado de posturas.
2. O abastecimento alimentar: produtos, agentes e normas.
Neste segundo ponto, dedicado ao abastecimento alimentar, pretendemos dar conta
da forma como se processava e organizava o provimento alimentar da cidade que,
como dissemos, constituiu sempre um tópico recorrente entre as resoluções discutidas
e aprovadas pelas autoridades concelhias. Aludiremos aos principais intervenientes
desses processos e às atividades que cada um desenvolvia, não deixando de privilegiar
a temática vincadamente reguladora que emana das posturas.
Alguns estudos sobre Évora, sobretudo da autoria de Ângela Beirante,
avançaram uma caracterização económica da cidade, fornecendo elementos para o
estudo do mercado cujo abastecimento alimentar se procura garantir12. Às tendas
fixas e oficinas, espalhadas pela cidade13, somam-se – e são esses os pontos-chave do
abastecimento alimentar – a Praça da Porta de Alconchel, o açougue e o Rossio14.
11
À semelhança do que temos vindo a referir, para um contacto mais aprofundado com as questões que
aqui apresentamos veja-se FEIO, Rodolfo Petronilho – Por prol e bom regimento…, pp. 27-33.
12
Entre eles, destaquem-se BEIRANTE, Maria Ângela da Rocha – Évora da Idade Média. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian e Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, 1995, bem como
alguns dos artigos compilados em O Ar da Cidade: ensaios de História Medieval e Moderna (Lisboa: Edições
Colibri, 2008).
13
Em BEIRANTE, Maria Ângela da Rocha – Évora na Idade Média, pp. 402-433 encontra-se uma
análise da distribuição das tendas e oficinas dos diferentes mesteres na cidade.
14
Uma caracterização mais detalhada destes lugares encontra-se em FEIO, Rodolfo Petronilho – Por
prol e bom regimento…, pp. 59-66.
O ABASTECIMENTO ALIMENTAR DA CIDADE EM FINAIS DO SÉCULO XIV
135
Acresce um sistema de revenda, porta-a-porta, dominado por regatões e regateiras,
que as autoridades municipais olham com maus olhos e procuram regulamentar
apertadamente, quando não desincentivar ou mesmo proibir. A escala considerada
neste nível diário do abastecimento da cidade aumenta, semanalmente, no mercado,
pois garantiria o abastecimento dos lugares rurais do termo15. E, uma vez por ano,
durante os quinze dias da feira, era alargada a um contexto regional, ainda mais
amplo16.
A cidade, localizada em plena planície alentejana, é ainda hoje dominada por
extensos campos de cereais, pastagens e olivais de características mediterrânicas17.
Encabeçava um termo, cuja área fixa os seus limites no século XIV, próximos dos do
atual concelho, com cerca de 1300 km²18. Não possuímos indicadores seguros sobre
a sua população, mas Ângela Beirante calcula que, em 1475, a cidade teria cerca de
10 000 habitantes19.
As principais produções eram de carácter agrícola, cabendo a primazia aos
cereais (essencialmente trigo e cevada) e ao vinho, para além do azeite e dos produtos
hortícolas. Enorme importância tinha a criação de gado, sobretudo cavalar, bovino
e suíno, levando a que a cidade e o seu termo tivessem uma relação de grande
interdependência – ainda mais profunda do que na maioria das cidades medievais
portuguesas –, assumindo-se como verdadeiramente indissociáveis20.
Os historiadores acentuam a forma como a crise do século XIV foi profunda
no Alentejo. Ângela Beirante chama a atenção para o facto da reduzida densidade
populacional e da baixa produtividade do solo serem responsáveis por acentuar
a falta de mão-de-obra e de víveres, tendentes ao agravamento da situação21. Pelo
menos a partir dos anos de 1375-1376 assiste-se, como corolário de vários surtos
15
Da categorização como mercado deste evento semanal discordou Ângela Beirante, considerando que,
se pela periodicidade o deveríamos considerar apenas um mercado, pela dinâmica regional que gerava devia
ser entendido como uma feira (Cf. BEIRANTE, Ângela – Évora na Idade Média..., p. 456).
16
Sobre o mercado semanal e a feira anual veja-se o que se diz em FEIO, Rodolfo Petronilho – Por prol
e bom regimento…, pp. 65-66. Atente-se também nos contributos disponibilizados em RAU, Virgínia – Feiras
Medievais Portuguesas: subsídios para o seu estudo. Lisboa: Editorial Presença, 1982, p. 91 e em MONIZ,
Manuel Carvalho de – As Feiras de Évora. Évora: Câmara Municipal de Évora, 1997.
17
Para uma caracterização geográfica da cidade veja-se RIBEIRO, Orlando – “Évora: sítio, origem,
evolução e funções de uma cidade”. In BRITO, Raquel Soeiro de (coord.) –Estudos de Homenagem a Mariano
Feio. Lisboa: Rua, 1986, p. 377.
18
Para um conhecimento mais detalhado da evolução e constituição do termo de Évora veja-se
BEIRANTE, Maria Ângela da Rocha – Évora da Idade Média..., pp. 27-38.
19
Sobre a quantificação, caraterização e evolução da população de Évora na Idade Média veja-se
BEIRANTE, Maria Ângela da Rocha – Évora da Idade Média..., pp. 141-186.
20
MARQUES, A. H. de Oliveira – “O Surto Urbano, a Moeda e os Preços”, p. 197 e CARVALHO, Sérgio
Luís – Cidades Medievais Portuguesa: uma introdução ao seu estudo. Lisboa: Livros Horizonte, 1989, pp. 58-59.
Acerca desta questão, e não obstante a cronologia ser posterior, veja-se também BEIRANTE, Maria Ângela da
Rocha – “O vínculo cidade-campo na Évora de quinhentos”. In O Ar da Cidade..., pp. 295-304.
21
BEIRANTE, Maria Ângela da Rocha – “O Alentejo na 2.ª metade do século XIV: Évora na crise de
1383-1385”. In O Ar da Cidade…, p. 263.
136
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
de peste e de maus anos agrícolas, a um prolongado período de escassez e fome22,
notório nas preocupações que as autoridades municipais revelam, adotando medidas
para os combater23. Acrescem as consequências das Guerras Fernandinas, mormente
a terceira, entre 1381 e 138224. Basta recordar a política de terra queimada e as
frequentes razias, perpetradas pelo exército castelhano e pelos soldados ingleses,
nas vilas em torno de Évora25. Também o deflagrar da Revolução de 1383-1385
foi particularmente violento, culminando, na cidade, com o assalto ao castelo e o
assassinato da abadessa do mosteiro de S. Bento de Cástris26, num quadro de grande
instabilidade social.
Traçado este breve enquadramento socioeconómico, devemos agora deter-nos
na análise de cada um dos principais produtos alimentares visados na legislação
municipal.
2.1 O pão27.
O pão era o principal alimento da mesa medieval, tendo, como tal, uma enorme
importância no quotidiano, razão pela qual a sua abundância se encontrava no cerne
das preocupações das autoridades municipais28.
22
SERRA, Joaquim António Felisberto Bastos – Governar a Cidade e Servir o Rei: a oligarquia concelhia
de Évora em tempos medievais (1367-1433). Évora: Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades
da Universidade de Évora, 2018, pp. 39-40.
23
Cf., por exemplo, Livro das Posturas Antigas de Évora…, post. 84, 104A, 104B, 105B e 105C.
24
BEIRANTE, Ângela – “O Alentejo na segunda metade do século XIV…”, p. 263.
25
Cf. LOPES, Fernão – Crónica de D. Fernando. 2.ª ed. Ed. crít., intr. e índices Giuliano Macchi. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004, caps. CXXXII e CXXXIV, pp. 465-467 e 471-473.
26
Cf. LOPES, Fernão – Crónica de D. João I. Intr. Humberto Baquero Moreno, pref. António Sérgio. Vol.
1. Porto: Livraria Civilização, 1990, cap. XLIV, pp. 88-90 e cap. XLV, pp. 90-92. Fernão Lopes enfatiza ainda,
ao longo de toda a primeira parte da Crónica de D. João I, os conflitos que ocorrem no termo, destacando-se
a ameaça de uma batalha campal, nas imediações do Divor, na zona noroeste do concelho, no verão de 1384
(cap. CXLVI, pp. 296-299).
27
Sobre esta temática devemos deixar uma referência à comunicação apresentada por Arnaldo de
Sousa Melo, nestas IV Jornadas Internacionais de Idade Média, igualmente na sessão 9, dedicada ao projeto
Medcrafts: regulamentação dos mesteres em Portugal nos finais da Idade Média: séculos XIV e XV, intitulada
“Moleiros, moinhos e azenhas no Porto nos séculos XIV e XV: um setor-chave do abastecimento cerealífero”,
que permite fazer uma pertinente comparação entre as realidades portuense e eborense no que à moagem do
cereal diz respeito. Reforçando a extrema importância do pão da alimentação medieval e nas preocupações
das autoridades municipais do Portugal medievo lembramos ainda a conferência de abertura das mesmas
Jornadas, proferida por Iria Gonçalves, intitulada “Uma pequena cidade medieval e o seu pão na Baixa Idade
Média: o caso de Loulé”.
28
Cf., entre numerosos outros, MARQUES, A. H. de Oliveira – “A mesa”. In A Sociedade Medieval
Portuguesa: aspectos de vida quotidiana. 6.ª ed. Lisboa: Estampa dos Livros, 2010, pp. 36-37; ARNAUT,
Salvador Dias – “A arte de comer em Portugal na Idade Média”. In O “Livro de Cozinha” da Infanta D. Maria de
Portugal. Leitura Giacinto Manuppella e Salvador Dias Arnaut. Intr. histórica Salvador Dias Arnaut. Coimbra:
Por ordem da Universidade, 1967, pp. XXIV-XXX; COELHO, Maria Helena da Cruz – “Apontamentos sobre a
comida e a bebida do campesinato coimbrão em tempos medievos”. Revista de História Económica e Social 12
(1987), pp. 92-93 e GONÇALVES, Iria – “A alimentação”. In História da Vida Privada em Portugal. Vol. 1: A
Idade Média. Dir. José Mattoso. Coord. Bernardo Vasconcelos e Sousa. 2.ª ed. Alfragide: Círculo de Leitores/
Temas e Debates, 2011, pp. 227-228.
O ABASTECIMENTO ALIMENTAR DA CIDADE EM FINAIS DO SÉCULO XIV
137
O ciclo do pão inicia-se, naturalmente, com a produção de cereal, cujas
preocupações de proteção são notórias em numerosas posturas29. Nesse sentido, as
instâncias municipais não só proíbem a sega e a apanha de erva nas searas alheias
(post. 97), como são explícitas ao afirmar que aqueles que lavrassem os ferregiais
deviam trazer os bois devidamente sinalizados com chocalhos (post. 98) para
impedir que neles causassem danos. É também para proteger as culturas que, por
exemplo, se proíbe, em 1378, que os porcos andassem nos ferregiais de dentro e de
fora da cidade, nos pães e nos alcáceres (post. 106). Da mesma forma, proíbe-se, em
1380, que os bois e as vacas andassem nas coutadas antes do dia de Santa Iria (20 de
outubro) (post. 101A), entre vários outros exemplos que podíamos avocar.
Parte considerável do cereal produzido no termo do concelho – quando não no
aro urbano ou mesmo no interior da própria cerca – era armazenado nas chamadas
covas de pão30, com cuja preservação as autoridades municipais se preocuparam, em
mais do que um momento (post. 80, 211 e 212).
As posturas municipais permitem-nos também identificar a existência de
moinhos de água, como comprova o topónimo ribeira do Rio de Moinhos (post. 115
e 230A), aplicado à atual ribeira de Valverde. Contudo, na sua maioria, as alusões
a atafonas suplantam as referências a moinhos (cf. post. 144, 230A e 230B). Assim,
somos levados a concluir que o grosso da moagem do cereal, pelo menos durante
o estio, se realizasse em atafonas, movidas a força animal, ou mesmo braçal31.
Consequentemente, as preocupações das autoridades municipais – e os conflitos que
se geram no seu seio – acabam por envolver sobretudo os atafoneiros e, apenas em
muito menor escala, os moleiros.
Contudo, ainda antes da transformação do cereal, assumiam grande importância
as chamadas medideiras de pão, que deviam emprestar, a título gratuito, as medidas
oficiais do concelho para medir a quantidade de cereal transacionada, no terreiro
da praça de Alconchel (post. 42). O transporte do cereal para as atafonas e moinhos
29
Tenham-se, por exemplo em conta as posturas 92, 94, 97, 98, 105A, 106, 108, 110, 217, 235, 236, 238,
244, 247 e 250, onde essas preocupações com a proteção da cultura cerealífera são bem notórias. Relativamente
à numeração das posturas, retomamos aquela que utilizámos na nossa dissertação de mestrado, para a qual
remetemos (cf. FEIO, Rodolfo Petronilho – Por prol e bom regimento…, p. 7). No final da mesma encontrase, em anexo, uma ficha interpretativa para cada uma das 254 posturas que o Livro inclui (FEIO, Rodolfo
Petronilho – Por prol e bom regimento…, pp. 222-355).
30
Acerca de algumas covas de pão existentes na cidade, cujos vestígios ainda hoje se conservam, vejamse os elementos adiantados por CORREIA, Miguel – “Um conjunto de silos do final da Idade Média, na rua
Cândido dos Reis – Évora”. A Cidade de Évora, 2.ª série, 7 (2007-2008), pp. 237-258.
31
O mesmo acontecia, por exemplo, em Lisboa, local para o qual Oliveira Marques calcula que mais
de 80% da moagem fosse realizada em atafonas (MARQUES, A. H. de Oliveira – Introdução à História da
Agricultura: a questão cerealífera na Idade Média. 3.ª ed. Lisboa: Cosmos, 1978, p. 191). Pelo contrário, para a
cidade do Porto, Arnaldo Melo, apresentou elementos que põem em destaque a relevância que a atividade dos
moleiros tinham no cômputo moagem cerealífera naquela cidade (MELO, Arnaldo Rui Azevedo de Sousa –
Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média: o Porto, c. 1320-c. 1415. Vol. 1. Braga: Instituto de Ciências
Sociais da Universidade do Minho/École des Hautes Études en Sciences Sociales, 2009. Tese de Doutoramento,
pp. 293-296).
138
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
ficava, geralmente, a cargo de molinheiros e acarretadores de pão que vêem também
o valor que lhes era lícito exigir pelo transporte do cereal tabelado pelas autoridades
concelhias (post. 144).
Na transformação atuavam, principalmente, moleiros, moendeiras e atafoneiros,
não obstante estar também documentada a existência de mós de braço (post.119).
Ainda assim, como dizíamos, as referências mais numerosas são claramente as que
dizem respeito aos atafoneiros, a quem competiria o grosso da moagem do cereal.
O nível de detalhe que as autoridades municipais colocam na averiguação
dos custos de moagem do cereal, para permitir a colocação de um valor justo para
trabalhadores e consumidores, é de tal ordem que nos permite entrar em algumas
das atafonas da cidade e encontrá-las em pleno funcionamento.
Uma atafona trabalhava durante dia e noite, assegurada por duas bestas, capazes
de moer, nesse período de laboração, entre um quarteiro (ca. 217,5 l) e 16 alqueires
(232 l) de trigo lento e 18 alqueires (cerca de 261 l) de trigo seco (post. 145 e 194A).
Ali trabalhava também, pelo menos, um mancebo que, incluindo o mantimento e a
soldada, recebia à volta de 4 soldos por dia. Em termos de despesas, calcula-se que
cada besta consumisse, diariamente, um alqueire (14,5 l) de cevada, grama ou erva
no valor de 9 dinheiros e meio alqueire (ca. 7,25 l) de farelo (post. 145, 192A e 194 A).
Para assegurar o normal funcionamento da atafona, seria ainda necessário despender
entre os 2 e os 4 soldos, por dia, para ferragem; 1 soldo para azeite; 8 soldos para pão
e conduto e 3 libras em calçado e burel. Acresce ainda o arrendamento do espaço,
cifrado entre um e os quatro soldos diários (post. 145 e 192A), o que nos indicia que
o atafoneiro não era, geralmente, proprietário da atafona em que exercia o seu mester
ou, pelo menos, da divisão/edifício onde a atafona se encontrava instalada.
No mesmo sentido, encontramos também alguns elementos relacionados com
o funcionamento dos moinhos de água que se localizavam, privilegiadamente, nas
margens da ribeira de Valverde. Ainda assim, a postura em causa (230A) é bastante
confusa no tocante aos valores apresentados, impedindo-nos de chegar a qualquer
conclusão segura.
Os intervenientes no processo de moagem do cereal, sejam moleiros ou
moendeiras, mas principalmente atafoneiros, vêem, diversas vezes, o valor que deviam
cobrar pela moagem do alqueire de trigo e de segunda, tabelado pela vereação.
Embora algumas das posturas que abarcam esta temática não se encontrem
datadas com segurança, é evidente que este tabelamento causou profundos conflitos
entre os atafoneiros e a vereação, sendo os representantes dos atafoneiros repetidas
vezes ouvidos na câmara para que, de acordo com as oscilações do valor do cereal
que moíam, fosse ajustado o valor que deviam receber como remuneração do seu
trabalho.
Nesse sentido, sucedem-se posturas datadas de julho de 1380 (post. 145), junho
O ABASTECIMENTO ALIMENTAR DA CIDADE EM FINAIS DO SÉCULO XIV
139
e julho de 1382 (post. 146A, 146B e 146C), junho e agosto de 1394 (post. 192A, 192B,
194A e 194B), em que, sucessivamente, se revêm os valores tabelados para a moagem
do cereal.
Assiste-se a uma subida dos preços entre julho de 1380 e os primeiros seis
meses de 1382. A tendência inverte-se, porém, em junho/julho de 1382. A 3 de julho,
os valores, novamente retificados em baixa, aproximam-se com os tabelados dois
anos antes – 16 dinheiros por alqueire de trigo seco e 20 por alqueire de trigo lento,
em 1380 (post. 145), e 18 dinheiros por alqueire de trigo seco e 20 pelo de lento, em
1382 (post. 146C).
Só voltamos a ter valores para a moagem do cereal doze anos depois. O verão
de 1394 denuncia uma acentuadíssima subida do preço dos cereais. A 13 de junho,
estabelece-se que o alqueire de trigo fosse moído a 12 soldos32 e alguns dias depois, a
21, é necessário chegar-se a novo entendimento, acabando por colocar-se o alqueire
moído a 15 soldos (post. 192B). Apesar destes ajustamentos, a 8 de agosto, os
atafoneiros exigem receber 20 soldos pela moagem do alqueire de trigo, situação que
a vereação terá recusado (post.194A). Assim o percebemos, quando, na reunião de
11 de agosto, se dá conta que os atafoneiros haviam formado uma união, tentando
“por a cidade em tal que lhes leixassem moer como eles quisessem” (post.194B).
Esta última informação é também de extraordinária importância para
conhecermos a forma como os atafoneiros se encontravam organizados sob o ponto
de vista socioprofissional. Ao contrário do que acontece relativamente a alguns
mesteirais da cidade, não encontramos, neste conjunto documental, quaisquer
referências à existência de nenhum tipo de organização profissional permanente
dos atafoneiros. Aliás, e ao contrário que acontece relativamente aos profissionais de
outros setores, nem sequer se regista a participação de procuradores dos atafoneiros
das reuniões de vereação. Assim, na esmagadora maioria das numerosas vezes em
que ali se deslocam, para participar na discussão dos valores da moagem do cereal,
dando conta das despesas desse processo, as indicações referem-nos sempre como
simples atafoneiros, sem qualquer outro grau de representação dos seus pares (cf.
post. 145, 146A, 146B, 146C, 192A).
Não obstante, entre todos os grupos profissionais identificados nas posturas,
os atafoneiros são, não só aquele que apresenta um maior grau de reivindicação,
32
Devemos sublinhar que não estamos, neste momento, em condições de calcular a real oscilação
do preço do alqueire de trigo, uma vez que este intervalo de doze anos corresponde a um dos períodos de
maior desvalorização monetária da história portuguesa. De acordo com Oliveira Marques, entre 1383 e 1398,
a desvalorização da moeda oscilou entre os 1000 e os 1200%, com 1 libra de 1383 a equivaler a 10 ou 12 em
1398. Cf. MARQUES, A.H. de Oliveira – “A moeda portuguesa durante a Idade Média”. In Ensaios de História
Medieval Portuguesa. Lisboa: Editorial Vega, 1980, p. 213. Sobre a desvalorização da moeda, por esta época,
atente-se ainda nos contributos de TAVARES, Maria José Ferro – “Para o estudo da numária de D. Fernando”.
Estudos Medievais 2 (1982), pp. 3-32 e Estudos de História Monetária Portuguesa (1383-1438). Lisboa: Edição
do Autor, 1974, especialmente, pp. 23-41.
140
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
como aquele que leva mais longe as formas de luta adotadas para levar avante essas
reivindicações33.
Se partimos do princípio que os atafoneiros se integram nas procissões da cidade
junto dos molinheiros, podemos considerar que ali ocupam já um lugar relativamente
significativo34. Da mesma forma, estariam, naturalmente, bem conscientes da
extrema importância da sua função no abastecimento alimentar da urbe. No verão
de 1394, momento em que as atafonas seriam a única forma possível de moer o
cereal, porque, certamente, o estio levara à inoperacionalidade dos moinhos de água,
espalhados pelo termo do concelho, atinge-se o auge da sua capacidade organizativa.
A questão seria, certamente, mais antiga. Logo a 13 de junho, a vereação
acusa os atafoneiros de serem “perfiosos e nom querem husar de razom o que ser
agram mingua da dicta çidade”, forçando-os a moer ao valor tabelado, sob “boom
escarmento asy da cadea como de pena de dinheirros” (post. 192A). As ameaças do
corregedor parecem, no entanto, não ter surtido qualquer efeito, antes aumentado
a união entre os atafoneiros e a sua capacidade reivindicativa. Na semana seguinte,
deslocam-se novamente à vereação, desta feita munidos de uma carta assinada
e selada pelo corregedor, em que se dava autorização ao concelho para rever, a
favor dos atafoneiros, os valores tabelados na semana anterior, indicando que se
encontravam, inclusivamente, dispostos a fazer o agravo chegar ao monarca (post.
192B). Na presença da carta, a vereação acede, mas mesmo assim, os atafoneiros
ainda não estavam satisfeitos.
Pouco mais de um mês depois, a 8 de agosto, deslocam-se uma vez mais
à vereação. Desta feita, encontram-se já legalmente representados pelos seus
procuradores, apresentando a competente procuração, realizada por todos os
atafoneiros da cidade, redigida por um tabelião (post. 194A). Vemos, pois, como
apenas excecionalmente os atafoneiros se fazem representar por procuradores,
querendo, seguramente, aumentar a sua força diante das autoridades municipais. A
proposta apresentada vai no sentido de aumentar a moagem em cerca de 33%, valor
que a vereação não aceita. Ainda assim, porventura por prudência, procura conhecer,
uma vez mais, as despesas de moagem, para definir o valor considerado justo. Os
atafoneiros, certamente saturados do processo, ou desconfiando da não anuência das
autoridades a novo aumento, decidem então partir para a “greve”. Como dissemos,
na reunião de 11 de agosto, refere-se que os atafoneiros “se ajuntarom em maneira de
confraria e que andarom per todallas atafonas da çidade tomamdo lhe as segurrelhas
pera averem azo de nom moerem por a çidade em tal que lhes lleixassem moer como
33
Esta mesma força reivindicativa está também patente, por exemplo, entre os moleiros da cidade do
Porto como Arnaldo Melo não deixou de por em evidência na sua comunicação “Moleiros, moinhos e azenhas
no Porto nos séculos XIV e XV…”, a que já, anteriormente, aludimos.
34
Cf. DOCUMENTOS Históricos da Cidade de Évora…, p. [372].
O ABASTECIMENTO ALIMENTAR DA CIDADE EM FINAIS DO SÉCULO XIV
141
elles quisesem” (post. 194B).
Embora, infelizmente, nada mais possamos saber acerca desta união, nem das
consequências que dela resultaram para os atafoneiros, ela é exemplar no sentido de
evidenciar a capacidade de união e reivindicação deste grupo socioprofissional. Não
obstante o seu lugar na hierarquia social, os atafoneiros conheciam a sua importância,
imprescindível no quotidiano urbano, já que garantia a própria subsistência da
cidade.
Por outro lado, ainda no âmbito do processo de transformação do cereal em pão,
não devemos também esquecer o papel de padeiras e forneiras. As padeiras estavam
obrigadas a amassar, contínua e diariamente, até ao dia de S. João (24 de junho)
para que a cidade fosse abastada, devendo levar, diariamente, pão à praça (post. 49).
Deviam também garantir que o pão, não só tinha o peso regulamentado, como era
finto e cozido como devia (post. 18). No respeitante à comercialização, as posturas
registam ainda a atividade de vendedeiras das poias de forno e das obradas, que eram
obrigadas a vender na Praça, apartadas das padeiras, pondo os seus produtos nos
poios que lhes estavam destinados (post. 47).
2.2 A carne e o peixe
Entre a carne e o peixe a primazia está, claramente, na carne. De facto, a carne
assumia ‒ excetuando os períodos de jejum, bastante longos no período medievo ‒ o
protagonismo à mesa, assim houvesse capacidade para a adquirir35.
A importância que a carne assumia denota-se também nas preocupações que
as autoridades municipais colocam na proteção da pecuária36. É evidente que se
preocupam, fundamentalmente, com a proteção do gado utilizado na agricultura
e com a proteção do gado equídeo, mas a par destas preocupações encontra-se
também o gado pertencente a carniceiros e enxerqueiros, precisamente destinado ao
aprovisionamento do açougue e abastecimento alimentar da cidade37.
Carniceiros, e em menor escala enxerqueiros, têm um papel fundamental nesta
dinâmica. No aro da cidade, em zonas que as posturas procuram delimitar com
35
Cf., entre numerosos outros, MARQUES, A. H. de Oliveira – “A mesa...”, pp. 28-31; ARNAUT,
Salvador Dias – “A arte de comer em Portugal na Idade Média...”, pp. XXX-XXXVII; COELHO, Maria Helena
da Cruz – “Apontamentos sobre a comida e a bebida do campesinato coimbrão…”, pp, 93-94 e GONÇALVES,
Iria – “A alimentação…”, pp. 229-232.
36
Existem, na verdade, algumas posturas dedicadas a esta temática, tomando-se, inclusivamente,
medidas extraordinárias em períodos de seca ou de guerra, procurando minorar os seus efeitos sobre as
espécies animais. Atente-se, nesse sentido, nas posturas 13, 37, 38, 39, 59, 75, 84, 103, 104A, 105B, 105C e 114,
muito embora existam numerosas outras que procuram regulamentar as atividades agro-pastoris.
37
Mesmo assim, importa não esquecer que diversas outras posturas, indiciam os esforços das
autoridades concelhias na proteção das culturas agrícolas, sobretudo cerealífera e vinícola, produzindo
posturas que procuram, no essencial, impedir que o gado nelas provoque danos e prejuízos (cf., p. ex., post. 84,
89, 90, 91, 92, 94, 98, 101A, 101B, 103, 104B, 105A, 105B, 105C, 106, 108, 109, 110, 114, 115).
142
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
algum pormenor, pastam, privilegiadamente, as suas manadas (post. 100, 103, 105B,
235 e 244). Era permitido que o seu gado pastasse, quer no restolho dos ferragiais e
panasqueiras, quer nas vinhas abandonadas. Era-lhes, porém, como seria de esperar,
proibido levar gado para vender fora da cidade (post. 38).
Noutros casos, igualmente documentados, as reses destinadas ao consumo
não eram pertença dos próprios carniceiros, pelo que estes compravam os animais,
destinados a abate. Essa operação tanto podia ser efetuada diretamente aos ovelheiros
e pegureiros ‒ situação proibida pelas posturas (post. 75) e apenas autorizada
mediante mandado dos respetivos donos (post. 39), ou mesmo dos almotacés (post.
13) –, como no mercado. Contudo, neste último, apenas podiam comprar animais
depois das 10,00h, procurando impedir-se o abate para consumo de animais aptos
para os trabalhos agrícolas (post. 59). Se, nestes exemplos, o abastecimento alimentar
da cidade parece ficar para segundo plano, no veiculado na postura 228 a tónica está,
claramente, nesse abastecimento. Face a um contexto extraordinário, motivado pela
guerra, atendendo “a mingua que ham das carnes”, revoga-se, a título excecional, o
que era costume na cidade, e proíbe-se que os vizinhos pudessem tomar, para criar,
o gado que os carniceiros e enxerqueiros tinham para o aprovisionamento alimentar
(post. 228).
A etapa seguinte era o abate. Ora, as reses, cuja carne se destinava ao comércio,
deviam ser abatidas no curral do concelho ou no Rossio, junto daquele curral,
atividade que, mais uma vez, se realizava sob a responsabilidade dos carniceiros
(post. 6) e, de acordo com as posturas, somente depois da hora de Vésperas (post.
71). Pelo contrário, quando o abate não pressupunha a posterior venda da carne,
era permitido noutros lugares, autorizando-se, nesse sentido, que os enxerqueiros se
deslocassem a casa dos homens-bons que os chamassem, para o abate de porcos e
friames (post. 61).
A carne era comercializada no açougue (post. 9 e 12), muito embora, mediante
algumas condições descriminadas na legislação municipal, pudesse também ser
comercializada nas enxercas da Praça (post. 10, 11, 12 e 76). Para isso, era necessário
não só ter parceiros no açougue, como cortar lá a carne (post. 11). Soma-se ainda a
necessidade de garantir que a qualidade da carne era a mesma no açougue e na Praça,
bem como permitir que, caso o consumidor o desejasse, pudesse pesar no açougue
a carne que comprara na enxerca e pagá-la ao preço que lhe fora pedido na enxerca
(post. 11).
Procura ainda assegurar-se a organização das enxercas, ordenando que se
estabelecessem em três ruas, uma para carne de cabras e cabritos, outra de ovelhas
e recentais e a terceira para a de carneiro (post. 10). De resto, a carne vendida nas
enxercas seria, tendencialmente, mais barata do que no açougue, uma vez que ali
O ABASTECIMENTO ALIMENTAR DA CIDADE EM FINAIS DO SÉCULO XIV
143
o controlo era mais apertado, tanto ao nível da qualidade, como da pesagem. Por
exemplo, relativamente à carne de carneiro, publica-se uma postura no sentido de
impedir a sua venda nas enxercas, caso o corte não fosse realizado no açougue, uma
vez que os carniceiros somente a cortavam nas enxercas, sem a pesar e cobrando
preços elevados, recusando-se, inclusivamente, a vendê-la no açougue (post. 76).
Existe, como é evidente, alguma preparação e mesmo transformação da carne.
Esta inicia-se com a desmancha do animal abatido, mas passa também pela limpeza
da carne. Nestes processos atuam, não só carniceiros e enxerqueiros, mas alguns
outros mais especializados, como o caso dos esfoladores das carnes, a quem cabia
assegurar a sua preparação e limpeza (post. 63).
As autoridades municipais manifestam também grandes preocupações com o
que podemos chamar, higiene e segurança alimentar, procurando garantir os direitos
do consumidor, a qualidade e a acessibilidade da carne (cf. post. 7, 8, 9, 12, 14, 63, 70,
71, 72, 73, 74, 76, 78 e 199). Nesse sentido, a atividade de carniceiros e enxerqueiros
torna-se a atividade profissional mais apertadamente regulamentada da cidade,
através de um considerável número de posturas, como alguns autores, como Arnaldo
Melo, puseram já em destaque para outros espaços urbanos do Reino38.
Entre diversas outras determinações, no campo da segurança alimentar,
proíbe-se a compra de bovinos maus ou doentes (post. 8), a comercialização de carne
“llixossa” (post. 63), a venda de diferentes tipos de carne misturadas (post. 10) e
de carne inchada (post. 14). Determina-se que a carne de ovinos e caprinos apenas
pudesse ser vendida caso a cabeça se mantivesse presa às carcaças, até que as partes
tivessem sido vendidas (post. 12). No mesmo sentido, deviam expor-se os couros
dos bois e das vacas abatidos, entre as 9h e cerca das 18h, e ao outro dia até às 9h, o
mesmo se aplicando nos talhos de mouros e judeus (post. 7).
No respeitante à acessibilidade do consumidor, prevê-se que os carniceiros se
mantivessem continuamente no açougue e que ali permanecessem, pelo menos dois,
durante a hora de almoço (post. 70), estando proibidos de esconder a carne (post.
72) e forçados a vendê-la a quem a pedisse (post. 199). Estabelece-se a quantidade
mínima de carne que os carniceiros tinham que disponibilizar – dois talhos de carne
de vaca e outros tantos de carneiro, aos sábados, entre as vésperas e o por do sol,
bem como desde domingo, de manhã, até quinta-feira, ao fim do dia (post. 9) –,
bem como a obrigatoriedade de ali vender carne de carneiro (post. 76). Em relação
aos pesos utilizados, não só se insiste na necessidade de pesar, direitamente, a carne
Cf. MELO, Arnaldo Rui Azevedo de Sousa – Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média. Vol.
1, p. 257. O mesmo autor chama também a atenção para a tónica que as autoridades camarárias colocam,
sistematicamente, na defesa do consumidor (p. 310), aspeto que igualmente acontecia em Évora. Atente-se
ainda nas informações coligidas e adiantadas no ponto “1. Carniceiros e mesteres dos couros” do Catálogo
de mesteres. In MELO, Arnaldo Rui Azevedo de Sousa – Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média...,
Vol. 2, pp. 13-54.
38
144
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
comercializada (post. 74), como se obriga o rendeiro da almotaçaria a colocar os
pesos na porta do açougue para que o consumidor “veer se a pesam como devem”
(post. 73). Em contrapartida, estipulam-se coimas e penas de prisão para quem
entrasse à força nos talhos ou neles tomasse carne violentamente (post. 78).
Mas a preparação e transformação da carne, tal como a sua posterior
comercialização, não passava unicamente pelos carniceiros e enxerqueiros. Alguns
elementos, já sublinhados por Arnaldo Melo, apontam também para a participação
de uma mão-de-obra feminina nestes processos39. Eram, por exemplo, as mulheres
que vendiam carne já cozida, portanto com um valor acrescentado, a quem era
proibido cozer diversos tipos de carne misturadas, bem como vendê-las misturadas,
sem dizer de que eram (post. 31).
De forma apartada seria ainda comercializada a carne de caça, vendida pelos
próprios caçadores (post. 29 e 69).
Muito embora a importância que os carniceiros assumiam no mercado
abastecedor da cidade, como tem comummente sido posto em relevo, na hierarquia
social, precisamente pelas atividades que realizavam, acabam por ocupar um lugar
de grande inferioridade, cabendo-lhes abrir os cortejos processionais, sendo os mais
afastados do sagrado40. Para além disso, não possuímos qualquer elemento que
permita apontar a existência de algum grau de organização socioprofissional entre
os profissionais da carne, nem sequer encontrá-los nas reuniões de vereação. Ainda
assim, podemos testemunhar a existência, obrigatória pelas posturas, de sociedades
profissionais entre os que comercializavam no açougue e nas enxercas (post. 11).
O peixe tanto podia ser pescado no termo do concelho, se pensarmos em
espécies de água doce, como vir de lugares mais distantes, se falarmos em peixes
de mar. Claro que tanto podia ser comercializado fresco como seco, principalmente
se se tratasse de peixe oriundo de lugares mais distantes. Contudo, nenhum desses
processos de preparação e/ou transformação se realizava na cidade, ou, pelo menos,
deixou marcas na sua legislação. Nesse sentido, as posturas pouco mais contêm que
referências aos responsáveis pela sua venda na cidade.
Elencam-se, neste âmbito, os almocreves que traziam peixe de fora parte e
que as posturas obrigam a levar ao açougue, bem como a declarar aos almotacés
que quantidade e que género transportam (post. 1). O mesmo acontecia com as
pescadeiras que eram também proibidas de esconder peixe (post. 64). Os peixeiros do
rio deviam ser responsáveis tanto pela pesca, como pela posterior venda na cidade
(post. 60). Todos os vendedores de peixe eram, de resto, obrigados a respeitar a
39
MELO, Arnaldo Rui Azevedo de Sousa – Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média..., Vol. 1,
pp. 269-270.
40
Cf. Regimento das Procissões da Cidade de Évora. In DOCUMENTOS Históricos da Cidade de Évora…,
p. [371].
O ABASTECIMENTO ALIMENTAR DA CIDADE EM FINAIS DO SÉCULO XIV
145
almotaçaria que lhes fosse posta (post. 3).
A referência a talhadeiras (post. 198) e a tripeiras (post. 33) remete para algum
grau de transformação, ou pelo menos de amanho do peixe, mas a venda propriamente
dita caberia às donas do pescado (post. 3), acompanhadas de pescadeiras (post.
33, 64 e 66) e vendedeiras de pescado (post. 4). A par destas, também as regateiras
(post. 2) vendiam peixe pela cidade, muito embora as autoridades camarárias
procurassem evitar essa intermediação (post. 198). De facto, o peixe fresco tinha
que ser obrigatoriamente levado para o açougue e colocado na divisão destinada à
sua comercialização, onde um dos procuradores do concelho devia garantir que os
homens-bons o podiam comprar “ssegundo a cada huum merreçe” (post. 66). Só
depois as pescadeiras o podiam vender a quem lho pedisse, proibindo-se, tal como
acontecia em relação aos talhos de carne, que ali se entrasse à força (post. 66).
Não obstante as poucas referências encontradas, as autoridades municipais
não deixam de se preocupar com a proteção dos recursos piscícolas, interditando a
utilização de verbasco (post. 124 e 137).
2.3 As frutas e os legumes.
São também pouquíssimos os elementos avançados pelas posturas acerca dos setores
da fruta e dos legumes. Não é de admirar, dado que estes produtos não só não têm
a importância crucial dos primeiros, como também não requerem qualquer tipo de
atividade transformadora para que possam ser comercializados. Limitar-nos-emos,
nesse sentido, a elencar o conjunto de profissionais que aqui registamos.
Referimo-nos, fundamentalmente, a uma mão-de-obra feminina incumbida da
venda, fosse em locais fixos, fosse pela cidade. São fruteiras ou vendedeiras de fruta,
a par das regateiras que assumem a primazia na venda da fruta (post. 15, 30, 55 e
202), somente se individualizando as verceiras, no que aos legumes diz respeito (post.
201)41, e cujos postos de venda, na Praça, as posturas procuram definir (post. 201 e
202). Ainda assim, as posturas proíbem que as regateiras comprem fruta para regatar,
antes das 10,00h (post. 30). E, no mesmo sentido, mas ao contrário do que era a regra
comum, em que a fruta proveniente das explorações dos vizinhos não necessitava de
almotaçaria para ser comercializada, caso fosse vendida a regateiras, precisava de ser
almotaçada (post. 16).
41
Mais do que apenas no setor da fruta e dos legumes, mas também na regatia em geral, já Maria
Helena da Cruz Coelho chamou a atenção para a importância da atividade feminina (COELHO, Maria
Helena da Cruz – “A mulher e o trabalho nas cidades medievais portuguesas.” In COELHO, Maria Helena
da Cruz – Espaços, Homens e Poderes: séculos XI-XVI – I: Notas do Viver Social. Lisboa: Livros Horizonte,
1990, pp. 40-43). Da mesma forma, a comunicação apresentada por Mariana Alves Pereira, no âmbito destas
IV Jornadas Internacionais, intitulada “quallquer […] rregateira que conprar quaaesquer mantjmentos em
quaisquer lugarees: o papel das regateiras no abastecimento alimentar urbano”, permitiu também evidenciar
essa importância e relevância da atividade feminina no setor da revenda.
146
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
2.4 O vinho e o azeite.
Tal como acontece no ponto anterior, também em relação ao vinho e ao azeite, não
encontramos grande número de referências no conjunto documental em causa,
muito embora, ao contrário do precedente, as atividades transformadoras aqui sejam
determinantes.
Se a proteção da cultura da vinha assume uma particular acuidade entre as
autoridades municipais, como facilmente se comprova pelo elevado número de
posturas lançadas nesse sentido42, a etapa seguinte do processo de transformação
não é referida, uma vez que se processava numa esfera doméstica.
Relativamente ao azeite, mesmo não existindo essa vertente doméstica na
transformação43, as posturas raramente se preocupam com ela. Ainda assim,
encontramos algumas posturas referentes a lagares que, não nos permitindo saber
se se tratam de lagares de azeite se de vinho, se referem à atividade dos lagareiros
e determinam o preço do aluguer do lagar, bem como a soldada do lagareiro (post.
181). Em vários outros momentos menciona-se a comercialização de vinho e azeite,
como nas posturas 26, 34, 35 e 36.
2.5 A água.
Devemos ainda deter a nossa atenção na água. Algumas infraestruturas ligadas ao
abastecimento de água na cidade encontram-se referidas nas posturas. É o caso do
poço da Boa Mulher e do poço Novo (post. 147) que, certamente localizados na
chamada vila velha, isto é, no interior da cerca velha, hoje não se conseguem localizar
com rigor. Destaca-se ainda uma referência ao célebre chafariz das Bravas (post. 138),
ainda hoje existente, que era um dos mais importantes da cidade e se encontrava no
extramuros da cerca nova, perto da ermida de S. Sebastião, na atual Avenida Túlio
Espanca, no início do caminho de Montemor-o-Novo. Está justamente representado
por Duarte d’Armas no frontispício do foral manuelino da cidade. A designação do
chafariz, tal como o revelaram alguns autores, como Afonso de Carvalho, deve-se a
algumas mulheres da cidade, comummente apelidadas de bravas (cf. post. 193)44. Na
42
Atente-se, como exemplo, nas disposições emanadas nas posturas 85, 86, 89, 90, 91, 94, 95, 98, 99,
101A, 101B, 103, 104B, 105A, 105C, 109, 110, 111, 113, 114, 115, 125, 217, 233, 238, 241, 242, 243, 244, 245, 248,
250, 252, 253 e 254.
43
Para uma síntese sobre a atividade lagareira eborense, veja-se o artigo de REBOLA, Maria da
Conceição Rodrigues – “A Travessa dos Lagareiros e o seu enquadramento na actividade lagareira eborense”. A
Cidade de Évora, 2.ª série, 7 (2000), pp. 289-323, especialmente, no que toca ao período medieval, pp. 295-299.
44
CARVALHO, Afonso de – Da Toponímia de Évora. Vol. 1: Dos meados do século XII a finais do
século XIV. Lisboa: Edições Colibri, 2007, p. 319. Acerca deste e de outros chafarizes e fontes da cidade veja-se
também GUERREIRO, Madalena da Palma – Chafarizes e Fontes Públicos da Cidade de Évora. Évora: Câmara
O ABASTECIMENTO ALIMENTAR DA CIDADE EM FINAIS DO SÉCULO XIV
147
verdade, mais do que simples pontos de abastecimento de água potável, os poços e
chafarizes eram lugares privilegiados para a sociabilidade, sobretudo feminina45.
A par destas referências, toma-se um conjunto de medidas tendentes à limpeza de
poços e chafarizes, procurando assegurar a salubridade da água ali disponibilizada
(post. 62 e 138)46.
Existem ainda algumas referências ao transporte. Assim, as posturas determinam
que os açacais, a quem cabia a responsabilidade de transportar não somente cargas
de água, mas igualmente cargas de telha, deviam dar cada carga de água proveniente
do poço novo ou do poço da Boa Mulher a 16 dinheiros, dentro da vila velha, e a
4 dinheiros na cerca nova (post. 147A), naturalmente por razões de proximidade
aos referidos poços. Não obstante, na postura 147B, datada de 21 de junho de 1382,
prevê-se que a dessem a 6 dinheiros, independentemente do lugar da cidade.
Conclusões.
Para terminar, como síntese, devemos salientar que o presente estudo nos permitiu
por em evidência os principais contributos do Livro das Posturas Antigas de Évora
para a caracterização da forma como as autoridades municipais daquela cidade
legislavam no âmbito do abastecimento e aprovisionamento alimentar da sua urbe.
De facto, a regulamentação e o controlo do abastecimento alimentar da
cidade, estão no âmago das preocupações das autoridades municipais, recaindo
os maiores cuidados sobre o pão e a carne, sendo bastante numerosas as posturas
relativas a carniceiros e, no campo da transformação, a atafoneiros, permitindo-nos,
consequentemente, uma caracterização, bastante detalhada, destas atividades, as
mais apertadamente regulamentadas, controladas e vigiadas da cidade.
Outra grande questão, levantada neste conjunto documental, passa pela
regulamentação da atividade comercial, uma das principais funções do espaço
urbano. A definição dos locais, horários e condições de venda, o afilamento de
pesos e medidas e o tabelamento de preços, salários e impostos ocupa, assim, uma
grande percentagem das posturas feitas aprovar na câmara de Évora, permitindonos conhecer, com bastante pormenor, a forma como se organizava o acesso aos
principais bens alimentares.
Municipal de Évora, 1999.
45
Cf. COELHO, Maria Helena da Cruz – “A rede de comunicações concelhias nos séculos XIV e XV”.
In COELHO, Maria Helena da Cruz (coord.) – As Comunicações na Idade Média. [s.l.]: Fundação Portuguesa
das Comunicações, 2002, p. 87.
46
Acresce ainda uma outra postura, incompleta, que, igualmente, se referia aos chafarizes do concelho
(post. 96). Na postura 241 encontra-se uma referência à realização de obras em determinado chafariz que não
conseguimos identificar.
148
PARTE II
Gerir Crises e Conflitos no
Abastecimento
Managing Crises and
Conflicts in Supply
Defender la ciudad contra el hambre:
las políticas anonarias de los gobiernos
urbanos en la Europa bajomedieval
Denis Menjot1
Resumen
Defender la ciudad consiste también en garantizar la seguridad de su
abastecimiento en productos alimenticios de buena calidad todo el año y a
precios asequibles. Como las crisis frumentarias pueden provocar motines que
ponen en peligro el orden cívico, no puede haber una ciudad libre y pacífica
sin una política anonaria. Esta exigencia, vinculada a la propia idea de bien
público, fue percibida de forma muy precoz por las élites dirigentes, ya que el
crecimiento urbano hacía imperiosa una política anonaria. El abastecimiento
de la población fue uno de los principales retos a los que se enfrentaron las
autoridades municipales en la baja Edad Media.
En las ciudades europeas, las autoridades adoptaron toda una panoplia
de medidas que tenían cuatro objetivos precisos: movilizar los recursos
locales en beneficio exclusivamente de los habitantes de la ciudad, completar
eventualmente estos recursos con importaciones, recurriendo a los mercados
regionales, interregionales o/y internacionales, organizar y regular los circuitos
de transformación y de commercialización, controlando el mercado, luchando
contra la especulación y el alza de los precios y hacer respetar estas políticas
creando oficios y administraciones anonarias. Este artículo quisiera exponer
a muy grandes rasgos las políticas anonarias de los gobiernos urbanos en la
Europa medieval.
Palabras clave
Ciudad; Abastecimiento; Hambre; Edad Media; Mercado; Políticas.
1
Universidad de Lyon/ UMR 5648 CIHAM.
152
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Defending and the city against hunger:
the supply policies of urban governments in medieval Europe
Abstract
Defending the city is also ensuring a secure supply of good quality foodstuffs
throughout the year at an affordable price. As frumentary crises crises can lead
to riots that could jeopardise civic order, there can be no free and peaceful
city without an annonian policy. This requirement, related to the idea of the
public good, was perceived very early by the ruling elites, as urban growth
made annonary policy imperative. Supplying the population was one of the
challenges faced by municipal authorities in the late Middle Ages.
In European cities, authorities adopted a series of measures with four main
objectives: to harness local resources for the exclusive benefit of the city's
inhabitants; to supplement, if necessary, these resources with imports by using
regional, interregional and/or international markets; to organise and regulate
the processing and marketing channels; to control the market and fight against
speculation and price rises and to ensure that these policies are enforced by
the creation of jobs and annonaries administrations. This article would like to
outline the supply policies of urban governments in medieval Europe.
Keywords
City; Supply; Hunger; Middle Ages; Mercado; Policies.
Introducción.
Los poderes urbanos exaltan con insistencia a finales de la Edad Media su voluntad de
gobernar para el bien común y su ideal del bien público en textos, discursos, rituales
e imágenes y en una forma de gobierno que quiere impartir una justicia equitativa,
defender la ciudad, garantizar la paz y la concordia, mantener los equipamientos
públicos, promover los servicios sociales que son las instituciones hospitalarias y
escolares, y también controlar la imagen que la ciudad da de sí misma2.
2
Respecto al bien común (bonus commune), ver los trece estudios reunidos en LECUPPREDESJARDINS, Elodie; VAN BRUAENE, Laure – De Bono Communi: The Discourse and Practice of the
Common Good in the European City (13th-16th c.) Turnhout: Brepols, 2010.
DEFENDER LA CIUDAD CONTR A EL HAMBR E [...]
153
Defender la ciudad consiste en que las autoridades públicas garanticen la
integridad física y política de la ciudad y de la comunidad urbana que se expresa en
primer lugar por la seguridad militar. Pero defender la ciudad es también garantizar
el abastecimiento de los ciudadanos en productos alimenticios de buena calidad todo
el año y a precios asequibles.
La defensa contra el hambre fue uno de los principales retos a los que se
enfrentaron las autoridades municipales en los últimos siglos de la Edad Media. Sin
embargo su importancia varía mucho de una ciudad a otra y de una época a otra,
según la densidad poblacional de la ciudad, ya sea que padezca de hambre, carestía
o simples dificultades de abastecimiento, y a la que las autoridades no se enfrentan
de la misma manera según su grado de autonomía y las políticas alimenticias de los
“estados” para aquellas que están integradas en uno de estos3. Sin embargo como las
crisis frumentarias y las carestías4 podrían ocasionar disturbios que podrían poner
en peligro el orden cívico, no podría haber una ciudad libre y pacífica sin una política
anonaria. Esta exigencia, vinculada a la propia idea del bien público, fue percibida de
forma precoz por la élites dirigentes, ya que el crecimiento urbano hacía imperiosa
una política voluntarista en materia de alimentación. Esta defensa de la ciudad contra
el hambre y la carestía es, por lo tanto una cuestión política.
El abastecimiento de la ciudad es un tema que, desde el libro pionero de Louis
Stouff en 19725, los historiadores han estudiado mucho, sea en un capítulo de tesis o de
una monografía, sea en trabajos especializados, colectivos6 o individuales, que tratan
con más o menos detalles de los diferentes aspectos del suministro de uno o más
3
BENITO I MONCLUS, Père – “El rey frente a la carestía. Políticas frumentarais de estado en la Europa
medieval”. In PALERMO, Luciano; FARA, Andrea; BENITO, Pere (eds.) – Políticas contra el hambre y la
carestía en la Europa medieval. Lleida: Milenio, 2018, p. 41.
4
Recurrentes y no sólo en las grandes ciudades, ver BENITO I MONCLUS, Pere (ed.) – Crisis
alimentarias en la Edad Media. Modelos, explicaciones y representaciones. Lleida: Milenio, 2013; OLIVA
HERRER, Hipólito Rafael; BENITO I MONCLUS, Pere (eds.) – Crisis de subsistencia y crisis agrarias en la
Edad Media. Sevilla: Servicio de Publicaciones de la Universidad, 2007.
5
STOUFF, Louis – Alimentation et ravitaillement en Provence au bas Moyen Âge. Paris, 1972. PULT
QUAGLIA, A. M. – “Sistema annonario e commercio dei prodotti agricoli. Riflessoni su alcuni temi di ricerca”.
Societa e Storia 15 (1982), pp. 181-198.
6
L’approvisionnement des villes de l’Europe occidentale au Moyen Âge et aux temps modernes. Ves
Journées internationales d’histoire, 16-18 septembre 1983. Auch: Comité départemental du tourisme du Gers,
Centre culturel de l’Abbaye de Flaran, 1985; MENJOT, Denis (ed.) – Manger et boire au Moyen Âge, Actes du
colloque du Centre d’études médiévales de Nice. 2 vols. Paris: Les Belles Lettres, 1984; Alimentació i societat a la
Catalunya Medieval, Barcelona: CSIC, 1988; ARIZAGA BOLUMBURU, Beatriz; SOLORZANO TELECHEA,
Jésus (ed.) – Alimentar la ciudad en la Edad Media, Nájera. Encuentros Internacionales del Medievo, 2008.
Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 2009; Alimentació i societat a la Catalunya Medieval, Barcelona:
CSIC, 1988; CAVACIOCCHI, Simonetta (ed.) – Alimentazione e nutrizione, secc XIII-XVIII. Atti della
ventottesima Settimana di studi, 22-27 aprile 1996. Firenze: Istituto Internazionale di Storia Economica F.
Datini, 1997.
154
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
productos alimenticios (cereales7, carne8, pescado9 y vino10) en una o varias ciudades:
zonas, circuitos y organización del abastecimiento, agentes del abastecimiento,
infraestructuras económicas (mercados, graneros, molinos, almudies), profesionales
de la alimentación y políticas económicas urbanas. Quisiera hacer una mención
especial de tres obras recientemente publicadas que renuevan los enfoques. En la
primera, José Luis Abad Escribano analiza el mercado de alimentos en las ciudades
bajomedievales del antiguo reino de Toledo. De esta manera se abarcan, entre otros
aspectos, el análisis pormenorizado de la actuación de los obligados al abasto, los
procesos de formación de precios, la política de espacio e infraestructuras de los
concejos, la gestión de la crisis por parte de los regimientos y la política de vigilancia
del mercado11. En la segunda, Fabien Faugeron intenta entender de manera global
la oferta de alimentos en una de las más importantes ciudades de la época, Venezia,
teniendo en cuenta todos los sectores, desde el productor hasta el consumidor;
la primera parte está dedicada a la oferta y a la política; la segunda considera la
distribución y el consumo en la ciudad12. La tercera obra “está dedicado al estudio de
las políticas económicas que a lo largo de la edad media fueron activadas para apoyar
la alimentación de la población en las coyunturas negativas del ciclo económico, en
especial durante las fases de carestía”13.
Gracias a esta muy extensa bibliografía, dispersa en múltiples publicaciones,
podemos destacar las principales características de las políticas concejiles para
defenderse del hambre y de la carestías que encontramos en dos tipos principales
de fuentes: legislativas y normativas (estatutos concejiles, estatutos de los oficios,
libros de ordenanazas, reglamentos) y contables (libros de cuentas municipales
y documentos contables). Estas fuentes son mucho más ricas y tempranas en las
ciudades italianas del centro y del norte.
7
Un ejemplo entre muchos otros, RIERA I MELIS, Antoni – “‘Tener siempre bien aprovisionada
la población’. Los cereales y el pan en las ciudades catalanas durante la baja Edad Media”. In ARIZAGA
BOLUMBURU, Beatriz; SOLÓRZANO TELECHEA, Jésus (ed.) – Alimentar la ciudad en la Edad Media…,
pp. 23-57.
8
Dos ejemplos entre muchos otros, STOUFF, Louis – “Ravitaillement et consommation à Carpentras
e
au XV siècle”. Annales ESC (1969), pp. 1431-1448; BONACHÍA HERNANDO, Juan Antonio – “Abastecimento
urbano, mercado local y control municipal. La provisión y comercialización de la carne en Burgos (siglo XV)”.
Espacio, Tiempo y forma. Serie III. Historia Medieval V (1992), pp. 85-162.
9
Un ejemplo entre otros, ÁLVAREZ FERNÁNDEZ, María – “Abastecimiento y consumo del pescado
en Oviedo a finales de la Edad Media”. In La pesca en la Edad Media 1, Madrid: Monografías de la Sociedad
Española de Estudios Medievales, 2009, pp. 71-86.
10
Un ejemplo entre otros, Vignes et vins au Moyen Âge. Pratiques sociales, économie et culture matérielle,
L’Atelier du Centre de recherches historiques [En ligne], 12 | 2014, mis en ligne le 25 septembre 2014. URL:
http://journals.openedition.org/acrh/5913.
11
ABAD ESCRIBANO, José Luis – Abastecer a la ciudad medieval: política concejil en el reino de Toledo,
Alcalá de Henares: Universidad de Alcalá, 2017.
12
FAUGERON, Fabien – Nourrir la ville. Ravitaillement, marchés et métiers de l’alimentation à Venise
dans les derniers siècles du Moyen Âge. Rome: Ecole Française de Rome, 2014.
13
PALERMO, Luciano; FARA, Andrea; BENITO, Pere (eds.) – Políticas contra el hambre y la carestía en
la Europa medieval. Lleida: Milenio, 2018.
DEFENDER LA CIUDAD CONTR A EL HAMBR E [...]
155
Para defender la ciudad contra el hambre, las autoridades urbanas adoptaron
toda una panoplia de medidas que tenían cuatro objetivos precisos: movilizar los
recursos locales en beneficio exclusivamente de los habitantes de la ciudad, completar
eventualmente estos recursos con importaciones, organizar y regular los circuitos
de transformación y de commercialización, controlando el mercado y garantizar
la seguridad sanitaria. Estas disposiciones tenían como fin suprimir los factores
de penuria que suponian el acaparamiento, la especulación y el despilfarro. Tienen
une serie de consecuencias sobre las relaciones entre la ciudad y el campo, entre las
ciudades vecinas, entre los grupos sociales en el seno de las ciudades.
Con motivo de esta Escuela doctoral de otoño quisiera exponer a muy grandes
rasgos las principales cuestiones que se plantean y deben abordarse en relación con
las políticas anonarias de los gobiernos urbanos en la Europa medieval, en primer
lugar, para garantizar el abastecimiento y la seguridad alimentaria, en segundo lugar,
para controlar el mercado y la commercialización de los productos, en tercer lugar,
para hacer respetar estas políticas y financiarlas. En conclusión, intentaré contestar
a la pregunta de la eficacia de las políticas municipales contra el hambre. Por falta
de tiempo, me limitaré a los tres productos básicos de la dieta medieval: cereales,
carne y pescado, ignorando – pero las políticas no son diferentes – otros alimentos
esenciales como la sal, el vino, los productos lácteos consumidos como la leche, la
mantequilla y el queso y tampoco las frutas y verduras, estás cultivadas por muchos
habitantes en sus huertos y jardines.
1. Las políticas de abastecimiento y de seguridad alimentaria.
El suministro de productos de primera necesidad era más apremiante en las capitales
de reinos, Paris y Londres, en las grandes ciudades, de los Paises bajos como Gante,
Ypres, Brujas, Courtrai14 y en las de Italia del centro y del norte que en otros lugares
en Europa, porque de las 79 ciudades occidentales con una población de más de
10.000 habitantes contados en el siglo XIV, 23 se encuentraban en la península
italiana, de las cuales 20 se situaban al norte de Roma y 3 de ellas tenían más de
100.000 habitantes, Milán, Florencia, Venecia15.
El protagonismo en el abstecimiento de las ciudades correspondía a la iniciativa
privada, pero el equilibrio alimenticio era precario en muchas ciudades, a menudo
a la merced de un incidente climático, de una invasión de parásitos y de disturbios
militares o civiles. La acción combinada del crecimiento de las poblaciones urbanas
y del inicio de las dificultades económicas, explica por qué en las ciudades del norte y
NICHOLAS, David – Medieval Flanders. London: Longman, 1992.
GINATEMPO, Maria; SANDRI, Lucia – L’Italia delle città. Il popolamento urbano tra Medioevo e
Rinascimento (secoli XIII-XV). Florencia: Le Lettere, 1990.
14
15
156
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
del centro de Italia “a partir de mediados del siglo XIII, el abastecimiento ya no podía
dejarse sólo a la iniciativa privada”16. Estas ciudades fueron pioneras en la adopción
de medidas de política frumentaria17, medidas que las otras ciudades de Europa
Occidental comenzaron a implementar progresivamente desde finales del siglo XIII.
1.1 La movilización de los recursos locales.
Para satisfacer las necesidades de los vecinos en productos alimenticios de primera
necesidad cuya demanda se mantenía a pesar de que la elasticidad del consumo
varíase en cantidad y calidad, las ciudades disponían de los recursos de sus
“hinterlands” (zonas periurbanas, contadi, alfoces), cuya importancia variaba mucho
según su superficie y la riqueza de sus tierras18.
La fertilidad de algunos de estos territorios periurbanos, como por ejemplo, las
huertas de Valencia y Murcia, la Campiña y la Ribera de Sevilla, las “hortillonages”
d’Amiens, era suficiente para satisfacer las necesidades de los ciudadanos y aún
más19, lo que explica que los dirigentes de ciertas ciudades se preocupaban por el
abastecimiento sólo excepcionalmente para responder a una situación excepcional20.
Pero numerosos factores contrariaban la producción y el abastecimiento en casi
todas las ciudades: los bajos rendimientos, los caprichos del clima, la guerra y la
inseguridad, la incapacidad de la producción para seguir el ritmo del crecimiento de
la población en los siglos XII y XIII y la llegada de campesinos refugiados mientras
que la agricultura estaba escasa de brazos debido a la despoblación en los siglos XIV
y XV, sin olvidar las malas condiciones de transporte y almacenamiento. Es por eso
que las metrópolis italianas, trataron de ampliar, a veces por la fuerza, sus zonas de
suministro.
La primera solución para resolver el problema de la subsistencia consistió en
que las autoridades movilizaron todos los recursos locales, evitando en primer lugar
que una parte de las cosechas se perdiera por llegar tarde a recogerlas. En Murcia,
16
PALERMO, Luciano – “Politiche contro la carestia e ciclo economico in Europa tra XIII e XIV
secolo”. In PALERMO, Luciano; FARA, Andrea; BENITO, Pere (eds.) – Políticas contra el hambre …, p. 27.
17
DAMERON, Georges – “Feeding the Medieval Italian City-State: Grain, War and Political Legitimacy
in Tuscany, c.1150-c. 1350”. Speculum 92/4 (2017), pp. 976-1019; FAUGERON, Fabien – Nourrir la ville…, pp.
19-89.
18
MENJOT, Denis – “La ville et ses territoires dans l’Occident médiéval: un système spatial. Etat de la
question”. In La ciudad medieval y su influencia territorial, Encuentros internacionales del Medievo, Nájera,
2006. Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 2007, pp. 451-492.
19
FOSSIER, Robert – La terre et les hommes en Picardie jusqu’à la fin du XIIIe siècle. Paris-Louvain:
Nauwelaerts, 1968, calculó que la ciudad de Amiens, en el siglo XIII, con sus 20.000 habitantes, consumía
8.000 toneladas de cereales al año, lo que correspondía a una zona de abastecimiento con un radio de 20 km
alrededor de la ciudad.
20
Como observan, por ejemplo, para Millau, GARNIER, Florent – Un consulat et ses finances: Millau
(1187-1461). Paris: CHEFF, 2006, p. 601 y para Tarascon, HÉBERT, Michel – Tarascon au XIVe siècle. Histoire
d’une communauté urbaine provençale. Aix-en-Provence: Édisud, 1979, p. 161.
DEFENDER LA CIUDAD CONTR A EL HAMBR E [...]
157
por ejemplo, en el momento de la siega, los dirigentes llegaron a obligar todos los
jornaleros a trabajar únicamente en recolección de las cosechas bajo la amenaza de
confiscar sus herramientas y multarlos. Para intentar encontrar un numero suficiente
de pescadores el concejo murciano llevaba a cabo una política activa de incitación
y ayudas; les concedió subvenciones anuales sustanciales y privilegiaba a algunos de
ellos con indemnizaciones para que renoven su material, barcas y redes incautadas
o destrozadas21.
La defensa y el desarrollo de su zona de avituallammiento forma parte
asimismo de las prerogativas urbanas. Los robos de cosechas estaban castigados
con severas penas22. Para evitar una posible penuría y una escasez de determinados
productos, las autoridades tomaron una serie de medidas y adoptaron una política
de desarrollo en el campo de algunas producciones agrícolas de primera necesidad,
cereales y vino en prioridad, y reservaron pastos a los rebaños de los ciudadanos.
Las ciudades italianas tenían un hinterland (contado) cuya producción organizaban,
guíaban y estimulaban23. Por ejemplo, Verona llevó a cabo un importante trabajo
sistemático para secar los pantanos del contado. Los dirigentes de Florencia y otras
ciudades toscanas obligaron a los campesions a mejorar las rotaciones y a regular
la trashumancia24. Fabien Faugeron ha podido poner de manifiesto que Venecia,
aplicó una verdadera política de producción: las autoridades impusieron los cultivos,
incluso suministrando las semillas y tomaron une serie de medidas para preservar
los recursos y los equilibros naturales, por ejemplo prohibiendo la pesca durante
los períodos de reproducción de los peces. Algunos concejos castellanos trataron de
garantizar que el cereal no se viera desplazado por cultivos más rentables. Es el caso,
por ejemplo, de la villa de Cuéllar, cerca del importante centro de producción textil
de Segovia, que estableció limites a la producción de plantas tintóreas. En Toledo, si
a comienzos del siglo XV, el concejo obligó a los cultivadores de vid a plantar una
cantidad equivalente de cereal25, las políticas dirigidas a la orientación productiva del
espacio agrario estaban sujetas a tensiones por la proliferación de dehesas herbáceas
para el ganado que incidía en el aprovisionamiento de la ciudad, al esplazar los
21
MENJOT, Denis – Murcia, ciudad fronteriza en la Castilla bajomedieval. Murcia: Real Academia
Alfonso X el Sabio, 2008, pp. 261-262.
22
Por ejemplo, el 25 de junio y el 27 de julio de 1334, los jurados de Tortosa sancionaron con pena de
muerte los hurtos nocturnos de mies en los campos y las eras, CURTO I HOMEDES, Albert – La intervenció
municipal en l’abastement de blat d’una ciutat catalana, Tortosa, segle XIV. Barcelona: Fundació Salvador
Vives i Casajuana, 1988, p. 211.
23
PINTO, Giuliano – “‘Ut in civitate copia victualium habeatur’. Le città, i territori, le produzione
agricole (Italia, secoli XIII-XV)”. In PALERMO, Luciano; FARA, Andrea; BENITO, Pere (eds.) – Políticas
contra el hambre…, pp. 193-207.
24
LA RONCIERE, Charles-Marie de la – “Alimentation et ravitaillement à Florence au XIVe siècle”.
Archeologia Medievale 8 (1981), pp. 183-192.
25
IZQUIERDO BENITO, Ricardo – Abastecimiento y alimentación en Toledo en el siglo XV. Toledo:
Universidad de Castilla-La Mancha, 2002, p. 35.
158
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
cultivos de cereales, pero que eran extremadamente rentables para sus proprietarios,
en mayor parte miembros de la élite locale, quienes los arrendaban como pastos
invernales para los ganados trashumantes procedantes del norte26.
Así pues, se ha ido creando gradualmente un paisaje agrícola renovado alrededor
de las ciudades y adaptado a sus necesidades. Para tomar sólo un ejemplo, este es el
caso del territorio de la ciudad catalana de Cervera, con el desarrollo del cultivo de la
vid, de los cereales, del azafrán como producto comercial y el de la ganadería ovina
para abastecer de lana a este gran centro de la industria textil27.
Las autoridades municipales adoptaron una pólitica protectionista, garantizando
a los productores un monopolio de venta, prohibiendo las exportaciones mientras
que la ciudad no estuviera lo suficientemente avituallada y reservándose la concesión
de licencias de exportación. Por ejemplo, los dirigentes de Marsella, cuyo territorio
plantado de viñas sólo producía una cantidad ínfima de cereales, en los dos últimos
decenios del siglo XIV, prohibieron a cualquier persona de Marsella o de cualquier
otro lugar, exportar trigo bajo pena de confiscación del barco, de las bestias de carga
y de la mercancía y de una multa considerable; alentaron la denuncia prometiendo
al denunciante un tercio o la mitad de la multa28. En el siglo XIV, los ediles de
Barcelona instauraron prohibiciones de exportación de grano (vetita bladi) hasta
las próximas cosechas y las otras localidades catalanas se apresuraban a adopter
una medida similar29. Siena y otras ciudades toscanas, en la primera mitad del siglo
XIV practicaban lo que W. Bowsky llama la “política del divieto”30, que consistía
en controlar las exportaciones – no sólo de productos de primera necesidad – y
permitirlas sólo con una licencia. Las autoridades reforzaron la vigilancia, instalando
guardias en las puertas y poternas y en distintos puntos del recorrido que hacían los
transportistas.
Las ciudades de Flandes obtuvieron de sus príncipes la prohibición de exportar
cereales, pero las clases dominantes tendían a favorecer la libre exportación porque
vivían de las rentas de la tierra y se beneficiaban de los altos precios y de la libertad del
26
MOLENAT, Jean-Pierre – Campagnes et monts de Tolède du XIIe au XVe siècle. La terre et la ville.
Madrid: Casa de Velázquez, 1997, p. 498; Toledo no era un caso especial; esta tensión entre ganaderos y
productores de cereales se podía encontrar en muchas otras ciudades de los reinos de Castilla o de Valencia,
RUBIO VELA, Agustín – “Valencia y el control de la producción cerealista del reino en la baja Edad Media.
Origenes y planteamiento de un conflicto”. Demografía y sociedad en la España bajomedieval. Sesiones de
trabajo. Zaragoza: Universidad de Zaragoza, 2002, pp. 33-57.
27
VERDÉS PIJUAN, Père – “Paisatge agrari i abastament a Cervera (1370-1380)”. Miscel-lània
Cerverina 9 (1994), pp. 29-67.
28
DROGUET, Alain – “Une ville au miroir de ses comptes: les dépenses de Marseille à la fin du XIVe
siècle”, Provence Historique. fascicule 120 (1980), pp. 171-210.
29
RIERA I MELIS, Antoni – “Crisis cerealisticas, políticas públicas de aprovisionamiento, fiscalidad y
seguridad alimentaria en las ciudades catalanas durante la Baja Edad Media”. In PALERMO, Luciano; FARA,
Andrea; BENITO, Pere (eds.) – Políticas contra el hambre…, 2018, pp. 259-261.
30
BOWSKI, William, M – Un comune italiano nel Medioevo, Siena sotto il regime dei Nove (1287-1355).
Trad. Stephen EPSTEIN. Bologna: Il Molino, 1986, pp. 284-285.
DEFENDER LA CIUDAD CONTR A EL HAMBR E [...]
159
comercio31. En Castilla, la monarquía estableció una política similar de prohibición de
sacar del reino las “cosas vedadas”,32 salvo mediante licencias que los reyes ortorgaron
de manera profusa y que muchas veces las Cortes denunciaron, pero sin éxito porque
la concesión de estas licencias proporcionaba a la monarquía una fuente de ingresos
y también un instrumento importante para retribuir fidelidades políticas. Los
monarcas nombraron agentes especiales, los alcaldes de las sacas, para vigilar que
las “cosas vedadas” no se exportaran, buscar a los infractores e infligirles las multas
correspondientes. Sin embargo, el grano podía circular libremente en el interior de
la Corona de Castilla lo que ocasionó enfrentamientos con la comunidades rurales
y entre las ciudades y que las Cortes también denunciaron en varias ocasiones33.
Sólo durante períodos excepcionales y breves en los que los alimentos básicos eran
abundantes, las autoridades municipales castellanas prohibieron las importaciones y
pidieron al rey que permitiera a los productores que exportaran su producción. En
Portugal, la política frumentaria estuvo activa desde principios del siglo XIV, pero
los gobernantes de Lisboa, Oporto, Santarém tuvieron que apelar varias veces a la
autoridad del rey para conseguir la prohibición de exportar la producción local y
el permiso de requisarla en períodos críticos34. En Inglaterra, la carta mercatoria,
publicada en 1303, otorgaba, entre otros privilegios, la libertad de exportar el grano
contra el pago de una tasa al rey35.
1.2 La apelación a las importaciones.
Aunque los territorios urbanos esten estrictamente controlados, el crecimiento urbano
hacía que la producción local a veces fuera insuficiente para alimentar la población.
Cuantas más pobladas estaban las ciudades más rápido agotaban las cosechas del
31
VAN UYTVEN, Raymond – “L’approvisionnement des villes des anciens Pays-Bas au Moyen Âge”. In
L’approvisionnement des villes…, p. 83; VAN UYTVEN, Raymond – Production and Consumption in the Low
Countries. Aldershot: Ashgate 2001.
32
Las líneas principales se esbozaron en las Cortes de Jérez de 1268 y quedaron definido definitivamente
en el Ordenamiento de sacas promulgado en las Cortes de Guadalajara de 1390 que estableció la prohibición
legal de exportación de pan, trigo, cebada, centeno, carne, ganado entre otros productos (oro, plata, moneda,
caballos, legumbres), LADERO QUESADA, Miguel-Ángel – Fiscalidad y poder real en Castilla (1252-1369).
Madrid: Editorial Complutense, 1993, pp. 157-164; MENJOT, Denis – “Economie et fiscalité: les douanes
du royaume de Murcie au XIVe siècle”. In Les Espagnes médiévales. Aspects économiques et sociaux. Nice:
Mélanges Jean Gautier Dalché, 1983, pp. 33-48.
33
Sobre las denuncias en Cortes, ver OLIVA HERRER, Hipólito Rafael – “La política de la carestía en
Castilla en el siglo XV”. In PALERMO, Luciano; FARA, Andrea; BENITO, Pere (eds.) – Políticas contra el
hambre…, pp. 135-141.
34
GONÇALVES, Iria – “Defesa do consumidor na cidade medieval: os produtos alimentares (Lisboa,
séculos XIV-XV)”. Arquipélago, História, I/1 (1995), pp. 35-43; estas medidas a menudo no fueron suficientes
para evitar el aumento de los precios de los alimentos.
35
PALERMO, Luciano – ““Politiche contro la carestia…”, p. 20.
160
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
contado36. Las malas cosechas agravaban la situación así como el decrecimiento de
las zonas cultivadas después de la Peste Negra, lo que obligaba las grandes ciudades a
controlar las áreas de aprovisionamento y las vías de circulación para traer las compras
de excedentes de trigo de regiones cercanas y menos urbanizadas37. Se organizaron
flujos comerciales regionales más o menos permanentes que impulsaban la demanda
constante de las metrópolis y la demanda más irregular de las ciudades secundarias.
Por ejemplo, en el siglo XIV, los florentinos compraban la mayor parte de su trigo
(58%) en las regiones cercanas de la Toscana, Marsella, en Provenza y Languedoc.
Las grandes aglomeraciones urbanas, como Florencia, Venezia, Paris, Londres
o Gante, sino también muchas otras villas durante los períodos de escasez, tenian
que recurrir a los mercados interregionales o/y internacionales. Las ciudades de
Italia central y septentrional dependían del mercado mediterráneo y no sólo por el
trigo, ya que también importaban ganado y pescado, principalmente atún. La oferta
de trigo venía del sur de Italia y de Sicilia, sobre las que las grandes ciudades del norte
ejercían una dominación económica de tipo colonial. El tráfico de trigo siciliano
era controlado por los comerciantes toscanos que desde 1420 sufrían una fuerte
competencia de los catalanes38.
Los gobiernos urbanos de las grandes ciudades procuraban regular los grandes
circuitos de intercambio del comercio alimentario. En Florencia, en 1411, los agentes
del abastecimiento intercambiaron un centenar de cartas con cuarenta y ocho
ciudades susceptibles de proporcionarles trigo, desde Londres hasta Alejandría39.
En 1303-1304, al inicio de una carestía, los dirigentes de Barcelona desplegaron
también una gran actividad diplomática antes los grandes productores de cereales
de Cataluña y el sultán de Marruecos para facilitar a los mercaderes barceloneses las
compras de grano40. Murcia se abastecía en Andalucía (Córdoba y Sevilla). Venecia,
como es bien sabido, se transformó en un Estado mercader a partir del siglo XIV y
36
Cinco meses bastaban en Florencia antes de la Peste Negra, LA RONCIERE, Charles-Marie de la
– “Alimentation et ravitaillement à Florence…”, p. 37; PINTO, Giuliano – “Approvigionamento e mercato
dei prodotti alimentari nella Firenze del Trecento”. In ARIZAGA BOLUMBURU, Beatriz; SOLORZANO
TELECHEA, Jésus (ed.) – Alimentar la ciudad en la Edad Media. Nájera, Encuentros Internacionales del
Medievo, 2008. Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 2009, p. 235 estima que los florentinos necesitaban
unas 20 000 toneladas de cereales por año.
37
Cuando la necesidad se hizo urgente, Pisa y Florencia en el siglo XIV enviaban emisarios y agentes
primero al mercado regional, MAGNI, Stefano Giuseppe – “Agenti ed emissari nelle politiche per agli
approvvigionamenti cerealicoli delle città comunali nel Trecento. I casi di Firenze e Pisa”. In Políticas contra
el hambre…, pp. 209-218.
38
BRESC, Henri – Un monde méditerranéen: économie et société en Sicile 1300-1450. Rome: Ecole
Française de Rome, Palermo, 1986.
39
LA RONCIERE, Charles-Marie de la – “L’approvisionnement des villes italiennes au Moyen Âge…”,
p. 46.
40
SERRA I PUIG, Eva – “Els cerals a la Barcelona del sigle XIV”. In Alimentació i societat a la Catalunya
Medieval. Barcelona: CSIC, 1988, p.77; RIERA I MELIS, Antoni – “Crisis cerealisticas, políticas públicas de
aprovisionamiento, fiscalidad y seguridad alimentaria en las ciudades catalanas durante la Baja Edad Media”.
In PALERMO, Luciano; FARA, Andrea; BENITO, Pere (eds.) – Políticas contra el hambre..., p. 255.
DEFENDER LA CIUDAD CONTR A EL HAMBR E [...]
161
utilizó casi todos los mercados del mundo conocido para su alimentación: las tierras
firmas, las dos riberas del mar Adriático, el Mediterraneo oriental – en primer lugar
su imperio colonial de la Mar negra – y el Mediterraneo occidental, zona secundaria
y tardía, que se desarrolló en el XV cuando Venezia perdió una parte de su imperio
colonial41. Sevilla podía seguir exportando parte de su grano a Cataluña en la primer
mitad del siglo XIV, pero el tráfico estaba muy controlado por los reglamentos de la
monarquía42. Cataluña y Mallorca importaban trigo de Cerdeña y de Sicilia desde la
conquista de la isla en 1282. En Marsella, en las dos últimas décadas del siglo XIV, las
autoridades concluían contratos con capitanes de barco que se comprometían a ir a
cargar el trigo en uno o varios puertos que les sean designados. A menudo, la ciudad
negociaba directamente con comerciantes extranjeros que hacían grandes entregas
de grano a la ciudad43.
Estos largos circuitos eran también utilizados para el ganado en esta Europa
que Ramón Banegas no duda en llamar “carnívora”44. Es el caso, por ejemplo del
comercio de bueyes húngaros, que fueron llevados a Nuremberg, y el de bueyes
polacos que los “cowboys” medievales conducían hasta Colonia. En el siglo XV,
Frankfurt se abasteció de cerdos de la Baja Sajonia y Moravia vía Nurembergo. El
transporte de ganado a larga distancia obligó a las ciudades a crear pastos en sus
alrededores para que los animales engordaran45. Si los ríos y los lagos del entorno de
cada ciudad proporcionaban la mayoría del pescado para las ciudades no costeras,
el pescado de mar se consumía, seco o ahumado, en ciudades muy alejadas de las
costas. El mejor ejemplo, bien conocido, es el de los arenques embarrilados de
Escania que alimentaban un tráfico de larga distancia que en todos los casos obligaba
a los municipios a aplicar uan ambiciosa política de acondicionamiento. El pescado
galiciano se consumía en lugares tan alejados de la costa como Burgos, Cuenca,
Valladolid e incluso Andalucía46.
Para facilitar las importaciones, las autoridades urbanas tomaron medidas
coyunturales de incentivación otorgando a los mercaderes extranjeros que
importaban cereales, carne o pescado, moratorias para deudas, permisos de vender
libremente los cereales en la ciudad, invertir el producto en mercancías y exportarlas
sin restricciones, préstamos de sumas proporcionales a la cantidad de grano que
FAUGERON, Fabien – Nourrir la ville..., pp. 293-432.
GARCIA FERNANDEZ Manuel – El reino de Sevilla en tiempos de Alfonso XI (1312-1350), Sevilla:
Diputacion de Sevilla, 1989.
43
DROGUET, Alain – “Une ville au miroir de ses comptes…”, pp. 186-188.
44
BANEGAS LÓPEZ, Ramón – Europa carnívora. Comer carne en el mundo rural bajomedieval. Gijon:
Trea, 2012.
45
IRSIGLER, Franz – “L’approvisionnement des villes de l’Allemagne occidentales jusqu’au XVIe
siècle”. In L’approvisionnement des villes…, pp. 125-127.
46
GUERRERO NAVARRETE, Yolanda – “Consumo y comercialización de pescado en las ciudades
castellanas de la baja Edad Media”. In La pesca en la Edad Media…, pp. 235-262.
41
42
162
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
prometieron traer, precios de venta garantizado, exención del pago de tasas y peajes.
Es el caso, por ejemplo, de Murcia cuando en 1375 el concejo eximió de molienda –
tasa municipal por moler los cereales – a los mercaderes que importaban cereales. El
municipio de Arles abolió la “gabela” de los cereales47.
Algunos concejos decidieron otorgar una prima variable según la cantidad, el
tipo de cereales y el origen, a todos aquellos que trajeran trigo al mercado, lo que
podía crear una competencia entre ciudades vecinas. Es el caso, por ejemplo, en Arles
y en Marsella a finales del siglo XIV para los importadores de cereales por mar que
recibián un avantagium, a Barcelona o a Lovaina para la importación de pescado en
el siglo XV. Bruselas compró al Duque en 1460 el derecho de “louche” que se cobraba
en especie sobre las transacciones48. En 1279-1280, los dirigentes de la ciudad de
Metz decidieron conceder salvoconductos a todos los que importaban a la ciudad
pescado salado o fresco y otros productos alimenticios, incluidos los cereales49.
El crecimiento de la población, las dificultades de abastecimiento y la
carestía hicieron que, a finales del siglo XIII y principios del XIV, el problema del
abastecimiento alcanzara tal grado de gravedad que los municipios italianos, que
hasta entonces se habían contentado con comprar en épocas de hambruna, se vieron
obligados a organizar un verdadero sistema de compras oficiales. Esta política está
dirigida principalmente al trigo y a otros cereales menores como la cebada, pero
también a la carne. Todas las ciudades se ocuparon de esto más o menos febrilmente
en tiempos de hambruna. Algunas ciudades se encargaron del suministro y de la
distribución del cereal, así, Brujas e Ypres lo hicieron 16 y 13 veces respectivamente
durante el siglo XV50.
Para facilitar el transporte de mercancías, las ciudades trataron de mejorar las
carreteras y las vías fluviales para permitir que muchas aldeas, a través de los mercados locales, participaran regularmente en el suministro del centro urbano51. Así,
por ejemplo, ya en 1251, Ypres hizo excavar un canal hacia el Yser y Bruselas canalizó
el Senne hasta Vilvoorde en la década de 143452. El Arno fue arreglado para la navegación con la creación de puertos y el Po con la excavación de canales. En la Toscana,
para que la carretera que bordea el Arno sea accesible en todas las estaciones y en
STOUFF, Louis – Ravitaillement et alimentation en Provence…, p. 74.
VAN UYTVEN, Raymond – “L’approvisionnement des villes des anciens Pays-Bas…”, p. 88.
49
SCHNEIDER Jean – La ville de Metz aux XIIIe et XIVe siècles. Nancy: imprimerie Thomas, 1950, p.
47
48
213.
VAN UYTVEN, Raymond – “L’approvisionnement des villes des anciens Pays-Bas…”, p. 89.
Europa también había experimentado una revolución en el transporte terrestre, DERVILLE, Alain
– “La première révolution des transports continentaux (c. 1000-c. 1300)”. Annales de Bretagne et des pays de
l’Ouest 85/2 (1978), pp. 181-205.
52
VAN UYTVEN, Raymond – “L’approvisionnement des villes des anciens Pays-Bas…”, p. 87.
50
51
DEFENDER LA CIUDAD CONTR A EL HAMBR E [...]
163
todos los tiempos, se pavimentó con grava y se consolidaron sus arcenes53.
1.3 El uso de la fuerza: desvíos e incautaciones.
Algunas ciudades mobilizaban de manera autoritaria los recursos de las comarcas
vecinas, por ejemplo, con el sistema de las “etapas” en los antiguos Países Bajos,
que forzaba a los comerciantes a vender sus productos alimentarios en unas
determinadas ciudades54. El derecho de escala se desarrolló gradualmente entre 1337
y 136655. En 1438, la ciudad de Dordrecht decretó que todos los cereales recolectados
en el sur de Holanda debían ser presentados en su mercado tres días después de su
cosecha. Este sistema que canalizaba el tráfico hacia ciertas ciudades constituía una
verdadera ventaja para la economía local y protegía a los habitantes de la ciudadesescalas de la volatilidad del mercado de granos, pero dificultaba el movimiento
de las mercancías56. En tiempos de hambruna, se sintió sobre todo como un favor
injusto en beneficio de las ciudades-etapas, lo que provocó luchas abiertas entre las
ciudades, las grandes favoreciendo sus intereses por encima de las pequeñas. Lo
mismo ocurrió con Colonia, que, tras haber obtenido un conjunto de privilegios
de “etapa” de comercio por el Rin durante el siglo XIII, se estableció como “gateway
market” donde las mercancías que venían por el río de lugares distantes y cercanos
se distribuían en varias direcciones57. En el siglo XV, las autoridades de Zaragoza
obligaron a todos los que transportaban cereales por el Ebro a descargar un tercio
de su carga y a venderla a la ciudad a cambio de lo cual recibían la licencia necesaria
para continuar su viaje58.
Barcelona y Valencia pudieron obtener una ventaja comparable gracias a los
privilegios otorgados por la monarquía que les permitieron ampliar y reforzar su
capacidad de intervención en el comercio ceralista en detrimento de los intereses
de otras ciudades. Barcelona obtuvo en 1329 de Alfonso el Benigno el privilegio Vi
LA RONCIERE, Charles-Marie de la – “L’approvisionnement des villes italiennes au Moyen Âge…”, p.
40; RACINE, Pierre – “Aperçu sur les transports fluviaux sur le Pô au bas Moyen Âge”. In Annales de Bretagne,
85: Les transports en Moyen Âge. Actes des congrès de la Société des historiens médiévistes de l’enseignement
supérieur public, 7e congrès, Rennes, 1976 (1978), pp. 181-198.
54
Sobre la historia de las “etapas” de Douai y Gante ver HOWELL, Martha; BOONE, Marc – “Becoming
early modern in the late medieval Low Countries”. Urban History 23, 3 (1996), pp. 311-316.
55
TITS-DIEUAIDE, Marie-Jeanne – “Le grain et le pain dans l’administration des villes de Brabant de
de Flandre au Moyen Âge”. In L’initiative publique des communes en Belgique, fondements historiques, ancien
régime, actes du colloque de Spa de 1982. Bruxelles: Crédit communal de Belgique, 1984, pp. 453-494.
56
VAN UYTVEN, Raymond – “L’approvisionnement des villes des anciens Pays-Bas… ”, p. 81.
57
WESTSTRATE, Job Andries – “Foodstuffs in the late medieval Rhine trade”. In ARIZAGA
BOLUMBURU, Beatriz; SOLÓRZANO TELECHEA, Jésus (eds.) – Alimentar la ciudad en la Edad Media,
Nájera, Encuentros Internacionales del Medievo, 2008. Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 2009, pp.
276-277.
58
FAlCÓN PÉREZ, Isabel – “Aprovisionamiento y sanidad en Zaragoza en el siglo XV”. Acta Historica
et Archaeologica Mediaevalia 19 (1988), pp. 127-144.
53
164
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
vel gratia que le daba el derecho de interceptar y desviar hacia su puerto los navíos
cargados de cereales en tránsito por sus aguas territoriales. Este privilegio le garantizó
un suministro en tiempos de crisis en detrimento no sólo del abastecimiento de
otras ciudades y villas del Principado sino también de los légitimos intereses de los
mercaderes y de las regiones productoras y exportadoras de grano de otras zonas de
Cataluña y de la Corona. Valencia recibió el mismo privilegio a principios del año
1330. Estas dos ciudades, que habían construido una larga área de abastecimiento,
podían controlar la circulación y distribución cerealista en el Principado y el
reino, territorios sobre los cuales “reivindican su capitalidad política, una forma de
imperialismo cittadino en materia de política alimentaria”59.
En caso de hambruna, algunas ciudades costeras recurrían a actos de piratería,
abordando los barcos que pasaban frente a la costa y obligándolos a descargar sus
cargas de grano; fue el caso, por ejemplo, de Marsella en 1376 y 1385 y de muchas
otras ciudades como Génova, Nápoles, Tortosa, Tarragona …
2. Las políticas de distribución y de control del mercado.
El control del mercado fue la primera respuesta a las revueltas que se produjeron
como consecuencia de las dificultades de abastecimiento y del aumento de los
precios en muchas ciudades en desarrollo: Piacenza (1250), Parma (1255), Bolonia
(1256), Milán (1258), Siena (1262), Florencia (1266), pero también Douai, Gante,
Ruán, Arras, Toulouse entre otras60.
La organización de la distribución de los productos alimenticios a manos de las
autoridades municipales es un fenómeno generalizado en las ciudades medievales,
en las que era permanentemente necesaria para suprimir todos los tráficos61. Los
objetivos seguían siendo los mismos: favorecer el comercio local al permitir a cada
uno que adquiriera lo necesario para alimentar su casa, proteger a los consumidores,
garantizándoles productos de calidad a precios razonables, evitando los cárteles,
los monopolios, el acaparamiento y cualquier especulación. Pero si las autoridades
municipales tenían los mismos objetivos y si sus intervenciones en el mercado
59
BENITO I MONCLUS, Père – “El rey frente a la carestía …”, p. 39; RIERA I MELIS, Antoni – “Crisis
cerealisticas, políticas públicas de aprovisionamiento, fiscalidad y seguridad alimentaria en las ciudades
catalanas durante la Baja Edad Media”. In PALERMO, Luciano; FARA, Andrea; BENITO, Pere (eds.) –
Políticas contra el hambre …, p. 269.
60
MOLLAT, Michel; WOLFF, Philippe – Ongles bleus, Jacques et Ciompi, Les révolutions populaires en
Europe aux XIVe et XVe siècles. Paris: Calmann-Lévy, 1970, los dos primeros capítulos; BOURIN, Monique;
CHERUBINI, Giovanni; PINTO, Guliano (dirs.) – Rivolte urbane e rivolte contadine nell’Europa del Trecento:
un confronto. Florence: Firenze University Press, 2008.
61
A título de ejemplos, ver CUEVES GRANER, Amparo – “Abastecimientos de la ciudad de Valencia
durante la Edad Media, Saitabi 12 (1962), pp. 141-167; PUÑAL FERNÁNDEZ, Tomás – El mercado en Madrid
en la Baja Edad Media. Estructura y sistemas de abastecimiento de un concejo medieval castellano (siglo XV).
Madrid: Caja de Ahorros y Monte de Piedad de Madrid, 1992.
DEFENDER LA CIUDAD CONTR A EL HAMBR E [...]
165
presentaban gran uniformidad y se reiteraron en los distintos núcleos urbanos, los
métodos para lograr los objetivos podían diferir porque dependían de si las ciudades
pudieran legislar directamente para regular el mercado o con la monarquía o los
gremios62. La policía del comercio está contenida en las numerosas ordenanzas
municipales, a menudo muy detalladas, y crecientemente completadas para regular
los nuevos problemas que se planteaban.
2. 1 La defensa del consumidor: organización y regulación de la distribución.
Con el fin de presentar la venta en las mejores condiciones, los estatutos y la legislación
complementaria establecieron todo un sistema de protección del consumidor a
partir del siglo XIII, en primer lugar en los municipios italianos y luego en las otras
ciudades europeas.
La venta de los distintos productos tenía que efectuarse obligatoriamente en
lugares expresamente asignados por la autoridad ciudadana, localizados en diversos
puntos del espacio urbano, por una parte, para evitar los fraudes y para que nadie
pudiera librarse de las tasas que se cobraban por los intercambios y, por otra parte,
para favorecer el comercio local concentrándolo en lugares, horarios y condiciones
determinados. Muchas ciudades penalizaban el comercio fuera de los mercados y
restringían la compra de grano a foráneos, estableciendo un plazo de tiempo para
facilitar la compra de pan por los habitantes de la ciudad.
Las autoridades se preocupaban también por la moralidad de las transacciones,
exigíendo que todos los vendedores utilizaran medidas y pesos “leales, reconocidos
y justos”63. Les estaba estrictamente prohibido a los molineros y a las panaderas
mezclar harinas de cereales distintas y a los pescadores y a los carniceros mezclar en
los puestos pescados y carnes de distinto tipo. Los dirigentes emitieron normativas
sobre la elaboración del pan y su precio que debía estar en relación con el precio
del grano. El comercio de la carne y del pescado era objeto de un trato particular ya
que se trataba de mercancías muy perecedoras que tenían que venderse muy rápido
para que se pudieran consumir. Con el fin de que los compradores supieran a qué
62
Para la gestión municipal de las crisis frumentarias remito a los trabajos muy completos y detallados
de Antoni Riera I Melis sobre las ciudades catalanas, entre muchos otros, RIERA I MELIS, Antoni;
PÉREZ-SAMPER, María Ángeles; GRAS, Mercè – “El pan en las ciudades catalanas (siglos XIV-XVIII)”.
In CAVACIOCCHI, Simonetta (ed.) – Alimentazione e nutrizione, secc XIII-XVIII. Atti della ventottesima
Settimana di studi, 22-27 aprile 1996. Firenze: Le Monnier, Istituto Internazionale di Storia Economica F. Datini,
1997, pp. 378-384; RIERA I MELIS, Antoni – “El mercado de los cereales en la Corona catalanoaragonesa: la
gestión de las carestías durante el segundo tercio del siglo XIII”. In BOURIN Monique; DRENDEL John,
MENANT François (eds) – Les disettes dans la conjoncture de 1300 en Méditerranée occidentale. Rome: EFR,
2011, pp. 87-143; RIERA I MELIS, Antoni – “Crisis cerealisticas, políticas públicas de aprovisionamiento…”,
pp. 254-274.
63
DAVIS, James – Medieval Market Morality: Life, Law and Ethics in the English Marketplace, 12001500. Cambridge: Cambridge University Press, 2012.
166
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
atenerse, los carniceros tenían que exponer por separada la carne del día y la viejay
la de los animales ya muertos. Los vendedores tenían que guardar lo máximo posible
en las banastas y el pescado que hubiera lllegado hacia más de veinticuatro horas
tenía que venderse a parte.
En algunas ciudades de la Corona de Castilla como Burgos, Cuenca o Murcia,
las autoridades se encargaban de regular cada año la venta de carne estableciendo
un acuerdo con un número determinado de carniceros a cada uno de los cuales
asignaba un puesto en las carnicerías en el que cortarían, pesarían y venderían la
carne64. El sistema de venta era el de “obligados” que consistía a arrendar anualmente
cada tabla de la carnicería a un “obligado”, que se comprometiá a abastecer de carne
a la ciudad de acuerdo con la calidad y a precios establecidos por los dirigentes. A
cambio disfrutaba del monopolio de venta de este producto y de la utilización de las
dehesas concejiles cercanas a la ciudad65. La búsqueda de “obligados” fue siempre
un problema grave para los concejos porque no siempre hubo personas, carniceros
o no, dispuestas a encargarse del abastecimiento urbano a los precios fijados por las
autoridades, considerados demasiado bajos.
Las autoridades regulaban también la industria alimenticia, el trabajo y la
organización de los distintos circuitos de distribución: productores, distribuidores,
regatones. Se estaban asegurando de que la ciudad dispusiera de los espacios y
del material adecuado para recuperar, almacenar, garantizar las transformaciones
indispensables de los productos alimenticios y venderles. Así los paisajes urbanos
se modificaron con la aparición de areas de trilla delante la o las puertas con el
fin de que esta operación pudiera ser vigilada y, si fuera necesario, protegida, y la
construcción de infraestructuras de almacenamiento y conservación: graneros
públicos, generalmente situados en el corazón de la ciudad de transformación:
mataderos, molinos y hornos, situados generalmente en los márgenes del recinto
urbano o más allá.
2.2 La lucha contra la especulación y el control de precios.
No bastaba con impedir la venta al extranjero de una parte de los recursos locales:
era necesario que la totalidad de los mismos se vendieran para evitar las hambrunas
artificiales y la subida de los precios que impedía a la gente modesta procurarse
64
Las condiciones de este convenio están detalladas por BONACHÍA HERNANDO, Juan Antonio –
“Abastecimento urbano, mercado local y control municipal. La provisión y comercialización de la carne en
Burgos (siglo XV)”. Espacio, Tiempo y forma. Serie III. Historia Medieval VI (1992), pp. 85-162.
65
CABAÑAS GONZÁLEZ, María Dolores – “Ciudad, mercado y municipio en Cuenca durante la Edad
Media”. In La ciudad hispánica durante los siglos XIII al XVI, Actas del coloquio de la Rábida y Sevilla, 14-19/IX,
1981. T. II. Madrid: Universidad Complutense, 1985, pp. 1701-1728; AGUADÉ NIETO, Santiago; CABAÑAS
GONZÁLEZ, María Dolores – “Comercio y sociedad urbana en la Castilla medieval. La comercialización de
la carne en Cuenca (1177-1500)”. Anuario de Estudios Medievales 14 (1984), pp. 487-516
DEFENDER LA CIUDAD CONTR A EL HAMBR E [...]
167
“la comida que les hacía falta”. La política de los dirigentes era luchar contra los
acaparadores y el aumento excesivo de los precios. El mantenimiento de precios
bajos era una garantía de estabilidad en la ciudad, pero también era la base de su
prosperidad, ya que permitía el mantenimiento de una población urbana importante
y de salarios bajos, lo que constituía un incentivo fuerte y eficaz para el desarrollo de
la industria.
Preocupado por evitar el acaparamiento, el “mercado negro”, la especulación
y el encarecimiento de los productos, se promociona el abastecimiento directo y
se limita estrictamente la reventa de todas las mercancías, el número de regatones
y el almacenamiento. En general, los particulares no podían comprar más que las
cantidades de productos alimenticios necesarios para satisfacer las necesidades de la
familia. Se prohibió comprar productos a los comerciantes que iban a la ciudad en un
radio alrededor de la ciudad, normalmente cuatro leguas, pero tres para el pescado en
Gante en 135066. Para no dejar que el mercado quedara desnudo en beneficio de unos
pocos compradores ricos y para detener la fuerte subida de los precios, se prohibió
comprar grandes cantidades de una sola vez. En muchas ciudades, los panaderos
sólo podían comprar en el mercado después de los particulares. Cuando empezaban
a circular rumores de que el cereal escasearía, los ediles decidían hacer un inventario
de las reservas de grano en manos de comerciantes y particulares67. Durante las
carestías hicieron obligatorio declarar los stocks y obligaron a los comerciantes a
vender durante unos días el cereal al precio de compra.
El ejemplo de las ciudades toscanas muestra que la tentación de especular
siempre estuvo presente, incluso en tiempos de abundancia, y se acentuó cuando
se anunciaba una carestía, sobre todo de grano, muy sensible a las fluctuaciones del
mercado y que era el foco de especulación por excelencia. El pan que existía ya no
acudía al mercado, los productores esperaban la llegada del pico de precios para
beneficiarse de la subida, lo que esta en gran medida relacionado con el fenómeno
de las compras anticipadas de cosechas. Pero sólo excepcionalmente se encuentran
disposiciones en ordenanzas municipales que prohiben estas compras porque los
beneficiarios figuraban entre los miembros de las élites locales y de la Iglesia68. La lucha
contra el almacenamiento por parte de los productores era más o menos enérgica,
lo que revela el poder de ellos y sólo en algunas ciudades, los dirigentes llegaban a
infligir multas y recurrir a la fuerza con los productores que eran receptivos a las
VAN UYTVEN, Raymond – “L’approvisionnement des villes des anciens Pays-Bas…”, pp. 84-85.
En Barcelona, esta tarea corría a cargo del inspector municipal, RIERA I MELIS, Antoni – “Crisis
cerealisticas, políticas públicas de aprovisionamiento…”, p. 258.
68
En Murcia, las autoridades tenían serias dificultades para vencer la resistencia de los hombres
poderosos e influyentes que tenian reservas de pan: canónigos y nobles; lo intentaron amenazándolos con
incautar lo que tenían almacenado si no los traían en un plazo de veinte días, MENJOT Denis – Murcia, ciudad
fronteriza…, pp. 272-281.
66
67
168
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
ofertas de los mercaderes extranjeros y a las sirenas de la especulación y no dudaban
a venderles sus productos.
La cuestión del almacenaje de las reservas públicas era determinante sobre todo
durante las crisis de carestía. Las autoridades municipales procuraban controlar en
primer lugar los graneros de los hospitales, conventos e instituciones caritativas, pero
también reglamentaban la capacidad de almacenaje privado, por ejemplo, en Lubeck,
obligaron a los habitantes a constituir en sus casas reservas de grano proporcionales
a sus bienes. Estas políticas ambiciosas culminaban con la construcción en muchas
ciudades de un granero – en el cual se instaló una báscula – que se convirtió en uno
de los monumentos cívicos que mejor expresaban el ideal urbano, es el caso, por
ejemplo, de los Kornhaus de Colonia y Nurembergo, edificados tras la hambruna del
1437 y visitados como unas de las glorias y de la curiosiades de la ciudad69. Después de
la carestía de 1329-1330, Florencia se acostumbró a acumular reservas de seguridad
cada año, comprando cereales en Toscana y Umbría70.
En todas partes, también se sospecha que los profesionales de los suministros, en
primer lugar los carniceros, trataban de enriquecerse fraudulentamente agrupándose
con el fin de aumentar los precios. En las ciudades de Lombardía, Emilia y Toscana,
las autoridades trataron de neutralizarlos manteniéndolos bajo su supervisión directa
y prohibiendo que los distintos oficios se convirtieran en arti71. Para evitar cualquier
presión que pudiese orientar los precios de los productos al alza, en Inglaterra, los
estatutos del reino prohibían la elección de comerciantes de alimentos a cargos
urbanos72. La fiscalidad regia – en particular la alcabala – fue denunciada en varias
Cortes castellanas del siglo XV como una de las causas del aumento de los precios,
pero obviamente sin resultado73.
Cuando todas estas medidas de control no bastaban, las autoridades públicas de
muchas ciudades, pero sólo en situaciones extremas, como último recurso, tasaban
los precios de los cereales, de la carne y del pescado durante el cuaresme y concedían
el monopolio de la venta a los pescadores y a los carniceros que aceptaban las tasación.
Los contemporáneos eran conscientes de los riesgos que implicaban los máximos,
lo que revela, por ejemplo, el texto de un proyecto de tasación de 1482 en Brujas
en el cual se especificó que se tendría cuidado de fijar el precio máximo del trigo
69
Cuando el emperador visitaba una de estas grandes ciudades, el programa oficial preveía pasar por
el kornhaus IRSIGLER, Franz – “L’approvisionnement des villes de l’Allemagne occidentale…”, pp. 121-122.
70 LA RONCIERE, Charles-Marie de la – “L’approvisionnement des villes italiennes au Moyen Âge
...”, p. 46.
71
PINI, Antonio, Ivan – Città, comuni e corporazioni nel Medioevo italiano. Bologne: CLUEB, 1986.
72
HILTON, Rodney – “Pain et cervoise dans les villes anglaises au Moyen Âge”. In L’approvisionnement
des villes de l’Europe occidentale …, p. 221; en su forma escrita son de mediados del siglo XIII, pero se cree que
datan de finales del siglo XII.
73
Por ejemplo, en las Cortes de Madrid de 1435, OLIVA HERRER, Hipólito Rafael – “La política de la
carestía en Castilla en el siglo XV…”, p.137.
DEFENDER LA CIUDAD CONTR A EL HAMBR E [...]
169
no demasiado bajo porque, en caso contrario, las importaciones se detendrían74. En
las ciudades inglesas, donde la autonomía estaba limitada por el poder central, esta
reglamentación era de origen real: las assizes of bread and ale (1266-1267) imponian
un marco legal al precio de la cerveza y al peso del pan que variaba según el curso
del cereal75.
Durante las crisis de escasez, las autoridades que habían organizado un sistema
de compras oficiales y de reservas de seguridad, las revendieron con pérdidas
y a precios reducidos. Éste tenia como principal objetivo completar una oferta
alimentaria inconsistante, y también ayudaba a contener la subida de precios, ya
que obligaba a los especuladores a poner a la venta las reservas disponibles. Como
bien señaló Antoni Riera en aquel mundo medieval en el que los clérigos daban una
explicación teológica de las crisis frumentarias, no hay que olvidar la organización
de procesiones expiatorias que formaba parte de las políticas de lucha contra las
carestías76.
2.3 La política de seguridad alimenticia y las requisitos sanitarios.
Si el temor a la escacez a menudo atenaza a las poblaciones urbanas, la angustia de
comer alimentos dañinos se va extendiendo progresivamente. De ahí la elaboración
de una normativa sobre la seguridad alimentaria. Por ejemplo, el temor al contagio
de la fiebre porcina justifica un control estricto de la comercialización de la carne, que
se explica a la vez por los conocimientos médicos de la época y por unas creencias
antropológicas que confirman el temor más profundo a la contaminación por los
alimentos impuros. Las autoridades vigilaban la higiene en las carnicerías; éstas
debían mantenerse limpias y había que desangrar a los animales en barreños cuyo
contenido tenía que vaciarse fuera.
De forma general, las investigaciones recientes han puesto de relieve la
precocidad de la preocupación “medioambiental” en las ciudades medievales, cuya
legislación destinada a garantizar la pureza de las aguas y del aire se basa en una
cultura médica bastante desarrollada. Así, por ejemplo, los tratados higienistas de
Aldebrandin de Siena sobre la prevención de la epidemia estaban muy difundidos
VAN UYTVEN, Raymond – “L’approvisionnement des villes des anciens Pays-Bas ….”, pp. 92 y 91.
ZYLBERGELD, Léon – “Les régulations du marché du pain au XIIIe siècle en Occident et l’Assize
of bread” de 1266-1267 pour l’Angleterre”. In DUVOSQUEL, Jean-Marie; DIERKENS, Alain (éds.) – Villes
et campagnes au Moyen Âge. Mélanges Georges Despy. Liège: éditions du Perron, 1991, pp. 791-814; SHARP,
Buchanan – Famine and Scarcity in Late Medieval and Early Modern England. The Regulation of Grain
Marketing, 1256-1631. Cambridge: Cambridge University Press, 2016.
76
RIERA I MELIS, Antoni – “Crisis cerealisticas, políticas públicas de aprovisionamiento…”, p. 273.
En Murcia, por ejemplo, el concejo decidió organizar procesiones y rezos colectivos, en ocasiones obligatorios,
para implorar que lloviera, que cesase una epidemia (1386), o una plaga de langosta echando en el suelo agua
de la fuente del santuario de Vera Cruz de Caravaca, a la cual se le atribuían milagros, MENJOT Denis –
Murcia, ciudad fronteriza…, pp. 429-430.
74
75
170
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
entre las clases dirigentes de las ciudades europeas77. Esta conciencia sanitaria de las
élites, que se basa en parte en la observación de las patologías proprias de los espacios
urbanos, tiene unas consecuencias directas en la ordenación de las ciudades y, en
particular, en su abastecimiento hídrico (pozos, fuentes) y evacuación de las aguas
sucias con la construccion de alcantarillados78. La reglementación de los oficios a
partir del siglo XIII contribuyó a limitar la contaminación hídrica y a favorecer la
autodepuración de los ríos y canales, distribuyendo de forma racional las actividades
artesanales a lo largo de los cursos de agua; asi los mataderos fueron trasladados a la
periferia de las ciudades.
3. Las estructuras del control de la defensa contra el hambre: oficios y
administraciones anonarias.
Para hacer aplicar la legislación y sancionar todas las infracciones, – con multas
generalmente – las autoridades urbanas, crearon nuevos organismos y se dotaron de
oficios especializados. Los municipios italianos y las ciudades germánicas fueron los
primeros en establecerlos gradualmente a partir del siglo XIII, tras el debilitamiento
del poder imperial. Los concejos controlaban así el mercado, sea directa, sea
indirectamente a través de los gremios.
En las ciudades italianas, los estatutos urbanos definieron un marco
reglamentario controlado por una administración especializada. En Milán, los
statuta visctualium de 1215 crearon agentes cuya competencia abarca los circuitos
de abastecimiento y también los lugares de comercialización. A finales del siglo
XIII aparecieron oficiales bajo varios nombres, en Genova el officium victualium, en
Brescia el giudice dei chiosi para el control de los precios. En Siena, se instituyeron
magistrados del divieto ya en 1251 y oficiales de trigo, seis y luego doce hacia 1290.
En Verona y en Ragusa se establecieron un massarius blavorum en el siglo XIV y. En
Bolonia, se creó un dominus bladi en 1335 y un officio dell’abbondanza, especialmente
cargado del grano en 1376; en Florencia, un officio dell’abbondanza en 1330, dotado
de competencias muy amplias en cuanto a precio, calidad de venta y suministros.
Este mismo officio dell’abbondanza se atestigua en Perugia en 1340, en Orvieto en
1349, en Siena y en Roma a mediados del siglo XV, una Prefettura dell’annona en
Nápoles, un officio delle biave en Venise. En Venecia, se creó una administración
especializada a partir del siglo XII, l’annona – primera ley anonaria data de 1173
ZUPKO, Ronald; LAURES, Robert – Straws in the wind. Medieval Urban Environnement Law.
Oxford-Boulder: Westview Press, 1996.
78
Ejemplos en las ciudades españolas en VAL VALDIVIESO, María Isabel del (ed.) – Usos sociales del
agua en las ciudades hispánicas de la Edad Media. Valladolid: Universidad de Valladolid, 2002. Ver también
TEYSSOT, Josiane – “L’eau propre, l’eau sale à la fin du Moyen Âge: le cas des égouts de Riom en Auvergne”.
Cahiers d’Histoire XXXVII, 2 (1992), pp. 103-120.
77
DEFENDER LA CIUDAD CONTR A EL HAMBR E [...]
171
– que se siguio desarrollando con el desarrollo de la ciudad y cuenta en el siglo XV
con la participación de varias decenas de personas que buscaban nuevos mercados y
controlaban los intercambios y los intermediarios79.
Todas estas organizaciones, intermitentes al principio, terminaron por
imponerse de manera permanente y los abbondanze se iran poblando poco a poco
de un personal diversificado para prospectar los centros de producción extranjeros,
transportar el trigo, almacenarlo y asegurar su distribución; consiguieron un
presupuesto anual, adquirieron edificios, especialmente almacenes situados en
puntos estratégicos a lo largo de las rutas del trigo. Cada administración, en particular
la de los cerales, terminó jugando un papel importante en los estados regionales en
el XV80.
A partir de mediados del siglo XIII, los magistraturas anonnarias también
aparecieron en las ciudades del área germánica. En las ciudades de Alemania
occidental: Nurembergo, Colonia, Marburgo, Friburgo de Brisgovia y Duisburgo,
los responsables de la política de abastecimiento eran principalmente los órganos
municipales autónomos y en las ciudades señoriales pequeñas y medianas, el señor.
Las funciones organizativas como la compra y venta de grano municipal, el control
de las reservas y la fijación de los precios del pan se confiaban normalmente a uno
o más oficiales o notables que solían ser miembros del consejo municipal y por lo
tanto, de las familias gobernantes de la ciudad81. La municipalidad se contentaba
normalmente con mantener un cuerpo especial de supervisores y controladores del
mercado, que se encuentra en Basilea, Lübeck, Berlín y Colonia, esta última ciudad
contaba con policías especializados por tipo de transacción: pan, pescado, aves,
granos, carne, madera82.
En las ciudades de las coronas de Aragón y Castilla, la regulación del mercado
era una función que el rey había delegado a los gobiernos municipales y algunos
de ellos asignaron esta tarea a un oficial, el mostassaf/almotacén, heredero directo
del sahib al suq83. En 1339, el mostassaf se instauró en Barcelona. Ejercía un control
estricto sobre el mercado de productos alimenticios, imponiendo los horarios de
venta, los productos que se podían vender, los pesos autorizados, los espacios de
venta, las medidas de higiene pública obligatorias. A lo largo de los siglos XIV y
COLLODO, Silviana – “Il sistema annonario delle città venete: da pubblica utilità a servizio sociale
(secoli XIII-XVI)”. In Città e servizi sociali nell’Italia dei secoli XII-XV. Pistoia: Viella, 1990, pp. 383-416;
FAUGERON, Fabien – Nourrir la ville…, pp.17-90.
80
LA RONCIERE, Charles-Marie de la – “L’approvisionnement des villes italiennes au Moyen Âge ...”,
pp. 46-47.
81
IRSIGLER, Franz – “L’approvisionnement des villes de l’Allemagne occidentale…”, pp. 120-121; ver
también ISENMANN, Eberhard – Die deutsche Stadt im Spätmittelalter (1150-1550). Cologne: Böhlau Verlag,
réed. 2012.
82
MONNET, Pierre – Villes d’Allemagne au Moyen Âge. Paris: Picard, 2004, p. 98.
83
CHALMETA, Pedro – El señor del zoco en España. Madrid: Instituto Hispano-Árabe de Cultura,
1973, pp. 203-223.
79
172
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
XV la institución del mostassaf se extendió por toda Cataluña y Valencia84. En
Barcelona y en las otras grandes ciudades catalanas, existía otra administración,
la del granero municipal (l’almodi), con su gestor, el botiguer, que se encargaba de
distribuir a la población los cereales adquiridos por el municipio. Desempeñaba un
papel de regulación de los precios por el stock de cereales, aseguraba las semillas,
distribuyéndolas entre todos los que no tenían nada que sembrar y actuaba como
una especie de crédito al consumista concediendo a los más necesitados un préstamo
en especie que debían devolver en la siguiente cosecha85.
El almotacén existía en algunas ciudades de la corona de Castilla, como Cuenca
y Murcia, vigilaba que se respetaran las ordenanzas de policía municipal, la calidad
de los productos, la lealtad de las prácticas comerciales y artesanales, la legalidad
de los pesos y medidas86. En Murcia, a partir de la segunda mitad del siglo XIV, el
concejo subordinó este cargo a los jurados que podían anular sus decisiones, asistidos
por los veedores, representantes de los menestrales agrupados en organizaciones
profesionales87. En Sevilla, los encargardos de aplicar la normativa eran, por un
lado, el almotacen y, por otro, los fieles. En Burgos, el Concejo elegía cuatro oficiales,
los “fieles de los cuatro”, para guardar los pesos y medidas reglamentarias que los
comerciantes debían confrontar con las suyas y velar por el buen funcionamiento del
mercado urbano y en el cumplimento de las ordenanzas emitidas por el concejo88.
En las ciudades del norte de Europa, “tanto en Francia como en Inglaterra la
normativa fue escasa y la intervención de las autoridades públicas en el mercado muy
indirecta, casi siempre a través de los oficiales nombrados por la propia corporación
de oficio que ejercían el control más cercano del proceso de abastecimiento y
distribución de carne” 89. Esta conclusión del estudio comparada de las políticas de
aprovisionamiento de la carne en la península ibérica, norte de Francia e Inglaterra de
Ramón Banegas López, podría aplicarse también a las estructuras de control político
sobre el abastecimiento de los cerales y del pescado. En estas ciudades integradas
84
BANEGAS LÓPEZ, Ramón – “Competencia, mercado e intervencionismo en el comercio de carne
en la Europa bajomedieval. Los ejemplos de Barcelona y Ruán”. Anuario de Estudios Medievales 42/2 (2012),
pp. 479-499.
85
MORELLÓ BAGET, Jordi, con la colaboración de GUILLERÉ, Christian – “Approvisionnement et
finances municipales …”, pp. 280-282.
86
Ver las ordenanzas que regulaban su función en Murcia, publicadas por TORRES FONTES, Juan –
“Las ordenaciones al almotacen murciano en la primera mitad del siglo XIV”. Miscelánea Medieval Murciana
10 (1983), pp. 71-131.
87
MENJOT, Denis – Murcia, ciudad fronteriza…, pp. 609-610.
88
ESTEPA DIEZ, Carlos; RUIZ, Teófilo; BONACHÍA HERNANDO, Juan; CASADO ALONSO,
Hilario – Burgos en la Edad Media. Valladolid: Junta de Castilla y León, 1984, p. 399.
89
BANEGAS LÓPEZ, Ramón – “Intervencionismo, autorregulación y crisis de abastecimiento. Un
estudio comparativo de las políticas de aprovisionamiento de carne en la península ibérica, el norte de Francia
e Inglaterra durante la baja Edad Media”. In Políticas contra el hambre y la carestía en la Europa medieval…,
p. 312, da la explicación: “En Francia como en Inglaterra la carne se vendía a ojo y no a peso; por tanto las
autoridades no tenían la necesidas de controlar el uso de pesos autorizados o de vigilar el correcto pesado de
las carnes…”
DEFENDER LA CIUDAD CONTR A EL HAMBR E [...]
173
en estados centralizados, el control del mercado estaba también por delegación en
manos de las autoridades municipales que dejaban mucha más autonomía a los
artesanos y comerciantes para supervisar su propio negocio a través de los gremios
en que se agrupaban al final de la Edad Media. Por ejemplo, en Ruan, nos dice
Ramón Banegas López, la primera normativa que regulaba la venta de carne data de
1322 y fue escrita por los propios carniceros de la ciudad, los cuales, agrupados en
un gremio, decidieron pedir la aprobación municipal y real de las normas que ellos se
habián dado. La inspección del trabajo de los carniceros corria a cargo de los guardas
del oficio y sus ayundantes que eran elegidos por el gremio, pero estos no tenián
potestad para castigar las infracciones90. En Londres, la autoridad real y municipal
era la que dictaba la normativa que regía el mercado de la carne. La inspección
corría a cargo de las tres gremios que existían en la capital del reino de Inglaterra,
los cuales tenían la potestad de elegir sus wardens (inspectores del mercado)91. Hubo
ciudades en donde los gremios de los carniceros no solo tenían la potestad de crear
la normativa del mercado de la carne e inspeccionar el trabajo de los carniceros, sino
que incluso podían juzgar e imponer penas a los infractores de dicha normativa, es
el caso por ejemplo de la “grande boucherie” de Paris y Amiens92. En otras ciudades
inglesas, las autoridades nombraron oficiales especializados en un producto como,
por ejemplo, en Nottingham para et Assize of bread que controlaba los precios y la
calidad de los productos93.
4. El precio de la política contra el hambre.
La política de defensa contra el hambre tenía un precio y por lo tanto consecuencias
para las finanzas municipales. Jordi Morello ha propuesto una tipología precisa de
los gastos que generaría esta política94. La retomo:
- gastos de abastecimiento: compras de cereales con, posiblemente, primas
pagadas a los importadores y tasas aduaneras.
- gastos administrativos y de funcionamiento: sueldos y dietas de las personas
enviadas a comprar en el exterior, variables según el lugar y la duración, coste de las
actas notariales, sueldos del personal de la anona.
90
BANEGAS LÓPEZ, Ramón – “Intervencionismo, autorregulación y crisis de abastecimiento. Un
estudio comparativo de las políticas de aprovisionamiento…”, pp. 310-311.
91
DAVIS, James – Medieval Market Morality: Life, Law and Ethics in the English Marketplace, 12001500. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, pp. 115-146, citado por BANEGAS LÓPEZ, Ramón
– “Competencia, mercado e intervencionismo…”
92
BANEGAS LÓPEZ, Ramón – “Intervencionismo, autorregulación…”, p. 312.
93
HILTON, Rodney – “Pain et cervoise dans les villes anglaises…”, p. 224.
94
MORELLO BAGET, Jordi – “Approvisionnement et finances municipales en Méditerranée…”, pp.
284-285.
174
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
- gastos de transporte: variables también según la distancia. A título de
ejemplo, según La Roncière, el transporte marítimo no era muy caro, sin embargo,
desde Sicilia a Génova, en la década de 1340 representaba un tercio del precio normal
de compra. Los transportes terrestres eran más caros, de Ancona a Perugia, el 15%
del precio de compra95.
- gastos de almacenamiento: salarios del personal (medidores, pesadores …),
alquiler de locales (durante mucho tiempo la ciudad alquilaba locales a particulares)
que La Roncière evalua en Florencia a no menos del 5%.
- gastos en infrastructuras: inversiones en la construcción y mantenimiento de
las infraestructuras: alhondigas, graneros, mataderos, molinos…
Estos gastos de suministro de grano eran muy variables de una ciudad a otra
y de un año a otro. En las comunas italianas, la financiación de las importaciones –
que tenían por objeto complementar una oferta muy insuficiente y también detener
el alza del mercado libre desalentando a los especuladores – la creación de reservas
de seguridad y la reventa con pérdidas que constituían la mayor parte de los gastos
del abastecimiento, representaba un importante porcentaje del presupuesto desde
el principio, evaluado a un tercio en Siena en 1295. Las comunas soportaron esta
carga hasta la segunda mitad del siglo XIV, cuando los gastos militares aumentaron
rápidamente.
En las ciudades del sur de Francia: Narbona, Tarascon, Cadillac y Millau,
el análisis de las cuentas que se conservan, muestra que los gastos para satisfacer
las necesidades alimenticias eran modestos y relativamente estables en valores
absolutos96, estimados por Florent Garnier en un 0,5% de los gastos de la ciudad y un
0,1% de los gastos económicos, salvo en circunstancias excepcionales de hambruna97.
Del mismo modo, en Murcia, Sevilla y otras pequeñas ciudades castellanas como
Palencia, Paredes de Nava, Alcaraz, Chinchilla, estos gastos eran muy limitadas en
comparación con las cantidades gastadas para la defensa militar98. En la Corona de
Aragón, si en Mallorca en 1333 durante la crisis frumentaria, el 63,5% del gasto de
la ciudad se dedica al abastecimiento, en las pequeñas ciudades catalanas de Reus
y Valls, los porcentajes solían ser bajos, respectivamente el 1% y el 3% en tiempos
normales99. Para Jordi Morello, la impresión que resulta de su profundo estudio de la
La RONCIÉRE, Charles-Marie – “L’approvisionnement des villes italiennes …”, p. 47.
MENJOT, Denis; SÁNCHEZ MARTÍNEZ, Manuel (dirs.) – La fiscalité des villes au Moyen Age
(Occident méditerranéen). 3: La redistribution de l’impôt. Toulouse: Privat, 2002, p. 158, Narbonne, p. 172,
Tarascon, p. 168, Cadillac, p. 601, Millau,
97
GARNIER, Florent – Un consulat et ses finances…, p. 601.
98
MENJOT, Denis; SÁNCHEZ MARTÍNEZ, Manuel (dirs.) – La fiscalité des villes au Moyen Âge…, pp.
67-80, Murcie, pp. 55-66, Séville.
99
MORELLO BAGET, Jordi – “Approvisionnement et finances municipales en Méditerranée…”, pp.
290-293.
95
96
DEFENDER LA CIUDAD CONTR A EL HAMBR E [...]
175
financiación de las compras de cereales “es la de un gasto soportable, perfectamente
asumido por las ciudades de la Corona de Aragon pero mucho menos por los
del reino de Francia y especialmente del norte y centro de Italia desde mediados
del siglo XIV”100. El abastecimiento era siempre un gasto extraordinario y si bien
constituía uno de los servicios comunitarios más importantes, tenía poco impacto
en las finanzas municipales, excepto en tiempos de crisis y en algunas ciudades, en
comparación con los gastos militares que prevalecían en el siglo XIV y las exigencias
de los reyes.
En una gran mayoría de ciudades, los ingresos ordinarios solían ser suficientes
para cubrir los gastos de abastecimiento, y cuando no era así, los gestores cobraban
un impuesto extraordinario, o aumentaban la tasa de los impuestos indirectos sobre
los productos de consumo o imponían una tasa adicional, caso de las ciudades
de Castilla y del sur de Francia. Sin embargo, cuando las sumas eran demasiado
altas o urgentes – pero sobre todo para hacer frente a las demandas reales y a
sus propias necesidades defensivas – o cuando las tesorería eran deficitarias, los
gobiernos municipales de las grandes ciudades italianas y de muchas villas catalanas,
valencianas, flamencas, alemanas, francesas rrecurrieron a préstamos a corto plazo, a
veces forzados. A partir de la segunda mitad del siglo XIII, la deuda a corto plazo dejó
paso a una deuda pública consolidada que podía revestir dos formas, la de las rentas
perpetuas (censals, geldkauf, zinskauf), reembolsables a petición del prestatario y la
de las rentas vitalicias (violaris, lybding, leibgeding)101. El medio más utilizado en los
países de la Corona de Aragón era la venta de censales para inyectar más capital. “La
política cerealista de las grandes urbes catalanas, a pesar de contar con mecanismos
compensatorios coactivos, generaba un creciente déficit financiero: de las 204 000
libras que la ciudad de Barcelona adeudaba en 1452 à la Taula de Canvi (banca
municipal), 107 000 correspondían a gastos ocasionados por el abastecimiento
de trigo”102. En Venecia igualmente para financiar la administración anonaria, la
principal fuente provenía de los préstamos públicos pero también de la reventa de
los stocks. El uso del crédito se convirtió rápidamente en algo esencial y el papel de
los bancos se hizo predominante en el siglo XV103.
La deuda pública requería la creación y el establecimiento de un verdadero
100
MORELLO BAGET, Jordi – “Approvisionnement et finances municipales en Méditerranée…”, p.
294.
101
FURIÓ, Antoni – “La dette dans les dépenses municipales”. In La fiscalité des villes au Moyen Âge…,
pp. 321-350.
102
RIERA I MELIS, Antoni – “Crisis cerealisticas, políticas públicas de aprovisionamiento…”, p.
268; Por lo tanto, podemos pensar con Pere Verdès que Fiscalidad y abastecimiento son las dos caras de la
misma moneda, VERDÉS PIJUAN, Père – “Fiscalidad y abastecimiento: ¿dos caras de la misma moneda?”
In Alimentar la ciudad. El abastecimiento de Barcelona del siglo XIII al siglo XX. Barcelona: Ajuntament de
Barcelona, 2013, pp. 14-16.
103
FAUGERON, Fabien – Nourrir la ville…, pp. 105-169.
176
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
sistema fiscal que permitiese el pago de intereses y que garantizase la concesión de
nuevos créditos. La deuda pública se consolidó con los ingresos de los impuestos
indirectos (aides, accises, sisas, imposiciones, gabelles, dazi, comunes) que gravaban el
consumo, incluso en aquellas donde los representantes de los artesanos habían logrado
conseguir hacerse un espacio en el gobierno urbano, como en las regiones flamencas
o italianas. No es exagerado pensar que estos impuestos representaban un promedio
del 75 al 80% de los ingresos urbanos. Es el caso en Gante entre 1384 y 1453104. En
Barcelona, desde mediados del siglo XIV, la fiscalidad municipal estaba basado casi
exclusivamente en las imposiciones que gravaban el consumo de alimentos básicos
(pan, vino, carne, prescado) que suponián a finales del siglo XIV, el 20, el 30 o incluso
el 50% del precio del producto105. En Cervera, las imposiciones proporcionaban un
promedio del 40% de los ingresos de la ciudad en el siglo XIV106. En Murcia, los
comunes y el acrecimiento de la carne y del pescado seguían representando más del
80% de los ingresos de la ciudad107. En Valencia, la sisa de la carne era un ingreso
esencial108. En Florencia, Génova y Venecia, los intereses de la deuda absorbían en
promedio del 20 al 40% de los ingresos ordinarios desde la segunda mitad del siglo
XIV. En 1403, representaban el 61% de los gastos de Barcelona, pagados mediante la
recaudación de nuevas imposicions o el aumento de las antiguas109.
Conclusiones: ¿eficacia de las políticas municipales contra el hambre?
Todas las autoridades municipales llevaban a cabo una política alimenticia activa
de defensa contra el hambre que diferían por su grado de intervencionismo, lo cual
es revelador de la mentalidad y del poder de las elites dirigentes. Los principios de
las políticas urbanas eran siempre los mismos: asegurar un suministro suficiente
para no provocar disturbios, pero sin perjudicar indebidamente los intereses de los
comerciantes y productores; proteger al consumidor contra el fraude en la cantidad
104
BOONE, Marc – Geld en Macht. De Gentse stadsfinanciën en de Bourgondische staatsvorming (13841453), 1990, cité par DERVILLE, Alain, dans son compte-rendu – Revue du Nord (1990), pp. 658-660.
105
ORTÍ GOST, Père – “Les imposicions municipales catalanes au XIVe siècle”. In MENJOT, Denis;
SÁNCHEZ MARTÍNEZ, Manuel (dirs.) – La fiscalité des villes au Moyen Age (Occident méditerranéen). 2: Les
systèmes fiscaux. Toulouse: Privat, 1999, pp. 399-422.
106
VERDÉS PIJUAN, Père – “Las imposicions a Cervera durant la segona meitat del s.XIV”. In Col.loqui
Corona, Municips i Fiscalitat a la Baixa Edat Mitjana. Lleida: Institut d’Estudis Ilerdencs, 1997, pp. 383-422.
107
MENJOT, Denis – Murcia, ciudad fronteriza…, pp. 725-732; VEAS ARTESEROS, María del Carmen
– Fiscalidad concejil en la Murcia de fines del Medievo (1423-1482). Murcia: Universidad de Murcia, 1991.
108
GARCÍA MARSILLA, Juan Vicente – “La sisa de la carn’. Ganadería, abastecimiento cárnico y
fiscalidad en los municipios bajomedievales”. In VALLEJO POUSADA, Rafael (coord.) – Los tributos de la
tierra. Fiscalidad y agricultura en España (siglos XII-XX). Valencia: Publicaciones de la Universitat de València,
2008, pp. 81-102.
109
MOLHO, Anthony – “Tre città-stato e i loro debiti pubblici. Questi e ipotesi sulla storia di Firenze,
Genova, Venezia”, cité par BOUCHERON Patrick – “Les enjeux de la fiscalité directe dans les communes
italiennes (XIIIe-XVe siècle)”. In MENJOT, Denis; SÁNCHEZ MARTÍNEZ, Manuel (dirs.) – La fiscalité des
villes au Moyen Age (Occident méditerranéen). 2: Les systèmes fiscaux…, p. 166.
DEFENDER LA CIUDAD CONTR A EL HAMBR E [...]
177
y la calidad de los productos y, al mismo tiempo, proteger a los productores y
comerciantes urbanos de la competencia. Para lograr sus objetivos, la ciudad recurría
principalmente a medidas legislativas, las intervenciones más activas y directas eran
excepcionales, excepto en las grandes ciudades y especialmente en tiempos de crisis.
Las políticas anonarias comportían, pues, la elaboración de un sistema global
de regulación económica, que ponía de manifiesto una capacidad de proyección y
de gestión de las elites urbanas, pero también la coherencia de su ambición política,
la cual no dejaba de presentar conflictos de intereses. Los príncipes y las elites se
mostraban bastante favorables a la libre circulación de las mercancías, a las que
aplicaban sus impuestos, fuentes de ingresos importantes; objetivamente, incluso les
interesaba que los precios de los alimentos se mantengan elevados. Pero mantener
elevados los precios representaba un riesgo social y político de desordenes y de
revueltas. En las ciudades, entre la tentación especulativa y el temor de los motines,
las élites dirigentes urbanas pueden estar divididas. La pregunta para ellos era hasta
donde debían subir los precios sin poner en peligro la paz social, es decir que “la
actitud de las élites locales se movía en este caso en una encrucijada situada entre la
lógica del beneficio y la de la reproducción”110 y que sus actuaciones estaban sometidas
a tensión dado que entraban en juego importantes intereses contradictorios.
¿Han hecho los gobiernos urbanos un trabajo eficaz en la defensa de sus
conciudadanos contra el hambre? Pregunta difícil pero esencial para concluir y
cuya respuesta difiere según la ciudad y el período asi como las medidas adoptadas
y su aplicación. Lo cierto es que, mientras que algunas ciudades sobrepobladas
a finales de la edad media, sufrieron crisis frumentarias y hambrunas, a veces
profundas, “ni siquiera en el peor momento de la escasez, nadie muere de hambre”
en Florencia, gracias, según Charles de La Roncière a la organización de una amplia
red de suministro y a las normas que regulaban la distribución, aunque no todas eran
perfectas111. Para Franz Irsigler, Colonia pudo superar todas las crisis de suministro
sin muertes por hambre gracias a las cantidades de grano que las instituciones
religiosas pusieron a la venta en el mercado112. En Toledo, Abad Escribano concluye
que la actuación del concejo fue ineficaz a la hora de regular el mercado, propiciando
o agravando situaciones de crisis.
110
OLIVA HERRER, Hipólito Rafael – “La política de la carestía en Castilla en el siglo XV…”, pp.
134-135.
111
112
La RONCIERE, Charles-Marie de – “L’approvisionnement des villes italiennes…”, pp. 47-48.
IRSIGLER, Franz – “L’approvisionnement des villes de l’Allemagne occidentale…”, p.122.
178
Uma Pequena Cidade Medieval e o seu
Pão na Baixa Idade Média:
O Caso de Loulé
Iria Gonçalves1
Resumo
O pão foi, durante toda a Idade Mádia – e não só – o alimento por excelência,
aquele que ninguém podia dispensar, aquele sem o qual todos os outros
perdiam, por assim dizer, muito do seu interesse e do seu valor e até, talvez,
do seu sabor. Pretende-se aqui explorar a relação de uma pequena cidade
com o seu pão através do caso de Loulé. Explorada a capacidade produtiva da
região, o artigo concentrar-se-á nas estratégias de abastecimento em tempos de
normalidade e de escassez e nos caminhos que o cereal percorria até chegar à
vila, sem esquecer os processos de preparação e confeção do pão.
Palavras-chave
Alimentação; Abastecimento; Cereal; Cidades; Loulé; Pão.
A small medieval town and its bread in the Late Middle Ages: the
case of Loulé
Abstract
Bread was, throughout the Middle Ages – and not only – the food par excellence,
the one that no one could live without, the one without whom all the others
lost much of their interest and value and even, perhaps, its flavor. The goal
1
IEM, NOVA FCSH.
180
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
here is to explore the relationship of a small town with its bread through the
case of Loulé. Exploited the productive capacity of the region, we focus on the
strategies of provisioning in normal and scarcity times and on the paths that
the cereal made until reaching the town, without forgetting preparation and
confection of bread processes.
Keywords
Food; Supply; Grain; Towns; Loulé; Bread.
1. O Primado do Pão.
1.1 O pão, alimento imprescindível.
O pão foi, durante toda a Idade Média – e não só – o alimento por excelência, aquele
que ninguém podia dispensar2, aquele sem o qual todos os outros perdiam, por
assim dizer, muito do seu interesse e do seu valor e até, talvez, do seu sabor. Mesmo
a carne, o alimento conotado com os fortes e os poderosos e a quem ele acrescia
força e poder e, por isso mesmo, também altamente valorizado3, perdia muito do seu
apreço quando, por qualquer motivo, precisava ser ingerido sem pão. E era assim em
todos os estratos sociais, desde os mais proeminentes4. A diferença encontrava-se
apenas no facto de que entre as camadas populacionais de maior poder económico,
os víveres outros eram mais ricos e abundantes.
Nesta Idade Média que terminava, os europeus tinham, desde há muito, firmado
o seu sistema alimentar sobre o pão, num hábito cultural longamente enraizado e
que tradições diferentes, conjugando-se e potenciando-se reciprocamente, tinham
tornado de uma enorme solidez. Por um lado o consumo humano dos cereais –
2
Muitos têm sido os investigadores a pronunciarem-se sobre este assunto, entre os quais eu própria.
Ao longo das páginas que se seguem irei indicando vários dos trabalhos produzidos no âmbito da Europa
meridional em que nos integramos.
3
Pode ver-se, por exemplo, MONTANARI, Massimo − Alimentazione e cultura nel Medioevo. Roma,
Bari: Laterza, 1988, sobretudo pp. 35 e seg.
4
Pode ver-se, como exemplo que se me afigura muito significativo, protagonizado por Nuno Álvares
Pereira, ocorrido no contexto das lutas travadas com os castelhanos e em que o condestável se viu na inusitada
contingência de fazer uma refeição de carne sem pão (LOPES, Fernão − Crónica de D. João I, pref. por António
Sérgio, ed. preparada por M. Lopes de Almeida e A. de Magalhães Basto. Vol. II. Porto: Civilização, s. d., cap.
XXIII, pp. 52-53) e os comentários que ao caso dedicou CATARINO, Maria Manuela − “A carne e o peixe nos
recursos alimentares das populações do Baixo Tejo”. In ALARCÃO, Miguel; KRUS, Luís; MIRANDA, Maria
Adelaide (coords.) − Animalia. Presença e representações. Lisboa: Colibri, 2002, p. 49. Como exemplo em
tudo semelhante a este, ocorrido desta vez fora de Portugal, na Calábria, pode ver-se o episódio referido por
MONTANARI, Massimo − “La cerealicoltura nell’Italia del Sud: vocazione produttive e culturali”. In Uomini,
terre, boschi nell’ Occidente medievale. Catânia: CUECM, 1992, p. 156.
UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA
181
mesmo dos cereais já domesticados e cultivados – perde-se na lonjura dos tempos5 e
as suas técnicas de manipulação foram-se aperfeiçoando e os produtos finais dessas
técnicas foram-se diversificando desde antiquíssimas eras. Tanto que chegando aos
tempos áureos da Grécia antiga eram já muitas as variedades de pão que se sabiam
confeccionar6 e que Roma herdou e continuou aperfeiçoando e diversificando7. E
elegeu o pão como um dos mais sólidos pilares do seu sistema alimentar, que, aliás,
dava a preferência aos produtos de origem vegetal.
Por sua vez no Oriente próximo, o Cristianismo nascente integrava-se também
numa cultura que para lá da romana, que ao tempo, aí exercia o domínio político, se
centrava igualmente, em termos alimentares, no pão. E assim tinha que ser, já desde
bem vetustas eras, uma vez que o pão podia representar, para aquele povo, todo
e qualquer alimento. Para bem entendermos isso basta lembrarmo-nos de que na
oração que Jesus ensinou aos seus discípulos e em que se pedia ao Pai que não faltasse
o alimento, todo esse alimento era representado apenas pelo pão: “o pão nosso de
cada dia nos dai hoje”8. Para mais é bem sabido como, desde os primeiros tempos até
hoje, o Cristianismo tem firmado sobre os principais produtos mediterrânicos: o pão
– embora este sob a forma da fina película que constitui a hóstia distribuída pelos fiéis
no decorrer das celebrações eucarísticas – mas também o vinho e mesmo o azeite, o
essencial dos seus instrumentos cultuais, carregados de enorme simbolismo9.
Não admira que sobre estes alimentos se tivesse construído o modelo cultural
de base do sistema alimentar de uma Europa romanizada e cristianizada10. Não
5
Sobre este assunto é de grande interesse o estudo de GUILLAUME, Jean − Ils ont domestiqué plantes
et animaux: prélude à la civilisation. [S.l.]: Éditions Quae, 2010, pp. 109 e seg. Os cereais começaram desde
muito cedo a ser cultivados, manipulados, consumidos, mas primeiramente em caldos e papas, sendo que
nestas preparações são já bem aproveitados pelo organismo humano (PERES, Emílio − “Pão, insubstituível
mitigador da fome”. In MADUREIRA, João (coord.) − O pão, o comer e o saber comer para melhor viver.
Terena: Confraria do Pão, 2004, p. 62) o que os tornou bem apreciados em todos os lugares onde o seu cultivo
se foi incrementando.
6
SARAMAGO, Alfredo − “O pão na cultura mediterrânica”. In A terra, o homem e o pão. Actas do I
Congresso português de cultura mediterrânea. Terena: Confraria do Pão, 2002, pp. 256-257.
7
CASTRO, Inês de Ornellas e − “Introdução: evolução do paladar romano”. In O livro de cozinha de
Apício: um breviário do gosto imperial romano. Sintra: Colares, 1997, p. 25.
8
Já numa outra ocasião, com maior desenvolvimento, abordei este assunto: “Panem nostrum
quotidianum da nobis hodie: sobre uma escassez cerealífera nas terras de Alcobaça (1438-1440)”, no prelo.
9
Veja-se sobretudo MONTANARI, Massimo − El hambre y la abundancia. Historia y cultura de la
alimentación en Europa, trad. de Juan VIVANCO. Barcelona: Critica, 1993, p. 26.
10
SIMEÓN RIERA, J. Daniel − “El pa i el blat en l’imaginari col.lectiu occidental”. In El cicle dels cereals.
Del gra al pa. Valência: Generalitat Valenciana, 1989, pp. 33-37; COMET, Georges − Le paysan et son outil.
Essai d’histoire téchnique des céréales (France, VIIIe-XVe siècle). Roma: École française de Rome, 1992, p. 215;
MONTANARI, Massimo − “El papel del Mediterráneo en la definición de los modelos alimentarios de la Edad
Media: ¿espacio cultural o mar fronterizo?”. In XAVIER MEDINA, F. (ed.) − La alímentación mediterránea.
Historia, cultura, nutrición. Barcelona: Icaria, 1996, pp. 75-76; GONÇALVES, Iria − “Alimentação medieval:
conceitos, recursos, práticas”. Actas dos VI Cursos internacionais de Verão de Cascais (5 a 10 de Julho de 1999).
Vol. 2: A alimentação. Cascais: Câmara Municipal de Cascais, 2000, pp. 30-31; GONÇALVES, Iria − À mesa
nas terras de Alcobaça em finais da Idade Média. Alcobaça: DGPC, Cooperativa Agrícola de Alcobaça, IEM,
2017, pp. 102-103.
182
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
admira que os europeus tenham interiorizado desde cedo que comer pão e beber
vinho “consommer ceux deux espèces (o pão e o vinho) que les rites majeurs du
Christianisme proposait comme le symbole meme de la nourriture humaine”, como
já há tempo sublinhou Georges Duby, fosse um notável símbolo de promoção social11.
Por tudo isto o pão ocupou o mais destacado lugar na alimentação dos europeus,
não só durante a Idade Média, mas também ao longo dos tempos subsequentes. Com
efeito, durante vários séculos todos os demais víveres se consideravam apenas como
“acompanhantes” do pão, o alimento principal12. “Acompanhantes” estes que, ao
menos entre as famílias mais desmunidas e nomeadamente entre os camponeses,
eram bem parcimoniosamente consumidos. Até próximo dos nossos dias13.
Acresce a tudo isto que o pão é um alimento adequado às necessidades do
organismo humano14. Tudo se conjugava no sentido da sua valorização.
1.2 O Mediterrâneo e a cerealicultura.
Estando o pão tão fundamente enraizado na cultura europeia e porque os hábitos
alimentares, uma vez estabelecidos e arreigados em qualquer sociedade se impõem
de forma incisiva, independentemente de o espaço em que essa sociedade se instalou
ser apto, ou não, a produzir os habituais víveres, é preciso envidar todos os esforços
no sentido de os obter15. Assim acontecia com diversos produtos em toda a zona
mediterrânica16; assim acontecia, de uma maneira especial, com os cereais.
De qualquer modo, cultivar cereais na Idade Média, e de uma maneira especial
o trigo, o mais exigente de todos eles, não era tarefa fácil, fosse onde fosse que a seara
se tivesse implantado. Mercê de circunstâncias várias os rendimentos da semente
eram baixos – uma produção na ordem das quatro, cinco sementes era considerada
normal, o que desde há muito numerosos investigadores têm verificado um pouco
11
DUBY, Georges − Guerriers et paysans: VIIe-XIIe siècle. Premier essor de l’économie européenne. Paris:
Gallimard, 1973, p. 27.
12
Todos os demais alimentos eram, na expressão latina, por toda a parte usada, o “companagium” do
pão. Pode ver-se, por todos, STOUFF, Louis − Ravitaillement et alimentation en Provence au XIVe et XVe siècles.
Paris, La Haye: Mouton et Cie, 1970, pp. 219-274.
13
Pode ver-se, por exemplo, GONÇALVES, Iria − À mesa nas terras de Alcobaça…, pp. 466-476.
14
PERES, Emílio − “O pão nosso de cada dia”. In MADUREIRA, João (coord.) − O pão, o comer e o
saber comer para melhor viver. Terena: Confraria do Pão 2004, pp. 50-52.
15
A propósito desta atitude, desenvolvida por qualquer sociedade humana, são incisivas, as palavras
que Georges Duby dedica ao assunto: “elle (a sociedade) est prisonnière d’habitudes que se transmettent de
génération en génération et qui se laissent difficilement modifier; elle s’acharne donc à vaincre les résistences
du sol et du climat, pour se procurer à toutes forces les aliments que lui imposent de consommer ses coutoumes
et ses rites” (DUBY, Georges − Guerriers et paysans…, p. 26).
16
Fernand BRAUDEL (“La terre”. In BRAUDEL, Fernand (dir.) – La Méditerranée: l’espace et la terre.
Paris: Flammarion, 1985, p. 26) diz-nos que o clima mediterrânico é estranho e hostil às vidas das plantas.
UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA
183
por toda a Europa mediterrânea17 e assim também em Portugal18. Isso obrigava
os camponeses a multiplicar as suas searas por onde quer que uma nesga de terra
pudesse receber a semente. Já para a Idade Média se podia dizer, como Orlando
Ribeiro deixou expresso para o Portugal contemporâneo, que o cereal acompanhava
por toda a parte a instalação humana19.
E se assim era na generalidade das terras do Sul da Europa, e se assim era,
também, em qualquer região de Portugal, assim tinha que ser de um lado ao outro do
Algarve, a mais meridional e mediterrânica das terras portuguesas20. Também aqui,
como em todos os espaços até onde o grande mar interior espalha a sua influência
climática, os solos são pobres, delgados, a terra seca. Com uma pluviosidade que
não ultrapassa, em anos normais, o nível hídrico mínimo do trigo21, mas que sofre
muitas e acentuadas quebras, não podia, ainda só por tal circunstância, ser esta
uma terra propícia à produção do cereal. Mais ainda, a chuva que rega os campos
mediterrâneos – que rega os campos algarvios – concentra-se no Inverno, quando
as plantas param, em obediência ao seu repouso anual, ausentando-se logo que
elas retomam a actividade vegetativa. Assim, só aquelas que desenvolvem raízes
profundas, a poderem procurar a humidade necessária ao seu desenvolvimento num
longínquo subsolo – apenas algumas árvores e arbustos – vegetam bem em solos
mediterrânicos22. O que não é de todo o caso dos cereais. Vale a rega artificial para
17
Podem ver-se como exemplo, entre muitos outros trabalhos: COMET, Georges − Le paysan et son
Outil…, pp. 311-315; MONTANARI, Massimo − “Rese cerealicole e rapporti di produzione”. In Campagne
medievali: strutture produttive, rapporti di lavoro, sistemi alimentari. Turim: G. Einaudi, 1984, pp. 5571; NEVEUX, Hugues − “Bonnes et mauvaises récoltes du XIVe au XIXe siècle. Jalons pour une enquête
sistématique”. Revue d’histoire économique et sociale 53 (1975), pp. 177-192; CHERUBINI, Giovanni − “Risorse,
paesaggio ed utilizzazione agricola del territorio della Toscana sud-occidentale nei seccoli XIV-XV”. In Scritti
toscani: l’urbanesimo medievale e la mezzadria. Florença: Salimbeni, 1991, p. 231.
18
Também em Portugal há já várias décadas que estes assuntos têm despertado a atenção dos
medievalistas. Podem ver-se: MARQUES, A. H. de Oliveira − Introdução à história da agricultura em Portugal.
A questão cerealífera durante a Idade Média. 3.ª ed., Lisboa: Edições Cosmos, 1978, pp.48-50; COELHO, Maria
Helena da Cruz − O Baixo Mondego nos finais da Idade Média (Estudo de história rural). Vol. I. Coimbra:
Universidade de Coimbra, 1983, Tese de Doutoramento, pp. 142-143; GONÇALVES, Iria − O património do
mosteiro de Alcobaça nos séculos XIV e XV. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1989, pp. 340-344; PINA,
Isabel Castro − A encosta ocidental da Serra da Estrela um espaço rural na Idade Média. Cascais: Patrimonia,
1998, p. 29; CATARINO, Maria Manuela − Na margem direita do Baixo Tejo: paisagem rural e recursos
alimentares (sécs. XIV-XV), Cascais: Patrimonia, 2000, pp. 76-77; OLIVEIRA, José Augusto da Cunha Freitas
de − Na península de Setúbal, em finais da Idade Média: organização do espaço, aproveitamento dos recursos e
exercício do poder. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pp. 227-228.
19
RIBEIRO, Orlando − Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico: esboço de relações geográficas. 2.ª
ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1963, p. 68; RIBEIRO, Orlando – “A vida rural”. In RIBEIRO, Orlando;
LAUTENSACH, Hermann (dir.) – Geografia de Portugal. Org., coment. e actualização por Suzanne DAVEAU.
Vol. IV: A vida económica e social. Lisboa: Edições Sá da Costa, 1991, p. 998.
20
O que foi sublinhado, entre outros, por BIROT, Pierre − Portugal: estudo de geografia regional. 2ª ed.,
Lisboa: Livros Horizonte, 2004, p. 121.
21
RIERA I MELIS, Antoni − “Els pròdroms de les crisis agràries de la Baixa Edat Mitjana a la Corona
d’Aragó. 1250-1300”. In Miscel.lània en homenatje al P. Agustí Altisent. Tarragona: Diputació de Tarragona,
1991, p. 36.
22
Por isso a fruta foi, desde sempre, a grande riqueza do Algarve e sobretudo os figos, muito nutritivos
e podendo, após secagem, ser utilizados ao longo do ano, foram, quantas vezes, o alimento que permitiu a
184
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
colmatar esta grave deficiência, mas a Idade Média apenas a praticava nas culturas
mimosas que à época se produziam na horta, bem perto da residência do camponês.
Estava muito longe de chegar à seara.
Em todo o lado, ao menos na Europa meridional, os camponeses afadigavam-se
na cultura dos cereais, em quaisquer terras, aptas ou não para os produzir. Era preciso
alimentar o maior número possível de bocas – todas as existentes, de preferência –
era preciso, portanto, produzir o indispensável grão. E se assim era em glebas mais
promissoras do que estas do extremo sul português, assim tinha que ser em todo o
Algarve. Assim era em Loulé, onde o trigo aparecia cultivado sempre que os solos o
permitiam, sobretudo nos terrenos bordejantes das encostas do mar, nas margens das
ribeiras, nos terrenos aluviais do Barrocal, à sombra espessa dos pomares23. Foi esta
uma característica que se manteve até aos nossos dias, com o cereal, e naturalmente
outros produtos, a serem cultivados nos mesmos terrenos dos figueirais e restante
arvoredo24.
É certo que, tanto quanto sei, não existe documentação, para a época que aqui
está em análise, capaz de nos informar acerca da composição das searas louletanas
e, por extensão, algarvias. Mas é lícito pensar na predominância do trigo, não só
porque assim acontecia em todo o Sul do País25, mas sobretudo porque, relativamente
a época um pouco posterior, aí, sim, já existe informação precisa sobre o assunto. E
essa informação, relativa à aneza de 1539 informa-nos de que os dízimos cerealíferos
cobrados em Loulé, a serem correctamente recebidos, mostram que as searas aqui
implantadas produziram 75,8% de trigo, 21,4% de cevada e apenas 2,8% de centeio26.
sobrevivência das populações mais desabonadas. Até épocas assaz próximas de nós.
23
MAGALHÃES, Joaquim Antero Romero de − Para o estudo do Algarve económico durante o século
XVI. Lisboa: Edições Cosmos, 1970; MAGALHÃES, Joaquim Antero Romero de − “Gado e paisagem: o
Algarve nos séculos XV a XVIII”. In Livro de homenagem a Orlando Ribeiro. Vol. 2. Lisboa: Centro de Estudos
Geográficos, 1988, p. 84; BOTÃO, Maria de Fátima − Silves, a capital de um reino medievo. Silves: Câmara
Municipal de Silves, 1992, pp. 65-66; BOTÃO, Maria de Fátima − A construção de uma identidade urbana no
Algarve medieval: o caso de Loulé. Lisboa: Edições Caleidoscópio, 2009, p. 223; ALMEIDA, Cristóvão de − Da
vila ao termo: o território de Loulé na Baixa Idade Média. Loulé: Arquivo Municipal de Loulé, 2017, p. 65.
24
FONSECA, Teresa − O município de Loulé no final da Época Moderna: economia, sociedade e
administração. Loulé: Arquivo Municipal de Loulé, 2017, p. 30; FEIO, Mariano – Le Bas Alentejo et l’Algarve
(Livret-guide de l’escursion en) Congrès international de géographie, Lisbonne, 1949. Lisboa: [s.n.], 1949, p.
110; RIBEIRO, Orlando − “A vida rural…”, p. 1015; LAUTENSACH, Hermann − “A utilização do solo”. In
RIBEIRO, Orlando; LAUTENSACH, Hermann (dir.) – Geografia de Portugal. Org., coment. e actualização por
Suzanne DAVEAU. Vol. IV, A vida económica e social. Lisboa: Edições Sá da Costa, 1991, pp. 948, 979.
25
Vejam-se, como exemplo: FERNANDES, Hermenegildo Nuno Goinhas − Organização do espaço e
sistema social no Alentejo medievo: o caso de Beja. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1991, Dissertação de
Mestrado, p. 48; CONDE, Manuel Sílvio Alves − Uma paisagem humanizada: o Médio Tejo nos finais da Idade
Média. Vol. I. Cascais: Patrimonia, 2000, sobretudo p. 195; CATARINO, Maria Manuela − Na margem direita
do Baixo Tejo…, p. 70; OLIVEIRA, José Augusto da Cunha Freitas de − Na península de Setúbal, em finais da
Idade Média…, pp. 221-223; OLIVEIRA, José Augusto da Cunha Freitas de − Castelo de Vide na Idade Média.
Lisboa: Colibri, 2011, p. 70 e nota 97; GONÇALVES, Iria − À mesa nas terras de Alcobaça…, pp. 113-122.
26
MAGALHÃES, Joaquim Antero Romero de − Para o estudo do Algarve económico…, p. 65. As
percentagens foram obtidas por mim, a partir dos valores ali apresentados pelo autor citado em moios e
alqueires, e considerando o moio de sessenta e quatro alqueires.
UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA
185
Isto é, o trigo, alimento humano, em enorme preponderância; a cevada, de preferência
alimento animal, sobretudo de cavalos e muares, e, neste sentido, também um cultivo
bastante elitista, com uma percentagem ainda considerável, não muito longe do quarto
da safra; o centeio, o outro cereal de Inverno, em princípio destinado à alimentação
humana, confinado, por certo, a pequenas searas marginais, em solos onde, de todo,
o trigo não medraria, com uma bem magra produção na colheita global; o milho
– miúdo ou painço, porque o recém-chegado maís não se encontrava ainda muito
divulgado – o quarto cereal que geralmente se cultivava entre nós, de todo ausente.
Talvez porque, precisando de mais humidade que os restantes, seria mais difícil de
agricultar numa região onde o sequeiro era a regra. Dada a persistência com que, de
uma maneira geral, os camponeses sempre tenderam a reproduzir as suas práticas
de geração em geração, podemos considerar que já na Idade Média, e sobretudo
nos seus tempos finais, o trigo era grandemente maioritário nas searas louletanas,
acompanhado apenas, com alguma expressividade, pela cevada.
Isto é, em solos e clima pouco propícios, era o trigo, o cereal de todos o mais
exigente, que os louletanos e por certo os demais algarvios, teimavam em cultivar.
Com fracos resultados, sem dúvida27. Mas era esse o hábito já longamente implantado
na região; era com o trigo que se fabricava o pão que todos queriam consumir, porque
também já longamente acostumados a que assim fosse. Havia que procurá-lo, não
importando os trabalhos, as canseiras, os sacrifícios que a tarefa exigia28.
2. O abastecimento trigueiro.
2.1 Dentro da normalidade possível.
Para todos os produtos de primeira necessidade e nomeadamente para os produtos
alimentares, as cidades e vilas procuravam, em primeiro lugar, os recursos do
seu termo. Assim a vila de Loulé contava abastecer-se de trigo, antes de recorrer
a outros lugares, mais próximos ou mais longínquos, com o cereal produzido nas
terras sob a sua jurisdição. Todavia, em vista do que atrás ficou dito, as colheitas
daí resultantes deixavam muito a desejar e apenas bastariam, se bastassem, para os
primeiros meses após as ceifas. Aliás, todas as vilas algarvias se queixavam das suas
magras produções29, sendo que mesmo em anos de colheita normal era necessário, e
27
Tanto quanto sei não se conhecem índices de produtividade do trigo, para o Algarve e para a época
aqui em análise, mas a avaliar pelas condições em que ele era agricultado nestas terras e pela generalizada
baixa produtividade a que já atrás me referi, mesmo tratando-se de solos e climas mais adaptados a este cereal,
os resultados algarvios não deviam ser muito prometedores.
28
Veja-se o que atrás ficou dito a este respeito.
29
Para citar apenas alguns exemplos poderei lembrar que Silves se queixa de que a terra é muito
minguada de pão (Cortes portuguesas. Reinado de D. Afonso V (Cortes de 1439). Organização e revisão geral
por João José Alves Dias e Pedro Pinto. Lisboa: Centro de Estudos Históricos, 2016, p. 418).
186
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
desde cedo, importar grão. Sendo, como já atrás ficou dito, poucos os solos capazes
de receber a semente e fazê-la produzir bem, nomeadamente a semente trigueira30,
outra coisa não era de esperar. Maria de Fátima Botão chega mesmo a dizer que o
deficit cerealífero era uma das marcas de identidade algarvia31.
Com condições adversas ou nem tanto assim, os algarvios, e concretamente os
louletanos, não descuravam as suas searas. Naturalmente os camponeses não podiam
fazê-lo porque estava em causa a sua própria sobrevivência e também porque era isso
que todos esperavam deles, e não lhes eram permitidas omissões. Aliás, como tantas
vezes e em tantos outros lugares aconteceu, também no Algarve podia ser atribuída
a falta de pão aos agricultores que supostamente abandonavam os cultivos para se
“lançarem a regatia”32. Mas também os proprietários abonados não podiam descurar
as suas lavras, fossem elas trabalhadas por quem fossem, e pelo menos à colheita e à
recolha dos produtos eles queriam estar presentes. Com efeito, os mesmos dirigentes
de Loulé queriam férias da vereação concelhia para com maior disponibilidade se
poderem dedicar a estas tarefas, supervisionando e acautelando os seus interesses.
O que não era uma singularidade desta terra. E se em 1394 ainda ficou dito que as
necessitavam até S. Miguel de Setembro, isto é, até as “novidades” serem apanhadas33,
o que englobava um vasto leque de produções agrícolas, incluindo, em primeiro lugar
porque a mais importante, a apanha e secagem dos seus preciosos figos, a riqueza
maior da terra, em 1408 elas seriam de trinta dias a partir de 8 de Junho, para a ceifa
do pão34.
Entre estas famílias, as mais abonadas da terra, algumas havia que semeavam
searas ao menos relativamente consideráveis. Em 1455, num capítulo apresentado
por Loulé às cortes nesse ano reunidas em Lisboa, pedia-se ao rei que não fossem
constrangidos ao serviço militar os lavradores que semeassem anualmente pelo
Faro, por seu lado, denuncia a mesma situação (Cortes portuguesas. Reinado de D. Manuel I (Cortes
de 1498). Organização e revisão geral por João José Alves DIAS. Lisboa: Centro de Estudos Históricos, 2002,
p. 405); Lagos expõe que a vila não se mantém, a não ser com o pão que vem de fora (CORTES portuguesas.
Reinado de D. Manuel I (Cortes de 1498)…, p. 419) e reconhece que tem muito pouco trigo de sua colheita
(Descobrimentos portugueses. Documentos para a sua história, public. e pref. por João Martins da Silva Marques.
Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1988, vol. III (1461-1500), doc. 243, p. 363); Tavira explica que sempre tem
falta de cereais (BARROS, Henrique da Gama – Historia da administração publica em Portugal nos seculos XII
a XV. 2ª ed., org. por Torquato de Sousa SOARES. Vol. IX. Lisboa: Sá da Costa, 1950, p. 74); Loulé, por sua vez
diz-se “falida” de pão, carnes, azeites e outros mantimentos, os quais não pode haver salvo se os trouxer de
fora, porque está em comarca em que não o há de seu (IRIA, Alberto – O Algarve e os Descobrimentos. Vol. II
de Descobrimentos portugueses, t. 1, p. 309). Panorama assaz generalizado e muitas vezes repetido.
30
Veja-se o que atrás ficou dito em relação a toda a zona mediterrânica.
31
BOTÃO, Maria de Fátima − “Os eixos estruturantes de uma história”. In SERRA, Manuel Pedro
(coord.) − O foral de Loulé 1504 – D. Manuel. Loulé: Câmara Municipal de Loulé, 2004, p. 26.
32
BARROS, Henrique da Gama – Historia da administração publica em Portugal…, vol. IX, p. 82.
33
Actas de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV, sep. de Al’-Ulyā, n.º 7, Loulé, 1998-2000, p. 59.
34
Ib., p. 197. O que mostra as searas algarvias mais temporãs do que, de uma maneira geral, nas terras
mais a Norte, amadurecidas, principalmente, por todo o mês de Julho.
UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA
187
menos um moio de pão e criassem os seus gados35, capítulo igualmente apresentado
por Tavira36. Sendo este o mínimo exigido para poder ser englobado no pedido de
isenção, é certo que várias famílias semeavam bastante mais.
Naturalmente não podemos saber se seriam muitas ou poucas essas famílias,
nem qual poderia ser o limite das suas sementeiras. No entanto, se considerarmos
os níveis de riqueza dos privilegiados de Loulé – aliás, aqueles que com mais
probabilidade detinham as maiores fortunas – durante a década de sessenta do
século XV, verificamos que as famílias avaliadas em vinte mil reais e daí para cima –
sendo que o limite máximo de avaliação se fixara nos trinta mil reais – constituíam
a maioria desses privilegiados, englobando 60% das famílias37, no total de oitenta e
uma38. Mas outras haveria ainda com algum poder económico entre a população
não privilegiada. Talvez seja lícito pensar que existiria aí uma elite, quiçá com algum
peso demográfico, capaz de se abastecer a si própria e colocar ainda algum grão no
mercado, ao menos em anos de colheita normal39.
É sabido que as fortunas louletanas, como de uma maneira geral as algarvias,
se faziam sobretudo à base dos frutos secos e dos vinhos, como eles próprios
reconheciam40 e tantos investigadores já confirmaram. Mas na Idade Média não
havia proprietário de terras, não havia foreiro trabalhando em solo alheio, que
não reservasse a maior parte dos seus terrenos agricultados para entregar à seara,
rendesse ela muito ou pouco. E fossem esses terrenos exclusivamente ocupados pelo
cereal, ou vegetasse este em consociação com outras plantas.
Descobrimentos portugueses…, supl. ao vol. I, doc. 1133, p. 562.
Descobrimentos portugueses…, supl. ao vol. I, doc. 1167, p. 573.
37
BOTÃO, Maria de Fátima − “A contribuição das fortunas louletanas nas despesas públicas do
Portugal medievo”. Al’-Ulyā 8 (2001-2002), gráfico da p. 133.
38
BOTÃO, Maria de Fátima − “A contribuição das fortunas louletanas …”, pp. 140-146. Pode ver-se
também, dentro desta perspectiva, para uma época um pouco posterior, o trabalho de DIAS, João José Alves
− “Estratificação económico-demográfica do concelho de Loulé em 1505”. In Ensaios de história moderna.
Lisboa: Editorial Presença, 1988, pp. 103-112.
39
Monserrat RICHOU J LLIMONA (“Una dècada d’abastament frumentari a Barcelona: la contribució
de la iniciativa privada en els anys setenta del segle XIV”. In RIERA I MELIS, Antoni (coord.) − Crisis
frumentaries, iniciatives privades i politiques publiques de proveïment a les ciutats catalanes durant la Baixa
Edat Mitjana. Barcelona: Institut d’Estudis Catalans, 2013, p. 129) diz mesmo que alguns senhores nobres e
eclesiásticos e até alguns mais abonados de entre a gente comum colocavam no mercado barcelonês mais trigo
do que se tem pensado. Pode ver-se também sobre o assunto RIERA I MELIS, Antoni − ““Tener siempre bien
aprovisionada la población”: los cereales y el pan en las ciudades catalanas durante la Baja Edad Media”. In
ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz; SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús Ángel (eds.) − Alimentar la ciudad en
la Edad Media, Nájera. Encuentros internacionales del Medievo 2008. Dal 22 al 25 de julio de 2008. Logronho:
Instituto de Estudios Riojanos, 2009, p. 31.
40
Basta lembrar os incisivos dizeres de Tavira às cortes de Lisboa de 1446, onde os representantes da
vila deixaram bem claro que “esta terra he toda fundada sobre fruita e vinhos que as jentes em ella nam tem
outra cousa per que uiuam” (Cortes portuguesas. Reinado de D. Afonso V (Cortes de 1441-1447). Organização e
revisão geral por João José Alves Dias e Pedro Pinto. Lisboa: Centro de Estudos Históricos, 2017, p. 479). Este
documento foi já várias vezes publicado e referido, como em Descobrimentos portugueses…, vol. I, doc. 354,
pp. 451-452; IRIA, Alberto − O Algarve nas cortes medievais portuguesas do século XV (Subsídios para a sua
história). Vol. I – 1404-1449. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1990, pp. 231-235.
35
36
188
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Aliás era esse grão, o que os campos vizinhos à vila proporcionavam, o
primeiro a ser consumido logo após as ceifas e aquele que em tantos lares de famílias
desabonadas vinham matar fomes antigas, aquelas que até perto dos nossos dias, em
alguns pontos do País, eram conhecidas por “fomes de Maio” e ainda assustavam
muitos.
Este grão precisava ser bem acondicionado para durar em boas condições o
máximo de tempo possível. Felizmente o Algarve apresentava boas condições para
isso. Um clima seco, algumas rochas macias, capazes de nelas se escavarem silos de
paredes bem alisadas, impermeabilizadas por um saber herdado da dilatada presença
islâmica no local, a permitirem a conservação dos cereais durante largo tempo sem
deterioração41. Nem sempre, porém, essas condições se reuniam e não eram poucos
os locais, mesmo nestas terras, onde as estruturas de armazenamento deixavam
muito a desejar42.
Todavia, o cereal produzido no termo era apenas uma pequena aportação,
insignificante para o conjunto da vila e seu alfoz, mas sobretudo para aquela. Na
verdade, neste final da Idade Média, em que as cidades haviam crescido de forma
bem significativa e sobretudo por atracção de populações vindas do exterior, poucas
eram as cidades, com algum peso demográfico capazes de se abastecerem apenas
com os recursos do seu termo. Principalmente nesta Europa mediterrânica em
que nos situamos. A não ser nos casos em que esse termo englobava alguns solos
particularmente ricos, capazes de proporcionarem boas produções. Entre nós
podiam orgulhar-se disso, por exemplo, Santarém e algumas vilas alentejanas, em
especial Beja, Serpa, Mértola. Mas de modo algum isso acontecia no Algarve, vistas
as condições atrás expostas.
É certo que os camponeses do termo levavam, sempre que podiam, os seus
excedentes ao mercado citadino43, onde o trigo tinha colocação garantida e onde os
preços eram mais compensadores do que os possíveis de encontrar nas redondezas
LUZIA, Isabel; PIRES, Alexandra − “Al’-Ulyā, a cidade islâmica”. In Loulé: territórios, memórias,
identidades. Lisboa, Loulé: Museu Nacional de Arqueologia, Museu Municipal de Loulé, Imprensa Nacional
-Casa da Moeda, 2017, p. 470.
42
Para Portugal veja-se sobretudo MARQUES, A. H. de Oliveira − Introdução à história da agricultura
em Portugal…, pp. 118-119. Para outros espaços: WOLFF, Philippe − “L’approvisionnement des villes
françaises au Moyen Âge”. In L’approvisionnement des villes de l’Europe Occidentale au Moyen Âge et aux
Temps Modernes. Auch: Diffusion Comité départemental du tourisme du Gers, 1985, p. 20; IRSIGLER, Franz
− “L’approvisionnement des villes de l’Alemagne Occidentale jusqu’au XVIe siècle”. In L’approvisionnement
des villes de l’Europe Occidentale au Moyen Âge et aux Temps Modernes…. p. 121; COMET, Georges − Le
paysan et son Outil…. pp. 366-367; CRUSELLES, Henrique; CRUSELLES, José M.ª; NARBONA, Rafael −
“El sistema de abastecimiento frumentario de la ciudad de Valencia en el siglo XV: entre la subvención y
el negocio privado”. In La Mediterrània, àrea de convergència de sistemes alimentaris (segles V-XVIII), XIV
Jornades d’estudis històrics locals, Palma, del 29 novembre al 2 de desembre de 1995. Palma de Maiorca: Institut
d’Estudis Barleàrics, 1996, p. 307. E podia continuar a série.
43
Descobrimentos portugueses…, supl. ao vol. I, doc. 7, p. 13; IRIA, Alberto − O Algarve e os
Descobrimentos…, t. I, p. 282.
41
UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA
189
das suas explorações agrícolas. No entanto, quase sempre magros excedentes e
que em regra pouco contavam no abastecimento da urbe. Claro que um ou outro
grande proprietário podia fazer chegar à cidade uma aportação mais significativa
de cereal, mas mesmo assim todas insuficientes no conjunto dos quantitativos que
o abastecimento urbano exigia. E mesmo assim, muitas vezes, esse trigo chegava
compelido pelos órgãos directivos concelhios, no exercício dos seus direitos
jurisdicionais, direitos de que, entre as demais urbes portuguesas e não só, também
Loulé soube usar44.
Todavia, em tempos de colheita normal, o abastecimento frumentário decorria
sem grandes sobressaltos. Os mercadores iam chegando com cereal proveniente
sobretudo de Mértola, Beja, Serpa, Campo de Ourique45, que desses locais se podia,
em regra, exportar para fora da região. Aliás, quando os louletanos, que em 1384,
se preparavam activamente para fazer face a um possível cerco por parte das tropas
castelhanas, uma das primeiras preocupações dos seus dirigentes no respeitante ao
abastecimento da vila, para além de obrigarem a colocar nas fangas, para venda ao
público, todo o cereal disponível na terra e tabelarem os preços a prevenir a inflação,
foi enviarem um homem a Beja e ao Campo de Ourique, pedir saca de trigo. Até
porque, diziam, talvez para impressionarem os poderes superiores, que estando a vila
abastecida se povoaria melhor e “os moradores e naturaiis della estaram mais firmes
esforçados contra seus inmigos”46.
De uma maneira geral o trigo ia chegando por intermédio de mercadores da
terra ou de fora dela, profissionais ou ocasionais, isto é, homens pretendendo realizar
algum negócio potencialmente lucrativo. Esses negócios podiam – e talvez devessem,
a prevenir perdas, sobretudo quando demandavam quantias importantes – ser
contratados, em primeiro lugar, com os poderes locais. Nestes casos os mercadores
comprometiam-se a trazer à vila uma determinada quantidade de trigo sob as
condições acordadas por ambas as partes, acordo que, para maior firmeza, podia
ficar exarado em acta de reunião camarária47.
Tratava-se, nestes casos, de quantidades volumosas, a exigirem investimentos
consideráveis que necessitavam, por vezes, da formação de sociedades de mercadores48,
mas capazes de proporcionarem consideráveis lucros. Porém, em caso de perdas,
elas podiam ser igualmente importantes. Havia que proceder com cautela e garantir
previamente a colocação do cereal a um preço que compensasse o investimento. Este
Actas de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV…, pp. 29-30.
MAGALHÃES, Joaquim Antero Romero de − Para o estudo do Algarve económico…, p. 77;
FERNANDES, Hermenegildo Nuno Goinhas − Organização do espaço e sistema social no Alentejo medievo…,
pp. 47-48, 91-92.
46
Actas de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV…, p. 30.
47
Actas de vereação de Loulé. Século XVI 1522-1527, suplem. de Al’-Ulyā, n.º 14, coord. geral por Luís
Miguel DUARTE, Loulé, 2014, pp. 153-155.
48
Foi o caso do contrato referido na nota anterior.
44
45
190
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
trigo era trazido de mais distantes paragens. Na verdade, mesmo em anos de boas
colheitas, a endémica situação deficitária do Algarve obrigava sempre a uma procura
alargada, a ultrapassar o País.
Nestes finais da Idade Média, tratando-se de trigo forâneo49, o Algarve
abastecia-se, em primeiro lugar, na Andaluzia50, ao menos quando havia paz entre
os dois reinos. Aliás, o próprio monarca dava o exemplo, mantendo aí, a partir da
segunda metade do século XV, um feitor que percorria a região a comprar o trigo
com que se abasteciam as praças de África51, mas de que algum ia ficando no País. As
ilhas eram também um destino a procurar, fossem elas portuguesas ou castelhanas52,
ao menos durante os tempos em que as suas produções foram consideradas muito
boas, embora, como é sabido, aquela generosidade produtiva tivesse decaído assaz
rapidamente.
2.2. Em tempo de escassez cerealífera.
Se não era fácil, em anos de colheita normal, fazer chegar o pão a todas as bocas
louletanas, muito menos o era em anezas de más colheitas, de “esterilidades”, como
tantas vezes a documentação da época refere.
Na verdade a Europa, sobretudo devido a perturbações de ordem climática,
embora, por vezes, também devido a acções humanas, nomeadamente a tão repetidos
conflitos bélicos53, foi sofrendo, ao longo dos séculos, carências alimentares mais ou
menos profundas, mais ou menos alargadas, mas sempre altamente perturbadoras
e, por vezes, mesmo mortíferas. Aqui, neste espaço em que nós, portugueses, nos
situamos, e de um modo especial neste espaço em que se situa o Algarve, em que
se situa Loulé, bafejada pelos últimos sopros quentes do Golfo de Cádis, essas
perturbações, até pelo que já atrás ficou dito, tinham quase sempre a ver com secas
mais prolongadas ou severas. Ora, a Idade Média não tinha ao seu dispor quaisquer
49
Claro que dadas as produções, enormes para a época, de que foram capazes as ilhas atlânticas durante
algum tempo (MARQUES, A. H. de Oliveira − Introdução à história da agricultura em Portugal..., sobretudo
pp. 247-254), também aí o Algarve se abasteceu.
50
FONSECA, Luís Adão da − “As relações comerciais entre Portugal e os reinos peninsulares nos
séculos XIV e XV”. In Actas das II Jornadas luso-espanholas de história medieval. Vol. II. Porto: Instituto
Nacional de Investigação Científica, 1987, p. 553.
51
RAU, Virgínia − “Nota sobre os feitores portugueses na Andaluzia no século XV”. In Estudos de
história medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1985, pp. 132-137. Já para inícios do século XVI pode ver-se,
mais desenvolvidamente, a acção destes feitores em CORTE-REAL, Manuel Henrique − A feitoria portuguesa
na Andaluzia (1500-1532). Lisboa: Centro de Estudos Históricos da Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa, 1967.
52
Actas de vereação de Loulé. Século XVI 1522-1527…, pp. 153-155.
53
Apesar de tudo as guerras, embora altamente perturbadoras também nos aspectos aqui tratados,
porque impediam o normal exercício da actividade agrícola, porque destruíam as colheitas, pelas razias que
os exércitos provocavam na sua passagem, eram mais circunscritas e por isso menos devastadoras. As forças
da Natureza, mais abrangentes, prolongando-se, por vezes, por vários anos, sobretudo se de ordem climática,
eram as que, na verdade, causavam as grandes calamidades alimentares.
UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA
191
meios que lhe permitissem enfrentar com sucesso essas adversidades que se iam
colocando no seu caminho. Sucediam-se, na circunstância, os pedidos de ajuda
a Deus, representados por procissões e por outros tipos de celebrações religiosas,
largamente documentadas por toda a parte, mas pouco ou nada mais54.
Foram muitos os períodos de escassez, ou mesmo de crise cerealífera aguda
que ao longo dos tempos se foram abatendo sobre a Europa e afectando áreas mais
ou menos dilatadas, com intensidade mais ou menos profunda, de acordo com a
natureza, a força e a abrangência dos fenómenos que haviam estado na sua origem55.
E que, naturalmente, Portugal teve também que suportar56. Lisboa e o Algarve com
maior violência, porque sempre, entre nós, os dois espaços mais carenciados de
cereal57.
Ora, se uma das principais preocupações dos governos urbanos, se não a
principal, era o correcto abastecimento das suas cidades, sobretudo em produtos
essenciais e de uma maneira especial nos que respeitavam ao provimento alimentar58,
Já em outras ocasiões tive a oportunidade de me referir a estes assuntos, tendo, em alguma delas,
deixado as minhas afirmações apoiadas em larga resenha de estudos, de proveniência vária, a partir da qual
ficou claro, penso, a grande abrangência do fenómeno, ao menos no âmbito da Europa mediterrânica. Pode
ver-se GONÇALVES, Iria – “Panem nostrum quotidianum da nobis hodie…”, nota 19.
55
Já há muito que a historiografia europeia se tem vindo a preocupar com este assunto, pelo que a
bibliografia sobre o mesmo é já muito longa. Limitar-me-ei, aqui, a apontar apenas o clássico trabalho de
ABEL, Wilhelm – Crises agraires en Europe (XIIIe-XXe siècles). Paris: Flammarion, 1973, passim, propondo
ao investigador interessado, a leitura do trabalho citado na nota anterior, onde se encontra referenciada uma
bibliografia relativamente extensa.
56
Também em Portugal o assunto já há muito chamou a atenção dos medievalistas, podendo verse: DUARTE, Maria Teresa Lopes − Para a história dos factores de crise no Portugal medieval. 1348-1438.
Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1974, Dissertação, pp. 75-78; MARQUES, A. H.
de Oliveira – Introdução à história da agricultura em Portugal…, pp. 36-45, 257-282; MARQUES, A. H. de
Oliveira – Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV, vol. IV da Nova História de Portugal, SERRÃO, Joel e
MARQUES, A. H. de Oliveira (Dirs.). Lisboa: Editorial Presença, 1987, p. 30; MATTOSO, José – “1096-1325”.
In MATTOSO, José (dir.) − História de Portugal. Vol. II: A Monarquia Feudal. Lisboa: Círculo de Leitores,
1993, p. 202; FERREIRA, Sérgio Carlos – Preços, salários e níveis de vida em Portugal na Baixa Idade Média.
Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2014, pp. 82 e seg. Dissertação de Doutoramento. Iria
GONÇALVES, ob. cit. nas notas anteriores.
57
Já no início do século XX Henrique da Gama Barros chamou a atenção para o facto em História da
administração pública em Portugal, vol. IX, p. 73. Depois dele muitos investigadores o foram repetindo, com
aportação de novas informações ou sem ela.
58
Diversos investigadores já comprovaram isso mesmo, como, por exemplo: RIERA MELIS, Antoni −
“‘Tener siempre bien aprovisionada la población’…”, pp. 23-57; BOTÃO, Maria de Fátima − A construção de
uma identidade urbana…, p. 181; CASTRO MARTÍNEZ, Teresa − El abastecimiento alimentario en el reino
de Granada (1482-1510), Granada: Editorial Universidad de Granada, 2004, p. 177; DIAGO HERNANDO,
Maximo − “Las políticas comerciales de los reinos en la Europa bajomedieval”. In El comercio en la Edad
Media. XVI semana de estudios medievales. Nájera y Tricio del 1 al 5 de Agosto de 2005. Logronho: Instituto
de Estudios Riojanos, 2006, p. 399; BENITO I MONCLÚS, Pere − “Las crisis alimenticias en la Edad Media:
caracteres generales, distinctiones y paradigmas interpretativos”. In LOPÉZ OJEDA, Esther − Comer, beber,
vivir: consumo y niveles de vida en la Edad Media hispánica, XXI semana de Estudios Medievales. Nájera del 2
al 6 de Agosto de 2010, Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 2011, p. 137; IRANZO MUÑIO, Maria Teresa
− “Abastecimiento urbano y política frumentaria: el mercado del trigo en Huesca en el siglo XV”. In LALIENA
CORBERA, Carlos; AFUENTE GÓMEZ, Maria (coord.) − Una economía integrada. Comércio, instituciones y
mercados en Aragón, 1300-1500. Saragoça: Grupo de Investigación Consolidade CEMA, 2012, p. 212. E muitos
outros podiam ser acrescentados.
54
192
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
em tempos de escassez de cereal essas preocupações subiam de tom e iam ganhando
preponderância à medida que o fenómeno se ia agravando ou prolongando no tempo.
E isso não só porque o pão era, como já atrás ficou lembrado e como tantas vezes
tem sido repetido, a base de todo o sistema alimentar, como também, e até por essa
mesma circunstância, as consequências que daí advinham eram múltiplas e podiam
atingir bastante gravidade. Sobretudo porque a escassez do cereal, provocando o seu
encarecimento, acarretava consigo a subida de todos os preços, a torná-los, por vezes,
incomportáveis, sobretudo para as bolsas mais carenciadas. Sendo o controlo da
inflação, como adiante voltarei a referir, um dos problemas básicos que os dirigentes
municipais necessitavam resolver para manter a ordem pública59, precisavam lançar
mão de todos os meios ao seu alcance para manter a cidade abastecida.
Tarefa ingente, todavia, sobretudo durante estes períodos críticos. E a previsão
de má uma colheita, ou o simples rumar de um possível desabastecimento, um boato
posto a circular nesse sentido60, era quanto bastava para que todo o sistema habitual
se descontrolasse, com consequências, por vezes, desastrosas.
Perante a iminência de uma crise de desabastecimento frumentário, fosse ela
real ou imaginária, como também podia acontecer, a primeira preocupação das
edilidades era proibir a saída do trigo para fora dos limites da sua jurisdição. É certo
que Loulé – aliás, o Algarve – sempre tão deficitário, tinha todo o cuidado em impedir
que o pouco cereal produzido na região dela fosse retirado. Mas isso não deixava de
se verificar quando os preços praticados no exterior tentavam quem detinha alguns
Concretamente sobre Loulé, veja-se BOTÃO, Maria de Fátima − A construção de uma identidade
urbana…, p. 181; BENITO I MONCLÚS, Pere − “Las crisis alimenticias en la Edad Media: caracteres generales,
distinctiones y paradigmas interpretativos…”, p. 140; chama ao controlo dos preços o segundo cavalo de
batalha dos governantes municipais, sendo o primeiro o abastecimento da cidade.
60
Como verificaram diversos investigadores que estudaram o desenrolar destas crises, num esquema
que, com pequenas variantes, era o mesmo em todos os tempos e lugares. Podem ver-se, como exemplos:
STOUFF, Louis − Ravitaillement et alimentation en Provence… pp. 73 e seg.; RIERA I MELIS, Antoni − “Els
pròdroms de les crisis agràries…”, pp. 35-72; RIERA I MELIS, Antoni − “‘Lo pus greu càrrech i perill que
jurats d’aquesta ciutat han és tenir aquella sens fretura de blats’: el aprovisionamiento urbano de cereales en las
ciudades de la Corona de Aragón durante la Baja Edad Media”. In SESMA MUÑOZ, Ángel (dir.) − La Corona
de Aragón en el centro de su historia. 1208-1458. Aspectos económicos y sociales. Zaragoza y Calatayud, 24 al 26
de noviembre de 2009. Zaragoza: Universidad de Zaragoza, 2010, pp. 233-274; RIERA I MELIS, Antoni − “El
mercat de cereals a la Corona Catalanoaragonesa. La gestió de les crisis alimentaris al segle XIII”. In RIERA
I MELIS, Antoni (coord.) − Crisis frumentaries, iniciatives privades i politiques publiques de proveïment a
les ciutats catalanes durant da Baixa Edat Mitjana. Barcelona: Institut d’Estudis Catalans, 2013, pp. 47-115;
RUBIO VELA, Agustín − “Crisis agrarias y carestías en las primeras décadas del siglo XIV: el caso de Valencia”.
Saitabi 37 (1987), pp. 131-147; MARTÍNEZ CAMAÑO, Francisco − “Crisis de subsistencias y estructuras de
poder: el ejemplo de Barcelona en los años 1339-1341”. In La Mediterrània, àrea de convergència de sistemes
alimentaris (segles V-XVIII), XIV Jornades d’estudis històrics locals, Palma, del 29 novembre al 2 de desembre
de 1995, [Palma de Maiorca]. Palma de Maiorca: Institut d’Estudis Barleàrics, 1996, pp. 251-262; BENITO I
MONCLÚS, Pere − “Fams i caresties a la Mediterrània occidental durant la Baixa Edat Mitjana: el debat sobre
“les crisis de la crisi”, Recerques: història, economia, cultura 48 (2004), pp. 179-194; BENITO I MONCLÚS,
Pere − “Carestía y hambruna en las ciudades de Occidente durante da Edad Media: algunos rasgos distintivos”.
In ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz; SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús Ángel (eds.) − Alimentar la ciudad
en la Edad Media, Nájera. Encuentros internacionales del Medievo 2008. Dal 22 al 25 de julio de 2008. Logroño:
Instituto de Estudios Riojanos, 2009, p. 299-313.
59
UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA
193
excedentes. E assim podia acontecer em Loulé, onde, segundo os homens bons da
terra, faltava trigo à venda nas fangas porque os produtores preferiam vendê-lo para
fora61, o que, naturalmente, se procurava evitar por posturas impeditivas da sua saca
e outros meios possíveis. Mesmo no respeitante a carregamentos que aportavam a
uma vila, aí se procurava ciosamente guardá-los62. Depois era preciso não descurar
a procura dos mercados de onde se pudesse canalizar para a vila o máximo de grão
possível. Primeiramente demandando os circuitos habituais – Beja, Serpa, Mértola,
Campo de Ourique – com o já tão experimentado prolongamento até à Andaluzia,
depois alargando o raio de procura até onde fosse possível encontrar algum trigo.
Aí, por vezes, os meios necessários à atracção do cereal ultrapassavam as
capacidades locais. Era preciso oferecer aos mercadores compensações suplementares
e se algumas ainda as edilidades podiam, no âmbito das suas competências, tomar
as decisões necessárias, como era o caso de oferecer em troca do pão os produtos
locais não defesos63, para outras já era necessária uma autorização régia. E era o caso,
por exemplo, da exportação de gado para Castela – novilhos, na circunstância64 – ou
como acontecia, sobretudo quando se tratava da isenção de determinados tributos,
nomeadamente as dízimas régias, de que só o monarca podia dispor. Todavia, em
determinadas circunstâncias, o soberano prescindia delas, para facilitar a vinda de
cereal do exterior65.
Entretanto o trigo ia faltando nos mercados porque a produção fora mais
escassa ainda, a reserva que cada produtor fazia para si próprio era toda a possível e
os grandes agricultores abstinham-se de colocar os seus excedentes nas fangas locais;
mercadores e outros indivíduos com dinheiro para investir compravam quantidades
de cereal disponível para colocar à venda apenas no momento propício, isto é, com
os preços já em alta, na prossecução de um esquema especulativo que podia gerar
61
Actas de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., p. 29. Aliás, isso podia acontecer em qualquer parte.
Portugal, no conjunto das suas regiões, era muito deficitário em cereais e, no entanto, também chegava a
exportar. MARQUES, A. H. de Oliveira − Introdução à história da agricultura em Portugal, pp. 168-173;
ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz − “El abastecimiento de las villas vizcaínas medievales: política comercial
de las villas respecto al entorno y a su interior”. In La ciudad hispánica durante los siglos XIII al XVI. Actas
del Colóquio celebrado en La Rábida y Sevilla del 14 al 19 de septiembre de 1981. Vol. I. Madrid: Universidad
Complutense, 1985, p. 294; FAUGERON, Fabien − Nourir la ville: Ravitaillement, marchés et métiers de
l’alimentation à Venise dans les derniers siècles du Moyen Âge. Roma: École Française de Rome, 2014, p. 410.
62
Era, por exemplo, o caso de Silves, que não queria dar saca de mantimentos a Faro e a Tavira, que
impetravam, para isso, carta régia (IRIA, Alberto − O Algarve nas cortes medievais portuguesas do século XIV
(Subsídios para a sua história)…, p. 111; IRIA, Alberto − O Algarve nas cortes medievais portuguesas do século
XIV (Subsídios para a sua história). Vol. I, p. 282; CORTES portuguesas. Reinado de D. Afonso V (Cortes de
1441-1447)…, p. 481.).
63
Actas de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., pp. 199-200, 210-211.
64
CORTES portuguesas. Reinado de D. Afonso V (Cortes de 1439)…, p. 418. Publicado também por
IRIA, Alberto − O Algarve nas cortes medievais portuguesas do século XV…, vol. I, pp. 200-202.
65
IRIA, Alberto − O Algarve e os Descobrimentos…, t. I, p. 366; DUARTE, Maria Teresa Lopes −Para
a história dos factores de crise…, p. 71. O monarca podia também prescindir das mesmas dízimas quando se
tratava do trigo produzido localmente: Descobrimentos portugueses, supl. ao vol. I, doc. 7, p. 13.
194
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
fartos dividendos66; o consumidor comum acorria ansiosamente ao mercado e com
rapidez esgotava as parcas existências que nele ainda se encontravam67. Com tudo
isto os preços iam subindo.
É certo que os preços cerealíferos conheciam em regra oscilações sazonais mais
ou menos pronunciadas, com quebras por altura das colheitas e subidas graduais à
medida que o ano agrícola ia avançando, até chegar às “fomes de Maio”, a que já atrás
fiz referência68. No entanto, quando a aneza se mostrava pouco generosa e mais ainda
quando corriam os rumores de desabastecimento e o trigo começava a desaparecer
dos habituais postos de venda, então nada parava a subida desordenada dos preços,
que podiam chegar a atingir proporções dramáticas69. Aliás, o mercado algarvio já
era, de uma maneira geral, caro. Sérgio Ferreira, estudando estes assuntos a nível de
todo o País, diz mesmo que uma das imagens fortes que os preços transmitem é a da
carestia dos mercados algarvios70. Naturalmente, dada a crónica escassez cerealífera
da região, a torná-la sempre dependente do exterior, o facto tinha, como é óbvio,
Podem ver-se alguns aspectos deste esquema em STOUFF, Louis − Ravitaillement et alimentation
en Provence…, p. 56; BARRIO BARRIO, Juan Antonio − “La producción, el consumo y la especulación de
los cereales en una ciudad de frontera: Orihuela, siglos XIII-XV”. In ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz;
SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús Ángel (eds.) − Alimentar la ciudad en la Edad Media, Nájera. Encuentros
internacionales del Medievo 2008. Dal 22 al 25 de julio de 2008. Logronho: Instituto de Estudios Riojanos,
2009, p. 75; DUARTE, Maria Teresa Lopes − Para a história dos factores de crise…, pp. 55-56. Mas quem
sobretudo tem trabalhado estes assuntos é Antoni RIERA MELIS. Podem ver-se deste autor: “El mercat de
cereals”…, pp. 65-69; “‘Tener siempre bien aprovisionada la población’…”, p. 35; “Pròleg”. In RIERA I MELIS,
Antoni (coord.) − Crisis frumentaries, iniciatives privades i politiques publiques de proveïment a les ciutats
catalanes durant da Baixa Edat Mitjana. Barcelona: Institut d’Estudis Catalans, 2013, p. 32; “Els cereals als
mercarts catalanes de la Baixa Edat Mitjana” – SABATÉ I CURRULL, Flocel; PEDROL, Maite Pedrol (coord.)
– El mercat: um món de contacts i intercanvis. Lérida: Pagès editors, 2014, pp. 127-128.
67
Vejam-se por exemplo: RIERA MELIS, Antoni − “Pròleg”…, p. 32; GONÇALVES, Iria − “Panem
nostrum quotidianum da nobis hodie…”, no prelo.
68
Estes fenómenos já vêm a ser estudados desde há muito e a mostrar, por um lado, uma grande
abrangência e por outro uma igualmente grande similitude de comportamentos. Podem ver-se, entre outros
trabalhos: HEERS, Jacques − L’Occident aux XIVe et XVe siècles. Aspects économiques et sociaux. 2.ª ed. Paris:
Presses Universitaires de France, 1966, p. 394; BOIS, Guy − “Comptabilité et histoire des prix: les prix du
froment à Rouen au XVe siècle”, Annales Histoire, Sciences Sociales 23/6 (1968) p. 1277; LA RONCIÈRE,
Charles-M. de − Prix et salaires à Florence au XIVe siècle (1280-1380). Roma: l’École Française de Rome,
1982, p. 95. Para Portugal existem já disponíveis algumas boas listas de preços de cereais, como as que foram
publicadas por MARQUES, A. H. de Oliveira − Introdução à história da agricultura em Portugal…, pp. 220223; VIANA, Mário − “Alguns preços de cereais em Portugal (séculos XIII-XVI)”, Arquipélago. História 2 série,
XI-XII (2007-2008), pp. 207-279; FERREIRA, Sérgio Carlos − Preços, salários e níveis de vida em Portugal…,
pp. 251-257. Tanto quanto sei, estão ainda pouco trabalhadas.
69
Também estas subidas descontroladas de preços já desde há muito chamaram a atenção dos
medievalistas. Para lá das obras citadas na nota anterior, podem ver-se: BAULANT, Micheline − “Les prix
des grains à Paris de 1431 à 1788”, Annales Histoire, Sciences Sociales 23/6 (1968), p. 537; TRICARD, Jean
− Les campagnes limousines du XIVe au XVIe siècle: originalité et limites d’une reconstruction rurale. Paris:
Éditions de la Sorbonne, 1996, p. 38; BENITO I MONCLÚS, Pere − “Carestía y hambruna en las ciudades de
Occidente…”, pp. 305-307; BENITO I MONCLÚS, Pere − “Las crisis alimenticias en la Edad Media …”, pp.
127-129; RIERA MELIS, Antoni − “Pròleg…”, p. 32; GONÇALVES, Iria − “A propósito do pão da cidade na
Baixa Idade Média portuguesa”. In SILVA, Carlos Guardado da – História da alimentação. Turres Veteras IX.
Lisboa – Torres Vedras: Colibri, Instituto Alexandre Herculano e Câmara Municipal de Torres Vedras, 2007,
pp. 57-58; GONÇALVES, Iria − “Panem nostrum quotidianum da nobis hodie…”, no prelo.
70
FERREIRA, Sérgio Carlos − Preços, salários e níveis de vida em Portugal…, p. 181.
66
UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA
195
reflexo nos preços do grão posto à venda e arrastando este na sua esteira, como
já atrás ficou dito, todos os outros, constituía-se uma cadeia que só podia resultar
num sério agravamento do custo de vida. Ora, quando em 1371-1372 D. Fernando,
segundo Fernão Lopes, tabelou o preço do alqueire de trigo, fê-lo estabelecendo
custos muito diferentes para as diversas comarcas do reino, numa escala que se
desenrolava entre cinco libras para o Algarve e vinte soldos para a Beira e para o
Entre-Douro-e-Minho71. Isto é, o primeiro valor 400% mais alto do que o segundo72.
E se aquele era um preço muito alto e talvez exorbitado pelo cronista ou por quem o
informou, na falta de documento fidedigno, outros registos, embora mais comedidos,
não deixam de evidenciar uma considerável carestia, inclusive em comparação com
algumas das mais importantes cidades portuguesas. Com efeito, puderam compararse preços louletanos e conimbricenses, sendo os primeiros 100% mais elevados, ou
com outros, provenientes de Santarém, sendo o trigo em Loulé 150% mais caro. E se
entre esta vila e Évora a diferença podia ser apenas de mais 25%73, é porque também
o trigo alentejano era caro, uma vez que, voltando à tabela apresentada por Fernão
Lopes, este era o segundo mais caro, com o preço de três libras o alqueire74.
Partindo de preços já tão elevados, as crises cerealíferas em Loulé como em todo
o Algarve, apresentavam, sem dúvida, aspectos bem dramáticos, nomeadamente para
as famílias mais carenciadas. Até porque, se as gentes mais abonadas podiam produzir
ou receber a título de rendas o cereal que consumiam, e ainda gerar excedentes ou,
quando não, podiam abastecer-se em qualquer altura, e assim fazê-lo na época das
colheitas, quando o trigo era mais barato, os outros, os que não produziam ou não
o suficiente e não tinham a liquidez necessária para um abastecimento por grosso,
precisavam comprá-lo à medida que iam dispondo de algum dinheiro para isso e
assim iam-no comprando cada vez mais caro. Isto é, quanto mais pobres as famílias
fossem, mais caro pagavam o seu pão.
Perante situações de alta desordenada de preços, por vezes a atingirem níveis
eventualmente incomportáveis para boa parte da população, podia encontrar-se em
perigo a ordem pública, situação que os dirigentes locais não podiam permitir, sob
pena de consequências graves para a sua cidade e para eles próprios. Havia que tomar
medidas no sentido de evitar o pior.
De uma maneira geral essas medidas eram de três tipos: procurar o cereal em
circuitos tão alargados quanto possível e necessário, usando de todos os meios ao
alcance das edilidades e dentro da esfera das suas competências para o atrair aos
respectivos mercados; controlar o mais rigorosamente possível todo o grão existente
71
LOPES, Fernão − Crónica do senhor rei Dom Fernando nono rei destes reinos. int. de Salvador Dias
Arnaut. Porto: Livraria Civilização, 1966, cap. LVI, p. 150.
72
Valor obtido por FERREIRA, Sérgio Carlos − Preços, salários e níveis de vida em Portugal…, p. 181.
73
FERREIRA, Sérgio Carlos − Preços, salários e níveis de vida em Portugal…, p. 181.
74
LOPES, Fernão − Crónica do senhor rei Dom Fernando nono rei destes reinos..., cap. LVI, p. 150.
196
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
na cidade e respectivo alfoz e obrigar a pôr à venda todos os excedentes; refrear ao
máximo a subida dos preços, cuidando que a distribuição do produto fosse equitativa.
Embora com inevitáveis diferenças devidas a especificidades locais e temporais
e também a maneiras de pensar e executar dos diferentes governos, acabavam sempre
por ser muito semelhantes as medidas implementadas em conjunturas de escassez
frumentária75.
Se em épocas normais Loulé se atarefava a procurar no exterior a maior parte
do grão que consumia, embora em circuitos habituais e bem definidos, em situações
de carência o raio de procura alargava-se tanto quanto possível76 e quanto mais
alargadas fossem as relações dos mercadores que habitualmente a serviam77, ou
outros.
Portugal, sempre carenciado de grão, tinha já estabelecido, nestes últimos
séculos medievais, um muito grande circuito de relações comerciais em que o cereal
contava de uma forma muito preponderante. E se dentro desse circuito os lugares
preferenciais de abastecimento podiam mudar, de acordo com conjunturas várias,
quando decorriam anos de normalidade78, todo ele era percorrido e aliciado a intervir
em períodos de carência aguda79. E neste capítulo o Algarve figurava sempre, a par de
Lisboa, como sendo os mais necessitados. Conhece-se, para o Algarve, um ou outro
desses casos porque Loulé nos fez chegar deles algumas memórias.
A década de 80 do século XV foi entre nós tempo de carência frumentária80, com
alguns picos de grande penúria. Conservaram-se, para o período correspondente à
aneza de 1468 as actas de vereação de Loulé, onde as diligências efectuadas pelos
governantes nesse ano em exercício, no sentido de conservar a vila abastecida, se
75
Já em outra ocasião tive oportunidade de tratar este assunto. Veja-se GONÇALVES, Iria − “A
propósito do pão da cidade…”, pp. 57-61 e as abonações que aí foram utilizadas. Podem ver-se ainda: BARRIO
BARRIO, Juan Antonio − Finanzas municipales y mercado urbano en Orihuela durante el reinado de Alfonso
I (1416-1458). Alicante: Diputación Provincial de Alicante e Instituto Alicantino de Cultura Juan Gil-Albert,
1998, pp. 113 e seg.; IRANZO MUÑIO, Maria Teresa − “Abastecimiento urbano y política frumentaria…”,
p. 220; RIERA MELIS, Antoni − “El mercat de cereals…”, pp. 165 e seg.; PINTO, Giuliano − “I rapporti
economici tra città e campagna”. In GRECI, Roberto (org.) − Economia urbana ed etica economica nell’ Italia
medievale. Roma–Bari: Laterza, 2005, p. 51.
76
Também já muitos investigadores verificaram este facto. Podem ver-se: MARQUES, A. H. de
Oliveira − Introdução à história da agricultura em Portugal…, p. 164; ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz
− “El abastecimiento de las villas vizcaínas…”, p. 294; IRANZO MUÑIO, Maria Teresa − “Abastecimiento
urbano y política frumentaria…”, p. 220; STOUFF, Louis − Ravitaillement et alimentation en Provence…, p. 56;
FAUGERON, Fabien − Nourir la ville…, pp. 294-295; GONÇALVES, Iria − “A propósito do pão da cidade…”,
p. 58.
77
Veja-se PINTO, Giuliano − “Approvvigionamento e mercato dei prodotti alimentari nella Firenze del
Trecento”. In ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz; SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús Ángel (eds.) − Alimentar
la ciudad en la Edad Media, Nájera. Encuentros internacionales del Medievo 2008. Dal 22 al 25 de julio de 2008.
Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 2009, p. 236.
78
MARQUES, A. H. de Oliveira − Introdução à história da agricultura em Portugal…, p. 164.
79
MARQUES, A. H. de Oliveira − Introdução à história da agricultura em Portugal…, pp. 160-163;
MARQUES, A. H. de Oliveira − Hansa e Portugal na Idade Média. Lisboa: Presença, 1993, pp. 73-74.
80
MARQUES, A. H. de Oliveira − Introdução à história da agricultura em Portugal…, pp. 277-280.
UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA
197
tornam, sob este aspecto, muito significativas.
Com colheitas pouco abundantes em 1467, em Março de 1468 sabia-se já que
as desse ano iriam ainda ser piores. No Alentejo, normalmente excedentário, como já
atrás ficou dito, os governos locais tinham estabelecido posturas no sentido de proibir
a saída do grão. Por certo as vilas algarvias se haviam queixado ao rei, uma vez que
este, por alvará dirigido aos corregedores, juízes e justiças de Entre-Tejo-e-Guadiana
mandava que visto “o grande trabalho em que som” os moradores do Algarve, eles
pudessem ir à comarca comprar trigo sem que lhes fosse embargado, desde que para
consumo próprio e não para vender. Para maior segurança e para memória futura,
Loulé reproduziu esse alvará no seu livro de actas das reuniões camarárias81. Por
certo também a cidade – Silves – e as demais vilas fizeram o mesmo, ou algo de
semelhante.
Porém, sabia-se que aquela diligência não podia ser suficiente. O Algarve tivera
notícia de que teria chegado, talvez a Lisboa, um carregamento de trigo, proveniente
da Bretanha, então um dos nossos mais importantes fornecedores82 e Loulé escreveu
ao monarca a pedir mil moios de trigo. A resposta régia foi desencorajadora: até à data
não chegara qualquer cereal. Mas ficava a promessa do envio, se o trigo chegasse, desde
que eles lho lembrassem. E mais: ao mesmo tempo, o monarca concedia segurança a
todos os que aí aportassem com pão ou quaisquer outros mantimentos83, ainda que
isso pudesse constituir perda para alguns algarvios, eventualmente prejudicados por
compatriotas daqueles que aí levassem as mercadorias84. Naturalmente, Loulé copiou
também esta carta no seu livro de actas da vereação85.
Tudo isto, porém, não passava de promessas. Março estava a terminar, vinham
aí Abril e Maio. Eram estes os meses sempre mais difíceis, os anteriores à ceifa,
porque em Junho já se podiam ir colhendo algumas searas86. Aparentemente, durante
aqueles meses não chegou pão a Loulé ou, pelo menos, não sobejaram notícias disso.
Em Junho, com searas debilitadas, havia que tomar algumas providências mais
ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., p. 205.
MARQUES, A. H. de Oliveira − Introdução à história da agricultura em Portugal…, pp. 165-166.
83
Também Maria Helena da Cruz COELHO se referiu a este assunto em “Do rei ausente ao rei presente
nas vereações de Loulé”. In Loulé, 630 anos de poder local. Loulé: Câmara Municipal de Loulé, 2014, p. 106.
84
Tratava-se do direito de represália, que permitia, após autorização régia, que os naturais de um
País pudessem apoderar-se de pessoas e bens de um outro, cujos compatriotas os houvessem, por sua vez,
prejudicado. Não importava quem prejudicara quem, mas apenas a sua nacionalidade. Dado que os ataques
marítimos eram tão frequentes na época, as cartas de segurança revestiam-se de um grande valor.
85
ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., p. 205.
86
Um muito antigo provérbio que na memória dos mais velhos chegou até hoje dizia que “em Junho,
foice em punho; em Julho, foice em tudo”. Isto é, em Junho já se podia empunhar a foice para a usar aqui
e além; em Julho já todas as searas tinham amadurecido e era então o grande mês das ceifas, prolongado a
Agosto. Mas talvez no Algarve, terra quente, esse amadurecimento se verificasse mais cedo. Como atrás ficou
dito, em determinada altura, os homens do governo municipal de Loulé quiseram as suas férias de vereação
durante o mês de Junho e primeira semana de Julho, para a ceifa do seu pão. O que mostra alguma dianteira
em relação a outras regiões portuguesas.
81
82
198
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
adequadas.
Em casos de grande envergadura, implicando responsabilidades acrescidas,
avultados negócios, ou outros quaisquer assuntos a necessitarem de uma voz potente,
as pequenas vilas algarvias não funcionavam isoladas, mas concertavam-se umas com
as outras, uniam-se, agiam em conjunto para ganhar escala. Uma escala que se queria
mais ou menos poderosa, de acordo com os assuntos em cada momento a tratar.
Assim podia ser todo um “reino” ou, ao menos, uma parte dele, que se apresentava
a negociar, a reclamar, a dividir responsabilidades. Tinha outro peso. Era assim, por
exemplo, que muitas vezes se apresentava em cortes, perante o soberano87.
Não seriam, estas questões de provimento, assuntos de tal monta que todas as
povoações algarvias, em uníssono, concertassem acções de conjunto, não obstante
a necessidade partilhada por todas. Ou talvez porque era partilhada por todas e
nesse sentido cada uma delas deveria defender, em primeiro lugar, o seu próprio
abastecimento, quiçá, por vezes, em competição com algumas das outras. Mas
quando se tratava de negócios a realizar com gentes de muito longes terras mas
por iniciativa própria, dada a premente necessidade a que haviam chegado, esses
negócios, de modo a tornarem-se aliciantes para o vendedor, precisavam ser vultosos
e oferecer garantias seguras. Não podiam ser tratados isoladamente por uma só vila.
Era com Faro que Loulé entrava em parceria as mais das vezes. Concelhos
vizinhos, partilhando ambos as águas do Ludo, precisavam entender-se bem em
muitas circunstâncias88. Nomeadamente quando se tratava de importar cereais89.
Pois assim aconteceu, nesta conjuntura de 1468.
A iniciativa partiu de Faro, que pretendia enviar um troteiro à Bretanha, em
busca de trigo. Por isso escreveu a Loulé pedindo que enviasse um seu representante
para combinarem todas as condições. Foi enviado o escrivão da câmara que, no
regresso contou que ficara assente a ida do troteiro com cartas de segurança para
87
BOTÃO, Maria de Fátima − “Todos juntamente a hua voz”. In Loulé, 630 anos de poder local. Loulé:
Câmara Municipal de Loulé, 2014, p. 126. Significativa sob este aspecto é uma questão ocorrida em 1494 e
liderada por Silves, relacionada com o arrendamento das alfândegas e a implementação de novas medidas
para o pão, o azeite e o vinho que ninguém queria, no Algarve, que fossem mudadas. Nesta altura Silves,
como “cabeça” do “reino”, enviou três cartas a Loulé e, naturalmente, também às demais vilas, no sentido de
se apresentarem todos perante o rei. Na última dessas cartas, de 16 de Dezembro daquele ano, talvez porque
Loulé tivesse mostrado alguma relutância em aderir ao projecto, dizia-se: “vos pedimos por mercee que
em toda maneira mandees vosso procurador como fazem todollos outros lugarees deste Alguarue porque
senhores avee por muito certo que parecendo la todollos lugarees per seus procuradores em pessoa El-Rei
nosso senhor nos tirara esta sogeiçam e nos comprira de justiça”(ACTAS de vereação de Loulé. Século XV..., pp.
180-181, 183, 184.) Era tudo uma questão de ganhar escala.
88
Pode mesmo dizer-se que, de certo modo, Loulé e Faro dependiam mutuamente uma da outra. Se
Loulé precisava do porto de Faro porque o seu próprio porto, ou portos – Farrobilhas, Pereira – estavam
distantes da vila e muito longe de apresentarem as condições do de Faro, esta vila precisava utilizar parte do
alfoz que Loulé possuía na serra, pois que o seu próprio não abrangia espaços serranos e sem a ajuda da vizinha
Loulé não teria possibilidade de alimentar os seus gados.
89
ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., p. 113; ACTAS de vereação de Loulé. Século XV..., p.
54-55; IRIA, Alberto − O Algarve e os Descobrimentos…, t. I, pp. 318, 373, 375.
UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA
199
notificar que quem quisesse trazer trigo a ambos os concelhos receberia por cada
moio uma peça de figos de graça e em terra teriam lojas para armazenar o cereal,
tomando a seu cargo, os dois municípios, os custos da descarga.
Os vendedores ficariam ainda isentos do pagamento de dízimas e de quaisquer
outros direitos devidos ao rei ou aos concelhos. Eram excelentes condições para
os mercadores, mas que ficariam caras a louletanos e farenses, na medida em que
arcavam com todos os custos, muito avultados, sobretudo se não tinham isenção dos
direitos devidos ao rei90. E havia ainda que assegurar as despesas de viagem e estadia
de quem fosse à Bretanha, avaliadas, estas, em mil e quinhentos reais.
Todas aquelas despesas, que naturalmente, encareceriam o trigo que chegasse,
tinham que recair sobre todo o povo, o qual precisava ser consultado. Dois dias
mais tarde, tendo sido o “concelho apregoado” e todos reunidos, acordaram que o
troteiro fosse à Bretanha pago pelos dinheiros da arca do concelho se nela houvesse
o suficiente e caso contrário por todo o povo: os demais custos pelos que adquirissem
o trigo91. Isto é, reflectidos no preço final de cada alqueire de trigo.
Todavia, continuavam a surgir ofertas de fornecimento. Nesta altura houve uma
proposta de cem moios de trigo, a quarenta reais o alqueire. Preço algo exagerado
para esta época do ano – inícios de Junho, como atrás ficou dito – mas muito aceitável
sabendo-se que a colheita ia ser muito fraca e conhecendo-se a habitual carestia dos
mercados algarvios92.
No entanto esta proposta não foi, na altura, divulgada ao povo, porque em
primeiro lugar, “como bons vizinhos e amigos” que eram93, havia que fazê-lo saber
a Faro94. O que bem mostra a cumplicidade existente entre os dois concelhos,
aliás manifestada em diversas outras ocasiões95. Mas sempre que havia notícia
de carregamentos chegados a quaisquer portos algarvios os louletanos não se
descuidavam de mandar um seu representante encarregado de negociar para a
90
As vilas algarvias foram recebendo, em ocasiões várias e por períodos de tempo mais ou menos
alargados, isenção de pagamento de direitos régios relativos à importação de cereais e por vezes também de
legumes e castanhas, seus sucedâneos em períodos de escassez. Podem ver-se alguns exemplos em: CORTES
portuguesas. Reinado de D. Afonso V. Cortes de 1441-1447…, pp. 24-25, 550; CORTES portuguesas. Reinado de
D. Manuel I (Cortes de 1498) …, pp. 405, 419, 520; IRIA, Alberto − O Algarve nas cortes medievais portuguesas
do século XV…, vol. I, pp. 207-208, 240; IRIA, Alberto − O Algarve e os Descobrimentos…, t. I, pp. 44, 72, 366;
IRIA, Alberto − O Algarve e a ilha da Madeira no século XV (Documentos inéditos). Lisboa: Centro de Estudos
Históricos Ultramarinos, 1974, pp. 67-71; BARROS, Henrique da Gama − História da administração pública
em Portugal…, vol. IX, pp. 60-61, 73-76.
91
ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., pp. 210-211.
92
Carestia a que já atrás foi feita referência.
93
Era assim que os farenses se definiam em relação aos louletanos (ACTAS de vereação de Loulé. Século
XV..., p. 54).
94
ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., pp. 210-211.
95
ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., pp. 54-55; IRIA, Alberto − O Algarve e os
Descobrimentos …, t. I, p. 375. Esta cumplicidade já tinha sido notada. Veja-se FONTES, João Luís Inglês − “A
expansão medieval”. In BERNARDES, João Pedro; OLIVEIRA, Luís Filipe (coords.) − A vinha e o vinho no
Algarve: o renascer de uma velha tradição. Faro: Edições Afrontamento, 2006, p. 51.
200
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
vila alguma parte desse cereal96.Sobretudo em tempos de magras colheitas havia
que cuidar bem de todo o grão, tanto daquele que se produzia no termo ou era
espontaneamente trazido por mercadores, como por esse outro que chegava mercê
de diligências levadas a cabo pela edilidade e em relação ao qual os governantes
locais tinham a maior das responsabilidades. Para este último havia, antes de mais,
que procurar um lugar seguro onde ele pudesse ficar bem acondicionado e sob o
controlo do município. E, naturalmente, o melhor lugar seria um celeiro público.
Tem-se dito entre nós que os celeiros públicos, municipais, com início no
Alentejo, só se divulgaram a partir da segunda metade do século XVI97. O de Loulé,
no dizer de Joaquim Romero de Magalhães, estaria bem documentado a partir do
segundo quartel dessa centúria98, ou talvez um pouco antes, uma vez que em 1522
se sabe que a sua chave estava entregue ao procurador do concelho, que em caso
de necessidade era substituído por alguém de confiança, para que “oulhasse pello
celeiro e trigo e pam delle e o nom consentisse tirar sem licença da camara”99.
Todavia, talvez esse celeiro seja bastante anterior e remonte, no mínimo, a finais
do século XV. Com efeito, em sessão camarária realizada a 2 de Julho de 1493 foi dada
autorização para dos quarenta moios de trigo do ano anterior que se encontravam
no celeiro, ser retirado a metade. Mas deviam ainda ficar lá vinte moios, a serem
vendidos “para o Concelho e provisam da terra”100. Tudo isto faz pensar num celeiro
público a cargo do município e sob sua vigilância, o qual, no mínimo, já recebera
trigo da colheita de 1492. Estava, pois, em funcionamento. E talvez já há alguns anos.
Penso que não é descabido considerar esta estrutura anterior ao que se tem julgado, o
que faz todo o sentido tendo em atenção as sucessivas dificuldades de abastecimento
frumentário aqui sentidas.
Chegado o cereal havia, no entanto, outros problemas importantes a resolver e
alguns dos mais prementes eram o controlo dos preços e a luta contra a especulação.
Proveniente algum do trigo de longe, encarecido por transportes, por encargos
fiscais e por várias outras despesas, algumas das quais ficaram acima referenciadas,
tudo isso se reflectia no custo final, ao consumidor. Outro trigo, talvez não onerado
de igual modo, tendia, no entanto, a equiparar-se-lhe no preço, até porque muitas
vezes era isso que pretendia quem o retivera mais tempo antes de o colocar à venda.
Ora, sendo muitas as famílias com as suas reservas – quando as tinham – esgotadas,
e muitas também as que experimentavam as maiores dificuldades em adquirir o seu
sustento a custos elevados, era necessário, para evitar males mais graves, inclusive a
ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., p. 113; IRIA, Alberto − O Algarve e os Descobrimentos
…, t. I, pp. 318, 319, 373.
97
MARQUES, A. H. de Oliveira − Introdução à história da agricultura em Portugal…, p. 117.
98
MAGALHÃES, Joaquim Antero Romero de − Para o estudo do Algarve económico…, pp. 65-74.
99
ACTAS de vereação de Loulé. Século XVI. 1522-1527..., p. 49.
100
ACTAS de vereação de Loulé. Século XV..., p. 118.
96
UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA
201
possibilidade de quebra da paz vicinal, que se tomassem medidas sérias para evitar
a inflação. É claro que as próprias importações de cereal agiam nesse sentido, até
porque o produto à venda travava as mais graves carestias. Mas era preciso mais:
evitar ganhos exagerados e ilícitos, embora assegurando algum benefício aos agentes
comerciais, sem o que era a falência de todo o sistema. Por isso em Loulé se fazia
questão de lhes atribuir ganho “aguisado”101; por isso as próprias Ordenações Gerais
encarregavam os procuradores das comarcas de terem tal cuidado102. Para isso
tabelava-se o trigo103 e em caso de necessidade, quando era de todo impossível suster
a subida, estabeleciam-se preços máximos104.
Porém, em momentos de mais aguda penúria, em que a oferta de cereal nos
mercados era sempre inferior à procura e rapidamente se esgotava, pouco valiam
as medidas legais. Porque cada vez mais exacerbada a procura, porque a fome se
instalara já em muitas habitações, porque chegara o momento exacto aguardado
por grandes e pequenos especuladores, nada travava a espiral que se desencadeara,
enquanto uma boa colheita não repusesse a situação105.
Todavia, os órgãos concelhios não podiam desistir, porque era demasiado
o que estava em jogo. Chegava-se então às medidas mais drásticas que no estado
actual da nossa historiografia são conhecidas entre nós. Medidas que, por sinal,
foram tomadas por Loulé106: inventariação das existências encontradas nas casas
particulares, requisição do cereal considerado excedentário, tendo em atenção o
tamanho do agregado doméstico107 e racionamento, com limitação da quantidade a
comprar por cada família: que se dê o pão “temperadamente”, ficou dito108.
Era o possível nas circunstâncias mais adversas. Por vezes pouco para evitar a
ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., pp. 40-41.
Ordenações Afonsinas, nota de apresentação por Mário Júlio de Almeida Costa, nota textológica por
Eduardo Borges Nunes. Liv. I. Lisboa, 1984, tít. XXIII, § 18, p. 126.
103
ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., pp. 29-30.
104
ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., pp. 29-30.
105
Já em outra ocasião me referi a estes assuntos, utilizando, na altura, bastante informação de
proveniência louletana e referindo-me, portanto, a situações ocorridas concretamente em Loulé. Pode ver-se:
GONÇALVES, Iria − “A propósito do pão da cidade…”, pp. 57-60.
106
É possível que outras vilas algarvias, igualmente carenciadas, tenham tomado as mesmas medidas
ou outras equivalentes. Só que não souberam, como Loulé, guardar até hoje as suas memórias, ficando por
isso, a este respeito como a outros, mergulhadas no esquecimento.
107
ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., pp. 29-30. O que, entre nós, aconteceu também
pelo menos no Porto (“Vereaçoens”. Anos de 1401-1449, nota prévia de J. A. Pinto Ferreira. Porto: Câmara
Municipal do Porto, Gabinete de História da Cidade, 1980, pp. 148-149, 150-151) e no Funchal (Vereações
da Câmara Municipal do Funchal. Século XV, ed. por José Pereira da Costa. Funchal: Secretaria Regional de
Turismo e Cultura, Centro de Estudos de História do Atlântico, 1995, p. 120). E que aconteceu igualmente
em outros lugares. Podem ver-se, por exemplo: BARRIO BARRIO, Juan Antonio − Finanzas municipales y
mercado urbano…, p. 113; BENITO I MONCLÚS, Pere − “Las crisis alimenticias en la Edad Media…”, p. 138.
108
ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., p. 29. Veja-se também AÑÍBARRO RODRÍGUEZ,
Javier − “Producción, abastecimiento y consumo de las villas medievales de la Costa Cantábrica: el caso de
Castro Urdiales”. In ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz; SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús Ángel (eds.) −
Alimentar la ciudad en la Edad Media, Nájera. Encuentros internacionales del Medievo 2008. Dal 22 al 25 de
julio de 2008. Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 2009, p. 372.
101
102
202
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
fome, mesmo com o acréscimo de consumo que a abundância de figos, felizmente,
possibilitava. Até a normalidade reposta por uma boa colheita podia durar pouco. E
assim aconteceu, por exemplo nesta década de oitenta do século XV.
Aliás, mesmo durante os tempos em que vigorava a normalidade do
abastecimento, nem todos tinham quanto necessitavam e o seu organismo requeria
para uma vida saudável, porque assim era, em todo o lado, na Idade Média. Mas
havia, pelo menos, com que mitigar a fome e assegurar os níveis de subsistência.
Porque o pauperismo foi um fenómeno que a medievalidade conheceu muito bem e
sobretudo em meios urbanos. Aliás, Michel Mollat, o historiador que até hoje melhor
estudou as questões relacionadas com a pobreza durante esta época, deixou dito que
ela “est fille de la ville”109.
2.3. Os caminhos do cereal.
O trigo que abastecia Loulé podia chegar por três vias. O que provinha do Alentejo
podia fazer o percurso por terra, atravessando a Serra do Caldeirão, ou por via fluvial,
descendo o Guadiana e bordejando depois a costa; o que vinha dos demais destinos,
do estrangeiro ou, por ventura, de outras terras portuguesas – como atrás ficou dito,
em determinado momento Loulé esperou receber trigo vindo de Lisboa, embora
proveniente da Bretanha – esse viria sempre por via marítima, quer se destinasse
prioritariamente ao Algarve, quer não.
Naturalmente o trigo de produção local, aquele que cultivavam os louletanos do
termo ou da vila e chegava a Loulé para venda ou consumo próprio, era conduzido
por caminhos terrestres que, aqui como em qualquer outro lugar, sulcavam todos os
recantos do concelho, a ligar as aldeias aos campos de cultivo e mesmo aos terrenos
incultos, a ligar cada uma dessas aldeias às demais e todo o conjunto à vila, como
centro que era do território110. Porém este, como já ficou dito, era o que menos
contava no abastecimento da vila.
De entre aquele que provinha do Alentejo, algum, por certo a menor
quantidade111 e sem dúvida o que se produzia nos campos de Ourique, também
chegava por terra112, atravessando a Serra do Caldeirão por Salir e Tôr, depois
109
MOLLAT, Michel − “Pauvres et assistés au Moyen Âge”. In A pobreza e a assistência aos pobres na
Península Ibérica durante a Idade Média. Actas das 1.as Jornadas luso-espanholas de história medieval. Vol. I.
Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1973, p. 23.
110
Veja-se a rede de caminhos do termo de Loulé em ALMEIDA, Cristóvão de − Da vila ao termo: o
território de Loulé na Baixa Idade Média…, pp. 42-48.
111
Joaquim Antero Romero de Magalhães (Para o estudo do Algarve económico, p. 78), também
considera este trigo minoritário, como é lógico, mas acrescenta que esta via era muito comum.
112
Maria Teresa Nesbitt Rebelo da Silva Maltez (Os recursos alimentares no Algarve oriental (século
XIV). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1993, Dissertação de Mestrado, p. 35.) também se refere à vinda
de trigo por via terrestre de Ourique para Loulé e outras vilas.
UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA
203
de passar por Almodôvar e Castro Verde113. O facto de se terem construído duas
pontes nesse caminho, embora talvez já tardiamente, uma em Tôr e a outra já perto
de Almodôvar114, mostra a funcionalidade dessa via e que o seu trânsito devia ter
alguma expressão. Aliás, Joaquim Romero de Magalhães considera-a a melhor, se
não a única, para uma rápida travessia da “áspera serra do Algarve Central”115.
Na verdade os transportes por terra, sobretudo de produtos volumosos e pesados,
como era o caso dos cereais, tornavam-se demorados e difíceis, nomeadamente
quando atravessavam terrenos tão acidentados com era o caso daquela serra.
Para mais, se os caminhos carreteiros não eram numerosos fosse onde fosse, por
aquelas brenhas e penhascos seriam certamente inexistentes. Assim, os transportes
tinham que realizar-se a dorso de animais, muares as mais das vezes porque os
mais resistentes para aquele tipo de caminhos, em longas colunas conduzidas por
almocreves116. Quando se tratava de cereais importados de fora da região só fazia
sentido o transporte de volumes consideráveis do produto, até porque só desse
modo os diversos agentes que intervinham na operação podiam auferir lucros
compensatórios do trabalho levado a cabo, do tempo dispendido, do investimento
realizado. Por outro lado, as viagens, na Idade Média, estavam longe de ser seguras e
isentas de perigo, sobretudo quando se atravessavam caminhos inóspitos e desertos,
como era o caso em tantos dos troços a percorrer entre Ourique e Loulé. Por tudo
isto convinha que o grupo transportador fosse numeroso, de modo a minimizar os
possíveis problemas117.
Loulé tinha um número considerável de almocreves ao seu serviço118, mas é
natural que nestas circunstâncias eles tivessem a companhia dos que trabalhavam em
113
Já diversos investigadores referenciaram este caminho: MAGALHÃES, Joaquim Antero Romero
de − “Uma interpretação da Crónica da Conquista do Algarve”. In Actas das II Jornadas luso-espanholas de
história medieval. Vol. I. Porto: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1987, pp. 129-130. BERNARDES
João Pedro; OLIVEIRA, Luís Filipe − A “calçadinha” de S. Brás de Alportel e a antiga rede viária do Algarve
central. S. Brás de Alportel: Câmara Municipal de S. Brás de Alportel, 2002, pp. 51-54; MACIAS, Santiago −
Mértola, último porto do Mediterrâneo…, vol. II, mapa da p. 233; OLIVEIRA, Luís Filipe − “Caminhos da terra
e do mar no Algarve medieval”. In Actas das I Jornadas - As vias do Algarve da época romana à actualidade.
S. Brás de Alportel: Câmara Municipal de S. Brás de Alportel, 2006, p. 33; ALMEIDA, Cristóvão de − Da vila
ao termo…, pp. 44-45.
114
BERNARDES João Pedro; OLIVEIRA, Luís Filipe − A “calçadinha” de S. Brás de Alportel e a antiga
rede viária do Algarve central…, pp. 53-54; OLIVEIRA, Luís Filipe − “Caminhos da terra e do mar no Algarve
medieval…”, p. 34.
115
MAGALHÃES, Joaquim Antero Romero de − “Uma interpretação da Crónica da Conquista do
Algarve…”, pp. 129-130.
116
Também Humberto Baquero Moreno (A acção dos almocreves no desenvolvimento das comunicações
inter-regionais portuguesas nos fins da Idade Média. Porto: Brasília Editora, 1979, p. 8) e Josefina Muthé i
Vives (“L’abastament de blat a la ciutat de Barcelona en temps d’Alfons el Benigne (1327-1336)”. In Politica,
urbanismo y vida ciudadana en la Barcelona del siglo XIV. Barcelona: Consejo Superior de Investigaciones
Científicas, 2004, p. 225) entre outros autores falam nos transportes por grandes caravanas de animais de
carga conduzidos por almocreves, sobretudo em percursos por terrenos acidentados.
117
MARQUES, A. H. de Oliveira − Portugal na crise dos séculos XIV e XV…, p. 148.
118
BOTÃO, Maria de Fátima − “Os eixos estruturantes de uma história…”, p. 47.
204
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
outras vilas algarvias e talvez não só119, até porque, como atrás ficou visto, essas vilas
colaboravam entre si quando se tratava do abastecimento frumentário.
Também nos circuitos locais e regionais, como no transporte do cereal que
chegava por via aquática, entre o navio e o local de armazenamento ou consumo o
transporte era tarefa destinada aos almocreves com os seus animais de carga120.
Este transporte por terra, além de demorado e difícil era muito mais caro. No
século XVIII avaliava-se, talvez com algum exagero, que os transportes terrestres
eram, em média, dez vezes mais caros do que os realizados por meio aquático121.
Mais comedido e baseado em documentação fiável, Emílio Giralt Raventós calculava
que para o século XVI este meio de transporte era entre quatro a seis vezes mais caro
do que o aquático122. Mesmo assim, uma diferença considerável a ter em conta.
Mais caro, em menor quantidade, era também este trigo algum daquele que o
chamado foral manuelino de Silves contemplava, assim como os das vilas algarvias
que seguiam o da sua capital, onde os impostos a pagar foram taxados a partir
das cargas animais, maior e menor, bem como do costal, isto é, a quantidade que
um homem podia transportar às suas costas, considerando-se este como sendo
equivalente a quatro alqueires e os dois primeiros como sendo o quádruplo e o
dobro deste, respectivamente123, isto é, dezasseis alqueires a carga maior, de cavalo
ou muar, de oito a menor, de asno. Tudo quantidades diminutas que podiam chegar
isoladamente. A ser assim corresponderiam por certo a pequenos excedentes dos
camponeses do termo.
A maior parte do trigo proveniente do Alentejo – de Beja, de Serpa, de Mértola
– aportava ao seu destino descendo o Guadiana e bordejando depois a costa.
No caso de Loulé esse destino era o porto de Farrobilhas de onde, após descarga
De uma maneira geral as povoações de alguma importância económica e demográfica tinham ao
seu serviço um corpo de almocreves, como também os senhores, tanto laicos como eclesiásticos, incluindo,
naturalmente, o rei (MARQUES, A. H. de Oliveira – “A circulação e a troca de produtos”. In SERRÃO, Joel;
MARQUES, A. H. de Oliveira (dirs.) − Nova História de Portugal, Vol. III: Portugal em definição de fronteiras.
Do Condado portucalense à crise do século XIV. Coord. COELHO, Maria Helena da Cruz Coelho; HOMEM,
Armando Luís de Carvalho Homem. Lisboa: Presença, 1996, p. 506).
120
Humberto Baquero Moreno (A acção dos almocreves…, p. 56) acentuou, com toda a propriedade,
que graças à sua capacidade de locomoção por caminhos intransitáveis para outros modos de locomoção
complementaram com eficácia os transportes fluviais e marítimos.
121
GASPAR, Jorge − “Os portos fluviais do Tejo”. Finisterra. Revista portuguesa de geografia V/10
(1970), p. 154.
122
GIRALT RAVENTÓS, Emilio − “En torno al precio del trigo en Barcelona durante el siglo XVI”.
Hispania. Revista española de cultura XVIII/ 70 (1958), p. 45.
123
Forais manuelinos do reino de Portugal e do Algarve conforme o exemplar do Arquivo Nacional da
Torre do Tombo de Lisboa, ed. por Luiz Fernando de Carvalho Dias. Vol. 3: Entre Tejo e Odiana. Lisboa: s.n.,
1965, p. 8. Pode ver-se ainda em “Foral manuelino: transcrição e artigos”, Forais de Silves: foral afonsino de
1266; foral dos mouros forros de Silves; Tavira, Loulé e Santa Maria de Faro de 1269; foral manuelino de 1504.
Silves: Câmara Municipal de Silves, 1993, p. 173. Em especial para Loulé: “Transcrição do foral de Loulé”, por
Luís Filipe Oliveira, Maria de Fátima Botão e Teresa Rebelo da Silva, O foral de Loulé 1504 – D. Manuel, coord.
por Manuel Pedro SERRA. Loulé: Câmara Municipal de Loulé, 2004, p. 67 e também O foral de Faro de 1504,
apresentação e ed. por Luís Filipe OLIVEIRA, Faro: Câmara Municipal de Faro, 2017, p. 30.
119
UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA
205
seguia, também ele, a dorso de animais de carga, até à vila. Uma distância que embora
não sendo grande ainda era considerável e por certo encareceria algum tanto o preço.
O trigo proveniente de Mértola tinha, assim, uma excelente via de comunicação
que o colocava com a facilidade e a rapidez possíveis na época, em qualquer ponto do
Algarve. Já não assim tão facilmente o que provinha de Beja, dado o intransponível
obstáculo representado pelo Pulo do Lobo, em pleno Guadiana, a montante
de Mértola. E assim foi considerado por alguns investigadores. Porém, como
documentadamente demonstrou Hermenegildo Fernandes, isso não obstava a que
o trigo produzido nos termos de Beja e Serpa fugisse às lonjuras que representavam
o seu transporte por terra até ao Algarve, ou mesmo até Mértola, a ser aí embarcado.
Refere este investigador um documento de 1288, aliás há muito tempo publicado em
obra de referência na historiografia portuguesa124, onde se mostram barcas e baixéis
carregando em Serpa para descer o Guadiana. Naturalmente, na passagem do Pulo
do Lobo era necessário descarregar as embarcações que até aí levavam os produtos
– cereais ou quaisquer outros – a sua carga ultrapassar o escolho a dorso de animais,
para voltar a ser carregada em outros barcos e neles seguir viagem125. Havia, é certo,
que ultrapassar a Serra de Serpa, mas uma estrada que a cruzava126 mostrava bem que
por ali era caminho habitual. E devia ter começado a ser seguido desde cedo para o
transporte de cereais porque, dada a escassez cerealífera de que o Algarve sempre
padeceu, e esgotadas as fontes, naturalmente muçulmanas, que o abasteciam antes
da conquista portuguesa127 e que por esse mesmo facto deixaram de funcionar, desde
logo se devem ter começado a organizar outros circuitos de abastecimento a que o
Alentejo não podia ter ficado alheio128.
Dada a morosidade, a incomodidade e a carestia que representavam os
transportes terrestres, valia a pena fazer-se deste modo o trajecto, ainda que a
distância a percorrer não fosse demasiado longa.
O trigo que chegava ao Algarve provindo de outros lugares, nomeadamente do
estrangeiro, era transportado por via marítima.
Descobrimentos portugueses, supl. ao vol. I, doc. 103, pp. 273-274.
FERNANDES, Hermenegildo Nuno Goinhas − Organização do espaço e sistema social no Alentejo
medievo…, p. 92, nota 290.
126
MACIAS, Santiago − Mértola, último porto do Mediterrâneo…, vol. I, p. 97.
127
Seriam, por certo, o reino de Granada e o Magrebe os fornecedores preferenciais do Algarve
muçulmano, mas talvez mais ainda o segundo, porque também Barcelona, Valência, Maiorca e outros
lugares se abasteciam de cereais magrebinos, mostrando assim como eram estes os mais abundantes. Veja-se
LÓPEZ PÉREZ, María Dolores − “La circulación de cereales en el Mediterrâneo Occidental bajomedieval: la
producción magrebi”. In La Mediterrània, àrea de convergència de sistemes alimentaris (segles V-XVIII), XIV
Jornades d’estudis històrics locals, Palma, del 29 novembre al 2 de desembre de 1995. Palma de Maiorca: Institut
d’Estudis Baleàrics , 1996, pp. 170 e seg.
128
Veja-se FERNANDES, Hermenegildo Nuno Goinhas − Organização do espaço e sistema social no
Alentejo medievo…, p. 92. Aliás este autor diz mesmo que foi pelo pão que Beja se relacionou com o exterior
(FERNANDES, Hermenegildo Nuno Goinhas − Organização do espaço e sistema social no Alentejo medievo…,
p. 91).
124
125
206
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
O Algarve apresentava excelentes condições para a navegação. Diz-nos Orlando
Ribeiro que nos seus cento e sessenta quilómetros de costa, com nove cidades ou vilas
portuárias e mais seis portos menores, o litoral algarvio se apresenta como o mais rico
em estruturas portuárias de toda a extensa costa portuguesa129. E se assim é, agora ou
na época, tão próxima de nós, a que aquele geógrafo se refere, com algumas das suas
reentrâncias mais ou menos assoreadas como foi acontecendo em toda a costa, com
barcos de grande calado e necessitando condições de aportagem tão mais exigentes
do que as que pedia a navegação dos séculos XIV e XV, então, neste final da Idade
Média, os locais a possibilitarem a atracagem de navios e respectivas carga e descarga
deviam ser ainda mais numerosos. Além disso, várias das suas ribeiras lagunares
tinham capacidade para receber embarcações de grande calado, permitindo assim
algum contacto da navegação com o interior130.
Era o que acontecia com Loulé. Situada já um pouco para o interior, ao
contrario dos demais núcleos urbanos de importância socioeconómica e demográfica
semelhante à sua, beneficiava de alguma aproximação de embarcações marítimas que
o estuário do Ludo lhe proporcionava131. Aliás a localização de Loulé era excelente:
na região central do Algarve, não na costa mas próximo dela e estendendo até lá o
seu alfoz, em contacto, por isso mesmo, com as rotas marítimas; cruzavam-se nela
duas das mais importantes vias terrestres do Algarve, tanto na direcção Norte, para
“Portugal”, como na direcção Leste-Oeste, a percorrer transversalmente a região.
Por isso Maria Luísa Pinheiro Blot pôde dizer que Loulé se deve ter transformado,
desde cedo, num centro de distribuição de bens132. Ora, não foi por mero acaso nem
gratuitamente que D. Dinis criou aí a única feira algarvia133. É que, um centro de
distribuição de bens é, antes de mais, um centro de captação de bens. Aquela feira era
o reconhecimento de uma situação de facto134. E isso, em questões de abastecimento,
tem toda a importância. Para mais, partilhando Loulé as mesmas águas de Faro,
129
RIBEIRO, Orlando − Introduções geográficas à história de Portugal. Estudo crítico. Lisboa: Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, 1977, pp. 108-109. Veja-se também BLOT, Maria Luísa B. H. Pinheiro – Os portos
na origem dos centros urbanos. Contributo para a arqueologia das cidades marítimas e flúvio-marítimas em
Portugal. Lisboa: Instituto Português de Arqueologia, 2003, pp. 272-298.
130
SILVA, Gonçalo Melo da − “A coroa, as vilas e o mar: a rede urbana portuária do Algarve”. In
COSTA, Adelaide Millán da; ANDRADE, Amélia Aguiar; TENTE, Catarina (eds.) − O papel das pequenas
cidades na construção da Europa medieval. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais e Câmara Municipal de
Castelo de Vide, 2017, p. 555.
131
Já para os nossos dias Orlando Ribeiro (Introduções geográficas à história de Portugal…, mapa IV, p.
99) ainda mostra essa navegabilidade.
132
BLOT, Maria Luísa B. H. Pinheiro − Os portos na origem dos centros urbanos. Contributo para a
arqueologia das cidades marítimas…, p. 285.
133
Veja-se RAU, Virgínia − Subsídios para o estudo das feiras medievais portuguesas. Lisboa: Bertrand,
1943, mapa de entre as pp. 38 e 39 e p. 78.
134
Se as feiras medievais portuguesas nunca tiveram grande expressão foi em parte devido à situação
periférica de Portugal em relação às rotas comerciais da época. Em cada região, à sua medida, era preciso
escolher os lugares com maior centralidade para a implementação de uma feira.
UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA
207
esta, um porto natural de importância135 era-lhe fácil aceder aos produtos que aí
se descarregavam e talvez também escoar os seus próprios. Todavia não deixava de
ter, em terras de sua jurisdição – sobretudo em Farrobilhas – estruturas adequadas
às trocas que precisava fazer por via marítima136. Pelo menos em 1460 já existiam
naquela povoação armazéns – lojas – para recolha das mercadorias que chegavam
ou aguardavam embarque137. Tudo isto contribuía para, de algum modo, facilitar o
abastecimento da vila, no caso aqui tratado o abastecimento trigueiro.
3. O Pão De Cada Dia.
Se o cereal produzido pela família consumidora ou a ela trazido como pagamento
de rendas ou a outro qualquer título podia de imediato ser armazenado em celeiro
próprio a aguardar o momento de utilização, o que provinha do exterior, antes de
chegar às famílias ou aos profissionais que dele faziam o objecto dos seus negócios,
precisava seguir outros trâmites. Descarregado e armazenado devia depois, à medida
das necessidades do abastecimento, ser levado às fangas, o lugar próprio para a sua
comercialização. Aí encontrar-se-ia com algum outro que os produtores locais
quisessem vender.
As fangas estavam apensas à praça que Maria de Fátima Botão coloca fora das
muralhas e onde às segundas-feiras se realizava o mercado semanal138. A ser assim
localizar-se-iam perto da Porta de Portugal139, a Norte, uma vez que era essa a saída
para “Portugal”.
Aí ou noutro lugar que as fangas se situassem, porque a sua localização não
é ainda incontroversa140, o cereal, no acto da transacção devia ser correctamente
medido, isto é, por medidas aferidas pelos padrões do concelho e devidamente
inspeccionadas141 e sem lesar o comprador142.
135
BLOT, Maria Luísa B. H. Pinheiro − Os portos na origem dos centros urbanos. Contributo para a
arqueologia das cidades marítimas…, p. 289. Veja-se também SILVA, Gonçalo Melo da − “A coroa, as vilas e
o mar…”, p. 554.
136
Na opinião de João Cordeiro Pereira (“Organização e administração alfandegárias de Portugal no
século XVI (1521-1557)”. In Portugal na era de Quinhentos. Estudos vários. Cascais: Patrimonia Historica,
2003, p. 104), não obstante a proximidade de Faro, o porto de Farrobilhas devia ter conhecido uma intensa
actividade. Veja-se também FONTES, João Luís Inglês − “A expansão medieval…”, p. 51.
137
PEREIRA, João Cordeiro − “Organização e administração alfandegárias de Portugal no século XVI
(1521-1557)…”, p. 103.
138
BOTÃO, Maria de Fátima − A construção de uma identidade urbana…, pp. 56, 253.
139
ALMEIDA, Cristóvão de − Da vila ao termo…, p. 23. Este investigador distingue dois pontos de
venda: a praça, cuja localização levanta ainda dúvidas sobre se seria dentro ou fora das muralhas e o local do
mercado, este já fora da cerca.
140
Veja-se a planta de Loulé em BOTÃO, Maria de Fátima − A construção de uma identidade urbana…,
pp. 453.
141
Ordenações Afonsinas…, liv. I, tít. XXVIII, §§ 4, 11, pp. 181, 184. Mas este era um cuidado que as
edilidades não descuravam.
142
No acto de vender era muito fácil introduzir a fraude. Veja-se, sobre este assunto, GONÇALVES,
208
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Para este como para todo o outro trigo, o destino primeiro era o moinho, isto
é, a farinação.
Em todo o Algarve funcionavam moinhos de água doce e salgada, os primeiros
edificados em cursos de água secundários ou terciários e movidos pela corrente; os
segundos nos numerosos canais que recortam a costa e accionados pelo movimento
das marés. Dada a localização geográfica e mesmo topográfica do Algarve e a secura
climática que lhe é própria, boa parte daqueles veios de água secavam parcial ou
mesmo totalmente durante o Verão, pelo que as moendas a eles ligadas trabalhavam
apenas durante o Inverno, ao passo que as segundas, azenhas movidas pelas marés,
funcionavam durante todo o ano. Por isso estas seriam mais numerosas143; por isso
o monarca as reservou para si144. Concretamente em Loulé o rei chamou a si as
moendas do reguengo da Quarteira e das salinas da vila145.
Para lá destes engenhos havia em Loulé muitas mós manuais146 que, como é
óbvio, produziriam bastante menos farinha do que os engenhos moageiros e o
trabalho resultava mais caro, mas cujo produto final seria de melhor qualidade147.
Embora na vila se estabelecesse, tanto para quem trabalhava com engenhos
moageiros como para quem funcionava com mós manuais um pagamento em
numerário – embora em moeda diferente, talvez a indiciar épocas também diferentes
de fixação dos preços – pagamento fixado em vinte soldos e em três reais por alqueire
de cereal, respectivamente148, nos forais, também nos manuelinos e como geralmente
acontecia na prática, os ganhos do moleiro eram fixados em espécie e correspondiam
a um alqueire por cada catorze que fossem moídos149, isto é, a um lucro de pouco
mais de 7%, semelhante ao que era praticado em outras cidades portuguesas como,
por exemplo, Évora150. Não me foi possível saber se a moedura saída das mós manuais
era efectivamente onerada naqueles três reais por alqueire, ou o seria também em
Iria − “Defesa do consumidor na cidade medieval: os produtos alimentares (Lisboa – séculos XIV-XV)”. In Um
olhar sobre a cidade medieval. Cascais: Patrimonia Historica, 1996, pp. 107-110.
143
SILVA, Teresa Rebelo da − “Azenhas e moinhos no Algarve: segunda metade do século XIII e século
XIV”. Arqueologia Medieval 6 (1999), pp. 213-223.
144
Forais manuelinos do reino de Portugal e do Algarve..., Vol. 5: Entre Tejo e Odiana, pp. 19-20; SILVA,
Teresa Rebelo da − “Azenhas e moinhos no Algarve: segunda metade do século XIII e século XIV...”, p. 213;
SILVA, Teresa Rebelo da − Os recursos alimentares no Algarve Oriental…, p. 37; MAGALHÃES, Joaquim
Antero Romero de − Para o estudo do Algarve económico…, p. 61.
145
SILVA, Teresa Rebelo da − “Azenhas e moinhos no Algarve: segunda metade do século XIII e século
XIV…”, p. 215.
146
ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV, p. 133.
147
MALTEZ, Maria Teresa Nesbitt Rebelo da Silva − Os recursos alimentares no Algarve oriental…,
p. 37. Veja-se também GONÇALVES, Iria − “A propósito do pão da cidade…”, p. 63, onde se citam para esta
época os casos de Lisboa e Évora, em tudo condizentes com o de Loulé. Veja-se ainda, neste último texto, a
nota 90.
148
ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., p. 133.
149
Forais manuelinos do reino de Portugal e do Algarve…, Vol. 5: Entre Tejo e Odiana, pp. 19-20;
“Transcrição do foral de Loulé…”, p. 44.
150
GONÇALVES, Iria − “A propósito do pão da cidade…”, p. 63,
UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA
209
espécie e de que modo.
Obtida a farinha a fase seguinte era a confecção da massa. Esta podia ser da
responsabilidade de padeiras profissionais, e neste final da Idade Média todas as
cidades e vilas tinham ao seu serviço um grupo mais ou menos numeroso de mulheres
que anualmente se comprometiam, perante os órgãos directivos da localidade, a
confeccionar o pão necessário às famílias que o quisessem adquirir por compra. Era
este um trabalho muito regulamentado por posturas locais e pela lei geral e muito
controlado pelos almotacés151, de modo a garantir que o consumidor não fosse lesado
nas suas compras. As padeiras e os demais agentes deste tipo de comércio, após o
seu compromisso de trabalho deviam começar a exercer a profissão no início do ano
económico, que principiava em diferentes datas, mas que em Loulé tinha início no
primeiro dia de Abril152, e a partir daí tornavam-se “obrigadas” ou “cadimas”, como a
documentação se lhes refere, até igual dia do ano seguinte153.
Aparentemente, em finais do século XV o concelho só teria uma padeira
“obrigada” – a documentação refere-se-lho no singular e di-la, ao mesmo tempo,
vendedeira de legumes154 – mas outras padeiras, talvez não “obrigadas”, exerciam
também a profissão, expondo os seus pães talvez no mesmo alpendre em que aquela
primeira trabalhava, talvez pela vila155. Tinham o seu lucro estipulado pela vereação:
um real por cada vinte, isto é, 5% do valor das vendas e quando a padeira do concelho
começou a cobrar para si um real por cada quinze, quer dizer, 6,66%, a edilidade
interveio para repor a antiga prática156.
Não sabemos como era este pão que se vendia em Loulé, como, aliás, também
pouco sabemos relativamente a outras cidades. No entanto aqui, nesta vila, para lá
do pão controlado pelos almotacés e nem todo, por certo, de primeira qualidade,
destinado ao comum da população, em inícios do século XV exercia uma padeira,
mulher “rica e honrada” que fora, mas perdera os seus bens, e a quem os órgãos locais
de gestão deram a incumbência de confeccionar um “pam bramco stremado”, à base de
GONÇALVES, Iria − “A propósito do pão da cidade…”, pp. 64-65.
GONÇALVES, Iria − “Despesas da câmara municipal de Loulé em meados do século XV”. In Um
olhar sobre a cidade medieval. Cascais: Patrimonia Historica, 1996, pp. 192. Loulé não escolhera, para este
efeito, a data, ao menos entre nós, a mais habitual: 24 de Junho, dia da festa de S. João Baptista.
153
Como também determinavam as leis gerais do reino: Ordenações del-rei D. Duarte, ed. por Martim
de Albuquerque e Eduardo Borges Nunes. Lisboa, 1988, pp. 366-367; Ordenações Afonsinas…, liv. I, tít.
XXVIII, § 3, p. 181.
154
ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV, p. 200. Era manifestamente pouco para uma vila como
Loulé, não obstante haver aí outras padeiras não comprometidas a apresentar quotidianamente, pão para
venda. É certo que em 1538 ainda só trabalhavam em Loulé quatro destas padeiras (MAGALHÃES, Joaquim
Antero Romero de − Para o estudo do Algarve económico…, p. 64) mas em inícios do século XV Montemor-oNovo tinha já ao seu serviço um grupo de dez padeiras profissionais (FONSECA, Jorge − Montemor-o-Novo
no século XV. Montemor-o-Novo: Câmara Municipal de Montemor-o-Novo, 1998, pp. 43-44). Isto, para não
falar em cidades mais importantes.
155
ACTAS de vereação de Loulé. Século XVI.1522-1527, pp. 111, 113.
156
ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., p. 200. O mesmo acontecia em outras cidades:
GONÇALVES, Iria − “A propósito do pão da cidade…”, p. 71.
151
152
210
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
trigo bem moído157. Esse pão seria amassado com farinha peneirada no mínimo duas
vezes, eventualmente três, por peneiras de malha cada vez mais apertada, de modo a
que só um pó bem fino e branco quedasse após a última peneiração. A moedura saída
do moinho – neste caso, por certo, de mó manual – ficara drasticamente reduzida,
mas o pão que com ela se elaborava era branco, fofo, macio158. Em resumo: “bramco
stremado”, como ficara estabelecido.
Resultava muito caro este pão e só as famílias mais abonadas podiam dar-se
ao prazer de o saborear quotidianamente. Neste caso ficou dito que ele se destinava
aos estrangeiros e homens “honrados” e a padeira em causa não ficava sujeita
aos constrangimentos que pesavam sobre as demais. Podia fixar o seu preço sem
qualquer impedimento, a não ser aquele que ditava o jogo da oferta e da procura, que
neste caso nem funcionaria tão apertadamente como em circunstâncias normais: por
um lado, não havia concorrência, por outro, como o produto se destinava apenas aos
mais ricos, talvez o preço não fosse um sério obstáculo à sua aquisição.
Para lá destas padeiras, algumas donas de casa, quando coziam a fornada de
pão familiar separavam dela algumas unidades que vendiam na vila. Em regra esse
pão também não se encontrava sujeito a constrangimentos de ordem legal, tanto
no que se refere ao peso como ao preço. Em Loulé acontecia isso mesmo. Podemos
ficar a saber, embora a partir de informação proveniente já do século XVI, que uma
mulher pobre – mas por certo não seria a única – quando tinha um alqueire de
farinha amassava-o e vendia o pão pela vila, mandando também algum ao alpendre
– o habitual posto de venda – como, aliás, os governantes queriam159.
Não obstante a indispensabilidade desse pão, assim posto quotidianamente à
venda para o correcto abastecimento da população urbana, nestes finais da Idade
Média, muitas famílias citadinas confeccionavam, elas próprias, o seu pão, e talvez
aqui, em Loulé, fosse mesmo a maioria das famílias, se não sempre, pelo menos
várias vezes. O que acontecia em todos os núcleos urbanos. Com efeito, sempre que
é possível ter acesso ao recheio das casas medievais, raramente faltam pelo menos
alguns dos apetrechos necessários ao fabrico do pão160 e o mesmo acontecia nesta
vila. É certo que quando conhecemos o mobiliário de algumas casas louletanas,
raramente encontramos referenciadas peneiras ou masseiras, mas a existência,
Actas citadas na nota anterior, pp. 192-193.
Já por diversas vezes me referi a este pão medieval de primeira qualidade. Veja-se sobretudo À mesa
nas terras de Alcobaça…, pp. 135-136.
159
ACTAS de vereação de Loulé. Século XVI. 1522-1527, p. 111.
160
VINYOLES I VIDAL, Teresa-Maria − La vida quotidiana a Barcelona vers 1400. Barcelona: R.
Dalmau, 1985, p. 48; NADA PATRONE, Anna Maria − Il cibo del ricco ed il cibo del povero. Contributo alla
storia qualitativa dell’ alimentazione. L’Arga Pedemontana negli ultimi secoli del Medio Evo. Turim: Centro
Studi Piemontesi, 1989, p. 99; STOUFF, Louis − La table provençale. Boire et manger en Provence à la fin du
Moyen Âge. Avinhão: Editions A. Barthélemy, 1996, p. 12 e vários outros autores mais.
157
158
UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA
211
em quase todas as moradas, de tábuas ou tabuleiros de levar pão ao forno161, bem
documenta a sua confecção caseira. Se outros artefactos indispensáveis para o efeito
podiam não ser encontrados na maior parte das casas, seriam, por certo, substituídos
por outros: a masseira por um alguidar ou bacia grande, que esses existiam sempre;
a peneira por empréstimo junto de uma vizinha. É sabido que as casas medievais
da gente comum raramente eram auto-suficientes e que o intercâmbio de artefactos
domésticos se tornava bastante frequente. Situação que não se esgotou na Idade
Média e se prolongou a épocas bastante posteriores.
Se pouco se sabe sobre as massas confeccionadas pelas padeiras profissionais,
menos ainda se conhece sobre aquelas que as donas de casa preparavam para a
família. No entanto, dentro destas haveria uma grande variedade e elas seriam mais
ou menos finas e brancas, mais ou menos bem elaboradas, de acordo, por um lado,
com a mestria de quem as amassava, por outro, com as possibilidades económicas
das famílias, e do desgaste que elas podiam suportar na moedura trazida do moinho,
quer dizer, da taxa de extracção de farinha. Se queriam e podiam consumir um
“pão branco”, como todos na altura gostavam de saborear, a peneiração, feita com
peneiras de malha mais fina, gerava muitos desperdícios; se, pelo contrário, tinham
que contentar-se com um pão mais rústico, menos branco e macio, então usavam
peneira de malha mais larga, a farinha daí resultante seria menos branca e fina, mas
em maior quantidade. O cereal que a família levara ao moinho rendia, por isso,
bastante mais162.
Embora confeccionados à base do mesmo trigo, os pães domésticos podiam,
assim, apresentar-se muito diferentes. Consoante as possibilidades económicas
das famílias, é certo, mas também, para o comum da população, gente pouco ou
apenas medianamente abonada, consoante a época do ano que se ia atravessando.
Como atrás ficou lembrado, o cereal encarecia nos mercados à medida que o mês das
ceifas ia ficando mais distanciado, por um lado, porque o trigo escasseava sempre
antes das novas colheitas e, por outro, porque cada vez maior número de famílias ia
esgotando as suas reservas e precisava abastecer-se por compra. Então, em muitas
casas, era preciso poupar. E foi este mais um dos fenómenos que se prolongou no
tempo até quase aos nossos dias. Mas no que se refere à qualidade do pão caseiro,
as circunstâncias podiam proporcionar uma diferenciação de sentido oposto, isto
é, no sentido de um produto melhorado em função de certos dias diferentes – festa
religiosa ou mesmo familiar, por exemplo – em que convinha apresentar um pão
Fundo dos órfãos de Loulé. Séculos XV e XVI, ed. org. por Maria de Fátima Machado. Loulé: Câmara
Municipal de Loulé, 2016, passim; MACHADO, Maria de Fátima − “Os órfãos de Loulé e a gestão do seu
património nos séculos XV e XVI”. Al’-Ulyā 17 (2017), p. 57.
162
Já por mais de uma vez me referi a este assunto. Podem ver-se: GONÇALVES, Iria − “A propósito do
pão da cidade…”, pp. 66-67; GONÇALVES, Iria − À mesa nas terras de Alcobaça…, pp. 135-136 e abonações
que num caso e noutro foram apresentadas.
161
212
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
mais cuidado.
As diferenças podiam ser, na verdade, muito grandes.
Mas todo o pão, de qualidade apurada ou muito rústico, precisava passar pelo
forno. Se as mãos que amassavam eram, na Idade Média, quase sempre femininas163,
também no forno o pão continuava a ser manipulado por mãos femininas: as da
forneira. Mulher que trabalhava em forno de propriedade régia, uma vez que o
monarca se reservara, tanto em Silves como na generalidade das vilas algarvias, com
pequenas excepções, todos estes instrumentos de produção164.
Em Loulé assim era, tanto na vila como nas aldeias do termo ninguém podia
construir forno nem fornalha para cozer pão, salvo em quintas ou casais isolados
onde não houvesse fornos régios e exclusivamente para consumo próprio165.
Deste modo todos os louletanos precisavam recorrer à forneira e pagar o
respectivo trabalho. Esse trabalho era, como na generalidade dos casos, satisfeito
em géneros: um pão por um determinado grupo de unidades que se levara cozer,
número variável de lugar para lugar. Era a chamada poia que também em regra devia
ser um pouco maior do que os outros pães166, costume que, mais uma vez, chegou
quase aos nossos dias em muitas aldeias portuguesas.
Em Loulé o pagamento à forneira ficou indicado nos chamados forais
manuelinos: um pão por cada grupo de vinte e cinco167. Isto é, 4% da fornada ou
apenas ligeiramente mais, caso a poia devesse ser um pouco maior, o que não
encontrei expresso168.
Se os ganhos atribuídos a todos estes profissionais eram bastante reduzidos
– embora, como atrás ficou lembrado tidos como “aguisados” pelos homens bons
do concelho que faziam, neste como em tantos outros assuntos, a lei local – os que
tocavam às forneiras eram os mais diminutos.
É interessante verificar que quando se trata de profissões relacionadas com o trabalho doméstico
a documentação emprega sempre, ou quase sempre, os vocábulos no feminino e o caso das padeiras é, a este
respeito, paradigmático. E Loulé não era excepção. Basta folhear os livros de vereação e isso fica bem claro.
164
Forais manuelinos do reino de Portugal e do Algarve..., Vol. 5: Entre Tejo e Odiana, p. 19.
165
“Transcrição do foral de Loulé…”, pp. 102-103.
166
GONÇALVES, Iria − “A propósito do pão da cidade…”, p. 89.
167
Forais manuelinos do reino de Portugal e do Algarve…, Vol. 5: Entre Tejo e Odiana, pp. 19-20;
“Transcrição do foral de Loulé…”, p. 103.
168
Estes ganhos podiam variar de uma para outra povoação e até numa mesma vila podiam vigorar
tabelas diferentes. Em trabalho anteriormente realizado encontrei, para diversas povoações portuguesas, um
leque a variar entre os 4% e os 8,3% (GONÇALVES, Iria − “A propósito do pão da cidade…”, p. 70).
163
UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA
213
214
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
“In civitate Minorise
et per totam Cathaloniam
est magna carestia et penuria bladi”
La gestión municipal del aprovisionamiento
de trigo en Manresa durante
la crisis de 1333-13341
Adrià Mas Craviotto2
Resumen
La crisis de trigo de los años 1333-1334 más conocida como “lo mal any
primer”, fue una de las más devastadoras del siglo XIV sobre los territorios
que integraban la Corona de Aragón y especialmente Cataluña. Durante esta
crisis las ciudades tuvieron que asumir políticas públicas de abastecimiento
frumentario para evitar el desorden público y el hambre de sus poblaciones.
La carestía afectó también a las ciudades y pueblos del interior del país de una
forma muy clara, de manera que se ha propuesto estudiar el caso de la ciudad
de Manresa (comarca del Bages, Cataluña) y las políticas que llevó a cabo su
consejo con el fin de proveer de cereales su población, ya que el trigo era el
alimento más estratégico y esencial que no podía faltar nunca en las dietas
medievales.
Palabras clave
Aprovisionamiento; Crisis; Trigo; Cereales; Manresa.
Este artículo forma parte del proyecto de investigación: “Mercados y comercialización de vituallas
en el Mediterráneo occidental, siglos XI-XV: Factores e indicadores de desarrollo e integración regional
y supraregional”, financiado por el Ministerio de Economía y Competitividad del Gobierno de España
(HAR2016-80298-P). Abreviaturas utilizadas: AHCM, Arxiu Històric de la Ciutat de Manresa; AHPM, Arxiu
Històric de Protocols de Manresa; DCVB, Diccionario catalán, valenciano y balear Alcover Moll.
2
Grup de Recerca Consolidat en Estudis Medievals. Espai, Poder i Cultura. Universitat de Lleida.
1
216
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
“In civitate Minorise et per totam Cathloniam est magna carestia
et penuria bladi”: The council policy supply of wheat in Manresa
during the crisis of 1333-1334.
Abstract
The wheat crisis of the years 1333-1334, better known as “lo mal any primer”,
was one of the most devastating of the 14th century in the territories that
integrated the Crown of Aragon and more specially Catalonia. During this
crisis, the cities had to assume public policies of wheat provisioning and avoid
public disturbances and famine of its citizens. The famine also affected the cities
and villages of the interior of the country very clearly, so the aim of this article
is examine the case of Manresa (region of Bages, Catalonia) and the policies
that were carried out by its government with the intention of providing its
population with cereals, since the bread was the most strategic and essential
food that could never be missing on the tables and medieval diets.
Keywords
Provisioning; Crisis; Wheat; Cereals; Manresa.
1. Introducción.
El aprovisionamiento alimentario de las ciudades catalanas en la baja edad media se
ha convertido durante los últimos años en una línea de investigación remarcable a
la hora de estudiar los factores que incidieron en las crisis alimentarias durante este
periodo. Para empezar es necesario diferenciar por un lado las políticas de estado
que llevaron a cabo los diferentes soberanos de la Corona de Aragón sobre el control
de los distintos mercados alimentarios y los factores que los integraban, y por otro
las medidas y políticas municipales que adoptaron los diferentes gobiernos de las
ciudades catalanas a la hora de hacer frente a la emergencia de las crisis, a frenar las
subidas de precios, a luchar contra el acaparamiento y las actividades especulativas,
y sobre todo garantizar el aprovisionamiento de sus habitantes3.
3
BENITO I MONCLÚS, Pere – “El rey frente a la carestía. Políticas frumentarias de estado en la Europa
Medieval”. In PALERMO, Luciano; FARA, Andrea; BENITO I MONCLÚS, Pere (eds.) – Políticas contra el
hambre en la Europa Medieval. Lleida: Milenio, 2018, pp. 37-38.
“IN CIVITATE MINORISE ET PER TOTAM CATHALONIAM EST MAGNA CAR ESTIA [...]”
217
El objetivo de este artículo es poner de manifiesto las diferentes políticas
que llevaron a cabo los miembros del poder político municipal de la ciudad de
Manresa (comarca del Bages, Cataluña) durante la carestía de 1333-1334, con el fin
de garantizar el aprovisionamiento frumentario de sus habitantes, luchar contra el
alzamiento de precios así como los posibles fraudes que se pudieran cometer para
finalmente, mantener la paz urbana y evitar a toda costa cualquier revuelta o estallido
de violencia urbana que se pudiese desencadenar. Nos centraremos especialmente en
las diferentes medidas de control y políticas de aprovisionamiento que los consejeros
ordenaron durante los meses que duró la carestía de 1333-1334. Esta hambruna,
conocida por la historiografía catalana con el nombre de “lo mal any primer” fue
consecuencia de un conjunto sucesivo de causas económicas, climáticas y políticas
en la zona del Mediterráneo occidental4.
Estos años fueron de una excepcionalidad sin precedentes durante las primeras
décadas del 1300, y la historiografía moderna la ha definido como la primera de
las grandes hambrunas del siglo XIV, solo comparable por la magnitud de sus
consecuencias a la hambruna de 1374-1376. Joan Montoro afirma que la mala cosecha
de 1333 desencadenó un proceso inflacionista que no se detendría hasta 1336 con un
aumento exorbitante de los precios de los cereales y otros alimentos esenciales como
la carne, el vino, el aceite y las legumbres5. A esta hambruna también se le relaciona
una mortalidad epidémica que agravó definitivamente la situación, especialmente
en núcleos urbanos de primer orden como Barcelona. Según el Memorial histórico
de Joan Francesc Boscà, en esta ciudad en 1334 “moriren de pestilencia e altras
4
Sobre la hambruna de 1333-1334 en Cataluña, vea: RIERA VIADER, Sebastià – “El mal any primer”.
Una crisi de subsistències a la baixa edat mitjana: 1333-1334. Bellaterra: Universitat Autònoma de Barcelona,
1979. Tesis de licenciatura inédita; SERRA I PUIG, Eva – “Els cereals a la Barcelona del segle XIV”. Alimentación
i societat a la Catalunya medieval. Barcelona: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1988, pp. 71-77;
RUBIÓ I VELA, Agustí – “A propósito del ‘mal any primer’. Dificultades cerealísticas en la Corona de Aragón
en los años treinta del siglo XIV”. In Estudios dedicados a Juan Peset Aleixandre, vol. 3. Valencia: Universitat
de València, 1982, p. 481; MUTGÉ I VIVES, Josefina – Política, urbanismo y vida cotidiana en la Barcelona del
siglo XIV. Barcelona: Institució Milà i Fontanals, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2004, pp.
216-251. CÁCERES NEVOT, Juan José – La participació del Consell Municipal en l’aprovisionament cerealer
de la ciutat de Barcelona (1301-1430). Barcelona: Universitat de Barcelona, Tesis doctoral, 2006, pp. 121-131.
Acessible en: http://www.tdx.cat/handle/10803/2067; MELONI, G; ALIAS, F. – “Rendes e messions en la illa
de Sardenya (1333)”. In DALENA, Pietro; URSO, Carmelina (eds.) – Ut sementem feceris, ita metes: studi in
onore di Biagio Saitta. Acireale: Bonanno editore, 2016, pp. 299-346; BENITO I MONCLÚS, Pere; MONTORO
I MALTAS, Joan – “Fams immortalitzades. El ‘mal any primer’ (1333-1334) dins l’annalística catalana de la
baixa edat mitjana”. In CASTELNUOVO, Guido, SANDRINE, Victor (eds.) – L’Histoire à la source: acter,
compter, enregistrer (Catalonie, Savoie, Italie, XIIe - XVe siècle). Mélanges offerts à Christian Guilleré. Chambéry:
Université Savoie Mont Blanc, 2017, vol. 1, pp. 503-520; RIERA I MELIS, Antoni – “Crisis cerealistas, políticas
públicas de aprovisionamiento, fiscalidad y seguridad alimentaria en las ciudades catalanas durante la Baja
Edad Media”. In PALERMO, Luciano; FARA, Andrea; BENITO I MONCLÚS, Pere (eds.) – Políticas contra el
hambre en la Europa Medieval. Lleida: Milenio, 2018, pp. 253-254.
5
MONTORO I MALTAS, Joan – “Del cot fet per lo señor infant en Pere en la ciutat de Leyda”. In
PALERMO, Luciano; FARA, Andrea; BENITO I MONCLÚS, Pere (eds.) – Políticas contra el hambre en la
Europa Medieval. Lleida: Milenio, 2018, p. 85.
218
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
malaltias” muchas personas, llegando a cifras de hasta 10.000 almas6.
Por otro lado, Montoro ha estudiado los efectos devastadores de esta crisis a
partir de la producción de documentación testamentaria en la misma ciudad de
Barcelona, así como en otras poblaciones como Puigcerdà, Vic, algunas parroquias
del Camp de Tarragona y Verdú (Lérida). Los resultados a los que llegó revelaron
que fue la mortalidad más importante antes de la Peste Negra (1348), ya que pudo
ver un aumento de la producción de testamentos entre los meses de abril y junio
que concluyó entre setiembre y noviembre, es decir, entre los meses más calurosos
del año7. Para terminar con esta breve síntesis sobre la hambruna de 1333-1334
convendría hablar de otro índice de gravedad de la carestía, y son los diferentes
estallidos de violencia popular –urbana sobre todo- que se produjeron a causa del
incremento de precios del cereal y las grandes dificultades para aprovisionar estos
núcleos.
Se documentan revueltas en Barcelona y en Puigcerdà como respuesta a la
crítica y desesperada situación que se estaba viviendo durante los meses más duros
de la crisis8. Actualmente, disponemos de estudios de caso dentro del Principado
dedicados al impacto de esta grave carestía en algunas de las ciudades más notables
como Barcelona9, Cervera10, Girona11 y Tortosa12 entre otras. En cambio, para el
caso de la ciudad de Manresa no disponemos de ningún estudio relacionado con
la temática ni el periodo. Si bien es cierto que se han realizado estudios sobre las
consecuencias de la crisis bajo medieval en Manresa y varios lugares de la comarca
del Bages, la mayoría se han dedicado a la segunda mitad del siglo XIV y de forma
mucho más completa al siglo XV. A lo largo de las últimas décadas han aparecido
estudios que han tratado esta temática desde ópticas diferentes, donde todas intentan
BENITO I MONCLÚS, Pere; MONTORO I MALTAS, Joan – “Fams immortalitzades. El ‘mal any
primer’ (1333-1334) dins l’annalística catalana de la baixa edat Mitjana…”, p. 518.
7
MONTORO I MALTAS, Joan – “Del cot fet per lo señor infant en Pere en la ciutat de Leyda…”, p. 85.
8
BENITO I MONCLÚS, Pere; MONTORO I MALTAS, Joan – “Fams immortalitzades. El ‘mal any
primer’ (1333-1334) dins l’annalística catalana de la baixa edat Mitjana …”, pp. 516-518.
9
SERRA I PUIG, Eva – Los cereales en la Barcelona del siglo XIV. Barcelona: Universitat de Barcelona,
1967. Tesis de licenciatura. BATLLE, Carme – La crisis social y económica de Barcelona a mediados del siglo
XIV. Barcelona: Universitat de Barcelona, 1970, I, p. 50. RIERA VIADER, Sebastià – El ‘Mal Any Primer’: Una
crisi de subsistència a la Baixa Edat Mitjana: 1333-1334. Bellaterra: Universitat Autònoma de Barcelona, 1979.
Tesis de licenciatura. ORTÍ GOST, Pere – “El forment a la Barcelona baixmedieval: preus, mesures i fiscalitat
(1283-1345)”. Anuario de Estudios Medievales 22 (1992), pp. 377-423. LÓPEZ PIZCUETA, Tomás – “El ‘mal
any primer’: Alimentación de los pobres asistidos en la Pia Almoina de Barcelona: 1333-1334”, In Actes del
Primer Col·loqui d’Història de l’alimentació a la Corona d’Aragó. Lleida: Institut d’Estudis Ilerdencs, 1995, pp.
613-623. CÁCERES NEVOT, Juan José – La participació del Consell Municipal en l’aprovisionament cerealer a
la ciutat de Barcelona (1301-1430)...”.
10
TURULL I RUBINAT, Max – “El ‘mal any primer’ a Cervera: trasbals sòcio-polític i crisi de
subsistencia (1333)”. Cervera: Miscel·lània cerverina 4 (1986), pp. 23-54.
11
GUILLERÉ, Christian – Girona al segle XIV, t.1. Girona-Barcelona: Ajuntament de GironaPublicacions de l’Abadia de Montserrat, 1994, pp. 289-328.
12
CURTÓ I HOMEDES, Albert – La intervenció municipal en l’abastament de blat d’una ciutat
catalana: Tortosa, segle XIV. Barcelona: Fundació Salvador Vives i Casajuana, 1988.
6
“IN CIVITATE MINORISE ET PER TOTAM CATHALONIAM EST MAGNA CAR ESTIA [...]”
219
confluir para entender de forma más precisa y detallada los efectos de esta crisis en la
denominada Cataluña Central. Con relación a la temática de las crisis alimentarias,
Marc Torras i Serra, historiador local y archivero de l’Arxiu Comarcal del Bages,
realizó un estudio notable sobre la hambruna y carestía de trigo que tuvo lugar entre
1374-1376 en Manresa con una base documental muy variada en la que intentó
analizar los efectos devastadores de esta crisis, más conocida como “l’any de la fam”
o el año de la hambruna.
Tal como él mismo afirmó, los resultados fueron bastante decepcionantes, ya
que había poca documentación que efectivamente hiciera referencia a los efectos de
esta crisis, y las pocas noticias que disponía procedían de fuentes de origen municipal.
No obstante, esto le permitió ver cuál fue la actuación del consejo municipal para
hacer frente a la hambruna que se presentó durante esos años en la ciudad13. De
momento pues, esto es todo lo que disponemos sobre los estudios de las crisis
alimentarias y sus efectos en Manresa, cosa que deja un panorama realmente pobre
que permanece a la espera de nuevas investigaciones que amplíen o profundicen sobre
la temática. Respecto a la carestía que aquí se tratará, la de 1333-1334, desconocemos
completamente la existencia a nivel local o comarcal de ningún estudio que haya
trabajado sobre ella. Este artículo pues, pretende abrir nuevos horizontes aportando
nuevas informaciones sobre los primeros años del siglo XIV, por otra parte poco
estudiados en Manresa. Con esta aportación pretendemos también a ampliar las
investigaciones que se han hecho en Cataluña y que han puesto el foco de atención en
cuestiones relacionadas con la temática que aquí se pretende abordar, siendo este un
nuevo estudio de caso sobre “el mal any primer” y sus efectos en una de las ciudades
importantes del interior del Principado.
2. Manresa a principios del siglo XIV.
Durante el reinado de Alfonso el Casto (1162-1196) se inició la recuperación del
control real del territorio que había estado hasta entonces en manos de poderes locales
y de una nobleza cada vez más independiente de la monarquía. Este fue un proceso
continuado que se intensificó con sus sucesores, especialmente con Jaime I, Pedro
el Grande y Alfonso el Liberal. Los diferentes señores feudales se habían otorgado
y engrandecido un poder a lo largo de los siglos XI y XII que llevó a un proceso
de descentralización feudal. Una de las principales estrategias de la monarquía para
combatir estos poderes señoriales fue la de fortalecer las figuras de los funcionarios
reales en sus dominios, denominados veguers o vicarios. Durante estos años, y
13
TORRAS I SERRA, Marc – “La carestia de blat de 1374-1376 a Manresa”. In TORRAS I SERRA, Marc
(coord.) – La crisi de l’Edat Mitjana a la Cataluña Central. Manresa: Centre d’Estudis del Bages. Miscel·lània
d’Estudis Bagencs, 9, 1994, pp. 101-138.
220
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
especialmente durante el reinado de Jaime I los veguers serian designados como los
guardianes de la paz y tregua14, ejerciendo el poder ejecutivo en caso de infracción
real en un territorio determinado, mientras que el poder de los obispos quedaría
relegado únicamente a las penas de excomunión15.
Con la figura de los veguers reforzada, la paz y tregua se ampliaría por todo el
territorio de la Cataluña interior limitando de forma eficaz el poder de la nobleza
local, y fue durante el reinado de Jaime I que se establecerían las bases de las veguerías
bajo medievales, territorios sometidos a la jurisdicción del veguer. La historia de
la veguería de Manresa, tal como afirma Fynn-Paul, está estrechamente ligada a la
concesión que Jaime I hizo al vizconde de Cardona en 1254, según la cual el rey le
cedía Manresa, Vilafranca y otras jurisdicciones de manera vitalicia y a cambio el
vizconde tenía que poner treinta caballeros al servicio del monarca. El vizconde de
Cardona y el rey Jaime I murieron en 1276, y pocos meses después el rey Pedro el
Grande (1276-1285) establecía una veguería en el territorio del Bages con capital en
Manresa, mientras que sus sucesores Alfonso el Liberal (1285-1291) y Jaime II (12911327) la fortalecerían delimitando su territorio y jurisdicción16. Tanto los veguers
como sus homónimos locales, los bailes, tenían unas funciones muy concretas. Los
primeros eran funcionarios reales ordinarios que se encargaban de administrar
justicia civil y criminal en un distrito o comarca, siendo los principales encargados
del mantenimiento del orden público. El baile era por otra parte el representante del
rey en una ciudad, villa, lugar o zona de jurisdicción real que estaba subordinado al
veguer correspondiente. Administraba los bienes reales en este territorio y a su vez,
en tanto que juez ordinario, ejercía la jurisdicción civil y criminal, pero solamente en
causas menores e infracciones de poca gravedad17. Este oficial también supervisaba
y se encargaba de que se cumpliera el sistema de impuestos, que será cada vez más
complejo a medida que avance el siglo XIV, y por último garantizaba las transacciones
de bienes inmuebles y aseguraba que los bienes de los habitantes de Manresa fueran
divididos según las leyes de herencia y testamentos18.
Entre 1280 y 1320 la ciudad experimentó un notable crecimiento demográfico y
económico que le permitió adquirir importancia a escala regional. Este nuevo papel
14
La paz y tregua, más conocida como la paz y tregua de Dios, fue una institución impulsada por las
altas jerarquías eclesiásticas con el fin de proteger los campesinos y los bienes de la Iglesia de la violencia y las
extorsiones que los señores feudales perpetraban. En Cataluña el gran artífice de este movimiento es el abad
Oliba (971-1046) quien la proclamó por primera vez en el concilio de Toluges (1027).
15
FYNN-PAUL, Jeff – Auge i declivi d’una burgesia catalana. Manresa a la baixa edat mitjana, 12501500. Manresa: Centre d’Estudis del Bages. Zenobita Edicions, 2017, p. 51.
16
FYNN-PAUL, Jeff – Auge i declivi d’una burgesia catalana. Manresa a la baixa edat mitjana, 12501500…”, p. 51.
17
TORRAS I SERRA, Marc – “L’extensió territorial de la veguería i la batllia de Manresa”. Manresa:
Dovella, 1994, p. 16.
18
FYNN-PAUL, Jeff – Auge i declivi d’una burgesia catalana. Manresa a la baixa edat mitjana, 12501500…”, p. 52.
“IN CIVITATE MINORISE ET PER TOTAM CATHALONIAM EST MAGNA CAR ESTIA [...]”
221
como centro económico fue potenciado aún más por numerosos privilegios que los
diferentes soberanos fueron otorgando a lo largo de estos años. En 1284 Pedro el
Grande concedía a la ciudad el derecho de celebrar una feria anual de ocho días que
empezaba para la fiesta de la Ascensión19 y Jaime II concedió en 1311 una segunda
feria que se celebraba el 30 de noviembre, día de san Andrés, y que duraba diez días20.
Al mismo tiempo, la ciudad adquiría importancia a nivel político, y sus dirigentes
empezaban a denominarse probi homines en varios documentos. Las nuevas élites
manresanas se estaban enriqueciendo con los negocios de la tierra, negocios que por
otra parte les permitieron ascender en el escalafón social y político, convirtiéndose
en el denominado patriciado urbano de la ciudad. Las instituciones municipales
también tendrían en este momento su pistoletazo de salida, siendo la escribanía
real la más representativa, que acabaría consolidándose de forma definitiva también
bajo el reinado de Jaime II. En este momento se conservaban los registros del veguer
y del baile, series documentales hechas por el gobierno de la ciudad, manuales
notariales, libros privados donde se registraban los diferentes negocios de los judíos
de Manresa, libros comunes, etc. Fynn-Paul afirma que estos registros permitieron
a los manresanos establecer nuevas formas de control de su entorno, de sus vidas y
de sus interacciones con otros ciudadanos, clérigos, funcionarios reales y nobles. La
escribanía también dio a las élites un registro importante del pasado de la ciudad,
aportando a sus dirigentes un cierto sentido de perspectiva histórica, y a raíz de eso
se puede pensar que se alentaba a sus ciudadanos a pensar en la futura grandeza de
su ciudad21.
Jaime II fue también el encargado de diseñar una de las bases del crecimiento
económico y comercial de la ciudad, ya hemos hablado del privilegio que concedió
a la ciudad para celebrar una segunda feria en 1311, y fue ese mismo año en el
que también otorgó el primer privilegio sobre la regulación de la venta del vino y
la vendimia locales22. Fue la primera de muchas concesiones referentes al sector
vitícola que después los sucesivos monarcas de la Corona ratificaran, ampliaran y
matizaran a lo largo del siglo XIV. Este documento emanado de la cancillería real
se enmarcaba en una política claramente proteccionista hacia el comercio y el
mercado local, ya que en él se establecía que solamente podía entrar y vender en
la ciudad el vino y la vendimia locales, es decir, que se hubieran producido en las
viñas de la parroquia de la ciudad o ese vino o vendimia que, aun cuando no fuera
de la parroquia o término de Manresa, procedía de tierras, honores o rentas que sus
ACBG. Ajuntament de Manresa, pergamí 355: ACBG. Ajuntament de Manresa, uc 2 (Llibre I de
privilegis), f. 66v-67r.
20
ACBG. Ajuntament de Manresa, uc 1 (Llibre Verd), f. 12r.
21
FYNN-PAUL, Jeff – Auge i declivi d’una burgesia catalana. Manresa a la baixa edat Mitjana…”, p. 59.
22
ACBG. Ajuntament de Manresa, pergamí 256 i ACBG. Ajuntament de Manresa, uc 1 (Llibre Verd),
f. 7v-8r.
19
222
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
propios ciudadanos tuvieran en otros lugares23. Este documento pone de manifiesto
la importancia del vino en el paisaje agrario de principios del siglo XIV y el papel
que la ciudad desempeñaba como mercado de intercambio, ya que venía gente de
fuera de su parroquia a comerciar con distintos productos. Con este privilegio se
pretendía incentivar la comercialización del vino manresano y exportarlo a otros
grandes mercados situados en las comarcas del Berguedà, Solsonès y hacia las zonas
pirenaicas, a la vez que se protegía también la producción local y se potenciaba el
cultivo agrario local con la vid, que según Torras i Serra daba los beneficios necesarios
para poder importar trigo y otros muchos productos. Otro privilegio importante
concedido a Manresa fue también de 1311, y era el derecho del gobierno municipal
de recaudar impuestos a los ciudadanos que eran propietarios de bienes muebles e
inmuebles de realengo en la ciudad y en su término. Se establecía que los impuestos
no gravarían las personas, sino sus propiedades, tierras y rentas que tenían dentro
de la jurisdicción real. Este privilegio sentó las bases sobre la futura administración
urbana y la forma como se recaudaría el dinero para pagar los diferentes impuestos
reales y municipales, ordinarios y extraordinarios, directos o indirectos, que se iría
concretando y perfeccionando a medida que avance el siglo XIV, tanto por el propio
municipio como por la monarquía. En 1315 Jaime II promulgó además una serie
de innovaciones institucionales, de las cuales la más importante fue la de conceder
a Manresa el título de civitas, es decir, de ser ciudad de pleno derecho y formar un
gobierno de carácter conciliar. Este privilegió aportó numerosos beneficios, el más
importante de los cuales fue la representación que tendría a partir de ahora la ciudad
en las Cortes contando con dos procuradores, ya que hasta entonces solo tenía uno
por el hecho de ser considerada una villa. Y para terminar, el soberano también
otorgó a los ciudadanos el derecho de no ser desposeídos de sus caballos, armas,
camas, cajas fuertes y otros objetos importantes por razón de endeudamiento.
Por último, nos gustaría hablar brevemente de la estructura del consejo
manresano durante estos primeros años del siglo XIV. Dentro de este gobierno
conciliar las figuras más importantes y con más poder de decisión fueron los
“consellers” o consejeros, que durante el transcurso del siglo pasaron de cuatro a seis
dependiendo del momento. Estos eran el máximo cuerpo legislativo y ejecutivo de
la ciudad, y por debajo se encontraban los jurados, que normalmente eran un total
de treinta, diez por cada una de las manos o clases que había en la ciudad (la mano
mayor, la mano mediana y la mano menor). Los jurados se encargaban de asesorar a
los consejeros y cuando los dos grupos se reunían formaban lo que se denominaba el
consejo especial, tal y como aparece descrito en la documentación. Durante el siglo
XIV cualquier asunto municipal era tratado por un cierto quórum de consejeros y
23
Torras Serra, Marc. – “Els privilegis concedits a Manresa durant la cort de 1311”, Dovella 109 (2012),
pp. 31-35.
“IN CIVITATE MINORISE ET PER TOTAM CATHALONIAM EST MAGNA CAR ESTIA [...]”
223
jurados, con los consejeros como jefes ejecutivos y representativos de la ciudad tanto
en asuntos internos como en las relaciones que mantenía la ciudad con los diferentes
poderes externos24. Son precisamente esas sesiones del consejo que se conservan en
el Arxiu Històric de la Ciutat de Manresa y que han pervivido hasta nuestros días, las
que nos permiten ver la actuación y las medidas que adoptó el gobierno municipal
para hacer frente a la carestía que se presentó a partir del verano del año 1333 y que
no cesaría hasta un año después.
3. El gobierno de Manresa frente la hambruna de 1333-1334.
El primer documento municipal que apunta a una situación deficitaria de cereal en
Manresa es del 1 de diciembre de 1333. Durante ese día, los consejeros Francesc Ferrer,
Pere Mir y Bartomeu de Gamisans25, reunidos en la iglesia de san Miguel, tomaron
una decisión para el bien común de la universidad. Se decidió que el impuesto del
trigo que se vendió públicamente por el precio de 3.700 sueldos entre los meses de
setiembre, octubre, noviembre y diciembre no se recaudase durante el último mes en
la ciudad, su término o en su parroquia. El motivo era muy claro, no había ni entraba
suficiente trigo para poder recaudar los impuestos que gravaban su compraventa.
Los consejeros decidieron que los compradores de esta imposición, llamados Jaume
de Prat, Jaume d’Ullastrell y Bernat Beló, no recolectasen el impuesto durante el mes
de diciembre y les prometieron pagar la cuarta parte de lo que les costó la compra
de la dicha imposición26. El lenguaje que utiliza el poder municipal es muy claro, no
había nadie que aportara trigo en la ciudad, su término y su parroquia, y por lo tanto
era difícil o no valía la pena recaudar sus impuestos, que por otra parte eran de los
que más dinero daban a las arcas municipales. En el preámbulo del documento se
señala el motivo por el cual Manresa vivía esta situación, “atendentes quod in civitate
Minorise et per totam eciam Cathaloniam est magna carestia et indigencia bladi,
propter quod probis hominibus et habitatoribus eiusdem et locis eciam circumvicinis
posset magnum periculum et dampnum eminente”. No solamente no se encontraba
cereal en la ciudad, sino que en toda Cataluña había carestía y falta de este alimento
cosa que ponía seriamente en peligro a todos sus habitantes. La cosecha de 1333 fue
muy precaria y no fue hasta diciembre de ese mismo año que el gobierno empezó
a adoptar medidas preventivas para paliar los efectos que ya empezaban a notarse
entre la población.
La siguiente noticia es del 27 de diciembre de 1333, en la cual los mismos
24
FYNN-PAUL, Jeff – Auge i declivi d’una burgesia catalana. Manresa a la baixa edat mitjana, 12501500…”, p. 62.
25
Los consejeros que se ausentaron ese día fueron Francesc Nerell, Ramon Morera y Berenguer Canet.
26
Arxiu Històric de la Ciutat de Manresa (AHCM). AHCM/AM. I-2. Manual del consell (1322-1338),
ff. 145v-145r.
224
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
consejeros decidieron empezar a preparar un aprovisionamiento continuado de
cereales para alimentar a sus vecinos. Para llevar a cabo esta empresa se asignaron
diferentes partidas de mercaderes para comprar trigo en los lugares y a los precios
que quisieran, llevarlo hasta la ciudad de forma segura y venderlo públicamente
al precio que se pudiera. Había pasado casi un mes desde el primer documento
analizado y la situación era grave, no había trigo para la población y se necesitaba
buscarlo y comprarlo en otras regiones para llevarlo a Manresa y de esta forma evitar
la hambruna o el desorden público. Los encargados de llevar a cabo estas operaciones
serian Pere Morera y Guillem Boixó, los cuales los consejeros les dieron potestad
para comprar “frumentum, ordeum et alia blada”.
En estas empresas mercantiles, los mismos consejeros asumirían los gastos que
se pudieran derivar de las diferentes operaciones que se llevarían a cabo27. Pero no
solamente fueron los únicos que se designaron para aprovisionar la ciudad, ya que
cuatro días después, el día 31 de diciembre, se daba potestad a otra partida formada
por Berenguer Amargós y Ramon de Grevalosa para comprar trigo al precio que
viesen, llevarlo a la ciudad y una vez allí lo vendiesen públicamente. Tal como había
hecho antes, el mismo consejo asumió también los gastos que pudieran ocasionar
estas misiones28. En el caso de estos mercaderes es preciso hacer un matiz, y es que
una de las cláusulas que aparecen en el acta conciliar es la que dice que tienen que
aprovisionar la ciudad durante los meses de enero y febrero del año siguiente, por lo
que cobrarían 20 sueldos “pro salario et laboro vostri”. Así pues, es importante ver
como el consejo municipal, previendo que la situación podía ir a peor, planificaba
el aprovisionamiento a corto y medio plazo asignando partidas de mercaderes
encargados de efectuar entrada constante, que no fluida, de trigo, así como de otros
tipos de cereales para alimentar sus ciudadanos.
En 1334 es cuando encontramos la mayoría de actas que hacen referencia a las
medidas preventivas que adoptó el consejo para intentar enmendar de forma puntual
la situación. El 15 de enero de este año se asignaron y nombraron procuradores a
Berenguer Gaidó y Berengó Oliver, habitantes y vecinos de la ciudad, para comprar
trigo, cebada, avena y otros cereales en nombre de la universidad de Manresa. Vemos
pues, como la situación empieza a ser crítica y la preocupación del poder no solo está
en comprar y traer trigo a la ciudad, sino que este mandamiento se extendía a todo
tipo de cereal panificable, incluso la cebada que era propia de las tierras altas y frías,
ya que como afirma Antoni Riera era el cereal propio de los campesinos pobres y
27
Arxiu Històric de la Ciutat de Manresa (AHCM). AHCM/AM. I-2. Manual del consell (1322-1338),
28
Arxiu Històric de la Ciutat de Manresa (AHCM). AHCM/AM. I-2. Manual del consell (1322-1338),
f. 146v.
f. 146r..
“IN CIVITATE MINORISE ET PER TOTAM CATHALONIAM EST MAGNA CAR ESTIA [...]”
225
el grano destinado a los cuadrúpedos29. Por otra parte, es gracias a este documento
donde se nos muestra la difícil situación que se vivía en todo el territorio catalán. Una
vez asignadas las personas que llevarían a cabo lo que el consejo ha encomendado, los
gobernantes requieren que el rey y Guillem de Cervelló, noble, procurador general
en Cataluña y lugarteniente del infante Pedro (futuro rey Pedro III), hagan un
mandamiento a partir de cartas que serán transmitidas a diferentes bailes, oficiales
reales y magistrados pera que permitan que las personas que compren cereal y lo
lleven hasta Manresa en nombre de la universidad lo puedan hacer de forma libre “et
sine aliquo impedimento”30.
Como bien podemos deducir, este requerimiento se decidió hacer seguramente
por las quejas que llegaban al consejo sobre las dificultades que ponían los oficiales
y otros municipios para comprar trigo y llevarlo hasta su destino. Tal y como ya
apuntaba Montoro, la principal dificultad no era encontrar y comprar cereales, sino
moverlo por el territorio atravesando diferentes jurisdicciones hasta llegar a la ciudad.
En años normales, ciudades y villas permitían la libre circulación de mercancías
pudiendo sacar trigo sin dificultades, en cambio, en años de carestía las ciudades
y municipios imponían el denominado “vetum bladi”, una prohibición general de
extraer trigo de la ciudad o del territorio, impidiendo que el grano fluyese y circulase
de forma libre y sin barreras jurisdiccionales por el territorio31. El 14 de febrero de
1334 los consejeros Francesc Ferrer, Pere Mir y Berenguer Canet se volvieron a reunir
en la iglesia de san Miguel para asignar nuevamente otra partida de mercaderes. Los
elegidos fueron Guillem Artús, Guillem Ferrer, Jaume de Prat y Jaume de Cornet
para comprar trigo, cebada, avena y otros granos. Se les encomienda aprovisionar la
ciudad durante los meses de marzo y abril siguientes y se les da poder a estos para
designar procuradores que se encarguen de llevar a cabo dichas operaciones, a la vez
que el consejo promete asumir los gastos que estas ocasionasen, así como pagar el
salario correspondiente durante este tiempo a los mercaderes elegidos32.
El 21 de febrero de ese mismo año, los consejeros se reunían nuevamente con
los mercaderes Berenguer Amargós y Ramon de Grevalosa, que habían sido los
encargados de aprovisionar la ciudad durante los meses de enero y febrero. El acta de
este día es seguramente de las más interesantes que hemos encontrado, pues detalla
algunos de los lugares de aprovisionamiento donde Ramon y Berenguer compraron
diferentes tipos y cantidades de cereales, así como el precio al que lo tuvieron que
29
RIERA I MELIS, Antoni – Els cereals i el pa en els paisos de llengua catalana a la baixa edat mitjana.
Barcelona: Istitut d’Estudis Catalans, 2017, p. 25.
30
Arxiu Històric de la Ciutat de Manresa (AHCM). Ahcm/am. I-2. Manual del Consell (1322-1338), f.
146r-147v.
31
MONTORO I MALTAS, Joan – “Del cot fet per lo señor infant en Pere en la ciutat de Leyda…”, p. 88.
32
Arxiu Històric de la Ciutat de Manresa (AHCM). AHCM/AM. I-2. Manual del Consell (1322-1338),
f. 147r.
226
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
vender en Manresa de acuerdo con las ordenaciones o Cot que el infante Pedro (futuro
Pedro III el Ceremonioso) había decretado el 12 de febrero en Lérida33. El mandato
del infante iba dirigido a todos los bailes, veguers, oficiales, lugartenientes y súbditos
de Cataluña debido a la crítica situación que se estaba viviendo durante esos meses,
descrita en la documentación como “magna caristia bladi”34. Este Cot liberalizaba el
mercado triguero en todo el territorio y decretaba que las prohibiciones de extraer
trigo, el mencionado “vetum bladi”, ordenadas por las autoridades locales y señoriales
de diferentes municipios, fueran derogadas. El propio infante alegaba que este tipo
de prohibiciones iban en detrimento de la cosa pública y se imponían multas de
hasta 1.000 maravedíes a las universidades y 100 a todos aquellos que no cumplieran
con dicho mandato. Esta primera medida, tal y como afirma Pere Benito, tenía por
objetivo reactivar el comercio y propiciar el flujo de cereal por las rutas habituales
de distribución, sobre todo desde los grandes mercados de las zonas productoras
hacia los centros de consumo35. Seguidamente, el infante Pedro disponía de un Cot o
tasación de precios de los principales cereales que dividía el Principado en diferentes
zonas en función de las monedas utilizadas y medidas de capacidad para áridos, ya
que no en todos los lugares se utilizaba el mismo sistema. Aparecen descritas cuatro
regiones: las veguerías de Lérida y Pallars, la ciudad de Barcelona y las veguerías de
Barcelona, Vilafranca y del Vallès, la veguería de Cervera y finalmente, las veguerías
de Manresa y subveguerías de Piera e Igualada. Para cada una de estas zonas se
estableció una tasación de precios sobre tres cereales básicos: trigo, cebada y avena
que estarían en vigor entre el 12 de febrero y el 1 de junio de 1334. Para el caso que
nos ocupa, el infante estableció que en la veguería de Manresa la cuartera de trigo se
vendiese a un precio máximo tasado en 28 sueldos, la de cebada en 18 sueldos y la de
avena en 12 sueldos36.
No obstante, este Cot y las medidas liberalizadoras del mercado triguero no se
acabaron consolidando, ya que se incumplieron reiteradamente en las ciudades y
villas sometidas a jurisdicciones nobiliarias y eclesiásticas que se resistieron en dejar
fluir el cereal a los centros de consumo. Fue pues, la fragmentación jurisdiccional del
Principado la que limitó su aplicación efectiva en los lugares de realengo37. Volviendo
al documento, los consejeros manresanos comunicaron a los mercaderes las
disposiciones que el infante había decretado nueve días antes y ordenaban que todo
el cereal que habían comprado fuese vendido a los precios tasados para la veguería
33
Arxiu Històric de la Ciutat de Manresa (AHCM). AHCM/AM. 1-2. Manual del Consell (1322-1338),
f. 147r-148v.
34
MONTORO I MALTAS, Joan – “Del cot fet per lo señor infant en Pere en la ciutat de Leyda…”, p. 91.
35 BENITO I MONCLÚS, Pere – “El rey frente a la carestía. Políticas frumentarias de estado en la
Europa Medieval…”, pp. 66-67.
36
MONTORO I MALTAS, Joan – “Del cot fet per lo señor infant en Pere en la ciutat de Leyda…”, p. 118.
37
BENITO I MONCLÚS, Pere – “El rey frente a la carestía. Políticas frumentarias de estado en la
Europa Medieval…”, p. 68.
“IN CIVITATE MINORISE ET PER TOTAM CATHALONIAM EST MAGNA CAR ESTIA [...]”
227
de Manresa. Durante los meses pasados se habían importado 160 cuarteras de trigo,
45 cuarteras de cebada y 35 cuarteras de mestura38 des de zonas como la Segarra,
l’Urgell y Albi (comarca de les Garrigues). Los consejeros ordenaban que todos
estos cereales se vendieran públicamente según los precios tasados y que dentro de
estos no entraran aquellos cereales que se habían comprado en villas como Pujalt
(comarca de Anoia) y Torrefarrera (comarca del Segrià). Según estos datos pues,
podemos dibujar las principales zonas, núcleos y villas que aprovisionaron Manresa
durante los primeros meses de 1334.
Fig. 1 – Mapa de las zonas y lugares de aprovisionamiento frumentario de Manresa.
Nota: En amarillo figuran los territorios y en rojo los lugares documentados donde se
compraron cereales de todo tipo para abastecer la ciudad de Manresa
El 5 de marzo los consejeros se volvieron a reunir debido a la urgencia de trigo
que tenía la ciudad. La carestía seguía haciendo estragos entre la población y sus
38
La mestura o mestall era una mezcla de diferentes especies de cereales, especialmente de trigo y
centeno o de trigo y cebada, o de cereal y legumbre, especialmente de trigo y habas (DCVB).
228
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
gobernantes describían la situación de esta manera:
“nos, propter maximam penuriam et caristiam frumenti, ordei et avene et
aliore bladore que nunc est in dicta civitate Minorise et eius convicino non
invenietur in ipsa civitate blada ad vendendum, propter quod est dubitum ne
plures personis in ipsa civitate et eius vicinatu fame preant”39.
La situación era desesperada y aparece por primera vez la palabra hambruna en
el lenguaje del poder, se necesitaba traer urgentemente cualquier tipo de cereal para
vender y panificar, ya que el hambre acechaba y podía presentarse de un momento a
otro. Debido a esta situación los seis consejeros asignaron nuevos mercaderes para
aprovisionar la ciudad para de esta forma “volentes periculis huius modi obviare ad
magnam utilitatem civivum et habitatore ipsius civitate”. Los elegidos fueron Guillem
Artús, Guillem Ferrer, Jaume de Prat, Jaume Cornet y más tarde se uniría Guillem
Folc, para traer cereal durante el presente mes de marzo y abril siguiente. En este caso,
aparece un nuevo concepto, y es que el poder les dice que traigan cereal de cualquier
lugar, sea por tierra o “ubique voluitis”, es decir, que también se contemplaban otro
tipo de rutas, como podían ser las marítimas y fluviales, hecho que no hace más que
revelarnos la desesperación del consejo ante la situación que se les venía encima.
Esta carestía y especialmente la tendencia inflacionista de los precios del cereal
afectaron a los sectores que participaban de un modo u otro en todo el circuito de
distribución del grano y consumo de pan. El sector que podemos estudiar de forma
más detallada es el que se encargaba de la panificación, sobre todo el relacionado con
la cocción del pan, es decir, los hornos. A principios del siglo XIV Manresa disponía
de cuatro hornos públicos, el de la plaza o plana de san Miguel, el de la plaza mayor
donde se celebraba el mercado, el horno inferior y el horno del camino de Barcelona,
este último seguramente situado extramuros junto al camino que iba a la ciudad
condal. Estos hornos fueron de propiedad real hasta que en 1326 Jaime II los cedió al
cenobio de Santes Creus como compensación de una deuda que la monarquía había
contraído con el monasterio y que ascendía en 84.790 sueldos y 5 dineros. A partir
de este año pues, sería el monasterio el propietario y señor de los cuatro hornos
manresanos, gestionándolos y cobrando las rentas anuales a los distintos particulares
que los tenían arrendados40. Es gracias al libro donde se anotaban todas las gestiones
en relación con los hornos que hemos podido hacer un seguimiento de la evolución
del precio de los arrendamientos des de 1328 hasta 1339, haciendo especial hincapié
39
Arxiu Històric de la Ciutat de Manresa (AHCM). AHCM/AM. I-2. Manual del Consell (1322-1338),
f. 148v-148r.
40
SARRET I ARBÓS, Joaquim – Història de la industria, del comerç i dels gremis de Manresa, vol. 3.
Manresa: Monumenta Historica, 1923, p. 162.
“IN CIVITATE MINORISE ET PER TOTAM CATHALONIAM EST MAGNA CAR ESTIA [...]”
229
en los años 1333-133441.
Fig. 2 – Evolución de los precios de los arrendamientos de los
hornos públicos de Manresa (1328-1339).
Nota: Este gráfico se ha podido elaborar gracias a la los datos del precio de los arrendamientos
de los cuatro hornos de Manresa entre 1328-1339 localizados en el Archivo Histórico de la
Ciudad de Manresa (AHCM).
Antes de 1328 los precios de los arrendamientos subieron a cotas altas, estos
años se caracterizaron por la carestía de 1325, año donde encontramos su momento
más álgido. A partir de 1326 esta carestía se desinfla y los precios disminuyen en
Manresa hasta encontrar una relativa normalidad en 1330. Los estudiosos han
atribuido esta carestía a los efectos de la guerra con Cerdeña, conflicto que trastocó
por completo la economía mercantil mediterránea, ya que provocó conflictos con
otros reinos, especialmente contra Génova. Este conflicto intermitente truncó de
forma seria el aprovisionamiento de trigo que llegaba a Cataluña des de sus dominios
en el Mediterráneo y muchas ciudades costeras que dependían de ese cereal que
llegaba vía marítima tuvieron que buscarlo en zonas del interior, drenando su
producción y provocando una inflación de precios como bien se puede apreciar. Es
a partir de 1330 cuando se hace notar nuevamente una lenta subida de los precios
de los arrendamientos hasta llegar a 1333 donde la volatilidad es enorme, con unos
precios como nunca se habían visto hasta entonces. Esta tendencia continuará hasta
alcanzar sus cotas máximas en 1334. Especialmente indicativos son los precios de los
hornos de la plaza mayor (1.800 sueldos) y de la plaza de san Miguel (2.400 sueldos),
aunque también llaman la atención las de el horno inferior (700 sueldos) y el horno
41
Arxiu Històric de la Ciutat de Manresa (AHCM/Ecles. C-103, Santes Creus II). Llibre particular del
monestir de Santes Creus – Forns de Manresa (1327-1393). 50 ffsn + 13 papers + 2 bifolis.
230
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
del camino de Barcelona (1.410 sueldos), cifras por lo tanto exorbitantes. Estos
índices reflejan pues de forma detallada y bastante precisa los efectos de las malas
cosechas, la carestía y la hambruna en Manresa que mantendrán altos los precios
de los cereales hasta 1335, año donde ya documentamos un descenso del precio de
los arrendamientos que seguirá así hasta alcanzar cotas normales a excepción de un
repunte en 1338, año por el cual tenemos documentada sequía y malas cosechas en
la ciudad, que por otra parte llevaran en 1339 a impulsar el proyecto de la acequia
del río Llobregat.
Volviendo a las actas del consejo, la siguiente noticia que tenemos data del 21 de
marzo de 1334, día en que los consejeros mandaban a Berenguer Amargós y Ramon
de Grevalosa que el trigo que habían comprado fuese vendido por los panaderos de
la ciudad. La cantidad de trigo que compraron los mercaderes ascendía a 46 cuarteras
y 5 docenos a medida de Manresa. El precio que costó la cuartera manresana en
este momento fue de 31 sueldos y 10 dineros, que por otra parte fue también el
precio que los dichos panaderos tendrían que venderlo42. Disponemos también de
un documento bastante explícito de una de las operaciones de compra de cereal
hecha por estos mercaderes en los alrededores de Lérida, anotada con precisión
en su libro particular43. El 14 de marzo se compraron en las tierras de poniente
mediante tratos que hizo el obispo de la ciudad con diferentes municipios, 58 cahíces
de cebada y 3 cahíces y medio de avena en Torrefarrera, y 30 cahíces de cebada y 12
de avena en Vinselló, todo a medida de Lérida44. Por otra parte, no disponemos de
ningún documento para el mes de abril y el siguiente ya nos remite al 24 de mayo
de 1334, acta en la cual los consejeros asignaban jurados para pagar los gastos de las
operaciones de compra de cereal a Ramon de Grevalosa y a Berenguer Amargós45.
Y finalmente, el último documento es del 20 de agosto de 1334 en el cual ya se nos
describe una situación de normalidad que por otro lado nos permite afirmar que la
carestía tuvo su final en estos meses de verano, debido seguramente a que las nuevas
cosechas fueron buenas. Este último documento nos habla de la promesa de pago
que los consejeros de la ciudad hacían a Guillem Folc por una cantidad de dinero
que había prestado al municipio durante el año pasado “ad opus emendi blada ad
opus universitatis” cuando no había trigo en ninguna parte. La cantidad que Guillem
prestó al consejo fue de 1.000 sueldos y los consejeros se ven obligados a llamar a
42
Arxiu Històric de la Ciutat de Manresa (AHCM). AHCM/AM. I-2. Manual del Consell (1322-1338),
f. 148r-149v.
43
Arxiu Històric de la Ciutat de Manresa (AHCM). Libre particular de Jaume i Berenguer Amargós
(1299-1335) ff. 223v-223r.
44
Los cahices y las fanegas eran unidades de medida utilizadas para trigos importados de Lérida o
de Aragón. Cada cahíz comprendía seis fanegas, y tenía dos cuarteras y media, que eran aproximadamente
243,25 litros.
45
Arxiu Històric de la Ciutat de Manresa (AHCM). AHCM/AM. I-2. Manual del Consell (1322-1338),
f. 149r.
“IN CIVITATE MINORISE ET PER TOTAM CATHALONIAM EST MAGNA CAR ESTIA [...]”
231
Pere Bernat, consejero, Pere Riera, Jaume Coll, Guillem, mercaderes y a Bernat de
Valls, jurado de la ciudad, para que vendan a subasta pública las imposiciones del
cuero, de los paños y de la zapatería de la ciudad durante los meses siguientes de
octubre, noviembre, diciembre y enero para pagar estos 1.000 sueldos, los intereses
y mesiones46.
4. Conclusiones.
Una vez analizada la documentación municipal con relación a la crisis de 13331334 nos quedan por hacer algunas consideraciones finales. En primer lugar hay
que destacar el importante papel que el municipio y más concretamente el poder
municipal ejerció para paliar los efectos de la carestía de trigo de estos años. Lo que el
poder quería evitar a toda costa era la hambruna y especialmente las consecuencias
que de ella pudieran derivarse, como las revueltas populares y los estallidos de
violencia. La preocupación para aprovisionar el municipio y la ciudad fue constante
durante los meses que duró esta crisis y el consejo adoptó medidas preventivas a
corto y medio plazo para solucionar el problema de forma puntual. Como hemos
visto, fueron las diferentes partidas de mercaderes que asignaba el consejo las
encargadas de acometer estas empresas, comprando todo tipo de cereales en lugares
remotos, hacerlo al precio que pudieran, traerlos a Manresa de forma segura y
una vez allí venderlos de forma pública. Lugares como Pujalt, la Segarra, l’Urgell,
Les Garrigues y diferentes núcleos de las tierras de poniente como Torrefarrera o
Vinselló, se convirtieron en los centros principales de aprovisionamiento de la
capital del Bages. Estos mercaderes sufrieron también serias dificultades, ya que el
problema no solamente residía en comprar cereal donde fuera y al precio que fuera,
sino traerlo al centro de consumo atravesando y recorriendo múltiples jurisdicciones
gobernadas por diferentes señoríos que se aprovecharon como aves rapaces de la
situación y dificultaban tanto como podían la saca de trigo y que el que llegara lo
hiciera de forma libre y segura hasta su destino.
Prueba de ello la encontramos en el documento del 15 de enero de 1334 donde
se suplicaba al rey y procurador general de Cataluña que hiciesen mandamientos a
sus súbditos para permitir a los mercaderes manresanos extraer el cereal y llevarlo
por las rutas habituales de distribución. Por otra parte, también hay que destacar
el papel que jugó la monarquía, seguramente presionada por los municipios, no
solamente para intentar paliar los efectos de la hambruna en el Principado sino
también para liberalizar el mercado, tasar unos precios máximos en función de
las diferentes veguerías y tipos de cereal y finalmente, permitir un mejor flujo de
46
f. 150r..
Arxiu Històric de la Ciutat de Manresa (AHCM). AHCM/AM. I-2. Manual del Consell (1322-1338),
232
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
todo este grano por el territorio. No obstante, el Cot del infante Pedro no tuvo el
resultado deseado, ya que se incumplieron de forma reiterada las medidas tomadas
en muchos lugares y municipios, debido principalmente a la resistencia de los
señores que no podían permitirse dejar perder una oportunidad de oro para hacer
sus negocios privados con los cereales que obtenían. No obstante, lo que más
dificultó la aplicación de este Cot fue la fragmentación del Principado en múltiples
señorías y jurisdicciones, cosa que hizo que la autoridad real no pudiese controlar
de forma efectiva su cumplimiento. Tal y como afirma Montoro, la iniciativa de
libre circulación y fijación de los precios que tenían la voluntad de ser de aplicación
general puso de manifiesto las contradicciones entre las dinámicas de la actividad
mercantil, la política económica del soberano y la fragmentación jurisdiccional del
Principado. Los señores, tanto laicos como eclesiásticos, alegaron su condición de
privilegiados para no sentirse aludidos por el mandamiento real. La monarquía fue
incapaz de controlar una creciente actividad comercial voluble, difícil de controlar y
adaptable a las necesidades de cada momento que traspasó sin muchos problemas las
fronteras jurisdiccionales de Cataluña47.
Las políticas asumidas por el consejo de la ciudad de Manresa no fueron muy
diferentes de las medidas adoptadas en otras ciudades y villas de Cataluña. Antoni
Riera afirmaba que las políticas frumentarias de los gobiernos municipales catalanes
se sostenían en tres pilares: el control de las áreas de aprovisionamiento y de las vías
de circulación del grano, los mecanismos de intervención indirecta y los mecanismos
de intervención directa48. Sobre el control de las áreas de aprovisionamiento y las vías
de circulación del grano vemos como por ejemplo Barcelona durante la hambruna
de 1333-1334 envió emisarios al obispo de Lleida, al abad de Poblet y al vizconde
de Cardona, a la vez que envió embajadores a diferentes puntos del Mediterráneo
solicitando adquirir cereal con destino la ciudad condal. A su vez, Barcelona también
advertía a Tortosa que no interceptara ni desviara el cereal aragonés que bajaba por
el Ebro con destino a la capital catalana49, tema que por otro lado estudió muy bien
Albert Curtó50. La ciudad de Girona constituye otro caso interesante, ya que durante
la hambruna de 1333-1334 su consistorio municipal solicitó al baile de Palamós y a
los ediles de Barcelona y Tortosa que no interceptaran embarcaciones que llevaban
cargamentos de cereales a su ciudad, y solicitaban al soberano que las naves pudieran
amarrar en el puerto de Sant Feliu de Guíxols, cuyo señor jurisdiccional se había
MALTAS I MONTORO, Joan – “Del cot fet per lo señor infant en Pere en la ciutat de Leyda…”, p. 114.
RIERA I MELIS, Antoni – “Crisis cerealistas, políticas públicas de aprovisionamiento, fiscalidad y
seguridad alimentaria en las ciudades catalanas durante la baja edad media…”, p. 254.
49
RIERA I MELIS, Antoni – “Crisis cerealistas, políticas públicas de aprovisionamiento, fiscalidad y
seguridad alimentaria en las ciudades catalanas durante la baja edad media…”, p. 255.
50
CURTÓ I HOMEDES, Albert – La intervenció municipal en l’abastament de blat d’una ciutat
catalana: Tortosa, segle XIV. Barcelona: Fundació Vives Casajuana, 1988.
47
48
“IN CIVITATE MINORISE ET PER TOTAM CATHALONIAM EST MAGNA CAR ESTIA [...]”
233
comprometido a no interceptar el grano. A su vez, el gobierno municipal de la ciudad
desplegaba una política diplomática para asegurar la llegada durante el mes de abril
de 1334 de un cargamento de trigo siciliano y durante el mes de mayo la situación era
tan extrema que obligó a los consejeros hacer gestiones con la ciudad de Tortosa para
que no se bloquearan ni desviaran cargamentos de trigo que algunos mercaderes
gerundenses habían adquirido.
Otra de las medidas adoptadas por algunos consistorios como el de Barcelona y
Mallorca fue el de asegurar las vías frumentarias y la circulación de los cargamentos
de cereales hasta sus lugares de destino. Barcelona adquiría grano sobre todo por vía
marítima, ya que sus principales lugares de importación eran Sicilia y durante esta
hambruna fue principalmente Cerdeña, puesto que los puertos sicilianos estaban
controlados por genoveses, con los que la Corona estaba en guerra des de 1330.
Para asegurar estas rutas marítimas y protegerlas de ataques piratas y corsarios, el
consistorio barcelonés armaba naves y galeras para proteger el trigo que navegaba con
destino Barcelona y lo mismo hizo Mallorca con el objetivo de proteger y garantizar
la llegada del trigo que era exportado de Sicilia51.
Las medidas de intervención indirectas que desplegaban los consejos
municipales consistían en inventariar todas las existencias de cereales que había en
la ciudad, una tarea denominada “serca bladorum”, y una vez hecho esto el gobierno
obligaba a sus vecinos, bajo penas y multas, a vender una parte de sus provisiones de
grano con el fin de aumentar la oferta de cereales y así frenar la subida de precios.
Riera expone que estas medidas no quedaban solamente reducidas al trigo, sino que
afectaban a otros cereales, ya que durante la hambruna de 1334 los consejeros de
Barcelona obligaron a sus vecinos a vender diariamente sus provisiones, tanto de
trigo como de cebada, avena, de arroz o cualquier otro cereal como las legumbres bajo
penas de 200 sueldos52. Otra de las medidas adoptadas por los diferentes gobiernos
ciudadanos ya la hemos visto y es la prohibición de la saca de trigo o “vetum bladi”,
medida que tenía como objetivo sancionar a aquellos infractores que sacaran cereales
de la ciudad de cualquier forma y atender las demandas y necesidades locales de
sus ciudadanos53. Durante la hambruna de 1333-1334 tenemos documentadas estas
medidas en diferentes zonas de Cataluña, principalmente en el Penedès, Bages,
51
RIERA I MELIS, Antoni – “Crisis cerealistas, políticas públicas de aprovisionamiento, fiscalidad y
seguridad alimentaria en las ciudades catalanas durante la baja edad media…”, p. 257.
52
RIERA I MELIS, Antoni, – “Crisis cerealistas, políticas públicas de aprovisionamiento, fiscalidad y
seguridad alimentaria …, p. 259.
53
Un ejemplo es esta ordenación que fue promulgada por los consejeros de Barcelona durante el mes
de diciembre de 1333: “Ordenaren els consellers e·ls prohòmens de la ciutat que neguna persona de qualque
condició sia no gos trer de la ciutat, per mar ne per terra, de nits ne de dia, forment ne ordi ne ngun altre blat,
de qualque manera sia, ne farina ne bescuyt. E qui contra açò farà, que perdrà tot lo forment, ordi, blat, farina
e bescuyt qui trobat s’a, que hi tragués” (cit. MUTGÉ I VIVES, Josefina – “L’abastament de blat a la ciutat de
Barcelona en temps d’Alfons el Benigne (1327-1336), Anuario de Estudios Medievales 31, 2, 2001, p. 655).
234
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Vallès, Berguedà y Urgell.
Como hemos visto, estas prohibiciones perjudicaban a grandes ciudades
consumidoras como Barcelona, Girona y como ya hemos visto Manresa, de ahí que
se solicitaran al rey medidas para liberalizar el mercado triguero y desarrollar una
fluidez de los circuitos comerciales. Tal como hemos visto, estas suplicas al soberano
también se hicieron en la ciudad de Manresa, puesto que era una ciudad deficitaria
en la producción de trigo y un centro de consumo importante. A finales de diciembre
de 1333 el rey enviaba órdenes a todos los veguers, bailes y otros oficiales reales
para que no pusieran obstáculos ni impedimentos a aquellas personas que habían
acordado los consejeros de Barcelona para comprar trigo con el objetivo de afrontar
la gran carestía que se vivía en la ciudad condal54.
Más caras y más efectivas fueron medidas de intervención directas, que eran
aquellas cuyo objetivo era incrementar la oferta local en cada ciudad con cargamentos
de grano procedentes de los mercados interiores de la Corona. Las medidas más
comunes eran aquellas que el gobierno municipal otorgaba especialmente a los
mercaderes y comerciantes más poderosos que comerciaban a nivel internacional y
que consistían en incentivos para despertar su interés en aprovisionar las ciudades
y municipios, quedándose a cambio beneficios importantes. Este tipo de medidas
son las que hicieron los consejeros de Manresa durante la mayor parte de la carestía
de 1333-1334 y con ellas permitieron que los mercaderes locales se desplazaran
hasta lugares lejanos para comprar y todo tipo de cereales y transportarlos hacia la
ciudad. Consistían en subvencionar económicamente las importaciones pagando las
mesiones o gastos de los desplazamientos, fijar y acordar los contratos de compra en
los cuales se prometía al mercader o a la compañía un beneficio cuantioso, el pago
de primas y otras clausulas referentes a la seguridad y protección a cargo del propio
municipio, tanto si el transporte se efectuaba por ruta marítima o terrestre55. Gracias
a este tipo de medidas e incentivos, durante la hambruna de 133-1334 el consistorio
barcelonés adquirió grano en el Bajo Llobregat, el Vallès, Penedès, Anoia, Conca
de Barberà, Osona, el Bages, Segrià, Urgell, el valle medio del Ebro, la Plana Baixa,
Cerdeña, Sicilia y Castilla56.
Y por último, hubo otra medida que el municipio de Barcelona efectuó de
forma reiterada con la finalidad de obtener grano en tiempo de carestía, el privilegio
conocido como “vi vel gratia” (por la fuerza o por gracia), concedido por el rey en
MUTGÉ I VIVES, Josefina – “L’abastament de blat a la ciutat de Barcelona en temps d’Alfons el
Benigne (1327-1336)…”, p. 656.
55
MUTGÉ I VIVES, Josefina – “L’abastament de blat a la ciutat de Barcelona en temps d’Alfons el
Benigne (1327-1336)…”, p. 675.
56
RIERA I MELIS, Antoni – “Crisis cerealistas, políticas públicas de aprovisionamiento, fiscalidad y
seguridad alimentaria en las ciudades catalanas durante la baja edad media…”, p. 265.
54
“IN CIVITATE MINORISE ET PER TOTAM CATHALONIAM EST MAGNA CAR ESTIA [...]”
235
132857. Este privilegio consistía en obligar a toda embarcación que llevara cargamentos
de cereal y que pasara cerca de la ciudad a desembarcar las mercancías en sus playas,
y después se pagaba el dicho cargamento. Este privilegio se usó de forma reiterada, se
perfeccionó y se amplió cada vez que una hambruna causaba estragos en la ciudad y
era necesario aprovisionar de grano sus ciudadanos.
Como podemos ver, muchos consistorios de diferentes ciudades y villas del
Principado adoptaron estos tipos de mecanismos para asegurar el aprovisionamiento
de sus núcleos urbanos, y especialmente de sus vecinos. Estas medidas las utilizaban
en función de muchos factores como su situación política, sus privilegios y
ordenaciones, sus condiciones como lugares de realengo, el poder o la capacidad
económica, política e institucional que tenían, su situación geográfica o sus múltiples
contactos y relaciones comerciales con otros lugares y poderes. Vemos pues, que
algunas de las medidas que adoptaron y practicaron los consejeros de Manresa
fueron muy semejantes o prácticamente iguales a las que adoptaron los diferentes
consejos municipales de otros lugares, pues como ciudad de realengo y especialmente
como ciudad consumidora necesitaba jugar su papel de la mejor manera posible
para aprovisionar de forma regular y efectiva a sus vecinos. La hambruna de 13331334 terminó en la ciudad seguramente en verano de 1334 con la llegada de la
nueva cosecha, ya que las actas municipales nos describen una situación de relativa
normalidad y no nos hablan más de “fame, carestia et penuria bladi” como habían
hecho meses atrás. El consejo municipal supo gestionar de forma efectiva los efectos
que esta crisis produjo en la ciudad, supo hacer frente a los problemas que presentaba
el aprovisionamiento continuado de cereales y jugó bien sus cartas para incentivar los
mercaderes a emprender estas arriesgadas empresas comerciales. Fue gracias a estas
medidas, iniciativas y una cierta visión de anticipación al desastre que los consejeros
pudieron paliar los efectos del “mal any primer” en Manresa y lograr que no fueran
tan devastadores como en otras zonas, ciudades y villas del Principado.
57
AHCB, Llibre Vermell, I, fol. 65 v..
236
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
A luta política pelo controlo
da repartição da carne e do peixe
em Braga nos séculos XIV e XV1
Raquel de Oliveira Martins2
Resumo
É objectivo deste trabalho analisar de que forma a luta pelo controlo da
repartição da carne e do peixe em Braga, nos séculos XIV e XV, se transformou
numa questão política, tributária da conjuntura do seu tempo, protagonizada
por actores políticos cujo objectivo era a afirmação e legitimação do seu estatuto
de poder, não só perante a cidade, mas também perante o rei. Referimo-nos ao
Cabido e ao concelho de Braga, que num tempo muito longo, com avanços
e recuos se confrontaram e enfrentaram em torno da questão da carne e do
peixe. Tentaremos, à luz de alguns exemplos que traremos aqui, descortinar e
compreender o motu por detrás dos graves e violentos conflitos que opuseram
estes dois importantes grupos de poder: o cabido da Sé, e o concelho da cidade,
e que iam muito para além do saciamento do corpo em matérias alimentares.
Palavras-chave
Abastecimento alimentar; Açougues; Políticas municipais; Braga medieval.
Lab2PT/Universidade do Minho; LaMOP/Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne;
raqueldeoliveiramartins@gmail.com; Trabalho realizado na sequência da comunicação
apresentada nas Jornadas Internacionais da Idade Média, com o tema Abastecer a cidade medieval,
realizada em Castelo de Vide nos dias 8 e 9 Outubro de 2019, e integrada no Painel do Projecto
Medcrafts – “Regulamentação dos mesteres em Portugal nos finais da Idade Média: séculos XIV e
XV”, financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia,
Ref.ª PTDC/HAR-HIS/31427/2017.
1
2
Doutoranda em História da Idade Média, Departamento de História, ICS/Universidade do Minho em
co-tutela com a École Doctorale d’Histoire/Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne.
238
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
The political fight for the control of the meat and fish supply
in the city of Braga (Portugal) in the 14th and 15th century
Abstract
The aim of this study is to analyze how the fight for the control of the meat
and fish supply in Braga (Portugal) in the 14th and 15th century as become a
political matter profoundly related to a more wide political scenario, in a larger
scale (kingdom of Portugal). The aim of the protagonists of this political fight
was the affirmation and legitimation of their power status, not only in the city,
before the elites, but also before the King. These, the Town Chapter, and the
Town Council, fought for the control of the process of supply and distribution
of the meat and fish, sometimes with great violence, not only in words, but also
with actions. In the following pages we are going to try to understand the whys,
the motu underlying those actions, and the significance for the city of Braga.
Keywords
Meat and fish supply; Town council and Cathedral Chapter; Medieval Braga.
Introdução.
O fornecimento de bens de primeira necessidade, mais concretamente os alimentares,
em quantidade suficiente que evitasse por em risco a paz social de uma vila ou
cidade, foi sempre uma das grandes preocupações dos governos municipais na
Idade Média3. Com efeito, assegurar a fluidez da circulação e distribuição de bens
essenciais como o pão, carne e peixe, de forma justa e evitando o açambarcamento,
revelou-se, em alguns casos, um enorme desafio para as autoridades concelhias,
não sendo de admirar o seu esforço em regular estas matérias4. A este respeito, e
apesar de se desconhecer quase por completo como se processava o abastecimento
3
Veja-se BONACHÍA HERNANDO, Juan Antonio – “Abastecimiento urbano, mercado local y control
municipal: La provisión y comercialización de la carne en Burgos (siglo XV)”. In Espacio, Tiempo y Forma,
Serie III 5 (1992), p. 88.
4
Esta era uma preocupação transversal para os governantes medievais. Em Portugal, como na restante
Europa cristã. Veja-se: ABAD ESCRIBANO, José Luis – “La regulación del mercado alimentario: el caso de
la Guadalajara bajomedieval”. Espacio, Tiempo y Forma, Serie III 21 (2008), pp. 109-137. Ainda: ARÍZAGA
BOLUMBURU, Beatriz; SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús Ángel (coords.) – Alimentar la ciudad en la Edad
Media: Nájera, Encuentros Internacionales del Medievo 2008, del 22 al 25 de julio de 2008. Rioja: Instituto de
Estudios Riojanos, 2009.
A LUTA POLÍTICA PELO CONTROLO DA R EPARTIÇÃO DA CARNE E DO PEIXE EM BR AGA
239
alimentar da cidade de Braga, no século XV, pode dizer-se que, também na cidade
dos arcebispos, o governo municipal se debateu várias vezes com as dificuldades
inerentes à regulamentação de um assunto tão volátil, como era o da distribuição
e venda de alimentos5. Nas linhas que se seguem tentaremos descortinar alguns
aspectos relacionados com o processo de repartição e venda de bens alimentares
essenciais (como a carne e o peixe), em Braga nos séculos XIV e XV, numa tentativa
de lançar luz sobre este aspecto importante da vida do quotidiano urbano medieval.
Tentaremos mostrar como o abastecimento de carne e peixe da Braga medieval, se
transformou numa luta política, travada entre dois grupos de poder, o concelho
e o cabido, cujo objetivo era a afirmação e legitimação desses mesmos grupos de
poder, não só perante a cidade, mas sobretudo perante o rei. Sobre este ponto, é
necessário ter em linha de conta que quem controlasse o processo de fornecimento e
distribuição dos bens alimentares de primeira necessidade, controlava um dos mais
importantes aspectos da vida da comunidade, da vida da polis.
1. Controlo do abastecimento alimentar e poder político em Braga.
De facto, a luta pela repartição da carne e do peixe em Braga durante os séculos XIV
e XV, embora nem sempre linear nem constante, parece ter servido, quase sempre,
como mais um símbolo do poder de governar a cidade, por parte daqueles que
detinham esse mesmo poder. Com efeito, controlar, supervisionar e até regulamentar
todo o processo de repartição de carne e peixe, nas cidades medievais, garantia
um certo domínio sobre alguns sectores da sociedade urbana e rural, fossem eles
produtores ou consumidores, traduzindo-se assim num controlo económico e
social, e legitimação do poder político. Numa “societat fortament intervencionista
com era la baixmedieval”6, a proximidade inerente à supervisão e fiscalização de
todo este processo, levava muitas vezes ao estabelecimento de relações de favor e
oportunismo, bem como ao incitamento de alguns sectores, contra um “inimigo
comum”, favorecendo assim a coesão do grupo social7. Em Braga também parece ter
sido assim.
Apesar das fontes documentais para estas matérias serem reduzidas, é através
de documentos de outra natureza, como sentenças, cartas régias ou certidões de
protesto, produzidas sobretudo num quadro de graves altercações entre o concelho e
5
Veja-se GONÇALVES, Iria – “Defesa do consumidor na cidade medieval: os produtos alimentares
(Lisboa – séculos XIV e XV)”. Arquipélago. História, 2ª série, 1, 1: Memoriam Maria Olímpia Rocha Gil (1995),
pp. 29-48.
6
Palavras de Ramon Agustí Banegas López ao referir-se ao aprovisionamento de carne à cidade de
Barcelona e da sua importância. In BANEGAS LÓPEZ, Ramon Agustí – “L’aprovisionament de carn a
Barcelona durant els segles XIV i XV”. Butlletí de la Societat Catalana d’Estudis Històrics XIX (2008), p. 171.
7
Por tudo isto veja-se BOUCHERON, Patrick; GENET, Jean-Philippe (dir.) – Marquer la ville. Signes,
traces, empreintes du pouvoir (XIIIe-XVIe siècle). Paris: Publications de la Sorbonne, 2014.
240
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
o cabido de Braga, que temos informações esparsas, mas preciosas relacionadas com
o abastecimento, distribuição e repartição da carne e do peixe na cidade. É verdade
que, ao contrário de outras cidades, como Lisboa ou Évora, não existem, tanto
quanto sabemos, disposições de almotaçaria ou de tabelamentos de preços e salários,
para a cidade de Braga nos séculos XIV e XV. O que existe, e que se aproxima destas
matérias, reporta-se ao início do século XVI, mais concretamente a 1509, ano em que
temos actas de vereação sequenciais.
A inexistência de um foral medieval para a cidade dos Arcebispos, torna
ainda mais difícil uma antevisão dos processos regulamentadores e fiscalizadores
envolvendo a produção, controlo e venda de bens alimentares na Braga medieval. A
ausência de Atas de Vereação para os séculos XIV e XV, contribui igualmente para
este desconhecimento.
Mas, da leitura e análise da tipologia documental existente, e que atrás fizemos
menção, percebe-se que, também na cidade dos arcebispos (o que era perfeitamente
normal), existiram dificuldades inerentes à regulamentação de um assunto tão
volátil, como era o da distribuição e venda de alimentos, que no caso de Braga, se
traduziram em alguns confrontos graves e violentos, de difícil resolução. É claro que
estamos cientes que são os eventos marcantes, políticos e não só, como é o caso dos
conflitos envolvendo a luta pela repartição da carne e do peixe em Braga, nos séculos
XIV e XV, que ecoam e preenchem as linhas da esmagadora maioria dos documentos
medievais. A banalidade, por assim dizer, do quotidiano medieval raramente figura
na documentação, e as notícias que temos acerca de como se desenrolavam os
processos políticos, económicos e sociais ao tempo, são-nos fornecidas, na maior
parte das vezes, pelos episódios de conflito que, sancionados a escrito tendo em vista
a sua resolução pelas instancias competentes, dão-nos um pequeno vislumbre do
período em que aconteceram.
Vejamos então, nas linhas que se seguem, como em alguns momentos de
Trezentos e Quatrocentos, os açougues se tornaram um campo de batalha política
onde, em alguns momentos, se confrontaram física e violentamente dois grupos de
poder que coabitavam na cidade.
2. A luta política (e não só…) nos açougues.
O primeiro momento de desacordo entre os grupos de poder da cidade de Braga,
envolvendo a questão da supervisão da repartição da carne e do peixe nos açougues
da cidade, remonta a Maio de 1341. Este, inserido num dos conflitos mais conhecidos
da história de Braga, e que foi protagonizado por dois senhores poderosos do
reino de Portugal, a saber: o rei, D. Afonso IV, e o arcebispo de Braga, D. Gonçalo
Pereira, revela-nos como, assuntos da governança quotidiana da cidade medieval, se
A LUTA POLÍTICA PELO CONTROLO DA R EPARTIÇÃO DA CARNE E DO PEIXE EM BR AGA
241
transformavam em plataformas de lutas políticas, polarizadoras da sociedade urbana.
É bem conhecido da historiografia medieval este desaguisado. Para o que aqui nos
interessa tratar, é a brecha na autoridade do arcebispo, causada pelas constantes
investidas de D. Afonso IV, que reclamava para si, e para a coroa do reino, o poder, e
o senhorio da cidade de Braga, nas matérias da jurisdição secular.
Este episódio conflituoso que se segue encaixa-se nesse cenário de limbo
senhorial, em que Braga parece ter tido dois senhores em confronto e oposição
política. Neste conflito estavam em questão, entre outros, dois aspectos importantes,
que para o que aqui tratamos, são relevantes:
O primeiro prendia-se com a legitimidade de jurar os almotacés que serviam
na cidade – os do concelho, mas principalmente os do cabido. João Martins, tabelião
geral e juiz “mandara al almotaçel clerigo do Cabidoo da Eigreia de Bragaa que ffose
jurar a el per razom desse ofizio da Almotaçaria”8. O Juiz do concelho defendia que
os almotacés do cabido, tal como os almotacés do concelho, teriam de jurar perante
ele, como representante que era do rei na cidade, e isto se quisesse continuar a exercer
o seu oficio, “Entendendo que se fazia per esto melhor direito e justiça”9. A retórica
política aqui envolvida é notória, pois remete para o objectivo último de se preservar
o direito e a justiça, que evitavam a arbitrariedade (neste caso da repartição de carne
e peixe), e garantiam a paz social, devendo ser preservados a todo custo. E só a coroa
do reino, através dos seus funcionários, teriam legitimidade e instrumentos, para
se alcançar a concórdia social. Uma vez que o Juiz do concelho não reconhecia a
legitimidade dos almotacés do cabido, e por inerência, as suas funções, foram estes
homens privados de ir aos açougues repartir a carne e o peixe pois o dito Juiz do
concelho, “mandara que nom ouuesse hj tal partiçom de pescado nem dal mais que
o desem a cada huum como mereçia dizendo que se direito alguum auija sob elas
dictas cousas que o fosem mostrar a el Reij”10. É claro que o cabido respondeu à letra
dizendo que “el Reij nom era desto seu juiz nem no podia seer de direito […] dizendo
que os seus almotaçes jurauam em Cabido como sempre husarom e custumarom e
faziam dereitamente aquilo que ao seu ofizio perteençia E querendose alguma cousa
erraua que se corrigia e Enmemdaua pelo Arçebispo E pelos seus ofiziaaes”11.
A resolução deste conflito parece ter sido favorável ao cabido, isto se levarmos
em linha de conta que outros desaguisados de natureza semelhante ocorrerão ao logo
do século XIV, provando que o status quo do cabido e do concelho em matéria de
proeminência política e de poder de decisão, não mudou significativamente.
Mas este episódio, quando enquadrado no cenário político-social amplo, dos
ARQUIVO DISTRITAL DE BRAGA (doravante ADB), Gaveta dos Privilégios, doc. nº 15.
ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. nº 15.
10
ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. nº 15.
11
ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. nº 15.
8
9
242
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
finais da década de 30, e da década de 40 do século XIV, onde se vivia em Braga um
período extremamente conturbado, no campo político, fornece-nos um quadro mais
completo sobre oposições e alianças políticas, que se plasmavam nos assuntos do
governo e administração urbana, polarizando os grupos apoiantes de uma e de outra
parte.
De candeias às avessas andavam o arcebispo D. Gonçalo Pereira e o Rei, D.
Afonso IV, mor motivos referentes à usurpação da jurisdição temporal da cidade
perpetrada pelo monarca. O concelho de Braga aproveitou o ambiente de contestação
e de imposição da autoridade do rei na cidade de Braga, e quis impôr ele mesmo a
sua autoridade na cidade. Apoderou-se de alguns símbolos do poder, como o selo
do concelho, abrindo um canal de comunicação directo com o rei, o rival directo do
senhor da cidade12. E tomou a seu cargo os açougues, e a repartição da carne e do
peixe. Sem sombra de dúvida, apoderando-se dos Símbolos do poder de governar,
legitimava-se como estrutura de poder!
Passando para outro momento de contenda jurisdicional, desta feita no
reinado de D. Pedro I, e em que este reclamou para si o senhorio da cidade de Braga,
retirando-o ao arcebispo e senhor dela, apenas 20 anos depois do atrás descrito, temos
noticias de novas contendas envolvendo a questão da legitimidade dos almotacés do
cabido, e a sua presença nos açougues cidade. Novamente o concelho, beneficiando
do que parece ser um enfraquecimento da autoridade eclesiástica, em benefício da
autoridade e jurisdição régia, afirma-se como força política activa e interveniente na
governança da cidade.
Como de costume debateram-se, em lados opostos da questão, o concelho e o
cabido de Braga, queixando-se este último sobre o seu direito de ter um almotacé
seu, escolhido e posto por si, nos açougues da cidade, pois [O cabido]
...“sempre ouueram almotaçarja na dicta vila e as cousas que a ela pertençiam
E que se husara sempre per esta gisa que elles pojnham huum almotaçe clerigo
em seu nome cada mes E o dicto conçelho outro dantre sj leigo pera almotaçar
as viandas e aquilo que compre a almotaçarja E que faziam direito daquelles
que nom o faziam o que deuiam nos ofizios em que elles aujam de ueer E todo
aquilo que os almotaçes am dauer que aujam o seu almotaçe a meatade e o
outro do conçelho a meatade E que Regiam a uilla de todo aquilo que compria
ao seu offizio E que assj husaram sempre de tanto tempo que a memorja dos
homees nom era em contrairo […]”13.
COELHO, Maria Helena Cruz. – “O Arcebispo D. Gonçalo Pereira: um querer, um agir”. In IX
Centenário da Dedicação da Sé de Braga. Congresso Internacional. Actas. Vol. II, tomo 1. Braga: Universidade
Católica Portuguesa e Cabido Metropolitano e Primacial de Braga, 1990, pp. 389-462. Também Vilar,
Hermínia Vasconcelos – “No tempo de Avinhão: Afonso IV e o episcopado em meados de trezentos”. Lusitania
Sacra 22 (2010), pp. 149-165.
13
ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. 62.
12
A LUTA POLÍTICA PELO CONTROLO DA R EPARTIÇÃO DA CARNE E DO PEIXE EM BR AGA
243
Naturalmente, e como era hábito em matérias desta natureza, esgrimiramse de ambas as partes os motivos que encaixavam dentro das alegações de cada
uma das partes em oposição. Do outro lado, o procurador do concelho alegava
que uma vez que a jurisdição da cidade já não era do arcebispo, o cabido não teria
quaisquer direitos sobre a almotaçaria da cidade, escudando-se atrás de justificações
convenientes, como a de que os almotacés do cabido não exerciam o cargo com
justiça, e praticando favorecimentos, prejudicavam a cidade, e punham em perigo a
paz social. Queixando-se a D. Pedro I, deram como exemplo o episódio de quando D.
Afonso IV tomou a jurisdição de Braga deixaram de existir os almotacés do cabido,
pelo menos no curto período de tempo em que a jurisdição da cidade esteve nas
mãos do rei, antes de ser devolvida a D. Gonçalo Pereira Lemos:
“[…] o conçelho contestou dizendo que a almotaçaria hj juridiçom temporal
E que perteençe ao senhor cuia terra he E que ao que deziam e alegauam da
parte do dicto cabidoo que estauam em pose de poer almotaçel diziam que no
tempo que a jurdiçom estaua por o arçebispo […] per o tempo que a jurdiçam
aujam eram sempre mais ffauorauja ao cabidoo que ao conçelho E que por eso
lhis soffriam de poer almotaçees por que sempre desa almotaçaria husauom
nom agisadamente E que pois ora a juridiçom estaua por mjm que o dicto
cabidoo nom auja por que poer almotaçel E outrossj diziam que ordinhaçom
do Regno era que nenhum clerigo nom aia tal offizio E diziam que quando o
dicto cabidoo poinham tres e quatro almotaçees em hum mes E que faziam o
que elles qeriam E que se agrauauam aquelles que aujam de dar as viandas E
se os juizes qeriam correger diziam que nom eram seos juizes E que por talo
Razam se perdia justiçam[…]”14.
Esta argumentação por parte do concelho é extremamente interessante do
ponto de vista da ideologia do exercício do poder laico, pois remete para a lei geral do
Reino, as Ordenações, que na óptica do concelho de Braga, tem primazia sobre as leis
e os costumes que vigoravam em Braga quando o arcebispo era Senhor da cidade. O
controlo do processo envolvendo a repartição da carne e do peixe na cidade, deixou
de ser um mero assunto mundano e do quotidiano, e passou a ser uma bandeira
política do concelho de Braga que, pelo menos momentaneamente, tomou nas suas
mãos as rédeas do poder de governar a cidade.
O século XIV não haveria de terminar sem outro episódio de usurpação do
senhorio de Braga. E foi no reinado de D. Fernando, que à semelhança dos episódios
de conflito anteriores, se viveu em Braga e no reino de Portugal, momentos políticos
conturbados. Corria o ano de 1380 quando o monarca retirou o senhorio de Braga
14
ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. 62.
244
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
ao arcebispo D. Lourenço Vicente. Novas notícias, na documentação coeva, de
que o concelho da cidade aproveitou a oportunidade para se afirmar como grupo
governante, e, sem consultar os restantes actores políticos e sociais de Braga, como
o cabido e restantes homens bons, lançou uma sisa sobre os bens alimentares, carne
e peixe incluídos. Escusado será dizer que este acto foi considerado uma afronta, e
causou uma onda de descontentamento na cidade. Todos os potenciais afectados
pelo imposto protestaram. O cabido, os mercadores, os carniceiros e tendeiros,
isto “porque diziam que o Concelho nunca esto mandara pedir nem dizer ao dicto
meirinho e que lhes era em gram prejuizo e que porem contradiziam a ello em seu
nome e dos outros tendeiros da dicta çidade” e que por isso “nom consentiam que se
a dicta Sisa lançasse […] e contradizia a todas as dictas cousas contehudas na dicta
carta do dicto ouvijdor e que nom consentia que se a dicta sisa possese nem em cousa
que o dicto juiz hij ffezesse nem mandasse ffazer […]”15.
Este acto importante da parte do concelho de Braga revelou, a nosso ver,
um aspecto importante acerca da edilidade bracarense, ao tempo: que existia uma
consciência de grupo cuja importância política e proeminência social não devia ser
substimada, nem dentro da cidade pelo cabido da Sé, nem fora dela pelos concelhos
vizinhos.
3. O século XV e a mudança de senhorio.
No dealbar do século XV, operaram-se mudanças políticas significativas envolvendo
o senhorio da cidade de Braga, as quais se refletiram também, e com grande
intensidade, na questão da repartição da carne e do peixe em Braga.
Em janeiro de 1402 celebrou-se um contrato de escambo entre D. João I de
Portugal e o arcebispo de Braga D. Martinho Afonso Pires da Charneca. que visava a
transferência do Senhorio da Cidade de Braga, da Igreja de Braga para a Coroa. Neste
contrato foram consignados alguns dos direitos dos prelados e cabido bracarenses e
deveres dos moradores da cidade, sendo que o aspecto da distribuição e repartição
da carne e do peixe seria uma das cláusulas presentes no dito contrato16.
Não é de admirar, à luz do que vimos analisando nas páginas precedentes,
que a questão da repartição da carne e do peixe fosse transformada numa clausula
consignada a escrito, num contrato jurídico. Muito já se tinha debatido e escrito no
século precedente, sem se alcançar verdadeiramente um pleno acordo pelas partes.
Processos judiciais custosos que tinham acabado em nim. Era expectável que se
tratasse desta questão, para evitar dissabores desnecessários. Por isso no contrato de
ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. 16.
MARQUES, José – “O senhorio de Braga no século XV – Principais documentos para o seu estudo”.
Separata de Bracara Augusta (XLVI). Braga: Câmara Municipal, 1997, pp. 20-22.
15
16
A LUTA POLÍTICA PELO CONTROLO DA R EPARTIÇÃO DA CARNE E DO PEIXE EM BR AGA
245
1402 escreveu-se o seguinte:
“Jtem per de carnibus et piscados que in dicta Ciuitate vendentur primo
almotacerius dabit Archiepiscopo que pro tempore fuerit per pecunijs suis
id per sibi fuerit expediens et de Residuo tercia pars dabitur canonicis et
tercanarijs et alijs de capitulo pro pecunijs suis si eam voluerint et Residuum
dabitur habitatoribus dicte Ciuitate”17.
Isto parecia claro, mas não foi. A prática revelou-se mais complicada e rica, aliás
como quase sempre na vida real.
Pouco depois de ser assinado o contrato de mudança de senhorio, o concelho da
cidade toma providências para chamar a si a administração dos açougues da cidade.
E como o faz? Lemos numa carta dirigida a D. João I, enviada pelo concelho de Braga
que “Johane afomso nosso serujdor nos enujou dizer que ell entendendo per o nosso
serujço mandara tirar os açougues antigos da çidade de bragaa donde ora estavam aa
porta da sse para fazer hi a praça […] E Nos ueendo o que nos pedia e entendendoo
por nosso serujço e prol e honrra da dicta çidade […] outorgamos o dicto18.
Mais uma vez, uma acção política reveladora de uma consciência de poder
concreto, dos governantes municipais, que estariam agora escudados por um
enquadramento legal de iure, resultante da jurisdição régia na cidade.
No entanto, os conflitos envolvendo a carne e o peixe, e sua respectiva repartição
e distribuição, continuaram. E mais acesos, e mais violentos, pese embora o facto de
que existia uma moldura legal, certamente pensada para evitá-los. Havia pois um
documento escrito, mas a sua interpretação causava dúvida e celeuma, e as partes
envolvidas interpretavam-na cada uma à sua maneira. Mas a clausula era clara: De
toda a carne e de todo o peixe que entrasse na cidade, o arcebispo retirava o que lhe
conviesse, mediante pagamento, ou por seus dinheiros. O restante, ou resíduo, seria
dividido em três, a saber: uma parte para o cabido, e duas partes para o concelho e
povo da cidade.
O pomo da discórdia prendia-se com a ordem de precedência ao acesso e
repartição da carne e do peixe. Simplificando, quem, cabido ou concelho, acederia
primeiro ao resíduo da carne e do peixe depois do arcebispo ter tirado a sua parte. É
importante referir que nunca se questionaram os direitos do arcebispo, talvez pela
simbologia do seu estado eclesiástico, bem como pelo seu poder político e influência
social. As duas partes em conflito eram então – ao tempo, e sempre –, o concelho e
o cabido da Sé de Braga. Ideologicamente, talvez os homens da câmara vissem como
ADB, Gaveta de Braga, doc. 22. Este documento encontra-se transcrito e inserido num processo
judicial datado de 25 de julho de 1406, elaborado com o objectivo de se apurar a legalidade e a validade do
contrato de escambo de 1402. Este processo foi transcrito na íntegra por José Marques na já referida obra (nota
4) – Vide pp. 35-54.
18
ADB, Colecção Cronológica, doc. 940. Este documento, datado de 20 de março de 1403 (pouco mais de
um ano após a troca de senhorio), dá-nos conta dessa mudança já efetuada nesta data.
17
246
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
uma afronta à própria jurisdição régia e à índole da governação laica, o cabido ser
servido de carne e peixe em primeiro lugar, antes do povo da cidade.
E logo em 1416, em Sé vacante, notícias de desaguisados sobre a repartição da
carne e peixe, dão-nos conta da polarização política causada pelo não entendimento
das partes, quanto à clausula do contrato de 1402. Com efeito, queixou-se o cabido
de que o concelho incorrera em incumprimento do contrato porque “os almotaçees
lhes nom dauom o dicto terço em cheo sseguundo que erom teúdos de dar tirando
ante de todo pescado e carne de todo o monte carne e pescado que dauom a goncallo
pereira E outros caualleiros e pessoas o que nom deuiam fazer[…]”19. Em 1419, ainda
não se tinha resolvido esta questão e apelava-se ao rei para fazer cumprir o contrato,
dado que as posições se tinham extremado, e os ânimos escalado violentamente. O
concelho queixou-se ao rei que
"[…]algumas pesoas grandes e poderosas do dicto cabidoo que pressentes
estauom com tençom demjuriar o dicto conçelho diseram que mall que pesase
aos do dicto Conçelho elles lhe dariom a carne primeiro que a nemhuum
do dicto conçelho e lha pessariom primeiro E que sse lha primeiro dar nom
quissessem elles per meatade da força lha hiriom tomar ao açougue E que esses
do conçelho lha nom defenderiom nem erom pera lha defender ca os do dicto
cabidoo erom mais e melhores e mais poderosos que o dicto conçelho […] se
o dicto cabidoo tall obra de fecto quissessem fazer e forçar a dicta carne ao
dicto conçelho ssem poder e mandado de justiça e alguuns do dicto conçelho
quissessem sua carne em parar e defender sse recreçeriom mortes dhomens ou
feridas ou alleigamentos ou outros alguuns grandes malles […]”20.
O cabido de Braga com direito ao contraditório, defendeu-se, justificando
estas atitudes extremas com o facto de lhe ser reservada a pior carne da cidade. Uma
acusação séria, à qual nem os carniceiros da cidade escaparam, reveladora da posição
privilegiada que o cabido auferia, decorrente do seu estado eclesiástico. E este acto
era uma afronta ao seu estado. Sem rodeios justificou-se ao monarca dizendo que
“as melhores carnes fazem escolher e fiquar em casas dos carnyçeiros E a mais
magra e peyor fazem viir aa carneçaria e dessa repartem ao dicto cabidoo em
guisa que ja primeiro o mais vill dantre elles tem sua carne çerta cozida quando
a ao dicto cabidoo e dignydades e coonegoos dell ham repartida a sua E o que
peor he depois que asy he repartida os allmotaçees per elles postos nos filham
ajnda della o que lhes apraz em guisa que muytos dos dictos coonegoos ficam
ssem carne elles e seus seruidores[…]o dicto cabidoo recebem em cada huum
19
ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. 65. Documento datado de 11 de Agosto de 1442, contendo os
traslados de cartas régias de 1416 e 1419, onde se dá conta dos desentendimentos entre o cabido e o concelho
de Braga sobre a repartição da carne e do peixe, no seguimento do estipulado no contrato de escambo de 1402.
20
ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. nº 65, 67.
A LUTA POLÍTICA PELO CONTROLO DA R EPARTIÇÃO DA CARNE E DO PEIXE EM BR AGA
247
dia grandes agrauos e emjurias […]”21.
Não havia pois fim à vista para este conflito. Em 1442, em resposta a mais
uma acusação que o cabido de Braga fez ao rei, pelo incumprimento da clausula do
contrato de 1402, respondeu o concelho que aquilo que reivindicava o cabido era
“em prejuízo del Rey nosso Senhor e de sua jurdiçom e desta çidade e çidadaaos
della”22. A posição do concelho de Braga era clara, pois adotando um discurso político
de afronta, questionava, em última análise, a validade e aplicabilidade da própria
cláusula do contrato de escambo de 1402. O procurador do concelho afirmou mesmo
“que o dicto escaybo que eles alegam nom diz nem declara tall que a dicta carne aja
de seer repartida e cortada primeiro que ao dicto conçelho”, e invocando uma carta
do Regente D. Pedro, para justificar as ações do município, continuou, citando as
palavras deste último: “se despois do escaybo sempre esteuestes [concelho] em posse
de a darem [carne e peixe] primeiro a vos [concelho] que a eles [cabido] se vos boo
custume e posse tendes mantende o ca nos nom uos entendemos de quebrar vossos
priuiligios hussos e boos custumes”23.
4. O contrato de 1472 – o conflito permanece?
A reversão da estatuto jurisdicional de Braga, em 1472, que sancionou de vez
o seu estatuto de senhorio eclesiástico, ficou como em 1402 contratualizado,
comprometendo-se as partes envolvidas a zelar pela sua aplicabilidade plena. Este
novo contrato, não trouxe, contudo, informações novas sobre a questão da repartição
da carne e do peixe na cidade de Braga, indicando, ao que parece, que tudo deveria ficar
como estipulado no primeiro contrato de 1402. Isto pode ser inferido destas palavras
consignadas no contrato de 1472: “elle dicto Arcebispo e seus sobcessores tenham
e ajam na dicta cidade e seu termo aquelles dirreitos dos quaaes o dicto Arcebispo
agora esta de posse per bem e vertude do primeiro contraucto de permudaçom
fecto antre o dicto Rey Dom Joham e o Arcebispo Dom Martinho […]”24. O novo
contrato apesar de ter significado uma mudança no estatuto jurídico da cidade, não
influenciou nos conflitos e desaguisados envolvendo a repartição da carne e do peixe
em Braga. Estes continuaram, persistiram mais ou menos ruidosos, dependendo
das conjunturas políticas, sociais e económicas das épocas em que se inseriam. Em
alguns momentos do século XV, o ambiente de tensão e de medo vivido nos açougues
de Braga era tal, que alguns carniceiros começaram a guardar a carne nas suas casas,
ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. nº 65, 67.
ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. nº 65.
23
ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. nº 65.
24
ADB, Gaveta de Braga, doc. 23.
21
22
248
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
escondendo-a dos açambarcadores que pela força a iam buscar aos açougues. Por
exemplo, em Janeiro de 1474, o cabido de Braga acusou o carniceiro Rui Gonçalves,
de guardar na sua casa o melhor boi dos dois que matou,
“E llogo [lhe] requereo que lhe trouxesees ho terço do melhor boy ho que
uos por alghuum nom boo respeito ffazer nom quisestes e o recusastes ffazer
respondendo que primeiro qujriees talhar aquella carne aa cjdade e a sseus
moradores e que sse elle quisese tornasse aa tarde e lha darjees[…]”25.
Esta acusação do cabido de Braga relativamente à retenção da carne na casa do
carniceiro é interessante na medida em que nos mostra o ambiente de desconfiança
que existia relativamente ao abastecimento cabal dos açougues e a sua supervisão
pelos almotacés da cidade, pois parece ter existido uma área cinzenta, em que era
permitido, em alguns casos que a carne ficasse com o carniceiro. Mas esta contestação
era mais pelo facto de que ter sido melhor carne, do melhor boi a ser desviada da
mesa dos “dictos Senhores por seerem pesoas eclesiasticas e priujlligiadas e os santos
canones e leix inpenaaes dom e outorgom grandes prerogatiuas e priujllegios”26.
Este é apenas um dos muitos exemplos da seriedade do assunto envolvendo a
ordem de precedência da repartição da carne e do peixe em Braga que, em última
análise, significava, pelo tipo de carne que conseguiam arrematar, quem era o grupo
político-social mais importante. Parece de somenos, mas não o seria ao tempo destes
acontecimentos. Ainda em 1501, estando ausente o arcebispo D. Jorge da Costa
em Roma, o concelho e o cabido andavam em pleitos, discordando e agravando-se
diariamente nos açougues por causa da repartição da carne e do peixe nos açougues27.
Apesar da cidade ter voltado ao estatuto de senhorio eclesiástico, o contencioso não
tinha fim à vista. As notícias documentais deste desaguisado levam-nos longe, até ao
século XVII!
5. Alguns aspectos sobre políticas de regulamentação e fiscalização concelhia.
Os episódios de conflito e altercação política evocados nas páginas anteriores, deixam
antever porém outros aspectos importantes, que se prendem com o processo de
abastecimento da cidade em si. É verdade, como já atrás referimos, a repartição justa
dos bens essenciais, como a carne, o peixe, e o pão entre outros, era quase sempre
matéria delicada a ser tratada pela almotaçaria das cidades, e não será para nós hoje
difícil de imaginar os discursos inflamados em plenos açougues, praças e mercados,
ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. nº 76.
ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. nº 76.
27
ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. 68.
25
26
A LUTA POLÍTICA PELO CONTROLO DA R EPARTIÇÃO DA CARNE E DO PEIXE EM BR AGA
249
proferidos por autoridades, vendedores e fregueses, cujo fogo das suas palavras era
atiçado pelos respetivos séquitos de apoiantes.
Para além de actuarem no sentido de garantirem à cidade o suprimento
necessário de bens essenciais, os governos municipais medievais (na sua generalidade),
e Braga com certeza não seria excepção, agiam também no sentido de salvaguardar
os produtores locais (assegurando-lhes o acesso ao mercado diário), adotando, em
alguns casos, políticas comerciais protecionistas, ao limitar, por exemplo, a entrada
na cidade de bens essenciais importados de outras cidades ou vilas do reino28. Estas
ações estariam, na maior parte das vezes, impregnadas de propaganda política,
visando demonstrar a capacidade e a competência governativa do município, face
aos outros poderes concorrentes na cidade, ou vila.
As Ordenações Afonsinas estipulavam que os almotacés tivessem carrego de
vigiar o trabalho de todos os mesteres assegurando, com a fluidez possível na época,
o provimento dos mercados urbanos. Para além disso, fazia também parte das suas
competências, o tabelamento do preço da carne e do peixe quando este chegava aos
açougues e a sua posterior divisão entre ricos e pobres, bem como a supervisão dos
pesos e das medidas usadas. No caso de Braga, ao longo de todo o século XIV e XV,
este carrego não deve ter sido pacífico, especialmente depois do contrato de escambo
de 1402, que sancionou, em forma de lei, o processo de repartição da carne e do peixe
na cidade, conforme já mencionamos.
De facto, como atrás vimos, a almotaçaria em Braga parece ter sido uma moeda
com reverso e anverso, sendo que num dos lados estariam os almotacés do Concelho,
e no outro, os almotacés do Cabido. Juntos, estes oficiais “faziam djreito daqueles que
nom faziam o que deviam nos ofizios em que elles auiam de aueer E (…) Regiam a
uilla de todo aquilo que conpria ao seu ofizio E que husaram sempre de tanto tempo
que a memoria dos homeens nom era em contrairo”29.
Os homens que desempenhavam o cargo de almotacés concelhios tinham
fortes ligações ao poder municipal. Os almotacés dos primeiros meses do ano
administrativo concelhio, que começava em Março, eram os oficiais do ano cessante:
juízes, vereadores e procurador. Com efeito, no primeiro mês seriam almotacés os
dois juízes velhos, no segundo mês dois vereadores, e no terceiro mês um vereador
e o procurador do concelho. Nos restantes meses os almotacés seriam homens
bons da cidade de Braga, escolhidos por pelouros30. Não é de admirar, portanto,
28
JARA-FUENTE, José Antonio – “Élites urbanas: las políticas comerciales y de mercado como formas
de prevención de conflictos y de legitimación del poder (La veda del vino en Cuenca en la Baja Edad Media)”.
Brocar 21 (1998), pp. 119-133.
29
ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. nº 62.
30
MARTINS, Raquel de Oliveira – O Concelho de Braga na segunda metade do século XV: O governo
dOs homrrados cidadaaos e Regedores. Braga: Universidade do Minho, 2013, p. 70. Dissertação de Mestrado.
Disponível em http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/29298.
250
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
que defendessem os interesses da instituição municipal, opondo-se muitas vezes ao
cabido da cidade, instituição que para a edilidade, muitas vezes ameaçava a paz social
e o bom funcionamento dos açougues e dos mercados da cidade.
Conclusão.
Em conclusão podemos dizer que a luta pelo controlo da repartição da carne e do
peixe em Braga, nos séculos XIV e Xv, e os confrontes a ela inerentes, tiveram em
comum o facto de, como pano de fundo, estarem a ocorrer importantes mudanças
políticas, associadas às mudanças de jurisdição, de eclesiástica para régia. E este
conflito em torno do abastecimento da carne e peixe era apenas um dos aspetos do
quotidiano em que o governo municipal podia exercer e reivindicar maior controlo
e poder, associado à ideologia política da centralização do poder régio, da qual os
governos municipais de senhorio régio eram representantes de excelência.
A luta pelo controlo do governo da cidade, encetada pelo concelho, estava
associada a uma consciência de poder e a um sentimento de coesão social do grupo
governante municipal, que com frequência se materializou em conflitos abertos
contra o cabido da Sé de Braga. Tais conflitos levaram por vezes o concelho a
questionar algumas das prerrogativas senhoriais mais antigas usufruídas pelos
cónegos. Com efeito, a luta pelo controlo da repartição do peixe e da carne em Braga,
durante os séculos XIV e XV, se tributário das conjunturas políticas e sociais da
época revelaram-se também como meios de aproveitamento e propaganda política,
tanto por parte do concelho de Braga como do Cabido da Sé.
A LUTA POLÍTICA PELO CONTROLO DA R EPARTIÇÃO DA CARNE E DO PEIXE EM BR AGA
251
252
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Del mar Cantábrico a la meseta
castellana.
Las dificultades de los mercaderes de las
Cuatro Villas de la Costa
en la distribución del pescado
en el norte de Castilla
a finales de la Edad Media.
Javier Añíbarro Rodríguez1
Resumen
El fraude, los engaños, y los abusos de poder fueron algunos de los problemas
que dificultaron distribución del pescado que llegaba al norte de la Península
Ibérica desde el mar Cantábrico. Nuestra propuesta de trabajo parte de la
hipótesis de que el pescado que entraba en los puertos del norte del Reino
de Castilla (concretamente los de las Cuatro Villas) era rentable, y codiciado
por los mercaderes medievales. Como consecuencia, esta mercancía atrajo
todo tipo de problemas: la clásica acaparación de producto por unos pocos
comerciantes que provocaba desabastecimiento a los vecinos; engaños en los
que estaban implicados miembros de las propias autoridades de los concejos;
abusos por parte de personas poderosas, etc.
El trabajo que proponemos explicará qué políticas aplicaron los diferentes
poderes en las villas costeras del norte de Castilla para favorecer una distribución
lógica, proporcional y equilibrada del pescado en aquella región.
Palabras clave
Pescado; Hinterland; Comercio; Conflictos, Puertos.
1 Universidad de Cantabria
254
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
From the Cantabrian Sea to the Castilian plateau.
The difficulties of the merchants of Cuatro Villas de la Costa (Spain)
in the distribution of fish in northern Castilla
at the end of the Middle Ages.
Abstract
Fraud, deception, and abuse of power were some of the problems that hindered
the distribution of fish that reached the north of the Iberian Peninsula from
the Cantabrian Sea. Our work proposal is based on the hypothesis that the
fish that entered the northern ports of the Kingdom of Castile (specifically
those of the Four Villas) was profitable, and coveted by medieval merchants.
As a consequence, this merchandise attracted all kinds of problems: the classic
product hoarding in a few merchants that caused shortages to the neighbors;
hoaxes involving members of the council authorities themselves; abuse by
powerful people, etc.
The paper we propose will explain what policies the different powers applied
in the coastal towns of northern Castilla to favor a logical, proportional and
balanced distribution of fish in that región.
Keywords
Fish; Hinterland; Trade; Conflicts; Ports.
Introducción.
La pesca fue la actividad económica que mayores ingresos ofrecía a los vecinos de
las Cuatro Villas de la Costa de la Mar a finales de la Edad Media; la mayor parte de
los vecinos de esos puertos se dedicaban directa o indirectamente a las actividades
marítimas, y de entre ellas destacó la pesca o la adquisición del pescado a través del
comercio. Se trataba de un producto especialmente codiciado, no sólo por su alto
consumo en los días señalados como de abstinencia en el calendario cristiano, sino
también por la buena fama y prestigio del que gozaban los productos marítimos del
Cantábrico en el resto de la Península Ibérica2.
2
En este sentido, es célebre el episodio del libro del buen Amor de Juan Ruiz, el Arcipreste de Hita, en
el que describía la preparación de los ejércitos de don Carnal frente a los de doña Cuaresma, éstos últimos
formados por todo tipo de pescados y mariscos procedentes de puertos de toda la Península. Destacaban las
DEL MAR CANTÁBRICO A LA MESETA CASTELLANA
255
No es de extrañar que la pesca, y especialmente la fiscalidad y las rentas derivadas
de ella en Castilla, haya sido un tema que haya atraído la atención de medievalistas
en los últimos años3. En el caso que nos ocupa nos centraremos en las Cuatro
Villas de la Costa de la Mar, nombre que alude al corregimiento en el que quedaron
englobados los puertos de San Vicente de la Barquera, Santander, Laredo y Castro
Urdiales a finales de la Edad Media. El enfoque que pretendemos proyectar se centra
en los conflictos y problemas generados en este espacio a partir de la documentación
medieval de procesos judiciales, pleitos y ordenanzas.
Un parte considerable de los procesos judiciales que hemos estudiado proceden
del Archivo General de Simancas, fondo del Registro General del Sello de Corte,
y de la Cámara de Castilla. En el caso de los documentos procedentes de la Real
Chancillería de Valladolid, hemos prestado especial atención a los testimonios de
los testigos registrados en las Reales Ejecutorias. El problema de la información
procedente de este tipo de documentación es que, por su propia naturaleza, consiste
en la denuncia de fraudes, conflictos por la comercialización o por la propia
obtención de los peces. Como consecuencia, el lector podría percibir la idea de que
los problemas que presentamos fueron generales, constantes en el tiempo y que el
pescado fue un producto especialmente vigilado respecto al resto. El pescado fue, en
efecto, el producto “estrella” de las Cuatro Villas, y por tanto existió una preocupación
de los concejos urbanos por regular su compra, venta y distribución, pero ello no
significa que fuera un producto especialmente conflictivo.
El otro tipo de documentación que hemos empleado en nuestro trabajo es
el legislativo; concretamente ordenanzas. La problemática radica en su escasa
langostas de Santander, los arenques y besugos de Bermeo, el congrio cecial y fresco de Laredo, y los salmones
de Castro Urdiales. GARCÍA DE CORTÁZAR, José Ángel – Vizcaya en el siglo XV. Aspectos económicos y
sociales. Bilbao: Ediciones de la Caja de Ahorros Vizcaina, 1966, p. 113.
3
Algunos ejemplos los encontramos en RUIZ PILARES, Enrique José – “El paisaje pesquero de Jerez
de la Frontera a finales de la Edad Media: caladeros, flota, distribución y consumo,” en Historia. Instituciones.
Documentos 45 (2018), pp. 377-405; BELLO LEÓN, Juan Manuel – “Las rentas derivadas de la venta y
distribución de pescado en Sevilla y Jerez de la Frontera a finales de la Edad Media. Una aproximación”. In
En la España Medieval 40 (2017) pp. 35-65; COLLANTES DE TERÁN SÁNCHEZ, Antonio – “La fiscalidad
concejil sobre el pescado en la Sevilla bajomedieval”. In CÓRDOBA DE LA LLAVE, Ricardo; PINO GARCÍA,
José Luis del; CABRERA SÁNCHEZ, Margarita (coords.) – Estudios en homenaje al profesor Emilio Cabrera.
Cáceres: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Extremadura, 2015, pp. 123-138; VÍTORES CASADO,
Imanol – “Compañías vascas en torno al arrendamiento y recaudación de la renta de los diezmos de la mar
en Castilla a fines de la Edad Media”. In CARVAJAL DE LA VEGA, David; VÍTORES CASADO, Imanol;
AÑÍBARRO RODRÍGUEZ, Javier – Redes comerciales y económicas en el mundo bajomedieval. Valladolid:
Castilla Ediciones, 2011, pp. 241-264; GUERRERO NAVARRETE, Yolanda – “Consumo y comercialización
de pescado en las ciudades castellanas de la Baja Edad Media”. In La Pesca en la Edad Media. Santiago de
Compostela: Sociedad de Estudios Medievales, 2009, pp. 235-259; en el caso del territorio actual de Cantabria
la fiscalidad del pescado fue estudiada en SOLINÍS ESTALLO, Miguel Ángel – La alcabala del Rey, 1474-1504.
Fiscalidad en el Partido de las Cuatro Villas cántabras y las merindades de Campoo y Campos con Palencia.
Santander: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Cantabria, 2003. Para un resumen general, LADERO
QUESADA, Miguel Ángel – “Historia institucional y política de la Península Ibérica en la Edad Media”. In En
la España Medieval 23 (2000), pp. 441-481.
256
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
precisión cronológica; el hecho de que una ordenanza se registre por escrito en un
momento concreto no significa que sea nueva; simplemente refleja la necesidad de
la autoridad de reforzar esa práctica haciéndola redactar para que quede escrita. En
este sentido, las propias ordenanzas advierten que muchas de ellas son muy antiguas,
y que se llevaban aplicando desde hacía generaciones. En el caso concreto de Castro
Urdiales, las ordenanzas que nos han llegado fueron redactadas a comienzos de la
Edad Moderna, pero una parte muy importante de ellas procede realmente de la
Baja Edad Media4. Las ordenanzas adolecen de otra ambigüedad. Al tratarse de un
documento que trataba de regular la vida pública de las personas, son muy generales.
Su falta de concreción impide conocer detalles referentes a tipo de pescados, formas
de distribución o personas que incumplían la ley.
1. La importancia del pescado en las Cuatro Villas.
Si el pescado fue el producto que más contribuyó a la economía de la villa fue porque
la sociedad tuvo que volcar sus esfuerzos productivos en el mar. La tierra circundante
a San Vicente de la Barquera, Santander, Laredo y Castro Urdiales era deficitaria en
trigo. Su clima atlántico, lluvioso y frío, unido a las características de un suelo poco
fértil para obtener trigo con las técnicas agrarias de los siglos XIV, XV y comienzos
del XVI provocaron que los vecinos de estas villas buscaran en el comercio, y sobre
todo en el pescado, un producto que poder intercambiar por cereal. En efecto, en
1515 el concejo de San Vicente de la Barquera, pedía a la Corona licencia para obtener
de Andalucía y Granada 600 caíces de trigo debido a “que en la dicha villa e su tierra
no se syenbra ny coge pan por ser tierra de montaña muy esteril, a cuya causa los
vesynos de la dicha villa están en mucha nesçesydad de pan para su probeymiento y
de sus naos e navios que van a las pesquerías del Reyno de Yrlanda e a otras partes”5.
En otras palabras: gracias al pescado que obtenían de las pesquerías, los vecinos
de las Cuatro Villas eran capaces de acumular el capital necesario para importar el
trigo que requería la población, si bien, en épocas de carestía, coincidiendo con el
alza del precio del cereal, ese equilibrio se rompía y forzaba a los concejos urbanos a
pedir licencias a la corona.
La importancia del pescado en la economía de estas villas se manifiesta
especialmente en dos datos: la percepción subjetiva de los vecinos de sí mismos, y las
rentas de la alcabala.
BARÓ PAZOS, Juan, GALVÁN RIVERO, Carmen – Libro de ordenanzas de la villa de Castro Urdiales
(1519-1572). Santander: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Cantabria, 2006, pp. 15-16.
5
Simancas. Archivo General de Simancas, Cámara de Castilla. Pueblos. Leg. 17, doc. 372. Figura su
regesta en BLANCO CAMPOS, Emma; ÁLVAREZ LLOPIS, Elisa; GARCÍA DE CORTÁZAR, José Ángel –
Documentación referente a Cantabria en el Archivo General de Simancas. Sección Cámara de Castilla (años
1483-1530). Santander: Fundación Marcelino Botín, 2005, p. 303, doc. 473.
4
DEL MAR CANTÁBRICO A LA MESETA CASTELLANA
257
En cuanto al primer dato, se trata de la imagen que los habitantes de estos puertos
proyectaban hacia el exterior. Se percibe en el testimonio de Juan de Oreña, vecino
de San Vicente, en un interrogatorio de 1516 dirigido a impedir que se reclutaran a
cien hombres de la villa para enviarlos como infantería a la guerra. Juan de Oreña
aseguró que “conosçia a la mayor parte e casy a todos los veçinos de la dicha villa e
sabe e es muy notorio que asy que todos ellos vyben por el ofiçio de la mar en ella
e les tienen otro ofiçio eçebto algunos muy pocos que usan de ofiçios de letrados,
escribanos, sastres, varberos, e herreros e otros ofiçios de manera que asy de treynta
partes las veynte e nueve viben por el ofiçio e trabto de la mar”6. Por supuesto, somos
conscientes de que se trata de un testimonio interesado, y exagerado, pero el hecho
de que recurran al mar como elemento identitario no debe interpretarse como algo
gratuito: eran y se consideraban a sí mismos como gentes de mar.
El segundo dato es más objetivo: las rentas de las Cuatro Villas en concepto de
alcabala. Se han conservado la cantidad de dinero recaudado por la compra-venta de
pescado, vino, pan, carne, sal, producción artesanal y “otros” en el año 15027. Si se
analizan porcentualmente esos datos, se desprende que aquel año, las alcabalas del
pescado de San Vicente de la Barquera suponían un 58% del total de las rentas de
la alcabala. En Santander las rentas del pescado se situaron en el 43%, y en Castro
Urdiales y Laredo un 51 y un 50% respectivamente. Se trata de unos porcentajes muy
similares. Es decir, que la actividad económica derivada del pescado era vital para la
villa y sus habitantes.
2. Distribución del pescado en la Península Ibérica.
Debemos de tener en cuenta que estos puertos del cantábrico no eran grandes
centros comerciales y, sin embargo, eran capaces de canalizar hacia Castilla pescado
procedente de Terranova, Irlanda, Bretaña o la Berbería8. Una vez llegaba a los
puertos de las Cuatro Villas el pescado era distribuido en un alcance igualmente
amplio; los mulateros y mercaderes lo llevaban a plazas como Herrera de Pisuerga,
Orduña o Vitoria. Incluso en algunos testimonios judiciales queda constancia de que
desde mediados del siglo XV algunos vecinos de San Vicente de la Barquera eran
propietarios de tiendas y boticas especializadas en venta de sardinas al por menor en
villas de la meseta castellana como Dueñas, a 30 km de Valladolid, o que alquilaban
Simancas. Archivo general de Simancas. Cámara de Castilla. Memoriales. Leg. 120, doc. 80, fol. 5r
SOLINÍS ESTALLO, Miguel Ángel – La Alcabala del Rey, 1474-1505. Santander: Servicio de
Publicaciones de la Universidad de Cantabria, 2003, p. 167.
8
ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz – “Gentes de mar en los puertos medievales del Cantábrico”. In
SOLÓRZANO, Jesús Ángel; BOCHACA, Michel; ANDRADE, Amélia Aguiar – Gente de Mar en la Ciudad
Atlántica Medieval. Logroño: Instituto de Estudio Riojanos, 2012, pp. 19-44, p. 24, pp. 34-44. Simancas.
Archivo General de Simancas, Cámara de Castilla. Memoriales. Leg. 120, doc. 80, fol. 5v.
6
7
258
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
almacenes en Villalón para almacenar y redistribuir sardina al por mayor por el norte
de Castilla9. Desde estos centros, el pescado podía ser redistribuido a otras plazas
más importantes del interior de Castilla como Burgos, Valladolid, Toledo, Madrid o
Guadalajara10.
Paradójicamente los mayores problemas para distribución del pescado
comenzaban una vez el producto llegaba a los puertos de las Cuatro Villas. En
nuestro trabajo nos centraremos en tres tipos de problemas que se detectan a partir
de las fuentes: los materiales, causados por las dificultades geográficas; los políticos,
relativos a la naturaleza jurisdiccional y la compleja realidad administrativa de finales
del siglo XV; y finalmente los económicos, provocados precisamente por el éxito del
que gozaban los productos pesqueros en Castilla.
3. Los problemas materiales y geográficos.
La zona que estamos estudiando presenta un desnivel muy pronunciado; a unos 50
kilómetros tierra adentro los mercaderes que transportaban el pescado al interior
debían superar la Cordillera Cantábrica, una cadena montañosa que les obligaba a
discurrir por caminos a más de 1000 metros sobre el nivel del mar. La orografía se
volvía tortuosa, y obligaba al viajero a remontar los valles formados por los cauces
de los ríos que nacen en las montañas. Dependiendo del puerto marítimo de origen,
existían tres diferentes rutas para llegar Castilla.
Laredo y Castro Urdiales, los puertos más orientales, compartían la misma
ruta. Era la que disponía de las mejores condiciones físicas por hallarse en una zona
donde la Cordillera Cantábrica comienza a atenuarse, por ser la que enlazaba más
directamente con Burgos. Sin embargo, estos caminos atravesaban casas fuertes o
zonas como Soba o Medina de Pomar que pertenecían a la Casa de Velasco, cuyos
intereses no siempre coincidían con los de las Cuatro Villas11. Atravesar aquellos
caminos implicaba tener que pagar a los Velasco derechos como portazgos si no se
tenían privilegios, y ello incrementaba el precio del producto en su destino. Además,
9
AÑÍBARRO RODRÍGUEZ, Javier – “Pescadores, mulateros y mercaderes de los puertos cantábricos:
distribución del pescado irlandés en el norte de Castilla a finales de la Edad Media”. In COSTA, Adelaide
Millán da; ANDRADE, Amélia Aguiar; TENTE, Catarina (eds.) – O papel das pequenas cidades na construção
da Europa Medieval. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, 2017, pp. 341-356, p. 352; SOLÓRZANO
TELECHEA, Jesús Ángel; VÁZQUEZ ÁLVAREZ, Roberto; ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz – San Vicente de
la Barquera en la Edad Media: una villa en conflicto. Archivo de la Real Audiencia y Chancillería de Valladolid.
Documentación Medieval (1241-1500). Santander: Consejería de Cultura del Gobierno de Cantabria, 2004,
doc. 20, p. 128; Simancas. Archivo General de Simancas, Registro del Sello de Corte, junio 1485, doc. 50.
10
SANCHEZ QUIÑONES, Julián – “Los precios del pescado en Guadalajara en el siglo XV:
Problemas y factores de influencia”. In La Pesca en la Edad Media. Santiago de Compostela: Sociedad de
Estudios Medievales, 2009, pp. 181-191, pp. 185-186. GUERRERO NAVARRETE, Yolanda – “Consumo y
comercialización…”, p. 239, pp. 243-244.
11
MORENO OLLERO, Antonio – Los dominios señoriales de la Casa de Velasco en la Baja Edad Media.
Cádiz: Industrias gráficas Santa Teresa, 2014, pp. 177-180.
DEL MAR CANTÁBRICO A LA MESETA CASTELLANA
259
en tiempos en los que las relaciones entre el Condestable de Castilla (miembro de los
Velasco) y las Cuatro Villas eran tensas, surgieron conflictos, como veremos cuando
tratemos los problemas políticos. Otro problema añadido de estas rutas era el estado
de sus infraestructuras a comienzos del siglo XVI; según algunos testimonios de
vecinos de Santander, existían tramos en los que difícilmente podían discurrir carros
por ellas, y era necesario recurrir a las acémilas: “Los caminos de Santander son
abiertos y mejores en forma que permiten el tránsito de carros, lo que no sucede
desde Bilbao o Laredo, cuyos caminos no permiten más que el peso de caballerías
por pie de mulo”12. Esta circunstancia limitaba enormemente la cantidad de pescado
que se podía transportar. Con todo, la ruta de Laredo-Burgos fue considerada la más
importante que enlazaba con Castilla13. Se trata también de la ruta mejor conocida y
documentada de las tres14.
Santander se encontraba en un lugar estratégico porque su conexión con
Palencia y Valladolid era casi igual de directa que la que le unía con Burgos. Por
esa razón era un puerto a tener en cuenta por cualquier mercader que requiriera de
cierta flexibilidad en cuanto a trayecto. Las condiciones de las infraestructuras de
esta ruta parecen mejores que las de las villas orientales; sin embargo, discurrían a
una altitud en la que las nieves de invierno podían hacer impracticable el tránsito,
especialmente cerca del puerto del Escudo. Otro problema añadido era el bandidaje
de los valles aledaños que flanqueaban esta ruta. Uno de los problemas de este
itinerario radicaba en la ausencia de poblaciones cercanas en los valles lindantes.
Ello hacía el viaje más peligroso, puesto que aumentaba el riesgo de que el mercader
fuera atacado por malhechores o bandidos. Así, el Valle de Carriedo que conectaba
con la zona de la Vega de Pas, se hallaba despoblado y sin tabernas, lo cual era visto
con preocupación por las autoridades del Corregimiento en 1505 porque favorecía el
bandidaje; como solución se planteó construir una venta en el camino en la que los
mercaderes pudieran descansar y protegerse15.
12
SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús Ángel – Patrimonio Documental de Santander en los Archivos de
Cantabria. Documentación Medieval (1253-1515). Santander: Consejería de Cultura y Deporte. Gobierno de
Cantabria. 1998, doc. 225, p. 284. Somos conscientes de que desde Santander interesaba ofrecer una imagen
de esta ruta como problemática para canalizar las rutas hacia su villa, pero resulta relevante que en las
Ordenanzas de Castro Urdiales se hable de recueros y mulateros, y no de carros o carretas, y en Laredo, debido
a que las barcas se ubicaban en la plaza y causaban molestias a los viandantes, se dice que “algunas veces abido
palabras e platycas con algunos duennos de los dichos barcos por que los ponen tan juntos de las casas que no
pueden pasar azemylas algunas de las que vienen a la villa con provysyones”. Resulta llamativo que tampoco
se mencionen vehículos con ruedas. Simancas. Archivo General de Simancas. Cámara de Castilla. Pueblos. Leg.
10, doc. 34, 1494, interrogatorio a Juan García de Andrés, séptima pregunta.
13
MOLÉNAT, Jean Pierre – “Chemins et Ponts du Nord de la Castille au temps des Rois Catholiques”.
In Mélanges de la Casa de Velázquez 7 (1971), pp. 115-162.
14
ÁLVAREZ LLOPIS, Elisa; BLANCO CAMPOS, Emma – “Las vías de comunicación de Cantabria
en la Edad Media”. In I Encuentro de Historia de Cantabria. Santander: Servicio de Publicaciones de la
Universidad de Cantabria, 1999, pp. 491-521, p. 496; Madrid. Archivo Histórico Nacional. Sección Nobleza,
Frías, caja 235, doc. 55, año 1499.
15
ÁLVAREZ LLOPIS, Elisa; BLANCO CAMPOS, Emma – “Las vías de comunicación…”, p. 506
260
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
La tercera vía, que partía de San Vicente de la Barquera, era la que se encontraba
en peores condiciones, la más impracticable y la que mayores problemas presentaba
a la hora de transitarla. Al igual que en el caso de Santander, atravesaba zonas que
en invierno eran en parte impracticables por la nieve. No obstante, los mercaderes
ocasionalmente podían atravesar los puertos nevados, aunque ilegalmente, porque
algunos los poderes locales de las tierras de montaña se prestaban a abrir caminos
nuevos en la nieve cobrando una tasa de seis maravedís por bestia al mercader por
transitar por el paso recién abierto. Tal práctica era ilegal y fue denunciada en el año
1494 cuando el alcaide del castillo de Argüeso, Hernando de Mira, la llevó a cabo16.
Otro problema fue el penoso estado de las calzadas y vías de comunicación; entre
otoño y primavera en esta región eran frecuentes las riadas y que los cauces de los
ríos se desbordaran; como consecuencia se hacía necesario reparar los puentes y
caminos que quedaban anegados, gastos a los que debían contribuir las poblaciones
de los alrededores mediante un reparto. Un ejemplo lo tenemos en 1502, cuando los
concejos de Bárcena Mayor, Val de Cabezón y Ucieda apelaron por el repartimiento
efectuado por el Corregidor de las Cuatro Villas de la Costa tras unas riadas que
causaron destrozos en las vías de comunicación17.
En términos generales, desde el Corregimiento de las Cuatro Villas se trató
de solucionar este problema mediante la inversión en infraestructuras en las vías
de comunicación; es decir, mantener la red viaria antigua y ampliarla o mejorarla
con la construcción de nuevos puentes o calzadas. Sin embargo, esta política exigía
enormes esfuerzos económicos, por lo que los concejos urbanos de estas villas
solicitaron a los diferentes monarcas licencias para establecer sisas a través de
las cuales poder obtener el capital necesario18. También las aldeas cercanas y los
mercaderes que desarrollaban su actividad en las cercanías del trayecto (incluso
aunque no coincidieran exactamente por su recorrido) debían colaborar, si bien éstos
ponían objeciones: en 1487 los mulateros caminantes de Castilla Vieja se quejaban
de que algunas de las calzadas y puentes de la Henestosa y la Junta de Parayas eran
innecesarias y se les obligaba a pagar todo tipo de tasas19.
16
Por ejemplo, así lo denunciaron los concejos de Alfoz de Lloredo, Valdáliga, Cabezón y Cabuérniga,
porque Hernando de Mira, alcaide del Castillo de Argüeso, “han puesto los suso dichos cierto dinero e
ynpusiçion en el puerto de Palomera que es en esta dicha merindad, que es seis maravedís cada bestia que
por el dicho puerto pasa se cobra e disiendo aver abierto un camino que por el dicho puerto pasa que asy esta
çerrado con nyeve en tiempo de invierno”. Simancas. Archivo General de Simancas. Registro del Sello de Corte,
1494, junio, doc. 91.
17
Simancas, Archivo General de Simancas, Cámara de Castilla. Pueblos. Leg 4, doc. 279, regesta en
BLANCO CAMPOS, Emma; ÁLVAREZ LLOPIS, Elisa; GARCÍA DE CORTÁZAR, José Ángel –Documentación
referente a Cantabria…, doc. 134, p. 108.
18
Por ejemplo, Laredo pidió en julio de 1494 licencia para repartir 200.000 maravedís a través de la sisa
de los mantenimientos. Simancas, Archivo General de Simancas, Cámara de Castilla. Pueblos. Leg 10, doc. 34;
San Vicente solicitaba otra de 300.000 maravedís para el reparo de una calzada y unos puentes de madera.
Simancas, Archivo General de Simancas, Cámara de Castilla. Pueblos. Leg 17, doc. 348.
19
BLANCO CAMPOS, Emma; ÁLVAREZ LLOPIS, Elisa; GARCÍA DE CORTÁZAR, José Ángel –
DEL MAR CANTÁBRICO A LA MESETA CASTELLANA
261
La peculiar geografía de la cornisa cantábrica obligaba a los mercaderes a
ascensos y descensos de pendientes tortuosas, y ello se traducía en un incremento
del tiempo de transporte. Esta situación era especialmente preocupante durante el
verano, cuando las temperaturas se incrementan y pueden afectar negativamente
a la calidad de un producto perecedero como era el pescado, máxime cuando se
ha calculado que las acémilas que lo transportaban recorrían unos 30 kilómetros
diarios20. Para evitar el deterioro se procedía a la transformación del pescado a través
de tres procesos: el pescado salado, empleando sal que deshidrata el pescado; el
cecial, que se obtenía secando el pescado al aire, a poder ser en un lugar expuesto al
sol y el viento; el escabechado, en el que se sumerge la carne del pez en vinagre; y el
ahumado, proceso en el cual un pescado parcialmente salado era expuesto al calor y
humo procedente de una madera que se quemaba de manera controlada.
De estos cuatro métodos de procesado, en las Cuatro Villas solamente hemos
encontrado testimonios de salado y cecial. El proceso del cecial está documentado
en Castro Urdiales. En sus ordenanzas se especifica que se secaba en zonas de
corriente, como las propias ventanas de las casas, probablemente en la fachada sur
si era posible, por ser la más expuesta al sol, y que quedaba en ese lugar durante la
noche21. El problema para los vecinos que ejercían esa práctica era que, a juzgar por
la documentación, existían robos nocturnos, razón por la que se dictó esa ordenanza.
Una vez seco, el producto estaba listo para exportarse a la Meseta. Existía una jerarquía
en la consideración del pescado cecial que se percibía en aspectos como la fiscalidad;
así, cuando en 1494 desde Laredo se propuso establecer una sisa para construir un
muelle de madera, se diferenciaba el “pescado cecial”, que pretendía gravarse con 5
maravedís por quintal, del “congrio seco”, cuyo gravamen se duplicaba: 10 maravedís
por quintal22.
El pescado salado, está mejor documentado. Puertos como Santander o Laredo
disfrutaron del derecho a contar con un alfolí de la sal en el que almacenar y disponer
de este producto que obtenían por vía marítima de País Vasco y Galicia, que procedía
a su vez de Portugal (Aveiro y Setúbal) o Francia (Bourgneuf, La Rochelle). También
está documentado que esa sal la transportaban los pescadores de San Vicente de la
Documentación referente a Cantabria…, doc. 14, pp. 31-32.
20
GARCÍA DE CORTÁZAR, José Ángel – “La alimentación: de la subsistencia a la gastronomía”. In
GARCÍA DE CORTÁZAR, José Ángel – La época del gótico en la cultura española (c.1220-c.1480). Historia de
España de Menéndez Pidal, XVI. Madrid: Espasa Calpe, 1994, pp. 17-18.
21
BARÓ PAZOS, Juan; GALVÁN RIVERO, Carmen – Libro de ordenanzas…, p. 108, “hordenanca
(sic.) sobre los que velan de noches los enfermos (…) ningunas personas sean osadas de salir de las tales casas
do tuvieren a velar, para salir afuera a robar (…) ni pescado de las ventanas”.
22
Simancas, Archivo General de Simancas. Cámara de Castilla. Pueblos, leg. 10, doc. 34, 19ª pregunta,
“(…) yten sy saben que el mas syn dapto para se repartir dozientas myll maravedís en cada año en la dicha
villa de Laredo es echándose por sysas (…) a cinco maravedís por quintal de pescado ceçial, e a diez maravedís
por quintal de congrio seco, e a dos maravedís por myllar de sardyna salada e a ocho maravedís por quyntal
de sebo (…)”.
262
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Barquera hasta Irlanda para salar in situ las especies capturadas23. Probablemente los
marineros de las Cuatro Villas aprendieron de los holandeses y flamencos técnicas
de salado en el mar en el suroeste de Inglaterra o Irlanda y las aplicaron en sus
capturas24. Posteriormente el pescado pequeño, como las sardinas, era almacenado
y envasado en pipas o pequeños barriles en los que el producto era dispuesto dentro
del recipiente formando capas circulares25. No hemos hallado constancia directa
de escabeche en las Cuatro Villas, si bien algunos investigadores han encontrado
indicios de este tipo de conserva en Oviedo. Concretamente se percibe a través del
precio del vinagre, que figura como un producto alta demanda en la ciudad que
iría más allá del consumo privado al por menor y estaría relacionada con su uso
como conservante del pescado26. En cuanto al ahumado, tampoco hemos hallado
en la documentación consultada evidencias directas de este tipo de actividad en las
Cuatro Villas como ahumaderos o humeros, aunque sí existieron en otras partes del
cantábrico, concretamente en Galicia27.
Una vez el pescado era procesado, podía transportarse con ciertas garantías
hasta el interior de Castilla. En algunos casos, como Santander y Castro Urdiales,
se obligaba a los mercaderes que fueran a estas villas a comprar pescado con sus
acémilas a que éstas llegaran con trigo para proveer a los vecinos. En Castro Urdiales
se pedía que los mulateros trajeran consigo al menos 2 fanegas de trigo o cebada28.
En Santander se requería que trajeran al menos una carga de trigo, sin embargo,
se obligaba a los mercaderes a vender el trigo a un precio muy inferior al precio
habitual en otras villas (300 maravedís por carga cuando lo normal eran unos 400),
lo que se tradujo en que los mercaderes dejaran de visitar Santander. La Cofradía
de San Martín de la Mar denunció en 1497 que por esta política los pescadores no
encontraban quien les comprara sus productos en esta villa y solicitaba al concejo de
23
RUIZ DE LA PEÑA, Juan Ignacio – Las “polas” asturianas en la Edad Media: Estudio y diplomatario.
Oviedo: Universidad de Oviedo, 1981, p. 233; URÍA RÍU, Juan – Estudios sobre la Baja Edad Media asturiana
(Asturias de los siglos XIII al XVI). Oviedo: Biblioteca Popular Asturiana, 1979, pp. 326-332.
24
AÑÍBARRO RODRÍGUEZ, Javier – “Pesca y comercio entre Castilla e Irlanda a finales de la Baja
Edad Media. El caso de los marineros de San Vicente de la Barquera en Irlanda (1498-1517)”. In SOLÓRZANO
TELECHEA, Jesús Ángel; ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz; BOCHACA, Michel (eds.) – Las sociedades
portuarias de la Europa Atlántica en la Edad Media. Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 2016, pp.
137-162, p. 145; KOWALESKI, Maryanne – “The expansion of the south-western fisheries in late medieval
England”. The Economic History Review. New Series 53/3 (2000), pp. 429-454, p. 449.
25
Valladolid. Archivo de la Real Chancillería de Valladolid. Reales Ejecutorias, caja 292/63, 1514. Se dice
que Pedro Álvarez, vecino de San Vicente de la Barquera, vendía unas sardinas en pipas. Sobre la disposición de
la sardina, GUERRERO NAVARRETE, Yolanda – “Consumo y comercialización de pescado…”, pp. 244-245.
26
ÁLVAREZ FERNÁNDEZ, María – “Abastecimiento y consumo de pescado en Oviedo a finales de la
Edad Media”. In La Pesca en la Edad Media. Santiago de Compostela: Sociedad de Estudios Medievales, 2009,
pp. 71-86, p. 82.
27
HERNÁNDEZ ÍÑIGO, Pilar – “La pesca fluvial y el consumo de pescado en Córdoba (1450-1525)”.
Anuario de Estudios Medievales 27/2 (1997), pp. 1045-1116, p. 1087.
28
BARÓ PAZOS, Juan; GALVÁN RIVERO, Carmen – Libro de ordenanzas…, p. 129. “Yten que no
dexaran sacar ninguna carga a ninguna azemila que no ubiere traído a esta villa a lo menos dos fanegas de
trigo o cebada para vender en el dicho açoque”.
DEL MAR CANTÁBRICO A LA MESETA CASTELLANA
263
la villa que eximiera de pagar esa tasa a los mercaderes29.
El hecho de que los centros de consumo de la meseta estuvieran a una distancia
considerable de los puertos del cantábrico podía hacer bascular el precio del pescado.
Así entre octubre y abril, cuando las vías podían ser impracticables, y se acercaba la
cuaresma, la alta demanda y poco género podía provocar que el precio del pescado
se disparase, mientras que, en verano, coincidiendo con la llegada del grueso de
especies capturadas durante la campaña, los precios podían hundirse. Para evitarlo y
controlar el precio de los productos algunos vecinos de San Vicente levantaron tiendas
o alquilaron los almacenes de pescado que ya se mencionaron anteriormente30; es
decir, invirtieron capital en bienes inmuebles con el objetivo de almacenar stock que
pudiera venderse de manera progresiva y a un precio estable.
4. Problemas políticos en la distribución del pescado.
Cada una de las Cuatro Villas de la Costa eran villas de realengo que se situaban en un
espacio rodeado de señoríos laicos por tierra. Sin embargo, en su vertiente marítima,
conformaban una jurisdicción en la que solamente estas villas tenían derecho a la
carga y descarga de mercancías por el mar. Los señores de los alrededores aspiraban
a romper esa jurisdicción y construir un puerto que les permitiera participar en el
comercio atlántico sin las limitaciones que les imponían desde San Vicente de la
Barquera, Santander, Laredo o Castro Urdiales. Las tensiones y los conflictos entre
estas villas y sus vecinos se sucedieron durante los siglos XIV, XV y XVI, y algunas de
las consecuencias de estos episodios políticos las pagaron los mercaderes31.
En 1502, San Vicente de la Barquera logró defender con éxito sus derechos
jurisdiccionales marítimos frente al Marqués de Santillana en los tribunales, e impidió
que los vecinos de Ruiseñada, Novales, Ruiloba y Cóbreces, aldeas dependientes
del marqués, se erigieran en centros competidores suyos en la actividad pesquera
Simancas. Archivo General de Simancas. Registro del Sello de Corte, 1497, agosto, doc. 343. “que en
esa dicha villa ay una ordenança en que se contiene que ningund mulatero pueda sacar pescado alguno de ella,
sy no llevare una carga de trigo para vender en la dicha villa (…) e diz que vos el dicho conçejo e regidores de
la dicha villa poneys tasa a los tales mulateros en el vender del dicho pan, e les mandays que vendan cada carga
de trigo a trexientos maravedís e a menos, valiendo como diz que vale comúnmente cada carga de trigo puesto
en esta dicha villa quatroçientos maravedís, a causa de lo qual diz que vienen muy pocos mulateros a vender
trigo a la dicha villa e se recresçe la dicha comunidad e pescadores de ella con mucho dapno”.
30
AÑÍBARRO RODRÍGUEZ, Javier – “Pescadores, mulateros y…”, p. 352.
31
CUENA BOY, Francisco; SERNA VALLEJO, Margarita – “El consilium de Rodrigo Suárez sobre el uso
del mar en el contexto del pleito histórico por el puerto de San Martín de la Arena”. Initium. Revista catalana
d’Historia del Dret 24 (2019), pp. 195-258; AÑÍBARRO RODRÍGUEZ, Javier – “Conflictos comerciales y
pesqueros en el Cantábrico Central a finales de la Edad Media”. In DUO, Gonzalo (coord.) – Cultura Marítima
del Cantábrico. Baja Edad Media. Bilbao: Museo Plasentia de Butron Museoa, 2019, pp. 32-46; AÑÍBARRO
RODRÍGUEZ, Javier – “Conflictos jurisdiccionales y económicos en una villa de la costa cantábrica durante la
Baja Edad Media. San Vicente de la Barquera (1460-1522)”. In Economia e Instituições na Idade Média. Novas
Abordagens. Ponta Delgada: Centro de Estudos Gaspar Frutuoso, 2013, pp. 183-197.
29
264
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
al llevar sus capturas a Comillas (otra aldea del Marqués) y no a San Vicente de
la Barquera, como era lo legal32. Sin embargo, las consecuencias pasaron factura
a la villa: diez años más tarde las autoridades de San Vicente se quejaban ante la
reina Juana porque el gobernador del marquesado y otras autoridades del marqués
comenzaron a imponer castigos a sus propios vecinos si colaboraban con los de San
Vicente de la Barquera en las pesquerías de Irlanda y Cantoviejo33.
Los mercaderes que se internaban por jurisdicciones con las que estaban poco
familiarizados para distribuir el pescado se arriesgaban a sufrir todo tipo de abusos
de la nobleza laica. A comienzos del siglo XVI, Gonzalo Sordo, un vecino de San
Vicente de la Barquera y sus compañeros que habían estado faenando en aguas de
Irlanda y regresaban a Castilla con 80 quintales de pescado fueron sorprendidos
por un temporal que les obligó a descargar en Bilbao34. Decidieron desembarcar el
pescado en la villa vizcaína y comercializar el pescado por Castilla, pero al llegar a
Orduña los hombres del Condestable de Castilla, Bernardino Fernández de Velasco,
tomaron el pescado aduciendo que aquella mercancía no había pagado los diezmos de
la mar (que percibía el propio condestable desde 1467) y lo daban por descaminado.
Ciertamente, los vecinos de San Vicente estaban exentos de pagar tasas como aquella
desde 1241, pero tuvieron que pagar hasta 8.000 maravedís para no perder la carga35.
Aunque más tarde llevaron el caso a la justicia y ganaron el pleito, los problemas por
la distribución del pescado continuaron dos años después.
En 1504 los problemas entre los mercaderes de San Vicente de la Barquera y
el Condestable volvieron a repetirse, pero esta vez en Herrera del Río Pisuerga, otra
villa de los Velasco. Aún no había finalizado el proceso anterior, cuando al pasar por
aquella plaza se les volvió a requisar el pescado. Pese a que el condestable ordenó por
escrito que se les devolviera lo tomado, los mercaderes tuvieron que llevar de nuevo
a la justicia el caso y tardaron 7 años en recuperar lo que se les había tomado36.
32
Simancas. Archivo General de Simancas. Cámara de Castilla. Pueblos. Leg. 17, doc. 340. “que todos los
que dentro de los dichos limytes [dos leguas desde San Vicente hasta hacia Arena de Portillo y Peña de Rioseco
por el este, y hasta Llanes por el oeste] pescasen o fuesen obligados a traer e descargar sus pescados a la dicha
villa [de San Vicente de la Barquera] e que sy lo hubiesen de vender alli heran obligados a lo vender y que asy
los moradores de los conçejos de Ruylova, e Cobrezes, e Novales, e Ryoseñada como los vesinos de otras partes
quales quier (…)”.
33
Simancas, Archivo General de Simancas. Cámara de Castilla. Pueblos. Leg. 17, doc. 383, la regesta
aparece en BLANCO CAMPOS, Emma; ÁLVAREZ LLOPIS, Elisa; GARCÍA DE CORTÁZAR, José Ángel –
Documentación referente a Cantabria…, doc. 375, p. 250.
34
Simancas, Archivo General de Simancas. Cámara de Castilla. Pueblos. Leg. 17, doc. 344; “çiertos
compañeros suyos vecinos de la dicha villa en un navío suyo aportaron al puerto de Bilbao con fortuna de
tiempo con cierto pescado que trayan de sus pesquerias del dicho Reyno de Yrlanda e que de ello enbio el dicho
Gonzalo Sordo fasta ochenta quintales del dicho pescado”.
35
SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús Ángel; VÁZQUEZ ÁLVAREZ, Roberto; ARÍZAGA BOLUMBURU,
Beatriz – San Vicente de la Barquera en la Edad Media: una villa en conflicto. Archivo de la Real Audiencia
y Chancillería de Valladolid. Documentación medieval (1241-1500). Santander: Consejería de Cultura del
Gobierno de Cantabria, 2003, doc. 1, pp. 49-57.
36
AÑÍBARRO RODRÍGUEZ, Javier – Las Cuatro Villas de la Costa de la Mar en la Edad Media.
DEL MAR CANTÁBRICO A LA MESETA CASTELLANA
265
Otro problema de índole político fue el incremento del coste del pescado
conforme se distribuía por Castilla. El aumento del precio se producía, además de
como consecuencia de los costes inherentes a la distancia recorrida (días de trayecto,
alimentación y mantenimiento de bestias, etc.), a las tasas y derechos de paso que
el mercader debía de pagar al discurrir por ciertos lugares: pontazgos al pasar por
un puente, barcaje si era necesario atravesar un río en barca; portazgo por atravesar
una plaza o un centro urbano, etc… El paso de este tipo de gravámenes impedía
que un producto que podía ser rentable de producir en una zona incrementara
progresivamente su precio hasta ser improductivo en otra. Esta circunstancia podía
ser especialmente preocupante en zonas como las Cuatro Villas en las que no se
podía cultivar cereal y que, sin embargo, resultaban estratégicas para articular el
comercio atlántico. Por ello diversos monarcas otorgaron exenciones fiscales a las
poblaciones de las Cuatro Villas.
Laredo, en tan sólo 21 años tras la obtención de su fuero, logró del monarca la
exención de impuestos en Medina de Pomar, una plaza clave para abastecer de trigo
a la villa costera, y poco después, en 1255 Alfonso X hizo este privilegio aplicable no
sólo a la villa burgalesa, sino a todos los reinos y señoríos, salvo Sevilla y Murcia37.
San Vicente de la Barquera, apenas 30 años después de conseguir su carta foral, en
1241 logró de Fernando III el derecho de no tener que pagar portazgo en ningún
lugar del reino: “(…) sepades que yo mando que los onbres de Sant Vyçente que
agora son o serán de aquí adelante non den portadgo en ningund lugar de todos mys
reynos por qualquier mercadería que lieven o traygan, ny por otra cosas ninguna que
lieven para sy.”, si bien este privilegio tenía como excepción las ciudades de Sevilla y
Murcia38. Santander logrará un privilegio similar en 1255 y Castro Urdiales, en 1285.
5. Problemas de índole económico.
Los navíos en la Baja Edad Media no eran baratos. En 1492 se hundió en la Berbería
una pinaza con velas, aparejos y pescado (235 docenas de pescado) cuyo valor
estimaba su propietario en hasta 40.000 maravedís39. Para que el lector se haga una
idea, 50.000 maravedíes era el equivalente al salario anual de todos los oficiales en
Conflictos jurisdiccionales y comerciales. Santander: Universidad de Cantabria, 2013. Tesis Doctoral inédita,
p. 110.
37
RUIZ DE LA PEÑA, Juan Ignacio – “El nacimiento de las villas costeras cántabro-atlánticas y su
instrumentación jurídica (siglos XII-XIII)”. In BARÓ PAZOS, Juan; SERNA VALLEJO, Margarita – El fuero
de Laredo en el Octavo Centenario de su concesión. Santander: Servicio de Publicaciones de la Universidad de
Cantabria, 2001, pp. 151-167 e p. 163.
38
SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús Ángel; VÁZQUEZ ÁLVAREZ, Roberto; ARÍZAGA BOLUMBURU,
Beatriz – San Vicente de la Barquera…, doc. 1, p. 49.
39
SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús Ángel; VÁZQUEZ ÁLVAREZ, Roberto; ARÍZAGA BOLUMBURU,
Beatriz – San Vicente de la Barquera…, doc. 40, pp. 310-311.
266
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
San Vicente de la Barquera en el año 1507 y 27.000 maravedís era lo que ganaba el
corregidor en concepto de su sueldo por un año40. Juan Martínez de Recalde y Juan
Martínez de Iruxta, dos vecinos de Bilbao, vendieron a Toribio de Manjón, un vecino
de Santander una nave completa con tonelaje de 120 toneles por 250 ducados de
oro en 151541; si realizamos el cambio de ducados a maravedís, cuyo cambio oficial
hacia 1510 era de 375 por ducado, arrojaría una cantidad de 93.750 maravedís42. La
cantidad es aún mayor en el caso de Juan Martínez de Mori en 1495: este mercader,
vecino de Laredo, vendió a Juan de Arbolancha y Martin de Gorgoyo, vecinos de
Bilbao, media embarcación en dos plazos, cada uno por un valor de 450 ducados43.
En total el valor de la nave ascendía a 337.000 maravedís, una cantidad al alcance de
muy pocas personas, hasta el punto de que obligaba a un importante miembro de los
Arbolancha (una de las familias más importantes del Bilbao), a adquirirla a plazos.
En otras palabras: embarcarse en una aventura comercial para conseguir
pescado requería una inversión inicial que solamente podían permitirse las familias
más pudientes. Una vez realizada esa importante inversión, los riesgos eran altos:
el barco podía ser apresado por atacantes o hundirse en una tormenta. Pero los
beneficios eran suculentos; cada pescado obtenido en zonas como Irlanda podía
venderse al doble de su valor en los mercados interiores de Castilla44. Hubo varios
mecanismos para salvar estos problemas económicos. El primero de ellos fue el
préstamo. Los mercaderes de las Cuatro Villas recurrían a prestamistas en las mismas
40
Simancas. Archivo General de Simancas. Cámara de Castilla. Pueblos. Leg. 17, doc. 288, fol. 2r-2v.
“(...) esta dicha villa [de San Vicente de la Barquera] pagava cada un año de salario al corregidor veynte e
syete myll maravedís e a los otros ofiçiales del conçejo e montalgueros e otras personas, otros çinquenta myll
maravedíes”.
41
Valladolid. Archivo de las Real Chancillería de Valladolid. Reales Ejecutorias, caja 304, 44. Año 1515.
“que el dicho Toribio de Manjon quedo e se obligo de dar e pagar a los dichos Juan Martynes de Recalde e Juan
Martynes de Yruxta o a quyen su poder ovieren dosyentos e çinquenta ducados de buen oro e de justo peso
por rason de una nao”.
42
FRANCISCO DE OLMOS, José María de – “La moneda castellana de los Reyes Católicos. Un
documento económico y político”. Revista General de Infromación y Documentación 9/1 (1999), pp. 85-115,
p. 107, nota 38.
43
Valladolid. Archivo de las Real Chancillería de Valladolid. Reales Ejecutorias, caja 149-19: “como nos,
Juan Gomes de Arbolancha e Martyn de Gorgollo su yerno vesinos de la dicha villa de Bilbao, anbos e dos
de mancomún (…) debemos dar e pagar a vos Johan Martynes de Mory, maestre de la nao nombrada Santa
María que Dyos la salve e guarde de mal que presente e estades vecino de la villa de Laredo o al que esta carta
mostrare que vuestra boz es a saber quatroçientos e çinquenta ducados de buen oro e justo preçio por rason
que oy dya de la fecha de esta carta vos el dicho Juan Martynes de Mori nos vendistes la mytad de la dicha nao
por preçio e quantya de nuebe çientos ducados e la mytad de los aparejos e artilleria de la dicha nao segund
que mas largamente se contyene en presençia de Juan Martynes de Gueldo escribano de cuya mano es sygnada
de los quales dichos nuebe çientos ducados de coronas fincan e remançen de vos dar e pagar los dichos quatro
çientos ducados [sic.] de oro e por nos faser amor e buena obra vos el dicho Juan Martynes de Mory, maestre,
nos aveys fecho e fasyl plaso a que vos paguemos los dichos quatroçientos e çinquenta ducados de oro restantes
al cumplimyento de los dichos nueve çientos ducados de oro para el plaso que adelante sea declarado”.
44
Simancas. Archivo General de Simancas. Cámara de Castilla. Pueblos. Leg. 17, doc. 360, año 1515.
“Pedro Gutierrez enpleara dicha moneda que asy le tomaron en el dicho Reyno de Yrlanda, lo truxiera
enpleado a estos Reynos de España, que lo doblara la dicha enplea segund que en el dicho Reyno de Yrlanda
cuesta el pescado y otras cosas que ally enplean los semejantes mercaderes...”.
DEL MAR CANTÁBRICO A LA MESETA CASTELLANA
267
plazas castellanas en las que vendían el pescado, lo cual les permitía pagar en especie
si se estimaba oportuno. La “tasa de interés” de los mismos era elevada: en torno a
un 25 y un 40% en el año 148645. Por ejemplo, el Conde de Buendía, Juan de Acuña,
prestó en 1495 una cantidad de 130.000 maravedís a un depositario que a su vez los
prestaba a los vecinos de San Vicente de la Barquera, si bien los de San Vicente no
siempre devolvieron lo prestado46.
Otras veces el préstamo se empleaba para pagar el alquiler de los almacenes del
pescado que guardaban en Villalón; por ejemplo, un judío llamado Rabisanto estaba
dispuesto a realizar a unos mercaderes de San Vicente de la Barquera préstamos
en especie, concretamente en trigo y en cebada, para pagar 4.400 maravedíes del
alquiler47. El problema de este tipo de prácticas es que las condiciones eran duras, y
si no se devolvía lo estipulado a tiempo, la deuda se disparaba y los mercaderes se
arriesgaban a ser hechos presos hasta liquidar la deuda.
Otro método para sortear parcialmente la fuerte inversión inicial fue recurrir a
compañías formadas por diferentes socios que podían ser desde una pareja hasta más
de cuatro. De esta manera los inversores compartían gastos y riesgos. Por ejemplo,
en 1515 Pedro Remon el Viejo, vecino de Laredo, y Juan de Oreña, vecino de San
Vicente de la Barquera, formaron una compañía con el fin de conseguir pescado
en Irlanda. Juntos se comprometieron a repartirse los beneficios, pero también en
participar en los gastos si la empresa fracasaba48.
Otro problema recurrente en las Cuatro Villas fue la escasez de pescado. El
hecho de que el pescado de las Cuatro Villas fuese tan apreciado en Castilla, unido a
que las poblaciones de estos puertos y sus alrededores fueran pobres, hacía peligrar el
abastecimiento de pescado de los moradores de la comarca, que no podían competir
con los altos precios que estaban dispuestos a pagar los mercaderes. Precisamente de
ese problema se quejaron ante los Reyes Católicos Pero Tristan, vecino de Meruelo, y
Juan Pérez de Sobremazas, de Cudeyo, porque “a dos puertos de mar [refiriéndose a
Santander y Laredo] en que continuamente se cuidan a pescar con pinaças pescadas
e besugos e otros pescados e que los pescados que van a lo pescar, diz que tienen
fechos contratos con algunos vezinos de la dicha yuntamente que ayan pescado los
dichos pescados de se los dar para los tornar a rebender e salen a otras partes de
45
SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús Ángel; ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz – “San Vicente de
la Barquera en la Edad Media. Un puerto de vocación Atlántica”, San Vicente de la Barquera. 800 años de
Historia. Santander: Publican, 2010, pp. 104-179, p. 160.
46
Valladolid. Archivo de la Real audiencia y Chancillería de Valladolid. Reales Ejecutorias. Caja 293,
27, 8 fols..
47
SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús Ángel; VÁZQUEZ ÁLVAREZ, Roberto; ARÍZAGA BOLUMBURU,
Beatriz – San Vicente de la Barquera…, doc. 20, p. 129.
48
PORRAS ARBOLEDAS, Pedro Andrés – “La práctica mercantil en el Cantábrico Oriental (siglos
XV-XIX)”. Cuadernos de Historia del derecho 7 (2000), doc. 9, pp. 188-190. “… e para lo asy tener e guardar e
conplir e pagar, se obligaron por sus personas e bien, muebles e rayzes, avidos e por aver…”.
268
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
manera que los otros vecinos e moradores de la dicha yunta e de la dicha merindad
e los otras comarcanos no pueden aver provysyon para sus mantenymyentos”49. La
solución que pedían estos vecinos era que que se impidiera la venta del pescado a los
mercaderes, para lo cual proponían que el pescado fuera traído a la ribera y allí se les
permitiera comprar a quienes querían adquirir el pescado al por menor.
Por último, también hemos detectado otro problema relevante, y es el fraude
que se cometía en la distribución del pescado. Hemos constatado al menos dos
tipos de fraude: el primero consistía en engañar al comprador presentándole una
muestra falsa del pescado que no se correspondía con la calidad real del producto.
Ocurrió en 1514 con Pedro Álvarez, un mercader de San Vicente de la Barquera que
vendió quinientos millares de sardinas a unos vecinos de Bilbao que resultaron estar
podridas50.
El otro tipo de fraude se generó desde las propias instituciones, y consistió
en emplear pesos alterados para tasar el pescado. Esta práctica queda constatada
también en San Vicente de la Barquera, pues en 1495 los vecinos de la villa sabían
que existía un peso empleado para el pescado cecial que pesaba seis libras menos de
cada cien51. Eso permitía al mercader llevarse más pescado del estipulado, por lo que
algunos comerciantes sobornaron a los fieles para que el pescado que se llevaban
fuera pesado en esa balanza específica, lo cual fue denunciado por la cofradía de
pescadores ante las autoridades.
Conclusiones.
En primer lugar, a lo largo de nuestro trabajo se ha demostrado la importancia que
tuvo el pescado en las villas analizadas y sus alrededores. El amplio espectro del
alcance de este producto, que llegaba hasta importantes villas y ciudades del centro
peninsular, demuestra que era un producto codiciado, rentable y que generaba
riqueza hasta el punto de que supuso el auténtico motor económico de los puertos de
las Cuatro Villas. En segundo lugar, aunque la mayoría de los vecinos se beneficiaron
de la riqueza que proporcionaba la pesca, ese beneficio fue desigual, muy limitado
para unos y desproporcionado para otros: mientras unos arriesgaban su vida en el
mar realizando peligrosos trayectos por el Atlántico, otros permanecían en tierra
esperando los beneficios. Dado que la adquisición y distribución del pescado
Simancas. Archivo General de Simancas, Registro del Sello de Corte, 1495, julio, doc. 334.
Valladolid. Archivo de la Real Chancillería de Valladolid. Reales Ejecutorias, caja 292/63, 1514.
51
Simancas. Archivo General de Simancas, Registro del Sello de Corte, 1495, julio, doc. 219. “(…) que
en la dicha villa ay un peso de pescado çeçial en que se vienen e pesan por uno çiento e seys myll quintales de
pescado, que dis que ay çient libras de a ochenta pieças e que los mercaderes de la villa dan dineros a los que
toman el pescado por el dicho peso e menos preçio e dis que ponen el quyntal alto e lo hallan ser un palmo
arredrado del fiel en tal manera que por çient libras lievan çiento e dyes de que la dicha villa e vesinos de ella
han reçibido e reçiben grand frabde e engaño”.
49
50
DEL MAR CANTÁBRICO A LA MESETA CASTELLANA
269
requería de una importante inversión inicial, los beneficios reales del pescado
quedaban en manos de los inversores que podían, en especial prestamistas que
adelantaban capital a una tasa de interés que acaparaba buena parte de los beneficios
o incluso endeudaba a los mercaderes. Ello explica que la mayor parte de los vecinos
de las Cuatro Villas que participaban en la adquisición y distribución del pescado
por Castilla fuesen de condición humilde; incluso los más pudientes no realizaban
estas empresas en solitario, sino que se asociaban formando compañías para repartir
riesgos y beneficios. En este sentido, coincidimos con las observaciones realizadas
por Ferreira Priegue en las que advertía que los pescadores no eran los principales
beneficiarios del negocio pesquero52.
La demanda del pescado que entraba por los puertos de las Cuatro Villas fue alta
en Castilla, y las autoridades eran conscientes de ello. Algunas, como en Santander
y Castro Urdiales, aprovecharon esta circunstancia para obligar a los mulateros que
querían adquirir ese pescado a buen precio a entrar con sus recuas llenas de trigo.
Paradójicamente el éxito de este producto generó episodios de desabastecimiento de
pescado en las comarcas cercanas a los puertos, como fue en el caso de Trasmiera, de
ahí que se solicitara a los concejos urbanos que aplicasen medidas para garantizar la
provisión de este alimento a los moradores de la región.
Por último, a lo largo de nuestro trabajo hemos detectado multitud de problemas
en las distribución del pescado, pero por cada uno de ellos los vecinos de las Cuatro
Villas lograron encontrar soluciones, aunque fuera parciales: ante las limitaciones
geográficas se recurrió a la mejora y mantenimiento de calzadas; ante el deterioro
de los peces durante el transporte, a tecnología de procesado de pescado para lograr
un mayor alcance del producto; los problemas políticos trataron de solucionarlos
en los tribunales invirtiendo dinero en pleitos y procesos judiciales; y ante malas
prácticas como el acaparamiento o los fraudes, los concejos urbanos intervinieron
con ordenanzas encaminadas a eliminarlas.
52
FERREIRA PRIEGUE, Elisa – “Pesca y economía regional en Galicia”. In La Pesca en la Edad Media.
Santiago de Compostela: Sociedad de Estudios Medievales, 2009, pp. 11-34, p. 16.
270
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Los Problemas en el Abastecimiento
de Pescado en la Meseta Meridional
Castellana a Finales de la
Edad Media (1450-1515)
Julián Sánchez Quiñones1
Resumen
En el presente trabajo se analizan los problemas tenían los concejos de la
submeseta sur castellana para abastecerse de pescado. Estas dificultades se
debían a dos tipos de factores: exógenos, como el deterioro de las pesquerías
del interior peninsular o las dificultades para traer el pescado desde las costas
y endógenos, provocados por la propia estructura del sistema de obligados,
responsable del abasto municipal. Aquí, cabe citar causas como el sistema de
precios o la reventa, que influyeron negativamente en el correcto desarrollo
del abasto de alimentos. Ambos tipos de problemas provocaron conflictos y
dificultaron la llegada de este producto a los mercados locales.
Palabras clave
Pescado; Obligados; Escasez; Transporte; Precios; Abusos; Ligas; Reventa.
1
Comunidad Autónoma De Madrid.
272
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
The problems in the supply of fish in the Castilian Southern Plateau
at the end of Middle Ages (1450-1515)
Summary
This paper analyzes the problems that the councils of the southern Castilian
sub-plateau had to supply fish. These difficulties were owed to two types of
factors: exogenous, such as the decline of the inland fisheries or the difficulties
to bring this good from the coasts. The endogenous factors were caused by the
structure of the local market system. Some of these causes were prices system or
resale, which affected negatively to the development of food supply. Both types
of issues caused conflicts and hindered this product to reach local markets.
Keywords
Fish; Providers; Scarcity; Transport; Prices; Abuses; Union; Resale.
1. Un acalorado debate en el concejo.
El 24 de enero de 1497, en la iglesia de Santo Domingo de Guadalajara, se produjo un
acalorado debate entre los regidores por la obligación del pescado. Los detractores de
este sistema proponían no nombrar obligados, puesto “(…) [que] la ciudad sería mal
servida (…)” y como alternativa planteaban permitir la libre venta a todos aquellos
que lo deseasen2. Años más tarde, el 1 de febrero de 1503, el concejo de Ciudad
Real afrontó un debate similar ya que la ciudad carecía de obligados y había falta de
pescado. La búsqueda de proveedores por los pueblos de la comarca no había tenido
una respuesta positiva y se solicitó el parecer de los regidores. Uno de ellos, García
Jufre de Loaysa, afirmó que los obligados “(…) nunca cumplían bien, ni se bastecía la
ciudad (…)”, y añadió que había muchos mercaderes que daban pescado, apuntando
así a que el problema radicaba en los encargados del abasto y no en la carencia del
producto3. Y aunque finalmente se aceptó la obligación, al año siguiente volvió a
faltar pescado en la ciudad4.
AHN-Secc. Nobleza-Osuna-C. 1876-Doc- 109, fol. 64v.
AMCR-Actas del Concejo 1503, p. 67.
4
AMCR-Actas del Concejo 1504, pp. 144-145.
2
3
LOS PROBLEMAS EN EL ABASTECIMIENTO DE PESCADO EN LA MESETA MERIDIONAL [...]
273
1.2 El abasto urbano: funcionamiento, problemas y soluciones ensayadas por el
concejo.
¿Por qué se produjeron dos crisis similares en ciudades de la misma área y en un
plazo de tiempo tan corto? ¿Qué fallaba para que hubiese escasez de pescado? Para
los dirigentes municipales los culpables eran los obligados, cuya mala gestión era la
causa de la falta de pescado. No obstante, esto supone simplificar en exceso, ya que
este problema era fruto de una serie de factores externos, ajenos al sistema e internos,
propios del mismo. Para entender esto mejor es necesario exponer, brevemente, en
qué consistía el sistema de obligados5. El concejo subastaba el abasto de los productos
(pescado), con ciertas condiciones y los interesados pujaban por estas rentas. Todo se
resolvía con el remate que otorgaba el contrato a un proveedor que debía cumplir con
lo pactado: tiempo del contrato, los productos a ofertar, los lugares de venta, el modo
de ofrecer la mercancía y los precios. Para garantizar el cumplimiento del acuerdo, el
concejo solicitaba a los obligados una fianza sobre sus bienes6. Así se aseguraban, en
teoría, alimentos baratos y de buena calidad para los consumidores y, por otro lado,
se procuraba el “bien común” de los vecinos7. Sin embargo, los proveedores urbanos
5
En algunas como Toledo no se implantó. IZQUIERDO BENITO, Ricardo – Abastecimiento y
alimentación en Toledo en el siglo XV. Cuenca: Universidad de Castilla la Mancha, 2002.
6
La bibliografía sobre el sistema de obligados es muy amplia, por lo que citamos sólo lo que empleamos:
PUÑAL FERNÁNDEZ, Tomás – El mercado en Madrid en la Baja Edad Media. Madrid: Caja de Madrid, 1992;
DE CASTRO MARTÍNEZ, Teresa – El abastecimiento alimentario en el reino de Granada (1482-1510). Granada:
Universidad de Granada, 2004; SÁNCHEZ QUIÑONES, Julián – Pesca y comercio en el reino de Castilla
durante la Edad Media. Madrid: La Ergástula, 2014; OLIVA HERRER, Hipólito Rafael – Abastecimiento local
y comercio cotidiano en Medina del Campo a fines de la Edad Media. Las ordenanzas del peso. Valladolid:
Fundación Museo de las Ferias/ Diputación de Valladolid, 2005; LOZANO CASTELLANOS, Alicia – Mercado
y fiscalidad en Talavera de la Reina a mediados del siglo XV. Murcia: Sociedad de Estudios Medievales, 2015;
De la misma autora: Comercio y finanzas. Hombres de negocios en Talavera durante la Baja Edad Media.
Cuenca: Universidad de Castilla La Mancha, 2017; GUERRERO NAVARRETE, Yolanda; SÁNCHEZ BENITO,
José María – Cuenca en la Baja Edad Media. Un sistema de poder urbano. Cuenca: Diputación Provincial de
Cuenca, 1994; ESCRIBANO ABAD, José Luis – Abastecer a la ciudad medieval. Política concejil en el reino
de Toledo (ss. XIV-XV). Madrid: Universidad de Alcalá de Henares, 2017; BARBADILLO ALONSO, Javier;
GUTIÉRREZ DUBLA, Natividad – “El debate del abasto del pescado en Guadalajara en 1500”. In IV Encuentro
de Historiadores del valle del Henares. Libro de Actas. Madrid, 1994, pp. 93-103.
7
BLICKLE, Peter – “El principio del bien común como norma para la actividad política. La aportación
de campesinos y burgueses al desarrollo del Estado moderno temprano en la Europa central”. Edad Media
1 (1998), pp. 29-46; LUCHÍA, Corina – “La noción de “bien común” en una sociedad de privilegio: acción
política e intereses estamentales en los concejos castellanos (siglos XV-XVI)”. Edad Media 17 (2016), pp.
329-346.
274
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
no eran todo lo eficaces que debían y el sistema adolecía de importantes carencias 8.
El origen de estos problemas podía hallarse en factores externos (exógenos), como la
carencia de caminos adecuados o la inseguridad en el territorio9 o eran el resultado
de las dificultades internas del sistema (causas endógenas), como la reventa o la
política de precios10.
Las medidas tomadas para afrontar estos problemas solían ser parecidas en la
mayoría de los productos. En el caso del pescado, estaba prohibido vender pescado
fluvial fuera de la ciudad o de su término11. Asimismo, se procuraba favorecer la
llegada de pescado marítimo, facilitando su arribada y venta en el mercado local12.
No obstante, las autoridades se centraron en dos aspectos esenciales: prestar ayuda a
los obligados para que no pasasen dificultades durante el desempeño de su función y,
por otro lado, les vigilaron estrechamente para prevenir la carencia de este bien. Para
ayudar a los obligados los concejos podían actuar de dos formas. Ya que los precios eran
bajos, a veces se les concedía una cantidad de dinero para auxiliarles13. Sin embargo,
si la situación era grave, se podía incrementar el precio para eludir su ruina, aunque
las alzas solían ser moderadas14. Con todo, esta segunda medida solía ser excepcional
y lo más común era justo lo contrario, es decir, que los regidores revisasen los precios
a la baja si consideraban que eran altos, lo que provocaba las encendidas protestas
de los vendedores ante el concejo15. El segundo punto, la vigilancia a los obligados
se concretó, en primer lugar, mediante advertencias verbales, donde se exhortaba a
los obligados a cumplir su cometido y se recordaba a los regidores que debían estar
8
Sólo incluimos aquellos títulos que empleamos. OLIVA HERRER, Hipólito Rafael – “La crisis del siglo
XIV en nuevos contextos: una reflexión sobre la crisis y sus interpretaciones historiográficas”. In GARCÍA
FERNÁNDEZ, Manuel (coord.) – El rey Don Pedro y su tiempo (1350-1369). Sevilla: Universidad de Sevilla,
2016, pp. 35-65; BENITO I MONCLÚS, Pere – “Las crisis alimenticias en la Edad Media: caracteres generales,
distinciones y paradigmas interpretativos”. In LÓPEZ OJEDA, Esther (coord.) – Comer, beber, vivir: consumo y
niveles de vida en la Edad Media hispánica. XXI Semana de Estudios Medievales, Nájera, del 2 al 6 de agosto de
2010. Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 2011, pp. 123-159; OLIVA HERRER, Hipólito Rafael; BENITO
I MONCLÚS, Pere – Crisis de subsistencia y crisis agraria en la Edad Media. Sevilla: Universidad de Sevilla,
2007, pp. 17-61. La Revista Edad Media (2007) le dedicó un número completo a la crisis del siglo XIV en los
reinos hispánicos.
9
DE CASTRO MARTÍNEZ, Teresa – El abastecimiento alimentario…, pp. 139-140.
10
ESCRIBANO ABAD, José Luis – Abastecer a la ciudad…, pp. 215-258.
11
AMCU-Legajo 193-Expediente 2 (Ordenanzas de 1455), fol. 39v. RUBIO PARDOS, Carmen, et alii
– Libros de Acuerdos del Concejo Madrileño. Vol. III: (1493-1497). Madrid: Artes Gráficas Municipales, 1979,
p. 24.
12
En 1513 el corregidor de Madrid solicitó a unos mercaderes que dejasen una carga de congrio fresco
en la villa. SÁNCHEZ GONZÁLEZ, Rosario; CAYETANO MARTÍN, María del Carmen - Libros de Acuerdos
del Concejo Madrileño (1502-1515). Vol. V. Madrid: Artes Gráficas Municipales, 1987, p. 222.
13
En 1480 se les concedieron 3000 maravedís. PUÑAL FERNÁNDEZ, Tomás – El mercado en Madrid
en la Baja Edad Media. Madrid: Caja de Madrid, 1992, pp. 181-182.
14
En Madrid lograron una blanca más sobre el precio inicial. RUBIO PARDOS, Carmen, et alii – Libros
de Acuerdos del Concejo Madrileño…, Vol. IV: (1498-1501), pp. 99-100.
15
AMCU –Legajo 199–Expediente 2 (Actas del Concejo de 1472-1473), fols. 102r-105v y 112r. LÓPEZ
VILLALBA, José Miguel – Las Actas de Sesiones del Concejo medieval de Guadalajara. Madrid: UNED, 1997,
pp. 212-213, 257-258, 277-278.
LOS PROBLEMAS EN EL ABASTECIMIENTO DE PESCADO EN LA MESETA MERIDIONAL [...]
275
vigilantes. No obstante, si el proveedor no cumplía con su tarea, se podían tomar
medidas más contundentes. En Madrid, cuando no había pescado en las tablas, los
regidores iban a casa del obligado y podían requisar el producto que tuviese allí. Y en
caso de no tener pescado, el obligado era encarcelado y se empleaban sus bienes para
adquirirlo16. Asimismo, se estrechó la vigilancia en el pago de la sisa y la alcabala. Los
cogedores de la sisa debían dar cuenta, cada cierto tiempo, de lo recaudado. Como
tal medida no dio resultado, en Cuenca, en 1473, se ordenó que el pescado, el aceite
y el vino entrasen en la villa por las puertas del Postigo y de Huete. Asimismo, se
realizó un registro de las cantidades de pescado existentes en la ciudad para tasarlas
y cuantificar las reservas de pescado disponibles17.
2. Problemas en el abasto del pescado: los factores exógenos.
2.1 El pescado fluvial: ¿deterioro de las pesquerías del interior peninsular?
Durante la Edad Media diversos factores provocaron importantes cambios en las
pesquerías de los ríos europeos. La colonización de las tierras, el uso de la fuerza
motriz del agua y el aumento de la población aumentaron la presión sobre los
recursos fluviales. Algunos peces, como el esturión, experimentaron una importante
reducción en sus poblaciones18, lo que motivó que nuevas especies las sustituyesen
como alimento del hombre (anguila, carpa)19. Otros factores que influyeron en la
pérdida de la fauna fluvial fueron la contaminación de las aguas, debida a la industria
textil o la edificación de presas que impedían a los peces remontar la corriente para
el desove20. Este deterioro no afectó por igual a todas las especies y algunas, como el
salmón en Escocia, mantuvieron su pujanza gracias a la protección dispensada por
los poderes públicos21.
Para el caso peninsular, el análisis de esta cuestión es complicado. La mayoría
de los restos ictiológicos pertenecen a yacimientos de época musulmana, donde
16
RUBIO PARDOS, Carmen, et alii – Libros de Acuerdos del Concejo Madrileño…, Vol. III: (1493-1497),
pp. 239, 267.
17
AMCU-Legajo199-Expediente 2 (Actas del Concejo 1472-1473), fols. 130r-32r y 135r.
18
HOFFMANN, Richard C. – “A brief history of aquatic resource use in Medieval England”. Helgoland
Marine Research 59, (2005), pp. 22-30. Sobre esta cuestión en la Península Ibérica, véase: LUDWIG, Arne;
MORALES MUÑIZ, Arturo; ROSELLÓ IZQUIERDO, Eufrasia – “Sturgeon in Iberia from past to present”.
In WILLI, P. et alii (eds.) – Biology and Conservation of the European Sturgeon Acipenser sturio L. 1758, BerlínHeidelberg: Springer, 2011, pp. 131-146.
19
HOFFMANN, Richard C. – “Remains and verbal evidence of carp (Cyprinus carpio) in Medieval
Europe”. In VAN NEER, Wim (ed.) – Fish explotaition in the past. Proceedings of the 7th Meeting of the ICAZ
Fish remains working group. Tervuren: Musee Royale de L´Afrique Centrale, 1994, pp. 139-149.
20
HOFFMANN, Richard C. – “Economic Development and Aquatic Ecosystems in Medieval Europe”.
American Historical Review 101, nº3, (1996), pp. 631-669.
21
HOFFMANN, Richard C. – “Salmo salar in late Medieval Scotland: competition and conservation for
a riverine source”. Aquatic Sciences 77 (2015), pp. 355-366.
276
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
predominan las especies marítimas, con escasa presencia de las especies fluviales22.
Estas últimas corresponden, sobre todo, al barbo y la boga y en conjunto son muy
reducidas como para sacar una conclusión clara al respecto23. Son por tanto, las
fuentes escritas las que sugieren una creciente presión sobre los peces de agua dulce,
causada por la sobrepesca, el uso de artes pesqueras perjudiciales, la edificación de
presas en los ríos, la contaminación causada por la industria textil o los desperdicios
arrojados a las aguas. En Castilla, en las Cortes de 1253, Alfonso X prohibió la
pesca de los gorgones o salmones pequeños y en 1268 se vedó el uso de cal viva y
sustancias ponzoñosas. En 1435 se volvieron a prohibir estas sustancias alegando el
riesgo que suponían para la salud pública y el daño que hacían a la pesca durante la
época de cría. Ya en la Edad Moderna, Carlos I y Felipe II, aumentaron el número
de especies con períodos de veda reglados y la cantidad de artes pesqueras vetadas24.
Este problema también se hizo sentir en el Tajo portugués, donde las quejas por estos
motivos se incrementaron en el siglo XV25. A nivel local, las fuentes no reflejaron
esta cuestión hasta el siglo XV y lo asociaban al uso de ciertas artes pesqueras como
los corrales, prohibidos en Toledo desde 147026, la manga o el trasmallo en Cuenca27
o la barredera en Molina de Aragón28. En estos casos se informaba de la reducción
de la fauna piscícola, a veces hasta extremos muy graves, como el documentado en
Talavera, donde en 1476 se prohibió exportar pescado fluvial ante su escasez para
abastecer la villa29. Este fenómeno parece haber sido más tardío en la cuenca del
Guadiana, donde los datos sobre el mismo son de mediados del siglo XVI, cuando en
Albacete se estableció un prolongado parón biológico en las acequias de la ciudad30.
No obstante, en otras regiones como Extremadura, dicho deterioro ya era evidente a
22
MORALES MUÑIZ, Arturo, et alii – “711 AD: ¿El origen de una disyunción alimentaria?”. In Zona
arqueológica, 711, arqueología e historia entre dos mundos. Vol. 2. Madrid: Museo Arqueológico Nacional,
2011, pp. 303‐322.
23
MORALES MUÑIZ, Dolores Carmen; ROSELLÓ IZQUIERDO, Eufrasia; MORALES MUÑIZ,
Arturo – “Pesquerías medievales hispanas: las evidencias arqueofaunísticas”. In La pesca en la Edad Media,
Vol. I. Murcia: Sociedad Española de Estudios Medievales, 2009, pp. 145-167.
24
SÁNCHEZ QUIÑONES, Julián – Pesca y comercio…, pp. 112-119.
25
BATISTA, C, et alii – “Aproximação ao estudo diacrónico da ictiofauna dulçaquícola no vale do
Tejo: os casos de Abrantes e Santarém”. In 7º Simpósio sobre a Margem Ibérica Atlântica – MIA 2012, 16-20 de
Dezembro de 2012, Lisboa, pp. 145-150.
26
IZQUIERDO BENITO, Ricardo – Abastecimiento…, pp. 82-83. En 1527 se volvió a aludir a este
problema. MARTÍN GAMERO, Antonio – Ordenanzas para el buen régimen y gobierno de la muy noble, muy
leal e imperial ciudad de Toledo. Toledo: Imprenta de José de Cea, 1858, pp. 166-167.
27
AMCU-Legajo 125-Expediente 5, fol. 33r.
28
CORTÉS RUIZ, María Elena – Articulación jurisdiccional y estructura socioeconómica en la comarca
de Molina de Aragón a lo largo de la baja Edad Media. 3 vols. Madrid: Universidad Complutense, 2003, pp.
902-913. Tesis doctoral.
29
LOZANO CASTELLANOS, Alicia – Mercado y fiscalidad…, p. 38.
30
Es posible que haya referencias anteriores. SÁNCHEZ QUIÑONES, Julián – Pesca y comercio…, p.
118, nota 370.
LOS PROBLEMAS EN EL ABASTECIMIENTO DE PESCADO EN LA MESETA MERIDIONAL [...]
277
finales de la Edad Media31. Esta situación se mantuvo hasta bien entrado el siglo XVI,
en el cual, a pesar de los esfuerzos de la Corona, las pragmáticas emitidas contra la
pesca ilegal seguían incumpliéndose, a veces, con total impunidad32.
2.2 El pescado marítimo: el difícil tránsito hacia el interior peninsular.
El consumo y comercio de pescado marítimo experimentó un gran desarrollo en la
Edad Media. La enorme demanda de algunas especies como el arenque o la sardina
fue paralela, además, a la aparición de una importante industria pesquera en algunas
zonas europeas (Países Bajos)33. Las aguas peninsulares conocieron una explotación
más tardía, si bien de su riqueza dan cuenta los yacimientos arqueológicos y las
fuentes documentales34. El comercio del pescado fue muy importante en el siglo
XV castellano. De sus costas partían buques y recueros35 hacia otros reinos, como
Aragón36, o al interior peninsular donde el pescado se cambiaba por cereales37. Era un
producto que se movía con cierta fluidez38, lo que no quiere decir que su transporte
hacia las tierras del interior fuese fácil. Estas áreas se proveían de pescado procedente
31
CLEMENTE RAMOS, Julián – “La evolución del medio natural en Extremadura (c. 1142-c. 1525).
In CLEMENTE RAMOS, Julián (coord.) – El medio natural en la España medieval: actas del I Congreso sobre
ecohistoria e historia medieval. Cáceres: Universidad de Extremadura, 2001, pp. 47-48. Del mismo autor: “El
medio natural en la vertiente meridional del Tajo extremeño en la Baja Edad Media”. Anuario de Estudios
Medievales (En adelante AEM) 30/1 (2000), pp. 383-384; CLEMENTE RAMOS, Julián; RODRÍGUEZ
GRAJERA, Alfonso – “Plasencia y su tierra en el tránsito de la Edad Media a la Moderna. Un estudio de sus
ordenanzas (1469-1493)”. Revista de estudios extremeños 63, 2 (2007), pp. 740-741 y 748-750.
32
Los clérigos fueron habituales infractores de estas disposiciones. Actas de las Cortes de Castilla
publicadas por acuerdo del Congreso de los Diputados a propuesta de su comisión de gobierno interior. Contiene
las celebradas el año de 1570, ed. Manuel Danvila y Collado, Vol. III. Madrid: Est. tip. Sucesores de Rivadeneyra,
1863, pp. 370-371.
33
El llamado Fish Horizont se data a partir del año 1000 y su desarrollo fue desigual en la Baja Edad
Media, con zonas muy pujantes (Escania) y otras en decadencia (este de Inglaterra). BARRETT, James H. –
“Medieval Sea fishing AD 500-1550: Chronology, causes and consequences”. In BARRET, James H.; ORTON,
David C. (eds.) – Cod and Herring. The archaeology and history of medieval sea fishing. Oxford: Oxbow Books,
2016, pp. 250-272.
34
MORALES MUÑIZ, Dolores Carmen; ROSELLÓ IZQUIERDO, Eufrasia; MORALES MUÑIZ,
Arturo – “Pesquerías medievales hispanas”. In La pesca en la Edad Media…, pp. 145-167; GONZÁLEZ
GÓMEZ DE AGÜERO, Eduardo – La ictiofauna de los yacimientos arqueológicos del noroeste de la Península
Ibérica, León: Universidad de León, 2013. Tesis doctoral.
35
FERREIRA PRIEGUE, Elisa – Galicia en el comercio marítimo medieval. Santiago de Compostela:
Universidad de Santiago de Compostela, 1988; OTTE, Enrique – Sevilla y sus mercaderes a finales de la Edad
Media. Sevilla: Universidad de Sevilla / Fundación el Monte, 1996; MEDRANO FERNÁNDEZ, Violeta –
Un mercado entre fronteras. Las relaciones comerciales entre Castilla y Portugal al final de la Edad Media.
Valladolid: Universidad de Valladolid, 2010.
36
SALICRÚ, Roser – El trafic de mercaderies a Barcelona segon els comptes de la lleuda de Mediona
(febrero de 1434). Barcelona: CSIC, 1995. DIAGO HERNANDO, Máximo – “El comercio de productos
alimentarios entre las Coronas de Castilla y Aragón entre los siglos XIV y XV”. AEM 31/2 (2001), pp. 603-648.
37
AÑÍBARRO RODRÍGUEZ, Javier – “La actividad pesquera en las Cuatro villas de la costa durante la
Edad Media”. Anales de Historia Medieval de la Europa Atlántica 2 (2014), pp. 44-46.
38
Tampoco estaba afectado por las sacas vedadas. SÁNCHEZ BENITO, José María – La Corona de
Castilla y el comercio exterior: estudio del intervencionismo monárquico sobre los tráficos mercantiles en la Baja
Edad Media. Madrid: Ciencia 3, 1993.
278
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
de las costas de Castilla (Galicia o Andalucía) o de Portugal. En la mayoría de los
casos la llegada de ese producto no era directa, sino que se empleaban intermediarios,
que llevaban el pescado desde la costa hacia localidades del interior, donde tenían
almacenes y boticas y allí vendían sus productos a los encargados del abasto urbano39.
Un ejemplo de este proceder se halla en los pescadores de las Cuatro villas cántabras,
los cuales transportaban sus capturas por diversas rutas, hasta tierras de Palencia y
Valladolid40. Allí, en localidades como Villalón o Dueñas, se encontraban con los
obligados de las ciudades y les vendían pescado por quintales o arrobas41. Para el
pescado procedente del sur, era Sevilla el gran centro de distribución, mientras que en
la zona mediterránea, este papel era ejercido por los puertos de Murcia (Cartagena)
o de Alicante42.
El transporte del pescado de la costa a la meseta no era fácil. Por un lado,
la orografía no ayudaba. Tanto la Cordillera Cantábrica como el Sistema Central
eran dos obstáculos difíciles de atravesar, sobre todo en invierno. A ello había que
sumar otras dificultades, como el cruce de los ríos o la carencia de infraestructuras
adecuadas43. Por otro lado, las vías terrestres presentaban importantes deficiencias
ya que la Corona no construyó una red viaria adecuada y la iniciativa quedó en
manos de los municipios44. A pesar de sus esfuerzos, la conservación de los caminos
era muy dispar, con tramos en buen estado y otros carentes de cualquier arreglo.
El concejo de Madrid, por ejemplo, puso gran énfasis en adecentar las principales
vías que comunicaban la villa y su tierra con otras ciudades. En 1512 se repararon
los caminos que conducían a Burgos, Segovia y Toledo, localidades todas ellas que
se hallaban en el camino real. De igual modo, fueron frecuentes las reparaciones de
39
Acerca de estos almacenes, ver: RGS, LEG,148506,50; Archivo de la Real Chancillería de Valladolid,
Reales Ejecutorias, caja 21/14. Mis agradecimientos a Javier Añíbarro por facilitarme las referencias y texto de
ambos documentos.
40
OLIVA HERRER, Hipólito Rafael – “Principales itinerarios y flujos de intercambio en la tierra de
Campos palentina a fines del Medievo”. In CRIADO DE VAL, Manuel (dir.) – Caminería Hispánica. Actas del
V Congreso Internacional. Caminería Histórica y Turística, Vol. II. Valencia: Ministerio de Fomento, 2000, pp.
923-940; AÑÍBARRO RODRÍGUEZ, Javier – “Pescadores, mulateros y mercaderes de los puertos cantábricos:
la distribución del pescado irlandés en el norte de Castilla en la Edad Media”. In COSTA, Adelaide Millán da;
ANDRADE, Amélia Aguiar; TENTE, Catarina (eds.) – O papel das pequenas cidades na construção da Europa
Medieval. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, 2017, pp. 341-357.
41
LÓPEZ VILLALBA, José Miguel – “Política local y abastecimiento urbano: el pescado en Guadalajara
en la Edad Media”. Espacio, Tiempo y Forma. Serie Historia Medieval (en adelante ETF) 25 (2007), pp. 233-234.
42
SÁNCHEZ QUIÑONES, Julián – Pesca y comercio…, pp. 281-283.
43
AÑÍBARRO RODRÍGUEZ, Javier – Las cuatro villas de la costa de la mar en la Edad Media.
Conflictos jurisdiccionales y comerciales. Cantabria: Universidad de Cantabria, 2013, pp. 263-275. Sobre el
Sistema Central, puede consultarse: GARCÍA GARCIAMARTÍN, Hugo Joaquín – Articulación jurisdiccional
y dinámica socioeconómica de un espacio natural: la cuenca del Alberche (siglos XII-XV). Madrid: Universidad
Complutense de Madrid, 2002. Tesis doctoral, pp. 253-270. Consultada online el 20-11-2019 a las 19:23.
Disponible en: https://eprints.ucm.es/4606/1/T26469.pdf.
44
RUIZ PILARES, Enrique José – “La política viaria municipal a finales de la Edad Media (1430-1530):
el caso de Jerez de la Frontera”. Norba 25-26, (2012-2013), pp. 207-226. CÓRDOBA DE LA LLAVE, Ricardo
– “Comunicaciones, transportes y albergues en el reino de Córdoba a finales de la Edad Media”. Historia.
Instituciones. Documentos 22 (1995), pp. 87-118.
LOS PROBLEMAS EN EL ABASTECIMIENTO DE PESCADO EN LA MESETA MERIDIONAL [...]
279
puentes en la villa45. No obstante, la mayoría de los caminos eran de tierra y no eran
aptos para los carros, lo que obligaba al uso de mulas y otras bestias cuya capacidad
de carga era mucho más limitada46. Las principales rutas se articulaban entorno al
eje Valladolid-Toledo47. Por ejemplo, de Toledo se podía ir al norte, hacia Segovia
y Valladolid, hacia el sur, camino de Andalucía o a Valencia. Madrid, por su parte,
se hallaba en el eje Burgos-Toledo, pero además permitía la conexión con Alcalá de
Henares y Guadalajara, en dirección a Aragón y hacia Cuenca y Valencia48.
Los mercaderes de pescado debían hacer frente a otros riesgos en sus viajes.
Con frecuencia, los merchantes eran asaltados por los vecinos de las villas o incluso
por funcionarios reales o locales, que confiscaban sus mercancías49. Asimismo,
las ciudades podían retenerles al pasar por su término y obligarles a vender allí
el pescado que transportaban50. Además, existía el riesgo de que la mercancía se
pudriese, acabando así con el negocio51. Por otro lado, los obligados debían hacer
frente a los impuestos de cada zona, tales como sisas o alcabalas, lo que suponía un
gasto añadido a su gestión. En Guadalajara en 1497 ya se aludió a este problema
y por ello el concejo para compensarles, aumentó en una blanca el precio de sus
productos52.
Con todo, el riesgo más importante era que se redujese el flujo de pescado
procedente de la costa. Esto se producía cuando el abasto de las localidades costeras
se veía amenazado por el desequilibrio existente entre el pescado exportado y el
destinado al consumo interno. Para evitarlo, villas como Castro Urdiales, trataban de
garantizar la existencia de reservas de pescado suficientes en épocas de gran demanda,
45
PUÑAL FERNÁNDEZ, Tomás – “Los caminos medievales del Concejo de Madrid en la Edad
Media”. In CRIADO DE VAL, Manuel (dir.) – Caminería Hispánica. Vol. I. Madrid: Aache, 1993, pp. 217-239.
Acerca de los arreglos de estos caminos ver: MONTURIOL GONZALEZ, Ángeles – “Vías de comunicación
y hacienda local en Madrid en el último tercio del siglo XV”. In SEGURA GRAÍÑO, Cristina (ed.) – Caminos
y caminantes por las tierras del Madrid Medieval. Madrid: Ministerio de Obras Públicas, Transporte y Medio
Ambiente, 1994, pp. 141-164.
46
El carro podía cargar hasta 1500 kilogramos. Una bestia 115-120 kilogramos. DOMINGO MENA,
Salvador – Caminos burgaleses. Los caminos del norte (siglos XV y XVI). Vol. I. Burgos: Universidad de Burgos,
2015. Tesis Doctoral, pp. 691-745. CÓRDOBA DE LA LLAVE, Ricardo; HERNÁNDEZ ÍÑIGO, Pilar – “El
utillaje de los transportes en la Andalucía del Descubrimiento”. HID 30, (2003), pp. 159-179.
47
Según los datos ya tardíos de Juan de Villuga. DIAGO HERNANDO, Máximo; LADERO QUESADA,
Miguel Ángel – “Caminos y ciudades en España de la Edad Media al siglo XVIII”. EEM 32, (2009), pp. 347-382.
48
PUÑAL FERNÁNDEZ, Tomás – “El comercio madrileño en el entorno comercial y urbano de la Baja
Edad Media”. Edad Media 15, (2014), pp. 115-133.
49
Estos actos podían afectar incluso a los proveedores de la casa real. SÁNCHEZ QUIÑONES, Julián,
“El oficio de gallinero en la corte de los Reyes Católicos (1480-1504)”, Vínculos de Historia, 2, (2013), p. 241.
50
Así les ocurría a los merchantes cordobeses a su paso por el reino de Sevilla. MARTÍNEZ RELAÑO,
Mª del Rosario – “El comercio de pescado en Córdoba durante la segunda mitad del siglo XV”. In PRADELLS
NADAL Jesús; HINOJOSA MONTALVO, José (coords.) – 1490. En el umbral de la modernidad. El Mediterráneo
europeo y las ciudades en el tránsito de los siglos XV-XVI. Vol. 2. Valencia: Generalidad Valenciana, 1994, pp.
567-577.
51
DOMINGO MENA, Salvador – Caminos burgaleses… pp. 683-689.
52
El coste de traer pescado desde Villalón a su tierra, era muy elevado: unos 12 maravedís por libra y lo
vendían a 8 en Guadalajara. AHN-Secc. Nobleza-OSUNA-CAJA 1876, Doc. 109, fol. 67v.
280
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
separando una parte de las capturas para los vecinos. Además, se limitaba la venta de
ciertas especies para evitar el peligro del desabastecimiento53. Sin embargo, creemos
que no siempre se evitaba este problema, el cual podía afectar a la llegada de pescado
marítimo al interior peninsular. La escasez de pescado documentada en Ciudad Real
en 1503 o en Cuenca en 1506, podría tener su origen en las restricciones de estos
concejos a la exportación de esta mercancía. Este problema se acentuaría en épocas
de crisis (1502-1506), ya que el pescado marítimo se empleaba para obtener cereales.
Al destinarse a este cometido, se agudizaría la escasez en las zonas del interior y
provocaría una escasez parcial o total de este producto e importantes alzas en los
precios54.
3. Los factores endógenos: El sistema de obligados y sus dificultades para el abasto
del pescado.
a) Los precios.
Los precios eran establecidos por el concejo, cuyo objetivo era proveer a los vecinos
de buenos productos a un importe asequible. Dichos importes, eran, en general,
poco elásticos y sólo variaban en épocas concretas (Cuaresma), lo que favorecía
la especulación y el acaparamiento55. Se insistía mucho en la calidad: “(…) [el
pescado] que sea de calidad y sino que no se venda (…)”56 y en el precio que debía
ser económico. Los regidores procuraron evitar las alzas desmesuradas poniendo
un tope al precio del pescado, por bueno que éste fuese. En Guadalajara, en 1492, se
limitó el precio de la sardina, de la mejor categoría, a 8 maravedís por libra57. Esta
política rara vez se modificaba, aun cuando mediasen circunstancias de gravedad, lo
que motivaba la protesta de los obligados por el bajo valor otorgado a sus productos.
En 1506, Juan de Estrada pidió al concejo de Ciudad Real una solución ante las
pérdidas sufridas por los bajos precios del pescado. Los responsables locales tras
escuchar su queja, encargaron la búsqueda de otro proveedor al menor precio que
53
AÑÍBARRO RODRÍGUEZ, Javier – “Producción, abastecimiento y consumo en las villas medievales
de la costa cantábrica: el caso de Castro Urdiales”. In ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz; SOLÓRZANO
TELECHEA, Jesús A (eds.) – Alimentar la ciudad en la Edad Media…, p. 376.
54
Sobre sus consecuencias en el mercado urbano véase: SÁNCHEZ BENITO, José María – “Coyuntura
económica y política mercantil urbana (Cuenca, siglo XV)”. Edad Media 9 (2008), pp. 343-377; del mismo
autor “Crisis de abastecimientos y administración concejil. Cuenca 1499-1509”. En la España Medieval (EEM)
14, (1991), pp. 275-306. CABAÑAS GONZÁLEZ, María Dolores – “Ciudad, mercado y municipio en Cuenca
durante la Edad Media (siglo XV). EEM 7 (1985), pp. 1701-1728.
55
DE CASTRO MARTÍNEZ, Teresa – El abastecimiento alimentario…, p. 144. SÁNCHEZ BENITO,
José María – “Coyuntura económica...”, p. 370.
56
AMCU, Legajo 214, Expediente 2, fol. 142v.
57
AHN-Secc. Nobleza-OSUNA-CAJA 1876, Doc. 109, fol. 22v.
LOS PROBLEMAS EN EL ABASTECIMIENTO DE PESCADO EN LA MESETA MERIDIONAL [...]
281
se pudiese58. El bienestar del obligado era un asunto secundario comparado con
el abastecimiento de la ciudad y evitar desórdenes por la falta de alimentos59. Con
todo, el descontento por los precios existía y este fue un motivo de tensión entre los
comerciantes y las ciudades60.
Los precios del pescado se fijaban según unos factores concretos: 1) Tamaño y
peso 2) Calidad y estimación 3) Procedencia 4) Época en la que se vende 5) Tasas
aplicadas sobre la mercancía 6) Abundancia o escasez 7) Datos relativos a otras
localidades 8) Presencia de la Corte en la ciudad61. Algunos de ellos eran claves
para determinar los precios, como el tamaño o la calidad, pero también tenían su
importancia otros aspectos de tipo temporal, como la presencia de la Corte en la
ciudad o la Cuaresma. Fijar el importe adecuado no era fácil. Había pescados que
llegaban con poca frecuencia y no se sabía cómo tasarlos, por lo que era necesario
averiguar su precio en otra localidad y tomarlo como referencia62. Asimismo, era
poco frecuente que los regidores pidiesen consejo a los pescadores u obligados para
que aconsejaran en esta materia. En Cuenca no se solicitó su parecer hasta 1482 para
poner precio al pescado de río63. Además, al predominar las consideraciones políticas
sobre las comerciales, no se tenían en cuenta los intereses de los mercaderes que
debían contentarse con precios bajos y a veces casi fijos. En Madrid, se mantenían los
precios de un año para otro, desincentivando a los posibles proveedores64.
Las reacciones ante esta política eran inmediatas: el abandono de la puja por los
mercaderes, con lo que el concejo tenía que volver a rematar la renta y se retrasaba la
llegada del pescado a la ciudad65. Otras veces, el obligado se negaba a vender pescado,
aun cuando la renta ya estuviese contratada. En ese caso, el concejo respondía con
la requisa de sus bienes o lo encarcelaba por no cumplir lo pactado66. Todo ello no
evitaba la carestía temporal de pescado, que podía ser general o que afectaba a unas
pocas especies. En Cuenca, en 1499, la falta de pescado fue generalizada, mientras
que en Ciudad Real, en 1503, se aludía tan sólo a la falta de pescado cecial y galiziano.
En estos casos, cabe destacar que ante la escasez, el concejo no ofreció mejores
condiciones ni mejores precios a los obligados, sino que en Cuenca se mantuvieron
AMCR-Actas del Concejo de 1506, pp. 380 y 382.
ESCRIBANO ABAD, José Luis – “La regulación del mercado alimentario: el caso de la Guadalajara
bajomedieval”. Espacio, Tiempo y Forma. Serie Historia Medieval (en adelante ETF) 21 (2008), p. 114.
60
El 74% de las pujas posteriores al primer remate tenían como objetivo conseguir una mejora de los
precios. ESCRIBANO ABAD, José Luis – Abastecer a la ciudad…, p. 41.
61
SÁNCHEZ QUIÑONES, Julián – Pesca y comercio…, pp. 296-306. GUERRERO NAVARRETE,
Yolanda; SÁNCHEZ BENITO, José María – Cuenca en la Baja Edad Media…, pp. 199-200.
62
El atún en Guadalajara. ESCRIBANO ABAD, José Luis – Abastecer a la ciudad…, pp. 149-151.
63
AMCU-Legajo 203-Expediente 1 (Actas del Concejo de 1481-1482), fols. 158v-159v.
64
Es el caso del pulpo y el tollo en 1490.
65
En Albacete en 1512, Juan Cortés se retiró de la puja porque no le respetaron los precios iniciales.
AHPA- Secc. Municipios-Caja 92 (Libro de Actas de Albacete 1512-1514), fols. 2r-2v.
66
SÁNCHEZ QUIÑONES, Julián – Pesca y comercio…, p. 295.
58
59
282
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
los precios iniciales67 y en Ciudad Real los regidores reclamaron una bajada de los
mismos porque los consideraban caros68. Todo ello prolongaba el problema, hasta
que se lograba un acuerdo con el futuro obligado. El incremento de los precios en
estas situaciones era raro y sólo se documenta cuando la carestía es generalizada en
todo el reino. Durante la crisis de 1502-1506, que afectó a toda Castilla, en Cuenca
se registraron elevadas alzas en el importe del congrio (28 maravedís), pero también
en el del pescado remojado, un producto consumido por las clases populares69. Es
posible que dicha localidad se viera afectada al reducirse el flujo de pescado marítimo
hacia el interior, lo que incrementó los precios y agravó su situación70.
El análisis de los precios del pescado en la región es muy interesante. Aunque
en algunas ciudades (Ciudad Real) los datos son escasos y hay un bajo índice de
coincidencia entre las especies vendidas en las localidades analizadas, es posible
esbozar una hipótesis sobre la evolución de los precios del pescado desde la segunda
mitad del siglo XV. En las tablas al final de este trabajo, ofrecemos un muestrario de las
especies más representativas con sus importes. En primer lugar, en algunas especies
como el pescado cecial (Tab. 1), los precios eran más bajos en el área de Madrid
y Guadalajara, (7-9 maravedís), mientras que en Ciudad Real, Albacete y Cuenca,
estos eran más elevados (11-14 maravedís). Igual ocurría con otros productos como
el pulpo (Tab. 4). No siempre se registraron diferencias tan marcadas, si bien los
precios seguían siendo más altos en la cuenca del Guadiana o en Cuenca (Tab. 2,
pescado remojado). En esta ciudad, algunos productos como el congrio (Tab. 3) se
dispararon en su cotización. Las disparidades en los precios fueron menores en los
peces fluviales. Aunque las referencias para estos son muy escasas y casi centradas
en Cuenca, los datos disponibles indican valores muy parecidos. En la década de los
80-90 del siglo XV, los peces tienen casi el mismo valor en Cuenca, Guadalajara y
Madrid (Tab. 5). Caso idéntico es el de los barbos (Tab. 6). Hubo especies (sardinas,
Tab. 7; peces pequeños, Tab. 9) que apenas incrementaron su importe o que incluso
perdieron valor (pulpo, Tab. 4). Sin embargo, los pescados más apreciados (congrio,
truchas) crecieron notablemente en el período estudiado (Tab. 3 y 8). Por otro
lado, estos importes solían ser rígidos, y sólo variaban en épocas de gran demanda
(Cuaresma) o en ocasiones excepcionales (crisis generalizada). Si se compara con
otras regiones, como la meseta septentrional o el área riojana, suelen coincidir las
especies más valoradas (trucha), pero la evolución de un mismo pez difería según
los lugares. En Burgos las truchas vieron crecer su precio, pero en Haro su importe
se mantuvo estable. E incluso dentro de una ciudad, la misma especie podía sufrir
AMCU–Legajo 214 –Expediente 1 (Actas del Concejo 1499), fols. 25v, 26v, 27r, 48r
AMCR-Actas del Concejo 1503, pp. 66-67.
69
AMCU-Legajo 221-Expediente 1 (Actas del Concejo 1505-1506), fols. 25v, 26r, 30r, 62r, 137r, 139r.
70
SÁNCHEZ BENITO, José María – “Crisis de abastecimientos”. EEM 14 (1991), pp. 275-306.
Agradecemos al profesor Sánchez Benito sus indicaciones sobre el impacto de la crisis en Cuenca.
67
68
LOS PROBLEMAS EN EL ABASTECIMIENTO DE PESCADO EN LA MESETA MERIDIONAL [...]
283
sucesivos vaivenes en su tasación71. El pescado por tanto tenía su propio ritmo, estaba
sujeto a escasas oscilaciones y sus precios oscilaron a la baja durante el período
analizado72.
b) Ligas entre comerciantes.
El cargo de obligado era un puesto al alcance de muy pocos. Ya se indicó que debían
cumplir con las rígidas obligaciones del contrato en cuestión de fechas o de las
elevadas fianzas. A esto había que añadir, el coste de traer el pescado desde la costa,
disponer de un sistema de transporte eficaz, pagar al personal a su servicio (los
cortadores, recueros) y vigilar a sus empleados para que no cometiesen infracciones73.
Se necesitaba, por tanto, infraestructura, personal y contactos en el exterior que
sobrepasaban las posibilidades de los pequeños comerciantes locales. La imagen
del obligado modelo sería la de Fernando de Torrijos, que desempeñó el cargo en
Talavera de la Reina: era rico, tenía 10 acémilas, iba a los puertos a comprar y además
entendía en las carnicerías74. En consecuencia, el número de obligados en las villas
era muy reducido y se limitaba a unas cuantas personas o familias que dominaban
el cargo. Alonso de Torres en Madrid, los Ximones en Talavera o Pedro Logroño en
Guadalajara son ejemplos bien ilustrativos. Además, no sólo controlaban el puesto
de obligado, sino que copaban otros cargos ligados a esta (fiador). Por ejemplo, los
Franco en Madrid, al pujar por el pescado solían ubicar en dichos puestos a sus
parientes y socios. Igualmente, cuando sus socios pujaban a esta renta, no era raro
hallar a un miembro de esta familia a su servicio. Así se tejía una tela de intereses y
favores que permitía a un reducido grupo de personas controlar esta y otras rentas
(carnicería).
Su control se extendía, no sólo al remate de la renta, sino también a las pujas
previas. La manera de actuar era la siguiente: se presentaba una puja por un personaje
cercano al interesado y si obtenía la renta, en cuanto podía, se la traspasaba. A veces,
los socios del futuro obligado realizaban pujas simultáneas para presionar al concejo
y mejorar las condiciones del remate final. Tal extremo fue denunciado por el concejo
madrileño en 1497, donde se indicó la existencia de ligas entre los proveedores, que
pujaban no para sí, sino para otros75. De ese modo, se reducía la posible competencia
71
IZQUIERDO BENITO, Ricardo – Precios y salarios en Toledo durante el siglo XV (1400-1475). Toledo:
Caja de Ahorro Provincial, 1983, pp. 127-129.
72
GUERRERO NAVARRETE, Yolanda – “Consumo y comercialización de pescado en las ciudades
castellanas de la Baja Edad Media”. In La pesca en la Edad Media…, Vol. I, pp. 250-251.
73
Sobre los obligados en Madrid y Guadalajara: SÁNCHEZ QUIÑONES, Julián – Pesca y comercio…,
pp. 266-272.
74
LOZANO CASTELLANOS, Alicia – Comercio y finanzas…, pp. 129-130.
75
Se citan culpables como a la familia Franco, Alonso de Torres o Pedro de Heredia. SÁNCHEZ
QUIÑONES, Julián – Pesca y comercio…, pp. 234-238 y 266-270.
284
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
y permitía presionar al concejo. Ese mismo año, estos mercaderes se negaron a
proveer de pescado a la villa y hubo que buscar gente que se hiciera cargo de él. Dichas
estrategias eran idénticas en otros municipios. En Talavera de la Reina, las rentas de
la carne y del pescado estaban controladas por los Ximones y la familia Toledano. En
1511 se escogió como obligado del pescado a Fernando de Torrijos porque era rico,
pero también porque era forastero y no formaba parte de los mercaderes locales76.
c) La relación entre el poder municipal y el comercio local.
La posición de los obligados se veía reforzada por sus vínculos con los regidores
locales. Esta relación se asentaba en base a los derechos cobrados por los funcionarios
locales sobre los alimentos vendidos en el mercado y por la participación de los
regidores en los negocios del abasto municipal. Respecto al cobro de los derechos,
estos eran percibidos por vigilar el funcionamiento del mercado. En Madrid eran
los fieles quienes ejercían esta labor y entre otras tareas, controlaban las pesas y
medidas o vigilaban a los regatones. Cobraban sus derechos una vez al año de cada
mercader foráneo que venía a la villa y de cada regatón. Sin embargo, los abusos
eran frecuentes. En 1491, al rehacer el arancel de los fieles, quedaron registradas
las tropelías que cometían: percepción de mayores derechos de los establecidos,
avenencias con los vecinos al comprobar sus pesas, cobrar derechos a los criados de
los mercaderes o gravar a los vecinos en tiempos de feria. Estos desmanes eran graves
porque controlaban el tráfico de numerosos productos77. No obstante, estas tasas eran
impopulares. En Guadalajara, se abrió un debate sobre estos derechos y los abusos
cometidos, que eran frecuentes. La discusión es interesantísima al ser los propios
regidores quienes cuestionaron la existencia de estos derechos. El regidor Diego
Guzmán afirmó que no cobraría estos derechos, para “(…) mayor abundamiento de
la ciudad (…)” y porque de ese modo se vería la limpieza de los regidores y que no
usaban del cargo por mero interés. Otro regidor, Francisco, indicó que las posturas
se llevaban injustamente y decidió no aceptarlas nunca más. Esta decisión fue común
al resto de regidores, con la amenaza de fuertes penas para quien lo incumpliese78.
La participación en el abasto urbano fue, sobre todo, un negocio de los regidores.
En Cuenca los dirigentes urbanos hacían pagos a los regatones o pescaderos79. Dichos
“pagos” eran recíprocos y en Madrid, en 1488, se denunció que los regidores recibían
LOZANO CASTELLANOS, Alicia – Comercio y finanzas…, pp. 126-130.
SÁNCHEZ QUIÑONES, Julián – Pesca y comercio…, pp. 419-420.
78
SÁNCHEZ QUIÑONES, Julián – Pesca y comercio…, pp. 300-301.
79
SÁNCHEZ BENITO, José María – “Coyuntura económica...”, p. 364. Sobre esta cuestión véase: JARA
FUENTE, José Antonio – Concejo, poder y élites. La clase dominante de Cuenca en el siglo XV. Madrid: CSIC,
2000, pp. 341-345.
76
77
LOS PROBLEMAS EN EL ABASTECIMIENTO DE PESCADO EN LA MESETA MERIDIONAL [...]
285
dádivas de los carniceros y pescadores, además de tener parte en el negocio80. Esto
podía ocasionar situaciones embarazosas, donde los oscuros manejos por hacerse
con la pescadería del concejo quedaban al descubierto. En 1511, durante la subasta
de la pescadería de Buitrago, territorio del duque del Infantado, uno de los candidatos
pujó por la noche y denunció que otros mercaderes presentaban su puja directamente
al duque en Guadalajara. Y en 1514, dos de los postores recurrieron a un regidor
local para que fuese su fiador81. Estas maniobras no eran infrecuentes y causaban
todo tipo de problemas, desde protestas por la ejecución del remate, hasta dilaciones
en la confirmación del arrendamiento, caso de Guadalajara en 150082. Incluso los
proveedores podían abandonar al entender que el proceso no era todo lo limpio que
debería, causando así interrupciones en el abasto de esta mercancía83.
d) La reventa.
La reventa en sí fue un fenómeno que existió durante toda la Edad Media y que, frente a
la visión, generalmente negativa que se tenía de ella, ayudaba también al intercambio
de alimentos por lo que los regidores intentaron canalizar sus actividades84. Sólo
así se entiende que en ocasiones se tuviese en cuenta a los regatones para poner el
precio del pescado85. No obstante, su mala fama pervivía, de ahí que los concejos
procurasen limitar al máximo su impacto en el comercio local. Dicho objetivo era
complejo, puesto que la venta a regate podía ser ejercida por cualquier individuo.
El amplio beneficio que se podía conseguir compensaba de sobra el riesgo de ser
capturado por las autoridades y ser sometido a una fuerte multa y castigo. En el
caso del pescado, ciertos productos de gran valor añadido (salmón), eran empleados
por los revendedores para obtener un beneficio fácil y rápido. En Guadalajara, este
tráfico fue especialmente intenso y en él se vieron implicados incluso funcionarios
locales. En 1492, el mayordomo de la ciudad, García y su cómplice, un tal Francisco,
fueron arrestados por adquirir salmones para venderlos a regate. Y en 1498, se
prohibió vender besugos a regate, porque los despenseros de la nobleza o sus criados
robaban este manjar de las despensas y lo revendían en el mercado86. El perjuicio de
dicha actividad era mayor en épocas como la Cuaresma o Pascua, ya que productos
AVM–SECRETARÍA 2- 412 -42 En Medina del Campo también se documentan pagos a los regidores.
OLIVA HERRER, Hipólito Rafael – Abastecimiento local… pp. 26-28.
81
Sobre estos sistemas ver: SÁNCHEZ QUIÑONES, Julián – Pesca y comercio…, pp. 336-338.
82
BARBADILLO ALONSO, Javier; GUTIÉRREZ DUBLA, Natividad – “El debate del abasto”. In IV
Encuentro de Historiadores…, pp. 93-103.
83
Juan Cortés abandonó la postura del pescado por esta causa. AHP-Albacete-Secc. Municipios Caja 92
(Libro de actas de Albacete, 1512 -1514), fol. 2v.
84
SÁNCHEZ BENITO, José María – “Coyuntura económica...”, pp. 363-366.
85
En Cuenca en 1485. AMCU-Expediente 207-Expediente 2 (Actas del Concejo de 1485-1486), fols.
69v-70r.
86
AHN-Secc. Nobleza-OSUNA-C. 1876-Doc. 109, fols. 30 r y 159v.
80
286
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
básicos como la sardina, también fueron objeto de este tráfico y un alza excesiva
en su precio podía hacer peligrar el abasto a las clases sociales más bajas. De ahí
que los concejos prohibiesen la compra a los revendedores hasta que los vecinos
se hubieren abastecido o elevar los precios de ciertos productos por encima de su
tasación inicial87. Sin embargo, estas medidas fueron poco eficaces y al final de la
Edad Media el problema seguía en todo su vigor.
5. Conclusiones.
La provisión de pescado no era una tarea fácil para los habitantes de las ciudades, ya
que en ello influían los factores exógenos (decadencia de las pesquerías) y endógenos
(reventa), propios del sistema. Respecto a los primeros, cabe señalar que el pescado
fluvial sólo cubría una parte de la demanda y a finales del período medieval parece
evidente el creciente deterioro de las pesquerías fluviales, lo que hacía indispensable
importar pescado marítimo. No obstante, el acarreo desde la costa se enfrentaba a
diversos problemas (asaltos) y además este producto era un bien cotizado ya que las
villas costeras lo usaban para intercambiarlo por trigo. ¿Es posible que esto produjera
una reducción en las exportaciones hacia el interior peninsular? Es una pregunta que
hay que responder.
Por su parte, el sistema de obligados contribuía a dificultar esta tarea. La
política de precios era rígida y casi estática, poco atractiva para los comerciantes.
Estos, en general, apenas crecieron y tan sólo algunos artículos (congrio) conocieron
un significativo aumento en su importe. En el caso de los pescados de consumo más
popular, se mantuvo su coste para hacerlos accesibles al común de la población.
Asimismo, la conexión de los precios con las carestías es muy interesante. Causa
o un elemento más de las mismas, tan sólo en situaciones de crisis general en el
reino (1502-1506), los precios se disparaban conforme a la gravedad de la misma.
Las ligas entre comerciantes eran una consecuencia del sistema. Los requisitos para
ser obligado eran inalcanzables para muchos y las alianzas entre los comerciantes les
permitían el control de las rentas y forzar al concejo a aceptar sus demandas. Este
“chantaje”, se veía facilitado por la alianza entre los obligados y el poder local que
participaba en el abasto urbano y aceptaba sobornos de los mercaderes provocando
serios problemas en el funcionamiento del mercado. Finalmente, la reventa suponía
otro quebradero de cabeza. La venta de ciertos productos de gran valor era un desafío
a las normas concejiles. Pero si se trataba de productos básicos, el daño podía ser
grave ya que comprometía el abasto de las clases más humildes, sobre todo en épocas
como la Cuaresma y podía provocar alzas de los precios y escasez de estos productos.
87
AMCR-Actas del Concejo de 1506, p. 372. AMCU-Legajo 193-Expediente 3 (Actas del Concejo 14551456), fols. 54v-57v.
LOS PROBLEMAS EN EL ABASTECIMIENTO DE PESCADO EN LA MESETA MERIDIONAL [...]
287
ANEXO I
Precios del pescado en la Meseta Meridional Castellana en maravedís (1450-1515)
*Indica el precio mayor y menor alcanzado por ese producto durante el período indicado
Pescado
cecial
Madrid
Cuenca
1450-1460
Guadalajara
C. Real
Albacete
6 mrs
1460-1470
4 mrs y 4
cornados
1470-1480
8 mrs
14 mrs
1480-1490
7-8 mrs*
11-12 mrs*
1490-1500
7 mrs y
medio-8
mrs*
10-11 mrs*
7-8 mrs*
1500-1510
7 mrs y
medio
13-14 mrs*
8-9 mrs*
11 mrs y
medio
1510-1515
12 mrs
Tabla 1 – Pescado cecial.
Pescado
remojado
Cuenca
1450-1460
4 mrs
Guadalajara
C. Real
Albacete
1460-1470
1470-1480
7-8 mrs*
9 mrs
1480-1490
8-9 mrs
8 mrs
1490-1500
7-8 mrs*
7 mrs y medio-8
mrs y medio*
1500-1510
8-10 mrs*
7 mrs y medio-8
mrs*
7 mrs y medio-8
mrs y medio*
1510-1515
9 mrs
Tabla 2 – Pescado remojado.
288
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Madrid
Congrio
Cuenca
1450-1460
8-9 mrs*
1460-1470
13 mrs
1470-1480
20 mrs
Guadalajara
1480-1490
17 maravedís
18-19 mrs*
1490-1500
20 maravedís
19-20 mrs*
1500-1510
18 mrs y medio
23-28 mrs*
Tabla 3 – Congrio.
Pulpo
Madrid
Guadalajara
1480-1490
5 -6 mrs*
7 mrs
1490-1500
6 mrs*
6 mrs y medio-7
mrs*
1500-1510
5 mrs y medio
6 mrs
Tabla 4 – Pulpo.
Peces
Madrid
Cuenca
1450-1460
4 -5 mrs*
1460-1470
6 mrs
1470-1480
7 mrs
1480-1490
8 mrs
8-9 mrs*
1490-1500
7 mrs
Tabla 5 – Peces.
Guadalajara
7 -8 mrs*
LOS PROBLEMAS EN EL ABASTECIMIENTO DE PESCADO EN LA MESETA MERIDIONAL [...]
Barbos
Cuenca
1450-1460
4 mrs
289
Guadalajara
1460-1470
1470-1480
1480-1490
10 mrs
1490-1500
9-12 mrs*
9-10 mrs*
Tabla 6 – Barbos.
Sardinas
Madrid
1460-1470
Cuenca
Guadalajara
Chinchilla
7 -8 mrs y medio*
6 mrs
Albacete
5-6 mrs*
1470-1480
1480-1490
1490-1500
6 mrs y
medio-7
mrs*
8 mrs
1500-1510
6 mrs y
medio
1510-1515
Tabla 7 – Sardinas.
Truchas grandes
Cuenca
1450-1460
8 mrs
1460-1470
12 mrs
1470-1480
15 mrs
1480-1490
17 mrs
1490-1500
20 mrs
Tabla 8 – Truchas grandes.
290
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Peces menores
Cuenca
1460-1470
4 mrs
1470-1480
6 mrs
1480-1490
6-7 mrs
1490-1500
7 mrs
1490-1500
20 mrs
Tabla 9 – Peces menores.
LOS PROBLEMAS EN EL ABASTECIMIENTO DE PESCADO EN LA MESETA MERIDIONAL [...]
291
292
PARTE III
Ao Gosto da Cidade:
Matérias-primas e Produtos
To the Taste of the City:
Raw Materials and Products
Provision in Medieval Rome:
about building activities.
Nicoletta Giannini1
Abstract
In the history of Italian cities the topic of provision is quite traditional especially in regards to food and water provision - and is largely studied, mostly
by historians. On the other hand, the urban provision of building materials is a
less considered research topic. Despite the fact that many archaeology projects
have examined in the last years the urban setting through the methods of
vertical archaeology, it is right to stress that there have been very few reflections
on the production of building material and the effects of this production
on the economic, political and social dynamics tied to the provision of raw
materials to meet the needs of an urban community. The present paper offers
therefore some reflections on this aspect of the city of Rome, object in the last
years of extensive investigations in vertical archaeology and the archaeology of
production. By highlighting certain features of building activities and looking
at archaeological data related to building activities, I will suggest their potential
as socioeconomic markers in studying the history of the city.
Keywords
Architecture; Medieval Rome; Archaeology; Production activities; Building
archaeology.
1
Università di Roma Tor Vergata. gnnnlt01@uniroma2.it. This work was partially) supported by the
project Petrifying Wealth: “The Southern European Shift to Masonry as Collective Investment in Identity,
c.1050-1300”. This project has received funding from the European Research Council (ERC) under the
European Union’s Horizon 2020 research and innovation programme (grant agreement n° 695515”).
296
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
L’approvvigionamento della città di Roma nel Medioevo.
Il punto di vista dell’edilizia.
Abstract
Nella storia delle città italiane la questione dell’approvvigionamento è un
tema piuttosto classico, specialmente dal punto di vista alimentare e idrico, e
ampiamente indagato, soprattutto da parte degli storici. Meno battuto è invece
come argomento di ricerca l’approvvigionamento urbano visto dal punto di
vista dell’edilizia. Benché infatti molti in archeologia siano negli ultimi anni i
progetti che hanno affrontato l’assetto edilizio della città secondo i metodi propri
dell’archeologia dell’architettura, si ritiene che poche siano state le riflessioni in
merito alla produzione del materiale edilizio e al significato che tale produzione
ha nelle dinamiche economiche, politiche sociali legate al rifornimento di
materie prime volte a soddisfare le esigenze di una comunità urbana. Con
questo contributo si vuole quindi proporre alcune riflessioni in merito a questo
aspetto per la città di Roma, oggetto negli ultimi anni di approfondite indagine
di archeologia della produzione e dell’architettura. Ponendo quindi in evidenza
alcuni aspetti della produzione architettonica, si cercherà alla luce dei dati
archeologici legati all’edilizia, di porre in attenzione il potenziale di indicatori
socio-economici che tali informazioni assumono nella storia della città,
Parole chiave
Architettura; Roma Medievale; Archeologia; Attività produttive; Archeologia
dell’Architettura.
Foreword.
In the history of Italian cities the topic of provision is quite traditional – especially
in regards to food and water provision2 – and is largely studied, mostly by historians.
On the other hand, the urban provision of building materials is a less considered
research topic. Despite the fact that many archaeology projects have examined in the
last years the urban setting through the methods of vertical archaeology, it is right to
2
See for example MAGNI, Stefano – “Politica degli approvvigionamenti e controllo del commercio dei
cereali nell’italia dei comuni nel XIII e XIV secolo: alcune questioni preliminari”. Mélanges de l’Ecole française
de Rome. Moyen Âge 127 (2015). Available in http://journals.openedition.org/mefrm/2473; DE FRANCESCO,
Daniela – Il Papato e l’approvvigionamento idrico e alimentare di Roma tra la tarda antichità e l’alto medioevo,
Roma: Quasar, 2018.
PROVISION IN MEDIEVAL ROME: ABOUT BUILDING ACTIVITIES
297
stress that there have been very few reflections on the production of building material
and the effects of this production on the economic, political and social dynamics tied
to the provision of raw materials to meet the needs of an urban community. The
present paper offers therefore some reflections on this aspect of the city of Rome,
object in the last years of extensive investigations in vertical archaeology and the
archaeology of production. By highlighting certain features of building activities
and looking at archaeological data related to building activities, I will suggest their
potential as socioeconomic markers in studying the history of the city. An important
role for these considerations is played by the architecture and therefore the urban
setting. The former constitutes an important marker of economic development,
being the result of a series of production processes but also of an investment. About
the latter – the urban setting – buildings often become a relevant point of urban
reference – think for instance of churches, palaces and houses of rulers – and this
urban setting is also frequently the result of projects modifying and redesigning the
city. In addition, by considering under a topographic point of view the places of
building activity, these show relevant patterns in the urban development and in the
choices made during the growth of the city. One more extremely interesting factor
consists in all the information found on buildings “in negative”, if one may say so, that
is all the organized or not activities of demolition and recycling of building material,
characterizing several parts of the city between the fifth and fifteenth centuries, that
must necessarily be connected to the systematic reuse of ancient building material
and can be actually seen in all the techniques adopted in Rome in the chronological
period considered3.
Introduction.
In the debate on the opposition between parasite and productive cities, it is known
3
For Roman building techniques reusing ancient building material there is a wide bibliography
available and only some major studies will be referenced: AVAGNINA, Maria Elisa; GARIBALDI, Vittoria;
SALTERINI, Claudia – “Le strutture murarie degli edifici religiosi di Roma nel XII secolo”. Rivista dell’istituto
Nazionale d’Archeologia e Storia dell’arte 23/24 (1976), pp. 173-255; BARCLAY LLOYD, joan – “Masonry
Techniques in Medieval Rome, c.1080-c.1300”. PBSR LIII (1985), pp. 225-277; ESPOSITO, Daniela – Tecniche
costruttive murarie medievali. Murature a Tufelli in area romana. Roma: L’Erma di Bretschneider, 1997;
CECCHELLI, Margherita – Materiali e tecniche dell’edilizia paleocristiana a Roma. Roma: De Luca Editori
d’Arte, 2001; MENEGHINI, Roberto; SANTANGELI VALENZANI, Riccardo – Roma nell’alto medioevo.
Topografia e urbanistica della città dal V al X secolo. Roma: Istituto Poligrafico e Zecca dello Stato, 2004;
BARELLI, Lia et alii (eds.) – “Lettura storico-critica di una muratura altomedievale: l’opus quadratum a Roma
nei secoli VIII e IX”. In FIORANI, Donatella; ESPOSITO, Daniela – Tecniche costruttive e dell’edilizia storica.
Conoscere per conservare. Roma: Viella, 2005, pp. 59-77.
298
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
that Rome has been used for long as an example of a parasite city4. This vision has
been completely overturned for the Middle Ages after the “extraordinary research
conducted also thanks to a systematic collection of data5” in Archeologia della
produzione a Roma (secoli V-XV)6. Without going too much into details that are
available in specific bibliography7,this analysis allowed for the first time to include
Rome within that complex debate on the archaeology of production activities and
the different aspects of research that are connected to it. In order to obtain this goal, a
thorough survey was conducted on all old and new archaeological data, often rich of
information on production activities. This type of data had never been read under the
point of view of a city system. The systematic collection of all this data was therefore
started throughout bibliographic research and the consequent classification of all
data found. The information was then inserted into the database and in a GIS system
of the city of Rome and its closest suburban area, containing about 600 markers of
production activities. This survey has allowed then, as it will be seen through this
paper, and still allows to analyze phenomena of production activities with better
accuracy, to quantify them in the long-term and to study them in their context. The
opportunity to also look at the topographic connotation, both in the short and long
term, allows to consider the complexity, distribution and quantity of the different
phenomena, all within the growing and development dynamics of the city between
fifth and fifteenth centuries8.
4
The bibliography on these aspects of ancient economy is quite extensive, for example see FINLEY,
Moses Israel – “The ancient city: From Fustel de Coulanges to Max Weber and Beyond”. In Comparative
Studies in Society and History 19,3 (1977), pp. 305-327; SOMBART, Werner – Der moderne Kapitalismus.
Historisch – systematische Darstellung des gesateuropaischen Wirtschafslebens von seinen Anfangen bis zue
Gegenwart. Munich: Duncker & Humblot, 1916; WEBER, Max – Economia e Società. La città. In L’economia,
gli ordinamenti e i poteri sociali. Tubingen: Donzelli, 2003; TOYNBEE, Arnold – La città aggressiva. Roma,
1972; Leveau, Philippe – La ville antique, “ville de consommation”? Parasitisme social et economie antique.
Etudes rurale, LXXXIX-XCI, pp. 275-283; GOUDINEAU, Christian – “Les villes de la paix romaine”. In
DUBY, Georges – Historie de la France urbaine, t.1. Paris: Seuil, 1980, pp. 365-381; PETRILLO, Agostino –
Max Weber e la sociologia della città. Milano: Franco Angeli, 2011.
5
Volpe, Giuliano – “La città che produce: alcuni spunti di riflessione”. In CAMINNECI, Valentina;
PARELLO, Maria Concetta; RIZZO, Maria Serena – La città che produce. Archeologia della produzione negli
Spazi Urbani, Atti delle Giornate Gregoriane, X edizione (10-16 dicembre 2016). Bari: Edipuglia, p. 7.
6
MOLINARI, Alessandra; SANTANGELI VALENZANI, Riccardo; SPERA, Lucrezia – L’archeologia
della produzione a Roma (secoli V-XV). Atti del Convegno Internazionale di Studi. Roma 27-29 Marzo 2014.
Roma: École Française de Rome, 2015.
7
On the project structure see SPERA, Lucrezia; PALOMBI, Cinzia – “La banca dati e il Gis degli
indicatori di produzione. Note topografiche e prime riflessioni di sintesi”. In MOLINARI, Alessandra;
SANTANGELI VALENZANI, Riccardo; SPERA, Lucrezia – L’archeologia della produzione a Roma…, pp.
9-72; GIANNINI, Nicoletta – Il Gis e le Attività produttive a Roma in età medievale. Una questione di metodo
tra tendenze e fatti. In MOLINARI, Alessandra; SANTANGELI VALENZANI, Riccardo; SPERA, Lucrezia –
L’archeologia della produzione a Roma…, pp.73-95.
8
The choice of analyzing on the long term the economy of Rome throughout its production activities
allowed to better identify the phases of change and the transitions, the importance of social and institutional
transformations for the evolution of economy itself. After all, the final goal of the research was the historical
long-term reconstruction of the production processes of the city and of its miles IV-V suburbs, in order to
better understand the interactions between urban and suburban areas.
PROVISION IN MEDIEVAL ROME: ABOUT BUILDING ACTIVITIES
299
The availability of such an amount of data on production activities for an urban
context as Rome also allows to read them in relation to the urban development.
Looking at the information on building activities in the time range between the fifth
and the fifteenth centuries not only gives the opportunity to study the “geography
of production”, but also the growing and development phases of the city, especially
because about 50% of the information contained in the database regards markers of
building activities (Fig. 1). This evidence ranges from the identification of quarry
sites, to spoliation pits for the recovery and reuse of building materials, to lime
kilns, to heaps of materials always tied to calcination activities, to evidence on site
connected to larger or smaller worksite activities of both building and dismantling;
all extremely interesting data in detail, even more if we try to interpret them in a
diachronic way or in relation of what has survived of Roman medieval buildings.
If on one hand it is interesting to trace a diachronic summary highlighting how
the building data available defined significantly some important growth goals for the
city – a topic already discussed in previous available studies9 –, on the other hand it
is just as interesting to pay attention and reflect again on some aspects of building
activity particularly tied to provision, where reuse plays a relevant role.
To reuse and recycle.
Rome is a city that was characterized for the entire medieval period by continuous
architectural reuse, intending not only the use of spolia in the construction of
buildings, but also as an integral part of all building manners from Late Antiquity
to the Middle Ages10. In all identifiable building techniques, it is possible in fact to
recognize the continuous seek for the reuse of ancient building material: bricks,
blocks, columns, beams and also the production of lime, an actual recycling activity
of building materials with a chemical-physical transformation of raw materials. This
is an extremely interesting feature since the recycling processes require high technical
expertise not only for the production of new material (creation of fixed installations,
competences on combustibles and the different phases of the production cycle)11, but
also for the ways to salvage material, often systematic, through actual dismantling
worksites. One can easily understand how these sites constitute real treasures of
information on provision activities. In many cases the salvage of building materials
9
GIANNINI, Nicoletta – “Building in medieval Rome. New information on brick building techniques
in Rome between the 8th and 15th centuries”. Rodis, Journal of Medieval and Post Medieval Archaeology (2019),
b.p.
10
See for example among the large bibliography the work by BERNARD, Jean-François, et alii (eds.) – Il
reimpiego in architettura: recupero, trasformazione, uso. Roma: École Française de Rome, 2008.
11
On the distinction between reuse and recycling see MUNRO, Beth – “Recycling, demand for
materials and landownership at villas in Italy and the western provinces in Late Antiquity”. Journal of Roman
Archaeology 25, 1 (2012), pp. 351-370.
300
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
should be seen in relation to the installation of actual systematic dismantling sites,
often characterized by a certain degree of technology12. Think for instance of the
worksite for the salvage of bricks from the Caracalla baths, or the one for the
dismantling of the Mausoleum of Marco Nonio Macrino, where even a system for the
lifting of blocks was found13. Both cases underline a certain degree of organization
and expertise in construction site activities, bringing us to a reflection on the type of
control and management that authorities could have on this kind of activities.
Many of the archaeological markers collected in Rome14 indicate how it is
possible to recognize an always greater and more documented reuse of material,
tied in many cases to reworking activities. This increase is obviously connected to
the abandonment of many buildings and to the considerable changes of use that
modified the urban setting and that often prove their conversion into small or
medium size worksites. The changes in use often document the reuse of especially
public buildings. On one side this highlights a certain privatization of public areas,
on the other side they recall since Late Antiquity the presence of a patron with a
promotional function and controlling activities. One other element that emerged was
the fact that sporadic structures are sided by actual dismantling worksites, implying a
considerable organization and programming of the same worksites.
A large part of data is in fact related to the recycling of the main building
materials, as seen from the several tracks of dismantling and recover both in the
urban and suburban contexts. These activities are perfectly in line with what was
found both in secular and religious buildings, where the systematic reuse of selected
or not building material occurs during the entire time period considered (5th-15th
centuries)15. So if on the one hand buildings show the presence of reused material,
on the other many archaeological markers document dismantling and demolition
activities which allowed the reuse of building materials. The preserved buildings
show a systematic reuse operated in many cases by an expert workforce. Looking
for example at the brick sections dating between the 11th and 13th centuries, they
all underline in different ways a good building ability and choice of materials that
cannot possibly correspond to a sporadic and occasional salvage, but rather to a
dismantling organization that should not be underestimated. This is especially
SANTANGELI VALENZANI, Riccardo – “Calcare ed Altre Tracce di Cantiere, cave e smontaggi
sistematici degli Edifici Antichi”. In MOLINARI, Alessandra; SANTANGELI VALENZANI, Riccardo;
SPERA, Lucrezia – L’Archeologia della produzione a Roma…, pp. 335-344.
13
SANTANGELI VALENZANI, Riccardo, Calcare ed Altre Tracce di Cantiere…, pp. 335-344; Rossi,
Daniela – Sulla via Flaminia. Il mausoleo di Marco Nonio Macrino. Milano: Mondadori Electa, 2012.
14
See the summary pictures in GIANNINI, Nicoletta – “L’edilizia di Roma medievale. Nuove
acquisizioni sui modi di costruire in laterizio a roma tra VIII e XIII secolo”. In Laterizio III, Terzo Convegno
internazionale. Roma, 6-8 Marzo 2019, in c.s.
15
MENEGHINI, Roberto; SANTANGELI VALENZANI, Riccardo – Roma nell’alto medioevo.
Topografia e urbanistica della città dal V al X secolo. Roma: Ist. Poligrafico E Zecca Dello Stato, 2004;
ESPOSITO, Daniela – Tecniche costruttive murarie medievali…, pp. 121-134.
12
PROVISION IN MEDIEVAL ROME: ABOUT BUILDING ACTIVITIES
301
evident when examining the walls of religious buildings, an important cross section
of the provision of raw materials and in a certain way of their quality16.
An important amount of information, as previously mentioned, comes from
all the markers tied to the production of lime. The information in the database17
highlights how the majority of structures is concentrated in that monumental area
of ancient Rome, underlining the close relationship between their presence and the
consequent presence of material to calcinate18. If the impact of these activities on the
conservation of ancient monuments was certainly remarkable, impressive was also
their economic cost; in addition, especially the greatest dismantling, such as the one
of the pavement of the Forum of Caesar removed in a single phase during the half
of the eighth century, one can suggest an intervention tied to precise and important
building operations, connected to a high level patronage (papal or of the ruling
classes), since they took place in areas that were at least to that moment public. The
situation in the following centuries appears different, because some data suggests a
change in the managing of monuments, since the spoliation practice still documented
seems to be more tied to private patrons than the past, in part in connection to the
privatization of public areas in many sections of the city since the ninth century19.
Later in time the restart of spoliation activities on a large scale between the thirteenth
and fifteenth centuries, think of the dismantling of part of the cavea of the Flavian
amphitheater or of the dismantling of almost all of the border walls of the imperial
forums, underlines how also in this case we can see vast operations, requiring a large
technical commitment, specialized skills, a complex worksite organization, but also
important investments, an aspect that once again recalls aristocratic or religious
16
For an examination of brick curtains see GIANNINI, Nicoletta – L’edilizia di Roma medievale…, in
press.
This is the data collected for the database created for the project Archeologia della Produzione
contained in the CD attached to the published conference proceedings. On the analysis of this data and
their topographic distribution see also SPERA, Lucrezia; PALOMBI, Cinzia – La banca dati e il Gis degli
indicatori di produzione …, pp. 9-72; for the analysis of building markers see SANTANGELI VALENZANI,
Riccardo – Calcare ed Altre Tracce di Cantiere…, pp. 335-344; GIANNINI, Nicoletta – Il Gis e le Attività
produttive a Roma in età medievale…,pp. 73-95; GIANNINI, Nicoletta – Building in medieval Rome…,b.p.
For some general reflections in relation to the social and economic history see MOLINARI, Alessandra –
“La produzione artigianale a Roma tra V e XV secolo. Riflessioni sui risultati di uno studio archeologico
sistematico e comparativo”. In MOLINARI Alessandra; SANTANGELI VALENZANI, Riccardo; SPERA
Lucrezia – L’archeologia della produzione a Roma…, pp. 613-635; MOLINARI, Alessandra – “Topografia
della Produzione e organizzazione del lavoro artigianale: il caso di Roma V-XV secolo”. In CAMINNECI,
Valentina; PARELLO, Concetta Maria; RIZZO Maria Serena – La città che produce…, pp. 23- 34.
18
SANTANGELI VALENZANI, Riccardo – Calcare ed Altre Tracce di Cantiere…, p. 336.
19
As shown by the surveys in the area of the Imperial Forums, in many closeby public spaces orchards,
vines and houses were installed. Cf. MENEGHINI, Roberto; SANTANGELI VALENZANI, Riccardo – Roma
nell’alto medioevo. Topografia e urbanistica della città dal V al X secolo..., 2004. As already underlined by R.
Santangeli Valenzani, the houses made in these sections were completely built in reused material and it is hard
to hypothesize if they were granted to each owner to obtain the demolition of a monument, or part of it, to
recover building material out of it. It is instead more plausible that these demolitions would happen because of
the simple property right on the monuments or part of them, because they were inside the owned piece of land.
Cfr. SANTANGELI VALENZANI, Riccardo – Calcare ed Altre Tracce di Cantiere…,, p. 341.
17
302
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
patronage (Fig. 2).
If the archaeological markers found do not provide detailed information on
the forms of this reuse and on the person managing it, other interesting data can be
perhaps recovered from the study of the materials used in the medieval buildings
still visible across the city. The recording of the structures still existing and the
stratigraphic analysis of the facades still present allowed to focus on the relocation
of the ancient materials, analyzing in each case the numerous variables tied to the
complexity of the worksite and reasoning in particular for the reuse of building
materials on the level of selection and rework, the regularity of the structure, the
quality of the binding agent.
An evident example is in the opus quadratum technique called “carolingian”
made with reused blocks that were reworked and often reduced in size (Fig. 3). This
is a well-studied example, also considered by R. Santangeli Valenzani, which allows a
clear reflection on the kind of access allowed to these dismantling worksites, given the
kind of buildings where this technique is found; whoever had access could manage
the worksite and most of all display of amounts of money to invest in these sites.
In light of this, the important role played by the church cannot be underestimated,
which certainly acquired more managing and organizing independence between
Late Antiquity and the early medieval period for the provision of building material,
their manufacturing, the same management of worksites, the summoning of
specialized workforces20. It is possible to add to these activities also the management
of monuments in the city, which determined in a certain way the consolidation of
the pope’s political authority21. It is true that the typical masonry of the 8th and 9th
centuries suggest for their peculiarity the presence of a poorly specialized workforce,
even if it highlights an intense building activity requiring an organized provision of
materials. There are exceptions though proving not only a high level of expertise,
but also a certain ability in the selection of the materials to salvage. This happens
for instance in S. Salvatore de Marmorata, standing out from the Roman panorama
for its walls built in mixed masonry of blocks and reused bricks, preserved for the
height of more than 5 meters22 (Fig. 4). What appears of great interest is the building
technique adopted, characterized by a completely different concept of masonry.
In S. Salvatore de Marmorata the two building materials, blocks and reused
bricks, form a monolithic wall. The bricks are not used here to fill in spaces between
20
Think for instance of the mortar mixers in S. Paolo f.l.m. or of the one found close to Via Trionfale,
elements that suggest the use of specialized building workforces showing the same knowledge of techniques.
21
SANTANGELI VALENZANI, Riccardo – Calcare ed Altre Tracce di Cantiere…, p. 341.
22
DE MINICIS, Elisabetta – “Gli Spolia. Esempi di riutilizzo nelle tecniche costruttive (Roma e Lazio)”.
In Metodologia, insediamenti urbani e produzioni. Il contributo di Gabriella Maetzke e le attuali prospettive
delle ricerche, Convegno Internazionale di studi sull’archeologia medievale in memoria di G. Maetzke. Viterbo:
Università degli studi della Tuscia, 2008, pp. 57-74.
PROVISION IN MEDIEVAL ROME: ABOUT BUILDING ACTIVITIES
303
large blocks, but they alternate with the blocks themselves. The stone parts are in fact
aligned or staggered with lines of overlapping bricks. This allows to recreate every
time an even horizontal base guaranteeing a certain regularity in the wall texture.
All these elements put in light a certain confidence in the construction of walls in
large stone blocks for great heights, as also evident from the accurate laying of the
single elements. The workforces employed here show in addition familiarity with
the so called “chessboard techniques”, as recalled already by E. De Minicis in her
work, or with the techniques often indicated as “cloisonnage”23. This is a topic that is
still being studied and needs further in-depth analyses. It definitely appears to be a
building technique outside of the Roman tradition, bringing to the consideration of a
workforce that, besides showing a fair technical level, adopted non-local skills closer
to the Greek-Byzantine world.
For a long time this building remained a unique example in the Roman
panorama, but in light of recent discoveries, it showed different similarities with
some of the structures emerged during the excavation of the Orto dei Monaci di
San Paolo24. If this hypothesis will be verified in the future, it will be possible to
better define the chronology25 for S. Salvatore and to examine the presence of these
structures also under a technical and technological point of view.
The analysis of building techniques also underlined important chronological
trends thanks to their seriation, allowing to highlight the transition in the 12th century
towards a standardization of materials and material laying, more and more regular in
correspondence to the housing boom in the city between the 12th and 13th centuries.
It is from the transition between these same centuries and also during the entire 13th
century that buildings will no longer be characterized by architectural reuse of ancient
materials, except for a minimal part26, and will instead present the so called “tufelli”
technique, consisting in the laying of standard materials most likely preshaped in
the quarry. This change leads to tie economic considerations on the provision of raw
materials to other aspects such as the location of quarries, the transport of materials,
the management of the activities connected to this kind of production. The small
23
E. De Minicis suggests in her study an identification with the “chessboard” technique and the opus
africanum technique; the present study suggests instead a more fitting association to the cloisonnage.
24
SPERA, Lucrezia; ESPOSITO, Daniela; GIORGI, Elisabetta – “Costruire a Roma nel
Medioevo:evidenze di cantiere a S. Paolo f.i.m.” aarchit XVI (2011), pp. 19-33; SPERA, Lucrezia – “Il Papato e
Roma nell’VIII secolo. Rileggere la ‘svolta’ istituzionale attraverso la documentazione archeologica”. Rivista
di Archeologia cristiana 92 (2016), pp. 393-430; SPERA, Lucrezia – “Disiecta membra della porticus Sancti
Pauli”. Rendiconti della Pontificia Accademia Romana di Archeologia 89 (2016-2017), pp. 215-276.
25
The structures in the excavation site of S. Paolo f.l.m. Have been precisely dated to the pontificate of
pope Hadrian I.
26
When the “tufelli” technique appeared a decrease in the use of all the other building materials can be
noticed reused for the construction of curtains. Also the use of brick went down and it was actually possible
to identify a form of reuse in the 13th century implying the entire rework of bricks, cut and treated in the same
manner as the tufa blocks. Cfr. GIANNINI , Nicoletta – L’edilizia di Roma medievale…, in press.
304
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
block technique does not in fact replace gradually the masonry used until the previous
century. As already said, its peculiarity was the standardization of the stone building
material, corresponding to a more rational organization of labor in the worksite, as
visible also in other geographic contexts such as northern Lazio, northern France
and the kingdom of Naples. In Rome this technique spread inside the city and in the
area corresponding to the Roman Campagna. Its adoption, as already stressed by
others27, is in close connection to the evolution of worksites after the beginning of
chain-production of building materials, requiring a skilled workforce and also a more
defined hierarchy in the organization of work. The standardization also brought to
a control of costs, something to consider also for the transport of materials. Not by
chance the main tufa quarries are located close to the city or along the rivers Tiber
and Aniene, certainly used for transport on water, or along the main roads. All these
features should be considered in line with the sociopolitical dynamics of the city
between the 13th and beginning of the 15th centuries, the time period corresponding
to the appearance and use of this building technique.
In conclusion of these brief considerations, it is evident that there are still
many unanswered questions on medieval building activities in the city and that
archaeological data and stratigraphic analyses show a great informative potential for
the reconstruction of the history of the city.
The study in-depth of construction activities, as in this context, constitutes a
way to enrich the history of economy under different points of view, especially the
making of building materials, that offers a different perspective in the case of reuse
when looking at the historical-economic value of the entire working organization, as
suggested with the present paper. At the same time, examining the control of provision
and moreover the production of building materials in a city where production is
intended as the group of activities all tied to reuse and recycling (dismantling, rework,
calcination, etc.) is a fundamental part in the study of the organization of labor in
large worksites and in other certain cases, in order to reflect on commissioners and
contractors but also on water and road infrastructures. This is a research topic closely
connected to the study of building activities in two directions, both when looking
at all the activities for the creation of roads and bridges, canals for example, and
also when reflecting on the transport of materials, requiring necessarily an efficient
network in relation also to the weight and size of products. This is an important
discussion topic for a complete study on the provision tied to the tufelli technique
described previously. To understand its real informative role, just think of the model
construction of the Milan cathedral, impossible without the previous creation of the
Naviglio Grande. It was the presence of this fundamental water way that allowed
27
ESPOSITO, Daniela – Tecniche costruttive murarie medievali…, pp. 147-196.
PROVISION IN MEDIEVAL ROME: ABOUT BUILDING ACTIVITIES
305
in fact the transport with reasonable costs of the marbles necessary for the factory,
coming from the quarries of Candoglia on the Maggiore lake and 100 kilometers far
from Milan.
Fig. 1 – Markers of building activities. Above is the GIS location, below
is the chronological diagram (elaboration by N. Giannini).
306
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Fig. 2 – Details of the excavations in the Flavian amphiteatre. From the data collected for
the creation of the database published in Molinari, Santangeli Valenzani, Spera 2015.
Fig. 3 – Martino ai Monti, detail of the early medieval opus quadratum (after De Minicis 2008).
PROVISION IN MEDIEVAL ROME: ABOUT BUILDING ACTIVITIES
Fig. 4 – San Salvatore de Marmorata. (After N. Giannini, in press)
307
308
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Materiais para o Paço da Alcáçova:
A intervenção régia num Paço lisboeta
(1507-1513)
Diana Martins1
Resumo
O Paço régio da Alcáçova de Lisboa foi uma das principais habitações régias
medievais da cidade cabeça do reino. Tendo por base o caderno onde se
registam as despesas com obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre
1507-1513, quando se altera a estrutura e dinâmica do edifício, procuramos,
atendendo às informações que o documento nos fornece, demonstrar as
origens dos materiais que foram utilizados, e cuja proveniência é, antes de
mais, um testemunho da importância que as vias fluviais tinham para o acesso e
abastecimento da cidade de Lisboa. O presente estudo irá incidir nos resultados
de uma dissertação de mestrado, apoiada financeiramente pela bolsa de mérito
IEM/EGEAC.
Palavras-chave
Lisboa; Abastecimento; Obras régias; Paço da Alcáçova de Lisboa; Materiais de
construção.
1
Diana Martins é Doutoranda em Estudos Medievais na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
da Universidade Nova de Lisboa (NOVA FCSH) e Universidade Aberta (UAb). Durante o seu mestrado,
financeiramente apoiado pela bolsa de mérito IEM/EGEAC, dedicou-se ao estudo da história da construção e
da cidade de Lisboa. Foi bolseira de Investigação do projecto MEDCRAFTS: Crafts Regulation in Portugal in
the Late Middle Ages (14th-15th centuries) [PTDC/HAR-HIS/031427/2017]. IEM/ NOVA FCSH.
310
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Construction Supplies for the Historical Palace of Alcáçova:
Royal Intervention in a Lisbon Residence (1507-1513)
Abstract
The Royal Palace of Alcáçova in Lisbon was one of the main medieval royal
houses of the head of the kingdom. Based on a notebook where were written all
the expenses with construction works carried out in the Palace between the years
1507-1513, when the structure and dynamics of the building were modified, we
seek, in light of the information provided by the document, to demonstrate the
origins of the materials used, without neglecting the fact that their provenance
is, above all, a testimony of the importance of the waterways to supply the city
of Lisbon. The present study will focus on the results of a master’s dissertation
supported financially by the IEM / EGEAC Merit Scholarship.
Keywords
Lisbon; Provisions; Royal construction works; Royal Palace of Alcáçova;
Construction materials.
Introdução.
A cidade medieval de Lisboa, herdeira da tradição mediterrânica e islâmica, dispunha
de condições naturais ímpares, favoráveis à navegação e contactos comerciais. O
porto natural de que fruía, abrigado e de grande amplitude, fazia com que a cidade
vivesse numa estreita relação com o rio Tejo. Tal geografia facilitava os contactos
com o hinterland, rico de capacidade agrícola e de matérias-primas necessárias às
actividades artesanais da urbe. Viabilizava ainda uma ligação próxima com a margem
sul do rio Tejo, de onde provinham as madeiras de pinheiro e carvalho, cal e telhas.
Por outro lado, as condições de navegabilidade do Tejo facilitavam os contactos com
o estrangeiro, o que permitia suprir certas necessidades de materiais como madeiras,
chumbos, entre outras.2.
É atendendo a este panorama que, partindo do registo de despesas com obras
2
ANDRADE, Amélia Aguiar – “La dimensión urbana de un espacio atlántico: Lisboa”. In LADERO
QUESADA, Miguel Ángel (coord.) – Mercado inmobiliario y paisajes urbanos en el occidente europeo (siglos
XI-XV). Actas de la XXXIII Semana de Estudios Medievales, Estella, 17 a 21 de julio de 2006. Navarra: Gobierno
de Navarra, 2007, pp. 347-376.
MATERIAIS PAR A O PAÇO DA ALCÁÇOVA: A INTERVENÇÃO R ÉGIA NUM PAÇO LISBOETA
311
régias efectuadas durante o reinado de D. Manuel I (1495-1521), procuraremos
desenvolver e perceber como se processava o abastecimento de materiais para as
empreitadas régias e, por consequência, como se fazia o aprovisionamento de bens
na cidade de Lisboa nos finais da Idade Média.
1. Obras num Paço.
A praxis dos monarcas se deslocarem dentro do reino de Portugal ditou a necessidade
de se construírem e adaptarem espaços habitacionais com capacidade de acolher o rei
e o seu séquito. Inserido numa rede de paços régios que percorria todo o reino3, o Paço
da Alcáçova de Lisboa foi uma dessas residências régias. Habitado provavelmente
desde o reinado de D. Afonso III (1248-1279), manteve funções como paço régio
pelo menos até ao reinado de D. Manuel I, quando, a partir de 1507, o monarca dá
preferência ao Paço da Ribeira, que mandara construir na zona ribeirinha da cidade
como afirmação do seu poder marítimo.
Tendo servido de forma continuada de residência régia preferencial na
cidade, o Paço da Alcáçova foi alvo de intervenções periódicas com as quais se
procurava conservar o espaço e incrementar o luxo e comodidade dos aposentos. A
documentação e crónicas são um precioso testemunho dessas preocupações4. Para
o reinado de D. Manuel conseguimos identificar, pelo menos, quatro períodos de
intervenção distintos, nomeadamente entre 1499-1502, em 1504, entre 1507-1513
e por fim entre 1513-1520. As duas últimas intervenções tiveram lugar quando o
soberano já tinha passado a habitar na Ribeira de Lisboa, pelo que assumiam a
finalidade de adaptar e recuperar o edifício para albergar residentes que o Paço régio
da Ribeira não tinha capacidade de acomodar5.
Destas intervenções, as empreitadas de 1507-1513 são as mais bem
documentadas, em virtude de um códice manuscrito que se conservou no Arquivo
da Torre do Tombo, onde se fez o assento das despesas com obras realizadas no Paço
da Alcáçova, sob supervisão do almoxarife das obras Gonçalo Carvalho6. O registo,
materialmente da responsabilidade do escrivão das obras, João do Porto, dividese em três partes distintas: em primeiro lugar fez-se o assento da contratação dos
GOMES, Rita Costa – “Monarquias e território: residências reais portuguesas, séculos XIV a XVI”. In
SABATIER, Gerárd; GOMES, Rita Costa (coords.) – Lugares do poder. Lisboa: FCG/Acarte, 1998, pp. 84-105.
4
MARTINS, Diana – O Paço da Alcáçova de Lisboa: uma intervenção Manuelina. Vol. I. Lisboa:
Universidade Nova de Lisboa, 2017. Dissertação de Mestrado, pp. 30-37.
5
Partindo das conclusões de Nuno Senos, foi também demonstrado que o Paço da Alcáçova, a partir
do ano de 1507, servia de dependência complementar aos Paços ribeirinhos. Vide SENOS, Nuno – O Paço da
Ribeira: 1501-1581, Lisboa: Editorial Notícias, 2002, p. 82; MARTINS, Diana – O Paço da Alcáçova de Lisboa:
uma intervenção ... pp. 39-41.
6
Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da
Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513. Pode igualmente consultar-se a sua transcrição em: Diana MARTINS, O
Paço da Alcáçova de Lisboa: uma intervenção..., vol. II.
3
312
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
artífices7, seguido do registo das despesas materiais8 e, por fim, o fecho de contas e da
informação da distribuição das sobras por outras empreitadas9.
15%
4%
33%
Madeira
Telha e Tijolo
Ferramentas
Cal
Ferragens
31%
Pedra de Alvenaria
15%
2%
Gráfico A – Percentagem de gastos com materiais. Vide MARTINS, Diana – O Paço da Alcáçova
de Lisboa: uma intervenção manuelina, vol. 1, p. 124, Gráfico D.
Pelo que se pode observar no Gráfico A: Percentagem de gastos com materiais,
nestas obras houve um grande investimento em madeiras (33%) e cal (31%),
produtos de maior encargo financeiro, que serviram tanto para construção de novas
dependências, como a Casa das Estrebarias, como para manutenção e melhoramento
dos espaços já existentes10. Podemos ainda observar grandes aquisições de telha (15%)
e de pedra de alvenaria (15%), utilizados na preservação dos alicerces e melhoria do
isolamento do complexo edificado.
Além destas finalidades, pelo registo de obras observamos que alguns dos gastos
7
Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da
Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 7-39v.
8
Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da
Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 90-194.
9
Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da
Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl.194v-199v.
10
De modo a ter percepção da real envergadura da obra consulte-se: MARTINS, Diana – O Paço da
Alcáçova de Lisboa: uma intervenção..., vol. I, em especial o Anexo 4: Distribuição espacial das intervenções
realizadas no Paço da Alcáçova (1507-1513).
MATERIAIS PAR A O PAÇO DA ALCÁÇOVA: A INTERVENÇÃO R ÉGIA NUM PAÇO LISBOETA
313
operados resultavam da necessidade de desenvolver e construir ferramentas (2%)
que permitissem o trabalho dos artífices. Entre o registo observa-se, por exemplo,
a compra de materiais para fabricar andaimes (cordas de esparto e madeira11),
necessários na realização das paredes da Sala Grande da Estrebaria. Pelo livro de
despesas verifica-se igualmente que alguns destes materiais eram transformados na
obra, como se observa pela compra de um fogareiro e de carvão, usados no estaleiro
de obras para derreter, e posteriormente, transformar o chumbo12, ou ainda, pela
aquisição de utensílios para a transformação da cal, como cirandas13, potes de barro,
água, tinteiro e pincel, os quais permitiam a mistura e aplicação da cal na parede ou
outra zona que se pretendesse caiar14.
Sem embargo das informações serem, em certos casos, sumárias, este assento
de despesa confere-nos dados bastante interessantes relativamente à origem dos
materiais utilizados nestas obras régias e, consequentemente, importantes indicações
sobre a forma como se processava o abastecimento da cidade de Lisboa.
2. Formas de aquisição de materiais para a obra.
Quanto ao abastecimento propriamente dito, o documento permite-nos perceber
que existiram três formas de aquisição: a saber, comprados quando necessário,
resultantes de excedentes de outras obras em que não tinham sido aplicados, ou por
reaproveitamento.
Considerando a informação presente no livro de despesas, os materiais
eram preferencialmente comprados quando necessários nas obras, uma medida
que permitia um melhor controlo dos gastos operados. Porém, há excepções.
Contemplam-se compras sucessivas do mesmo material, que parecem justificar-se
pela oportunidade de aquisições a melhores preços, denotando não apenas uma
atenção aos gastos operados no decurso da obra, mas também uma preocupação a
longo prazo. Tal se observa em compras sucessivas de pontões de marca grande, a
que mais tarde aludiremos com maior detalhe15.
Uma outra situação, mais rara mas que também se regista no caderno, é a
utilização de excedentes de outras obras, contemporâneas destas. Esta atitude
permitia a redução dos gastos e dos desperdícios, rentabilizando as sobras de peças
11
Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da
Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl.92v e 183v.
12
Serviu para fabricar os gatos e grades de ferro para a Torre de São Pedro. MARTINS, Diana – O Paço
da Alcáçova de Lisboa: uma intervenção..., vol. I, p. 76.
13
A ciranda é uma peneira grossa usada para crivar areia destinada a entrar na composição da
argamassa.
14
Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da
Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl.182-184v.
15
MARTINS, Diana – O Paço da Alcáçova de Lisboa: uma intervenção..., vol. I, p. 59.
314
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
que tinham sido compradas para outras empreitadas régias. É o caso do excedente
de tabuado castanho16 e da cal terçada17, proveniente das obras da Casa da Pólvora18
(1505-1507), das quais apenas se preservou uma carta de quitação19.
Por fim, conserva-se ainda informação sobre a reciclagem de materiais em obra,
nomeadamente pelo reaproveitamento de matérias-primas resultantes da destruição
ou ruína de um edifício20. No documento contempla-se apenas um destes casos,
quando, em 1512, após o desabar de casas próximas da Costa do Castelo, a pedra de
alvenaria destas fora recolhida e reutilizada para a construção das mesmas casas21.
Pelos exemplos acima mencionados conseguimos perceber uma continuada
preocupação com os gastos, um aspecto evidenciado pelo levantamento que
inicialmente se fez de todo o material que se encontrava no armazém ao início da
obra, possivelmente sobras de empreitadas anteriormente realizadas no Paço e que
estavam disponíveis para ser utilizadas (como madeiras e azulejos)22. Apreendem-se
assim os cuidados de planeamento, gestão de materiais e de controlo de gastos que
estiveram subjacentes a esta empreitada régia.
3. Proveniência e abastecimento da cidade.
Diferenciados os vários tipos de aquisição, passamos a distinguir, quando possível,
a proveniência dos materiais, estabelecendo os que eram de produção local, os que
eram importados do termo ou de outras partes do reino e os que eram, possivelmente,
Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da
Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 90v.
17
Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da
Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 155v.
18
Tal como evidenciado por Hélder Carita e Paulo Pereira, durante o reinado de D. Manuel, pelo
crescimento da zona ribeirinha e a “progressiva terciarização” da cidade, tornou-se necessário que, a par
da construção de estruturas de apoio ao dinamismo económico e controlo financeiro, se erguessem outras
infra-estruturas de apoio, como a Casa da Pólvora, que pudessem dar resposta às preocupações de segurança
e proteção das embarcações que transportavam os bens comerciais. Vide CARITA, Hélder – “Da “Ribeira”
ao Terreiro do Paço: génese e formação de um modelo urbano”. In FARIA, Miguel Figueira de (coord.) –
Do Terreiro do Paço à Praça do Comércio: História de um espaço urbano. Lisboa: Universidade Autónoma
de Lisboa/ Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2012, pp. 13-32; cf. PEREIRA, Paulo – “Lisboa Manuelina:
Problemas de Conceito”. Revista de História da Arte 2 (2006), pp. 43-55.
19
Vide “Cartas de Quitação del Rei Dom Manuel”, Ed. Anselmo Braamcamp Freire, In Archivo
Histórico Portuguez V (1904-11), pp. 472-473, nº 572. Segundo Vieira da Silva, pouco se sabe sobre como era
originalmente esta dependência de produção da pólvora: “Apenas consta que alguns dos armazéns ou oficinas
eram abobadadas e outras cobertas com telhado ordinário”. SILVA, Augusto Vieira da – A cerca fernandina de
Lisboa. 2ª edição, vol. II, Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 1987, p. 93.
20
Esta situação era recorrente, como tem vindo a ser demonstrado pela historiografia internacional.
Vide BERNARDI, Philippe; ESPOSITO, Daniela – “For an History of Deconstruction”. In CARVAIS, Robert
(coord.) – Nuts and Bolts of Construction History. Culture, Technology and Society. Vol. II. Paris: Picard, 2012,
p. 454.
21
Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da
Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 116.
22
Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da
Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 90 e 191v.
16
MATERIAIS PAR A O PAÇO DA ALCÁÇOVA: A INTERVENÇÃO R ÉGIA NUM PAÇO LISBOETA
315
oriundos de outras geografias e chegavam a Lisboa pela navegação do Atlântico.
3.1 Produção local.
Embora certas matérias-primas tivessem que ser importadas do termo ou de fora do
reino, as actividades artesanais na cidade de Lisboa estavam bastante desenvolvidas,
como aliás nos dão conta as posturas municipais. Por meio destas é, por exemplo,
possível ter conhecimento de regulamentos, legislação e práticas do trabalho
artesanal, ao mesmo tempo que se obtém informações precisas sobre os locais onde
se realizavam essas actividades23. É o que acontece no caso da cal.
Através de uma postura de 1499 sabemos que existiam dois fornos de cal na
cidade de Lisboa, um junto da porta de Cata-que-Farás e outro junto da Porta da
Cruz24, sendo que era deste último que provinha a cal de pedra que foi empregue nas
obras do Paço.
Utilizadas para reboco e caiação de paredes de dependências de prestígio25, no
manuscrito aponta-se a aquisição de 4 cargas directamente ao caieiro, João Peres,
pelo custo de 100 reais cada26. Estas cargas eram posteriormente transportadas
para o Paço, com recurso a ribeirinhos (moços cuja função usual era efectuarem
transportes desde e para a Ribeira) que se encarregavam do seu transporte até ao
estaleiro27.
Antes de avançarmos importa perceber que os ribeirinhos assumiam um papel
bastante relevante no abastecimento da cidade. Eram um garante da distribuição
dos produtos que chegavam pela via marítima à Ribeira de Lisboa, ou que estavam
depositados nos armazéns ribeirinhos da cidade, até ao seu local de destino28. Além
disso, consoante a necessidade, também podiam assumir outras funções. Sabemos
que durante as obras realizadas no Paço da Alcáçova, entre 1507-1513, também
tinham acautelado o transporte terrestre de telha e tijolo do termo até ao estaleiro de
obras, como mencionaremos adiante, ou ainda para retirar, com o auxílio de bestas,
23
Este trabalho de levantamento exaustivo, bem como de estudo das práticas e técnicas vigentes no
reino durante a Idade Média, é um dos objectivos do projecto MEDCRAFTS: Crafts regulation in Portugal in
the Late Middle Ages (14th-15th centuries) [PTDC/HAR-HIS/031427/2017].
24
Livro das Posturas Antigas. Ed. Maria Teresa Campos Rodrigues, Lisboa: Câmara Municipal de
Lisboa, 1974, p. 233.
25
Regista-se a utilização para caiar as paredes da capela, provavelmente a de São Miguel e os Aposentos
da Excelente Senhora, localizados no Castelo de S. Jorge. MARTINS, Diana – O Paço da Alcáçova de Lisboa:
uma intervenção..., vol. I, p. 71.
26
O registo desta compra data de 25 de agosto de 1511. Vide Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n.
580 - Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 185.
27
Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da
Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl.185.
28
Ao longo do presente artigo, e recorrendo a diversos exemplos, ficaram demonstradas várias
situações em que o seu papel se revelou determinante para o abastecimento da cidade e particularmente destas
empreitadas.
316
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
um monte de caliça do terreiro em frente às cozinhas do Paço29.
Um outro material de produção local eram as ferragens. Embora a matériaprima com que era produzido fosse, possivelmente, resultado da importação do
exterior30, a sua transformação e finalização era feita directamente pelos artífices
lisboetas nas suas respectivas oficinas. Os produtos importados também podiam
estar semiacabados, ou seja, em folha, como se observa em produtos originários da
Biscaia, Flandres e Inglaterra31. Isto justificava a variação de preçários que podia tanto
estar dependente da origem do material como do trabalho aplicado aos materiais
férreos.
No documento faz-se menção a uma grande diversidade de ferragens. A
informação disponível permite garantir a utilização de dois tipos: as ferragens de
segurança (como fechaduras, cadeados, chaves, armelas, aros, etc.) e as ferragens de
fixação, como os pregos.
No primeiro caso, registou-se a compra de sistemas de tranque (como cadeados,
aldrabas, ferrolhos com fechaduras e chaves) fornecidos tanto por ferreiros como por
serralheiros residentes na cidade, geralmente nas proximidades da zona ribeirinha,
como foi o caso do serralheiro Antão Fernandes, morador na Rua Nova d’el Rei, a
quem foram compradas chaves para a Torre do Tombo32.
Como acima assinalamos, os preços destas ferragens podiam variar consoante
os materiais, o trabalho e a origem dos mesmos. Assim se evidencia em duas compras
ao Mestre Garcia, um serralheiro, morador na Rua das Esteiras. A primeira delas
é respeitante a 4 ferrolhos pretos com fechaduras e chaves, com um valor de 100
reais por unidade33. A segunda é referente à compra de 4 ferrolhos com fechaduras e
chaves estanhadas, cujo valor unitário era de 125 reais34. Observa-se que os produtos
estanhados eram 25% mais caro do que as fechaduras sem esse revestimento, também
designado de folha da Flandres, que conferia maior resistência aos materiais férreos35.
Um outro grupo de ferragens corresponde às ferragens de fixação, de
entre as quais se destacam, claramente, os pregos. O registo em análise alude
Cf. MARTINS, Diana – O Paço da Alcáçova de Lisboa: uma intervenção..., vol. I, p. 54.
Segundo dados recolhidos por António dos Santos Pereira, só entre os anos de 1509 e 1514,
foram importadas 21 toneladas de ferro. Vide PEREIRA, António dos Santos – “A metalurgia em finais de
Quatrocentos e primórdios de quinhentos”. In Actas do Congresso Internacional Bartolomeu Dias e a sua
Época, Vol. III: Economia e Comércio Marítimo. Porto: Universidade do Porto, Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1989, pp. 231-239.
31
PEREIRA, António dos Santos – “A metalurgia em finais de Quatrocentos ...”, pp. 235-236.
32
Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da
Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 171.
33
Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da
Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 172.
34
Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da
Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 172v.
35
O revestimento em estanho poderá ser um revestimento com folha da Flandres. PEREIRA, António
dos Santos – “A metalurgia em finais de Quatrocentos ...”, pp. 236-237.
29
30
MATERIAIS PAR A O PAÇO DA ALCÁÇOVA: A INTERVENÇÃO R ÉGIA NUM PAÇO LISBOETA
317
também à utilização de três tipos distintos, a saber: os pregos contares36 (medidas
desconhecidas), os de telhado (118 mm de comprimento e 4,0 mm de espessura) e os
de galiota / galeota 37 (85 mm de comprimento e 3,5 mm de espessura)38.
Embora nesta empreitada se tenha utilizado um elevado número de pregos,
apenas dispomos do registo da compra dos pregos contares e de telhado, adquiridos
a Catarina Fernandes, moradora na sugestiva rua dos Pregos.
3.2. Importação do termo ou de outros territórios do reino.
O Tejo tinha um papel determinante no abastecimento da cidade de Lisboa, entre
outras razões por facilitar os contactos com o termo e com localidades mais interiores
do reino. Através deste era possível a comunicação fluvial com Vila Velha de Ródão
(localizada a 212 km da cidade) e inclusive chegar até Castela, passando por portos de
relevo como Santarém, Punhete/Constância e Abrantes. Além disso, através dos seus
afluentes, particularmente pelo rio Trancão (c. 29 km) era possível chegar a Mafra,
passando por localidades como Unhos e São João da Talha39. Estas características do
rio garantiam uma maior oferta de matérias-primas e materiais, permitindo obter
bens de melhor qualidade, com origens diversificadas e a preços mais aliciantes.
No documento esse parece ter sido um critério de grande importância para a
obtenção de alguns destes materiais de construção que chegaram ao estaleiro de obra
aproveitando, na sua maioria, a rede fluvial.
Era o caso da pedra de alvenaria, ou pedra sem facetamento, que era utilizada
na construção de vãos, escadas e paredes, como as da Sala Grande das Estrebarias40.
Extremamente rico em informação relativamente a este ponto, no caderno de
despesas foi efectuado um registo detalhado da proveniência e transporte deste
material até ao estaleiro de obras do paço.
A pedra de alvenaria utilizada no Paço, como se pode observar pelo Mapa
1: Origem da Pedra de Alvenaria, era proveniente de Almada41 (140 reais a
36
Eram utilizados para a fixação de traves e vigas, mas poderiam ter outras finalidades que não
conseguimos aflorar. Vide MARTINS, Diana – O Paço da Alcáçova de Lisboa: uma intervenção..., vol. I, p. 75.
37
Serviam para a fixação do soalho.
38
FIGUEIRA, Luís Manuel Mota dos Santos – Técnicas de construção na arquitectura manuelina. Vol.
II. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2001, pp. 500-501.
39
MARQUES, A. H de Oliveira – “A circulação e distribuição de produtos”. In SERRÃO, Joel;
MARQUES, A. H de Oliveira, Nova História de Portugal. Vol. IV. Portugal na crise dos séculos XIV e XV.
Coord. A. H de Oliveira Marques. Lisboa: Presença, 1987, pp. 128-130.
40
Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da
Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 150v.
41
A margem sul do Tejo, nomeadamente as zonas de Almada e da Caparica, respondiam às necessidades
de materiais pétreos em Lisboa. Vide CONDE, Manuel Silvio Alves – “Sobre a casa urbana do Centro e Sul
de Portugal nos fins da Idade Média”. In CONDE, Manuel Sílvio – Horizontes do Portugal Medieval: Estudos
Históricos. Cascais: Patrimónia, 1999, p. 283. A sua importância para obras de vulto na cidade já se registara no
século XIV quando tiveram lugar as obras no claustro da Sé. Vide OLIVEIRA, José Augusto – “Um Estaleiro
318
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
barcada42), dos Olivais (70 reais a barcada), de Unhos (65 reais por barcada) e de
Vale dos Cavalinhos, em Santarém (140 reais cada barcada)43. Através da informação
apresentada no documento é possível identificar os vendedores da pedra em cada
uma das localidades. Assim, o barqueiro Pedro Negro, vendera a pedra originária
de Almada, o cabouqueiro João Gonçalves, morador abaixo de Santa Maria da
Graça (Santarém), a proveniente Vale dos Cavalinhos, o cabouqueiro Diogo Afonso,
morador em Santa Maria dos Olivais, a pedra originária da localidade com o mesmo
nome e, por fim, o pedreiro Lanzarote Dias, morador em Unhos, comerciara a pedra,
provavelmente da sua pedreira44.
Mapa 1 – Origem da Pedra de Alvenaria. MARTINS, Diana – O Paço da Alcáçova de Lisboa: uma
intervenção manuelina, vol. 1, Anexo 5: Origens da pedra de alvenaria.
Medieval: As Obras no Claustro da Sé de Lisboa”. In FONTES, João Luís Inglês; OLIVEIRA, Luís Filipe;
TENTE, Catarina; FARELO, Mário (eds.) Lisboa Medieval: Gentes, Espaços e Poderes. Lisboa: IEM, 2016, pp.
181-183.
42
Segundo Joaquim de Santa Rosa de Viterbo, a barcada ou barcadiga correspondia à “carga que huma
barca póde levar de huma vez”. Vide VITERBO, Joaquim de Santa Rosa de, ELUCIDÁRIO das palavras: termos
e frases que em Portugal antigamente se usaram e que hoje regularmente se ignoram. Obra indispensável para
entender sem erro os documentos mais raros e preciosos que entre nós se conservam. vol. I (A-F). Lisboa: Officina
de Simão Thaddeo Ferreira, 1798, p. 180.
43
Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da
Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 138-140.
44
Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da
Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 138-140.
MATERIAIS PAR A O PAÇO DA ALCÁÇOVA: A INTERVENÇÃO R ÉGIA NUM PAÇO LISBOETA
319
Neste caso específico, o transporte dos materiais para as obras do Paço
obedeceu sempre a uma mesma lógica, ou seja, o aproveitamento das redes fluviais
de comunicação, sendo a maior parte do transporte feito por água e o restante por
terra. Assim se garantia um transporte mais rápido e menos dispendioso.
Sabemos que a pedra de Almada (80 barcadas) foi transportada por Pedro
Negro, barqueiro e morador nessa vila, até à Ribeira de Lisboa, pelo custo de 11.200
reais, incluindo o preço do material e transporte. Deste valor, segundo o estipulado
no foral de Lisboa datado de 1500, 60 reais correspondiam ao custo do transporte de
cada barcada, neste caso correspondente a um total de 4.800 reais45.
Por sua vez, o material proveniente do Vale dos Cavalinhos, em Santarém,
correspondente a 29 barcadas, parece ter seguido o curso do rio Tejo até à Ribeira, pelo
custo total de 80 reais, ou seja, de 2,75 reais por barcada. Era um valor anomalamente
baixo em relação ao que era aplicado à restante pedra de alvenaria, como acontecia
no caso da originária de Santa Maria dos Olivais (10 barcadas), levada do porto de
Beirolas (Moscavide) até à Ribeira pelo barqueiro Antão Gomes, morador no Tojal,
por 600 reais (60 reais por barcada).
Por fim, o transporte da pedra de alvenaria originária de Unhos, no termo de
Lisboa, actualmente em Loures, foi assegurado pelo pedreiro Lanzarote Dias que
a levou até à margem do rio de Sacavém, provavelmente através do rio Trancão.
Daí, mais uma vez, seguindo o curso do Tejo foi levada até à Ribeira de Lisboa pelo
barqueiro Antão Gomes, morador no Tojal, pela tarifa de 60 reais por barcada.
O mesmo tipo de percurso parece ter seguido a cal de pedra lioz. Utilizada
como argamassa para as pedras e tijolos, assim como para fazer reboco, caiar
paredes46 e produzir bons acabamentos, era um material que estava sujeito a uma
estrita regulação de modo a garantir a qualidade do produto47. Contrariamente à cal
em pedra, que acima mencionamos, a cal de pedra lioz utilizada nestas empreitadas
provinha do termo da cidade, num aproveitamento das jazidas de calcário existentes
em Alcântara, local de origem da cal de pedra lioz comprada a Afonso Lopes, caieiro,
morador no Casal da Junqueira, então freguesia de Santo António, e posteriormente
45
Foral Manuelino de Lisboa: estudos, edição fac-similada, transcrição, Ed. Inês Morais Viegas, Lisboa,
Câmara Municipal de Lisboa, 2000, pp. 165-166.
46
Nas empreitadas realizadas na preparação dos aposentos de D. Joana, a Beltraneja, a cal de pedra lioz
serviu tanto para guarnecer paredes, telhados, como de argamassa para a colocação de portais, janelas ou de
ladrilho. Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da
Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 168.
47
Conservaram-se duas posturas municipais de Lisboa (1468 e 1499) que regulam sobre a sua produção.
Livro das Posturas Antigas ..., pp. 40-41 e 232-233; CONDE, Manuel Sílvio – “Sobre a casa urbana do Centro
..., p. 287. O preparado correspondia normalmente a uma parte de cal para duas ou três de areia. Existiam
duas variantes de cal: uma usada nos limites exteriores dos paramentos para “maior solidez e prestígio de
construção” e uma outra, mais comum, chamada formigão, utilizada em tapumes de madeira “de uma massa
de terra áspera e pedra traçada com cal.” FIGUEIRA, Luís Manuel Mota dos Santos – Aspectos tecnológicos
da decoração da arquitectura manuelina. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1994. Tese
de Mestrado, p.104.
320
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
ao pedreiro João Dias, morador à Ponte de Alcântara48.
A primeira compra, num total de 150 moios de cal, teve um custo de 130 reais por
moio, e foi “posta no embarcadeyro”, nesta caso, na barca de João da Erva, barqueiro.
Este, por sua vez, transportou os moios do Porto da Sodorninha (não identificado)
até à Ribeira de Lisboa pela tarifa de 20 reais por moio. A segunda aquisição,
correspondente a 200 moios de cal de pedra lioz, originária da Ponte de Alcântara,
teve um custo de 130 reais por moio, tendo sido adquirida à boca do forno, como
expresso no documento49. O seu transporte foi posteriormente efectuado na barca
de Pedro Afonso, aí morador, o qual cobrou 20 reais por cada moio transportado50.
Também relativamente ao abastecimento de telha o documento confere
informações bastante detalhadas. Produzida no termo de Lisboa, veja-se Mapa
2: Origens da telha e tijolo, a telha utilizada provinha de Santo Antão do Tojal,
onde se localizavam os fornos do telheiro Diogo Luís (onde também foi produzido
tijolo de portal), de São Jordão (Arroios), onde se situava o forno de Francisco do
Couto, de São João da Talha, localização do forno de António Rego e, por fim, o
forno de Gonçalo do Vale, sito em Alhandra51. Cada telha tinha um valor fixo de
aproximadamente 0,70 reais a peça (700 reais o milheiro).
Mapa 2 – Origens da telha e tijolo. MARTINS, Diana – O Paço da Alcáçova de Lisboa:
uma intervenção manuelina, vol. 1, Anexo 7: Origens da telha e tijolo.
48
Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da
Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 154 e 155.
49
Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da
Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 155.
50
Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da
Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 155.
51
Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da
Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 122-123.
MATERIAIS PAR A O PAÇO DA ALCÁÇOVA: A INTERVENÇÃO R ÉGIA NUM PAÇO LISBOETA
321
Relativamente aos processos de transporte deste material, tal como nos casos
anteriores analisados, o documento confere informações detalhadas sobre o itinerário
seguido até ao estaleiro de obra.
Sabemos que foi seguida tanto a via terrestre, como a fluvial. O primeiro caso
contemplou o transporte das telhas originárias de Santo Antão do Tojal e do Areeiro,
ou seja, provenientes de pontos mais interiores do território, mais afastados de zonas
portuárias, que implicavam um aumento dos custos e tempos necessários para que
fossem transportados até os ditos portos e posteriormente levados para Lisboa. O
documento não apresenta qualquer razão que justifique a opção de compra a estes
telheiros em específico. Contudo, podemos propor que, por se tratarem de obras
régias, esta opção podia ser explanada pela qualidade do material adquirido52.
Como tal, para o carrego da telha e do tijolo de portal oriundos do forno de
Diogo Luís, em Santo Antão do Tojal, foram contratados dois ribeirinhos, João
Sardinha e Fernão Lourenço, para fazerem o transporte do local de produção até às
obras53. A falta de indicação sobre a contratação de um barqueiro sustenta a ideia de
que o transporte terá sido feito por terra, por estes ribeirinhos, auxiliados por bestas.
Por tal trabalho cada um recebeu um total de 600 reais54.
Já a telha que provinha do forno de Francisco do Couto, em São Jordão, foi
levada às custas do oleiro até ao chafariz de Arroios, a partir de onde o ribeirinho
Pedro Fernandes foi contratado para a transportar até às obras do Paço. Recebeu
pelo trabalho um total de 240 reais. Neste caso, o transporte de cada uma das telhas
custava cerca de 0,12 reais, ou seja, 120 reais por milheiro, totais muito diferentes dos
previamente indicados como tendo sido os recebidos por cada um dos ribeirinhos
que tinham transportado a telha do Tojal55.
No transporte da telha originária de São João da Talha (10 milheiros) e de
Alhandra (total de 9 milheiros), que fora levada às custas dos telheiros até à Ribeira de
Lisboa, ou seja, para o cais da Pedra, utilizou-se a via fluvial56. Nestas circunstâncias,
os ribeirinhos encarregaram-se apenas do transporte da Ribeira até ao estaleiro de
obras do Paço.
52
Uma vez que a telha era vendida ao preço fixo de 0,70 reais por telha e 700 reais por milheiro, o preço
não pode servir de justificativo.
53
Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da
Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 122.
54
Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da
Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 122.
55
Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da
Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 122v.
56
Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da
Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 123-123v.
322
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
3.3 Materiais possivelmente comprados fora do reino (?)
Por fim, importa referir matérias cuja proveniência não é claramente identificada,
mas que podiam tanto ser produção local ou do termo como produto de importação.
É o caso dos materiais lenhosos empregues nas obras do Paço. Embora tenhamos
informações bastante relevantes sobre os vários tipos de madeiras utilizadas e
disponhamos de um cuidadoso registo das aquisições, gastos e distribuição das
sobras destes materiais no decurso da obra, não nos são fornecidas informações
concretas sobre a sua origem.
Lisboa não contava com elevadas quantidades de recursos autóctones
deste material. Embora no termo da cidade e na margem sul do Tejo se pudesse
adquirir madeira de pinheiro57 e castanheiro, esta era insuficiente para colmatar
as necessidades de madeira na cidade, uma situação que tenderia a agravar-se em
finais do século XV, pelo incremento da construção naval e civil58. Assim, desde
cedo se regulamentou o fornecimento de material arbóreo, assegurado pelo mercado
externo, nomeadamente pelo Norte da Europa59.
A madeira devia ser descarregada em determinados locais, conforme explicitava
o Regimento do Paço da Madeira. Nesta medida, os navios estrangeiros só podiam
descarregar no espaço entre a porta do Paço da Madeira e a Porta do Mar ou diante
do Açougue até à Porta do Ferro, junto ao Armazém do reino60.
Conforme se pode observar pelo Quadro 1: Madeiras adquiridas e
sobras, embora não tenhamos conhecimento da origem precisa destes materiais,
comprovamos que foram por diversas vezes adquiridas a mercadores que operavam
na cidade, particularmente na Ribeira. Estes eram tanto de origem portuguesa como
galega, sendo de destacar as diversas aquisições feitas a mercadores como Lanzarote
do Lago, que comerciava junto da Porta do Mar, e a Lopo Morillo, também instalado
na Ribeira, ambos de origem galega, ou aos portugueses Gonçalo Mendes e Pedro
Gonçalves que vendiam nas proximidades do Armazém do Reino, ou seja, junto dos
locais onde se fazia a descarga destes materiais lenhosos.
Daí eram transportadas até ao Paço com recurso aos ribeirinhos, a que acima
aludimos, ou a negros de mariola, isto é, escravos que ganhavam a vida como
estivadores, mas que ocasionalmente faziam o transporte dos materiais para as obras.
57
Até finais do século XV havia uma hegemonia do pinheiro na zona sul do Tejo (Arrentela, Seixal,
Coina, Bugio e Cocena), sendo o grosso da produção absorvido por Lisboa. Vide OLIVEIRA, José Augusto
da Cunha Freitas de – “Exploração das matas nos finais do século XV: aspectos da desflorestação na Outra
Banda”, Media AEtas: Revista de Estudos Medievais 2ª série, 2 (2005-2006), p. 59.
58
Nos finais do século XV a documentação relatava o depauperar das matas a sul do Tejo, inclusive da
que estava sob alçada do rei e cujas madeiras eram usadas para a construção naval e empreitadas régias. Vide
OLIVEIRA, José Augusto da Cunha Freitas de – “Exploração das matas nos finais do século..., p. 62.
59
MARQUES, A. H. de Oliveira – Hansa e Portugal na Idade média, Lisboa: s.n., 1959, pp. 111-112.
60
TT, Chancelarias régias, Chancelaria de D. Fernando, lv. 2, fl. 77v.
323
MATERIAIS PAR A O PAÇO DA ALCÁÇOVA: A INTERVENÇÃO R ÉGIA NUM PAÇO LISBOETA
Quadro 1 – Madeiras adquiridas e sobras.
Madeira (tipo)
A
Unidades
Dimensão compradas
(metros)A entre 15071513
Mercador/es
Lopo Morilo (galego)
Sobras
(unids.)
Vigas
7,04 m
2B
Viga terçada
5,06 m
15
Lanzarote do Lago (galego), morador à
Porta do Mar
10
Pontões de
marca grande
6,6 m
132
Gonçalo Mendes (português) e Pedro
Gonçalves, moradores na Porta da Oura;
28
Pontões de
quatro em carro
5,06 m
88 C
Lanzarote do Lago (galego), morador à
Porta do Mar
122
Meios pontões
3,08 m
52 D
Lopo Morilo (galego) e Lanzarote do
Lago (galego), morador à Porta do Mar
0
Aguieiros
3,52 m
276
Álvaro Lopez (galego) e Lanzarote do
Lago (galego), morador à Porta do Mar
162
Tabuado de
pinho
2,2 m
E
Tabuado de
castanho
2,2 m
572
F
Bordos
Indeterminado
H
Couceiras
Indeterminado
84 G
Mastro
Indeterminado
I
0
-
108
Gerales (galego), Lanzarote do Lago
(galego), morador na Porta do Mar, Vasco
Peres (português?), Gil Pérez (galego) e
Lopo Morillo (galego)
306
Lopo Morilo (galego) e Lanzarote do
Lago (galego), morador à Porta do Mar
65
Tomamos como referências as dimensões sugeridas
por Manuel Silvio Conde. Vide CONDE, Manuel
Silvio – “Morfologia e materialidade da casa comum
urbana medieval: subsídios para o estudo das
tipologias, materiais e técnicas constructivas correntes
nas cidades portuguesas do Vale do Tejo, em finais
da Idade Média”. In SOLÓRZANO TELECHEA, José
Ángel; ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz (coords.)
– Construir la ciudad en la Edad Media: Encuentros
Internacionales del Medievo (6. 2009. Nájera). La Rioja:
Instituto de Estudios Riojanos, 2010, pp. 289-318.
B
Já se encontravam 13 vigas em armazém, as quais
foram adquiridas no início de 1507 e não estão
contempladas no livro de despesa.
C
Fora as aquisições, ao início da obra, segundo o
registo, já se encontravam 86 pontões de quatro em
carro armazenados.
D
Ao início da obra, segundo o registo, já se
encontravam outros 48 meios pontões em armazém.
-
E
1
No início do registo dos materiais pode verificarse que existiam 444 peças de tabuado de pinho
disponíveis, provavelmente sobras de empreitadas
anteriores.
F
Fora as compras utilizaram-se igualmente 228
unidades de tabuado castanho, sobras da empreitada
da Casa da Pólvora que terminara em 1507.
G
Ao início da obra já se encontravam 23 couceiras em
armazém.
H
De acordo com o registo 600 bordos eram sobras
que vieram das empreitadas na Casa da Mina e outros
tantos, em número indeterminado, foram resultantes
do corte do tabuado de castanho. Vide, Lisboa, Torre
do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 - Livro de despesas
nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa
entre 1507-1513, fl. 30v.
I
O mastro que se conservou em armazém fora
adquirido durante as empreitadas de 1504.
324
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
O preço do carreto variava conforme o peso, a distância e o tipo de mercadoria.
Embora, no geral, como acima observamos, fossem adquiridas consoante a sua
necessidade no decurso da obra, em certos casos a aquisição a preços mais apetecíveis,
ainda que pudesse gerar sobras/excedentes, justificava compras por atacado. É o caso
de duas aquisições de pontões de marca grande (6,60 m) efectuadas em Setembro de
1508, em que devido a um diferencial de 20 reais por cada peça foram compradas a
um segundo vendedor, dez dias depois, um maior número de peças61.
Pelos dados até agora apresentados, importa perceber que embora certas
madeiras chegassem à obra já trabalhadas para outras foi necessária a contratação de
serradores que, no estaleiro de obras, tratavam de afeiçoar as peças às necessidades
específicas62. Foi o caso da contratação dos serradores André Eanes e Lopo Fernandes
incumbidos de cortar certo tabuado de castanho em bordos, os quais posteriormente
serviram para elaborar portas63.
É curioso observar, pelo Quadro 1, que em muitos casos houve sobra de materiais
lenhosos. Contudo, embora estes não fossem utilizados durante este período de
intervenção, constatamos que serviam de reserva e matéria-prima para outras obras
régias em que fosse necessário um tipo específico de madeira. Neste sentido importa
mencionar a listagem que se faz, junto do fecho de contas, do encaminhamento das
sobras para outras obras que destas tivessem necessidade, como se pode observar
pelo Quadro 2: Destinatários das sobras de madeira.
Desta forma garantiam-se e rentabilizavam-se matérias-primas tão preciosas
e dispendiosas como a madeira, as quais eram, quando findas as obras, conduzidas
para outras empreitadas que à data estivessem em curso64.
Por fim, outro material utilizado nas obras mas do qual não conhecemos a
origem eram os azulejos65. Ainda que, durante muito tempo se tenha proposto que
61
Segundo o registo, no dia 6 de setembro de 1508, foram compradas 36 unidades ao mercador Gonçalo
Mendes, morador à Porta da Oura, por 90 reais a peça, enquanto as restantes 96 foram vendidas, dez dias
depois, pelo mercador Pedro Gonçalves, também morador à Porta da Oura, mas por 70 reais a peça. Lisboa,
Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa
entre 1507-1513, fl. 90 e 91.
62
Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço
da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 16. É o caso das portas e janelas que ficaram a cargo do mestre de
carpintaria Nuno Vasques.
63
Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da
Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 30v.
64
Vários são os testemunhos documentais e arqueológicos que demonstram estas práticas. Como
evidenciado por Arnaldo Sousa Melo e Maria do Carmo Ribeiro, a reciclagem e reaproveitamento de materiais
de construção era relativamente recorrente: “De facto, uma parte muito significativa dos diferentes tipos
de materiais resultava de sucessivas reutilizações, que decorria, por um lado, da longa duração a que estas
construcções estavam sujeitas e, por outro, das vantagens inerentes ao reaproveitamento (mantendo a forma,
mudando uso) e à reciclagem (mudando o uso e a forma)”. Vide MELO, Arnaldo Sousa; RIBEIRO, Maria do
Carmo – “Os materiais empregues nas construções urbanas medievais: contributo preliminar para o estudo
da região do Entre Douro e Minho”. In MELO, Arnaldo Sousa; RIBEIRO, Maria do Carmo (coords.) –História
da construção: os materiais. Braga: CITCEM / LAMOP, 2012, p. 161.
65
Os azulejos foram adquiridos em 1504, como se torna evidente numa carta de quitação passada a
MATERIAIS PAR A O PAÇO DA ALCÁÇOVA: A INTERVENÇÃO R ÉGIA NUM PAÇO LISBOETA
325
estes eram maioritariamente um produto de importação, provavelmente provenientes
de Málaga ou Valência, os estudos de Rui Trindade demonstraram que nos finais
da Idade Média, embora se recorresse à importação, esta estava a par da produção
nacional, sendo a cabeça do reino um dos principais centros produtores de azulejo66.
Quadro 2 – Destinatário das sobras de madeira.
Instituição de destino
Tipo de
madeira
Quantidade
Data
Hospital do Santo Espírito
da Alcáçova
Bordos
12 unidades
22 de Fevereiro de 1512
Casa Real
Bordos
100 unidades
21 de Maio de 1512
Casa de Nossa Senhora
da Serra
Bordos
60 unidades
3 de Julho de 1512
Mosteiro do Mato de
Alenquer
Bordos
60 unidades
15 de Julho de 1512
Santo António (?)
Bordos
40 unidades
16 de Julho de 1512
Casa de Ceuta
Bordos
25 unidades
22 de Julho de 1512
Paço da Ribeira de Muge
Bordos
40 unidades
23 de Julho de 1512
Livraria da Torre do Tombo
Bordos
12 unidades
26 de Julho de 1512
Mosteiro de Nossa Senhora
da Anunciada
Bordos
100 unidades
8 de Janeiro de 1512
Conclusão.
Os dados aqui apontados demonstram a riqueza desta fonte para o estudo da
construção, bem como para a análise da proveniência dos materiais utilizados numa
Gonçalo Carvalho, almoxarife das obras do Paço, no ano de 1509. Porém, só foram utilizados nas empreitadas
de 1507-1513 para forrar o Eirado da Rainha. Vide “Cartas de Quitação del Rei Dom Manuel...”, vol. II, Lisboa,
1904, p. 435, nº 282.
66
Rui Trindade sustenta a sua argumentação no foral de Lisboa de 1500, no qual se estabelece que
“louça de Malega e de Valença e de louça outra de barro que aqui fazem que levarem para fora do termo
per mar ou per terra asii come os vizinhos come os que no som vizinho pagam dizima”. Foral Manuelino
de Lisboa ..., pp. 171-172. Ou seja, a atribuição do nome podia não ditar uma origem do material, mas antes
a origem da técnica. Assim, a atribuição de nomes de outras cidades a louças viria já de tempos recuados,
sendo usada para identificar um fabrico secundário ou em ascensão, como as já referidas louças de Málaga,
Valência mas também de Talavera. Estes nomes e a migração de técnicas puderam também ter estado ligados
às migrações muçulmanas, nomeadamente de oleiros, para vários territórios, entre os quais o reino português.
TRINDADE, Rui – Revestimentos Cerâmicos Medievais. Meados do século XIV à Primeira metade do século
XVI. Lisboa: Colibri, 2007, pp. 50 - 70.
326
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
estrutura de prestígio como era o Paço da Alcáçova. Através dos mesmos é possível
recolher informações relevantes, que contribuem para perceber como se processava
o abastecimento de materiais de construção em Lisboa.
Observou-se que esse abastecimento estava tanto dependente da produção
local quanto da externa (seja termo, reino ou exterior), a qual era bastante facilitada
pela navegabilidade do rio Tejo e de outras vias fluviais que facilitavam o transporte
de matérias-primas para a cabeça do reino.
O transporte entre localidades era feito tanto por terra como por via aquática,
embora se denote uma preferência pelas vias fluviais. No caso do transporte terrestre
pelos ribeirinhos, além da deslocação de mercadorias dentro da cidade, neste
caso específico, entre a Ribeira e o estaleiro de obras do Paço, podiam também ser
responsáveis pelo carregamento de mercadorias do termo para a cidade.
Este é apenas um dos muitos estudos que podem ser realizados através da
análise do livro contas referente às obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa
entre 1507-1513 – sobre o qual se debruçou a minha dissertação de mestrado, mas
que não simbolizou um qualquer esgotamento da importância e interesse de uma
fonte extraordinária que, espero, possa contribuir para a realização de muitos outros
trabalhos que permitam não apenas incrementar os nossos conhecimentos sobre a
história da construção, mas também da cidade de Lisboa e o seu abastecimento.
MATERIAIS PAR A O PAÇO DA ALCÁÇOVA: A INTERVENÇÃO R ÉGIA NUM PAÇO LISBOETA
327
328
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Provisioning the building sites of the
mendicant convents in Auvergne (realm of
France), early 13th–early 16th centuries:
first results of an ongoing study
Claire Bourguignon1
Abstract
The recent renewal of research on the materials, manpower and operation of
medieval construction sites in Auvergne has cast new light on civil and religious
urban buildings. But few observations have been made concerning mendicant
buildings. Despite the destruction of some convents and incomplete textual
documentation, it is nevertheless possible to put forward various proposals
relating to the supply of raw materials, management of the workforce and stages
of construction of these buildings. This paper concentrates on the Dominican
and the Franciscan orders (male and female branches) established in the former
dioceses of Clermont and Saint-Flour from the early 13th century to the early
16th century. The conventual complexes of these orders are indeed relatively
well preserved in elevation, allowing a detailed analysis of the buildings. Their
architectural study can also be supplemented by various archaeological, textual,
iconographic and geological data. The aim is to present some of the first results
of a PhD study based on the cross-referencing of medieval and early modern
textual and iconographic sources, the archaeological survey of buildings and
the analysis of lapidary remains. The aim is also to complement and discuss the
results developed in recent works on Auvergne and to compare the phenomena
observed with others identified in the cities of the region and in those of the
realm.
Keywords
Building sites; Mendicant orders; Auvergne; Realm of France; Middle Ages.
1
PhD candidate ; Université Clermont Auvergne ; Centre d’Histoire « Espaces et Cultures » - EA 1001.
330
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
L’approvisionnement des chantiers des couvents mendiants en
Auvergne (royaume de France), début du XIIIe siècle–début du XVIe
siècle: premiers résultats d’une étude en cours
Résumé
Le renouvellement récent de la recherche sur les matériaux, la main d’œuvre
et le déroulement des chantiers de construction médiévaux en Auvergne
a apporté un nouvel éclairage sur les édifices urbains civils et religieux.Mais
peu d’observations ont été faites sur les constructions mendiantes. Malgré la
destruction de certains couvents et une documentation textuelle lacunaire, il est
néanmoins possible d’émettredifférentes hypothèses sur l’approvisionnement
des matières premières, la gestion de la main d’œuvre et les étapes de
construction de ces édifices.Cette étude se concentre sur les Dominicains et les
Franciscains (branches masculine et féminine) établis dans les anciens diocèses
de Clermont et de Saint-Flour du début du XIIIe siècle au début du XVIe
siècle. Les complexes conventuels de ces ordres sont en effet relativement bien
conservés en élévation, rendant possible une analyse fine du bâti. Leur étude
architecturale peut en outre être complétée par des données archéologiques,
textuelles, iconographiques et géologiques. Le propos vise à présenter quelquesuns des premiers résultats d’une thèse de doctorat fondée sur le croisement
des sources textuelles et iconographiques médiévales et modernes, l’étude
archéologique du bâti et l’analyse des vestiges lapidaires. Le but est également
de compléter et de discuter les résultats développés dans les travaux récents en
Auvergne et de comparer les phénomènes observés avec d’autres identifiés dans
les villes de la région et dans celles du royaume.
Mots-clés
Chantier de construction; Ordres mendiants; Auvergne; Royaume de France;
Moyen Âge.
Introduction
The recent renewal of research on the raw materials, manpower and the operation
of medieval construction sites in Auvergne, in the centre of the kingdom of France,
has given a different perspective on civil and religious urban buildings. Such works,
PROVISIONING THE BUILDING SITES OF THE MENDICANT CONVENTS IN AUVERGNE [...]
331
notably those of Anne Courtillé2, Bruno Phalip3, Josiane Teyssot4 and David Morel5,
have focused on the cathedrals of Clermont6 and Saint-Flour, the collegiate and
parish churches, and the ducal palace of Riom7. But few observations have been
made relative to mendicant buildings. Despite the destruction of some convents and
incomplete textual documentation, it is nevertheless possible to put forward various
propositions concerning the supply of raw materials (stone, construction wood,
lime, sand, gravel, metal, clay bricks, etc.), the actors (friars and sisters, architects)
management of the workforce (masons, stonemasons, carpenters, sculptors...) and
the stages of construction of these buildings8. Indeed, from the early 13th century to
the early 16th century, mendicant friars and sisters had their convents and churches
built, maintained and restored at different periods of the expansion of the cities in
2
COURTILLÉ, Anne − Auvergne et Bourbonnais gothiques. t. I. Nonette: Créer, 1991; Auvergne,
Bourbonnais, Velay gothiques, les édifices religieux. Paris: Picard, 2002.
3
PHALIP, Bruno − Des terres médiévales en friche. Pour une étude des techniques de construction et
des productions artistiques montagnardes. L’exemple de l’ancien diocèse de Clermont. Face aux élites, une
approche des «simples» et de leurs œuvres. Clermont-Ferrand: Université Blaise Pascal II, 2001. Research
supervisor’s dissertation; Charpentiers et couvreurs. L’Auvergne médiévale et ses marges, Lyon: Association
lyonnaise pour la promotion de l’archéologie en Rhône-Alpes, 2004; “Les matériaux de la cité épiscopale,
adoption, apprentissages et pratiques; Clermont, IIIe-XIIIe”. In LORENZ, Jacqueline, BLARY, François, GÉLY
Jean-Pierre (éd.) − Construire la ville: Histoire urbaine de la pierre à bâtir. Proceedings of the 137th Congress of
the Historical and Scientific Societies “Urban Compositions”. Paris: CTHS, 2014, pp. 155-161.
4
TEYSSOT, Josiane − “Un grand chantier de construction à la fin du XIVe siècle en Auvergne: le palais
ducal de Riom”. Bulletin historique et scientifique de l’Auvergne XCVI (1992), pp. 151-166; “Le château de Jean
de Berry, fin du XIVe siècle”. In Riom, capitale et bonne ville d’Auvergne (1212-1557). Nonette: Créer, 1999, pp.
356-360.
5
MOREL, David − Tailleurs de pierre, sculpteurs et maîtres d’œuvre dans le Massif central. Le monument
et le chantier médiéval dans l’ancien diocèse de Clermont et les diocèses limitrophes (XIe-XVe siècles). ClermontFerrand: Université Blaise Pascal II, 2009. PhD Thesis; “L’archéologie antique et médiévale au département
d’histoire de l’art et d’archéologie de l’université Blaise Pascal. Point de vue et pratiques croisées: La pierre
à bâtir dans l’Auvergne médiévale du XIe au XIIIe siècle. Territoires, architectures et matériaux”. Revue
d’Auvergne 617 (2015), pp. 179-206; with PICOT, Johan – “La couleur de la ville médiévale. Matériaux et identité
urbaine des centres politiques d’Auvergne (XIIe-XVe siècle)”. In LORENZ, Jacqueline; BLARY, François, GÉLY
Jean-Pierre (éds.) – Construire la ville…, pp. 141-153.
6
DAVIS, Michael − The Cathedral of Clermont-Ferrand. History of its construction, 1248–1512. Ann
Arbor: University of Michigan, 1979. PhD Thesis; SIMON, Hippolyte (éd.) − Clermont, l’âme de l’Auvergne.
Strasbourg: La Nuée bleue, 2014.
7
WHITELEY, Mary − “Riom: le palais ducal de Jean, duc de Berry”. In Monuments en Basse Auvergne,
Grande Limagne. Proceedings of the 158th Archaeological Congress of France. Paris: Société Française
d’Archéologie, 2003, pp. 333-338; RAPIN, Thomas − Les chantiers de Jean de France, duc de Berry. Maîtrise
d’ouvrage et architecture à la fin du XIVe siècle. Poitiers: Université de Poitiers, 2010. PhD Thesis.
8
This study is based on the following works: MARTIN, Hervé − Les Ordres Mendiants en Bretagne vers
1230-1530: pauvreté volontaire et prédication à la fin du Moyen Âge. Paris: C. Klincksieck, 1975; BERNARDI,
Philippe − Métiers du bâtiment et techniques de construction à Aix-en-Provence à la fin de l’époque gothique
(1400-1550). Aix-en-Provence: Publications de l’Université de Provence, 1995; RÜTHER, Andreas − Bettelorden
in Stadt und Land. Die Straβburger Mendikantenkonvente und das Alsaβ imSpätmittelalter. Berlin: Duncker
& Humblot, 1997; SCHENKLUHN, Wolfgang − Architektur des Bettelorden. Die Baukunst des Dominikaner
und Franziskaner in Europa. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2000; VOLTI, Panayota − Les
couvents des ordres mendiants et leur environnement à la fin du Moyen Âge : le nord de la France et les anciens
Pays-Bas méridionaux. Paris: Éditions du CNRS, 2003; RÖHRKASTEN, Jens − The Mendicant Houses of
Medieval London (1221-1539). Münster: Lit Verlag, 2004; BRUZELIUS, Caroline − Preaching, Building and
Burying: Friars and the medieval City. Yale: Yale University Press, 2014.
332
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
which they had established themselves. This implied an evolution in the choice of
materials and supply networks and had consequences for the appearance of the
buildings9. This paper concentrates on the Dominican and the Franciscan orders
(male and female branches) established in the former dioceses of Clermont and
Saint-Flour during the late Middle Ages. The conventual complexes of these orders
are substantially well preserved in elevation, allowing a detailed analysis of the
buildings. Here, architectural study can be supplemented by various archaeological,
textual, iconographic and geological data (Fig. 1).
The aim is to present some of the first results of a PhD study based on the
cross-referencing of medieval and early modern textual and iconographic sources,
the archaeological survey of buildings and the analysis of lapidary remains. The aim
is also to complement and discuss the results developed in recent works on Auvergne
and to compare the phenomena observedwith others identified in the cities of the
region and in those of the kingdom. The elements of response will focus on three
topics: the origins of materials, their transport and the managementof manpower on
mendicant building sites and a comparison with the construction sites in the cities of
Auvergne and the kingdom of France.
1. Origin of materials used on mendicant building sites in Auvergne.
Analysis of the provenance of materials necessitates questioning the kinds of
materials used, assessing whether they are of local or distant origin and identifying
cases of re-use.
In the geographical area studied, the principal materials are stone (volcanic
breccias, tufa stone, sandstone), wood, lime, sand, gravel, metal, clay bricks and
glass. Results of archaeological surveys and research in medieval and early modern
archives tend to show that materials came from the local surroundings of building
sites. For instance, in the episcopal city of Saint-Flour, the volcanic breccias used in
the building of the cathedral and the Dominican church in the 15th century were
from the quarries of Bouzentès, Liozargues, Montaigu, Ribeyrevielle and Védernat
located in the vicinity of Saint-Flour. Montaigu was the main quarry and it was
9
On the settlement of mendicant orders in the city, see in particular: LE GOFF, Jacques − “Apostolat
mendiant et fait urbain dans la France médiévale: géographie et sociologie des ordres mendiants (XIIIe-XVe
siècles). Programme-questionnaire pour une enquête”. Annales ESC 23/1 (1968), pp. 335-348; BERTRAND, Paul
− “La fondation des Ordres mendiants : une révolution?” In CEVINS, Marie-Madeleine; MATZ, Jean-Michel
(éds.) − Structures et dynamiques religieuses dans les sociétés de l’Occident latin (1179-1449). Rennes: Presses
Universitaires de Rennes, 2010, pp. 195-204; CABY, Cécile (ed.) − “Espaces monastiques et espaces urbains
de l’Antiquité tardive à la fin du Moyen Âge”. Mélanges de l’École Française de Rome 124/1 (2012); VIALLET,
Ludovic − “Les ordres mendiants dans la ville médiévale (vers 1230-vers 1350): réflexions introductives”. In
CARRAZ, Damien (ed.) − Les ordres militaires dans la ville médiévale (1100-1350). Conference proceedings.
Clermont-Ferrand: Presses Universitaires Blaise Pascal, 2013, pp. 57-75.
PROVISIONING THE BUILDING SITES OF THE MENDICANT CONVENTS IN AUVERGNE [...]
333
Fig. 1 − Dominican and Franciscan settlement in the dioceses of Clermont and Saint-Flour (13th15th centuries). The examples cited in the article are in green (CAD: C. Bourguignon, UCA, 2020).
334
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
exploited from 143610. Another example concerns the tufa stone, visible in regional
monuments since the Romanesque period. It was probably quarried around Mons,
a village located 6 km north of Saint-Flour as the geological map shows (shaded in
pink). The map also suggests that the clay from which the tiles were made came from
Grizols, located 6 km to the south (shaded in yellow) (Fig. 2)11. Further, the lime used
as mortar for binding the stones was made around Murat, 20 km from Saint-Flour
and also from Saint-Alban-sur-Limagnole located 50 km south of Saint-Flour. As
for sand, one of the components of lime, it could be collected from the banks of the
rivers Ander and Vendèze flowing out at the foot of the city and in the surroundings
of Andelat. The Saint-Flour town deliberation register for 1395 mentions that sand
was also exploited in Montaigu (Fig. 3)12. In Aigueperse, in the diocese of Clermont,
the convent of the Colettine Poor Clares was probably built with limestone because
the collegiate church of Notre-Dame (1180-1250), the Holy Chapel (late 15th century)
and the contemporary domestic houses of Aigueperse, Vensat and Denone were built
of this stone. It may have been quarried in Chaptuzat, located 3 km to the northwest13.
An archeological survey conducted in Aigueperse in 2015 revealed a large limestone
quarry presenting several major fronts with polylobed pits dating to the 13th and 14th
centuries. The quarried stone could have been used to build monuments in the town
or to make lime (Fig. 4)14. The local origin of materials was certainly preferred owing
to reduced costs of quarrying and transport implying a shorter construction period,
knowledge of the technical and mechanical characteristics of the stone (lightness
of alveolar volcanic materials, low water damage, cutting ease, etc.) and the rights
concerning materials granted by seigniorial authorities to the friars and sisters. This
wasthe case with the Observant Franciscan community of La Cellette, founded in the
western borderlands of the diocese of Clermont. When the Franciscans signed the
act of settlement on November, 9th, 1448, abbot Louis Ist of Banson authorized them
to cut wood in the closest forests for the building and the heating of the convent. In
July 1476, a decision of the Official of Clermont confirmed this right to the friars.
At that time, this right may have concerned building maintenance and firewood15.
10
RIGAUDIÈRE, Albert − Saint-Flour, ville d’Auvergne au Bas Moyen Âge: étude d’histoire administrative
et financière. T. I, Paris: Presses universitaires de France, 1982, p. 545; TODESCATO, Hugo − Saint-Flour dans
les derniers siècles du Moyen Âge. Étude sur la promotion d’une ville néo-épiscopale. T. II. Clermont-Ferrand:
Université Blaise Pascal II, 2015. Master’s thesis.
11
Printed geological map 1/50000e [Online]. Geological and Mining Research Bureau (BRGM) [Accessed
13 January 2020]. Available at infoterre.brgm.fr
12
TODESCATO, Hugo − Saint-Flour dans les derniers siècles du Moyen Âge…, t. II, p. 22-23.
13
RIGODON, René − “Aigueperse, son histoire, ses oeuvres d’art”. Revue d’Auvergne 67 (1953), p. 95;
PHALIP, Bruno − Des terres médiévales en friche…, vol. 2, p. 22.
14
LAUTIER, Laurence (ed.) − Aigueperse (Puy-de-Dôme), La Croix Première. Rapport de diagnostic.
Clermont-Ferrand/Bron: Regional archaeological service/Inrap, 2015; with VERNET, Gérard − “Découverte
d’occupations anciennes en sortie sud d’Aigueperse – zone de la Croix Première”. Sparsae 80 (2017), pp. 63-71.
15
“Concedimus ut de cetero domum de Celeta cum officinus usu nemoris”. Cantonal department archives
of Puy-de-Dôme, 28 H 1, f°15v°.
PROVISIONING THE BUILDING SITES OF THE MENDICANT CONVENTS IN AUVERGNE [...]
335
Nonetheless,for specific uses, architects and sculptors could resort to materials
coming from remote regions. The 15th-century bas-relief decorating the tympanum
of the Observant Franciscan church in Châteldon, located south-east of the diocese
of Clermont, was carved in Apremont limestone. This village was situated in the
Allier valley, in the duchy of Berry, about 130 km from Châteldon16. It was a quality
material, easy to cut and renowned in the region because it was frequently used in
the statuary of the duchy of Bourbon during the period17. This tympanum sculpture
might have been ordered by the Franciscans themselves, or equally the friars could
have been advised by the sculptor and/or the aristocratic family of Vienne who
founded the convent (and indeed possessed a castle in the town)18.
However, the supply of materials was subject to many constraints including
delays, increased costs and weather events making paths impassable, to name but a
few hazards. These had an impact on the progress of the construction sites. This is
whythe re-use of materials, especially stone, would have been frequent. In Riom for
instance, a town established about 15 km north of the episcopal city of Clermont,
the Franciscan conven twas built inside the city walls during the last quarter of
the 14th century using the stones from their first establishment located outside
the fortifications, a few meters to the north19. This building method was certainly
preferred in order to quickly rebuild the friars’ places of living and worship, to reduce
the cost of construction of the convent, or even so as not to leave this manna for
the canons of Saint-Amable who took possession of the first Franciscan enclosure
after the friars left it. Furthermore, in Saint-Flour in the 1360s, the Dominicans built
their convent on properties composed of domestic houses20. In order to reduce the
16
CARADEC, Marie-Anne − Monographie du village de Châteldon (Puy-de-Dôme) à l’époque médiévale.
Clermont-Ferrand: Université Blaise Pascal, 1980, Master’s thesis, p. 210.
17
For instance, this stone is used to make the funeral monument of Goussaut of Thory († 1391), butler
and forest master of the duke of Bourbon Louis II (1356-1410), which rested in the conventual church of the
Carmelites of Moulins. On this example, refer to the author’s article: “Les ordres mendiants à Moulins (milieu
du XIVe siècle-début du XVIe siècle): implantation, architecture et décor”. Bulletin de la Société d’Émulation
du Bourbonnais, forthcoming in 2020. See also: GOUTAUDIER, Françoise − La sculpture de pierre en
Bourbonnais, du milieu du XVe siècle au début du XVIe siècle. Clermont-Ferrand: Université Blaise Pascal II,
1993. Master’sthesis; LEYOUDEC, Maud, RIVOLETTI, Daniele − La sculpture bourbonnaise entre Moyen Âge
et Renaissance. Exhibition catalogue. Moulins: Musée Anne de Beaujeu, 2019.
18
On the involvement of the bourgeoisie and the secular aristocracy in Franciscan construction, see
for example: BOURDUA, Louise − The Franciscans and Art Patronage in Late Medieval Italy. Cambridge:
Cambridge University Press, 2004; CLAUDE, Sandrine − “L’église des Observantins d’Aix-en-Provence: le
chantier d’une construction entre prédication mendiante et dévotions privées (XVe-XVIe siècle)”. In CARVAIS,
Robert; GUILLERME, André; NÈGRE, Valérie; SAKAROVITCH, Joël (éds.) − Édifice et artifice: histoires
constructives: recueil de textes issus du premier congrès francophone d’histoire de la construction. Paris:
Picard, 2010, pp. 907-916.
19
FODÉRÉ Jacques, Narration historique et topographique des convens de l’ordre Sainct François
et monasteres Saincte Claire, érigez en la province anciennement appellée de Bourgogne, a present Sainct
Bonaventure. Lyon: Pierre Rigaud, 1619, p. 586.
20
Municipal Archives of Saint-Flour, chapter VIII, article 2, n°3. Document transcribed in:
TODESCATO, Hugo − Saint-Flour dans les derniers siècles du Moyen Âge…, t. II, p. 48, annex n°51.
336
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Fig. 2 − Printed geological map 1/50000e [Online]. Geological and Mining Research Bureau
(BRGM) [Accessed 4 May 2020]. Available at infoterre.brgm.fr.
PROVISIONING THE BUILDING SITES OF THE MENDICANT CONVENTS IN AUVERGNE [...]
337
Fig. 3 − Geographical origin of the materials used to erect the cathedral of Notre-Dame and the
Dominican convent in Saint-Flour in the late Middle Ages (CAD: C. Bourguignon, UCA, 2020.
Fig. 4 − Use of limestone in the religious and civil buildings in Aigueperse and in the neighbouring
villages in the central and in the late Middle Ages (CAD: C. Bourguignon, UCA, 2020).
338
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
number of stones or wood planks needed, the friars probably re-used the foundations
of houses. This process is documented for contemporary urban building programs
such as the cathedral for which the workers took building stones from ruined houses
of the city21.
To sum up, in Auvergne, the mendicant friars preferred local materials but
they could resort to others for specific creations such as sculpture. The costs and
constraints involved in the purchase and supply of materials probably made it
necessary to re-use materials available in the vicinity of building sites.
2. Transport of materials and management of the labour force on the mendicant
building sites in Auvergne.
Supplying materials means dispatching from the quarry to the building site. In the
dioceses of Clermont and Saint-Flour, transport was facilitated by a developed road
network and navigable rivers (Fig. 5)22. Indeed, the road leading from Île-de-France
(north of the kingdom) to Languedoc (south of the kingdom) ran through the main
cities where the mendicants were settled in both dioceses. In addition, the diocese of
Clermont was crossed by the rivers Allier and Dore, navigable from Pont-du-Château
and Pont-de-Dore, which provided another way to transport heavy freight. Thus, the
Apremont limestone used in the 15th century to sculpt a bas-relief on the tympanum
of the Observant Franciscan church of Châteldon might have been transported from
the duchy of Berry, located north of the duchy of Clermont, to the town thanks to
the river Allier. Châteldon is 4 km away from Ris, a harbour dug at the confluence of
the rivers Allier and Dore in 1413 and exempted from tolls from 144823. In Souvigny,
in the diocese of Clermont, the Franciscan convent was built from limestone and
sandstone in the second half of the 13th century and early 14th century. This was also
the case with the parish church of Saint-Marc, founded before the mid-12th century,
with the Cluniac church of Saint-Pierre-et-Saint-Paul, restored in the 15th century,
and with the Bourbon dukes’ residence, enlarged in 1378 and in 1431. The stone could
have been transported to the city from the calcareous plateau locatedin the northwest of the city, from the sandstone forest of Messarges and from the surroundings
RIGAUDIÈRE, Albert − Saint-Flour, ville d’Auvergne au Bas Moyen Âge…, t. I, pp. 544-545.
On these lines of communication and their impact on the development of urban spaces, see:
FRAY, Jean-Luc − “Les localités centrales de l’Auvergne, du Velay et du Bourbonnais au Moyen Âge.
Problèmes et perspectives”. In ESCHER, Monika; HAVERKAMP, Alfred; HIRSCHMANN, Frank (éds.) –
Städtelandschaft, Städtenetz, zentralörtliches Gefüge. Ansätze und Befunde zur Geschichte der Städte im hohen
und späten Mittelalter. Mayence: Kliomedia, 2000, pp. 173, 178 [also published in: “Réseau urbain et « localités
centrales » en Auvergne, Bourbonnais et Velay au Bas Moyen Âge”. In MARTIN, Daniel (ed.) – L’identité de
l’Auvergne (Auvergne, Bourbonnais, Velay): mythe ou réalité historique? Essai sur une histoire de l’Auvergne des
origines à nos jours. Nonette: Créer, 2002, pp. 253-262.
23
MONDANEL, Pierre − L’ancienne batellerie de l’Allier et de la Dore: de Langeac à Nevers. 2e ed.
Clermont-Ferrand: De Borée, 2000, pp. 153, 327.
21
22
PROVISIONING THE BUILDING SITES OF THE MENDICANT CONVENTS IN AUVERGNE [...]
339
of Coulandon thanks to the river Queune24. Likewise, one can speculated as to
whether the mendicant building sites benefited from existing supply networks since
they were frequently contemporaneous with other urban civil or religious building
projects. The number of stone quarries and the forests exploited being necessarily
limited, the architects supervising the mendicant construction sites, or the friars and
the sisters at the head of their communities, might have concluded agreements with
local quarrymen or woodcutters. Such could have been the case with Murat, in the
diocese of Saint-Flour. Since 1320, the city had enjoyed the privilege of an exclusive
exploitation concession of the volcanic breccias quarries in Albepierre, located 7 km
away from Murat25. The existence of three religious building sites in Murat duringthe
first half of the 15th century (the collegiate church of Notre-Dame, the church of
Saint-Martin and the convent of the Observant Franciscans) suggests that stone came
from the same and closest quarries allowing forquick transport and reduced costs.
Few documents evoke the manpower working on the mendicant building sites,
as regards the architects or the skilled labour force26. The supervision of the building
site was frequently provided by mendicants, in accordance with the provincial
minister of the order. In Clermont, a document dated January 17th 1385, indicates that
the workers employed to restore the church of the Poor Clares (masons, stonemasons
and carpenters) were hired by abbess Géral de Pomeyrol (Geralda Pomeyrola). They
lived in Clermont in the parishes of Saint-Pierre, Saint-Laurent and Saint-Cassi27. As
a consequence, for this building site the workforce was exclusively local. The parishes
mentioned were located in the northern part of the city, two of them (Saint-Pierre
to the west, Saint-Laurent to the east) inside the city walls, the third one (SaintCassi) outside to the north. These parishes were close to the convent of the Poor
Clares established north of the city, about 125 m from the fortifications, in the parish
of Saint-Étienne. These parishes could accommodate the houses of the workforce
but the nuns could also have recruited labourers they already knew or who had
already carried out other works near the convent. We can draw a comparison with
the building site of the ducal palace and the Holy Chapel built by Jean Ist, duke of
Berry and Auvergne (1360-1416), in the neighbouring city of Riom during the last
two decades of the 14th century. The labour force was composed of local craftsmen
24
FIOCCHI, Laurent; LIÉGARD, Sophie; MOREL, David − “Du monde des morts au monde des
vivants: le bois et la pierre au Moyen Âge à Souvigny”. Revue d’Auvergne 124 (2011), pp. 136, 146, fig. 6.
25
PHILIPPART, Jean-Louis − “Les carrières de pierre de taille d’Albepierre”. In Albepierre-Bredons et
Murat: à la recherche de l’histoire et du patrimoine. Marsat: La Source d’Or, 2006, p. 71; “La transaction du
7 mai 1528 entre les habitants d’Albepierre et ceux de Murat”. Patrimoine en Haute-Auvergne 17 (2009), pp.
35-37.
26
On the labor force employed on other building sites of the dioceses from the 11th century to the 15th
century, see: MOREL, David − Tailleurs de pierre, sculpteurs et maîtres d’œuvre dans le Massif central…, t. I,
pp. 486-508.
27
Cantonal department archives of Puy-de-Dôme, 66 H 2, bundle 10, n°37, f° 8v° and f° 9v°.
340
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Fig. 5 − Dominican and Franciscan settlement in the road network of the dioceses of Clermont
and Saint-Flour (early 14th century) (CAD: C. Bourguignon, UCA, 2019
according to Fray, 2000, p. 174 and 2002, p. 256)
PROVISIONING THE BUILDING SITES OF THE MENDICANT CONVENTS IN AUVERGNE [...]
341
and of skilled labourers coming from outside the duchy of Auvergne. For instance,
architect Guy de Dammartin († 1398) lived in Bourges, the capital city of the duchy
of Berry. Most of the stonemasons were outsiders. Out of the thirty-one stonemasons
mentioned in the archives, only two were local28. It is interesting to notice that the
abbess, unlike the duke, did not resort to foreign architects or skilled craftsmen.
This can be explained by the fact that these construction sites came under different
religious and civil authorities (the abbess of the Poor Clares and the duke of Berry
and Auvergne) and did not involve the same types of building (a conventual church
and a palace and a Holy Chapel). In both cases however, the materials were quarried
locally, especially volcanic breccias, which came from the quarries of Volvic located
about 8 km northwest of Riom and 15 km from Clermont. The most remote places
of supply seemed to concern scaffolding, carpentry and framing woods, which were
cut in the oak and fir forests of Livradois (from Montpeyroux to Puy-Guillaume) and
Forez, about 40 km east of Riom or in the plain of Limagne (Randan)29.In Châteldon,
the 17th-century Franciscan chronicler Jacques Fodéré reports that Friar Guillaume
Vasseur supervised the building site of the Observant Franciscan convent. He had
been sent by the prior of Montluçon, another observant convent located about 100
km to the northwest. As for skilled manpower, it was hired by the mendicants or by
the lord involved in the establishment of the community. In Châteldon, in the 1460s,
the masons and carpenters were recruited by Philippe de Vienne, the nobleman
contributing to the establishment of the Observant community. The man employed to
carve the bas-relief surmounting the main portal of their church appears to have been
chosen by the friars. It was probably Jacques Rodier, a mason and sculptor working
stone and wood from Châteldon. He sculpted a Christ ornamenting the jube of the
church of Saint-Pierre in Montluçon. The tragic aspect of this work of art may have
been influenced by the Observant Franciscans living close to the church30. Since the
prior in Montluçon contributed to the foundation of the convent of Châteldonand
also sent a friar to supervise the building site, he could conceivably have employed
the sculptor for the Franciscan church.
In a word, the Dominican and the Franciscan building sites in Auvergne
couldtake advantage of a privileged geographical situation. Their convents, founded
in the most important cities of the dioceses, were nearly always located close to
main roads and navigable waterwayssuch as the rivers Allier and Dore allowing
ease of transportation of materials. This is why we can speculated as to whether
28
TEYSSOT, Josiane − “Un grand chantier de construction à la fin du XIVe siècle en Auvergne…”, pp.
151-166.
29
TEYSSOT, Josiane − “Un grand chantier de construction à la fin du XIVe siècle en Auvergne…”, p.
164.
30
BAUDOIN, Jacques − La sculpture flamboyante: Auvergne, Bourbonnais, Forez. Nonette: Créer, 1998,
pp. 298-299.
342
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
they integrated the existing supply networks when theirc onstruction sites were
contemporaneous with other civil or religious building programs.
3. The supply of mendicant building sites in the process of urban building in
Auvergne and in the kingdom of France.
The study of mendicant construction sites must be considered in a comparative
dimension not only to fill the lacunae of extant remains or textual documentation, or
to stimulate consideration of locations of supplies of materials, but also because the
Dominican and Franciscan communities integrated into the monumental landscape
and the ecclesiastical hierarchy of cities. Enumeration and dating of religious
building sites in cities where the mendicant orders were established demonstrates
that mendicant construction sites were long-term and therefore often contemporary
with each other. In the episcopal city of Clermont for example, the Dominican and
Franciscan houses were erected in the second third of the 13th century. The Carmelites
were established when the Poor Clares started building their convent in the last
decade of the 13th century. In the third quarter of the 15th century, bishop Jacques
de Comborn (1444-1474) financed the reconstruction of the Dominican cloister
and one of their conventual wings, also the building of the Franciscan convent
entrance gate and their refectory, and further the completion of the building of the
Carmelitecloister. A similar observation can be made in Aix-en-Provence where the
mendicant communities undertook major restoration and enlargement campaigns
in the second half of the 15th century. The Augustinians expanded their church to
the north from the 1460s to 1469. The Franciscans added a sacristy and vaulted their
church. The church of the Observant Franciscans was erected in the 1470s31.Likewise,
in Aurillac, in the diocese of Clermont, a tilery (tegularia) established between the
Hôpital abbatial Saint-Géraud and one of the gates of the city (Porte du Buis) is
mentioned in 1254. The tiles produced in the moulds which were not stamped by the
Benedictine abbot of Saint-Géraud, at the head of the oldest monastery established in
the town (late 9th century), were given to convents, churches and hospitals32. Therebuilding of the Franciscan church and convent in the first third of the 14th century
may have been concomitant with a church or a hospital restoration campaign. If this
was in fact the case, the Franciscans could also have benefitted from this donation.
Comparison of materials used in mendicant building sites in Auvergne with
those employed in other conventsin the kingdom tends to showthat local supply of
31
BERNARDI, Philippe − Métiers du bâtiment et techniques de construction à Aix-en-Provence…, pp.
108-109; CLAUDE, Sandrine − “L’église des Observantins d’Aix-en-Provence...”, p. 908.
32
GRAND, Roger − Les «Paix» d’Aurillac. Études et documents sur l’histoire d’une ville à consulat (XIIeXVe siècles). Paris: Librairie du recueil Sirey, 1945, pp. CLXXXV-CLXXXVI.
PROVISIONING THE BUILDING SITES OF THE MENDICANT CONVENTS IN AUVERGNE [...]
343
materials frequently occurred. In Châlons, the roof of the Franciscan cloister was
made up of hollow tiles which were the most common used in the building sites of
Champagne in the late Middle Ages33. Works led by the archaeologist Cedric Roms
in Troyes, a city located south of Champagne in the Seine valley, suggest that all
the urban churches were built with local stones.For example, chalk was used in the
13th century to erectthe churches of Saint-Jean-au-Marché and Sainte-Madeleineand
also in the 16th century in the churches of Saint-Nizier and Saint-Rémy. In more
prestigious sanctuaries, chalk was used in specific parts of the buildings (foundations)
as was the case with the church Saint-Jacques-aux-Nonnains. Chalk was a cheap and
abundant material and it could be quarried in the vicinity of the construction sites,
in the suburbs of Troyes (the quarry of Pont-Hubert for example). This stone was also
well-known for its lightness, the reason for its use in the vaults of the Notre-Dame
Chapel in the church of Saint-Jean-au-Marché in 1523-152434.
In Auvergne, the question of the recruitment of lay or foreign architectsstill
remains open, whereas the names and status of several architects are known for
different mendicant convents in the rest of the kingdom during the late Middle Ages.
In Metz, for instance, the Carmelites chose P. Perrat, a lay architect, to oversee the
restoration of their church in the late 14th century35. In his will dated November 22nd
1316, Jehande Mantes, master of the king’s works in the sénéchaussée of Toulouse and
Albigeois, funded the building of four chapels in the apse of the Augustinian church
of Toulouse. He specified these chapels had to be erected by two master masons from
the city. One of them was Jehan de Lobres, master of works of the church of SaintÉtienne in Toulouse36. Nonetheless, some of the architects or part of the workforce
could come from remote places. In Aix-en-Provence, Philippe Bernardihighlighted
that from 1401 to 1550, out of 1,115 people learning a building trade, 530 did not
come from the city. They were from the duchy of Savoy, the Dauphinéregion,and the
Italian peninsula37. The recruitment of artists seemed to vary according to the friars’
relationships and needs. Asin Châteldon in the second half of the 15th century, the
33
VOLTI, Panayota − L’implantation et l’architecture des ordres mendiants dans le nord de la France et
les anciens Pays-Bas méridionaux (XIIIe-XVIe siècles). Paris: Université Paris X-Nanterre, 2000. PhD Thesis, t.
II-1, p. 148.
34
ROMS, Cédric − “Extraire de la pierre pour les églises troyennes au Moyen Âge et à l’époque moderne:
apport des données textuelles et archéologiques” [Online] Medieval Europe Paris, 4th International Congress
of Medieval and Early Modern Archaeology [Accessed May, 3rd, 2019]. Available at https://hal.archivesouvertes.fr/hal-01610156. See also: ROMS, Cédric − “La pierre dans la construction monumentale troyenne au
XVIe siècle : choix des matériaux et stratégies d’approvisionnement”, Livraisons de l’histoire de l’architecture
[Online] 16 (2008) [Accessed June, 5th, 2020]. Available at https://journals.openedition.org/lha/177.
35
VOLTI, Panayota − L’implantation et l’architecture des ordres mendiants dans le nord de la France…,
t. II-1, p. 258.
36
SALIES, Pierre − Les Augustins: origine, construction et vie du grand couvent toulousain au Moyen
Âge (XIIIe-XVIe siècle). Toulouse: Archistra, 1980, pp. 43-47.
37
BERNARDI, Philippe − Métiers du bâtiment et techniques de construction à Aix-en-Provence…, pp.
43, 46.
344
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Franciscansof Troyes worked with a local artist called Jubertto achieve the decoration
of the conventual library situated on the first floor of the Chapel of Passionduring
the last decades of the 15th century38. But the mendicant friaries of Arras, locatedin
the north of the kingdom, developedcloserelationships with artists from Tournai, in
the southern Low-Countries. For instance, Willaume de Blarville’s funerary slabwas
made in Tournai before being sent to the kingdom to be laidin the Franciscan
cemetery of Arras in the 13th century39.
To conclude, it is important to highlight that the Dominican and Franciscan
building sites in the dioceses of Clermont and Saint-Flour preferred local materials
but they could resort to otherscoming from remote quarries for specific needs
(sculpture, statuary, funerary monuments).The re-use of materials available in the
vicinity of construction sites is highly probable. Furthermore, their convents took
advantage of nearbymain roads and navigable waterways facilitating the transport
of materials and the movement of manpower. Comparisons can be drawn with
other building sites in Auvergne (the ducal palace of Riom) and in other parts of the
kingdom (the mendicant convents in Arras, Châlons, Troyes, Aix-en-Provence and
Toulouse). These parallels show that local supply of materialsis not specific to the
dioceses studied. Nonetheless, differences can be observed in Auvergne concerning
the variety of materials employed (volcanic breccias, tufa stone, sandstone,
limestone) and the recruitment of local labour. But the scattered information for
mendicant building sites does not allow generalisation of the hypotheses raised
for the period under consideration. The first results of this study complement the
data provided in the works of Anne Courtillé, Bruno Phalip, Josiane Teyssot and
David Morel by bridging the gap concerning mendicant convents built in the central
dioceses of the kingdom during the late Middle Ages. A possible future research
avenue would comprise an evaluation of the symbolic dimension of materials in
mendicant buildings. An article published by David Morel and Johan Picot in 2014
has suggested that the use of volcanic breccias in civil and religious buildings in the
three main cities of the diocese of Clermont (the episcopal city, Montferrand and
Riom) in the 13th and 14th centuries is linked to the development of an urban identity
associated with the assertion of royal power after the conquest of Auvergne in 12111213. Analysis of the use of this stone and the friars’ relationships with urban powers
and local aristocracy could raise new questions in this area.
38
VOLTI, Panayota − L’implantation et l’architecture des ordres mendiants dans le nord de la France…,
t. II-2, p. 187.
39
VOLTI, Panayota − Les couvents des ordres mendiants et leur environnement à la fin du Moyen Âge…,
p. 58.
PROVISIONING THE BUILDING SITES OF THE MENDICANT CONVENTS IN AUVERGNE [...]
345
346
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Abastecer um estaleiro construtivo:
o exemplo do Colégio da Graça (1543-1548)1
João Paulo Graça Pontes2
Resumo
O aprovisionamento de material construtivo constitui um aspeto importante
do abastecimento das cidades com vista à construção de edifícios. Dada a
necessidade – ou excentricidade – de determinados tipos de materiais para a
construção, importa ter em conta a sua aquisição, transporte e alocação, assim
como os moldes em que decorreram, tendo em conta as condicionantes e
adversidades da época.
O presente artigo procura dar a conhecer o processo de compra e transporte
de material, por parte do estaleiro do Colégio da Graça de Coimbra, tendo
como espectro cronológico os finais da Idade Média e os princípios da Idade
Moderna. Este exemplo, cuja construção decorre de 1543 a 1555, será posto em
evidência como ponto de comparação com outros estaleiros construtivos, estes
já inseridos no âmbito temporal da Época Medieval.
Partindo do seu livro de obras (1543-1548) – num esplêndido estado de
conservação, atualmente parte integrante do espólio documental do Arquivo
Distrital de Braga - procuramos dar a conhecer de que modo é que o estaleiro
do colégio da Graça adquiria o seu material construtivo, sobretudo a madeira
e pedra, bem como os seus preços e a sua proveniência – e condicionantes
adjacentes, nomeadamente ao nível dos custos do transporte.
Palavras-chave
História da construção; Universidade de Coimbra; Rua da Sofia; Livro de
contabilidade.
1
Trabalho realizado ao abrigo do financiamento público por parte da Fundação para a Ciência e
Tecnologia. Referência de bolsa: SFRH/BD/145325/2019 e no âmbito do projeto MedCrafts – “Regulamentação
dos mesteres em Portugal nos finais da Idade Média: séculos XIV e XV”, Ref.ª PTDC/HAR-HIS/31427/2017..
2
Universidade do Minho/ Lab2PT.
348
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Supplying a worksite: the case of Colégio da Graça (1543-1548)
Abstract
The supply system of construction materials constitutes an important aspect in
matters of provisioning cities towards the construction of buildings. Given the
need – or the eccentricity – of certain types of materials for construction, it is
important to take into account their acquisition, transportation and distribution,
as well as the configuration of the construction in a given timeframe, in regards
to its constraints and adversities.
This paper seeks to understand how Colégio da Graça de Coimbra’s worksite
bought and transported construction materials, between the late medieval age
and the early modern age. This example, which was constructed between 1543
and 1555, will be highlighted and used as a point of comparison with other
worksites chronologically situated in the medieval ages.
Its accounting book (1543-1548), which is splendidly conserved and currently
a part of the documental collection of the District Archive of Braga, will serve
as our starting point to figure out in which way the Colégio da Graça’s worksite
purchased its materials for the construction, mainly the stones and the wood,
as well as its prices and provenance, and the inherent difficulties associated with
the process, namely those related to the transportation costs.
Keywords
Construction History; University of Coimbra; Rua da Sofia; Accounting book.
Introdução.
No projeto cultural de D. João III encontramos uma hipótese de estudo que se revela
interessante para a historiografia que se ocupa da cultura em Portugal. Momento de
relevo, por um lado, pela ideologia que se consubstanciou no processo de transição
das estruturas académicas de Lisboa para Coimbra e, por outro – o que nos diz
respeito – pelo grande empreendimento urbanístico que teve lugar na cidade do
Mondego.
Sobre o trabalho que aqui pretendemos desenvolver, advertimos que se
desviará ligeiramente da cronologia proposta por estas Jornadas. Tendo presente
os convencionalismos cronológicos que pautam o término da Idade Média no final
ABASTECER UM ESTALEIRO CONSTRUTIVO: O EXEMPLO DO COLÉGIO DA GR AÇA [...]
349
do reinado de D. Manuel (1521), justificamos o nosso desvio com a importância
desta fonte para a historiografia que se ocupa da temática da construção e, ainda,
com o facto de não considerarmos de tal modo significativa a distância temporal
que separa o nosso caso de estudo das balizas cronológicas aqui propostas. Neste
sentido, a pertinência da documentação leva-nos a procurar compará-la com outros
exemplos de cronologias mais recuadas, uma vez que se trata de um tipo documental
bastante raro na historiografia portuguesa, sobretudo com registos sequencialmente
completos. As mais das vezes, a documentação que encontramos apenas contém
registos relativos a uma ínfima parte do todo que seria o processo construtivo de um
qualquer edifício.
É verificável que, de uns anos a esta parte, tem sido feito um esforço na produção
historiográfica e respetiva publicação desta tipologia de fontes. Das que conseguiram
ultrapassar as vicissitudes do tempo, em número bastante reduzido, apenas uma
pequena parte se apresenta nestas condições. Através de algumas transcrições de
grande qualidade conseguimos ter acesso a uma parte das contabilidades relativas às
construções do Paço da Alcáçova de Lisboa3, do Mosteiro de Santa Maria da Vitória4,
do Claustro da Sé de Lisboa5, do Paço de Sintra6 e da Alfândega do Funchal7.
De toda a maneira, o estudo de um estaleiro e das suas dinâmicas, partindo
do seu livro de contabilidade, permite-nos uma multiplicidade de análises que
extravasam, inclusive, questões financeiras. Importando ter presente que este tipo
documental teria um propósito informativo e descritivo do processo construtivo,
raramente dissociado de interesses institucionais e pessoais.
Entre diversos tipos de informação, um livro de contabilidade permite-nos
apurar, ao nível artístico, algumas diretrizes arquitetónicas que partem da vontade
do encomendador, caracterizar o corpo laboral que integrava os trabalhos in loco,
conhecer a dinâmica comercial associada à aquisição dos recursos materiais, apurar
as preferências associadas à obtenção de determinado tipo desses recursos, bem
como realçar o impacto socioeconómico que a construção teve nas imediações do
lugar onde se implantou8.
3
MARTINS, Diana Neves – O Paço da Alcáçova de Lisboa: uma intervenção manuelina. Lisboa:
Universidade Nova de Lisboa/ IEM, 2017. Dissertação de Mestrado.
4
GOMES, Saúl António – O Mosteiro de Santa Maria da Vitória no Século XV. Coimbra: Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra/ Instituto de História de Arte, 1990. Dissertação de Mestrado.
5
OLIVEIRA, José Augusto – “Um estaleiro medieval: as obras no claustro da Sé de Lisboa”. In
FONTES, João Luís et. alii (coord.) – Nova Lisboa Medieval. Gentes, Espaços e Poderes. Lisboa: IEM – Instituto
de Estudos Medievais, 2016, pp. 177-204.
6
SABUGOSA, Conde de – O Paço de Cintra. Lisboa: Imprensa Nacional, 1903. pp. 221-243.
7
COSTA, José Pereira da – A construção da Alfândega nova do Funchal. Lisboa: Junta de Investigação
do Ultramar; Centro de Estudos de Cartografia Antiga, 1978.
8
Em larga medida já empreendemos esta abordagem mais generalista no âmbito da nossa tese de
Mestrado. PONTES, João – Construção do Colégio da Graça de Coimbra no Século XVI: Estudo da Organização
do Processo Construtivo e Gosto Arquitectónico. Braga: Universidade do Minho, 2017. Dissertação de Mestrado.
350
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Deste modo, propomo-nos dar a conhecer, sob o ponto de vista de um estaleiro
dos inícios da Idade Moderna, as dinâmicas comerciais adotadas na obtenção dos
recursos materiais necessários à construção do edifício em questão e a forma como
foi realizado o seu abastecimento, ao nível da compra e transporte. Tomamos por
exemplo a construção do Colégio da Graça de Coimbra, parte integrante do espólio
documental do Arquivo Distrital de Braga, que conhecemos por intermédio do seu
livro de contabilidade, ainda num ótimo estado de conservação9.
O nosso estudo vai, assim, alicerçar-se na compreensão da dinâmica comercial
operada pela administração da obra do colégio, assim como destacar as estratégias
adotadas pelo estaleiro no acesso ao material construtivo. Porém, primeiramente,
contextualizaremos toda a questão, de modo a que seja possível compreender o
processo que envolve a transferência da Universidade e a construção do Colégio da
Graça.
1. Enquadramento histórico.
O nosso objeto de estudo tem como pano de fundo o ímpeto renovador que D. João
III conferiu à cultural em Portugal, sobretudo nos inícios do seu reinado. Sendo um
projeto que já vinha a ser desenvolvido desde o reinado de D. Manuel, ainda que
a uma escala bem mais modesta, conhece o seu apogeu no projeto reformista do
Piedoso, através de uma aproximação à cultura do humanismo10. A proposta cultural
do monarca tinha por primordial objetivo fundar uma instituição académica
que fosse capaz de ombrear com as suas homónimas europeias11. Neste processo,
foi necessário fazer transitar os estudos gerais da cidade de Lisboa que, enquanto
instituição, assumiu um papel bastante conservador e pouco disponível para uma
abertura cultural e pedagógica12. Para tal, foram criadas condições estruturais e
administrativas, importantes para o bom desenvolvimento do ensino, dentro de um
9
O livro de obras encontra-se num estado de conservação bastante razoável, encadernado a pergaminho
e cartão. Compõe-se por 8 cadernos em papel com cerca de 190 fólios numerados de forma contínua, dos quais
66 estão em branco e 44 foram parcial ou totalmente rasgados. Escrita quase no seu todo em língua castelhana,
num gótico cursivo, ainda que com alguns registos em português coevo, com caligrafia diferente. Divide-se
em dois grandes grupos: receitas e despesas. Cada folha apresenta a informação dividida por três colunas,
sendo a da esquerda reservada às notas do tabelião, a do centro apresentava um resumo da informação que
se pretendia registar e a da direita seria utilizada para registar valores em reais. Braga, Arquivo Distrital, Ms.
1019.
10
BUESCU, Ana Isabel – D. João III (1502-1557). Lisboa: Círculo de Leitores, 2005, p. 247.
11
BUESCU, Ana Isabel – D. João III (1502-1557)…, p. 248.
12
Sobre as motivações de D. João III para a transferência da Universidade, ver: DIAS, Sebastião da
Silva – A Política Cultural da Época de D. João III, vol. I, Tomo I e II. Coimbra: Instituto de Estudos Filosóficos/
Universidade de Coimbra, 1969; CRAVEIRO, Maria de Lurdes – “A Reforma Joanina e a Arquitectura dos
Colégios”. Monumentos 8 (março 1998). pp. 20-25; BUESCU, Ana Isabel – D. João III (1502-1557)…, pp.
245-259.
ABASTECER UM ESTALEIRO CONSTRUTIVO: O EXEMPLO DO COLÉGIO DA GR AÇA [...]
351
meio urbano que se revelava mais propício à implementação do ideário humanista13.
A cidade de Coimbra iria ser, assim, o lugar eleito para o empreendimento
deste projeto reformista. Viria a beneficiar em larga medida, ao nível económico
e social, de toda esta conjuntura. Surgiram oportunidades de trabalho para os
mesteirais da construção – especializados e não-especializados – que lá habitavam
ou que deambulavam pelos concelhos do reino em busca dessas oportunidades14.
Paralelamente, a construção dos colégios permitiu potenciar os recursos materiais
da região, como adiante veremos. Neste contexto são fundados vários colégios
universitários, dentro de um amplo projeto urbanístico que se materializou na
abertura da Rua da Sofia, com intento de a tornar uma via de concentração do saber;
topónimo claramente condicente com essa intenção15. O seu destino passaria por
servirem de apoio ao funcionamento da Universidade, suprindo-a de salas de aula e
albergando o corpo docente e discente nos seus dormitórios16.
A transferência da Universidade dá-se num ambiente económico-financeiro
instável. Aliás, como aponta Ana Isabel Buescu, todo o reinado de D. João III se
revela instável nesta matéria17. Para tal contribuíram diversos fatores que passaram
pela criação de um aparelho burocrático progressivamente mais extenso e volumoso,
o sustento de uma corte régia que albergava cerca de 5000 moradores a quem se
pagava morada18, o casamento e dotação da Infanta D. Isabel em 1526, a compra de
Maluco... No fundo, uma panóplia de despesas que consumiam uma vasta parcela
do orçamento do reino, justificadas por uma tentativa do monarca em estabelecer
13
Entre várias questões, destaque-se o envio de bolseiros para as universidades de Bordéus e Santa
Bárbara, a chamada de renomados mestres escolásticos como André de Gouveia, Damião de Góis e André
de Resende, assim como, a criação de um ensino preparatório, que se materializa no Colégio das Artes,
construído em 1542. BUESCU, Ana Isabel – D. João III (1502-1557)…, pp. 245-259.
14
Seria de certo modo comum que, ao nível europeu, diversas equipas de trabalhadores viajassem entre
territórios em busca de oportunidades de trabalho. BERNARDI, Philippe – Bâtir au Moyen Âge (XIIIe-milieu
XVIe siècle). Paris: CNRS Éditions, 2011, p. 34
15
Para melhor compreender a evolução urbana da cidade de Coimbra com a abertura da Rua da Sofia,
veja-se: CRAVEIRO, Maria de Lurdes – O Renascimento em Coimbra. Modelos e Programas Arquitectónicos,
Vol. I. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2002. Tese de Doutoramento. LOBO,
Rui – Santa Cruz e a Rua da Sofia. Arquitectura e Urbanismo no Século XVI. Coimbra: EdArq, 2006. LOBO,
Rui – “Um Campus Universitário em Linha.” Monumentos 25 (2006), pp. 24-31. LOBO, Rui – “Os Colégios
Universitários de Coimbra: Enquadramento na Arquitectura Universitária Europeia e Seriação Tipológica”.
Monumentos 25 (2006), pp. 32-45. ROSSA, Walter – DiverCidade. Urbanografia do espaço de Coimbra até
ao estabelecimento definitivo da Universidade. Coimbra: Ed. do Autor, 2001; ROSSA, Walter – “A Sofia:
primeiro episódio da reinstalação moderna da Universidade portuguesa”. Monumentos 25 (2006), pp. 16-23.
TRINDADE, Luísa, A Casa Urbana em Coimbra. Dos Finais da Idade Média Aos Inícios Da Época Moderna.
Coimbra: Câmara Municipal de Coimbra, 2002; TRINDADE, Luísa – Urbanismo na composição de Portugal.
Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013.
16
MARQUES, A.H. de Oliveira – “As Instituições de Cultura”, Capítulo X – "As Realidades Culturais".
In MARQUES, A.H. de Oliveira e SERRÃO, Joel (dirs.) – Nova História de Portugal, Vol. V: Do Renascimento
à Crise Dinástica, coord. João José Alves Dias. Lisboa: Editorial Presença, 1999. p. 470.
17
BUESCU, Ana Isabel – D. João III (1502-1557)…, p. 186.
18
PEREIRA, João Cordeiro – Portugal na Era de Quinhentos: Estudos Vários. Cascais: Patrimonia, 2003.
p. 192.
352
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
um aparelho burocrático que cada vez mais lhe fosse favorável19. Aliás, toda a
bibliografia que sobre esta questão se debruça aponta para uma total escassez de
recursos financeiros, um endividamento externo que, com o passar do tempo,
registava agravamentos constantes que rapidamente sorviam os valores lucrados
com as expedições ultramarinas.
Nas finanças régias do reinado do Piedoso, entre as despesas extraordinárias
de carácter público praticadas entre 1522 e 1543 estavam incluídos cerca de 30 000
cruzados reservados aos estudos de Coimbra, muito provavelmente destinados aos
gastos com a fundação da Universidade20 e a construção dos colégios21. No entanto,
no estado atual das investigações, não é possível ter uma perceção do impacto
financeiro que a construção dos colégios comportou para as finanças da coroa, uma
vez que são raros os estudos que abordam esta temática, e ainda mais raras as fontes
documentais especificas sobre esta questão.
Em acréscimo às avultadas quantias despendidas em gastos ordinários –
inerentes ao funcionamento do aparelho burocrático, sobretudo de carácter público
– e extraordinários – que João Cordeiro Pereira apelidou de “extravagantes” –
tenhamos em conta as constantes letras de câmbio a que se recorreram nas praças de
Antuérpia ou Medina del Campo e que elevaram as dívidas da coroa ao valor de 808
600 000 reais em 153422.
2. O Colégio da Graça de Coimbra.
O contexto anteriormente esboçado aponta-nos para a iniciativa régia como principal
motor do desenvolvimento cultural e urbano da cidade de Coimbra. Porém, note-se
que para o surgimento das estruturas colegiais foi necessário que as ordens religiosas
se interessassem por as fundar e lhes conferir corpos administrativos.
O Colégio da Graça parte da iniciativa fundacional da Ordem dos Eremitas de
Santo Agostinho, também conhecidos, na província portuguesa, por Agostinhos. A
ordem construiu as suas primeiras casas em Lisboa de onde, de resto, partem diversas
remessas monetárias para construção do Colégio da Graça. À época encontravase num processo de reforma espiritual e estrutural, com a vinda de reformadores
BUESCU, Ana Isabel – D. João III (1502-1557)…, p. 187.
Questão que merece melhor desenvolvimento – impossível nas linhas que aqui se escrevem – que
se encontra plasmado em: ALARCÃO, Rui de et. alli (orsg.) – História da Universidade em Portugal. 2 vols.
Coimbra: Universidade de Coimbra, [D.L.] 1997
21
Que ocorreram, sobretudo, após 1537, data da transferência dos Estudos-Gerais de Lisboa para
Coimbra. São contemporâneas da construção do Colégio da Graça as construções do Colégio do Carmo
(iniciada em 1540), do Colégio de S. Pedro (fundado em 1540), do Colégio de São Tomás (fundado em 1543)
e o Colégio de São Boaventura (fundado em 1543). DICIONÁRIO da História de Portugal, vol. III: “Fiança –
Lisboa”. Dir. Joel Serrão. Porto: Figueirinhas, 2000. p. 36.
22
PEREIRA, João Cordeiro – Portugal na Era de Quinhentos..., p. 190.
19
20
ABASTECER UM ESTALEIRO CONSTRUTIVO: O EXEMPLO DO COLÉGIO DA GR AÇA [...]
353
espanhóis para Portugal ante solicitação de D. João III, após um episódio tumultuoso
que envolveu as eleições para o cargo de provincial da ordem nesta província. Pela
estreita ligação que nutria junto do prior-geral da ordem, Jerónimo Seripando, o
monarca disponibiliza-se a apoiar a referida reforma, e a patrocinar a construção
da casa que os Agostinhos, então, queriam construir em Coimbra23. De resto, será
uma constante a participação ativa do monarca no aprovisionamento financeiro do
estaleiro. Sendo D. João III o principal impulsionador do empreendimento cultural
na cidade de Coimbra, seria expectável que assumisse um papel mecenático de
relevo, sobretudo com o intuito de conferir certa celeridade ao processo construtivo,
conquanto que este nunca embargasse por escassez de fundos.
Percentagem dos valores recebidos segundo
proveniência: 4 140 000 reais
340 000; 8%
683 000; 17%
3 117 000; 75%
Rei
Vila Franca
Bispo de Coimbra
Gráfico 1 – Distribuição em percentagem das receitas atribuídas para a construção
do Colégio da Graça de Coimbra (1543-1547).
A construção do Colégio da Graça de Coimbra insere-se, assim, neste espectro
reformista. Assim como atestado pelo registo de abertura do Libro das obras del
Collegio de Nuestra Señora de Gracia, a construção teve início a 3 de março de
1543, sob direção técnica e artística de Diogo de Castilho. Neste registo é indicada a
primeira receção de uma remessa monetária, de patrocínio régio, precisamente para
23
ALONSO, Carlos – “Las Visitas de Tres Priores Generales del Siglo XVI a la Provincia Agustina de
Portugal”. In CRUZ, Maria do Rosário Temudo Barata et alii (eds.) – Amar, Sentir e Viver a História: Estudos
de Homenagem a Joaquim Veríssimo Serrão, Vol. I. Lisboa: Edições Colibri, 1995. pp. 275-289.
354
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
que se comprassem os chãos e se principiasse à construção24. Desse momento em
diante, pelo menos até 1547, são registados cerca de 4.140.000 reais (cerca de 10 350
cruzados25) dos quais, como é possível atestar através do gráfico 1, 75% foram providos
pelo rei, perfazendo 3.117.000 reais (7800 cruzados)26. Viria a durar até 1548, apesar
da igreja apenas ter sido consagrada e terminada em 155527. Infelizmente, o livro de
obras, apenas dispõe dos registos referentes à construção do colégio, pelo que ficou
por se registar a despesa da construção da igreja. Ainda assim, à luz do que referimos
no início deste nosso trabalho, o testemunho constante de 5 anos de construção é
importantíssimo para a compreensão da dinâmica do estaleiro aqui em estudo.
A construção conheceu ritmos diversos que conseguimos acompanhar através
do número de registos dos contratos celebrados com os trabalhadores, tendo em
vista obras de pedraria, carpintaria e, em menor escala, de ferraria. A julgar pelos
prazos estabelecidos nos diversos contratos de empreitada, foi necessário conferir
uma certa celeridade ao processo construtivo, muito provavelmente pela vontade
do monarca em tornar efetiva a reforma do ensino, conquanto que as estruturas de
apoio tivessem construídas em tempo útil28. Esse ritmo construtivo, inicialmente
acelerado, vai-se esbatendo nos finais de 1547 com o aproximar do fim da construção
da estrutura reservada ao colégio. Vejamos, então, em que moldes se processou a
aquisição de material e todas as condicionantes que a envolveram.
2.1. Aquisição de material.
O abastecimento material de um estaleiro suscita na cidade onde se insere um
processo de potencialização dos seus recursos materiais. Usualmente, os estaleiros
medievais e modernos recorriam a estratégias de aquisição/extração de matériaprima para a construção que poderiam passar pelo abastecimento de material
construtivo nas zonas que os circundavam ou pela construção do edifício junto
a regiões ricas nesses recursos29. Prática que, pelo menos no caso português, não
Braga, Arquivo Distrital, Ms. 1019. fl. 2.
Optamos por apresentar os valores na unidade monetária cruzado em virtude de termos feito
referência às finanças régias nessa mesma moeda. De qualquer modo, a unidade monetária mais utilizada
no livro de obras era o real. A conversão é-nos dada pelo próprio livro de obras, presente em cada página na
coluna da direita. Assim, 1 cruzado equivalia a 400 reais.
26
Confrontando este valor com o que acima mencionamos acerca das finanças régias no reinado de D.
João III, questionamo-nos sobre a sua proveniência. Muito provavelmente seriam valores que fariam parte
dos 30000 cruzados reservados aos estudos ainda que, ao nível cronológico, não se enquadrem nas balizas
apresentadas. DICIONÁRIO da História de Portugal, vol. III: “Fiança – Lisboa” …, p. 36.
27
CRAVEIRO, Maria de Lurdes – Diogo de Castilho e a Arquitectura da Renascença em Coimbra.
Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1990. Dissertação de Mestrado. p. 120.
28
A 3 de Outubro de 1547, Pero Luís, João Luís e Jerónimo Afonso contrataram terminar a obra de
pedraria do claustro e colocar os alcaduçes necessários dali a 8 meses, em junho de 1548. Braga, Arquivo
Distrital, Ms. 1019. fl. 37v.
29
BERNARDI, Philippe – Bâtir au Moyen Âge…, p. 50.
24
25
ABASTECER UM ESTALEIRO CONSTRUTIVO: O EXEMPLO DO COLÉGIO DA GR AÇA [...]
355
parece ter sido usual, sobretudo na construção de edifícios de caráter religioso, que
tenderia a eleger regiões consagradas ou pré-determinadas.
De toda a maneira, era desejável que o acesso à matéria-prima fosse o menos
custoso possível; o transporte dos recursos materiais era, regra geral, bastante
moroso e dispendioso, variando consoante a qualidade dos materiais, a distância e
caminho a percorrer até que estes fossem entregues no estaleiro. Porém, em situações
onde o orçamento se revestia de um certo desafogo financeiro e acompanhava a
magnanimidade que se pretendia conferir ao edifício, recorria-se, não raras vezes,
a uma “importação” desse material construtivo de outras zonas do reino ou, até, de
outras regiões do globo30. Matérias-primas de excelência traziam ao edifício o prestígio
desejado, a par de uma resistência sobremodo importante para a sua longevidade.
Do mesmo modo, a preferência por matéria-prima homogénea, proveniente de uma
região especifica – como a pedra de Ançã – potenciavam uma desejável continuidade
ao nível da estética do edifício e, sobretudo, ao nível da resistência que esses materiais
lhe conferiam.
No decorrer da nossa investigação pudemos constatar que a construção do
Colégio da Graça se fez dentro destes moldes. A recorrência a material construtivo
das proximidades do estaleiro, assim como, a obtenção de terrenos onde se pudesse
tirar proveito dos seus recursos – como no caso da pedreira localizada nos terrenos
adquiridos para a construção do colégio31 – fizeram bandeira da estratégia financeira
adotada pela administração do estaleiro, tendo em vista uma efetiva contenção
desses custos.
O processo de aquisição de matéria-prima era simples e análogo ao modelo
de contratação de trabalhadores32: contratava-se com o produtor o fornecimento de
uma determinada quantidade de matéria-prima – transformada ou por transformar
–, com especificidades ao nível do seu tipo, qualidade e dimensões33. Incluíam-se
também determinadas clausulas relativas aos valores a serem pagos, em que moldes
30
MELO, Arnaldo Sousa; RIBEIRO, Maria do Carmo – “Os Materiais Empregues nas Construções
Urbanas Medievais. Contributo Preliminar Para o Estudo da Região do Entre Douro e Minho”. In MELO,
Arnaldo Sousa; RIBEIRO, Maria do Carmo (coords.) – História da Construção: os Materiais. Braga: CITCEM,
2012, pp. 127-166.
31
A 7 de Março de 1544 paga-se a um carreiro que transportou a pedra proveniente do Monte Olivete,
topónimo associado aos terrenos que foram comprados para a construção do edifício. Braga, Arquivo Distrital,
Ms. 1019. fl. 118.
32
Processo que se verifica com frequência noutras construções dos finais da Idade Média, ver:
MARTINS, Diana – O Paço da Alcáçova de Lisboa… e SABUGOSA, Conde de – O Paço de Cintra…, pp. 221
-243.
33 A existência de mercados de venda de materiais de construção era uma realidade ao nível europeu.
Porém, o seu estudo é de difícil execução, pela carência de fontes que os comprovem, e pelo caráter volátil que
lhes era inerente. BERNARDI, Philippe – Bâtir au Moyen Âge…, pp. 91-92.
356
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
e com que condicionantes34. Definiam-se as medidas exatas, em varas ou côvados e,
em determinados casos, indicava-se a bitola pretendida através de um desenho que
acompanhava o registo de encomenda do material.
É interessante constatar o nível de especialização dos trabalhadores da
construção que encontra expressão neste estaleiro, patente na distinção entre
carpinteiros/serradores, oleiros/telheiros e pedreiros/cabouqueiros35, permitindonos destrinçar entre aqueles que executavam e empreendiam os materiais e aqueles
que os produziam e forneciam.
Número de registos no
livro de contabilidade*
Valores finais (Reais)**
Pedra
25
19229
Madeira
161
650725
Cal
55
120375
Telha
40
60562
Tijolo
35
37538
Metal
175
128400
Total
491
1016829
Tabela 1 – Registo das despesas realizadas com a compra de material ao longo de toda a construção
do edifício referente ao colégio (1543-1548).
* A coluna "Número de registos no livro de contabilidade" faz referência ao número de registos
existentes no livro de obras, relativamente à compra dos distintos materiais.
** A coluna "Valores finais (Reais)" contempla um somatório de todas as despesas que surgem
nas restantes tabelas, divididas a nível tipológico.
Os valores apresentados na tabela 1 contemplam a compra de material
construtivo, dividido entre os diversos recursos utilizados. Num universo de
4.140.000 de reais despendidos na construção do colégio, cerca de 1.016.869 reais
foram gastos na aquisição de material, correspondendo a um quarto do orçamento
Veja-se o caso do contrato celebrado com Fernão Jorge e o seu filho Francisco Peres, moradores em
Trouxemil, no dia 1 de junho de um ano que não surge indicado, para que produzissem 2 milheiros de telha
pelo valor de 480 reais por milheiro. No entanto, se o material fosse entregue na sua totalidade antes do dia
de Santiago (25 de julho), passaria a ser pago a 500 reais por milheiro. Arquivo Distrital de Braga, Ms. 1019.
fl. 50v.
35
Note-se que, em construções de orçamentos mais modestos, seria comum que os trabalhadores se
vissem obrigados a desempenhar duas funções dentro do seu mester, dado que não seria possível recorrer à
contratação de mão-de-obra específica para determinada tarefa. Por outro lado, já no século XV existia nas
obras do Mosteiro da Batalha o cargo de capitalador e, inclusive, um mestre vidreiro. GOMES, Saúl António
– “Um estaleiro medieval de Excelência: O Mosteiro da Batalha”. In MATEUS, João Mascarenhas (ed.) – A
História da Construção em Portugal: Alinhamentos e Fundações. Coimbra: Almedina, 2011. pp. 49-78.
34
ABASTECER UM ESTALEIRO CONSTRUTIVO: O EXEMPLO DO COLÉGIO DA GR AÇA [...]
357
disponível. Sabemos que estes não são valores absolutos. Para além do caráter
incompleto de certos registos – uma vez que na maior parte dos casos estes dependiam
de pagamentos em prestações, sobre as quais não nos é apresentado um balanço final
– acresceriam igualmente os associados ao transporte dos materiais – poucas vezes
referidos neste livro de obras – que, tanto quanto sabemos, poderiam ser imputados
a quem vendia, ou a quem comprava.
Atendendo aos valores referentes à aquisição de pedra, podemos constatar que,
no panorama geral da aquisição dos restantes materiais, estes se revelaram irrisórios,
constituindo um contrassenso se os considerarmos como absolutos. Porém,
relacionavam-se apenas com o pagamento da extração e desbaste da matéria-prima
ao pedreiro ou cabouqueiro que a executava, geralmente a rondar os 10 reais por
carrada, ao invés do preço da pedra em concreto36.
A pedra foi adquirida em regiões relativamente próximas do estaleiro, como
parte da estratégia delineada tendo em vista a redução de custos no seu transporte.
Assim, pela toponímia das pedreiras referidas nos registos de compra de material,
duas seriam relativamente próximas ao estaleiro: a do Monte Olivete, à qual já
fizemos menção anteriormente; e de São Lázaro, possivelmente localizada junto ao
atual hospital da Universidade de Coimbra, propriedade de Diogo de Castilho37.
Constata-se, então, que o estaleiro se abasteceu de pedra, quase exclusivamente,
na região de Coimbra. A exceção, neste caso, vai para a compra de pedra da região de
Ançã. Esta matéria-prima é categorizada dentro dos recursos materiais de prestígio,
a que anteriormente aludimos, nomeadamente por tipicamente compor construções
onde o investimento financeiro era deveras superior. A sua resistência, beleza e
facilidade no manuseamento tornavam-na uma matéria-prima pouco acessível e de
maior pendor escultórico. No entanto, na cidade de Coimbra era possível obtê-la
por valores mais reduzidos, uma vez que Ançã se localiza geograficamente nas suas
imediações. O que, por sua vez, pode justificar que este recurso material tivesse sido
empregue com alguma frequência nesta construção.
A madeira, por seu turno, chegava ao estaleiro de zonas geográficas bem mais
distantes de Coimbra. Pelos registos de compra e venda de material, pudemos apurar
que o estaleiro comprou madeira a serradores e/ou madeireiros que eram moradores
em Miranda do Corvo, Cantanhede, Penacova, Carapinheira, Tentúgal, Santa Comba
36
Existem vários exemplos nos contratos e/ou pagamentos avulsos realizados junto dos pedreiros e
cabouqueiros. Vejam-se os anexos à nossa tese de mestrado onde incluímos tabelas que permitem ter uma
melhor visão de conjunto sobre esta questão. PONTES, João – Construção do Colégio da Graça..., pp. 89-96;
187-190. A título de exemplo, veja-se o pagamento feito a António Eanes, cabouqueiro, no dia 26 de abril de
1544, pela extração de 55 carradas de pedra, sendo pago com 550 reais, perfazendo os já mencionados 10 reais
por carrada. Braga, Arquivo Distrital, Ms. 1019. fl. 113v.
37
Ainda que exista um valor associado pela sua aquisição, 8,5 reais por carrada, é demasiado irrisório
para que se possa considerar que tenha sido pago pela pedra em si. Braga, Arquivo Distrital, Ms. 1019. fl.106.
358
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Dão, Lousã e Vila Nova e, fora do termo, em Coja, no atual concelho de Arganil38.
Também na aquisição desta matéria-prima vemos que Diogo de Castilho assume um
papel de relevo, ao vender ao estaleiro um tipo específico de madeira, o tabuado de
portu, muito provavelmente também ela proveniente de uma das suas propriedades39.
Neste sentido, a compra de madeira já nos permite ter uma noção mais clara
quer da sua forma de obtenção, quer dos tipos e formatos obtidos. O estaleiro
assumiu preferência pela aquisição de madeira proveniente do castanheiro, pinheiro
e carvalho, sendo de notar que apenas o castanheiro não se configurava como uma
das espécies autóctones da região40. Através de diversos contratos ou de compras
diretas, denota-se uma procura de madeira já transformada por parte do estaleiro,
dividindo-se em formatos e dimensões variadas, nomeadamente: xemezes41, traves
de diversas medidas sendo as mais comuns de 10 e 12 côvados, barrotes, tabuado,
paus, ripe e formatos indefinidos que comodamente se designavam por “madeira”.
Regressando à tabela 1, podemos constatar que o valor associado à compra
de madeira foi aquele que maior expressão teve no orçamento destinado à compra
de material. Usualmente, em edifícios de prestígio, recorria-se à madeira enquanto
material construtivo por motivos de apoio à construção – fabrico de utensílios,
andaimes, cimbres –, assim como, para a construção dos solos, divisórias das celas,
janelas, portas, entre outras estruturas necessárias, mas não essenciais. A estrutura
base do edifício seria a pedra que, por seu turno, seria complementada com o uso da
madeira, do ferro, da cal e de diversos materiais de olaria42.
Para a compra de madeira dispomos de diversos valores que poderiam variar
consoante a sua qualidade, quantidade e dimensão. Conforme pudemos constatar,
os valores para o tabuado proveniente do castanheiro oscilaram entre os 120 e os
170 reais a dúzia. Existiram casos onde os valores de compra variaram das balizas
apresentadas, mas onde variavam, também, as dimensões: 300 reais a dúzia pela
compra de barrotes deste tipo de madeira. Do tabuado proveniente do carvalho, os
valores pela dúzia oscilaram entre os 90 e os 100 reais, para tábuas de 10 ou 12 côvados,
38
Orlando Ribeiro e Hermann Lautensach num esforço de divisão do território português em secções
com características comuns ao nível da flora, enquadram a região de Coimbra entre a secção Norte e a da
Estremadura. Apresenta um coberto vegetal onde predomina o carvalho alvarinho, carvalho negral, pinheiro
bravo, muitas espécies de urze e tojo e o feto comum (secção Norte) assim como o carvalho português –
na variedade de Quercus de folha caduca e perene – carrasco, a oliveira – na variedade de zambujeiro e
na variedade de cultivo –, o pinheiro bravo e o carvalho anão (secção Estremadura). RIBEIRO, Orlando e
LAUTENSACH, Hermann – Geografia de Portugal, Vol. II. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1988, p. 551.
39
A denominação deste tipo de tabuado deixa algumas dúvidas. Poderia ser um tabuado proveniente
da região do Porto, onde Diogo de Castilho era proprietário de alguns terrenos. Braga, Arquivo Distrital, Ms.
1019. fl. 89.
40
Sobre esta questão, remetemos para uma das mais conceituadas e completas obras que existem para o
estudo da flora e da paisagem natural de Portugal ao longo de vários períodos históricos: RIBEIRO, Orlando;
LAUTENSACH, Hermann – Geografia de Portugal, vol. I e II. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1987 e 1988.
41
Paus de pequena dimensão.
42
MELO, Arnaldo Sousa; RIBEIRO, Maria do Carmo – “Os Materiais Empregues...”. pp. 127-166.
ABASTECER UM ESTALEIRO CONSTRUTIVO: O EXEMPLO DO COLÉGIO DA GR AÇA [...]
359
respetivamente. Finalmente, do tabuado extraído do pinheiro, os valores variaram
entre os 60 e os 130 reais, mediante as dimensões e, cremos, a sua proveniência. Para
além disso, o tabuado proveniente de Coja e de Tentúgal foi comprado a valores
próximos dos referidos. Para o caso de Coja, contratou-se o aprovisionamento de
tabuado de palmo e meio por 90 reais a dúzia e de 2 palmos por 130 reais a dúzia.
Já para a madeira que chegou ao estaleiro vinda de Tentúgal, foi comprada em duas
instâncias por 140 e 145 reais a dúzia43.
Dos restantes materiais em uso na construção deste edifício destaque-se o uso
da cal, do barro e argila – em diversos formatos – e das ferragens e diversos objetos
em ferro. Importa aqui termos presente que, entre os diversos recursos materiais
utilizados na construção, aqueles que mais intimamente se relacionam com o meio
urbano são a cal e os materiais de olaria. Isto porque a sua produção depende da préexistência de um forno, grosso modo parte integrante do “mobiliário” urbano. Estas
estruturas podiam pertencer a privados ou, como em alguns casos, à coroa, a qual
cedia a sua utilização aos habitantes de uma determinada região44.
Em ambos os casos o produto final era obtido através da cozedura de um
determinado material: pedra calcária para o caso da cal e argila e barro para o caso
do tijolo e telha45.
A cal era utilizada como material ligante na produção de argamassas e,
paralelamente, como tinta para pintar os muros e paredes dos edifícios46. Pela
quantidade de registos de compra presentes no livro de obras, cremos que se tenha
recorrido a esta matéria-prima com diversos intuitos. Porém, é curioso constatar que
apenas conseguimos apurar a identidade de um vendedor deste material: Tristão Dias,
caieiro e morador na cidade de Coimbra. O contrato que firmou com o estaleiro para
o fornecimento de cal, seguindo uma lógica de imobilidade inerente aos fornos de
cal, aponta para que tenha sido precisamente dessa cidade que este caieiro forneceu
o material. De um modo parcial são referidos outros dois caieiros que, apesar de não
termos menção concreta acerca da sua proveniência, podemos intuí-la através dos
seus nomes: Pedro Eanes da Póvoa e Fernando Eanes de Bordalo47.
43
Para um melhor esclarecimento desta questão, veja-se: PONTES, João – Construção do Colégio da
Graça..., pp. 96-105.
44
Veja-se um caso proveniente da Chancelaria de D. Manuel I, onde este doa ao Mosteiro da Batalha
os fornos de cal e telha, adquiridos para auxílio da construção do dito mosteiro. GOMES, Saúl António –
“Materiais de Construção na Região de Leiria em Tempos Medievais”. In MELO, Arnaldo Sousa; RIBEIRO,
Maria do Carmo (coords.) – História da Construção: Os Materiais. Braga: CITCEM, 2012. p. 175.
45
GOMES, Saúl António – “Materiais de Construção na Região de Leiria em Tempos Medievais”. In
MELO, Arnaldo Sousa; RIBEIRO, Maria do Carmo (coords.) – História da Construção: Os Materiais. Braga:
CITCEM/LAMOP, 2013. pp. 127-166.
46
A 13 de Outubro de 1547 comprou-se cal para que fosse empregue nos alicerces do claustro do Colégio
da Graça. Braga, Arquivo Distrital, Ms. 1019. fl. 113v
47
No tempo presente, podemos encontrar analogias entre as nomenclaturas dos municípios próximos
de Coimbra e os sobrenomes destes mesteirais ainda que, à falta de referências concretas, optemos por nos
remeter ao silêncio.
360
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Regressando aos valores envolvidos, constatamos que a cal foi comprada pelo
estaleiro, maioritariamente por valores que oscilaram entre os 90 e 100 reais por cada
moio, apesar de existirem casos onde os valores praticados foram inferiores. Contudo,
foram notadas algumas flutuações nos preços que podem ter sido motivadas pela
tipologia e qualidade da cal, registando-se a compra de cal branca, de meirinho,
velha, grossa e delgada. A qualidade pode ter sido o fator decisivo na definição do
valor a ser pago pelo material48.
Ao nível da olaria, sabemos que esta chegava ao estaleiro em diversos formatos:
tijolos, telhas, cântaros, alguidares, entre outros. Sendo de uso mais diversificado,
variando consoante o formato que conheceria, estes recursos materiais poderiam
ser aplicados por todo o colégio: desde a cobertura dos edifícios aos utensílios de
cozinha. Grosso modo, os formatos mais requeridos seriam a telha e o tijolo, este
último, sobretudo, com o propósito de construir as abóbadas que cobrem as galerias
do claustro ou as capelas laterais da igreja.
Ainda que existam poucas referências à proveniência deste material, sabemos
que foram celebrados contratos com um oleiro de Coimbra e outro da zona do
Botão, assim como foram compradas telhas na Marmeleira e em Trouxemil. Para
além destes dois casos, registou-se um curioso empréstimo de 2000 telhas que foi
concedido pelos padres do Colégio de Nossa Senhora do Carmo. Por seu turno, o
tijolo foi sobretudo comprado a 3 oleiros, dos quais não conhecemos naturalidade:
João Peres, Dom João de Alcinha e Francisco Eanes, o velho.
De toda a maneira, o estaleiro comprou telha por valores que rondaram os 480
e os 530 reais por cada milheiro. Já no que toca ao tijolo, os parcos registos de que
dispomos apresentam-nos uma tipologia variada: de alvenaria, mazaril e de forcado.
Sendo poucas vezes referidos os valores associados à compra de tijolos, apenas
conseguimos apurar, partindo de registos singulares, que o preço do milheiro de
tijolo de alvenaria custava 500 reais49; o milheiro de tijolo mazaril, 1200 reais e, por
fim, meio milheiro de tijolo de forcado valia 350 reais50.
Finalmente, a compra de ferro foi feita quase que em exclusivo a Gabriel de
Rosa. À exceção da compra de uma ampla lista de diversos tipos de pregos, a quase
totalidade de aquisições de material construtivo em ferro foi feita junto deste ferreiro,
o qual, assim cremos, também seria responsável pelas empreitadas de ferraria que lá
tiveram lugar. Aliás, quando por vezes se comprou ferro em bruto, este foi dado
a Gabriel de Rosa para que com este criasse os objetos pretendidos. Seguindo as
grandes linhas de investigação relativas à indústria metalúrgica na Idade Média, seria
PONTES, João – Construção do Colégio da Graça..., pp. 106-109.
A título de curiosidade, o tijolo de alvenaria que foi comprado para as obras do Paço de Sintra,
registadas no livro truncado de receita e despesa (1507-1510) publicado pelo Conde de Sabugosa, rondaria os
650 reais por milheiro. SABUGOSA, Conde de – O Paço de Cintra…, p. 228.
50
PONTES, João – Construção do Colégio da Graça..., pp. 109-113.
48
49
ABASTECER UM ESTALEIRO CONSTRUTIVO: O EXEMPLO DO COLÉGIO DA GR AÇA [...]
361
comum que as ferrarias se localizassem próximas das jazidas de extração de ferro, o
que facilitava o acesso à matéria-prima e reduzia substancialmente as despesas no
transporte51. Ainda assim, não nos é indicada a naturalidade deste mesteiral nem,
quanto muito, a proveniência do ferro que chegava em bruto à sua oficina.
De resto, o uso do ferro na construção em muito se relacionava com as estruturas
de madeira que se haveriam utilizado na construção do edifício, nomeadamente por
ser a estas que se acoplavam os ferrolhos, aldrabas e fechaduras e se produziam as
indispensáveis ferramentas de trabalho dos diversos ofícios da construção.
A compra de ferro fez-se em diversos objetos necessários, sobretudo, à segurança
do edificado. Para tal, logo no início dos trabalhos foi comprado um rol de objetos em
ferro que surge registado no livro de obras. Destaque-se a compra de uma variedade
de tipos de pregos – pontais, mitares, palmares, caibrais e tabuares52 –, ferrolhos,
aldrabas, fechaduras, entre outros. Relativamente aos pregos, os preços variavam
conforme as suas tipologias: 420 reais por cada milheiro de pregos indiscriminados;
300 a 400 reais pelo milheiro de pregos tabuares; 400 reais pelo milheiro de pregos
caibrais; 6 reais por 25 pregos palmares e 900 a 1250 reais pelo milheiro dos pregos
mitares.
No que toca aos ferrolhos, o valor pago pelos de pequena dimensão foi de 80
reais por unidade e, os de grande dimensão, entre 120 e 140 reais por cada um. Já
os fechos e fechaduras mouriscos custavam 500 reais, os fechos corrediços valiam
160 reais a unidade e os fechos de golpe variaram entre 30 reais por cada unidade,
numa encomenda de 4 unidades, e 250 reais por uma unidade apenas – disparidade
possivelmente relacionada com dimensão do objeto. Por fim, as aldrabas grandes
– indicadas num registo como sendo de palmo e meio53 – seriam pagas a 30 reais a
unidade e, as de menor dimensão, entre 10 e 15 reais a unidade.
2.2. Transporte.
O transporte de material constituiu uma das maiores problemáticas de resolução
por parte do estaleiro. Em regra, o preço do transporte terrestre era elevadíssimo,
moroso e inseguro. Transportar grandes quantidades de pedra por longas distâncias
podia significar a perda de uma parte desse material, quer pelos roubos que ocorriam
ao longo das estradas do reino, quer pelo que representava a difícil tarefa de o fazer
ao longo de vários dias, tanto para os animais como para os próprios carreiros.
Tendo certamente presente esta questão, o estaleiro optou por criar condições
51
GIMPEL, Jean – A Revolução Industrial da Idade Média, 2ª ed. Mem Martins: Europa-América, D.L.
1986.
52
Cremos que muitas destas denominações se relacionavam com a medida do prego; os pregos palmares
mediriam um palmo.
53
Braga, Arquivo Distrital, Ms. 1019. fl. 181v.
362
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
que lhe permitissem poupar tempo e dinheiro no transporte de material. Logo nos
primeiros registos é indicada a compra de um carro54 e de alguns bois55, os futuros
responsáveis pelo transporte do material – sobremodo da pedra – dos locais de
extração e/ou compra até ao estaleiro. À luz desta questão, é importantíssimo o papel
de Álvaro Gonçalves, o boieiro da obra, responsável pelos transportes terrestres
de que a obra necessitava. Importância essa que o colocou no “quadro” laboral
permanente da obra, tendo em conta que seria pago mensalmente pelo seu trabalho
– indício dessa sua efetividade no estaleiro. Paralelamente, os almocreves parecem
ter sido mobilizados de modo a que realizassem alguns transportes para as obras do
colégio, uma vez que surgem diversas indicações da sua envolvência em transportes
que teriam como destino empreitadas concretas56.
Um dos métodos utilizados pelos estaleiros para contornar os gastos ligados ao
transporte terrestre, assim como a falta de estruturas viárias satisfatórias, passaria
por os executar por via marítima ou fluvial. É interessante constatar que esta foi
uma prática bastante recorrente na dinâmica comercial do estaleiro, destacando-se
diversos registos onde se referencia o pagamento do frete de uma ou duas barcas
ou do trabalho de uns almadieiros57 – assumimos ser um ofício semelhante ao dos
barqueiros – naturais de Coja e responsáveis pelo transporte de madeira58. Outros
exemplos mais específicos reforçam a ideia de que o estaleiro recorreu ao transporte
fluvial como forma de ter acesso ao material a custos inferiores. Em abril de 1545,
João Dias foi pago pelo transporte de 10 carradas de pedra do rio até ao estaleiro e,
num outro registo relativo à madeira comprada em Cantanhede, foi necessário pagar
aos barqueiros cerca de 11 000 reais por a terem transportado até à Ribeira59.
De resto, é curioso constatar que, em alguns casos, os trabalhadores seriam
obrigados a garantir o transporte do material do local de extração até ao estaleiro ou
algum local de encontro pré-definido, o que demonstra o quão elevados poderiam
ser os preços associados ao transporte. A título de exemplo, a 25 de novembro de
1544 foi firmado contrato de fornecimento de madeira de castanheiro com Brás
António, morador em Santa Comba, a qual deveria ser entregue na Ribeira, pagando
ele as despesas de transporte que fossem necessárias60.
Braga, Arquivo Distrital, Ms. 1019. fl. 9v.
Compra de uns bois grandes para buir nas obras. Braga, Arquivo Distrital, Ms. 1019. fl. 9v.
56
Existe, inclusive, a referência a um Fernando Eanes, almocreve de ofício, que transportou cal até ao
estaleiro. Braga, Arquivo Distrital, Ms. 1019. fl. 114.
57
Existem algumas dúvidas em torno do método de transporte a que recorriam estes trabalhadores.
Cremos que se serviam de almadias, uma espécie de canoa construída a partir de um tronco de árvore inteiro.
“Almadia”. In BLUTEAU, Rafael; SILVA, Antônio de Moraes – Diccionario da Lingua Portugueza Composto
pelo Padre D. Rafael Bluteau, Reformado, e Accrescentado por Antonio de Moraes Silva Natural do Rio de
Janeiro, Vol. I (A-K), Lisboa: Na Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789. p. 62.
58
Braga, Arquivo Distrital, Ms. 1019. fl. 105v.
59
Braga, Arquivo Distrital, Ms. 1019. fl. 85.
60
Braga, Arquivo Distrital, Ms. 1019. fl. 89.
54
55
ABASTECER UM ESTALEIRO CONSTRUTIVO: O EXEMPLO DO COLÉGIO DA GR AÇA [...]
363
Conclusões.
Ao longo da nossa exposição procuramos dar a conhecer a dinâmica laboral que
imperou no estaleiro do Colégio da Graça. Mais do que isso, procuramos dar a
conhecer um exemplo de dinâmica que teve por base um livro de contabilidade, dos
poucos que atingiram os nossos dias com registos sequencialmente completos e tão
ricos ao nível da informação disponibilizada. Assim como nos foi possível entrever,
a dinâmica comercial do estaleiro passou por uma estratégia de acesso à matériaprima proveniente de regiões circunvizinhas, possivelmente motivada pelos custos
associados aos transportes. Do mesmo modo, pela sua localização geográfica, teve
oportunidade de ter acesso a material de requinte como a pedra de Ançã.
Esta dinâmica interligou-se com a contratação de trabalhadores, uma vez que
os próprios seriam responsáveis não só pela execução de determinadas empreitadas,
mas, também, pela transformação e/ou extração de determinados recursos materiais,
tendo em vista a sua ulterior aplicação na obra. O processo de compra de material
decalcou os métodos utilizados para a contratação de trabalhadores, através dos quais
se adquiria material para a construção por intermédio de contratos de empreitada,
com clausulas e especificidades ao nível da entrega e pagamento.
A análise que empreendemos aos custos das matérias-primas leva-nos a crer
que existiam diversos fatores que afetavam os valores associados ao material. Fosse
pelo requinte e qualidade das matérias-primas, ou pelas dimensões e formatos
comprados, certo é que em inúmeros casos assistimos a valores diferentes para uma
mesma tipologia material. Contudo, os registos do livro de obras são pouco claros e,
a certo ponto, omissos no que toca às variações dos valores do material construtivo.
À falta de informações concretas, podemos apenas lançar o debate sobre a
possível existência de um mercado de venda de matérias-primas, organizado ao
nível local ou nacional, ao qual os estaleiros recorriam de modo a obter os recursos
materiais de que necessitavam. Como já aqui referimos, essa era uma realidade
ao nível europeu, sendo possível que também em território nacional pudesse ter
expressão. Mercado esse onde os custos dos materiais poderiam sofrer flutuações
relacionadas com a oferta e a procura, com as estações do ano e o mais fácil ou difícil
acesso a determinado produto. Porém serão apenas hipóteses as que aqui lançamos,
uma vez que, como Philippe Bernardi aponta, as fontes para empreender tal estudo
são poucas e dispersas61.
61
BERNARDI, Philippe – Bâtir au Moyen Âge…, pp. 91-92.
364
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Louça quotidiana e identidade
em Santarém na Idade Média
(séculos XI-XIV)
Tânia Manuel Casimiro1
Carlos Boavida2
Telmo Silva3
Resumo
Escavações arqueológicas desenvolvidas em Santarém permitiram a descoberta
de diversos recipientes que reflectem os quotidianos dos habitantes daquela
cidade durante a Idade Média (séculos XI e XIV). Este é um período de grandes
mudanças políticas e, consequentemente, sociais e culturais, que se vão traduzir
em alterações ao nível da produção e consumo de recipientes destinados às
mais diversas actividades quotidianas. O objectivo deste trabalho é mostrar
como evoluiu a morfologia e a estética destes recipientes domésticos utilizados
nas mais diversas actividades desde a confecção de alimentos, armazenamento
e consumo e como reflectem as identidades e alterações culturais e sociais
daquela população durante a Idade Média.
Palavras-chave
Santarém; Cerâmica; Consumo; Identidade.
1
Instituto de Arqueologia e Paleociências FCSH/UNL; Instituto de História Contemporânea FCSH/
UNL; Associação dos Arqueólogos Portugueses.
2
Instituto de Arqueologia e Paleociências FCSH/UNL; Associação dos Arqueólogos Portugueses.
3
Instituto de Arqueologia e Paleociências FCSH/UNL.
366
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Identity and everyday pottery in Santarém during the Middle Ages
(11th-14th centuries)
Abstract
Archaeological excavations made in Santarém led to the discovery of a high
number of ceramic vessels reflecting the daily lives of the inhabitants of that city
during the Middle Ages (11th-14tth century). This is a period of political, social
and cultural changes reflected in the production and consumption of ceramic
objects. This paper aims to discuss the morphological and aesthetical evolution
of ceramic pots used in diverse activities such as cooking, eating and drinking
and how these reflect regional identities, and social and cultural modifications
during that time.
Keywords
Santarém; Pottery; Consumption; Identity.
Introdução.
Santarém é uma cidade localizada num planalto sobranceiro ao Tejo cujas evidências
arqueológicas de ocupação medieval podem ser localizadas entre os séculos VIII e
XIV identificadas por diversos arqueólogos nas últimas décadas4. Elas correspondem
4
Ver VIEGAS, Catarina; ARRUDA, Ana Margarida – “Cerâmicas islâmicas da Alcáçova de Santarém”.
Revista Portuguesa de Arqueologia 2,2 (1999), pp. 105-186; BATATA, Carlos; BARRADAS, Elisabete; SOUSA,
Vanessa – “Novos vestígios da presença islâmica em Santarém”. In AMADO, Carlos; MATA, Luís (coords.) –
Santarém e o Magreb: encontro secular (970-1578). Santarém: Câmara Municipal, 2004, pp. 68-77; LIBERATO,
Marco – A cerâmica pintada a branco na Santarém Medieval: uma abordagem diacrónica: séculos XI a XVI.
Lisboa: Universidade de Lisboa, 2011. Tese de Mestrado em Arqueologia (policopiado); LIBERATO, Marco
– “A pintura a banco na Santarém Medieval. Séculos XI a XVI”. In GONÇALVES, Maria José; GÓMEZMARTÍNEZ, Susana (coord.) Actas do X Congresso Internacional de Cerâmica no Mediterrâneo Ocidental.
Silves: Câmara Municipal, Campo Arqueológico de Mértola, 2015, pp. 777-791; LIBERATO, Marco; SANTOS,
Helena – “Circulação de materiais setentrionais na Santarém medieval”. In GONÇALVES, Maria José;
GÓMEZ-MARTÍNEZ, Susana (coord.) Actas do X Congresso Internacional de Cerâmica no Mediterrâneo
Ocidental. Silves: Câmara Municipal, Campo Arqueológico de Mértola, 2015, pp. 461-465; SANTOS, Helena;
LIBERATO, Marco – “Em torno da cerâmica pintada a branco. Uma proposta de diacronia pós-islâmica
na Santarém medieval”. Arqueologia Medieval 12 (2012) pp. 59-70; SANTOS, Helena; LIBERATO, Marco
– “A reafirmação da centralidade regional: séculos X-XII”. In MATIAS, António (coord.) Santarém. Carta
Arqueológica Municipal. Santarém: Câmara Municipal, 2018, pp. 138-147; SILVA, Marta Cristina de São
Marcos Inácio da – A Cerâmica Islâmica da Alcáçova de Santarém, das unidades estratigráficas 17, 18, 27, 28,
LOUÇA QUOTIDIANA E IDENTIDADE EM SANTAR ÉM NA IDADE MÉDIA
367
a sistemas defensivos, ambientes domésticos, edifícios religiosos, necrópoles e áreas
de produção.
Entre 2010 e 2015 os autores foram responsáveis pela execução de diversas
obras de acompanhamento arqueológico em variadas áreas da cidade5, permitindo o
reconhecimento de diversos contextos arqueológicos, tanto em ambiente rural como
urbano, possíveis de datar entre os séculos XI e XIV (Fig. 1). Não foram identificados
vestígios posteriores, nomeadamente dos séculos XV e XVI, época de transição entre
a Idade Média a Modernidade. A ausência de testemunhos arqueológicos destas
cronologias parece ser comum a outras intervenções arqueológicas visto nenhum
local daquelas constar na recente carta arqueológica6.
As intervenções arqueológicas efectuadas pelos autores foram feitas no âmbito
de obras de acompanhamento aquando necessidade de substituir infraestruturas e
consequente manutenção das redes eléctrica, telefónica, de abastecimento de águas e
de saneamento. Ainda que contextos identificados aquando destes acompanhamentos
correspondam a diversas tipologias aqui iremos focar-nos apenas na cultura material
associada a lixeiras oriundas de contextos domésticos.
Esta longa cronologia corresponde a momentos de alterações fundamentais,
sobretudo a nível político naquela cidade, decorrentes essencialmente da Reconquista
Cristã e da instabilidade política daí resultante. Apesar de terem surgido evidências
de ocupação medieval em vários locais, o presente trabalho contempla objectos
recuperados na Travessa das Capuchas, Largo Pedro Álvares Cabral, Largo Pedro
António Monteiro e Alfange. Nestes locais não foram apenas recuperadas cerâmicas
mas igualmente objectos metálicos e vítreos, assim como um grande número de
restos faunísticos, resultantes das actividades diárias dos habitantes da cidade. Estes
locais foram datados com base na sua cultura material, a qual inclui numismas, de
entre meados do século XI e finais do século XIV.
A maior parte dos contextos medievais onde podemos reconhecer materiais
arqueológicos medievais em Santarém dizem respeito a silos, que foram transformados
30, 37, 39, 41, 193, 195, 196, 197 e 210. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2011. Tese de Mestrado em Arqueologia
(texto policopiado).
5
Ver BOAVIDA, Carlos; CASIMIRO, Tânia Manuel; SILVA, Telmo – “Travessa das Capuchas,
Santarém. Silos e espólios trecentistas numa necrópole islâmica: primeira notícia”. Almadan 18,1 (2013a), pp.
132-134; BOAVIDA, Carlos; CASIMIRO, Tânia Manuel; SILVA, Telmo – “Os silos medievais da Travessa das
Capuchas”. In ARNAUD, José Morais; MARTINS, Andrea; NEVES, César (ed.) – Arqueologia em Portugal
– 150 anos. Lisboa: Associação dos Arqueólogos, 2013b, pp. 937-945; BOAVIDA, Carlos; CASIMIRO, Tânia
Manuel; SILVA, Telmo – “Do Romano ao Contemporâneo: 2000 anos de Arqueologia nas Ruas de Santarém”.
Arqueologia e História 66-67 (2014/2015), pp. 63-84; CASIMIRO, Tânia Manuel; BOAVIDA, Carlos; SILVA,
Telmo; NEVES, Dário – “Ceramics and Cultural Change in Medieval (14th-15th century) Portugal: The case of
post-Reconquista Santarém”. Medieval Ceramics 37 (2018), pp. 21-35; CASIMIRO, Tânia Manuel; FERREIRA,
Ana Filipa; SILVA, Telmo – “Alfange: núcleo habitacional nos arrabaldes de Santarém em época islâmica”.
Arqueologia e História 66-67 (2014/2015), pp. 85-96.
6
MATIAS, António (coord.) – Santarém. Carta Arqueológica Municipal. Santarém: Câmara Municipal,
2018.
368
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Fig. 1 – Intervenções Arqueológicas da ARPA no Centro Histórico de Santarém:
1. Rua Jaime Figueiredo 27 (2009); 2. Rua 31 de Janeiro 36 (2010); 3. Avenida do Brasil 59 (2009); 4.
Praça Sá da Bandeira/Rua Serpa Pinto (2010); 5. Rua Luís de Camões (2013); 6. Rua Capelo e Ivens
98 e 100 (2009); 7. Rua Guilherme de Azevedo (2011); 8. Rua Dr. Teixeira Guedes (2009); 9. Santa
Casa da Misericórdia de Santarém (2009/10); 10. Rua do Arco de Manços (2010); 11. Travessa dos
Pasteleiros 9 (2012); 12. Rua Miguel Bombarda (2011); 13. Travessa das Frigideiras (2010); 14. Praça
Visconde da Serra do Pilar (2009); 15. Travessa da Lameira 1 e 18 (2011); 16. Escadinhas do Carmo
(2012); 17. Calçada de Mem Ramires (2012); 18. Rua 15 de Março (2012); 19. Rua de São Martinho
(2012); 20. Largo do Terreirinho das Flores (2012); 21. Rua Vila de Belmonte (2013); 22. Largo Pedro
Álvares Cabral (2011; 2013); 23. Rua Braamcamp Freire (2012); 24. Largo Pedro António Monteiro
(2013); 25. Travessa das Capuchas (2012/13); 26. Avenida António dos Santos (2012/13); 27. Travessa
Padre António Fernandes (2010); 28. Avenida António dos Santos (2013); 29. Largo de Santiago
(2010); 30. Alfange (2010).
LOUÇA QUOTIDIANA E IDENTIDADE EM SANTAR ÉM NA IDADE MÉDIA
369
em lixeiras aquando do seu abandono. Várias dezenas destas estruturas negativas
foram reconhecidas. As razões para o abandono destas estruturas de armazenamento
são rebatíveis visto que surgem transformadas em lixeiras ao longo de toda a Idade
Média, notando-se uma maior incidência desta reutilização durante o século XVI.
O objectivo deste texto não é uma contabilização e apresentação exaustiva de
todas as cerâmicas identificadas nos contextos arqueológicos aqui indicados. Esse
exercício já foi realizado noutras publicações7 onde foram apresentados os objectos
identificados atendendo à sua funcionalidade e quantidade em ambiente doméstico.
Concluiu-se então que as cerâmicas mais numerosas correspondiam às peças de uso
comum, aquelas com as quais as relações e interacções diárias eram mais constantes,
tais como panelas, caçoilas, cântaros, púcaros e taças, e que se fragmentariam com
maior facilidade, aumentando o número de fragmentos identificados no contexto
arqueológico. A repetição de tal informação não é pertinente neste trabalho onde
procuramos explorar de que forma os objectos cerâmicos reflectem uma identidade
cultural característica de determinados grupos numa perspectiva local e regional. Por
identidade referimo-nos a como estes objectos reflectem a cultura de grupo de um
determinado conjunto de pessoas8. Não reincidindo sobre a quantificação, a presente
análise terá em conta a morfologia e decoração destes objectos de uso quotidiano
ao longo de cerca de 400 anos, bem como a sua continuidade ou desaparecimento
e alterações estéticas e formais ao longo deste período, entre meados do século XI e
finais do século XIV.
Os objectos cerâmicos.
O estado de conservação destes objectos quando encontrados nestas lixeiras variava
entre as peças inteiras, completas, ainda que fragmentadas e fragmentos de peças.
O próprio estado de fragmentação leva-nos a ponderar as razões do seu descarte,
visto que muitas destas peças encontrava-se ainda em perfeito estado de utilização,
fragmentando-se no momento em que foram descartadas. As peças correspondem
na sua maioria a objectos de uso quotidiano, produzidas com pastas vermelhas, de
origem local, sem qualquer tratamento da superfície ou, apenas alisadas ou brunidas.
As peças vidradas são raras correspondendo apenas à louça de mesa, tais como
taças ou garrafas. Aqui a data de descarte é fundamental visto que, se até ao século
XIII a maior parte das peças vidradas corresponde a taças, sendo as garrafas uma
ínfima parte, a partir do século XIV os jarros ou picheis passam a corresponder à
7
Cf. CASIMIRO, Tânia Manuel et al. – “Ceramics and Cultural Change in Medieval …”; CASIMIRO,
et al. – “Alfange ...
8
DÍAZ-ANDREU, Margarita; LUCY, Sam.; BABIC, Stasa; EDWARDS, David. N. – Archaeologies of
Identity. Approaches to gender, Age, Status, Ethnicity and Religion. London: Routledge, 2005.
370
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
totalidade dos objectos vidrados.
Em plena ocupação muçulmana as peças vidradas parecem ser oriundas de
produções regionais, muito possivelmente produzidas em Lisboa. Estas importações
regionais diminuem após a segunda metade do século XII, muito embora não se assista
ao seu total desaparecimento. Objectos vidrados recuperados em Santarém mostramnos que, apesar da Reconquista Cristã, o consumo de peças ditas de influência
islâmica continuou com peças caracteristicamente almóadas, nomeadamente as
taças de cordões verticais, recuperadas na cidade, mantendo os contactos comerciais
que possivelmente abasteciam a população muçulmana que lá continuou a viver9.
Já no século XIV, os contactos com os mercados de influência islâmica tendem a
desaparecer sendo os novos consumos mais orientados para um mercado norteEuropeu. Isto não significou certamente o fim da presença muçulmana na cidade
onde se encontra registada, pelo menos, até a segunda metade do século XV10.
As coleções contêm todo o tipo de objectos cuja função seria auxiliar nas
tarefas tais como cozinhar, armazenar, beber e comer. A maior parte corresponde
a cerâmica não vidrada sem qualquer tipo de decoração, enquanto noutras essa
decoração daria alguma dimensão estética aos hábitos quotidianos. Passaremos, de
forma muito breve, a apresentar os objectos que constituiriam os serviços domésticos
e cuja descrição morfológica se torna fundamental em função dos objectivos que
procuramos alcançar neste trabalho.
A primeira questão a ter em conta é que, independentemente das alterações
políticas que ocorreram neste período em Santarém e no Vale do Tejo, as formas
cerâmicas não reflectem imediatamente essas alterações. Teremos de esperar cerca de
um século, até meados do século XIII para começarmos a assistir a ténues alterações,
mais a nível estético do que formal.
A designação que atribuímos às formas dificilmente corresponde à designação
que teriam na altura. A documentação medieval para a zona do Tejo não é profícua
em nomes de objectos durante a Idade Média, generalizando o termo olla, que
acreditamos corresponder a objectos destinados à confecção de alimentos11. Surgem
algumas excepções, sobretudo quando encontramos designações em forais ou em
taxas municipais. Contudo, deixámos essa opção de fora e decidimos designar os
objectos de acordo com a terminologia já utilizada por outros arqueológos que se
9
Ver BARROS, Maria Filomena – “Poder e poderes nas comunas muçulmanas”. Arqueologia Medieval 6
(1999). pp. 73-78; LOPES, Gonçalo; SANTOS, Helena – “Um fragmento de maqabriyya mudéjar de Santarém”.
In ARNAUD, José Morais; MARTINS, Andrea; NEVES, César (eds.) Arqueologia em Portugal – 150 Anos.
Lisboa: Associação dos Arqueólogos Portugueses, 2013, pp. 955-960.
10
Cf. BARROS, Maria Filomena – A comuna muçulmana de Lisboa. Porto: Hugin, 1998, p. 93.
11
Cf. CASIMIRO, Tânia Manuel; BARROS, Luís – “De quem são estas ollas. Comer, beber e armazenar
em Almada no século XIII”. In GONÇALVES, Maria José; GÓMEZ-MARTÍNEZ, Susana (coord.) – Actas
do X Congresso Internacional de Cerâmica no Mediterrâneo Ocidental. Silves: Câmara Municipal, Campo
Arqueológico de Mértola, 2015, pp. 392-397.
LOUÇA QUOTIDIANA E IDENTIDADE EM SANTAR ÉM NA IDADE MÉDIA
371
dedicam a estes períodos, deixando claro que esta discussão terminológica será tão
fundamental para a Idade Média como já ocorre para a Idade Moderna12.
As formas mais recorrentes são aquelas que seriam destinadas à confecção
de alimentos, as sobreditas ollas, todas apresentando sinais externos de terem sido
expostas ao fogo. A diversidade formal e variação de tamanhos é extensa, mas
exemplares semelhantes ocorrem tanto nos contextos mais antigos, claramente de
cariz muçulmano, bem como nos mais recentes, centenas de anos após a Reconquista
Cristã onde os muçulmanos, apesar de permaneceram já não constituíam a maioria
da população. As panelas apresentam as tradicionais formas bojudas, com colos
baixos e bordos extrovertidos, assentes em fundos planos ou ligeiramente côncavos
com duas asas equidistantes verticais (Fig. 2 C, D, E, F, G). Eram cobertas por testos
ou tampas com forma troncocónica com uma pega central, variando o seu tamanho
de acordo com o recipiente que tapariam (Fig. 2 A, B). Teriam como funcionalidade
a produção de ensopados e cozidos.
Também destinadas à confecção de alimentos surgem as caçoilas cuja função
deveria ser a de frigir. São recipientes hemisféricos, de base plana e paredes direitas
sem evidência de terem possuído asas (Fig. 2 I, J, K, L, M). A ausência de marcas de
fogo de alguns destes recipientes leva-nos a debater se foram efectivamente utilizadas
como peças para a confecção de alimentos ou se a sua utilização foi feita apenas
como objectos para consumir alimentos comumente designadas como taças e das
quais encontrámos diversos exemplares. Em contextos mais antigos estas peças
apresentam decoração sobre o bordo (Fig. 2 N, O). Já com uma única pega longa
surgem as frigideiras, destinadas a fritar alimentos (Fig. 2 H).
As taças são objectos hemisféricos ou carenados, com superfícies alisadas,
assentes em fundo plano ou em pé anelar. Nos contextos mais recuados, datados do
século XI, ainda de cariz essencialmente almorávida surgem alguns destes objectos
vidrados a verde ou amarelo com raros exemplos de corda seca parcial13. O século XII
é ainda marcado por esta existência de peças vidradas, cuja produção local/regional
começa a desaparecer no século XIII, quando são substituídas exclusivamente por
importações do sul de Espanha.
É por esta altura que surgem os primeiros objectos comumente designados
Ver BUGALHÃO, Jacinta; COELHO, Inês Pinto – “Cerâmica Moderna de Lisboa: uma proposta
tipológica”. In CAESSA, Ana; NOZES, Cristina; CAMEIRA, Isabel; SILVA, Rodrigo Banha da (coords.) – I
Encontro de Arqueologia de Lisboa: Uma Cidade em Escavação. Lisboa: CAL/DPC/DMC/CML, 2017, pp. 107145; FERNANDES, Isabel Maria – “Do uso das pecas: diversa utilização da louca de barro”. In CLETO, Joel;
VARELA, Manuel (coords.) – Actas do IV Encontro de Olaria Tradicional de Matosinhos. Matosinhos: Câmara
Municipal, 1999, pp. 12-39; FERNANDES, Isabel Maria – A loiça preta em Portugal: Estudo histórico, modos
de fazer e de usar. Braga: Universidade do Minho, 2012. Tese de Doutoramento em História, Especialidade em
História Contemporânea (policopiado); CASIMIRO, Tânia Manuel; GOMES, João Pedro – “Formas e sabores:
alimentação e cerâmica nos séculos XVII e XVIII”. In Da mesa dos Sentidos aos Sentidos da Mesa. Actas do 4.º
Colóquio Luso-Brasileiro de História e Culturas da Alimentação. Coimbra: Projecto DIATA (no prelo).
13
Cf. CASIMIRO, Tânia Manuel et al. – “Alfange …”
12
372
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
de prato/tampa, ainda que esta funcionalidade seja discutível. Estes irão perdurar,
sem alterações na forma, pelo menos até inícios do século XVI, quando começam
tendencialmente a desaparecer dos contextos arqueológicos14.
Fig. 2 – Cerâmicas medievais de Santarém.
A segunda categoria mais comum de objectos será o que temos vindo a designar
de louça de água, ainda que o termo só apareça na documentação já nos inícios
do século XVI15. A sua abundância relaciona-se novamente com o seu constante
14
Ver TEIXEIRA, André; PAREDES, Fernando Villada; SILVA, Rodrigo Banha da (eds.) – Lisboa 1415
Ceuta. História de Duas Cidades. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa/Ciudad Autonoma de Ceuta, 2015.
15
Cf. CASIMIRO, Tânia Manuel – “Material Culture from the Al Hallaniyah Isle early 16th century
LOUÇA QUOTIDIANA E IDENTIDADE EM SANTAR ÉM NA IDADE MÉDIA
373
manuseamento que levaria a uma quebra frequente destes objectos. Correspondem
sobretudo a jarros e a púcaros. Ainda que não possamos ignorar a possibilidade de que
alguns deles pudessem guardar vinho, é provável que essa funcionalidade estivesse
sobretudo reservada para os jarros e pichéis vidrados que foram recuperados. São
objectos bojudos apenas com uma asa e colo alto, com ou sem bico (Fig. 3 A, B, C,
D, E). A decoração corresponde a pinceladas brancas ou a caneluras ao longo do
corpo. São raros os objectos brunidos, ainda que pelo menos um exemplar tenha
sido recuperado (Fig. 4).
O nosso conhecimento de louça revestida a vidrado de chumbo para os séculos
XIII e XIV é ainda muito escasso e, na maior parte das vezes, quando encontrados,
são classificados como provenientes do Norte da Europa, sobretudo da França e da
zona da actual Bélgica, com alguns objectos semelhantes a produções inglesas16.
Contudo, não podemos ignorar o recente trabalho arqueométrico efectuado
em alguns objectos vidrados recuperados em Torres Novas, datados do século
XIV, que indicam a possibilidade de produção destas cerâmicas no Vale do Tejo17.
A produção de objectos vidrados na zona do Vale do Tejo encontra-se confirmada
arqueologicamente desde meados do século XV18. Anteriormente, ainda durante o
século XI e XII, seriam produzidos em Lisboa19, pelo que o hiato produtivo entre o
século XIII e XV deverá ser reconsiderado.
Os púcaros seriam usados sobretudo no consumo de água. Por serem peças
de uso pessoal e quotidiano são muito frequentes e apresentam uma interessante
evolução entre os séculos XI e XIV. Surgem ainda em período islâmico com uma asa,
assentes em bases planas, decorados nas paredes externas com pintura a branco ou
vermelho (Fig. 3 G). Durante o século XIII, quanto mais nos aproximamos do século
XIV, estes objectos começam a surgir com duas asas e assentes em pé alto, uma forma
Portuguese Indiaman wreck site”. International Journal Nautical Archaeology 47 (2018), pp. 1-22.
16
Cf. SILVA, Rodrigo Banha da; BARGÃO, André; FERREIRA, Sara; OLIVEIRA, Filipe – “O comércio
medieval de cerâmicas importadas em Lisboa: o caso da Rua das Pedras Negras n.os 21-28”. In ARNAUD,
José Morais; MARTINS, Andrea (edit.) Arqueologia em Portugal – Estado da Questão. Lisboa: Associação dos
Arqueólogos Portugueses, 2017, pp. 1523-1538.
17
Cf. FERREIRA, L. F. Vieira; GOMES, M. Varela; PEREIRA, M. F. C.; SANTOS, L. F.; MACHADO, I.
Ferreira – “A multi-technique study for the spectroscopic characterization of the ceramics from Santa Maria
do Castelo church (Torres Novas, Portugal)”. Journal of Archaeological Science: reports 6 (2016), pp. 182-189.
18
CF. BARROS, Luís; BATALHA, Luísa; CARDOSO, Guilherme; GONZALEZ, António – “A Olaria
Renascentista de Santo António da Charneca – Barreiro”. In TEIXEIRA, André; BETTENCOURT, José
António (eds.) – Velhos e Novos Mundos: Estudos de Arqueologia Moderna. Lisboa: Centro de História de
Além-Mar, Universidade Nova de Lisboa e Universidade dos Açores, 2012, pp. 699-710.
19
Cf. GASPAR, Alexandra; AMARO, Clementino – “Cerâmicas dos seculos XIII-XV da cidade de
Lisboa”. In ARCHIMBAUD, Danielle G. (dir.) – La Céramique Médiévale en Méditerranée: Actes du 6e congrès.
Aix-en-Provence: Narration Editions, 1997, pp. 337-345; BUGALHÃO, Jacinta; GOMES, Sofia; SOUSA, M.ª
João – “Consumo e utilização de recipientes cerâmicos no arrabalde ocidental de Lisboa islâmica (Núcleo
Arqueológico da Rua dos Correeiros e Mandarim Chinês)”. Revista Portuguesa de Arqueologia 10,1 (2007),
pp. 317-343.
374
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Fig. 3 – Cerâmicas medievais de Santarém.
LOUÇA QUOTIDIANA E IDENTIDADE EM SANTAR ÉM NA IDADE MÉDIA
Fig. 4 – Cerâmicas medievais de Santarém.
Fig. 5 – Cerâmicas medievais de Santarém.
375
376
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
que se torna característica dos contextos medievais no Vale do Tejo20 (Figs. 3 K, L,
M). Os mais antigos têm o corpo pintado enquanto os mais recentes não apesentam
qualquer tipo de decoração (Fig. 5). Estes objectos recuperam a sua forma mais
antiga a partir de meados do século XIV (Fig. 3 H). Os objectos que convencionámos
chamar de canecas (Figs. 3I, J), mas cuja nomenclatura reconhecemos não ser a mais
objectiva, têm apenas uma asa que acreditamos terem como funcionalidade também
o consumo de água. Seriam provavelmente apenas mais um estilo de púcaro.
O armazenamento era feito em potes de grandes dimensões por norma
designados de talhas. Ainda que surjam muitos fragmentos não foi recuperado
nenhum objecto completo. Recuperaram-se sobretudo bordos e colos, alguns
apresentando decoração, revelando que seriam recipientes que poderiam ocupar
lugar de destaque no interior das casas. Potes de menores dimensões poderiam
igualmente cumprir esta função.
As candeias que queimariam azeite eram utilizadas na iluminação. Estes
pequenos objectos tendem a substituir os candis caracteristicamente islâmicos, com
os seus longos bicos, e irão perdurar nos contextos arqueológicos até, pelo menos
inícios do século XVIII. Por esta altura o número de candelabros aumenta pelo
que acreditamos que as velas passam a ocupar um lugar de destaque na iluminação
doméstica, ou então as candeias passam a ser efectuadas noutros materiais.
Os fogareiros cumpririam a função de auxiliar na produção de alimentos ou
no aquecimento. Esta é uma forma que irá perdurar, sem grandes alterações até ao
século XX.
A grande distinção entre os quatro séculos que aqui apresentamos regista-se
essencialmente não ao nível das formas, mas da decoração, onde a identidade cultural
dos seus produtores e consumidores pode ser assinalada. Nos contextos possíveis de
datar de uma ocupação dita islâmica a maior parte da louça é decorada com pintura
a branco. Consiste sobretudo em pinceladas verticais brancas, em grupos de três ou
cinco, ou linhas horizontais, também brancas. Nas caçoilas e taças essas pinceladas
surgem no bordo e nos púcaros e jarros sobre o bojo ou junto ao bordo (Fig. 5).
Esse tipo de decoração não termina imediatamente com a nova instalação política,
continuando pelo menos até finais do século XIII21. Será mais ou menos por esta
altura e os inícios do século XIV, que a dinâmica de contactos culturais conhece
novos parceiros no norte da Europa e diminuí a interacção com o Mediterrâneo,
onde se começa a assistir ao fim deste tipo de decorações para apostar nas superfícies
simples e apenas com algumas caneluras.
Cf. CASIMIRO, Tânia Manuel; BARROS, Luís – “De quem são estas ollas…”
Cf. LIBERATO, Marco – “A pintura a branco na Santarém Medieval…”; LIBERATO, Marco – A
cerâmica pintada a branco na Santarém Medieval…
20
21
LOUÇA QUOTIDIANA E IDENTIDADE EM SANTAR ÉM NA IDADE MÉDIA
377
Conclusão.
Debater identidade através da utilização de objectos cerâmicos é um exercício que
tem sido feito comummente através de evidências arqueológicas22. Os objectos
podem ser utilizados por grupos específicos ou comuns a uma determinada região.
Este é o caso que acreditamos acontecer em Santarém. As identidades culturais que
existem e partilham a cidade entre os séculos XI e XIV, talvez ainda interiormente,
deixam marcas inegáveis na produção cerâmica.
As peças destinadas ao consumo doméstico mantêm a sua forma durante estes
quatro séculos com mínimas variações formais. É curioso assinalar que muitas das
formas que eram utilizadas nesta altura vão continuar a sê-lo, por vários séculos, e que
formas afins vão ser encontradas ainda em contextos dos séculos XIX, demonstrando
uma continuidade cultural.
Todas as peças que aqui referimos correspondem a produções locais. A sua
tipologia e decoração mostram que, apesar das alterações políticas, militares e
sociais, a cidade de Santarém experienciou, a par de diversas outras no vale do Tejo,
aquelas não se reflectem simultaneamente na cultura material, demonstrando que
nesse aspecto a mudança não é tão rápida, sendo necessário mais tempo para que
seja possível notá-la nos quotidianos domésticos. As peças que identificámos em
contextos mais recuados, que podemos datar do século XI, em locais como Alfange,
mostram que estamos perante cerâmica islâmica. Peças semelhantes são recuperadas
frequentemente em todo o Vale do Tejo, em zonas como Lisboa23, Almada24, Sintra25
ou Vila Franca26. Seria expectável que após a Reconquista Cristã estes objectos
mudassem a sua forma. No entanto, como já foi notado por vários historiadores a
saída das elites políticas não corresponde à saída das populações que compõem a
cidade. Nesse sentido, em Santarém, apesar de o domínio cristão ter substituído o
domínio islâmico, a matriz cultural das suas populações mantém-se, bem como os
seus hábitos quotidianos. Os oleiros continuaram a fazer e decorar os objectos como
sempre o tinham feito. Não se abandona o conhecimento adquirido, ele vai mudando
ao longo de gerações.
DÍAZ-ANDREU et al. – Archaeologies of Identity…
Cf. BUGALHÃO, Jacinta; SOUSA, Maria João; GOMES, Ana Sofia – “Vestígios da produção oleira
islâmica do Mandarim Chinês, Lisboa”. Revista Portuguesa de Arqueologia 7.1 (2004), pp. 573-643; CALADO,
Marco; LEITÃO, Vasco – “A ocupação islâmica na Encosta de Santa (Lisboa)”. Revista Portuguesa de
Arqueologia 8,2 (2005), pp. 459-470.
24
Cf. BARROS, Luís; HENRIQUES, Fernando – “Rua da Judiaria: um Celeiro nos arrabaldes da vila”.
In ABRAÇOS, Hélder Childra; DIOGO, João Manuel (coords.) – Actas das 3.as Jornadas de Cerâmica Medieval
e Pós-Medieval: métodos e resultados para o seu estudo. Tondela: Câmara Municipal, 2003, p. 135-144.
25
Cf. COELHO, Catarina – “A cerâmica verde e manganés do castelo de Sintra”. Arqueologia Medieval
12 (2012), pp. 91-108.
26
Cf. BANHA, Carlos – “As cerâmicas do Alto do Senhor da Boa Morte (Povos): estudo preliminar”.
Boletim Municipal Cira 7 (1997), pp. 75-109.
22
23
378
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
As alterações demoram muitos anos a serem reconhecidas. Ocorrem sobretudo
ao nível decorativo. A louça dos séculos XI e XII e mesmo XIII apresentam decoração
pintada nas paredes exteriores, maioritariamente a branco. A partir do século XIII as
formas mantêm-se, mas a decoração pintada desaparece. Só nos inícios do século XIV,
várias gerações após a Reconquista Cristã, é que a pintura desaparece por completo
na cerâmica de Santarém. A identidade cultural islâmica que marcava a decoração
cerâmica mantém-se com os seus oleiros que continuam a dar à população aquilo
que eles sempre consumiram. Os novos moradores que ali chegam com a alteração
das elites políticas e militares certamente que consumiram o que produzia. A sua
cultura vai sendo lentamente assimilada pelos oleiros. A decoração desaparece, mas
as formas mantêm-se.
Apesar de o assunto não se encontrar ainda estudado na zona do Vale do Tejo,
este parece ter sido um comportamento comum noutras zonas, revelando uma
identidade regional na produção de cerâmica, parece-nos que de matriz islâmica.
Em locais como Lisboa e Almada e possivelmente noutros sítios, os oleiros islâmicos
certamente que se mantiveram nos seus postos de trabalho não tendo sido forçados
a alterar o seu modus faciendi, que perdurou durante séculos. As formas cerâmicas
não são sujeitas a alterações de grande monta durante algumas gerações e perdem
paulatinamente as suas decorações revelando que as alterações culturais a nível do
quotidiano não ocorrem repentinamente.
LOUÇA QUOTIDIANA E IDENTIDADE EM SANTAR ÉM NA IDADE MÉDIA
379
380
PARTE IV
Espaços, Equipamentos e Rostos
do Abastecimento
Spaces, Infrastructure,
and Faces of Supply
Espaços e arquiteturas de abastecimento
na cidade medieval1
Maria do Carmo Ribeiro2
Resumo
O objetivo deste trabalho, centrado no estudo do provimento das cidades
medievais, é analisar os espaços e as arquiteturas necessários ao abastecimento
de diferentes bens e produtos. Para além das distintas atividades de produção
que se desenrolam no seio da cidade, os aglomerados urbanos são igualmente
centros de consumo e distribuição que necessitam de infraestruturas de
suporte, como aquelas que se relacionam com o aprovisionamento de bens
essenciais como a água – poços, cisternas, aquedutos, fontes e chafarizes
–, assim como daquelas que permitem a sua distribuição/comercialização
– açougues, fangas, adegas, fornos – algumas das quais acumulam a dupla
função de produção e comercialização, como as oficinas para os mais variados
mesteres (sapateiros, ferreiros, ourives, oleiros). A toponímia permite verificar
que, com frequência, se evidência uma certa concentração destas atividades
sob a forma de arruamento, possibilitando igualmente analisar os locais no
espaço urbano que ocupavam. Em alguns casos, denotam-se similitudes
espaciais e arquitetónicas entre os diferentes núcleos medievais portugueses.
Deste modo, através de uma metodologia que cruza diferentes fontes (escritas,
materiais e iconográficas) pretende-se analisar e comparar os diferentes espaços
e arquiteturas de abastecimento de algumas cidades medievais portuguesas,
em termos funcionais e tipológicos, mas também em termos de localização no
espaço urbano.
Palavras-chave
Cidade medieval; Abastecimento; Espaços e arquiteturas.
1
Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a
Tecnologia no âmbito do projeto MedCrafts – “Regulamentação dos mesteres em Portugal nos finais da Idade
Média: séculos XIV e XV”, Ref.ª PTDC/HAR-HIS/31427/2017.
2
Departamento de História/ Lab2PT/Universidade do Minho.
384
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Spaces and supply architectures of the medieval city
Abstract
The objective of this work, centered on the study of the supply of medieval
cities, is to analyze the necessary spaces and architectures to supply different
goods and products. In addition to the different production activities taking
place in the city, urban agglomerations are also centers of consumption and
distribution that need support infrastructures, such as those related to the
provision of essential goods such as water – wells, cisterns, aqueducts, water
sources and fountains – as well as those that allow their distribution / marketing
– butchers, farms, cellars, ovens – some of which accumulate the dual function
of production and commercialization, such as workshops for the most varied
masters (shoemakers, blacksmiths, goldsmiths, potters). The toponymy allows
us to verify that, frequently, a certain concentration of these activities is
evidenced in the form of street layout, also making it possible to analyze the
places in the urban space they occupied. In some cases, seem to exist spatial and
architectural similarities between different Portuguese medieval cities.
Thus, through a methodology that crosses different sources (written, material
and iconographic) it is intended to analyze and compare the different spaces
and supply architectures of some medieval Portuguese cities, in functional and
typological terms, but also in terms of location in the urban space.
Keywords
Medieval city; Supply; Spaces and architectures.
Introdução.
A paisagem urbana medieval era composta por variados espaços e arquiteturas
relacionados com o abastecimento. Dependendo da dimensão dos centros urbanos,
mas também das suas principais atividades económicas, o número e a variedade de
locais e construções que permitem assegurar o seu provimento, intra e extramuros,
podiam ser muito significativos.
Apesar do conhecimento generalizado acerca da sua existência, o local que
ESPAÇOS E ARQUITETUR AS DE ABASTECIMENTO NA CIDADE MEDIEVAL
385
ocupavam no espaço urbano, a sua tipologia arquitetónica, assim como quantidade,
não são necessariamente os mesmos, registando igualmente alterações ao longo da
Idade Média, circunstâncias que nos permitem avaliar também determinados padrões
de transformação e evolução dos espaços urbanos medievais. Nesta diversidade,
importa igualmente considerar a génese do aglomerado, nomeadamente se se trata
de uma criação nova ou se evolui a partir de um núcleo pré-existente, nomeadamente
romano ou islâmico. Também os recursos naturais disponíveis e as características
topográficas do local contribuem para esta heterogeneidade. Não menos importante
é a própria trajetória histórica do aglomerado e a sua maior ou menor permeabilidade
às oscilações conjunturais que ocorreram ao longo da Idade Média.
De modo geral, todas as cidades medievais se constituíram, simultaneamente,
como centros de produção, consumo e distribuição de bens possuindo um conjunto
variado de lugares e estruturas comuns que permitiam assegurar e dar resposta à
tríade básica da economia3. Nesse sentido, a análise dos espaços e das arquiteturas
permite analisar simultaneamente os diferentes bens ou produtos necessários ao seu
abastecimento, mas também o seu impacto na evolução morfológica e topográfica da
paisagem urbana medieval.
Importa, deste modo, dar resposta à questão, do que precisavam as cidades
medievais e os homens que nela habitavam. Analisaremos aqueles que são mais
prementes e que na generalidade são comuns a todos os aglomerados urbanos: água,
cereais, carne e peixe, produtos hortícolas e produtos manufaturas (calçado, roupa,
utensílios domésticos), cuja produção e distribuição se realizava mediante formas
mais ou menos consensuais. Apesar de na sua esmagadora maioria estes espaços e
infraestruturas não terem sobrevivido até aos nossos dias, as fontes documentais,
iconográficas e materiais permitem traçar um quadro geral acerca da sua inserção no
espaço urbano. Comecemos, por analisar um dos bens essenciais à vida humana, e,
por conseguinte, à vida urbana, a água.
1. Abastecimento de água.
A importância da água como bem essencial à vida fez da sua presença nos núcleos
urbanos, nomeadamente naqueles onde se registam níveis demográficos significativos,
uma presença contante e diária, circunstâncias que originam usos bastantes
diversificados, mas sobretudo formas de abastecimento e gestão bastante dispares,
algumas das quais contribuem fortemente para a configuração da paisagem urbana
medieval4. Referimo-nos concretamente aos poços, tanques, fontes e chafarizes, que
HEERS, Jacques – La Ville au Moyen Âge en Occident. Paris: A. Fayard, 1990.
LEGUAY, Jean-Pierre – L’eau dans la ville au Moyen Âge. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, «
Histoire », 2002.
3
4
386
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
integram os espaços urbanos medievais e que permitiam o seu abastecimento.
O fornecimento de água à cidade medieval podia ser realizado de várias
formas, desde logo, a partir daquela que era possível captar dentro do próprio
núcleo, através nomeadamente de poços. A importância destas estruturas, ainda
que arquitetonicamente pouco elaboradas, pode ser mensurável pela quantidade de
referências conservadas na documentação medieval5. Na generalidade, tratavam-se
de poços particulares, distribuídos por todo o espaço urbano, localizados em espaços
domésticos, nomeadamente nos quintais das casas. Contudo, alguns seriam de uso
coletivo, como acontecia em Évora, onde se conhecem pelo menos quatro poços
do concelho6, ou em Braga, como o existente nas “casas do poço” e que a partir do
século XV dará inclusivamente o nome à rua7. A importância destas estruturas de
abastecimento de água estará certamente relacionada com a toponímia viária dos
núcleos medievais onde se regista a existência de uma rua do poço como acontecia
em Viana do Castelo8.
Casos houve em que a importância destes poços foi condicionadora do local de
estabelecimento da própria cidade, como foi o caso do núcleo urbano da Bemposta,
tendo, em 1315, D. Dinis ordenado que “hum poço que hy esta” fosse incluído no
perímetro amuralhado9.
Mas a água utilizada nos núcleos urbanos podia ser pluvial, armazenada por
via de tanques e cisternas. No caso das cisternas, refira-se a existente no castelo de
Chaves, que ocupava todo o primeiro piso, recebendo as águas pluviais conduzidas
desde o telhado por conduta de pedra, adossada à parede. Também em Bragança
existia uma cisterna idêntica no castelo, e uma outra, sobre a estrutura lajeada da
qual o município construiu a casa da câmara nos inícios do século XVI10.
A água podia igualmente ser captada no exterior, em poços, ou ser conduzida
por meio de canos de água até à cidade. No caso dos aquedutos, a toponímia permitiu imortalizar alguns dos seus trajetos dentro das muralhas através nomeadamente
5
A título exemplificativo veja-se MARQUES, A H. Oliveira; GONÇALVES, Iria; ANDRADE,
Amélia Aguiar – Atlas das Cidades Medievais Portuguesas. Vol. I. Lisboa: Centro de Estudos Históricos da
Universidade Nova, 1990.
6
BEIRANTE, Ângela – O ar da cidade: ensaios de história medieval e moderna. Lisboa: Edições colibri,
2008, p. 185.
7
RIBEIRO, Maria do Carmo – Braga entre a época romana e a Idade Moderna. Uma metodologia de
análise para a leitura da evolução do espaço urbano. Braga: Universidade do Minho, 2 volumes, 2008, Tese de
Doutoramento, pp. 445-449.
8
TEIXEIRA, Manuel C. e VALLA, Margarida – O Urbanismo Português séculos XII-XVIII. Lisboa:
Livros Horizonte, 1999, pp. 25-46.
9
TRINDADE, Luísa – Urbanismo e composição de Portugal. Coimbra: Imprensa da Universidade. 2013,
p. 127.
10
AMARAL, Paulo e NOÉ, Paula – Câmara Municipal de Bragança / Domus Municipalis. In SIPA
- Sistema de Informação para o Património Arquitetónico, 1996/2012 [consultado em janeiro de 2019]:
disponível em http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=2418.
ESPAÇOS E ARQUITETUR AS DE ABASTECIMENTO NA CIDADE MEDIEVAL
387
da rua dos Canos, como se verifica por exemplo em Guimarães11.
Não faltam exemplo na toponímia medieval de ruas/praças/chafarizes do Cano,
por, ou para onde, a água corria encanada, proveniente de nascentes localizadas, por
vezes, a longas distâncias. A este propósito refira-se o caso de Braga, onde no século
XV, a água era captada em nascentes localizadas a mais de 5 Km e conduzida para a
cidade por meio de canos de pedra encobertos, alguns dos quais reutilizados desde
os tempos romanos12.
Algumas destas águas corriam em valas a céu aberto pelas ruas, como parece
ter sido o caso da Rua das Águas, em Coimbra13, Leiria14 ou em Braga15, assistindo-se
ao longo do século XVI a um maior cuidado e visibilidade das estruturas de abastecimento de água, dando origem ao surgimento de arquiteturas mais marcantes, nomeadamente no caso dos aquedutos aéreos, mas também de fontes e chafarizes. No
caso dos aquedutos destacam-se a construção dos grandes aquedutos ainda hoje visíveis em grande parte do seu trajeto, como o de Torres Vedras, ou da Água da Prata
de Évora (1530), erigido sobre a estrutura do velho aqueduto romano pelo arquiteto
Francisco de Arruda, assim como uma caixa de água construída na Rua Nova, por
Miguel de Arruda16, para receção e posterior distribuição por diferentes pontos da
cidade, nomeadamente fontes e chafarizes públicos.
No caso das fontes de água, a sua tipologia era geralmente simples, referida na
documentação por vezes como cobertas ou arcadas, chamadas de mergulho ou de
chafurdo, por serem compostas por um tanque, coberto por uma estrutura de pedra
que podia ser abobadada, para proteger a água. O acesso ao tanque onde se mergulha
o balde era feito descendo vários degraus, como seria o caso da Fonte de S. Geraldo,
em Braga, situada por baixo do pátio da Igreja da Misericórdia. Neste caso, tratava-se
de uma fonte subterrânea “metida num arco de cantaria muito bem feito … e as suas
águas eram excelentes, tidas por milagrosas”17.
Outra tipologia de estrutura simples era a fonte de espaldar, que, de acordo com
FERREIRA, Maria da Conceição Falcão – Guimarães: ‘duas vilas, um só povo’: estudo de história
urbana: 1250-1389. Braga: CITCEM/ICS Universidade do Minho, 2010, pp. 367-370.
12
RIBEIRO, Maria do Carmo; MARTINS, Manuela – “Contributo para o estudo do abastecimento
de água à cidade de Braga na Idade Moderna. O Livro da Cidade de Braga (1737)”. In MARTINS, Manuela;
FREITAS, Isabel; VALDIVIESO, Isabel (coords.) – Caminhos da Água. Braga: CITCEM, 2012, pp. 179-222.
13
CAMPOS, Maria Amélia Álvaro de – “Marcos de referência e topónimos da cidade medieval
portuguesa: o exemplo de Coimbra nos séculos XIV e XV”. Revista de História da Sociedade e da Cultura 13
(2013), pp. 157-176.
14
GOMES, Saul – “A Organização do Espaço Urbano numa Cidade Estremenha: Leiria Medieval”. In
A Cidade. Jornadas Inter e Pluridisciplinares, Actas. Vol. II, Lisboa: Universidade Aberta, 1993, pp. 81-112.
15
RIBEIRO, Maria do Carmo – Braga entre a época romana e a Idade Moderna…, pp. 540-42.
16
BRANCO, Manuel Branco; NUNES, Castro; BANDEIRA, Filomena – “Aqueduto da Prata / Cano
da Água da Prata”. In SIPA – Sistema de Informação para o Património Arquitetónico. 1993/1994/1996
[consultado em janeiro de 2019]: http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=2755.
17
RIBEIRO, Maria do Carmo; MARTINS, Manuela – “Contributo para o estudo do abastecimento de
água à cidade de Braga …”, pp. 179-222.
11
388
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Mário Barroca18 seria a mais difundida em finais da Idade Média. Apesar de se poderem tratar de simples tanques adossados a um muro, de onde pendia a bica da água,
era frequente incluírem pedras de armas e epígrafes, como por exemplo se verifica
em Alandroal ou Évora, de acordo com a representação de Duarte de Armas, mas
também no Chafariz d’El Rei, em Lisboa, ou ainda como aquelas que são construídas
em Braga nos inícios do século XVI.
Na verdade, com o advento do Renascimento ao urbanismo, muitas praças
foram ornamentadas com fontes e chafarizes, alguns dos quais monumentais. Em
Braga, nos inícios de quinhentos, o arcebispo D. Diogo de Sousa mandou abrir várias
novas praças onde são erigidas fontes com as suas armas, nomeadamente a fonte
de Sousa, com seu “chafariz, calçada e terreiro, peitoril e ameias”19. Paralelemente
às preocupações e regulamentações sobre o abastecimento de água às populações,
o reinado de D. Manuel I regista várias reformulações nos sistemas hidráulicos,
nomeadamente em fontes e chafarizes, mas também de construção de novos, como
o Chafariz d’El Rei, em Évora20.
Apesar da variabilidade do número de fontes de água nos núcleos urbanos,
regra geral tratam-se de estruturas simples e localizadas em pontos de fácil acesso,
junto às portas das muralhas, vias ou largos, assistindo-se a um tendencial aumento
e monumentalização na Baixa Idade Média.
Igualmente, para além da sua principal função, importa destacar o papel
exercido pelas fontes e chafarizes como local de reunião e sociabilização da população
urbana, particularmente feminina, e na conformação do cenário urbano medieval21
Infelizmente, muitas delas não chegaram aos nossos dias, no entanto, por
exemplo, o Chafariz dos Canos, em Torres Vedras, de grande aparato e estrutura
pentagonal, cuja construção remonta à década de 132022, encontra-se preservado,
muito embora provavelmente alterado, assim como a fonte de S. Tiago, mandada
construir por D. Diogo de Sousa, em 153123 (Figs. 1 e 2).
18
BARROCA, Mário Jorge – “A construção de fontes na epigrafia medieval Portuguesa, séc. XIV e XV”.
In BARATA, Maria do Rosário Themudo; KRUS, Luís (dirs.) – Olhares sobre a História: Estudos ferecidos a Iria
Gonçalves. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2009, pp.89-96.
19
RIBEIRO, Maria do Carmo; MARTINS, Manuela – “Contributo para o estudo do abastecimento de
água à cidade de Braga…”, pp. 179-222.
20
AMENDOEIRA, Paula – “Chafariz Del-Rei”. In SIPA - Sistema de Informação para o Património
Arquitetónico.1999. [consultado em dezembro de 2019]: http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/
SIPA.aspx?id=8854
21
TRINDADE, Luísa – “A água nas cidades portuguesas entre os séculos XIV e XVI: a mudança de
paradigma”. In LOZANO BARTOLOZZI, Mª del Mar; MÉNDEZ HERNÁN, Vicente, (coords.) – Patrimonio
cultural vinculado con el agua. Paisaje, urbanismo, arte, ingeniería y turismo. Mérida: Editora Regional de
Extremadura, 2014, p. 367-380.
22
NOÉ, Paula; ROSA, Ana Rosa – “Chafariz dos Canos”. In SIPA – Sistema de Informação para o
Património Arquitetónico. 1991/2002 [consultado em dezembro de 2019]: http://www.monumentos.gov.pt/
Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=6347
23
RIBEIRO, Maria do Carmo; MARTINS, Manuela – “Contributo para o estudo do abastecimento de
água à cidade de Braga …”, pp. 179-222.
ESPAÇOS E ARQUITETUR AS DE ABASTECIMENTO NA CIDADE MEDIEVAL
389
Fig. 1 – Fontes e chafarizes de Braga: Fonte de S. Tiago – D. Diogo de Sousa, séc. XVI.
Fig. 2 – Fontes e chafarizes de Braga: tanque da Fonte de Sousa – D. Diogo de Sousa, séc. XVI.
390
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Fig. 3 – Fontes e chafarizes de Braga: chafariz dos Castelos, postal ilustrado do séc. XIX.
Para além do uso doméstico, lavar roupa, dar de beber aos animais, a água
era igualmente fundamental para algumas atividades económicas necessárias ao
abastecimento da cidade, nomeadamente de transformação e produção, como as
que se relacionam com o abastecimento de carne e peixe, realizado nos açougues,
as peles, nos pelames ou couros, assim como para os mesteres relacionados com a
atividade marítima e fluvial.
Na realidade, a água regista a sua maior presença nos núcleos urbanos medievais
através dos cursos de água. Regra geral, aos rios vamos ver associadas uma série de
atividades relacionadas com a prática da pesca e da navegação, assim como a sua
exploração como força hidráulica para, por exemplo, mover moinhos.
Todavia, um dos aspetos mais assinaláveis da presença quase constante dos
cursos de água nos núcleos medievais relaciona-se com o desenvolvimento urbano
por eles potenciado, assim como com o estabelecimento de dinâmicas sócio
ambientais resultantes da sua exploração e usufruto.
A este respeito, as cidades de Lisboa e do Porto são bastante representativos.
Paralelamente aos rios, Tejo e Douro, respetivamente, estes núcleos urbanos
beneficiavam da proximidade com o mar.
Tanto em Lisboa como no Porto, a zona ribeirinha junto aos respetivos rios terá
assumido desde a ocupação humana destes locais um papel preponderante para o
seu desenvolvimento, potenciando a afirmação e consolidação de ambas as cidades
ESPAÇOS E ARQUITETUR AS DE ABASTECIMENTO NA CIDADE MEDIEVAL
391
no período medieval.
Apesar da existência de um núcleo alto amuralhado, localizado no cimo
de morros, no caso de Lisboa, correspondente ao atual morro de S. Jorge, e no
do Porto, ao morro da Pena Ventosa, as características naturais destas zonas
ribeirinhas terão constituído um forte atrativo para a realização de atividades
comerciais, produtivas e portuárias relacionadas com a prática da navegação fluvial e
marítima, e consequentemente à construção de infraestruturas de suporte, passando
paulatinamente a constituir-se como importantes zonas de crescimento extramuros,
ou cidade baixa, cuja importância terá continuidade até aos dias de hoje.
No caso de Lisboa, o fervilhar da zona ribeirinha, localizada a poente do
núcleo amuralhado alto medieval, encontra-se atestado desde o século XIII, nela
se encontrando vários equipamentos navais, como as Tercenas (estaleiros navais), a
Casas das Galés, algumas indústrias como as Ferrarias Régias, o paço dos tabeliões,
a alfândega ou a casa dos pesos, assim como outros equipamentos relevantes para a
urbe, relacionados com várias atividades comerciais, tais como o mercado do peixe e
da carne, realizado nos açougues24.
À semelhança de Lisboa, também no Porto, o rio Douro e as proximidades com
o oceano atlântico irão potenciar o desenvolvimento urbano da zona Ribeirinha,
onde, pelo menos a partir de finais do século XIII, se regista a concentração de
atividades mercantis, produtivas e portuárias, que terão repercussões na urbanização
da parte baixa da cidade, que será incluída no perímetro amuralhado do século XIV
que bordeja o rio25.
Falamos, todavia, de cidades cujas necessidades de abastecimento e
consequentemente a importância enquanto centro de consumo, produção e
distribuição se confundem com as do próprio reino.
Na maioria das demais cidades o abastecimento era realizado numa escala muito
inferior e os cursos de água potenciavam a realização de atividades económicas mais
circunscritas. Referimo-nos, por exemplo, aos trabalhos de produção de peles, mas
também em muitos casos ao abate e venda de animais.
2. Abastecimento de carne, peixe, cereais e produtos hortícolas.
O abastecimento de carne, peixe, cereais e produtos hortícolas às cidades medievais
24
CAETANO, Carlos – A Ribeira de Lisboa na época da expansão portuguesa: séculos XV a XVIII.
Lisboa: Pandora, 2004; SILVA, Carlos G. – Lisboa Medieval. A organização e a estruturação do espaço urbano.
2ª edição, Lisboa: Colibri, 2010; SILVA, Manuel Fialho – Mutação urbana na Lisboa medieval. Das Taifas a
D. Dinis. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2017. Tese de doutoramento, pp. 291-391.
25
RIBEIRO, Maria do Carmo; MELO, Arnaldo Sousa – “O papel dos sistemas defensivos na formação
dos tecidos urbanos (Séculos XIII-XVII)”. In RIBEIRO, Maria do Carmo; MELO, Arnaldo Sousa (coords.) –
Evolução da paisagem urbana: transformação morfológica dos tecidos históricos. Braga: CITCEM/IEM, 2013,
pp. 183-222.
392
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
era, regra geral, realizado em locais próprios. Entre estes, os açougues constituem um
lugar de referência.
Tratavam-se de edifícios que serviam para a matança de animais, preparação e
venda das carnes, atividades que produziam muita sujidade e requeriam água. Em
muitos casos, os açougues, tendo em conta a sua própria origem e funcionalidade no
mundo islâmico, de mercado, serviam também para venda de vários outros produtos
alimentares, para além de carnes e peixes.
Por exemplo, nos açougues novos de Évora de 1470 vendiam-se a retalho,
pão (padeiras), fruta (fruteiras), fruta seca, figos verdes e secos, limões, hortaliças
(verceiras), peixe fresco e seco (pescadeiras de pescado), tripas e debulhos de bois e
vacas e outras carnes cozidas, cabritos, entre outros26.
Assim, os açougues constituíam um mercado de abastecimento diário, coberto
e amplo, onde existia espaço para bancas, permanentes ou amovíveis, onde desde
padeiras a pescadores podiam expor e vender os seus produtos, no seu interior ou
nas imediações. A prática de vender nas proximidades dos açougues, terá levado D.
Afonso IV, nas cortes de 1331, a proibir a colocação de tendas e bancas à porta dos
açougues, justificando a medida porque embargavam as ruas27.
Todavia, o aumento do consumo, nomeadamente de carne que se regista na Baixa
Idade Média, em variedade e quantidade, irá potenciar o crescimento do número de
profissionais que se dedicam a este oficio, particularmente carniceiros, bem como de
edifícios para a sua comercialização. Não menos importante foi o estabelecimento
de sistemas de distribuição pública altamente regulamentados para a carne, mas
também para o peixe28. Por exemplo, no Porto os carniceiros eram obrigados a
exercer o seu mester nos açougues, por imposição legal, e regra geral moravam nas
suas proximidades29. Também em Évora, no século XV, a câmara determina que todo
o peixe que vier para a cidade tem de ser vendido na casa construída para o efeito30 .
Todas estas circunstâncias acabaram por interferir na localização e número de
açougues nos espaços urbanos, assim como no seu carácter especializado e dimensão.
A importância dos açougues, e consequentemente do abastecimento à cidade
26
PEREIRA, Gabriel – “Posturas antigas da Câmara de Évora”. In Documentos Históricos da Cidade de
Évora. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1998 (Reimpressão da edição de 1885), p. 129.
27
BARROS, Henrique da Gama – História da administração pública em Portugal nos séculos XII a XV.
Vol. II, Lisboa: Sá da Costa, 1954, pp. 162.
28
PETROWISTE, Judicaël – “En passant par le mazel. Acheter sa viande au quotidien en France
méridionale à la fin du Moyen Âge”. In PETROWISTE, Judicaël; LAFUENTE GÓMEZ, Mario (dir.) – Faire
son Marché au Moyen Âge. Mediterranée occidentale, XIII-XIVe siècle. Madrid: Casa de Velázquez, 2018, pp.
181-207.
29
MELO, Arnaldo Sousa – Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média: O Porto, c. 1320 – c. 1415,
vol. I, Braga: Universidade do Minho, 2009. Tese de Doutoramento, pp. 239-242 [consultado em janeiro de
2020], disponível em http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/9896
30
“Posturas antigas da Câmara de Évora – as “Pescadeiras”. In PEREIRA, Gabriel – Documentos
Históricos da Cidade de Évora. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1998, p. 129.
ESPAÇOS E ARQUITETUR AS DE ABASTECIMENTO NA CIDADE MEDIEVAL
393
medieval de produtos como a carne, o peixe ou produtos hortícolas encontra
reflexo, entre outros, na toponímia das zonas urbanas, fossem ruas, pequenas praças
ou espaços junto às portas, assim como pelo lugar que ocupam, quase sempre de
grande centralidade, junto dos principais edifícios urbanos, mormente o tipo de
atividade que neles se realizava, pois, mais importante seria o controle do que lá se
transacionava.
Em larga medida, nas cidades portuguesas de média e grande dimensão existiu
um primeiro açougue, localizado dentro das muralhas, nas proximidades de edifícios
do poder urbano, apesar da sua atividade poluente, que depois foi remodelado
ou substituído por outro, situado noutro local mais amplo do espaço urbano. Por
exemplo, em Évora o açougue mais antigo localizava-se junto da igreja de S. Pedro,
nas proximidades da Sé, junto a uma fonte de água, sendo no século XIV transferido
para o templo romano, por razões de espaço31. Situação semelhante ocorre em
Santarém32, Ponte de Lima33 ou em Braga, cidade onde o açougue velho localizado
junto à Sé e aos Paços do Concelho, será transferido no século XVI para fora de
muros, onde aliás permanecerá até ao século XVIII34 (Fig. 4).
A justificar a enorme centralidade urbana dos primeiros açougues, encontramos
nomeadamente o controlo e fiscalidade subjacente à atividade, mas também o
relativo espaço necessário e ocupado inicialmente por estes edifícios, tendo em conta
o consumo de carne e peixe, produtos que não seriam acessíveis a toda a população,
de alguma raridade e consumo elitista.
O abastecimento de vários produtos alimentares à cidade, carnes, peixes,
vegetais ou pão era, deste modo, realizado de forma diária nos açougues, ou nas suas
proximidades, onde aliás com frequência se localizava o mercado especializado de
cereais e legumes secos, ou fangas, como em Santarém e Évora35, Viana do Castelo
ou em Ponte de Lima, a partir dos inícios do século XV36. No caso de Pinhel, os
açougues e as fangas funcionavam inclusivamente no mesmo edifício, descritos em
1395 como uma construção de 25 metros de comprido37.
Em algumas cidades, o aumento do consumo e comercialização de carne, peixe
e cereais fica atestado pela renovação e aumento do número deste tipo de edifícios,
como em Lisboa, cidade onde se registam vários açougues e fangas, como as novas
BEIRANTE, Ângela – O ar da cidade: ensaios de história medieval e moderna…, p. 185.
BEIRANTE, Ângela – O ar da cidade: ensaios de história medieval e moderna…, p. 185.
33
ANDRADE, Amélia Aguiar – Um espaço urbano medieval: Ponte de Lima. Lisboa: Livros Horizonte,
1990, pp. 15-19.
34
RIBEIRO, Maria do Carmo; MELO, Arnaldo Sousa – “A influência das actividades económicas na
organização da cidade medieval portuguesa”. In RIBEIRO, Maria do Carmo; MELO, Arnaldo Sousa (coords.)
– Evolução da paisagem urbana: sociedade e economia. Braga: CITCEM, 2012, pp. 145-171.
35
BEIRANTE, Ângela – O ar da cidade: ensaios de história medieval e moderna…, pp. 185.
36
ANDRADE, Amélia Aguiar – Um espaço urbano medieval: Ponte de Lima…, pp. 15-19.
37
TRINDADE, Luísa – Urbanismo e composição de Portugal…, pp. 696.
31
32
394
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
e grandes Fangas da Farinha, localizadas junto às Carniceiras, mandados fazer
por Afonso III, na Ribeira, muito provavelmente no âmbito de uma remodelação
urbanística da zona, nas décadas de 50 e 60 do século XIII38. Neste caso, tratar-seiam de estruturas propriedade da Coroa, que ocupavam dimensões significativas e
semelhantes, aproximadamente 7,7 metros por 17,6 metros cada uma39.
De facto, o abastecimento de alguns cereais específicos, como o trigo, realizado
em celeiros e paços específicos denota igualmente a grande importância que os cereais
assumem no quadro económico de algumas cidades ao longo da Idade Média, como
Lisboa, Porto ou Évora, requerendo a construção de estruturas de armazenamento
de grandes dimensões, permitindo atestar a sua existência, assim como o seu elevado
consumo40.
De modo geral, nos inícios de quinhentos, regista-se uma maior espacialização
dos açougues nas cidades, bem como um maior investimento na sua construção. Por
exemplo, na cidade de Coimbra, a edificação do novo açougue foi obra do arquiteto
Diogo de Boitaca, a mando de D. Manuel, e o de Elvas, de Francisco de Arruda41.
A arquitetura da generalidade dos primeiros edifícios dos açougues seria
simples, correspondendo a edifícios térreos com arcos42 ou alpendres para a rua como
os açougues da carne de Braga sustentados por colunas de pedra, onde existiam ainda
duas casas pequenas para os que tinham o encargo de os limpar e aos seus alpendres43.
Internamente poderia estar dividido em naves, como o antigo açougue de Elvas, em
1498, “de três naves muito grandes todos de cantaria”44. Podia tratar-se de um edifício
único ou estar inserido noutro, nomeadamente no paço do concelho, ocupando o
rés-do-chão, como se verificava em Coimbra45.
Em algumas cidades, a espacialização dos açougues para acolherem apenas a
venda de carne e ou de peixe parece acolher algum significado em finais da Idade
SILVA, Manuel Fialho – Mutação urbana na Lisboa medieval…, pp. 296-340.
SILVA, Manuel Fialho – Mutação urbana na Lisboa medieval…, p. 339.
40
MARQUES, A. H. de Oliveira - Introdução à História da Agricultura em Portugal. A questão cerealífera
durante a Idade Média. 3ª edição. Lisboa: Edições Cosmos, 1978, pp. 255-57; GONÇALVES, Iria – “Defesa do
consumidor na cidade medieval: os produtos alimentares (Lisboa-séculos XIV-XV)”. In Um Olhar sobre a
Cidade Medieval. Cascais: Patrimonia, 1996, pp. 29-48.
41
TRINDADE, Luísa – Urbanismo e composição de Portugal. Coimbra: Imprensa da Universidade.
2013, p. 127.
42
O açougue de Coimbra, localizado no rés-do-chão do Paço dos Tabeliães, possuía arcos de pedraria
na fachada onde se encontravam a vender as peixeiras, as enxarqueiras e as tripeiras (TRINDADE, Luísa – “A
Praça e a Rua da Calçada segundo o Tombo Antigo da Câmara de Coimbra, 1532”. Media Aetas, Paisagens
Medievais I (2004), pp. 121-157.)
43
“Memorial das Obras que D. Diogo de Sousa mandou fazer (1532-1565)”, realizado pelo cónego
Tristão Luís, pertencente ao Arquivo Distrital de Braga, Registo Geral, livro 330, fls. 329-334v, publicado por
MAURÍCIO, Rui – O mecenato de D. Diogo de Sousa, Arcebispo de Braga (1505 1532), Vol. II. Lisboa: Magno
Edições, 2000.
44
Cortes de Lisboa de 1498, Capítulo 26.º dos Capítulos especiais de Elvas (29-1-1498). João José
Alves Dias (Org.) – Cortes Portuguesas: Reinado de D. Manuel I (Cortes de 1498). Lisboa: Centro de Estudos
Históricos da Universidade Nova de Lisboa, 2002, pp. 391-392.
45
TRINDADE, Luísa – “A Praça e a Rua da Calçada…”, pp. 121-157.
38
39
ESPAÇOS E ARQUITETUR AS DE ABASTECIMENTO NA CIDADE MEDIEVAL
395
Média, muito embora em Lisboa, os Açougues da Carne e os Açougues do Peixe já
existam desde meados do século XIII, cidade onde o número de mercados e postos
de venda é bastante elevado. Em Braga, nos inícios do século XVI, ao açougue da
carne vem juntar-se um açougue para pescado, mandado construir pelo arcebispo D.
Diogo de Sousa e acerca do qual temos uma discrição muito precisa:
“Mandou fazer na praça que está à porta de Sousa uns açougues para pescado
de (ao) longo da rua, muito compridos e anchos (largos) e anda-se todos de
arredor, são madeirados sobre 12 colunas com suas vazas e capiteis, tem dentro
4 mesas grandes de pedra postas cada uma sobre dois pilares, toda esta obra de
pedraria muito bem lavrada e sobre cada mesa um tirante com dois ferros para
terem a balança de pesar do pescado, todo este alpendre muito bem calçado e
com degraus de pedraria”46.
Estes açougues sobrevivem até ao século XVIII, momento em que são
representados no Mappa da Cidade de Braga Primas (1756-57) (Fig. 4) e descritos no
Livro da Cidade (1737)47 como uma estrutura retangular com aproximadamente 11
metros de comprimento por 6,5 metros de largura, sustentados, tal como no século
XVI, por colunas (quatro cunhais de pedra nos quatro cantos e seis colunas também
de pedra, é uma do nascente, outra do poente, duas do norte e duas do sul. Apesar
das naturais remodelações que sofreram, destinando-se no século XVIII à venda de
pão branco e broa, frutos verdes e secos, conservam ainda muito da sua estrutura
original.
Também os novos açougues da carne de Braga, construídos no século XVI,
construídos fora de muros e que substituem os velhos açougues sobrevivem até ao
século XVIII. De acordo com as mesmas fontes iconográficas (Fig. 4) e escritas48
atrás referidas, trata-se de um edifício isolado, retangular, com aproximadamente
34 metros de comprido por 11 metros de largura, coberto por um telhado de 4
águas. A fachada nascente era formada por grades de madeira, assentes numa
parede com cerca de 1,30 metros de altura. A meio, encontrava-se uma porta de
serventia, com friso em cima e as armas da cidade. Na fachada sul, também formada
por grades de madeira, encontra-se a casa do peso, com acesso direto a partir da
rua. Dos restantes lados, nascente, poente e norte o acesso aos açougues fazia-se
por escadas que acompanhavam o declive do terreno. As restantes fachadas eram
todas abertas em forma de alpendre. Internamente, encontravam-se os vários talhos.
Apesar de se tratar de uma discrição do século XVIII, podemos assumir com alguma
probabilidade que estruturalmente seria muito semelhante aos açougues construídos
“Memorial das Obras que D. Diogo de Sousa mandou fazer (1532-1565)…”, fls. 329.
Arquivo Municipal de Braga – Livro da Cidade, Vol. I: fls. 89V-90.
48
Arquivo Municipal de Braga – Livro da Cidade, Vol. I: fls. 89V-90.
46
47
396
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
no século XVI, tendo em conta o local e as características topográficas do terreno
onde se mantêm, mas também o uso de alpendres para acolher este tipo de atividade
e toda a amplitude e organização do espaço interno.
Fig. 4 – Açougues de Braga, construídos no século XVI (Mappa da Cidade de Braga Primas).
Uma das formas igualmente comum de abastecer a cidade era através de
mercados e feiras que decorriam de forma periódica nos mais diversos locais do
espaço periurbano e urbano, permitindo prover a cidade com os produtos das regiões
limítrofes, que não podiam ser produzidos nas cidades e, simultaneamente, escoar
a produção artesanal. A quantidade de feiras e mercados realizadas nas cidades
medievais era pois muito variável, com Lisboa e Porto à cabeça. O local onde eram
realizados dependia do espaço necessário à sua realização, bem como das facilidades
de acesso ou proximidade às vias de comunicação terrestres ou fluvial49. Assim, este
tipo de trocas, podiam ser realizadas em qualquer lugar vago – chão, campo, rossio
ou terreio – onde era possível erguer tendas móveis, expor as mercadorias em bancas
e cestos ou simplesmente no chão, preferencialmente junto aos largos existentes junto
às portas das muralhas ou aos edifícios de maior centralidade, à semelhança do que
se verificava no Porto, cidade onde a feira semanal se realizava no Rossio junto à Sé50.
49
RAU, Virgínia – Feiras Medievais portuguesas. Subsídios para o seu estudo. Lisboa: Presença, 1982,
pp. 35-45.
50
Atualmente na fachada principal da Sé, ainda se conservam as medidas padrão do Porto (vara e
a meia vara), essenciais ao comércio (MELO, Arnaldo Sousa – Trabalho e Produção em Portugal na Idade
Média…, vol. I, pp. 218-220.)
ESPAÇOS E ARQUITETUR AS DE ABASTECIMENTO NA CIDADE MEDIEVAL
397
Paralelamente, o abastecimento à cidade de uma gama variada de produtos
alimentares, como a manteiga de azeite, o mel, ovos, alhos ou cebolas podia ser
realizado de forma dispersa pela cidade, à porta de casas, pelas regateiras ou por
aqueles que os produziam, como se verificava em Coimbra51.
Parece consensual que a realização das feiras nas cidades vá sendo paulatinamente
substituída por mercados e que os locais onde estes se realizavam passem a ser
designados de Praça, termo que passa igualmente a ser utilizado para designar um
espaço urbano mais ordenado, delimitado pela construção de novos edifícios, mas
também adornado com fontes e chafarizes. Paralelemente aos múltiplos exemplos,
refira-se o caso de Braga, onde nos inícios do século XVI D. Diogo de Sousa mandou
fazer inúmeras praças, nomeadamente a praça do Pão, onde mandou construir
uma nova câmara da cidade de cantaria e em baixo um alpendre com dois grandes
assentos de pedraria para vender o pão52.
Com o tempo assiste-se à construção de algumas estruturas de apoio à realização
da venda de produtos nas cidades, nomeadamente de estrebarias e alpendres. Para
Braga, D. Diogo de Sousa, nos inícios do século XVI, mandou construir à porta do
Souto uma casa, estrebarias e alpendres com suas colunas para pousarem de graça os
almocreves que trazem mantimentos para a cidade, assim como à porta de Sousa uma
estrebaria com suas manjedouras calçada e leitos para os almocreves se instalarem
de graça53.
3. Abastecimento de produtos manufaturados (calçado, roupa, utensílios
domésticos).
O abastecimento de produtos manufaturados foi muito variável de cidade para
cidade, dependendo em larga medida do desenvolvimento dos ofícios /mesteres.
Num grande número de cidades foi possível a sua concentração em espaços
específicos, nomeadamente em ruas, onde se situavam edifícios destinados à
produção e, simultaneamente, ao comércio dos mais diversos produtos, recebendo
muitas vezes os topónimos de rua das Tendas ou Tendeiras, rua dos Mercadores, rua
da Sapataria, da Ferraria e de toda uma gama diversificada de mesteres. No entanto, o
abastecimento diário destes bens fazia-se igualmente através de formas dispersas por
todo o núcleo, nomeadamente em tendas e oficinas, numa prática bastante comum
de destinar o rés-do-chão das habitações à produção e venda de produtos.
Em Guimarães, por exemplo, cidade onde os mestres do calçar e do vestir
parecem prevalecer, as Ferrarias ou rua Ferreira, seriam uma zona privilegiada de
RAU, Virgínia – Feiras Medievais portuguesas…, pp. 175-185.
“Memorial das Obras que D. Diogo de Sousa mandou fazer (1532-1565)…”, fls. 329v.
53
“Memorial das Obras que D. Diogo de Sousa mandou fazer (1532-1565)…”, fls. 329.
51
52
398
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
concentração de alfaiates54. Também em Braga, no século XIV, o setor do vestuário
apresenta o maior volume de profissionais, sendo os alfaiates que dominam. No
século XV, o setor dos couros parece ganhar preponderância pelo aumento do
número de sapateiros, ganham igualmente maior expressão os ferreiros. A sua
concentração far-se-ia preferencialmente na rua da Sapataria, muito embora nela
também encontremos tecelões, mercadores, advogados, entre outros habitantes que
desconhecemos a profissão55.
No Porto, nos séculos XIV e XV os dois mais numerosos mesteres da cidade
seriam os sapateiros e os ferreiros, concentrados preferencialmente na zona ribeirinha,
já referida, onde se concertariam igualmente ourives, moedeiros, tanoeiros, entre
muitos outros56.
Todavia, à medida que avançamos na Idade Média, o aumento da especialização
do sistema produtivo, associado a um aumento da qualidade dos produtos, faz com
que se registe um maior e mais diversificado número de profissionais nas cidades.
Mesmo assim, a prática do comércio de rua, associada à produção, parece constituirse num elemento altamente característico da paisagem urbana medieval, que terá
continuidade nos séculos seguintes. Refira-se, a título de exemplo um conjunto de
habitações na medieval rua da Sapataria de Braga, onde curiosamente até há bem
pouco tempo se vendia artesanato na loja do rés-do-chão, numa prática continuada
pelo menos desde o século XVI57 (Fig. 5).
No Porto, por exemplo, cidade onde se registam-se vários mesteres tal como em
Lisboa, os sectores dos couros e dos metais encontravam-se muito especializados,
com profissionais como bainheiros, correeiros, seleiros, cutileiros, esteireiros, entre
outros.
No caso do Porto, paralelemente à importância do Douro e da zona ribeirinha
para o desenvolvimento urbano da cidade, continuada e aumentada ao longo do
século XV para poente em direção ao arrabalde de Miragaia, onde se concentram
agora as atividades de construção naval, destaca-se igualmente um outro curso de
água, conhecido como rio de Vila, que corria a ocidente do núcleo amuralhado alto
medieval e onde se desenvolverá uma importante zona de curtição de peles, pelo
menos desde os inícios do século XIV, que a partir de meados do século XV passam a
ser cavados na rocha, originando mesmo os topónimos de Rua dos Pelames e Morro
dos Pelames58.
FERREIRA, Maria da Conceição Falcão – Guimarães: ‘duas vilas, um só povo’…, pp. 532-536.
RIBEIRO, Maria do Carmo – Braga entre a época romana e a Idade Moderna…, pp. 467-472; RIBEIRO,
Maria do Carmo; MELO, Arnaldo Sousa – “A influência das actividades económicas…”, pp. 183-222.
56
MELO, Arnaldo Sousa – Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média…, vol. I, pp. 242-244.
57
RIBEIRO, Maria do Carmo – Braga entre a época romana e a Idade Moderna…, pp. 467-472; RIBEIRO,
Maria do Carmo; MELO, Arnaldo Sousa - “A influência das actividades económicas …”, pp. 183-222.
58
MELO, Arnaldo Sousa – Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média…, vol. I, pp. 242-244.
54
55
ESPAÇOS E ARQUITETUR AS DE ABASTECIMENTO NA CIDADE MEDIEVAL
399
Fig. 5 – Casas de origem medieval na rua da Sapataria, em Braga. À esquerda:
em 2008; à direita, em 1750, segundo o Mappa das Ruas de Braga.
Na realidade, esta atividade, localizada em locais próprios (pelames, couros
ou tenarias) necessitava de água corrente proporcionada por rios e de preferência
afastados dos núcleos urbanos, em virtude da poluição que geravam, como aconteceu
nomeadamente em Guimarães, onde nas proximidades do rio de Couros, no sopé da
Vila, se assiste à emergência de um arrabalde periurbano denominado de arrabalde
de Couros, local estão documentados numerosos pelames de curtição durante a
Idade Média, e cujos vestígios persistem até à atualidade, bem como de outro tipo
de imóveis, propriedade de diversas instituições, nomeadamente confrarias de
sapateiros59.
No caso de Braga, também a produção de couros se estabelece, pelo menos desde
o século XIV junto ao rio Este, localizada extramuros, no fim da Rua dos Pelames,
junto à ponte com o mesmo nome, que atravessava o rio Este e permitia a ligação
para o Porto. A antever pela existência de 37 pelames de sapateiros, mencionada no
59
FERREIRA, Maria da Conceição Falcão – Guimarães: ‘duas vilas, um só povo’…, pp. 294-298.
400
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
4º Tombo do Cabido de meados do século XV, esta seria uma atividade económica
de grande importância para a cidade60.
Todavia, como referido, no Porto, os pelames irão desenvolver-se dentro de
muros, numa área extramente central, contrariamente ao que se verifica em outros
aglomerados, numa situação atípica, mas justificável pela sua importância para
a economia do Porto, assim como a proximidade com os açougues, com os quais
mantinham uma natural dependência61.
Desta forma, podemos afirmar que as necessidades de abastecimento dos
núcleos urbanos medievais foram geradoras de diferentes espaços e arquiteturas,
reflexo das diversas formas de interação entre as características do meio ambiente
em que se desenvolvem e da natureza que os rodeia, mas também da economia, da
sociedade e das gentes que os habitaram.
As distintas formas de aprovisionamento e gestão de bens essenciais como a
água desempenharam, para além da sua função primária, um importante contributo
para a sociabilidade dos habitantes nas cidades, mas também para configuração de
novos cenários urbanos.
Conjuntamente com os edifícios de poder, os açougues, mormente o tipo de
atividade que neles se desenvolvia, ocuparam um papel de grande centralidade,
constituindo um marcador arquitetónico de referência económica e urbana em
quase todas as cidades.
O desenvolvimento económico registado na Baixa Idade Média, decorrente
do aumento da produção e da sua especialização foi acompanhado pelo surgimento
de novos espaços e arquiteturas para dar resposta às crescentes necessidades de
abastecimento, mas também a novas lógicas de pensar o espaço urbano.
60
RIBEIRO, Maria do Carmo; MELO, Arnaldo Sousa – “A influência das actividades económicas …”,
pp. 183-222.
61
MELO, Arnaldo Sousa – Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média…, vol. I, pp. 239-244.
ESPAÇOS E ARQUITETUR AS DE ABASTECIMENTO NA CIDADE MEDIEVAL
401
402
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Las Alhóndigas, una nueva arquitectura
civil en la Castilla del siglo XVI.
Análisis de su implantación
en las ciudades Medievales
José Miguel Remolina Seivane1
Resumen
Las alhóndigas o pósitos del grano son una nueva tipología arquitectónica
civil, que hace su aparición en las ciudades de Castilla y León en las últimas
décadas del s XV y primeras del XVI. Son grandes construcciones orientadas al
almacenamiento del trigo, que aunque basadas en precedentes bajo medievales,
poseen unas características que las convierte en arquitecturas de gran interés,
con grandes dimensiones y volumetría rotunda, y, sobre todo, contemplando
ingeniosas soluciones funcionales que facilitan la carga y descarga del grano.
La necesidad de agilizar la llegada del trigo aconsejó su ubicación en áreas
inmediatas a las puertas de la ciudad, casi siempre ocupando áreas marginales
de la ciudad medieval que así se incorporan a una nueva funcionalidad urbana.
El artículo presenta las alhóndigas de Segovia y Burgos, realizando un más breve
acercamiento a las de Zamora y Ávila, analizando cuáles son sus características
arquitectónicas comunes y estudiando el modo en que se insertan en la ciudad
medieval preexistente.
Palabras clave
Alhóndigas; Arquitectura medieval; Ciudad medieval; Segovia; Burgos.
1
Arquitecto. Associazione Storia della Città: jmiguelremolina@gmail.com.
404
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
The “Alhóndigas”, a new civil architecture in Castile in the
16th century. Analysis of its implantation in the Medieval cities
Abstract
The “alhóndigas” or grain warehouses are a new civil architectural typology,
which appeared in the towns of Castile and Leon in the last decades of the
15th and first decades of the 16th century. They are large buildings oriented
to the storage of wheat, which although based on medieval precedents, have
characteristics that make them very interesting architectures, with large
dimensions and volume, and above all, contemplating ingenious functional
solutions that facilitate the loading and unloading of the grain.
The need to speed up the arrival of the wheat made it advisable to locate them
in areas right at the city’s gates, almost always occupying marginal areas of the
medieval city that are thus incorporated into a new urban functionality.
The article presents the alhóndigas of Segovia and Burgos, making a brief
approach to those of Zamora and Ávila, analyzing which are their common
architectural characteristics and studying the way in which they are inserted in
the pre-existing medieval city.
Keywords
Alhóndigas, medieval architecture, medieval town, Segovia, Burgos.
1. La Introducción de una nueva tipología arquitectónica en una ciudad medieval
en proceso de cambio.
En las primeras décadas del siglo XVI hacen su aparición en las ciudades de Castilla
y León las alhóndigas o pósitos del grano, una nueva tipología arquitectónica
civil, orientada al almacenamiento del trigo durante todo el año, que posibilite el
abastecimiento de harina en la ciudad incluso en épocas de escasez, ya sea debido a
sequias y crisis agrícolas ya sea a conflictos y desórdenes civiles.
El fomento de la construcción de alhóndigas forma parte de las políticas de
potenciación del poder municipal llevadas a cabo por los Reyes Católicos en las
últimas décadas del siglo XV, de las que las más conocidas son las emanadas de las
cortes de Toledo de 1480; estas medidas supusieron un impulso a la construcción
de casas consistoriales en las ciudades del reino, así como otras instalaciones
LAS ALHÓNDIGAS, UNA NUEVA ARQUITECTUR A CIVIL EN LA CASTILLA DEL SIGLO XVI
405
concejiles, como carnicerías y alhóndigas, que fueron creándose en todos los núcleos
principales2.
Las edificaciones que albergarán las alhóndigas suponen por sus dimensiones
y características arquitectónicas, así como por su ubicación, un interesante episodio
de introducción de una nueva tipología en el interior de unas ciudades de morfología
medieval, en que lentamente comienzan a aparecer iniciativas de transformación de
la trama urbana que serán más amplias desde mediados del siglo XVI.
Eran edificios muy determinados en su forma por la función a desempeñar,
contenedores de volumetría muy sencilla, con una o dos plantas. La planta baja casi
siempre aparece ciega, y los huecos de ventilación se sitúan en las partes superiores;
uno o dos puertas de entrada posibilitan los dos recorridos fundamentales, la entrada
de grano, traído en verano en grandes volúmenes desde los alrededores de la ciudad
en carros o a lomo de cabalgaduras, y la salida en sacos o artesas de pequeñas cargas,
a lo largo del año, orientados a las familias o panaderos de la ciudad. Si la primera
puerta ha de ser ancha y permitir el trasiego de carruajes y cabalgaduras, la segunda
puede ser más pequeña pero suele presentar una rica decoración alusiva al concejo
o la corona, con la frecuente aparición de escudos e inscripciones. La primera se
orienta hacia el exterior del recinto amurallado, por donde llegarán los campesinos
de los alrededores, la segunda se abre a la ciudad, a ser posible hacia su corazón
comercial y los lugares de mercado.
En este artículo se van a estudiar en detalle las primeras edificaciones
específicamente construidas para este fin en las primeras décadas del siglo XVI en
las ciudades de Segovia y Burgos, poniéndolas en relación con otros ejemplos, de
entre los que destacan las alhóndigas de Zamora y Ávila. Si el ámbito cronológico
escapa de los límites establecidos para la Edad Media, se considera oportuno incluir
el tema en un marco de estudio de la ciudad medieval por cuanto la arquitectura
de dichas edificaciones aún hace uso de soluciones constructivas y arquitectónicas
más propias de periodos anteriores, y en todo caso se inserta en una trama urbana
aun netamente medieval. En las décadas inmediatamente posteriores y en los siglos
XVII y XVIII, adquirirá un nuevo auge la construcción de este tipo de arquitecturas
concejiles, fundamentalmente en las ciudades de la meseta sur y en Andalucía, con
soluciones formales netamente renacentistas, pero basadas en las experimentaciones
formales de las primeras edificaciones de inicios del siglo XVI3.
2
GORDO PELÁEZ, Luis J. – “Pósitos alhóndigas y alholíes. Edificios municipales de abastecimiento
en Castilla durante el siglo XVI”. In ARANDA BERNAL, Ana María (coord.) – Arquitectura vernácula en el
mundo ibérico: actas del congreso internacional sobre arquitectura vernácula. Sevilla: Universidad Pablo de
Olavide, 2007, pp. 102-114. LOZANO BARTOLOZZI, María del Mar – Historia del urbanismo en España, t. II:
siglos XVI XVII, XVIII. Madrid: Cátedra, 2011, p. 261.
3
SERRA RUIZ, Rafael – “La Alhóndiga en el siglo XVIII”. Anuario de historia del derecho español 41
(1971), pp. 784-808.
406
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
2. Precedentes de pósitos y alhóndigas en la ciudad medieval.
En las ciudades medievales de Castilla existieron alhóndigas y depósitos municipales
de almacenamiento de grano, de los que poseemos noticias aisladas en los casos de
Segovia o Toledo4. Estos pósitos del pan o alhóndigas, fueron de dos tipos, de iniciativa
pública, ya sea concejil o real, y de iniciativa particular, fundados por monasterios
o fruto de donaciones particulares, fundamentalmente obras pías de sacerdotes, con
fines de piedad o beneficencia. Los creados por las órdenes religiosas se llenaban
sobre todo con el llamado “diezmo”, impuesto por el que cada agricultor entregaba a
la iglesia la décima parte de su producción. En todos los casos fueron instalaciones
de reducidas dimensiones, que aparecían adosadas a otras construcciones, carentes
del carácter y monumentalidad que adquirirán las edificaciones posteriores.
Las alhóndigas construidas a inicios del siglo XVI extraen las soluciones
arquitectónicas y funcionales de la tradición de pósitos y almacenes de la época
medieval, pudiéndose establecer fundamentalmente dos modelos tipológicos, el
proveniente de las alhóndigas de la ciudad hispano musulmana y el proveniente de
los monasterios de los siglos XIII-XV.
En las ciudades hispano musulmanas las denominadas alhóndigas poseían
un carácter funcionalmente más complejo, pues además de la función de almacén
de grano y mercancía funcionaban como alojamiento de comerciantes foráneos y
centros de intercambio. Tras la conquista cristiana se mantuvieron algunas de estas
instalaciones ya transformadas y habiendo perdido la función de albergue para los
comerciantes foráneos, conservándose referencias de su ubicación y morfología en
los casos de Toledo y Granada. Siempre se organizan a partir de un patio central, que
permite la existencia de distintas estancias alrededor5.
A esta tradición constructiva pertenecen dos de los edificios más importantes
de este tipo conservados en la península, el Almudín de Valencia y el Almodí de
Játiva. Esta tipología organizada a partir de un patio será retomada en el siglo XVI en
ocasiones, como más adelante se estudiará en la ciudad de Zamora.
Un segundo modelo proviene de las construcciones auxiliares medievales de los
grandes monasterios de los siglos XIII y XIV; estos poseyeron entre sus dependencias
amplios depósitos de grano y otros víveres, grandes naves diáfanas que permitían
el almacenaje de la producción cereal de los campesinos del entorno. Ejemplos
regionales significativos son las cillas o almacenes que existen en los monasterios
de Las Huelgas de Burgos o de Santa María de Huerta en Soria, ambos aún hoy
4
En diciembre de 1499, en Valladolid se encarga a dos regidores que estudien donde hacer la alhóndiga
nueva. PORRES MARTÍN-CLETO, Julio – “La alhóndiga de Toledo”. Anales Toledanos 7 (1973), pp. 131-146.
5
TORRES BALBÁS, Leopoldo – “Las alhóndigas hispano-musulmanas y el Corral del Carbón de
Granada” Al Andaluz 11 (1946), pp. 446-480.
LAS ALHÓNDIGAS, UNA NUEVA ARQUITECTUR A CIVIL EN LA CASTILLA DEL SIGLO XVI
407
perfectamente conservados. En algunos casos la cilla posee una sola nave con arcos
fajones transversales, como sucede en el monasterio de Rueda o en Santa María de
Huerta; en los más grandes la nave más ancha precisa de apoyos intermedios, que
entonces desarrollan una arcada paralela al lado mayor, tal y como sucede en el
monasterio de la Veruela. En el monasterio de Las Huelgas la cilla-bodega se sitúa al
oeste del claustro, posee unos 15 metros de anchura, por una longitud de 40 metros,
contando con una arcada central de seis columnas y arcos apuntados paralelos al
lado mayor.
En los monasterios cistercienses la cilla siempre se situó al oeste del claustro,
ocupando todo un lateral, posibilitando una doble ventilación oeste-este; poseían
un piso bajo o un sótano sin huecos con grandes arcadas, que asegurara una planta
superior libre de humedad. Esta que es la orientación modelo, y como tal aparece
con esa ubicación en el célebre plano ideal del monasterio de Sankt Gallen, será la
que presente la cilla en Las Huelgas. Los monasterios urbanos un poco posteriores
introdujeron este tipo de edificios en la ciudad. Un ejemplo destacado, aún hoy
existente, es el de las grandes paneras del antiguo monasterio de la Merced en Toro
(Zamora) conservándose una amplia nave con contrafuertes donde se almacenó el
grano.
Dada la conveniencia de que los graneros se sitúen aislados del terreno siempre
que es posible se intenta aprovechar la existencia de desniveles y pendientes para
crear sótanos, que permitirán evitar la humedad del suelo. En busca de esta solución
en ocasiones el espacio de almacén se alejará de la disposición tipo señalada,
para colocarse casi siempre en paralelo a la iglesia, como podemos observar en el
monasterio de El Parral de Segovia.
Este ejemplo del monasterio de Santa María del Parral pudo ser uno de los
que influyeron en el diseño de la alhóndiga de Segovia, como luego se verá. La cilla
– almacén se situaba en el claustro de la Enfermería, dispuesto al sur del conjunto
conventual, en un volumen organizado en dos pisos; es preciso añadir como en
este caso la abundancia de corrientes de agua en el subsuelo obligaría a buscar las
soluciones de aislamiento de esta humedad, colocando el almacén en el nivel alto.
Aunque hoy presenta un estado de ruina es posible deducir sus características
constructivas originales; aprovechando el fuerte desnivel se dispone una planta baja
con arcos transversales, manifestados al exterior en la aparición de seis grandes
contrafuertes en su fachada sur6.
6
Cuerpo actualmente en ruina, sólo se conserva uno de los contrafuertes. LÓPEZ DÍEZ, María – Los
Trastamara en Segovia. Juan Guas maestro de obras reales. Segovia: Caja-Segovia, 2006, pp. 196 y ss. Plan
Director Monasterio del Parral, pp. 123, 251, 296. http://www.culturaydeporte.gob.es/planes-nacionales/dam/
jcr:289151de-083e-4ff0-938b-d0597cc3424a/plan-director-monasterio-el-parral.pdf, consultado 29/12/2019.
408
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
3. Características de una nueva arquitectura funcional.
Las alhóndigas que se van a construir en los primeros años del siglo XVI poseen
características propias, principalmente debido a su carácter exento y sus dimensiones,
mucho mayores que las de los edificios medievales antes comentados.
Es interesante destacar las condiciones funcionales singulares que suponen
los nuevos edificios; a diferencia de las arquitecturas religiosas o palaciegas de la
época, en que la búsqueda de representatividad urbana empuja a priorizar soluciones
compositivas y decorativas de prestigio, en estas nuevas edificaciones se priorizará
la búsqueda de soluciones funcionales que permitan el adecuado funcionamiento de
las alhóndigas, en lo que supone una introducción de modernidad en el significado
de las arquitecturas menores de la ciudad.
Primeramente es importante disponer de grandes naves de almacenamiento,
que aparecerán compartimentadas en varias paneras o trojes más pequeñas, que en
lo posibles estarán elevados y separados del suelo, para evitar las humedades. Será
importante orientarlos adecuadamente, como más adelante se verá la orientación
sur parece no ser conveniente, procurando buscar las oeste y norte. En todo caso
es preciso prever numerosos huecos de ventilación en la parte superior, que sólo
se abrirán en determinadas situaciones, de acuerdo con los vientos dominantes.
Aspecto fundamental es facilitar la descarga del grano en la panera, realizando esta
desde un piso superior cuando es posible; así es que la disposición de la Alhóndiga
de Burgos aprovechará su disposición en ladera para realizar la carga por la parte
posterior, a favor de pendiente, mientras en la Alhóndiga de Segovia se realiza la
extraordinaria solución arquitectónica de introducir la rampa en el interior de la
edificación facilitando la carga desde arriba de las paneras.
Cuando estas soluciones no son posibles se debieron utilizar sistemas de poleas
para alzar los sacos, sin que nos hayan quedado restos de este tipo de estructuras
complementarias.
Las paneras debían estar lo más aisladas posible para evitar humedades y
roedores, los dos principales enemigos de los pósitos, por ello siempre se busca la
realización de un sótano que los separe de la humedad del suelo, o un foso que evite
el encuentro con el terreno pendiente. Un aspecto muy importante es la necesidad
de contar con gruesos muros capaces de aguantar los enormes empujes del material
almacenado; una solución que se hará frecuente es situar los edificios apoyados en la
muralla, como veremos sucede en Zamora y Segovia.
4. Inserción de las nuevas edificaciones en los tejidos urbanos medievales.
La primera decisión para asegurar el correcto funcionamiento de los nuevos edificios
LAS ALHÓNDIGAS, UNA NUEVA ARQUITECTUR A CIVIL EN LA CASTILLA DEL SIGLO XVI
409
pasa por la elección de su lugar de ubicación. En la ciudad medieval las pequeñas
instalaciones de carnicerías y panaderías solían asentarse en la proximidad de los
lugares de mercado; tal sucede en Segovia donde pescadería y carnicerías se situaron
junto al Azogue Mayor, en el entorno de la actual Plaza Mayor7.
Las nuevas alhóndigas, sin embargo, buscan lugares cercanos a las murallas,
en que debían existir espacios de poca densidad. Es conveniente que se sitúen muy
cerca de alguna de las puertas, para así evitar las molestias que supone el paso de los
carros. Prefieren buscarse áreas en que ya exista una cierta tradición de mercados
o actividades artesanales, tal y como sucede en Zamora y Segovia; es sin embargo
importante situarlos dentro del recinto amurallado, evitando los problemas que en
caso de conflicto pudiera suponer su ubicación extramuros.
En Burgos y Zamora la implantación se realiza en lugares que están atravesando
procesos de abandono, en Burgos aprovechando el lugar de la antigua judería que
sufrió con gran virulencia los combates en torno al castillo de 1476 y que debía
presentar un avanzado estado de abandono, en Zamora el entorno septentrional del
barrio de la Lana, en que se situaba la judería nueva, y que tras la expulsión de 1492
debía presentar amplias áreas libres8.
5. La Alhóndiga de Segovia.
Sin duda se trata del edificio de alhóndiga más importante que se construyó en
Castilla y León en las primeras décadas del siglo XVI.
La construcción se llevó a cabo en 1511, ocupando unos solares de casas
situados entre la calle Real y la muralla, junto al palacio de los Aguilar; tal vez se
aprovecharon los muros maestros de estas viviendas, lo que justificaría la falta de
ortogonalidad de los muros con respecto a la muralla trasera (Fig. 1).
El inmueble posee dos accesos; la llegada de las cabalgaduras con mercancía se
realizaba por el lateral, desde el postigo de la Luna, acceso luego cegado. La recogida
del grano por los ciudadanos se realizaba a través de una portada monumental
orientada hacia el norte. En esta fachada principal septentrional destaca el gran arco
de medio punto con alfiz y los dos escudos de la ciudad a cada lado9.
En planta el edificio se compone de cuatro crujías paralelas, que aparecen
inclinadas, formando un ángulo no recto con el gran posterior muro de la muralla.
7
RUIZ HERNANDO, José Antonio – Historia del Urbanismo en la ciudad de Segovia del siglo XII al
XIX. Segovia: Diputación Provincial de Segovia, 1982, I, p. 85.
8
REPRESA, Amando – “Génesis y evolución urbana de la Zamora medieval”. Hispania: Revista
Española de Historia 122 (1972), p. 537. GARCIA CASAR, Fuencisla – La Aljama judía de Zamora (siglos
XIII-XV). Salamanca: Universidad Pontificia de Salamanca, 1989, pp. 69 – 74. Tesis Doctoral. Acceso abierto
en: https://summa.upsa.es/details.vm?q=id:0000008053&view=main&lang=es
9
CHAVES MARTÍN, Miguel Ángel – Segovia Guía de Arquitectura. Segovia: Coacyle, 2006, p. 107.
RUIZ HERNANDO, José Antonio – Historia del Urbanismo en la ciudad de Segovia…, tomo I, p. 128.
410
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Fig. 1 – Alhóndiga de Segovia. Vista aérea con inserción urbana y fachada septentrional.
El inmueble conserva aún hoy su estructura original, con tres espacios en los que se
en distribuían sendas paneras para guardar el trigo; se ha conservado la tradición de
la denominación de cada una de las tres paneras, llamadas de la gloria, del purgatorio
y del infierno, sin que se haya aclarado el origen de tal denominación.
Elemento de gran interés es el cuerpo transversal trasero, apoyado en la muralla,
que alberga una rampa de acceso al piso superior. La función de la rampa es facilitar
la descarga del grano desde el piso superior, permitiendo el acceso de cabalgaduras,
y tal vez pequeños carros (Fig. 3).
Bajo las paneras existe un gran sótano, con arcos de piedra de sujeción del gran
peso del grano almacenado. Los arcos se disponen transversales a la dirección de los
LAS ALHÓNDIGAS, UNA NUEVA ARQUITECTUR A CIVIL EN LA CASTILLA DEL SIGLO XVI
Fig. 2 – Alhóndiga de Segovia. Ubicación urbana. Interpretación de la planta del nivel
superior con las distintas paneras. Dibujos del autor.
411
412
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Fig. 3 – Alhóndiga de Segovia. Interpretación de la sección transversal en sentido oeste-este , mostrando la rampa de acceso posterior y las dos paneras este y oeste. Dibujo del autor
muros maestros superiores, la mayoría de ellos realizados en ladrillo, habiéndose
dispuesto además otros en ladrillo de refuerzo en época indeterminada.
El alzado oriental del edificio presenta seis grandes contrafuertes, justificados
para aguantar los esfuerzos transmitidos por los arcos del sótano. Indudablemente
este era el lateral más comprometido pues posee más altura al estar situado contra
pendiente. Esta solución de arcos y contrafuertes exteriores parece tomada de las
cillas de los monasterios, de las que el cercano ejemplo del Monasterio del Parral
que se situó aprovechando la pendiente junto al claustro de Enfermería es un buen
ejemplo. En el sótano se conserva un gran muro de carga de gran grosor, sin duda
reutilizado de una construcción anterior
En la parte superior se abren numerosos huecos que posibilitan la ventilación,
cinco ventanas con arcos de medio punto en la fachada este, cuatro con adintelados
en el lateral sur, y tres en la fachada principal norte. En un documento referido a la
alhóndiga de Zamora, que más adelante se estudia, se especifica cuáles son los vientos
adecuados para el adecuado mantenimiento del grano, señalando la conveniencia de
los vientos norte (cierzo) y del noroeste (gallego) así como el perjuicio que suponía
el viento sur.
Llama la atención la asimetría de la fachada principal, hecho tal vez debido
al aprovechamiento de la estructura de antiguas construcciones; al aparecer esta
fachada actualmente recubierta con esgrafiado es imposible apreciar huellas del
proceso constructivo y posibles alteraciones o ampliaciones.
Con motivo de la construcción de la alhóndiga se debió proceder a abrir o
ensanchar la pequeña calle que comunica desde la calle Real, principal eje viario
LAS ALHÓNDIGAS, UNA NUEVA ARQUITECTUR A CIVIL EN LA CASTILLA DEL SIGLO XVI
413
de la ciudad medieval, de tal modo que desde esta se percibe la portada, elemento
representativo de la nueva edificación.
El acceso a la puerta de carga se realizaba desde un pequeño callejón paralelo a
la muralla, accediendo desde el sur por la denominada Puerta de la Luna, un acceso
de menor importancia, que relacionaba la ciudad con el sector del Rastro y los
arrabales situados en bajo junto al arroyo Clamores
En 1585 aparecen documentadas obras en la cubierta de la Alhóndiga, cuyo
alcance se desconoce, tal vez es entonces cuando se eleva ligeramente la altura de la
cornisa10.
A partir del siglo XVII el edificio albergará diversos usos, produciéndose
alteraciones y modificaciones tanto en las fachadas como en el interior. En la primera
mitad del siglo XX albergó dependencias y almacenes municipales y la Casa de
Socorro, y así aparece rotulada en el plano de la ciudad de Odriozola de 1901.
El edificio ha experimentado tres importantes intervenciones modernas; en
1947 se realiza la eliminación de los volúmenes que aparecían ampliando el cuerpo
original hacia el norte, ocultando la gran portada. El proyecto se conserva en el archivo
municipal y aparece firmado por el arquitecto municipal Francisco Fernández-Vega
y del Río. Se conserva una imagen del edificio anterior a la intervención; el expediente
del proyecto incluye la situación previa del alzado septentrional, pero no así los otros,
que desconocemos si presentaban un aspecto distinto del luego resultante. En el
plano de estado previo se representa el muro que cerraba la plaza por la derecha
cerrando el primitivo callejón de acceso11.
La segunda fue intervención de reestructuración fue llevada a cabo entre 197072 por el arquitecto Alberto García Gil. En ella se realizó una importante reforma
adaptando el interior para salas de exposiciones y archivo municipal. La última fue
realizada entre 1982 y 1990 por el arquitecto Federico Coullaul, si bien el proyecto no
se llevó a cabo en su totalidad12.
Aspecto de gran interés es el de la implantación urbana de la nueva edificación,
aunque es difícil establecer con certeza el aspecto de este sector en época medieval,
antes de las obras de la alhóndiga a inicios del siglo XVI. El borde meridional del
recinto segoviano poseía un carácter singular; inmediatamente al norte, en el entorno
de la calle Real se situaban algunos de los más destacados palacios urbanos, algunos
construidos en el siglo XV; al oeste comenzaba el amplio barrio de la Judería, muy
transformado a partir del siglo XVI por la construcción de la nueva catedral.
Extramuros se situaba el Rastro, un amplio espacio vacío inmediatamente
al exterior de la muralla, en que se sacrificaban ovejas. Este carácter de actividad
RUIZ HERNANDO, José Antonio – Historia del Urbanismo en la ciudad de Segovia…, tomo II, p. 308.
Expediente XXI 558-4, Archivo Municipal de Segovia.
12
Expediente nº28/90 3692-1, Archivo Municipal de Segovia.
10
11
414
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
ganadera-industrial del área pudo contribuir a la elección de este sector como el más
adecuado para la nueva alhóndiga13.
El área aparece reflejada en el dibujo de Anton van den Wyngaerde, realizado en
1562; es difícil determinar si alguno de los edificios que se adivinan inmediatamente
a la derecha de la puerta de la Luna es la nueva alhóndiga, aunque la siempre fiel
representación de Wyngaerde recoge con acierto el quiebro del muro y los dos cubos
de la muralla situados en la zona. El dibujo recoge un poco más al oeste la actividad
de sacrificio de corderos en el área del Rastro, junto a lo que parece ser la puerta del
Sol, si bien la inclusión de un cubo poligonal dificulta la interpretación14.
Es de gran interés la representación que Wyngaerde recoge del camino de
entrada a la ciudad desde el sur, que atraviesa el puente de Sancti Spiritus, que
aparece con gran actividad de caminantes y cabalgaduras que van a hacer su entrada
a la ciudad a través de la puerta de la Luna.
Todo este sector extramuros aparece hoy irreconocible, pues en el último
cuarto del siglo XIX se lleva a cabo su transformación mediante la creación del
Paseo del Salón o Isabel II, adquiriendo un destacado papel en la ciudad burguesa,
Alrededor de 1880 se derriba el postigo de la Luna, que debió de verse acompañada
de una ampliación y rectificación de la calle. Debe ser por entonces cuando se cierra
definitivamente el callejón de acceso a la alhóndiga, que ya aparece desaparecido en
el plano de la ciudad de Odriozola de 1901 y en el del Plano de Población de 1911 del
Instituto Geográfico y Estadístico15.
6. La Alhóndiga de Burgos.
Construida en 1512, en aplicación de las disposiciones de los Reyes Católicos es
una arquitectura de gran interés, aunque el edificio que en la actualidad aparece con
grandes modificaciones de diversas épocas, careciendo de un estudio particularizado
que permita establecer con exactitud su evolución histórica16.
Se sitúa intramuros, cercano al arco de San Martín, en un sector urbano que
había quedado muy destruido tras los combates en torno al castillo de Burgos en 1476,
que tuvieron con motivo de la denominada guerra de sucesión castellana, finalizados
cuando se produjo la rendición de los ocupantes portugueses y la entrega del castillo
a Isabel I. Se ha señalado la situación en este barrio de la denominada judería baja,
13
RUIZ HERNANDO, José Antonio – Historia del Urbanismo en la ciudad de Segovia…, pp. 128 y 146,
nota 45bis.
14
Vista sur de Segovia, Oxford Large 4- 100, en KAGAN, Richard – Ciudades del siglo de Oro Las vistas
españolas de Anton van den Wyngaerde. Madrid: El Viso, 2008, pp. 123 y ss.
15
CHAVES MARTÍN, Miguel Ángel – Arquitectura y Urbanismo en la ciudad de Segovia (1750-1950).
Segovia: Cámara de la Propiedad Urbana de Segovia, 1998, p. 202.
16
IBÁÑEZ, PÉREZ, Alberto C. – Arquitectura Civil del siglo XVI en Burgos. Burgos: Caja de Ahorros
Municipal, 1977. pp. 224-228.
LAS ALHÓNDIGAS, UNA NUEVA ARQUITECTUR A CIVIL EN LA CASTILLA DEL SIGLO XVI
415
por lo que la expulsión de 1492 pudo igualmente colaborar en el abandono del sector.
La alhóndiga presenta un volumen compacto de planta rectangular, de medidas
aproximadas 42 x 18 metros, aunque la reconstrucción del último cuarto del siglo
XX supuso el añadido de un importante volumen lateral que no existió en el original
del s XVI, como luego se comentará.
Fig. 4 – Alhóndiga de Burgos. Vista aérea con inserción urbana. Interpretación de la planta original
(IBÁÑEZ, PÉREZ, Alberto C – Arquitectura Civil del siglo XVI en Burgos. Burgos:
Caja de Ahorros Municipal, 1977. pp. 224-228
Se sitúa en la ladera, paralelo a las curvas de nivel, disposición que permite el
acceso de los carros y la carga del trigo por la parte posterior. Separando el edificio
del terreno en pendiente, se sitúa en todo el alzado posterior un pasadizo a modo
de foso, buscando el aislamiento de las humedades del terreno. El acceso del grano
precisó así de la construcción de un pequeño puente, de apenas un metro de ancho,
416
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
con dovelas de piedra, de cuya características conservamos testimonio a través de
imágenes fotográficas (Fig. 5).
Fig. 5 – Alhóndiga de Burgos. Interpretación de la sección transversal, en sentido sur-norte, mostrando el acceso posterior a través de un arco sobre el foso y las paneras. Dibujo del autor
Aún hoy se conservan los restos del sencillo arco apuntado de acceso del
grano en esta fachada posterior norte, aunque cualquier resto del puente de entrada
desapareció tras la reforma del edificio en 1978. Una mención documental de 1568
nos confirma el uso frecuente de esta puerta trasera17.
La ubicación de la alhóndiga debió producir problemas para la conservación
del grano, pues en 1569 ya se plantea construir una nueva alhóndiga, alegando que
el antiguo edificio: “estaba edificado al ábrego que era el que dañaba el pan y no al
cierzo que lo conservaba”18.
En siglos posteriores la alhóndiga experimentó importantes reformas. El
edificio fue dedicado a Cárcel Municipal en el siglo XIX, realizándose entonces
importantes reformas en su estructura y alzados. Es entonces cuando se abren los
numerosos huecos de la fachada sur, pues en origen la alhóndiga solo debía poseer
huecos en la parte más alta.
Sin conocer el alcance de la importante reforma del siglo XIX es imposible
determinar con exactitud cuál era la estructura primitiva de la alhóndiga en el
siglo XVI; es posible sin embargo realizar hipótesis de la interpretación de la forma
“En la puerta trasera de la Alhóndiga, 3 o 4 pedazos, y se necesita un poco de azur en la subida de la
puerta.” (A. M. B./ Histórica, C-1-7-16/5// Burgos, 25 abril 1568). En DOMINGO MENA, Salvador – Caminos
Burgaleses: los caminos del Norte (siglos XV y XVI). Burgos: Universidad de Burgos, 2015, Tesis Doctoral, p.
141, nota 342.
18
IBÁÑEZ, PÉREZ, Alberto C – Arquitectura Civil del siglo XVI en Burgos. Burgos: Caja de Ahorros
Municipal, 1977, p. 228
17
LAS ALHÓNDIGAS, UNA NUEVA ARQUITECTUR A CIVIL EN LA CASTILLA DEL SIGLO XVI
417
primitiva.
El edificio en origen estaría compuesto de dos partes, la situada hacia el oeste
albergaría la entrada con la portada monumental, la situada hacia el este sería mucho
más larga, albergando la gran nave de paneras a la derecha. Es difícil justificar la
existencia de un contrafuerte en la fachada sur del ala de paneras, que habría de
estar justificado sólo por la existencia de arcos interiores; sin embargo las primeras
representaciones gráficas de que se dispone de mediados del siglo XIX señalan la
existencia de cuatro hileras de pilares formado cuatro pórticos en sentido paralelo
a la fachada en sentido longitudinal, tipo de estructura que no precisaría tales
contrafuertes en fachada. Es posible que el contrafuerte cumpliera la función de
sujeción a los empujes del grano acumulado, por lo que bastaría un número reducido
de elementos, con un mínimo de dos, debiendo aparecer otro cercano a la esquina
derecha del edificio19.
En el último cuarto del siglo XX el Ayuntamiento de Burgos abordó la
reconstrucción del edificio, que para entonces debía presentar un estado ruinoso.
En Marzo de 1978 el arquitecto Rafael Fernández Rojas presenta el proyecto
de reutilización del edificio que supone una reconstrucción de todo el interior,
manteniendo únicamente las fachadas, con una nueva estructura y una nueva
distribución interior, adecuadas a los nuevos usos públicos culturales previstos20.
En la parte izquierda, donde había existido un patio cercado por una tapia alta,
cuyo origen seguramente deba relacionarse con la función carcelaria, el proyecto
de 1978 planteó la construcción un nuevo volumen que alberga una sala de teatro,
solucionada con grandes contrafuertes en imitación a soluciones medievales,
planteando una grave confusión en la lectura del edificio, pues se sugiere la existencia
de un volumen antiguo que nunca existió dotando a toda la antigua alhóndiga de una
simetría que tampoco poseyó.
Es posible profundizar en el aspecto de la dimensión original de la primitiva
alhóndiga a partir de la información de su capacidad en el siglo XVI, que se señala
es de 5.000 fanegas.21. Un cálculo del volumen de almacenamiento necesario para
esas fanegas que supone lo hace equivaler a un volumen 277,500 m3, que poco más
o menos supone una planta de la zona de paneras del edificio no mucho mayor de 8
por 15 metros22.
19
Proyecto de reordenación del espacio carcelario, que debe datar de 1875. Archivo Municipal de
Burgos. Expediente 18_966
20
Archivo Municipal de Burgos. Expediente AD 561_1
21
En la peste de 1565 se consideró insuficiente por lo que se planteó la construcción de otra alhóndiga
para 15.000 o 30.000. IBÁÑEZ, PÉREZ, Alberto C – Arquitectura Civil del siglo XVI en Burgos. Burgos: Caja
de Ahorros Municipal, 1977, p. 227.
22
El cálculo se ha realizado a partir de la equivalencia de la fanega castellana a 55,5 litros de capacidad.
418
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
7. Alhóndiga De Zamora.
A diferencia de las alhóndigas de Segovia y Burgos, que carecen de estudios
específicos, la Alhóndiga de Zamora ha recibido recientemente la atención del
historiador Luis Vasallo Toranzo; esta circunstancia y lo tardío de la fecha de su
edificación justifica que su inclusión en este artículo quede limitada a aspectos
funcionales puntuales, encontrando justificación en el interés de contraponer sus
características morfológicas a las de las otras alhóndigas castellanas23.
La primera alhóndiga de Zamora debió edificarse en torno a 1484 y se situaba
en el entorno de la plaza Mayor, cercana al lugar donde se situaba el mercado; a partir
de 1570 se inicia el proceso para la construcción de un nuevo edificio, que cumpla
adecuadamente la función de almacenaje, llevándose a cabo la construcción de una
nueva alhóndiga junto a la muralla y la puerta de Santa Ana, en el extremo noroeste
de la ciudad24.
El edificio se sitúa muy próximo a la calle larga, eje principal de la Puebla de la
Lana, uno de los barrios con más personalidad de la Zamora medieval, organizado en
torno a la iglesia de San Antolín, y con una importante dedicación de sus habitantes
a la actividad textil y de paños. En este sector se había situado igualmente la que fue
segunda judería de la ciudad, que con motivo de la expulsión judía decretada en
1492, seguramente se había quedado sin habitantes. Los Reyes Católicos permitieron
entonces la edificación de la iglesia de San Sebastián sobre la antigua Sinagoga
Mayor25.
Como en los casos de Segovia y Burgos, su ubicación junto a la puerta de la
muralla sin duda facilitaba la llegada de los carruajes sin adentrarse en las calles de
la ciudad; el acceso se realizaba a través de la puerta de Santa Ana, muy cercana al
nuevo edificio.
El edificio se adosa a la parte interior de la muralla, aprovechando la pared de
la cerca para fortalecer el edificio; el gran empuje sobre las paredes de cierre obligaba
a grandes grosores y aprovechar el gran muro abarató los costes de la edificación.
Poseyó tres paneras, aunque su organización interior se alejaba mucho de los
modelos antes estudiados. Al no existir desniveles no se puede utilizar la solución de
carga desde el piso superior que hemos visto en Segovia y Burgos.La panera principal
se adosó al muro norte apoyado en la muralla, las otras dos eran más pequeñas, y a
23
VASALLO TORANZO, Luis – “La Alhóndiga Mayor de Zamora. Estudio documental de su
construcción”. Stvdia Zamorensia XI (2012), pp. 205 - 234.
24
VASALLO TORANZO, Luis – “Origen y desarrollo de la Plaza mayor de Zamora y de su Casa
Consistorial. Siglos XV y XVI”. In HERNÁNDEZ LUIS, José Luis (ed.) – Sic Vos Non Vobis. Zamora:
Institución Florián de Campo, 2015, pp. 375-406.
25
REPRESA, Amando – “Génesis y evolución urbana de la Zamora medieval”. Hispania: Revista
española de Historia 122 (1972), p. 537.
LAS ALHÓNDIGAS, UNA NUEVA ARQUITECTUR A CIVIL EN LA CASTILLA DEL SIGLO XVI
419
todas se accedía a través de un patio abierto, situado al oeste. Conservamos noticia
de la previsión de una habitación para albergar al cuidador del almacén, entre cuyos
cometidos estaba el de abrir unos u otros de los huecos existentes, para facilitar la
ventilación del grano26.
En el siglo XVIII se le añadió una ampliación que luego fue hecha desaparecer.
El edificio atravesó diversas épocas de abandono, hasta que en los años 70 del siglo
XX fue rehabilitado como centro cultural; los muros exteriores se conservaron, pero
el edificio se vació por completo; el patio situado a oeste se cubrió, planteando una
estructura y distribución interior sin relación con su uso histórico.
8. Alhóndiga de Ávila.
Desgraciadamente desaparecida, la antigua alhóndiga de Ávila, un magnífico edificio
construido en torno a 1528 poseía la singular característica de compartir el uso de
almacén de grano con otras funciones concejiles27.
Como en otros casos no se ha realizado un estudio especifico de su arquitectura,
a pesar del interés que poseían sus soluciones compositivas y ornamentales; es sin
embargo posible realizar un acercamiento a su forma y organización funcional
interna a partir de la escasa documentación gráfica conservada28.
La alhóndiga se construyó adosada al parapeto exterior de la muralla medieval
de Ávila, por el lado exterior de esta. Se planteó un edificio de planta rectangular
alargada, con una profundidad de apenas una decena de metros; la composición de
la fachada larga, abierta a la plaza era muy singular, con tres cuerpos de carácter muy
distinto, así concebido para servir a varios cometidos.
El pabellón central poseía una fachada palaciega, con tres grandes escudos.
Sobre el dintel de la puerta central aparecía la inscripción “alhóndiga de esta ciudad”;
a la derecha el cuerpo lateral norte poseía un nivel bajo cerrado, con dos grandes
vanos adintelados y un primer piso abierto en galería, con cuatro columnas a modo
de loggia; en los dinteles de los huecos inferiores aparecía la inscripción “Carnicerías
públicas”. El cuerpo lateral izquierdo variaba esta solución, pues presentaba la planta
baja abierta con tres grandes arcos rebajados y un piso alto más cerrado, con cuatro
huecos; la ausencia de imágenes impide identificar si este sector izquierdo albergaba
la Cárcel, tal y como puede deducirse de las escasas descripciones publicadas sobre
el edificio.
Por lo que parece deducirse de la documentación gráfica conservada el cuerpo
VASALLO TORANZO, Luis – “La Alhóndiga Mayor de Zamora…” , p. 213.
BELMONTE DÍAZ, José – La ciudad de Ávila, estudio histórico. Ávila: Caja de Ahorros, 1987, p. 285.
28
SANCHIDRIÁN GALLEGO, Jesús María – Álbum del Grande Imagen y fotografía de la Plaza de
Ávila. Ávila: Piedra Caballera, 2006, pp. 45-49.
26
27
420
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
derecho debió albergar fundamentalmente la función de panera, que se cargaría bien
a través de los huecos del pabellón central, bien por el corto lateral norte, donde
existía un gran portón29.
La ausencia de documentación al respecto no permite conocer la distribución y
dimensiones de las paneras del interior; parece deducirse que la panera ocupara los
espacios longitudinales posteriores, tal vez solo el centro o también el del cuerpo de
la derecha.
Los restantes sectores del edificio alojaron diversos usos, en 1848 albergó el
cuartel de la guardia Civil, en 1861 una escuela pública. El conjunto del edificio fue
derribado en 1882. A partir de las fotografías conservadas cabe deducir como el
edificio no se adosaba a la muralla, sino a un gran muro que, a modo de barbacana
se situaba paralelo a los lienzos.
Su situación no era la más propicia para la carga del grano, pues el único acceso
se produciría desde el área de la plaza del Alcázar, lugar habitual de mercado, en que
el movimiento de los carros produciría grandes molestias. Por otra parte la escasa
capacidad de las paneras impediría su correcto funcionamiento; significativamente
en la segunda mitad del siglo XIX Pascual Madoz en su diccionario hace mención a
ello, calificándola de pequeña e insignificante30.
Conclusión.
Las alhóndigas construidas en las grandes ciudades castellanas en los primeros años
del siglo XVI suponen un interesante episodio de experimentación arquitectónica,
en que el carácter semi-industrial de las edificaciones conduce a soluciones
funcionalmente complejas muy diferentes de las edificaciones religiosas y palaciegas
de la época. Como otros edificios de la denominada arquitectura preindustrial
menor de época medieval y moderna, como los molinos, los hornos, los batanes o
las instalaciones de pañería, las alhóndigas carecen hasta el momento de un estudio
específico que permita establecer con rigor cronologías, características comunes y
posibles influencias. Su inclusión en los tejidos medievales de ciudades de compleja
morfología viaria supuso sin duda una alteración de los espacios periféricos en que
se insertaron, provocando una gran actividad, puntual pero intensa durante la época
veraniega de la carga, más débil pero continuada a lo largo del año con motivo de la
recogida de grano por los habitantes de la ciudad.
Significativamente el carácter de contenedor que desde su construcción
poseyeron ha permitido que en buen número de casos hayan llegado al siglo XXI
SANCHIDRIÁN GALLEGO, Jesús María – Álbum del Grande…, p. 49.
MADOZ, Pascual – Diccionario Geográfico-Estadístico-Histórico de España, Tomo III. Madrid: s.n.,
1850, p. 166.
29
30
LAS ALHÓNDIGAS, UNA NUEVA ARQUITECTUR A CIVIL EN LA CASTILLA DEL SIGLO XVI
421
convertidos en equipamientos culturales, que sin embargo apenas conservan de la
primitiva edificación más que los muros exteriores o la volumetría.
La consideración de Segovia Burgos y otras pequeñas ciudades castellanoleonesas, analizadas en unos decenios en que todas ellas se encuentran inmersas
en procesos de renovación y evolución entre la densa y compleja ciudad medieval
y la ciudad moderna que apunta en actuaciones puntuales, ha permitido un
acercamiento a un aspecto básico de la historia de la ciudad a veces un tanto olvidado,
la imprescindible relación entre la forma y la función en las arquitecturas y en los
tejidos viarios que determinan el carácter de la forma urbana.
422
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Moleiros, moinhos e azenhas
no Porto nos séculos XIV e XV:
um setor-chave do abastecimento
cerealífero urbano1
Arnaldo Sousa Melo2
Resumo
Partindo de documentação concelhia do Porto pretende-se caracterizar o
modelo de organização económica, ou modelo de negócio da atividade de
moagem de cereal pelos moleiros no século XIV e XV.
Pretende-se focar a análise na distribuição espacial e quantitativa dos moleiros
e azenhas da cidade do Porto entre 1350 e inícios do século XV, a maioria dos
quais localizados fora da cidade e no seu entorno periurbano e rural próximo, ao
longo dos cursos de água mais favoráveis. Como ponto de partida, analisamos
duas contendas entre os moleiros e o concelho do Porto em 1356 e em 1403.
A principal dimensão de análise será a caraterização do modelo de negócio,
ou seja, como se organizava essa atividade, incluindo a estrutura produtiva
e a organização do trabalho, bem como as formas de transporte do cereal
entre a cidade e as estruturas hidráulicas de moagem. No centro de toda esta
atividade destaca-se a figura do moleiro. Caracterização dos atores envolvidos,
nomeadamente os donos do cereal, moleiros e seus dependentes, proprietários
daas estruturas moageiras, bem como o papel das autoridades públicas,
sobretudo concelhias, na regulamentação e controlo de toda esta atividade.
Evidencia-se a existência de regulamentação e fiscalização sobre a atividade de
moagem de cereais, e também da capacidade de mobilização e de ação coletiva
dos moleiros, que surgem assim como interlocutores dos poderes municipais.
1
Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a
Tecnologia no âmbito do projeto MedCrafts – “Regulamentação dos mesteres em Portugal nos finais da Idade
Média: séculos XIV e XV”, Ref.ª PTDC/HAR-HIS/31427/2017.
2
Departamento de História e Lab2Pt-ICS – Universidade do Minho.
424
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Trata-se duma atividade essencial dentro da fileira do cereal e do respetivo
abastecimento urbano, mas que em geral tem sido objeto de menor atenção
pela historiografia, embora corresponda a uma atividade fundamental deste
setor.
Palavras-chave
Moinhos; Azenhas e moleiros medievais; Porto nos séculos XIV e XV; Cereais
e abastecimento urbano em Portugal na Idade Média.
Millers and watermills in Oporto in the 14th and 15th centuries:
a key sector of urban cereal supply
Abstract
This paper aims to characterize the economic organization model, or business
model of cereal milling activity in the 14th and 15th centuries Oporto.
Analysing municipal documentation from Oporto, the intention is to focus
the analysis on the spatial and quantitative distribution of water mills – of two
types: moinhos and azenhas, which means, respectively, horizontal wheel mills
and vertical wheel mills – in the city of Porto between 1350 and the beginning
of the 15th century. Most of them were located outside the city and in its
suburban and rural surroundings and outskirts, along suitable water courses.
As a starting point for this paper, stands two disputes between the millers and
the municipality of Porto in 1356 and 1403.
The main dimension of analysis will be the characterization of the business
model, namely how this activity was organized, including its productive
structure and work organization, as well as the ways of transporting the cereal
between the city centre and the hydraulic milling structures in its outskirts.
At the centre of all this activity the miller stands out. The focus is also on the
characterization of the actors involved, namely the owners of the cereal, the
millers and their dependents, the owners of the milling structures, as well as
the role of public authorities, especially municipalities, in the regulation and
control of all this milling activity.
There is evidence of the existence of regulation and inspection on the activity of
milling cereals, as well as of the ability to mobilize and make collective action by
the millers, who appear as the interlocutors with the municipal powers. Milling
MOLEIROS, MOINHOS E AZENHAS NO PORTO NOS SÉCULOS XIV E XV
425
cereals was an essential activity within the grain sector and its urban supply, but
in general it has been less studied and regarded by historiography.
Keywords
Medieval mills; Watermills and millers; Oporto in the 14th and 15th centuries;
Cereals and urban supply in Portugal in the Middle Ages.
1. Introdução.
Nos séculos XIV e XV verificava-se uma forte disseminação de moinhos e azenhas
de moagem de cereal em meio rural, periurbano e até urbano sempre que as
condições naturais e humanas o permitissem. Moinhos e azenhas, engenhos
hidráulicos que permitem utilizar a força hídrica, neste caso ao serviço da moagem
de cereais, correspondiam a dois grandes tipos de soluções técnicas: as azenhas
de roda exterior vertical e os moinhos, de roda interior horizontal. Esta distinção
terminologia específica era já utilizada de forma corrente na Idade Média e atesta
a forte disseminação dos dois modelos, como se comprova documentalmente com
muita frequência3.
Curiosamente, não obstante a sua importância, os estudos sobre moinhos e
moleiros em contexto periurbano e na sua relação com a cidade têm sido relativamente
pouco estudados em Portugal para o período aqui em análise. Razão pela qual
procurei, com este artigo, chamar a atenção para o tema e as suas problemáticas.
Verificava-se uma grande concentração desses dois tipos de engenhos
hidráulicos na zona norte e centro litoral de Portugal, consequência das boas
condições naturais para o aproveitamento dessa foça motriz, aliada à necessidade
de uma regular capacidade de moagem instalada de certa dimensão nesta região,
consequência da difusão da produção de cereais e da concentração de importantes
centros de consumo, em torno dos principais núcleos urbanos.
Por esses motivos na proximidade de cidades e aglomerados populacionais
importantes como o Porto localizavam-se várias dessas estruturas nas suas
3
OLIVEIRA, Ernesto Veiga de; GALHANO, Fernando; PEREIRA, Benjamim Enes − Tecnologia
Tradicional Portuguesa. Sistemas de Moagem. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, Centro
de Estudos de Etnologia, 1983, pp. 76-78, 80-81, 101-102, 116-117, 181-188; MARQUES. A. H. de Oliveira −
Introdução à História da Agricultura em Portugal. A questão cerealífera durante a Idade Média. 3ª edição.
Lisboa: Cosmos, 1978; MARQUES. A. H. de Oliveira − Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV. Lisboa:
Presença, 1986; MELO, Arnaldo Sousa − O Couto de Santo Tirso (1432-1516). Espaço e Economia, 2 vols.
Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1995 (dissertação de mestrado em História Medieval,
policopiado), vol.1, pp. 197-207.
426
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
periferias, mais ou menos próximas, e por vezes dentro da própria cidade, como
alguns topónimos deixam entrever. Mas era sobretudo nessas periferias urbanas
que se localizava a maior parte dos moinhos e azenhas, que por utilizarem a força
hidráulica obedeciam a determinados constrangimentos para a sua localização, em
particular o aproveitamento dos cursos de água existentes, mesmo que pequenos e
de reduzido caudal, mas com acentuados desníveis topográficos. Se existissem tais
desníveis naturais, aproveitava-se o melhor possível a pendente natural e melhoravase artificialmente essas condições com sistemas de canais, represas e açudes, técnicas
que, de igual modo, se podiam utilizar em zonas planas e em rios de maior caudal.
Além de cursos de rios médios, também se utilizava os pequenos riachos que
podiam ser aproveitados de forma eficiente para inserir vários moinhos, em função
dos condicionalismos referidos, em particular nesta zona norte litoral com uma rede
hidrográfica riquíssima, onde pequenos riachos circulavam “por toda a parte”. Por
seu turno, o tamanho dos moinhos e a sua capacidade de moagem eram também
variáveis definidas em função dos condicionalismos ecológicos e das necessidades
diversas em cada momento. Dessa forma, um pequeno curso de água, mas com
fortes declives e caudal suficiente conseguia albergar vários pequenos moinhos e
azenhas ao longo do seu curso, que podiam representar uma capacidade de moagem
instalada igual ou superior ao de um grande moinho junto de um rio de maiores
caudais4.
Por outro lado, os rios demasiado fortes e instáveis, com forte variação sazonal
e galgamento habitual de margens, não seriam o local ideal para construir moinhos,
a não ser com recurso a obras mais complexas e dispendiosas de canais e açudes,
nem sempre exequíveis. Tal seria o caso do rio Douro na zona envolvente do Porto
e próxima da sua Foz. No entanto este rio, simultaneamente, apresentava uma
densa rede hidrográfica de pequenos rios seus afluentes, que corriam para o Douro
nessas margens de forte declive e, como tal, com boas condições para albergar a
concentração de moinhos e azenhas em vários locais, como se pode ainda hoje
observar na paisagem.
Efetivamente, tal era a situação na zona envolvente do Porto nos séculos XIV
e início do XV, que irei tratar neste artigo. Verificava-se a ausência ou raridade de
moinhos e azenhas no rio Douro, e simultaneamente a sua concentração nos seus
afluentes, em geral estreitos, mas inseridos em locais de forte pendor, como veremos
ao longo deste artigo.
Acresce um outro tipo de condicionalismos que justificam a abundância
desses engenhos hidráulicos. Uma cidade como o Porto, com um nível considerável
de concentração populacional e sobretudo de atividades comerciais, industriais e
4
OLIVEIRA, Ernesto Veiga de et alii − Tecnologia Tradicional Portuguesa…, pp. 76-78, 80-81, 101-102,
116-117, 181-188; MELO Arnaldo Sousa − O Couto de Santo Tirso…, vol.1, pp. 197-207.
MOLEIROS, MOINHOS E AZENHAS NO PORTO NOS SÉCULOS XIV E XV
427
portuárias, teria necessidade de dispor de uma adequada capacidade de moagem
de cereais nas suas proximidades, para o abastecimento da sua população e
aprovisionamento dos navios, como é referido explicitamente na documentação5. O
abastecimento de cereal às cidades e em particular em períodos de expansão urbana,
como seria o período aqui estudado, em associação com incremento de comércio e
atividades marítimas (que também necessitavam de cereal para os navios) implicaria
o aumento da procura de moagem de cereal numa área próxima da cidade, fosse ela
de características predominantemente urbanas, periurbanas, ou até rurais, uma vez
que dentro da urbe essa capacidade de moagem seria reduzida, como veremos de
seguida.
E daí a necessidade e pressão para a concentração de moinhos e azenhas nas
zonas envolventes. Atendendo às características naturais e aos condicionalismos
tecnológicos anteriormente referidos, essa necessidade implicaria a existência de
vários engenhos hidráulicos, que na sua maioria seriam, provavelmente, de pequena
dimensão, tendo em conta as características do espaço e da rede hidrográfica
disponível.
Estas seriam as caraterísticas e condicionantes gerais da localização dos
moinhos e azenhas hidráulicos na zona do Porto nos séculos XIV e inícios do XV, e
que provavelmente se manteriam, no essencial, até ao século XIX e inícios do XX e o
incremento da industrialização.
A distinção entre moinhos e azenhas - ambas hidráulicas, os primeiros
apresentam roda horizontal e as segundas roda vertical - era normalmente feita de
forma cuidadosa na documentação, como já foi dito. A azenhas, geralmente mais
produtivas que os moinhos de roda horizontal, eram também tecnicamente mais
complicadas, e como tal mais caras. Por outro lado, para cursos de água de caudal
pouco volumoso, mas rápido, são os moinhos de rodízio os mais aptos, embora
permitam uma produtividade muito menor. Mas por serem mais simples, eram
também muito mais fáceis e baratos de construir. Por seu turno, as azenhas são o
modelo mais indicado para os rios de maior caudal, mas também se encontram bem
disseminadas em cursos de água mais pequenos, desde que as características do
espaço o permitissem, uma vez que tinham a vantagem da produtividade acrescida.
Uns e outros, mas sobretudo as azenhas, podiam ter dimensões variáveis e, como tal,
capacidade de moagem igualmente diversa e adaptável às condições naturais6.
Por exemplo, numa carta régia de 1368, de 28 de dezembro (Arquivo Histórico Municipal do Porto
- A.H.M.P., Livro 2º de Pergaminhos, doc. 30; publicado em Corpus Codicum Latinorum et Portugalensium
Eorum qui in Archivo Municipali Portucalensi asservantur antiquissimorum – Dipolomata, Chartae et
Inquisitiones, 6 vols., Porto: 1891-1978, vol. VI-IV, pp. 48-49).
6
OLIVEIRA, Ernesto Veiga de et alii − Tecnologia Tradicional Portuguesa, op.cit., pp. 76-78, 80-81,
101-102, 116-117, 181-188; MELO, Arnaldo Sousa −O Couto de Santo Tirso…, vol.1, pp. 197-207.
5
428
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Fig. 1 – Azenhas representadas no Livro de Horas de D. Manuel I – Calendário do mês de
Abril; Fólio 9v. (séc. XVI). Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga.
Nota: Observam-se duas azenhas junto a um riacho, com os canais de água, desnivelados,
em pendente. Dois homens dirigem-se à azenha à esquerda onde irão moer o grão que
transportam em sacas, um fá-lo às costas, enquanto que o outro as transporta num burro.
MOLEIROS, MOINHOS E AZENHAS NO PORTO NOS SÉCULOS XIV E XV
429
Convém ainda acrescentar que tanto quanto sabemos os moinhos e azenhas
hidráulicos seriam a forma largamente maioritária ou única de moer cereais na zona
do Porto e no norte litoral em geral, o que se justifica pela abundância de recursos
hídricos e das caraterísticas ecológicas e técnicas que favoreciam a capacidade de
aproveitamento da energia hidráulica, de forma eficaz e relativamente barata e que
devia ser suficiente para fazer face às necessidades de moagem existentes neste
período.
Moinhos de vento seriam raros. E as atafonas, muito utilizadas nas regiões mais
secas do sul do Reino, como se atesta pela importância dos atafoneiros em Évora7,
por exemplo, não parecem ter tido existência significativa na zona do Porto e do norte
litoral em geral. A forte capacidade hidráulica instalada e com potencialidades de
expansão, tornaria decerto pouco atrativo, do ponto de vista económico, a utilização
significativa de outras formas de moagem que não a hidráulica, nesta região do reino.
É importante destacar esta questão, pois as atafonas podiam existir no interior
das cidades e nas áreas mais próximas, uma vez que não implicam condições de
localização específicas, ao contrário dos engenhos hidráulicos. Pelo contrário, os
engenhos hidráulicos tendiam a concentrar-se fora do centro urbano, com uma ou
outra possível exceção. No caso do Porto a existência de moinhos e azenhas dentro
da cidade era meramente esporádica, o único curso de água disponível seria o Rio
de Vila, mas com o processo de urbanização ao longo da maior parte do seu curso
intraurbano, já muito poucos engenhos hidráulicos restariam em finais do século
XIV. E nos arrabaldes mais próximos da cidade, não abundavam esses recursos
hídricos, ou os que existiam encontravam-se igualmente no meio de zonas fortemente
urbanizadas, como seria o caso do Rio Frio em Miragaia (ver Figura 2). Por esse
motivo, no caso do Porto, a maior parte dos moinhos e azenhas parece concentrar-se
nos locais indicados na Figura 2, decerto por serem aqueles com melhores condições
naturais e humanas, mais próximos do Porto8.
2. Os acontecimentos.
Vamos iniciar a exposição pela apresentação de dois acontecimentos concretos,
localizados num tempo - ou melhor, em dois momentos - e num espaço específicos:
O Porto em 1356 e em 1403. Depois de procedermos à apresentação desses casos,
passaremos a uma análise interpretativa mais lata. Um pouco inspirado num modelo
7
Cf. por todos, BEIRANTE M.ª Ângela − Évora na Idade Média, Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1995.
8
Arnaldo Melo − Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média: O Porto, c. 1320–c. 1415, 2 vols.,
Braga e Paris: Universidade do Minho e E.H.E.S.S., 2009. Tese de Doutoramento, vol. 1, p. 265. Disponível em:
http://hdl.handle.net/1822/9896.
430
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
usual em história política e social9, mas neste caso tendo como acontecimento de
partida, não uma batalha, mas duas contendas ou litígios entre os “moleiros da
cidade” e as autoridades concelhias do Porto, ocorridas naquelas datas e que se
prolongaram por algum tempo.
O ponto de partida é constituído por duas sentenças régias, datadas
respetivamente de maio e outubro de 1356, que nos informam:
- Da existência dum “costume antigo” da cidade do Porto, segundo o qual
os moleiros de Campanhã, Quebrantões, Lordelo e Massarelos eram obrigados a
ir buscar o grão de cereal à cidade, junto dos respetivos proprietários, na Praça da
Ribeira, para a transportar para os seus moinhos, e posteriormente trazer de volta
a respetiva farinha, já moída, aos seus donos no mesmo local. Os moleiros faziam
esse transporte, nos dois sentidos, em “barcos e bestas” onde levavam o trigo, milho
e centeio dos moradores da cidade para moer nos seus moinhos. Este serviço de
transporte e moagem era realizado “por certa maquia que auiam de auer por cada
huum buzeo[10] do dito pam nom lhis auendo de pagar outra cousa...”11. Ninguém
contesta a existência desse costume antigo e prática habitual.
- O concelho queixou-se ao rei dizendo que “agora” esses moleiros já não
vinham com os ditos barcos e bestas à dita cidade “para leuarem as ditas moendas
como sempre fora hussado”. E acrescenta dizendo que o concelho e moradores
recebiam grandes perdas e danos e “nom podiam auer mantymento de pam pela
guissa que o deuiam dauer por mingua desses moleiros”12.
- Em sequência disso, o concelho do Porto pedia ao rei, Afonso IV, que
obrigasse os moleiros a cumprir esse “costume antigo” de irem buscar e levar o cereal
à cidade.
- Os “moleiros da cidade” de Campanhã, Quebrantões, Lordelo e Massarelos
foram então convocados pelo rei a comparecer perante si, em maio de 1356, estando
o rei na cidade do Porto. Nessa audiência, os moleiros confirmaram ser verdade que
era esse o costume e prática tradicional, mas acrescentando que agora “nom mays
que lhis prazia de uyrem por as ditas moendas nos barcos e bestas […] segundo era
costume”13.
9
Entre muitos exemplos possíveis, DUBY G. − Le Dimanche de Bouvines, 27 juillet 1214, Paris:
Gallimard, 1985.
10
Medida de capacidade equivalente a 4 alqueires, ou seja uma teiga; em “tempos “mais antigos”
corresponderia a 2,5 alqueires: cf. “Búzio” in Viterbo, Fr. Joaquim de Santa Rosa de − Elucidário das Palavras,
Termos e Frases que em Portugal antigamente se usaram e que hoje regularmente se ignoram: obra indispensável
para entender sem erro os documentos mais raros e preciosos que entre nós se conservam, 2 vols., edição crítica
baseada nos manuscritos originais de Viterbo por Mário Fiúza, Porto-Lisboa, 1993.
11
A.H.M.P., Livro 1º de Pergaminhos, doc. 36; publicado em Corpus Codicum…, vol. VI-II, pp. 53-54.
12
A.H.M.P., Livro 1º de Pergaminhos, doc. 36; publicado em Corpus Codicum…, vol. VI-II, pp. 53-54.
13
A.H.M.P., Livro 1º de Pergaminhos, doc. 36; publicado em Corpus Codicum…, vol. VI-II, pp. 53-54.
MOLEIROS, MOINHOS E AZENHAS NO PORTO NOS SÉCULOS XIV E XV
431
- E porquê? Alegavam que havia “gram mingua dauga e que por isso nom
podiam moer tanto pam quanto o dito concelho queria que moessem”14.
- Afonso IV determina então que os moleiros “daqui em deante venham com
os ditos barcos e bestas aa ribeira da dita cidade do Porto e lhis leuem as moendas
e as moam em essas azenhas e moinhos por sua maquia aquelas que moer poderem
segundo o tempo e como ouuerem a augua para as moer e que se daqui em deante
feserem o contrairo que o alcayde do Porto os possa prender hu quer que os achar
e os leve para serem julgados pelos juízes da cidade”. Esta decisão ficou registada na
carta régia de 30 de maio de 1356, dada no Porto, que o monarca enviou ao concelho,
em resposta à queixa inicial15.
- Seguidamente, em Outubro desse mesmo ano, os “moleiros moradores
nas azenhas de Campanhã” são citados pelo procurador do concelho para irem à
vereação, presente o Ouvidor do Rei “em substituição do juiz da cidade”, a fim de
serem confrontados com o teor dessa carta régia, justificarem por que não estão a
cumprir o estipulado e para serem constrangidos a obedecerem a essas determinações
régias “e que o Ouvidor constrangese os ditos moleiros que ueesem aa dita cidade
com os barcos e com as bestas pelo graaom e o leuasem e metessem por sua maquia
tam solamente e que nom tomassem per as ditas moendas outras doas nem presentes
de pam nem de vinho nem de carne nem de pescado nem outra nenhuma cousa
pola dita razom”. A maior parte dos moleiros compareceu e comprometeu-se a
obedecer, afirmando que a partir daquele momento todos os presentes “viriam com
os barcos e bestas e moeriam o grão o mais que pudessem segundo o tempo e como
pudessem auer a augoa para as moer. Pois diziam que auia mui pouco augua.” E
foi encarregue Bartolomeu Dinis, moleiro e jurado, de avisar desta decisão os dois
moleiros que não compareceram e que as penas previstas para quem não cumprisse
também se aplicavam a eles. Os moleiros presentes alegaram ainda que não tinham
ainda cumprido o determinado pelo rei, porque fora apenas nesse momento que eles
tiveram conhecimento dessa carta régia16.
- No entanto, os moleiros presentes aproveitaram para se queixar ao Ouvidor
do rei de que “os moradores e vizinhos da dita cidade” os “forçavam e agravavam
enuyando lhes pelos seus mancebos e mancebas e bestas tanto graaom aas dita
zenhas que o nom podiam moer nem lhis cabia nas ditas zenhas e pediam ao ouvidor
que lhis proibisse de o fazer”17.
- Em resposta, o Ouvidor do rei, tendo em conta a sentença régia, e também os
argumentos e queixas mútuas, do procurador concelhio e dos moleiros, determinou
A.H.M.P., Livro 1º de Pergaminhos, doc. 36; publicado em Corpus Codicum…, vol. VI-II, pp. 53-54.
A.H.M.P., Livro 1º de Pergaminhos, doc. 36; publicado em Corpus Codicum…, vol. VI-II, pp. 53-54.
16
A.H.M.P., Livro 1º de Pergaminhos, doc. 36; publicado em Corpus Codicum…, vol. VI-II, pp. 53-54.
17
A.H.M.P., Livro 1º de Pergaminhos, doc. 36; publicado em Corpus Codicum…, vol. VI-II, pp. 53-54.
14
15
432
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
que de futuro os moleiros cumpram o determinado pelo rei e que “nom moessem
nem recebessem nem colhessem nas sas zenhas nenhuum pam de vezinhos e
moradores na dita cidade que lhis ala emuyassem para moer por seus mancebos e
mancebas e sas bestas nem por outras pessoas mas apenas o que os moleiros fosse
buscar aa cidade como costume” e que que “por esto nom tomasem nemhuma doas
nem presentes de pam nem de vinho nem de pescado nem de nenhuma outra cousa
e que este pam que asy leuassem para moer que o nom leuasem especialmente mais
a huns que aos outros se nom comunalmete a todolos moradores e vizinhos da
dicta cidade que o mester ouuessem e que “que qualquer deles que o contrairo desto
fezesse ou todos que ouuessem porem pena de justiça qual em tal feyto coubesse”.
E determinou ainda o Ouvidor que “que outrossy leuassem o dito pam por pesso
ou por medida qual auer quissessem seus donos do dito pam asy como sempre fora
husado e costumado de se fazer na dicta cidade so a dita pena”18.
Não se conhecem mais ecos documentais desta contenda de 1356. Teriam estas
sentenças régias resolvido o problema? Talvez. Em todo o caso, 47 anos mais tarde,
numa carta régia de D. João I, datada de 21 de agosto de 1403, diz-se que:
- Os “moleiros do termo da cidade” do Porto apresentaram uma queixa ao juiz
do rei na cidade contra o concelho, devido a novas posturas municipais relativas aos
moleiros, que eles consideravam lesivas dos seus interesses. Os moleiros apresentaram
a queixa nos seguintes termos:
- Afirmavam que o concelho do Porto decidiu que “daqui en deante elles dictos
molleiros tomasem e moessem o pam per pesso e dessem a ffarinha per pesso; e que
a elles dictos molleiros prazia dello contanto que seus donos ffossem leuar o pam
ao pesso e alla ffossem pera tomar a farinha per pesso e que elles ditos molleiros
nom fossem theudos de leuar o dicto pam ao pesso nem leuar a ffarinha despois que
pesada fosse a casa de sseu dono”19;
- Deste modo, os moleiros “pediam que os nom costrangesem nem
penhorasem por elles nom leuarem todo o pam que na dicta cidade ouuese pera
leuar aos moynhos quando hii ueessem por ello por que nom podiam em huma uez
todo levar o mantiimento que aí esteuese”20.
- Em resposta, o juiz del Rei na cidade confirma a nova ordenação concelhia,
que obrigava os moleiros a levarem o cereal a peso, e que os moleiros continuassem
a ir buscar à cidade o grão e levar “às casas dos senhores do pão” a farinha, como era
costume.
A.H.M.P., Livro 1º de Pergaminhos, doc. 36; publicado em Corpus Codicum…, vol. VI-II, p. 53-54.
A.H.M.P., Livro 3º de Pergaminhos, doc. 17 (cópia em pública-forma de 1427) e doc. 55 (original de
1403); reprodução fotográfica em Corpus Codicum…, vol. VI-VI, doc. 17 e doc. 55.
20
A.H.M.P., Livro 3º de Pergaminhos, doc. 17 (cópia em pública-forma de 1427) e doc. 55 (original de
1403); reprodução fotográfica em Corpus Codicum…, vol. VI-VI, doc. 17 e doc. 55.
18
19
MOLEIROS, MOINHOS E AZENHAS NO PORTO NOS SÉCULOS XIV E XV
433
- Não concordando com a decisão, que era favorável ao concelho, os moleiros
recorrem para o rei, que manda a D. Frei Álvaro Gonçalves, prior e Meirinho-Mor
de Entre-Douro-e-Minho, que fosse à cidade inquirir sobre a questão e que decida
por sentença “em proll da cidade e moradores della e que seja ssem dapno dos dictos
molleiros e que hussem como sempre husarom”.21
Deste modo, D. Frei Álvaro Gonçalves, Meirinho-Mor de Entre-Douro-eMinho, em carta de sentença de 1 de novembro de 1403, com acordo dos homens
bons e concelho do Porto, bem como dos moleiros aí presentes, determina:
- “que daqui endeante [os moleiros] moessem o pam per esta guisa que se
segue que de cada alqueire de trigo que moessem dessem a seu dono do trigo huum
alqueire de ffarinha calcado huma uez com anballas maaons e mais nom. […] E que
[os moleiros] levem o grão e tragam a ffarinha a sseus donos do pam como sempre
custumarom”22.
Desta forma, nesta sentença ficou decidido que se deve manter o tradicional
sistema da maquia, ou seja, o pagamento ao moleiro corresponderia a uma
percentagem do volume, baseada em medida de capacidade (alqueire, teigas) e não
de peso. E que de igual modo se mantinha a obrigação dos moleiros assegurarem o
transporte do grão e da farinha, respetivamente, entre a casa dos donos do cereal e o
moinho, e vice-versa. Aparentemente, a sentença revertia a nova postura concelhia e
mantinha o sistema tradicional, sem alterações, como já se utilizava em 1353 e cuja
origem seria bem anterior.
Note-se ainda que em 1427 (19 de julho) o concelho afirma que o tabelião
conservava guardado este documento de sentença “que era dos moleiros”, do qual
o concelho pedia ao notário o respetivo treslado em pública forma23, decerto por
não existir um exemplar no arquivo concelhio, supõe-se. Uma vez que a sentença
era favorável aos moleiros, essa situação de preservação documental seria
normal, na época. No entanto deve destacar-se o facto dos “moleiros da cidade”
serem coletivamente donos do exemplar documental à guarda do tabelião, que
provavelmente devem ter pago. O que se deve destacar é a capacidade de ação coletiva
e reconhecimento duma posse coletiva do documento, por parte de um grupo, os
“moleiros da cidade”, que tanto quanto é possível saber não tinham existência legal,
ou institucional, reconhecida. Mas, ainda assim, viam a sua existência informal ser
reconhecida pelo menos tacitamente, pelo tabelião que conserva os documentos,
mas também pelo concelho e até pelos juízes régios que os aceitam como autores da
A.H.M.P., Livro 3º de Pergaminhos, doc. 17 (cópia em pública-forma de 1427) e doc. 55 (original de
1403); reprodução fotográfica em Corpus Codicum…, vol. VI-VI, doc. 17 e doc. 55.
22
A.H.M.P., Livro 3º de Pergaminhos, doc. 17 (cópia em pública-forma de 1427) e doc. 55 (original de
1403); reprodução fotográfica em Corpus Codicum…, vol. VI-VI, doc. 17 e doc. 55.
23
A.H.M.P., Livro 3º de Pergaminhos, doc. 17 (cópia em pública-forma de 1427); reprodução fotográfica
em Corpus Codicum…, vol. VI-VI, doc. 17.
21
434
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
queixa e os reconhecem, portanto, como um interlocutor coletivo.
3. Contexto e significado.
Apresentados estes episódios de 1356 e de 1403 nas suas linhas essenciais, podemos
agora passar a uma análise mais aprofundada do seu significado e inserção no
contexto histórico a que pertencem. Ou, dito de outro modo, procurar perceber qual
o significado destes acontecimentos? E quais as realidades e os processos históricos
que revelam?
3.1. Os intervenientes.
Comecemos pelos sujeitos da ação, os intervenientes principais. São eles os
moleiros; as autoridades concelhias; os “moradores e vizinhos da cidade”; o poder
régio, nas pessoas do próprio rei e dos seus juízes e oficiais.
Comecemos pelos primeiros e pelo vocabulário e expressões utilizados para
os identificar. Trata-se dum interveniente coletivo, os moleiros, e encontramo-los
referidos com as seguintes designações mais usuais e respetivas datas:
- “moleiros da cidade” (1356)24;
- “moleiros que moem e dão a farinha aa dita cidade” (1356);
- “os moleiros que de forma continuada moem farinha para mantimento da
cidade e dos navios que aí aportam” (1356);
- “os molleyros que continuadamente mooem e dam farinha para mantymento
da dita cidade e das naues e bayxees e nauios que a ella veem e dos que a ella chegam”
(1368)25;
- “moleiros do termo da cidade” (1403)26.
Outras formas de os designar reportam-se aos locais onde vivem os moleiros e
se localizam os moinhos e azenhas:
- “estando hi os moleiros [com os nomes identificados] todos moradores nas
azenhas de Campanhã” (1356);
- “os moleiros dos moinhos e azenhas de maçarelos e os de C[ampanham] e os
de Loordelo e os de quebrantoens” (1356);
- “os molleiros de loordello e de canpanhaa e de gaya” (1403).
A.H.M.P., Livro 1º de Pergaminhos, doc. 36; publicado em Corpus Codicum…, vol. VI-II, pp. 53-54.
A.H.M.P., Livro 2º de Pergaminhos, doc. 30; publicado em Corpus Codicum…, vol. VI-IV, pp. 48-49.
26
A.H.M.P., Livro 3º de Pergaminhos, doc. 17 (cópia em pública-forma de 1427) e doc. 55 (original de
1403); reprodução fotográfica em Corpus Codicum…, vol. VI-VI, doc. 17 e doc. 55.
24
25
MOLEIROS, MOINHOS E AZENHAS NO PORTO NOS SÉCULOS XIV E XV
435
Como se pode observar no Quadro 1 e na Figura 2, esses moleiros e respetivos
moinhos e azenhas localizavam-se sobretudo em Campanhã, Lordelo e Quebrantões
(Gaia), onde se encontra a maior parte e nas duas datas em estudo. E em menor
grau, ou apenas em uma das datas, Massarelos, apenas em 1356 e Santo Antão (Gaia)
unicamente em 1403. Este reforço do lado de Gaia na segunda data em observação
poderá indiciar uma tendência de reforço da importância do lado de Gaia, que
pode não ser estranho à sua incorporação no termo do Porto desde 138427. Quanto
a Massarelos, entre as duas datas perde importância no contributo moageiro da
cidade, por motivos que não conhecemos na totalidade. O certo é que já em 1356
eram poucos moleiros. Podem, entretanto, ter-se reduzido ainda mais.
A tendência geral parece ser aumento da capacidade moageira, com mais 7
moleiros no total na segunda data, mas não podemos conhecer o significado exato
desses valores, pois desconhecemos a capacidade de moagem de cada moinho ou
azenha.
Nº de moleiros
1356
1403
Moleiros de Massarelos
4
-
Moleiros de Campanhã
9
13
Moleiros de Lordelo
7
9
Moleiros de Quebrantões (Gaia)
6
5
Santo Antão (Gaia)
Total
–
6
26
33
Quadro 1 – distribuição geográfica do número de moleiros28.
Como se pode observar na Figura 2, em 1356 todos estes locais não faziam
parte do termo da cidade do Porto, no entanto esses moleiros já eram designados
como moleiros da cidade e sujeitos a uma serie de direitos e obrigações definidos
pelo concelho do Porto, com o aval do rei. Ou seja, as autoridades concelhias
detinham autoridade sobre eles enquanto “moleiros da cidade”, no que diz respeito
aos direitos e deveres inerentes a esse estatuto. Em 1403, pelo contrário já essas áreas
estavam inseridas no termo do Porto, que conhece uma enorme expansão em 1369
na margem norte do Douro, embora Gaia e Vila Nova apenas em 1384 tivessem sido
incorporadas num segundo alargamento do termo, respetivamente nos tempos dos
27
MELO, Arnaldo Sousa − Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média…, vol. I, pp. 186-191; e
vol. II, pp. 306-311.
28
MELO, Arnaldo Sousa − Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média…, vol. II, pp. 306-311.
436
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
reis D. Fernando e D. João I, como Armindo de Sousa mostrou com argumentos
convincentes29. O rigor terminológico dos documentos deve ser destacado, por isso
apenas no documento de 1403 se designam como “moleiros do termo do Porto”, o
que, por outro lado, também confirma aquela interpretação da evolução do termo do
Porto. Mas o que se deve também salientar é que os deveres e direitos desses moleiros
são os mesmos nas duas datas. Ou seja, mesmo quando não pertenciam ao termo
do Porto esses moleiros, referidos então como moleiros da cidade ou outro epíteto
semelhante – que parece ser um estatuto - tinham uma série de direitos e obrigações
associados, que eram definidos e controlados pelas autoridades concelhias, remetendo
para o costume ou para regulamentos municipais, mas que eram obrigatórias para
quem exercia esse mester / cargo. Parece ser um caso de estatuto profissional, ou de
controlo de acesso ao exercício desse mester pelas autoridades concelhias.
Note-se ainda que as obrigações incluíam os moleiros terem de assegurar o
transporte entre a cidade e os engenhos hidráulicos, e que se proibia os moleiros de
aceitarem o cereal que os moradores do Porto levassem diretamente aos moinhos,
que era proibido apesar de alguns o fazerem. Destaca-se mais uma vez a capacidade
do concelho impor e fazer respeitar este princípio com o apoio régio, mesmo quando
esses territórios não se incluíam no termo e na sua jurisdição, como sucedia em 1356.
Além disso deduz-se que o costume da cidade obrigava esses moleiros dessas
zonas a virem à cidade fazer esse transporte do cereal sempre que era necessário e de
forma regular e não apenas quando queriam. Assim todo os moleiros dessas zonas
seriam obrigados e nesse caso seria a totalidade que estava nestas listas? Ou estes
moleiros eram apenas uma parte do total de moleiros dessa zona? Para já, não temos
dados para responder a essa questão.
Quanto aos restantes intervenientes nestes processos, algumas observações
breves. As autoridades concelhias, como já foi referido, representam a autoridade
pública que define e fiscaliza a regulamentação sobre a atividade dos moleiros da
cidade, com o aval do rei. Exerce essa autoridade sobre os moradores do concelho, mas
também sobre os moleiros, mesmo que os moleiros vivam e os engenhos se localizem
fora do concelho em 1356. Tendo o estatuto de moleiros da cidade, naturalmente
que no exercício desse mester estavam sob a jurisdição das autoridades concelhias,
mesmo estando os equipamentos localizados e a atividade desenvolvida fora do
concelho. São as autoridades concelhias que concedem as autorizações aos moleiros
que entendem para exercer o mester como “moleiros da cidade” e assim se explica
que tenham autoridade para regulamentar e fiscalizar essa atividade, mesmo sendo
realizada fora do concelho, uma vez que se trata de moer cereal que é propriedade
29
SOUSA Armindo de − “Tempos Medievais”. In História do Porto, dir. de Luís A. de Oliveira RAMOS,
Porto: Porto Editora, 1994, pp. 166-173 e ss.; MELO Arnaldo − Trabalho e Produção em Portugal na Idade
Média…, vol. I, pp. 175; e pp. 186-191.
437
MOLEIROS, MOINHOS E AZENHAS NO PORTO NOS SÉCULOS XIV E XV
Legenda:
L – Lordelo do Ouro;
M – Massarelos;
C – Campanhã;
St. A – Santo Antão
(Gaia);
Q – Quebrantões
(Gaia);
PO – Porto.
Fig. 2 – Locais de concentração de moinhos e azenhas na área periurbana do Porto: 1356 e 1420.
Fonte: Arnaldo Melo, Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média…, vol. II, p. 307.
438
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
dos moradores e vizinhos do município. Ou seja, como é óbvio, este controlo não se
aplica ao cereal de outra proveniência que os moleiros moessem, pelo menos antes
da anexação desses territórios no termo do Porto. Depois dessa data não sabemos
se o controlo concelhio sobre as atividades dos moleiros aumentou. Os documentos
aqui em causa tratam apenas do cereal dos moradores e vizinhos da cidade.
O concelho representa, em princípio o bem comum, e em particular dos seus
vizinhos. Os moradores e vizinhos das cidades surgem como outro interveniente
destes processos, ainda que a sua participação nestas questões seja indireta, eles
são referidos recorrentemente, é em seu nome e dos seus interesses comuns que
supostamente o concelho atua, embora as suas ações concretas, ou de parte deles,
sejam também parte do problema e objeto de regulamentação.
De facto, os “moradores e vizinhos da cidade” são intervenientes indiretos, não
atuam diretamente na contenda, mas as suas ações são frequentemente referidas
como parte do problema ou das divergências30. Compreende-se que numa altura
de escassez de capacidade de moagem face à procura, alguns moradores da cidade
procurassem ir diretamente aos moinhos e azenhas e dessa forma garantir a moagem
de cereais que necessitavam, eventualmente prejudicando os outros moradores que
não o faziam, respeitando o costume. Conforme foi dito atrás, as autoridades judiciais
e régias, em geral, parecem tentar garantir a equidade entre os moradores e vizinhos
da cidade no acesso às moagens, assumindo-se aqui como garantes do bem comum,
conforme seria a sua obrigação.
Finalmente os juízes e oficiais régios. Devemos destacar dois grupos distintos.
Os juízes del rei na cidade e os oficias régios superiores ou o próprio rei. Os primeiros
julgam em nome do rei mas são um cargo municipal e fazem parte da oligarquia
concelhia. Por isso em 1403 se verifica que o juiz da cidade deu sentenças favoráveis
à posição do município e lesivas da posição dos moleiros. Por isso estes recorreram
para o rei, que mandou o Meirinho-mor de Entre Douro e Minho apreciar esta
questão. Apreciados os factos tomou uma posição mais equidistante e conciliadora
dos interesses dos dois grupos, concelho e moleiros, remetendo para o costume e
anulando as novas posturas consideradas lesivas pelos moleiros. De facto, os juízes
e funcionários superiores, bem como o próprio rei quando intervém diretamente,
parecem apresentar um distanciamento maior relativamente aos interesses em
conflito, até porque não são oficiais da cidade nem fazem parte da oligarquia
municipal31; em geral parecem procurar uma decisão equilibrada entre esses
interesses, procurando manter os equilíbrios existentes, remetendo para a tradição,
ou costumes já antigos da cidade.
30
31
Cf. supra.
Cf. por todos, SOUSA Armindo de − “Tempos Medievais”. In História do Porto..., pp. 119-253.
MOLEIROS, MOINHOS E AZENHAS NO PORTO NOS SÉCULOS XIV E XV
439
3.2. O regime de prestação dos serviços dos moleiros da cidade do Porto:
Direitos e deveres dos “moleiros da cidade”, ou modelo de funcionamento
da atividade dos moleiros da cidade do Porto:
O designativo “moleiros da cidade” correspondia a um estatuto profissional que
permitia exercer esse mester – que se pode definir como moer o cereal dos vizinhos
e moradores da cidade do Porto e garantir o seu transporte de e para a cidade -, ao
que tudo indica mediante autorização e controlo das autoridades concelhias. Essa
condição profissional implicava obedecer a uma série de regras, que significavam
um conjunto de direitos e deveres dos moleiros, que passo a apresentar, por ordem
arbitrária.
1. Moagem do cereal dos moradores da cidade
2. Transporte do cereal da cidade aos moinhos e azenhas (grão) e o regresso à
cidade já moído (farinha), as bestas e barcos à sua custa.
3. Proibição de receber o cereal enviado diretamente pelos moradores da cidade
para os moinhos e azenhas.
4. O pagamento do trabalho dos moleiros era a maquia, ou seja, uma
percentagem do cereal moído era para o moleiro.
5. Equidade no tratamento ao cereal de todos os moradores.
6. Os moleiros da cidade beneficiavam de alguns privilégios régios, requeridos
ao rei pelo concelho do Porto, por ser do interesse da cidade garantir o abastecimento
de cereal moído.
Passamos de seguida a explicar cada um deles.
- Moagem do cereal dos moradores da cidade. São os “moleiros de cidade” que
fazem esse serviço, que seria simultaneamente uma obrigação e um direito. Penso
tratar-se de uma forma de licenciamento concelhio, ou seja, são os moleiros que têm
autorização e obrigação para fazer esse serviço que são assim designados, “moleiros
da cidade”, ou expressão semelhante. Deve entender-se como um estatuto profissional
com direitos e obrigações. O principal direito seria a autorização para exercer este
mester – transportar o cereal da cidade ao moinho, moer, e levar de novo a farinha à
origem -, que lhes devia permitir um conjunto de rendimentos garantidos e decerto
nada negligenciáveis. O que não invalida que contestem e se manifestem sempre que
o concelho toma medidas que, na perspetiva dos moleiros, fariam reduzir as suas
margens de lucro (que desconhecemos quais eram, mas como óbvio existiam, caso
contrário eles não trabalhariam). Ao mesmo tempo moer o cereal dos moradores da
cidade e garantir o seu transporte era uma obrigação a que não se podiam eximir,
440
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
como vimos supra.
- O serviço a que os moleiros estavam obrigados incluía, portanto, a moagem
do cereal nos seus moinhos e azenhas, mas também o transporte da cidade ao moinho
(grão) e o regresso do moinho à cidade (farinha), realizado com os meios dos moleiros
e à sua custa, por terra e/ou rio (embarcações e bestas, seus ou que alugavam), em
função da localização dos respetivos moinhos. Em 1356 era na Praça da Ribeira que
os moleiros recebiam e entregavam o cereal aos respetivos proprietários. Em 1403
diz-se que os moleiros o vão buscar e entregar a casa dos seus donos, aparentemente
antes e depois de serem controlados pelas autoridades num local específico quanto
ao seu peso (ir ao peso). Esta última condição parece ter sido eliminada com a
sentença de 1403, mas continuam a levar a casa dos proprietários, pois diz-se ser
esse o costume nesta data. Esta alteração parece relacionar-se com o facto de o
concelho querer passar de um sistema de medir o cereal por volume (alqueires) para
um sistema de peso, o que foi eliminado nessa sentença. Difícil explicar o porquê
desta mudança. Existir um local único e público de recolha e entrega, a Praça da
Ribeira, seria decerto mais prático para os moleiros e simultaneamente permitia às
autoridades controlar melhor o processo e em particular a equidade de tratamento
entre os diferentes moradores e os vários moleiros. Ir a casa de cada “cliente” / dono
dos cereais, podia ser mais prático para os moradores, mas implicava um trabalho
e dispêndio de tempo acrescido para os moleiros, além de dificultar o controlo
por parte das autoridades, em particular da equidade de tratamento. Mesmo se
admitirmos que passava pelo controlo das autoridades, o que não é certo. A dispersão
no espaço da recolha e entrega do cereal podia favorecer, por exemplo, eventuais
favores ou exceções, ou seja, tratamentos diferenciados entre clientes e moleiros.
E em 1403 os moleiros tentam eximir-se dessa obrigação de fazerem o transporte
de e para a cidade, mas tal pretensão é recusada, conforme foi atrás explicado. E
essa posição dos moleiros deve entender-se como uma retaliação pela tentativa de
imposição pelo concelho de novas regras que os moleiros rejeitavam, e que também
acabou por ser abandonada. Em ambas as datas parece que os moleiros se tentam
eximir a este serviço de transporte, na totalidade ou em parte. Em 1356 não querem
fazer o transporte da cidade para os engenhos. Em 1403 não querem levar e buscar
o cereal a casa dos proprietários. Em ambos os casos essa recusa foi claramente
uma arma, ou uma consequência por situações que o concelhio queria impor e a
que os moleiros se opunham por considerarem prejudiciais. Em ambos os casos os
diferendos resolveram-se, mas as respetivas obrigações de transporte mantiveram-se
por decisão das autoridades concelhias e régias e com acordo dos moleiros.
- Os moleiros não podiam aceitar cereal enviado diretamente pelos moradores
MOLEIROS, MOINHOS E AZENHAS NO PORTO NOS SÉCULOS XIV E XV
441
da cidade aos moinhos e Azenhas. Tal prática era expressamente proibida, aos
moradores do Porto de o fazerem aos moleiros de aceitarem. A esta prática associavase a possibilidade de pagamentos acrescidos, além das maquias, o que era igualmente
interdito, pois existia a proibição dos moradores pagarem aos moleiros outros
valores, além das maquias acostumadas. No entanto, em ambas as datas encontrámos
denúncias dos moleiros relativamente a alguns moradores do Porto que o tentam
fazer, por si ou por seus criados.
- O pagamento do trabalho dos moleiros era a maquia, ou seja, uma certa
parte por cada alqueire (ou outra medida de capacidade) que encontramos muito
difundida na época em estudo em várias regiões do reino. Ainda nos séculos XIX e XX
era essa a forma de pagamento tradicional dos moleiros32. Em 1356 especifica-se que
a maquia devida ao moleiro é assim determinada: por cada búzio (que correspondia
a 1 teiga, ou seja, 4 alqueires) de cereal é cobrada pelo moleiro uma certa maquia,
não se cobrando mais nada. Em 1403 fixa-se desta forma: por cada alqueire de grão
levado o moleiro deve entregar um alqueire de farinha moída e mais não, aplicandose esta regra ao trigo, à segunda (ou seja mistura de milho e centeio) e ao milho33.
Como o volume do grão é maior que o da farinha, um alqueire de grão daria uma
quantidade superior, em volume, de farinha. O ganho do moleiro, a maquia, estava
nessa diferença. Mas nesse documento de 1403 especifica-se que a farinha deve ser
medida “calcando com ambas as mãos uma única vez”. O que se compreende, pois no
caso de a farinha ser compactada várias vezes consegue-se que caiba maior volume
no mesmo espaço, o que seria nocivo para o moleiro, pois ganharia menos farinha
para si. Mas se não fosse calcada nenhuma vez, também o proprietário se poderia
sentir lesado, pois poderia haver ainda algum espaço vazio no mesmo alqueire.
Assim, a definição de “comprimir a farinha com ambas as mãos uma só vez”, parece
resultar de uma preocupação de encontrar uma solução que fosse considerada justa
ou aceitável por ambas as partes, pelo moleiro que recebia, e pelo proprietário que
pagava a maquia. Trata-se dum tipo de problema típico duma forma de pagamento
em percentagem e baseado numa unidade de volume, em que a quantidade a pagar
corresponde à diferença de volume entre as duas formas físicas do mesmo produto,
grão e farinha, receptivamente antes e depois da transformação mecânica que sofre
nos moinhos ou azenhas. O pagamento significava a remuneração por essa mesma
operação de transformação, mas incluindo ainda o serviço de transporte.
32
OLIVEIRA, Ernesto Veiga de et alii. − Tecnologia Tradicional Portuguesa… op. cit., pp. 76-78, 80-81,
101-102, 116-117, 181-188; MARQUES. A.H. de Oliveira − Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV…; MELO
Arnaldo Sousa − O Couto de Santo Tirso …, vol.1, pp. 197-207.
33
A.H.M.P., Livro 3º de Pergaminhos, doc. 17 (cópia em pública-forma de 1427) e doc. 55 (original de
1403); reprodução fotográfica em Corpus Codicum…, vol. VI-VI, doc. 17 e doc. 55.
442
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
- Equidade no tratamento ao cereal de todos os moradores, sem descriminar e
beneficiar uns e prejudicando outros.
Todos os moradores e vizinhos da cidade que tivessem grão para moer deviam
ser atendidos em igualdade de circunstâncias pelos moleiros: no mesmo local de
recolha e entrega na cidade (fosse na Praça da Ribeira, fosse em casa consoante as
datas), proibição dos moradores irem diretamente aos moinhos e azenhas levar o
seu cereal, serviço prestado por um preço fixo igual para todos; e controlo de pesos
e medidas. Tudo isto sob fiscalização de almotacés e outros oficiais concelhios que
deviam assegurar que estas regras eram cumpridas.
Todas estas regras impostas pelo concelho tinham como objetivo garantir o
acesso dos vizinhos e moradores da cidade a certos bens, serviços ou atividades
em igualdade de circunstâncias, o que corresponde a um modelo geral do governo
concelhio do Porto, que encontramos em vários outros setores de atividade34. Por
exemplo na existência dos repartidores de matérias primas para mesteres como os
tanoeiros35; ou os fretadores das cargas dos navios, incumbidos de repartir o espaço
disponível nos navios e garantir quem todos os interessados enviar produtos teriam
acesso a pelo menos uma parte desse espaço , impedindo o monopólio de apenas
alguns mais ricos e poderosos36; ou ainda no caso dos carniceiros obrigados a
garantir todas as semanas o acesso à carne a todos aqueles que quisessem e pudessem
comprar, mesmo que pequenas quantidades; ou seja proibindo-se que alguns poucos
pudessem comprar a carne toda, desde que houvesse outros interessados, o que era
fiscalizado pelos almotacés37. O caso dos moleiros é mais um exemplo claro que se
insere neste modelo e por isso a legislação municipal e as autoridades concelhias e
régias insistiam muito nesse princípio e procuravam impedir quaisquer alterações ou
novas práticas que o pudessem por em causa.
- A importância dos moleiros para a cidade era tal, que encontramos por
vezes o concelho a pedir ao rei certos privilégios a favor desses moleiros, por ser do
interesse vital da cidade. Dois exemplos, entre outros:
Em 1368 a cidade intercede junto do rei, para o monarca isentar das vintenas
das galés “os moleiros que de modo continuado moem para a cidade”, tendo em
vista os interesses da urbe. A argumentação utilizada pelo concelho era a de que
34
MELO Arnaldo Sousa − Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média…, vol. I, pp. 281-312,
429-434.
35
MELO Arnaldo Sousa − Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média…, vol. I, pp. 301 e 430-431.
36
MELO Arnaldo Sousa − Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média…, vol. I, pp. 201-203;
MARQUES, A. H. de Oliveira − Portugal na Crise..., pp. 171-176; BARROS, Amândio Jorge Morais − Porto:
a construção de um espaço marítimo nos alvores dos tempos Modernos, Lisboa: Academia da Marinha, 2016,
. 84-86.
37
MELO Arnaldo Sousa − Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média…, vol. pp. 308-311;
429-434.
MOLEIROS, MOINHOS E AZENHAS NO PORTO NOS SÉCULOS XIV E XV
443
a convocação dos moleiros da cidade para esses serviços militares navais “provoca
mingua de moleiros para as necessidades da cidade e dos navios que a ela aportam”,
pois os moleiros ou vão nas galés, ou fogem da cidade e arredores:
1368, Dezembro, 28, Évora. D. Fernando, querendo fazer graça mercê, manda
aos seus oficiais que doravante
“nom costrangades os molleyros que continuadamente mooem e dam farinha
para mantymento da dita cidade e das naues e bayxees e nauios que a ella veem
e dos que a ella chegam que vam nas minhas galees” e que os tirem “das vintenas
em que ora som postos para os dessa cidade nom receberem agravo e o meu
serviço ser em ello guardado como deue” 38.
De igual modo, em 1359, numa carta régia de 26 de novembro, o rei D. Pedro
acolhe a queixa e pedido do concelho do Porto, contra a prática de alguns poderosos
requisitarem as bestas de “vizinhos e moleiros da cidade do Porto nas quais se
transportavam viandas para a cidade”, para as utilizar em seus serviços noutros
lugares do reino, gerando grande prejuízo à cidade, pela falta de mantimentos que
provocava, bem como provocando dano aos donos dos animais.39 Este episódio
mostra a importância dos moleiros no abastecimento da cidade, uma vez que são
individualizados na pedido do concelho. Os moleiros, embora não fossem vizinhos
da cidade, como temos visto e como a própria expressão documental parece implicar,
são os únicos a ser destacados além dos referidos vizinhos, o que mostra a sua
importância para o abastecimento da urbe.
4. Análise do contexto e significado das contendas descritas.
Depois de procedermos à tentativa de caracterizar o modelo de funcionamento da
atividade dos “moleiros do Porto”, estamos em melhores condições de voltar às duas
contendas atrás descritas, de 1356 e de 1403, e procurar agora compreender melhor
o seu significado.
1. A contenda de 1356 tem a ver com a introdução de alterações ao sistema
costumeiro por parte dos moleiros. Estes diziam não ter capacidade para moer o
cereal que o Porto tinha para moer e por isso deixaram de ir buscá-lo à cidade, com
era a sua obrigação acostumada. Os moleiros queriam alterar o sistema alegando não
poder responder às solicitações de moagem da cidade, ou seja, afirmando não ter
38
39
A.H.M.P., Livro 2º de Pergaminhos, doc. 30; publicado em Corpus Codicum…, vol. VI-IV, pp. 48-49.
A.H.M.P., Livro 1º de Pergaminhos, doc. 52; publicado em Corpus Codicum…, vol. VI-II, pp. 68-69.
444
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
capacidade de resposta face à procura40. Usam o argumento de falta de água, como
o factor principal de problema, mas talvez que a dificuldade fosse consequência de
desequilíbrios mais profundos entre as necessidades da cidade ao nível da moagem
de cereais e a capacidade de resposta dos moleiros, nessas zonas à volta da cidade. Terse-ia verificado um aumento das necessidades de moagem dos moradores da cidade
nos últimos tempos? E lembremos que é expressamente referido que as necessidades
de moagem se destinavam não só às necessidades dos habitantes da cidade, mas
também ao abastecimento dos navios que aí aportavam. Mas não temos dados
concretos que nos elucidem sobre essas questões nesta conjuntura em particular.
No entanto, no documento de 1403 os moleiros pedem para não serem obrigados a
levar para os moinhos todo o cereal que estivesse na cidade para ser moído, de cada
vez que vão à cidade, pois não o poderiam levar todo de uma só vez41. E em 1356
os moleiros, numa altura em que deixaram de assegurar o transporte do cereal da
cidade, diziam que os moradores da cidade enviavam diretamente para os engenhos
hidráulicos uma tal quantidade de grão que não cabia nas azenhas e moinhos42. Ou
seja, em ambas as afirmações os moleiros afirmam não dispor da capacidade de
moagem suficiente, nem de transporte, para dar resposta à procura. Significará um
aumento do cereal para moer, ou pelo contrário traduz uma dificuldade na oferta
da capacidade de moagem provocada pela falta de água que os moleiros alegam?
Ou provocada por uma redução do número de moleiros em atividade, por razões
que desconhecemos, mas que poderíamos supor relacionadas com a Peste Negra de
1348, por exemplo? Mas não temos dados que nos elucidem sobre estas questões.
Em todo o caso, a única razão expressamente referida é a falta de água, e mesmo
que as causas fossem mais complexas e múltiplas, a escassez de água era a única
referida expressamente e isso deve ser tido em conta. E refira-se que as sentenças
régias obrigaram a manter o costume, mas com a ressalva de ter em consideração o
limite da capacidade de cada moleiro, incluindo a questão de abundância ou falta de
água para a moagem.
Resumindo, podem ter-se verificado uma das seguintes condições, ou várias
em simultâneo:
40
“que auia gram mingua dauga e que porem nom podiam moer tanto pam quanto o dito concelho
queria que moessem” (A.H.M.P., Livro 1º de Pergaminhos, doc. 36; publicado em Corpus Codicum…, vol. VI-II,
pp. 53-54).
41
Os moleiros pedem que não fossem obrigados a “leuar aos moynhos quando hii ueessem por ello por
que nom podiam em huma uez todo levar o mantiimento que aí esteuese” (A.H.M.P., Livro 3º de Pergaminhos,
doc. 17 (cópia em pública-forma de 1427) e doc. 55 (original de 1403); reprodução fotográfica em Corpus
Codicum …, vol. VI-VI, doc. 17 e doc. 55).
42
“Ca diziam que auiam mui pouco augua e outrossy diziam que os moradores e vezinhos da dita cidade
os forçavam e agrauauom enuyando lhes pelos seus mancebos e mancebas e bestas tanto graaom aas dita
zenhas que o nom podiam moer nem lhis cabia nas ditas zenhas e pediam ao ouvidor que lhis defendessem
que lhis nom enuiassem ala o dito graaom pelos ditos seus mancebos e mancebas e bestas como lho enuyauam”
(A.H.M.P., Livro 1º de Pergaminhos, doc. 36; publicado em Corpus Codicum…, vol. VI-II, pp. 53-54).
MOLEIROS, MOINHOS E AZENHAS NO PORTO NOS SÉCULOS XIV E XV
445
- Aumento da procura de moagem pela cidade; e nesse caso porquê?
- Eventual redução da capacidade de moagem pela redução do número de
moleiros;
- Falta de água, que reduziria a capacidade de moagem dos engenhos
hidráulicos, se fosse uma situação recorrente e que se prolongasse há algum tempo.
E nesse caso, haveria falta de água excecionalmente nesse ano, ou era um problema
sistemático e que vinha já de anos anteriores? Este argumento corresponderia à
realidade, ou era exagerado e mera argumentação retórica?
Nesse caso, os moleiros quereriam receber mais e ter mais privilégios, talvez
devido ao aumento da procura dos seus serviços, e o concelho resistia e não
admitia tais aumentos. A ser assim, estaríamos em presença de formas de pressão
dos moleiros sobre o concelho, uma espécie de greve dos moleiros para pressionar
a aceitação das suas reivindicações, nomeadamente o aumento dos pagamentos
devidos aos moleiros, ou até liberalizar o mercado (preço livre)? Num contexto de
valorização do valor do trabalho e serviço feito pelos moleiros – em época de forte
procura dos seus serviços e oferta limitada – os moleiros ficaram impossibilitados,
pelo concelho, de usufruir de tal contexto aumentando os preços que praticavam. O
concelho proíbe tal evolução ao impor a manutenção da remuneração que sempre
ganharam, a maquia acostumada, ou seja, uma determinada parte por cada búzio
ou alqueire de cereal tradicionalmente cobrada. Como o concelho sempre impôs a
maquia como única forma de pagamento e, ao que nos parece, sem aumentos (uma
percentagem do total em farinha). Talvez por isso, como forma de protesto e de
pressão, os moleiros deixassem de ir à cidade transportar o cereal.
2. Em 1403 o concelho parece querer alterar a forma de medição do cereal,
passando das tradicionais medidas de capacidade (alqueire, teigas, búzios) para um
sistema de peso, o que os moleiros consideram mais gravoso. Os moleiros reclamam
só aceitar esse novo sistema, com a condição de deixar de levar o cereal à cidade.
Além disso, penso que dessa forma os moleiros poderiam ganhar mais com outros
tipos de pagamentos, alem da maquia, pois não ir à cidade significaria um menor
controlo das autoridades concelhias e até a possibilidade de poderem negociar preços
diferentes diretamente com cada cliente.
Se fossem os moradores do Porto aos moinhos e azenhas com o cereal, os
moleiros reduziriam os seus custos, ficando libertados do transporte que ficaria a
cargo dos donos dos grãos. Simultaneamente tal afastamento do espaço da cidade
poderia permitir aos moleiros cobrar maiores maquias ou outras contrapartidas pela
moagem, ou beneficiar os vizinhos da cidade que pagassem mais, longe do olhar
446
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
fiscalizador das autoridades concelhias, ao contrário que se passaria na Praça da
Ribeira com vários moleiros e moradores presentes, sob o olhar atento dos almotacés
e outros agentes municipais.
O concelho, ao querer impor o pagamento em função do peso e não do volume
(capacidade), estaria a limitar o ganho dos moleiros, ou pelo menos foi essa a perceção
dos moleiros, por isso como contrapartida queriam deixar fazer o transporte.
A solução encontrada em 1403 foi manter tudo como estava antes, e dessa
forma resolver os problemas de ambas as partes. O concelho desistia das alterações
que os moleiros contestavam (continua a maquia relacionada com o cereal calculado
em volume e não a peso) e em troca também não se cedia aos pedidos dos moleiros,
que pretendiam deixar de garantir o transporte de e até as casas dos proprietários
do cereal. Neste caso, manter tudo como estava antes, parece ter sido a solução para
conseguir um acordo entre as partes sancionado pelas sentenças e cartas régias.
Estas são algumas das hipóteses interpretativas que se afiguram mais prováveis,
entre outras possibilidades.
5. Considerações finais.
“Os moleiros da cidade”, ou “aqueles que de forma continuada moem para a cidade”
estavam sujeitos a certas obrigações ou regras, mas também a certos direitos ou
regalias. Seria um estatuto formal, que lhes garantia a autorização para exercer esse
mester para a cidade, com direitos e deveres inerentes, tipificadas e aceites pelo
costume e por vezes reforçadas, e noutros casos alteradas, pelos ordenamentos ou
posturas municipais, e por vezes até incluía privilégios régios, requeridos pela cidade
para os moleiros.
Em todo este processo e em ambas as datas os moleiros que moem para a
cidade, provenientes e moradores em todas estas zonas com alguma distância
entre si e que em 1305 nem sequer estão inseridos no termo da cidade, nem eram,
portanto, moradores no concelho. Não obstante tudo isto, esses moleiros mostraram
capacidade de organização e de executar ações coletivas, falando a uma só voz com
as autoridades régias e concelhias, que os reconhece como um interlocutor. Em 1356
é o rei que os convoca perante si ou perante a justiça. E em 1403 a iniciativa judicial
é dos moleiros, que em conjunto fazem queixa e põem ação junto do juiz do rei na
cidade e depois recorrem da sua sentença, em apelação, para o próprio rei. A unilos apenas o facto de serem moleiros da cidade do Porto, ou quem moem para a
cidade de forma continuada, o que significava um estatuto e lhes conferia unidade e
interesses comuns.
Note-se que nestas contendas entre os moleiros e o concelho, o rei e os seus
agentes superiores foram sempre necessários para resolver as questões. A solução
MOLEIROS, MOINHOS E AZENHAS NO PORTO NOS SÉCULOS XIV E XV
447
das autoridades passa por tentar manter o costume, as inovações quando geradores
de conflitos são proibidas ou dificultadas, isto quer quando eram por iniciativa dos
moleiros, quer do concelho. As sentenças das autoridades judiciais régias foram
sempre desenvolvidas apresentando a justificação de zelar pelos interesses da cidade
e seus moradores, mas também considerando os interesses dos moleiros, ouvidas
sempre as duas partes e tentando impor consensos ou algumas cedências de parte a
parte. No fundo, relaciona-se com a procura do bem comum que se traduz, também,
na definição de preços justos e de condições justas, que resultam da interceção da
parte comum dos interesses em conflito.
448
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
O armazenamento e a gestão dos recursos
nas cidades do Gharb al-Andalus:
o exemplo de Alcácer do Sal
Marta Isabel Caetano Leitão1
Resumo
A cidade de Alcácer do Sal encontrava-se, ao longo da permanência muçulmana,
dotada de uma série de infraestruturas de armazenamento, como cisternas, poços
e silos, que permitiam uma adequada conservação dos bens alimentares, bem
como o abastecimento da cidade em caso de cerco prolongado. A construção
daquelas estruturas obedecia a um conjunto de critérios que eram fundamentais
para uma apropriada gestão e conservação dos produtos armazenados.
Através dos tratados de agronomia islâmicos, assim como das infraestruturas
descobertas no núcleo urbano durante intervenções arqueológicas ocorridas
no castelo entre 1993 e 1997, pretende-se dar a conhecer como se geriam e
conservavam os recursos em Alcácer do Sal no Período Muçulmano.
Palavras-chave
Período medieval islâmico; Alcáçova; Núcleo urbano; Recursos; Estruturas de
armazenamento.
1
Bolseira de Doutoramento na Fundação para a Ciência e a Tecnologia (SFRH/BD/117606/2016).
Instituto de Arqueologia e Paleociências da Universidade Nova de Lisboa (IAP). E-mail: martaleitao11@gmail.
com. Um enorme agradecimento ao António Rei pela ajuda na transcrição em português das palavras árabes
transcritas em castelhano. Agradeço, igualmente, à minha orientadora Rosa Varela Gomes que, desde 2013
até ao presente, tem-me apoiado, ajudado e aconselhado na metodologia a adoptar em cada um dos passos da
minha investigação. Deixo também o meu profundo agradecimento ao Gabinete de Arqueologia da Câmara
Municipal de Alcácer do Sal, bem como à Direcção Regional de Cultura do Alentejo, pela cedência das fotos,
desenhos e plantas das intervenções arqueológicas realizadas no castelo.
450
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
The storage and management of resources in the cities of
Gharb al-Andalus: the example of Alcácer do Sal
Abstract
The city of Alcácer do Sal was, throughout the Muslim period, equipped
with a series of storage infrastructures, such as cisterns, wells and silos,
which allowed an adequate conservation of the food, as well as the supply of
the city in case of prolonged enclosure. The construction of these structures
obeyed a set of criteria that were fundamental for an appropriate management
and conservation of the stored products. Through the Islamic agronomy
treaties, as well as the infrastructures discovered in the urban nucleus during
archaeological interventions in the castle between 1993 and 1997, it is intended
to make known how the resources were managed and conserved in Alcácer do
Sal in the Muslim period.
Keywords
Islamic Medieval period; Alcáçova; Urban nucleus; Resources; Storage
structures.
Introdução.
Intervenções arqueológicas ocorridas, entre 1993 e 1997, no interior do perímetro
amuralhado do castelo de Alcácer do Sal, tal como temos vindo a referir noutras
publicações2, colocaram a descoberto um conjunto de estruturas, datadas do Período
Muçulmano, que permitiram conhecer a organização urbanística e os quotidianos
dos habitantes daquela cidade na época citada. Entre as estruturas referidas, as quais
foram alvo de estudo neste trabalho, cabe destacar a identificação de 60 silos, bem
como de um poço e uma cisterna para o armazenamento de água. Dos silos descobertos
foram escavados 13 na integralidade, tendo sido os restantes parcialmente escavados
e outros somente referenciados no registo gráfico e fotográfico.
LEITÃO, Marta Isabel Caetano − A Presença Islâmica em al-Qasr (Alcácer do Sal): urbanismo,
quotidianos e cultural material. Mauritius: Novas Edições Acadêmicas, 2017, pp. 5-12; LEITÃO, Marta Isabel
Caetano − “O Castelo de Alcácer do Sal. Da fortificação islâmica às transformações ocorridas durante o
domínio cristão”. In ANDRADE, Amélia Aguiar; TENTE, Catarina; SILVA, Gonçalo Melo da; PRATA, Sara
(eds.) − Espaços e Poderes na Europa Urbana Medieval. Lisboa: IEM-Instituto de Estudos Medievais/Câmara
Municipal de Castelo de Vide, 2018, pp. 623-630.
2
O AR MAZENAMENTO E A GESTÃO DOS R ECURSOS NAS CIDADES DO GHARB AL-ANDALUS
451
Aquelas estruturas foram utilizadas, numa primeira fase, para o
acondicionamento de cereais e outros bens alimentares, sendo, alguns deles,
posteriormente, desactivados da sua função primária para serem reutilizados
como lixeiras/fossas onde eram depositados os desperdícios urbanos e domésticos.
Cabe mencionar que alguns destes silos se achavam associados a habitações, quer
datadas do Período Islâmico, quer do Período Romano, tendo sido estas últimas
reaproveitadas pelos muçulmanos, enquanto outros não se encontravam associados
a qualquer estrutura.
1. Estruturas de armazenamento.
1.1 Poços e cisterna.
No que respeita aos inícios da presença islâmica a intervenção arqueológica permitiu
identificar, no canto sul da alcáçova, um poço de abertura e secção circular, construído
em silharia de pedra bem aparelhada, disposta de forma regular e intercalada por
fiadas de tijolo e argamassa, com 0,56 m de diâmetro de boca, 1,28 m de diâmetro
máximo e 5 m de profundidade3. Ao mesmo nível arqueológico daquele foram
identificados fragmentos de cerâmicas islâmicas, datados dos séculos IX e X, com
destaque para a descoberta de um cântaro intacto, decorado com pintura branca,
permitindo datar a sua construção do Período Omíada4. As suas dimensões indicam
uma capacidade de armazenamento de 6400 litros de água, permitindo fornecer 6
pessoas durante um ano, no caso de considerarmos que cada uma delas necessita
em média, pelo menos, 3 litros por dia5. Trata-se de um pequeno poço particular de
carácter doméstico, uma vez que o mesmo se achava associado a parede que definia
espaço habitacional com lareira6, que se destinava ao abastecimento quotidiano de
um reduzido número de pessoas que viviam na alcáçova (Fig. 1).
Durante o Período Almóada construiu-se uma estrutura de maior envergadura,
com superior capacidade de armazenamento, para fazer face às necessidades diárias
de um maior número de habitantes, tendo sido nesse contexto que se edificou, no
canto sul da alcáçova, uma cisterna. Trata-se de uma estrutura escavada no substrato
rochoso de planta rectangular com 2,96 m de comprimento, 2,20 m de largura e
2,32 m de profundidade, achando-se revestida, exteriormente, por uma argamassa
constituída por areia e fragmentos de pedras que teria como finalidade torná-la
3
LEITÃO, Marta Isabel Caetano − “Alcácer do Sal Durante o Período Muçulmano (IX-XIII)”. Debates
de Arqueología Medieval 6 (2016), p. 225.
4
LEITÃO, Marta Isabel Caetano − A Presença Islâmica em al-Qasr (Alcácer do Sal): urbanismo…, pp
7-9.
5
Seguimos os mesmos critérios aplicados por Rosa Varela Gomes no estudo dos sistemas de
abastecimento de água na alcáçova de Silves: GOMES, Rosa Varela − Silves (Xelb) uma cidade do Gharb AlAndalus: a Alcáçova. Lisboa: Instituto Português de Arqueologia, 2003, p. 28.
6
LEITÃO, Marta Isabel Caetano − A Presença Islâmica em al-Qasr (Alcácer do Sal): urbanismo…, p. 9.
452
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
impermeável. Aquela possuía uma capacidade de armazenamento de 16 000 litros
permitindo o fornecimento de água a cerca de 15 pessoas durante um ano.
Fig. 1 – À esquerda: poço, de cronologia Emiral/Califal, descoberto no interior da alcáçova (cedida
pelo Gabinete de Arqueologia da Câmara Municipal de Alcácer do Sal); à direita: boca
e alçado do poço (desenhos de Saudade Correia/conversão digital da autora).
No decorrer da intervenção arqueológica encontraram-se troços de canalizações
que transportavam a água das chuvas para o interior da cisterna, assim como para
o pequeno tanque que se encontra no pátio da alcáçova7. Acedia-se ao interior
daquela através de abertura rectangular que, para além de facultar o acesso àquele
bem essencial, permitia também a entrada para realização da sua limpeza periódica,
sendo a mesma depois selada para impedir a saída da água (Fig. 2). Esta estrutura
encontra paralelos formais com a cisterna 2 muçulmana identificada no interior da
Alcáçova de Silves. Há semelhança daquilo que se verifica em Alcácer, também aquela
foi escavada no substrato rochoso, possuindo planta rectangular, acedendo-se ao seu
interior por meio de duas aberturas, uma de planta circular, situada a nascente, e
outra sub-quadrangular, situada a poente8.
Após a Reconquista Cristã da cidade, a cisterna continuou a abastecer o Paço
da Ordem de Santiago, tendo-se realizado algumas remodelações na mesma através
do acrescento de novo revestimento exterior, primeiramente, em pedra e tijolo, e,
posteriormente, em taipa civil. Durante a Idade Moderna a estrutura foi desactivada
passando a servir de lixeira.
No espaço correspondente à medina islâmica identificou-se, em 2003, no
decorrer de trabalhos de limpeza e consolidação efectuados no sector norte do
recinto amuralhado, vestígios de uma couraça, edificada em taipa militar e datada
do Período Almóada, que arrancava directamente da barbacã existente naquela
7
FARIA, João Carlos Lázaro; PAIXÃO, António Cavaleiro − Relatório das escavações arqueológicas no
convento de Nossa Senhora de Aracaeli. Alcácer do Sal, 1996, p. 13.
8
GOMES, Rosa Varela − Silves (Xelb) uma cidade do Gharb Al-Andalus…, pp. 31-32.
O AR MAZENAMENTO E A GESTÃO DOS R ECURSOS NAS CIDADES DO GHARB AL-ANDALUS
453
Fig. 2 – Estratigrafia e aparelho construtivo da cisterna
(desenhos de Saudade Correia/conversão digital da autora).
zona em direcção ao fosso e a uma nascente de água que ali se encontra9. A mesma
teria como função principal a defesa e acesso à água em caso de cerco prolongado,
9
CARVALHO, António Rafael; FARIA, João Carlos; FERREIRA, Marisol Aires − Al-Qasr: Arqueologia
e História de uma Madina do Garb al-Andalus, sécs. VIII-XIII. Alcácer do Sal: Câmara Municipal de Alcácer
do Sal, 2008, pp. 79-80.
454
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
sendo bastante comum a presença daquele tipo de estruturas, sobretudo a partir de
Época Almóada, em outras cidades do al-Andalus como Sevilha e Badajoz10. Após a
Reconquista Cristã de 1217, a couraça foi desactivada entrando em ruína (Fig. 3).
Fig. 3 – Troços da couraça identificados durante trabalhos de limpeza e
consolidação efectuados, em 2003, na encosta Norte do Castelo
(cedidas pelo Gabinete de Arqueologia da Câmara Municipal de Alcácer do Sal).
No núcleo urbano de matriz islâmica encontra-se, igualmente, um poço, o
qual não foi alvo de intervenção arqueológica, onde no fundo se recolheu, durante
uma limpeza ocorrida na década de 1960 no seu interior, espólio datado do Período
Almóada11. Aquela estrutura possui profundidade de 26 m e diâmetro de 4,80
m, detendo uma capacidade de armazenamento de 471000 litros de água, o que
possibilitava o fornecimento daquele bem a cerca de 430 pessoas durante um ano.
1.2 Silos.
Durante a intervenção arqueológica colocou-se a descoberto, quer no espaço da
anterior alcáçova, quer no núcleo urbano, grande quantidade de silos que se achavam
associados, na sua maioria, a compartimentos que definiam habitações e que
detinham, por isso, uso familiar. Contudo, no sector sul da área que correspondia à
medina islâmica foram encontrados conjunto de silos que não estavam associados a
qualquer estrutura de âmbito residencial, o que parece sugerir a utilização daquele
espaço exclusivamente para armazenamento dos bens alimentares da cidade (Fig. 4).
TORRES BALBÁS, Leopoldo − Ciudades Hispanomusulmanas. Madrid: Instituto Hispano-Árabe
de Cultura, 1985, p. 537. MÁRQUEZ BUENO, Samuel; GURRIARÁN DAZA, Pedro – “Tras la huella de los
almohades. Reflexiones sobre las últimas fortificaciones del Badajoz andalusí”. Cuadernos de arquitectura y
fortificación 0 (2012), p. 56.
11
CHAGAS, José António Amaral Trindade – O castelo de Alcácer do Sal e a utilização da taipa militar
durante o domínio almóada. Évora: Universidade Évora, 1995. Dissertação de Mestrado, p. 35.
10
O AR MAZENAMENTO E A GESTÃO DOS R ECURSOS NAS CIDADES DO GHARB AL-ANDALUS
455
Fig. 4 – Planta geral das estruturas identificadas, entre 1993 e 1997,
no interior da alcáçova e medina islâmica.
Tipologicamente as estruturas negativas identificadas foram escavadas no
substrato rochoso, rompendo, por vezes, pisos e muros de períodos precedentes, e
possuem formato oval e periforme com fundos de perfil oval e ligeiramente fusiforme.
Algumas daquelas estruturas apresentavam a boca estruturada com elementos
pétreos de pequena e média dimensão, sendo seladas igualmente com pedras ou,
simplesmente, com terra, achando-se as paredes nos seus interiores revestidas com
456
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
argila, tornando-os, desse modo, impermeáveis para uma adequada conservação dos
cereais.
Em termos de dimensões os silos apresentam diâmetros máximos que oscilam
entre 1,68 m a 2,55 m e profundidades de 2,94 m a 3,16 m, o que permitia uma
capacidade de armazenamento entre 7 m3 a 15m3, podendo aqueles conter entre
4620 kg até 9900 kg de cereais, considerando que cada m3 de trigo pesa 660 kg12. Se
tivermos em conta que cada indivíduo poderia sobreviver com 230 kg de trigo por
ano13, verificamos que a capacidade daquelas estruturas respondia às necessidades
alimentares de 20 pessoas, para o caso dos de menor capacidade, a 43 pessoas durante
um ano, no que respeita aos de maiores proporções de armazenamento (Fig. 5).
Fig. 5 – Em cima: silos, de planta oval e rectangular, descobertos em 1995 durante intervenções
arqueológicas ocorridas no interior do castelo; em baixo: cortes dos silos
(desenhos de Saudade Correia/conversão digital da autora).
A nível cronológico algumas daquelas estruturas negativas foram edificadas,
entre os séculos VIII e XI, para armazenamento de bens alimentares, tendo sido,
posteriormente, desactivadas a partir da segunda metade do século XII, já em
pleno Período Almóada, passando a servir de lixeiras, conforme denunciam as
GOMES, Rosa Varela − Silves (Xelb) uma cidade do Gharb Al-Andalus…, p. 33.
Segundo Rosa Varela Gomes, cada indivíduo poderia sobreviver com 230 kg de trigo durante um ano.
Ver: GOMES, Rosa Varela − Silves (Xelb) uma cidade do Gharb Al-Andalus…, p. 33.
12
13
O AR MAZENAMENTO E A GESTÃO DOS R ECURSOS NAS CIDADES DO GHARB AL-ANDALUS
457
cerâmicas e restos faunísticos descobertos durante a intervenção arqueológica14. Já
outros perduraram mesmo durante esta fase, edificando-se igualmente outros novos
para fazer face às necessidades alimentares da população, sobretudo em épocas
de escassez, e a um eventual cerco prolongado que pudesse assolar a cidade, uma
vez que, tratando-se Alcácer de um território de fronteira com inimigo cristão,
eram constantes os saques e as pilhagens efectuados naquele15. Alguns destes silos
continuaram a cumprir a sua função primária durante a Idade Média16.
No que concerne ao conjunto cerâmico recolhido do interior daquelas
estruturas salienta-se a presença de cerâmicas comuns e vidradas, abrangendo uma
cronologia entre os séculos VIII e XIII, onde estão presentes a loiça de mesa: taças,
jarros e jarras; loiça de cozinha: panelas, frigideiras, caçoilas e alguidares; loiça de
armazenamento: talhas e cântaros; contentores de fogo: candis e lamparinas e, ainda,
outras peças de uso complementar como testos e outros objectos de uso quotidiano,
os quais já foram estudados e publicados em outros trabalhos17.
Os silos descobertos em Alcácer do Sal apresentam semelhanças tipológicas
com os silos muçulmanos identificados no interior do Solar da Casa de Santo
Isidro em Madrid18. Aqueles apresentam formas em saco, possuindo medidas de
profundidade e diâmetros que se aproximam dos silos encontrados em Alcácer. Ali
foram recolhidos fragmentos de cerâmicas datáveis entre os séculos X e XIII19.
Quanto ao espólio ecofactual exumado do interior dos silos intervencionados
em Alcácer permite-nos conhecer, ainda que de forma parcial, uma vez que parte
daquele repertório ainda se encontra por analisar, como era a dieta alimentar das
comunidades muçulmanas que habitaram aquela cidade. A maioria dos restos
osteológicos recolhidos pertence a ovicaprinos (Capra hircus e Ovis aries), seguido
dos relativos a coelhos e alguma avifauna, especialmente de galinhas (Gallus
14
MORENO GARCÍA, Marta; DAVIS, Simon − “Estudio de las asociaciones faunísticas recuperadas en
Alcácer do Sal, Convento de São Francisco, Santarém y Sé de Lisboa”. Garb: Sítios islâmicos do Sul Peninsular.
Lisboa/Mérida: IPPAR/Junta da Extremadura, 2001, p. 233. FARIA, João Carlos Lázaro − Alcácer do Sal ao
Tempo dos Romanos. Lisboa: Colibri, 2002, p. 103.
15
VARANDAS, José – “O assédio a Alcácer: alguns problemas de história militar”. In FERNANDES,
Isabel Cristina; BRANCO, Maria João (coords.) – Da Conquista de Lisboa à Conquista de Alcácer, 1147-1217:
definição e dinâmicas de um território de fronteira. Lisboa: Colibri, 2019, p. 376.
16
Faz-se referência, em 1385, às covas do Paço no castelo onde era armazenado o trigo. Ver: COSTA,
Paula Pinto; MATA, Joel; PIMENTA, Maria Cristina; SILVA, Isabel Morgado S. – Coleção Militarium Ordinum
Analecta. Fontes para o estudo das Ordens Religiosas-Militares. Livro dos Copos. N.º 7, Vol. I. Direcção de Luís
Adão da Fonseca. Porto: Fundação Eng.º António de Almeida, 2006, p. 397.
17
CARVALHO, António Rafael; PAIXÃO, António Manuel Cavaleiro; FARIA, João Carlos Lázaro −
“Contributo para o estudo da ocupação muçulmana no Castelo de Alcácer do Sal: O Convento de Aracoelli”.
Arqueologia Medieval 7 (2001), pp.197-209. LEITÃO, Marta Isabel Caetano − A Presença Islâmica em al-Qasr
(Alcácer do Sal): urbanismo…, pp. 46-53.
18
VALLESPÍN GÓMEZ, Olga; SERRANO HERRERO, Elena; LÓPEZ MARTÍN, Miguel; MARÍN
PERELLÓN, Francisco – “Excavaciones en el solar ‘Casa de San Isidro’”. In Madrid del siglo IX al XI. Madrid:
Comunidad de Madrid, 1990, pp. 293-296.
19
VALLESPÍN GÓMEZ, Olga et alii − “Excavaciones en el solar ‘Casa de San Isidro’...”, pp. 294-296.
458
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
domesticus), bem como espécies ligadas à actividade venatória, designadamente
perdizes (Perdix rubra), corvos e abutres fulvo20. Salienta-se também a presença de
vestígios osteológicos de espécies como a vaca, vitela, veado e lebres, os quais eram,
igualmente, bastantes consumidos durante o Período Muçulmano, quer em Alcácer,
quer em outras cidades muçulmanas do al-Andalus21.
Em menor número encontram-se espécies como o cavalo e o javali. Apesar
das proibições corânicas relativas ao consumo de carne de porco, a sua ingestão
ocasional está atestada no seio das comunidades islâmicas22. Recolheu-se, igualmente,
abundante fauna ictiológica, o que é natural, dada a localização geográfica da cidade,
reconhecendo-se duas espécies pescadas localmente no rio Sado, como o opérculo e
cleithrum de galope (Liza aurata)23.
Para além da tipologia de silos em fossa referidos colocou-se também a
descoberto, durante a intervenção arqueológica no interior da alcáçova, um outro
silo islâmico associado a compartimento, datado do Período Almóada, com paredes
erguidas em pedra não aparelhada, intercalada por fiadas de tijolo e terra, cujas
características diferem dos restantes identificados. Trata-se de um silo, designado
nas fontes islâmicas como ḥufra (pl. ḥufar), de formato rectangular ou em forma de
“sepultura”, mais alargado e muito menos profundo do que os habituais maṭmūra
(pl. maṭāmír) destinados ao acondicionamento de cereais, medindo 0,76 m de
largura, 0,80 m de comprimento e 0,16 m de profundidade, que se destinava ao
armazenamento de frutos secos24.
2. Armazenar e conservar segundo os tratados de agronomia islâmicos e o
exemplo de Alcácer do Sal.
O armazenamento e a conservação de bens naturais, de que é exemplo a água, tal
como de bens alimentícios, obedecia a um conjunto de normas e critérios, descritos
nas fontes islâmicas, que eram fundamentais para uma adequada gestão dos mesmos
no abastecimento das cidades durante as quatro estações do ano mas, também, nas
épocas de crise em que havia escassez de alimentos devido a secas prolongadas,
chuvas torrenciais, incêndios, acidentes, ou, até mesmo, por destruições provocadas
MORENO GARCÍA, Marta; DAVIS, Simon − “Estudio de las asociaciones faunísticas…”, p. 233.
MORENO GARCÍA, Marta; PIMENTA; Carlos − “Ossos no lixo: o contributo arqueozoológico para o
estudo da alimentação na Mértola Islâmica”. In GÓMEZ MARTÍNEZ, Susana (coord.) − Memória dos Sabores
do Mediterrâneo. Campo Arqueológico de Mértola/Centro de Estudos Arqueológicos das Universidades de
Coimbra e Porto, 2012, p.171.
22
RIQUELME CANTAL, José Antonio – “Estudio Faunístico del yacimiento medieval de Plaza España,
Motril (Granada)”. Arqueologia Medieval 2 (1993), p. 259.
23
MORENO GARCÍA, Marta; DAVIS, Simon − “Estudio de las asociaciones faunísticas…”, p. 234.
24
GARCÍA SÁNCHEZ, Expiración − “La conservación de los productos vegetales en las fuentes
agronómicas andalusíes”. In MARÍN, Manuela; WAINES, David (eds.) − La alimentación en las culturas
islâmicas. Madrid: Agencia Española de Cooperación Internacional, 1994, p. 280.
20
21
O AR MAZENAMENTO E A GESTÃO DOS R ECURSOS NAS CIDADES DO GHARB AL-ANDALUS
459
por conflitos entre muçulmanos, no contexto de disputas pelo poder, ou das guerras
da reconquista.
De acordo com o Corão a água era o elemento mais importante do Universo,
uma vez que, no momento da criação do mundo, o trono de Deus estaria em contacto
com aquele bem essencial25. Além disso, era também símbolo de vida, dado que
todos os seres vivos nasciam a partir dela, tal como do Paraíso onde aquela existia
em abundância alimentando jardins, plantas e árvores de fruto26.
Em termos práticos a água era fundamental para o abastecimento das populações
urbanas e rurais, bem como para os animais e irrigação dos campos agrícolas,
exigindo algumas culturas maior abundância daquele elemento do que outras, sendo
necessário, para esse efeito, a construção de sistemas para captação e condução de
água até aos respectivos locais de cultivo. Segundo Ibn Luyūn, baseando-se em Ibn
Bassāl, a água de melhor qualidade seria a da chuva, seguida da proveniente dos
rios, uma vez que tratando-se de água corrente, nas estações mais frias, eliminava
as larvas da terra, sendo por isso muito proveitosa. Em terceiro lugar refere as águas
oriundas das fontes e dos poços que, segundo aquele, eram as melhores para regar
plantas comestíveis, visto que produziam efeitos contrários nas estações do ano, ou
seja, eram mornas no Inverno e frescas no Verão27.
Quando existia perda de culturas devido a alguma calamidade, como secas
prolongadas, chuvas intensas, roubo, passagem de exército, entre outros, era
declarado o estado de Jā`iha`28. Citado pela primeira vez, no século VIII, pelo jurista
Mālik b. Anas, era um termo jurídico aplicado ao meio rural quando aquele era
atingido por uma catástrofe natural afectando um terço do total dos cultivos objecto
de um contrato29. Este último poderia ser de carácter comercial, onde existia um
comprador e um vendedor, ou entre um arrendatário de uma terra cultivada e do
seu arrendador, sendo aquele imediatamente cessado e os envolvidos indemnizados
pelas perdas sofridas30.
A distribuição da água pelas várias alcarias obedecia a determinados critérios.
25
“Foi Ele quem criou os Céus e a Terra em seis dias, estando o seu trono sobre água (…)” [Capitulo XI, 7].
Ver: Alcorão, Parte 1 – “Não há outra divindade senão Deus e Muhammad é o seu Profeta”. Introdução e notas
do Dr. Suleiman Valy Mamede, presidente do concelho directivo do Centro Português de Estudos Islâmicos.
Sintra: Europa-América, p. 178.
26
“Não vêem, aqueles que não crêem, que os Céus e a Terra formavam um todo maciço? A ambos os
fendemos e da água tiramos todas as coisas viventes. Não crerão?” [Capitulo XXI, 30]. Ver: Alcorão, Parte
1…, p. 256. VIDAL CASTRO, Francisco – “Paisajes del agua en al-Andalus”. In ROLDÁN CASTRO, Fátima
(coord.) – Paisaje y Naturaleza en Al-Andalus. Granada: Fundación El Legado Andalusí, 2004, pp. 139-140.
27
IBN LUYŪN – Tratado de Agricultura. Tradução de Joaquina Eguarás Ibáñez. Granada: Patronato de
la Alhambra y Generalife, 1988, pp. 202-203.
28
CAMARERO CASTELLANO, Inmaculada – Sobre el ´Estado de Yā`iha` - Teoría y práctica jurídica
de la calamidade rural y urbana en Al-Andalus (ss. VIII-XV). Sevilha: Editorial Universidad de Sevilla, 2015,
p. 15.
29
CAMARERO CASTELLANO, Inmaculada – Sobre el ´Estado de Yā`iha`…, pp. 63-64.
30
CAMARERO CASTELLANO, Inmaculada – Sobre el ´Estado de Yā`iha`…, p. 15.
460
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Era o assentamento mais antigo que tinha prioridade, seguido do mais elevado no
curso do rio, sendo a gestão daquela feita pela própria comunidade que habitava o
povoado através da oralidade e sob supervisão de um conselho de anciões31. Um
exemplo que ilustra a gestão daquele bem essencial pelas comunidades campesinas
surge num documento tardio, datado de 1226, relativo à alcaria de Falix, no distrito
de Marchena, em Alpujarras, no qual são citadas uma série de personalidades
possuidoras de parcelas irrigadas pelo rio Nascimento, onde é estipulado que a cada
parcela, mediante rotação fixa, a água era distribuída por um estipulado período de
tempo, permanecendo vinculada à mesma durante essa fase32.
A água era movida por meio de sistemas hidráulicos como noras que elevavam
aquela desde um rio até a um canal de rego, movidas pela força da corrente ou por
tração animal. Por sua vez, a água elevada era vertida directamente em acéquias que
regavam os campos, ou armazenada numa cisterna e açude para posterior utilização33.
A água era ainda utilizada nos banhos públicos das cidades, nos pátios das
mesquitas onde se realizavam as abluções, estando presente, igualmente, nos
pequenos tanques existentes nos pátios dos palácios e habitações.
Estes sistemas de aproveitamento e captação de água desenvolvidos pelos
muçulmanos são patentes em Alcácer do Sal durante aquele período através do
tanque existente no centro do pátio do palácio da alcáçova, bem como da cisterna,
cujas águas das chuvas recolhidas nos telhados eram conduzidas até aos mesmos
através de canalizações subterrâneas construídas para esse efeito. Já a captação de
água no núcleo urbano era realizada através de um grande poço onde se retirava
água, com o auxílio de um alcatruz, quer para consumo próprio, quer para as mais
diversificadas tarefas quotidianas dos habitantes da cidade, tendo-se igualmente
acesso àquele bem natural através da couraça situada a norte do castelo.
No que respeita aos produtos alimentares os agrónomos muçulmanos referem
uma série de medidas que seriam importantes para uma adequada conservação
dos mesmos. Algumas dessas normas implicavam o cultivo de certas culturas em
determinadas estações do ano, tal como a melhor altura para as colher e conservar34.
No caso dos legumes e frutas, como por exemplo as pêras e uvas, eram apanhados
não muito maduros para que pudessem ser conservados durante um maior período
de tempo35. Depois de colhidos, alguns passavam pelo processo de secagem ao sol,
31
TRILLO SAN JOSÉ, Carmen − Agua, Tierra y Hombres en Al-Andalus: La dimensión agrícola del
mundo nazarí. Granada: Ajbar, 2004, pp. 275-282.
32
GLICK, Thomas − Paisajes de Conquista: Cambio cultural y geográfico en la España medieval.
Valencia: Universidade de Valencia, 2007, pp. 124-127.
33
GLICK, Thomas − Paisajes de Conquista..., pp. 122-123.
34
GARCÍA SÁNCHEZ, Expiración − “La conservación de los productos vegetales…”, pp. 258-259.
35
ABŪ I-JAYR AL-IŠBILĪ − Kitāb al-filāha. Tratado de Agricultura. Introducción, edición, traducción
y índices por Julia Carabaza Bravo. Madrid: Instituto de Cooperación com el Mundo Árabe, 1991, pp. 311-317.
IBN AL-´AWWĀM − Kitāb al-filāha. Edición y traducción de J. A. Banqueri, 2 vols. Madrid, 1802 (reimpressão
O AR MAZENAMENTO E A GESTÃO DOS R ECURSOS NAS CIDADES DO GHARB AL-ANDALUS
461
sendo depois guardados em recipientes cerâmicos, como talhas e potes, onde era
adicionado alguns ingredientes naturais para melhor conservação dos mesmos como
o vinho, mel ou salmoura e, em seguida, selados e enterrados em terra ou areia36.
Já os frutos secos, depois da secagem ao sol, eram colocados nos silos em formato
de sepultura e com pouca profundidade (ḥufar), à semelhança do silo encontrado
em Alcácer do Sal, sobre fundos cobertos com areia ou palha. As leguminosas e os
cereais eram armazenados em silos escavados no substrato rochoso, cujas paredes
interiores eram alisadas e revestidas, com fundos largos e bocas mais estreitas, cujas
tipologias se caracterizam por possuir perfis ovais, fusiformes ou em forma de saco37.
O armazenamento e a conservação daqueles durante um longo período de tempo
requeria condições térmicas adequadas, o que implicava um perfeito isolamento do
ar, dado que o deficiente controlo daquele elemento no interior do silo levaria ao
aparecimento de microorganismos38. Além disso, os grãos armazenados consumiam
oxigénio e se aquele processo ocorresse muito rápido geraria vapor de água causando
uma deterioração rápida dos produtos armazenados. Para evitar a ocorrência deste
fenómeno as fontes referem a necessidade de haver espaçamento entre os grãos, o
que corresponderia a 40% de volume de espaço livre no interior do silo, para que
aqueles pudessem respirar livremente39.
Na conservação dos alimentos eram utilizados diversos ingredientes naturais de
origem mineral, vegetal ou animal. Entre os elementos minerais a areia era bastante
usada no fundo dos silos, em alguns casos misturada com os grãos para ocupar os
espaços entre aqueles possibilitando, como já vimos, uma renovação natural do
oxigénio e humidade, ou até mesmo para selar as bocas daquelas estruturas isolandoas da temperatura ambiente40. Em alguns casos eram utilizadas cinzas na conservação,
uma vez que aquelas produziam uma acção dessecante41.
Relativamente aos elementos vegetais, colocavam-se cinzas vegetais
misturadas nos grãos produzindo os resultados já enunciados, tal como o azeite,
cujos efeitos antioxidantes retardava a rancificação, cobrindo, ainda, os grãos com
uma capa, fazendo com que os insectos deslizassem, não permitindo a colocação
de ovos de larvas, assim como o desarolho das recém-nascidas42. Para repelir os
1988), pp. 89; 660.
36
ABŪ I-JAYR AL-IŠBILĪ − Kitāb al-filāha. Tratado de Agricultura…, pp. 181; 314. PALADIO − Tratado
de Agricultura. Medicina veterinaria. Poema de los injertos. Traducción, introducción y notas de Ana Moure
Casas. Madrid, 1990, p. 215.
37
AL-TIGNARĪ − Kitāb Zuhrat al-bustān. Ms. nº IV del Archivo Municipal de Córdoba y ms. 1674 de
la Biblioteca General y Archivos de Rabat, p. 81. IBN BASSĀL, Kitāb al-Qasd wa-l-bayān. Libro de Agricultura.
Edición, traducción y notas de Josep Millás Vallicrosa y Mohamed Aziman. Tetuán, 1955, pp. 179; 229.
38
IBN LUYŪN − Tratado de Agricultura…, p. 253.
39
GARCÍA SÁNCHEZ, Expiración − “La conservación de los productos vegetales…”, p. 261.
40
IBN LUYŪN − Tratado de Agricultura…, p. 247.
41
IBN AL-´AWWĀM − Kitāb al-filāha…, pp. 89, 660.
42
ABŪ I-JAYR AL-IŠBILĪ − Kitāb al-filāha. Tratado de Agricultura…, p. 176-185; IBN AL-´AWWĀM
462
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
microorganismos utilizava-se também o incenso e ervas aromáticas como o tomilho,
cujas propriedades antioxidantes criavam igualmente uma acção desinfectante sobre
os alimentos armazenados43. De origem animal usava-se o estrume, juntamente com
cinzas de madeira, para depositar o trigo duro ou, até mesmo, para conservação de
algumas frutas como as uvas que deviam ser colocadas em água fervida misturada
com estrume e cinzas vegetais44.
Muitas das técnicas de conservação empreendidas pelos muçulmanos possuem
similaridades com os métodos utilizados pelos romanos45. Contudo, existe uma
maior riqueza e grau de perfeição nos procedimentos seguidos pelos agrónomos
muçulmanos que se deve, em grande parte, ao maior número de espécies e variedades
que eram conservadas e armazenadas. O aperfeiçoamento destas técnicas permitia
que alguns cereais, de que é exemplo o milho, pudessem permanecer armazenados,
em perfeitas condições, até 100 anos46.
Por outro lado, as frutas e legumes eram uma necessidade básica para uma
população cuja alimentação era essencialmente vegetal, sobretudo em meio rural,
onde o consumo de carne, à excepção do porco, não era abundante e onde os produtos
agrários, particularmente os cereais, estavam reservados, fundamentalmente, ao
comércio47. O armazenamento dos cereais e leguminosas tratava-se, deste modo,
de uma medida de tipo económico. Em primeiro lugar, de auto-abastecimento das
comunidades rurais e para poder fazer face a períodos de escassez, não demasiados
infrequentes, e, em segundo, para responder às necessidades da população urbana.
Os numerosos silos descobertos em Alcácer do Sal, quer no espaço da alcáçova,
quer na medina, são o testemunho da riqueza agrícola do seu território, aspecto
enfatizado pelo geógrafo al-Idrisi nos inícios do século XII48, cujo cultivo de cereais
seria abundante, mantendo-se essa tradição nas Idades Média e Moderna, achandose patente nos distintos moinhos hidráulicos destinados à moagem dos cereais
existentes junto às margens do Sado49, mas também pelos largos campos de cultivo
onde aqueles eram semeados e pela existência de um espaço na cidade, situado a
sul, destinado, somente, ao armazenamento daqueles alimentos. Aquelas estruturas,
segundo as fontes islâmicas, deviam situar-se em locais com excepcionais condições
de secura e arejamento, sendo privilegiados os locais orientados a este ou sul, em vez
− Kitāb al-filāha…, pp. 89; 660.
43
MILLÁS VALLICROSA, Josep María – La traducción castellana del ‘Tratado de Agricultura’ de Ibn
Wāfid”. Al-Andalus VIII (1993), pp. 281-332.
44
IBN AL-´AWWĀM − Kitāb al-filāha…, pp. 89; 660.
45
GARCÍA SÁNCHEZ, Expiración − “La conservación de los productos vegetales…”, pp. 275-276.
46
BN AL-´AWWĀM − Kitāb al-filāha…, pp. 89; 660.
47
GARCÍA SÁNCHEZ, Expiración − “La conservación de los productos vegetales…”, pp. 281-282.
48
REI, António − O Gharb Al-Andalus Al-Aqsâ Na Geografia Árabe (séculos III h./IX d.C.–XI h./XVII
d.C.) Lisboa: IEM – Instituto de Estudos Medievais, 2012, p. 130.
49
PEREIRA, Maria Teresa Lopes − Alcácer do Sal na Idade Média. Lisboa: Colibri, 2000, pp. 153-155.
O AR MAZENAMENTO E A GESTÃO DOS R ECURSOS NAS CIDADES DO GHARB AL-ANDALUS
463
dos situados a poente e norte, dado que estariam mais expostos às chuvas e névoas50.
O armazenamento de produtos alimentícios era importante, não só, para
manter a qualidade íntegra dos alimentos durante um determinado período de
tempo, mas também para responder às necessidades da população em períodos de
escassez alimentar, bem como em situações de cercos prolongados. Em 1217, data
da Reconquista Cristã definitiva, Alcácer conseguiu resistir durante dois meses ao
cerco cristão. A razão da sua tomada deveu-se, não à escassez de comida e água, mas
devido à construção de torres de assalto e aos vários projécteis lançados sobre as
muralhas51, o que demonstra que aquela possuía boas reservas alimentares que lhe
possibilitaram resistir durante muito tempo.
3. Considerações finais.
As intervenções arqueológicas ocorridas no interior do castelo permitiram dar
a conhecer um conjunto de estruturas de cronologia islâmica que evidenciam as
técnicas, bem como as capacidades de armazenagem e conservação empreendidas
pelos muçulmanos que habitaram Alcácer do Sal entre séculos VIII e XIII. Os distintos
sistemas de captação e condução de água, assim como os diversos silos encontrados
para armazenamento de bens alimentares, abasteciam a cidade e satisfaziam as
necessidades diárias da população que residia no interior do perímetro amuralhado.
Tal como podemos constatar a construção daquelas estruturas obedecia a um
conjunto de critérios que eram essenciais para uma adequada reserva e conservação
dos elementos que neles eram guardados. Deste modo, a água das chuvas era
conduzida à cisterna existente no interior da alcáçova através de canalizações
subterrâneas, possibilitando, assim, que durante as estações mais secas as populações
se encontrassem providas de água. Para além daquela, a cidade achava-se dotada
igualmente de poços, assim como de uma couraça que permitia o acesso seguro
àquele bem essencial.
Relativamente às estruturas subterrâneas para armazenamento de produtos
alimentares deveriam situar-se em locais com boas condições de ventilação e
arejamento, sendo, ainda, necessário um controlo da temperatura no seu interior
para evitar uma degradação rápida dos alimentos. Para esse efeito, alisavam-se as
paredes dos silos e, por vezes, aquelas eram revestidas com argila ou argamassa,
tendo em vista torná-las impermeáveis, mantendo-se, assim, uma temperatura
térmica favorável à conservação dos bens armazenados.
Todos estes factores conjugados criavam as condições propícias a um adequado
abastecimento da cidade, sobretudo em períodos de escassez alimentar, ou em caso
50
51
IBN LUYŪN − Tratado de Agricultura…, p. 253.
VARANDAS, José – “O assédio a Alcácer”…, p. 389.
464
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
de cercos prolongados ocorridos durante a Reconquista Cristã, mas também dos
mercados onde aqueles produtos eram comercializados, quer no seio do núcleo
urbano, quer exportados para outras regiões, gerando dinamismo e riqueza à urbe
alcacerense, tal como aos seus habitantes.
O AR MAZENAMENTO E A GESTÃO DOS R ECURSOS NAS CIDADES DO GHARB AL-ANDALUS
465
466
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
As estruturas de produção e
armazenamento da vila medieval
de Sesimbra
Rafael Santiago1
Rui Filipe Gil2
Resumo
O Castelo de Sesimbra localiza-se no mais alto monte sobranceiro à vila de
Santiago. As diversas intervenções arqueológicas no castelo levadas a cabo
pela DGEMN, Eduardo da Cunha Serrão, Rafael Monteiro, Octávio da Veiga
Ferreira, Gustavo Marques, Carlos Jorge e Luís Filipe Ferreira, vieram a contribui
com dados pertinentes para este estudo, com foco nas estruturas medievais
de produção e armazenamento. Conhecem-se, de momento, duas estruturas
de produção localizadas perto da porta da Azóia, sendo estas um lagar e uma
estrutura de moagem. Relativamente às estruturas de armazenamento existem
testemunhos de três cisternas e vinte e oito silos, encontrando-se estes últimos,
tanto agrupados, como dispersos pela vila. Com recurso aos testemunhos
arqueológicos e historiográficos, pretende-se a elaboração de um estudo síntese
com o intuito de expor estas estruturas medievais e a sua importância para a
vila de medieval de Sesimbra.
Palavras-chave
Arqueologia; Idade Média; Sesimbra; Estruturas de produção; Estruturas de
armazenamento.
1
Mestrando de Arqueologia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de
Lisboa.
2
Mestrando no curso de Arqueologia na Faculdade de Filosofía y Letras de la Universidad de Granada.
468
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
The production and storage structures in the medieval town
of Sesimbra
Abstract
The Castle of Sesimbra is located in the highest hill over the village of Santiago.
The various archaeological interventions in the castle, carried out by DGEMN,
Eduardo da Cunha Serrão, Rafael Monteiro, Octavio da Veiga Ferreira, Gustavo
Marques, Carlos Jorge and Luís Filipe Ferreira, have contributed with relevant
data to the study of medieval production and storage structures. There are two
production structures in the castle, one of them is a press and the other is a
wind mill, both situated near the Azóia Door. Regarding the storage structures,
there are tree cisterns and a total of twenty-eight silos, either grouped or
scattered throughout the village. As a resource for this investigation, historical
and archaeological evidences will be used to produce an expositive study with
special focus on the medieval ages productive and storage structures in the
village of Sesimbra.
Keywords
Archaeology; Middle Ages; Sesimbra; Production structures; Storage structures.
Introdução.
O Castelo de Sesimbra é um sítio arqueológico de relevância devido à sua localização
e enquadramento para o controle da foz do Tejo e Sado, a par da dimensão do seu
aparelho defensivo. Foi, deste modo, classificado pelo decreto de lei nº136, de 23 de
junho de 1910, como Monumento Nacional.
Durante o Estado Novo, a Direção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais
(DGEMN), levou a cabo grandes obras de restauro e reestruturação de diversos
Monumentos Nacionais, entre os quais o Castelo de Sesimbra em 19433. Muito
embora tenha contribuído com uma vasta coleção fotográfica do castelo, pecou
no sentido em que esta dá apenas relevância ao contraste entre o antes e o depois,
omitindo muitas vezes os procedimentos da intervenção.
3
“O Castelo de Sesimbra”. In Boletim da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais 36 (Dez.
1943). Lisboa: Ministério das Obras Públicas e Comunicações.
AS ESTRUTUR AS DE PRODUÇÃO E AR MAZENAMENTO DA VILA MEDIEVAL DE SESIMBR A
469
No final da década de 50 iniciaram-se os primeiros trabalhos arqueológicos por
Eduardo da Cunha Serrão, juntando-se mais tarde o arquiteto Gustavo Marques e
Rafael Monteiro, que realizaram diversas escavações arqueológicas a título pessoal
no castelo. Das escavações realizadas, por estes, acerca das estruturas de produção e
armazenamento do Castelo de Sesimbra, resultaram apenas duas publicações, onde
se verifica a ausência de estudo de materiais. Dado que os autores destas intervenções
já faleceram, deixaram muita informação inédita em notas, apontamentos, cadernos
de campo e mapas, estando algumas destas fontes na Associação dos Arqueólogos
Portugueses e outras no Arquivo Municipal de Sesimbra.
Surge, neste sentido, a necessidade de compilar a informação produzida
por todos os investigadores, mencionando a bibliografia que a contem. Um dos
problemas levantados pelo facto dos estudos terem sido produzidos por diferentes
investigadores é a discordância entre as análises por estes elaboradas, desconhecendo
ou não recorrendo a trabalhos anteriores. Consequentemente o presente trabalho
procura a sistematização dos dados históricos e arqueológicos, com foco nas
estruturas de produção e armazenamento da vila medieval de Sesimbra.
1. A vila medieval de Sesimbra.
O Castelo de Sesimbra localiza-se na freguesia do Castelo, concelho de Sesimbra
e distrito de Setúbal. O monumento nacional situa-se no monte com cerca de 250
m de altitude, sobranceiro à Vila Marítima de Santiago, sendo parte integrante do
conjunto geológico do maciço calcário da Serra da Arrábida.
Durante a Idade Média o território de Sesimbra foi um importante ponto de
comunicação e controlo do território, estando este fator fortemente relacionado
com a sua inserção na cadeia montanhosa da Arrábida, que se estende desde Setúbal
até ao Cabo Espichel. O Castelo de Sesimbra como hoje o conhecemos encontra-se
edificado no cerro mais alto da região permitindo um preponderante domínio visual
do meio envolvente, tanto marítimo como terrestre4.
Aquando do reinado de D. Sancho I, em 1199, deu-se uma tentativa de
povoamento da região de Sesimbra com recurso a cruzados francos, mas foi apenas
com a atribuição da carta de foral, em 1201, que Sesimbra foi confirmada como vila.
O foral outorgado a Sesimbra seguia o modelo de Évora, atribuindo largos benefícios
fiscais, através dos quais o rei procurava potenciar o crescimento económico e
populacional desta região, o que por sua vez poderá indiciar uma dificuldade de
4
FERREIRA, Luís; GONÇALVES, Luís (eds.) – “O Castelo de Sesimbra: um castelo de fronteira
marítima”. In FERNANDES, Isabel Cristina Ferreira (ed.) – Mil Anos de Fortificações na Península Ibérica e
no Magreb (500-1500). Actas do Simpósio Internacional sobre Castelos. Lisboa: Colibri / Câmara Municipal de
Palmela, 2001, pp. 385-388.
470
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
manutenção de populações nesta zona. Em 1218 D. Afonso II confirmou o foral
outorgado por seu pai à vila de Sesimbra5.
Por sua vez, no reinado de D. Sancho II é realizada a doação tardia à Ordem de
Santiago6, tal doação poderá evidenciar problemas de povoamento e falta de recursos
para garantir a proteção e vigilância da costa.
Sesimbra é alvo de um crescimento notável com o reinado de D. Dinis valendolhe o estatuto de vila sede de concelho7. A formalização do domínio autónomo
português da Ordem de Santiago evidencia os esforços políticos do monarca na
afirmação do Reino no contexto peninsular8, dos quais resultaram intervenções de
construção e alteração em vários dos castelos da ordem, onde se insere o Castelo de
Sesimbra que terá sido edificado no século XIV.
A escavação realizada no interior da alcáçova, coordenada por Susana Oliveira
Jorge, Vítor Oliveira Jorge e Eduardo da Cunha Serrão, permitiu a recuperação de
diversos materiais arqueológicos cuja datação mais recuada corresponde ao século
XIV e a mais recente ao século XVII9. Com esta informação é possível corroborar a
ideia que se pretende propor com este trabalho, apontando para que a edificação do
castelo e cerca muralhada se tenha dado em inícios do século XIV. As características
arquitetónicas tipicamente góticas na alcáçova e sua torre de menagem, juntamente
com os vestígios arqueológicos exumados do mesmo local, levam a crer que as
restantes estruturas abordadas no trabalho localizadas no interior da cerca muralhada
deveriam também ter sido edificadas a partir de inícios do século XIV.
2. As estruturas de armazenamento
Tomando como ponto de partida os testemunhos históricos e arqueológicos acerca
da vila medieval de Sesimbra, é possível identificar a existência de 28 silos, alguns
agrupados enquanto outros se encontram dispersos pela cerca amuralhada. Do
mesmo modo, verifica-se a existência de três cisternas que, em conjunto com os silos,
abasteciam a população do Castelo de Sesimbra.
FERREIRA, Luís; GONÇALVES, Luís (eds.) – “O Castelo de Sesimbra: um castelo de fronteira
marítima…”, pp. 385-388.
6
FERREIRA, Luís; GONÇALVES, Luís (eds.) – “O Castelo de Sesimbra: um castelo de fronteira
marítima…”, pp. 385-388.
7
CRÓNICAS de Rui de Pina. Introd. e rev. Maria Lopes de Almeida. Porto: Lello & irmão, 1977.
8
SOUSA, Bernardo de Vasconcelos e – “O Reino de Portugal (séculos XIII–XIV)”. In RAMOS, Rui;
SOUSA, Bernardo de Vasconcelos e; MONTEIRO, Nuno Gonçalo (eds.) – História de Portugal. 15ª ed. Lisboa:
Esfera dos Livros, 2009, pp. 103-131.
9
OLIVEIRA, Susana; JORGE, Vítor Oliveira e; SERRÃO, Eduardo da Cunha – “Castelo de Sesimbra:
relatório de uma sondagem preliminar realizada na área da antiga casa de habitação do alcaide-mor (Princípios
do séc. XVI)”. Setúbal Arqueológic I. (1975), pp. 181-225.
5
AS ESTRUTUR AS DE PRODUÇÃO E AR MAZENAMENTO DA VILA MEDIEVAL DE SESIMBR A
471
2.1 Silos.
Os trabalhos arqueológicos desenvolvidos pela DGEMN, Eduardo da Cunha Serrão
e Rafael Monteiro apontam para a existência de cinco núcleos de estruturas negativas
de armazenamento. Esta informação consta na cartografia que o arqueólogo Eduardo
da Cunha Serrão produziu na década de 1950, na qual identifica alguns dos núcleos
de silos com ícones numerados e uma legenda associada (Fig. 1). Infelizmente,
destes cinco conjuntos, apenas dois se preservaram até à data. É importante referir
que dentro da informação compilada não é possível individualizar o conteúdo de
cada silo sendo os achados referidos atribuídos a cada conjunto.
O primeiro núcleo (S1), localiza-se perto da Porta da Azóia e é composto
por 12 silos que se preservaram até à atualidade (Fig. 2). Estas estruturas negativas
encontram-se dispersas e desalinhadas não parecendo ter havido especial cuidado
com a métrica durante sua abertura e implantação, podendo este fator apontar para
um possível aproveitamento da morfologia do afloramento rochoso. Levanta-se então
a hipótese de que estas estruturas tenham surgido progressivamente, acomodandose conforme a necessidade de uma maior capacidade de armazenamento que ia
surgindo. Esta condição pode indiciar o crescimento de que a vila de Sesimbra
sofreu no período baixo-medieval. Tal hipótese pode relacionar-se também com um
aumento da importação com o objetivo de se acumularem excedentes suficientes
para manter o castelo e cerca muralhada abastecidos em caso de cercos prolongados.
Quanto à sua morfologia não se verifica qualquer coesão entre os silos, o que pode
corroborar a hipótese de que estes não tenham sido abertos num único momento, mas
estando em funcionamento entre os séculos XIV e XV consoante surgia necessidade.
Da escavação realizada nestas estruturas resultaram materiais diversos: vasta
quantidade de cerâmica, nomeadamente cerâmica de cozinha e de mesa, pesos
de pesca, etc.; numismas e espólio faunístico. Alguns destes materiais integraram
o acervo do antigo Museu Arqueológico de Sesimbra e foi-lhes atribuída uma
cronologia medieval, apesar da heterogeneidade do espólio10. Segundo os autores
da intervenção arqueológica, os numismas seriam maioritariamente da 1ª Dinastia,
enquanto que apenas um dos exemplares pertenceria à 2ª Dinastia, nomeadamente
ao reinado de D. Duarte. Eduardo da Cunha Serrão determinou, na altura, que
estes silos estariam associados a estruturas habitacionais11. Não obstante, a hipótese
que se pretende evidenciar com este estudo, é a de que estas estruturas estivessem
possivelmente associadas a um moinho adjacente, tratando-se por isso de um
10
MONTEIRO, Rafael; FERREIRA, Octávio da Veiga – “Necrópole Púnica? em Sesimbra”. Arquivo de
Beja, Boletim – Estudos – Arquivo XXV-XXVII (1968-70), pp. 3-15.
11
“Exposição – O Castelo de Sesimbra”. In Clube Sesimbrense (06 Out. 1989). Sesimbra: Câmara
Municipal de Sesimbra / DGEMN / IPPC.
472
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Fig. 1 – Mapa do Castelo de Sesimbra (detalhe), desenhado pelo arqueólogo
Eduardo da Cunha Serrão e produzido na década de 1950, presente no seu Acervo Pessoal
no Arquivo da Associação dos Arqueólogos Portugueses.
Fig. 2 – Mapa do Castelo de Sesimbra medieval com indicação da localização dos silos,
cisternas, lagar e moinho, com a respetiva legenda.
AS ESTRUTUR AS DE PRODUÇÃO E AR MAZENAMENTO DA VILA MEDIEVAL DE SESIMBR A
473
armazém que se inseria numa cadeia de produção.
A proximidade dos silos com uma estrutura de produção leva a que se questione
qual seria a entidade proprietária e encarregue da sua gestão. Sendo que o castelo
estava sob o domínio da Ordem de Santiago é possível que estas estruturas estivessem
unicamente sob o seu domínio. No entanto, é também possível supor-se que a gestão
dos silos pudesse estar sob a alçada dos Homens Bons do Concelho, encarregando-se
estes da sua gestão e utilização. Tratando-se de doze silos, tão próximos entre si e da
estrutura de moagem, leva a crer que poderiam ser parte integrante de uma cadeia de
produção, ao invés de se associarem a estruturas habitacionais.
O segundo núcleo de silos (S2) situava-se se entre as traseiras da Igreja de Santa
Maria do Castelo e as “casernas”, sendo composto por um total de 10 estruturas
negativas (Fig. 2). Estas estruturas encontravam-se alinhadas entre si e paralelas
à cerca muralhada, na vertente Sul. Denote-se, no entanto, que havia um espaço
com cerca de 5 metros entre o conjunto de silos, estando sete destes separados dos
restantes três12. Estas estruturas foram identificadas na década de 1940 durante a
abertura de uma pedreira nesse preciso local, aquando das obras de restauro no
castelo pela DGEMN.13. Não se preservam quaisquer dos materiais extraídos da
escavação e infelizmente as estruturas acabaram por se degradar totalmente. Os
únicos testemunhos originais que se preservam foram as fotografias disponíveis nos
boletins da DGEMN. Surge a menção de alguns dos materiais exumados num texto
publicado por Rafael Monteiro, em 1970 na revista do Arquivo de Beja, assim como
a identificação das estruturas e do espólio recolhido, em apontamentos no caderno
de campo de Eduardo da Cunha Serrão, que registou textual e graficamente toda
a informação resultante da intervenção14. Deve-se ter em consideração que estes
últimos dois registos foram efetuados a partir de testemunhos orais. A intervenção
no castelo, realizada pela DGEMN nos anos 40, identificou estas estruturas negativas
como silos, hipótese esta partilhada pelo arqueólogo Eduardo da Cunha Serrão.
Durante os seus estudos, na década posterior à sua descoberta, o investigador registou
e identificou o espólio que compunha o conteúdo destes silos. Contudo, outros
investigadores, como Rafael Monteiro e Octávio da Veiga Ferreira, consideraram que
estas estruturas fossem na verdade uma necrópole púnica, com base nas tipologias
dos materiais encontrados, tal como pela presença de enterramentos dispostos em
“posição fetal”15. Eduardo da Cunha Serrão deixou em 1952 registadas textual e
12
Lisboa, Acervo Pessoal de Eduardo da Cunha Serrão no Arquivo da Associação dos Arqueólogos
Portugueses, OFM, Castelo de Sesimbra, Apontamentos Manuscritos de Eduardo da Cunha Serrão, Campanha
de Setembro 1955.
13
Lisboa, Acervo Pessoal de Eduardo da Cunha Serrão no Arquivo da Associação dos Arqueólogos
Portugueses...
14
Lisboa, Acervo Pessoal de Eduardo da Cunha Serrão no Arquivo da Associação dos Arqueólogos
Portugueses...
15
MONTEIRO, Rafael; FERREIRA, Octávio da Veiga – “Necrópole Púnica? em Sesimbra…”, pp. 3-15.
474
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
graficamente, informações que obteve acerca das estruturas e espólio encontrado,
acreditando e defendendo a tese de que seriam certamente silos e não sepulturas16. A
dimensão, diversidade morfológica e o espólio cronologicamente amplo recuperado
das estruturas indica que, de facto, se tratem de silos medievais/modernos e não de
sepulturas pertencentes a uma necrópole púnica, como chegou a ser defendido por
Rafael Monteiro e outros investigadores.
Entre o espólio recuperado estão: moedas; um estoque de ferro; um punhal
de ferro; dedais em cobre; anzois de ferro; uma imensa quantidade de materiais
cerâmicos, entre os quais uma lucerna de dois bicos, fundos de mealheiro, taças e
peças de jogo. Este espólio seria diversificado tanto na tipologia como na cronologia,
chegando ao período moderno17, pela presença e tipologia de pratos e mealheiros.
Consta que todos os objetos cerâmicos terão sido arremessados para o exterior
das muralhas, restando apenas a lucerna, que integrou a coleção do Museu de
Arqueologia do Castelo. As moedas ficaram sob a custódia de particulares e não se
voltaram a reaver. O punhal e o estoque de ferro integraram também a coleção do
Museu, contudo, o estoque foi roubado e o punhal degradou-se devido às condições
de conservação. Quanto ao espólio osteológico consta que terá sido mandado
enterrar no cemitério do castelo18.
O terceiro núcleo de silos (S3) localiza-se próximo da Porta do Sol e é composto
por 4 estruturas negativas preservadas até hoje (Fig. 2). Estes silos são possivelmente
contemporâneos entre si, dado o seu alinhamento e a morfologia idêntica. Os silos
foram escavados pela DGEMN não sendo documentada a sua abertura, sendo antes
do final das obras novamente cobertos. Foram reescavados no início da década de
80 por Carlos Jorge e João Pinhal, que documentaram um enchimento pobre sem
materiais arqueológicos. Os silos estariam possivelmente relacionados com uma
loja ou um armazém comunitário, devido à proximidade com a via principal e com
a Porta do Sol, bem como ao facto de estarem implantados num local económica
e comercialmente ativo, devido à presença do açougue e das casernas. A hipótese
surge também devido à proximidade destes com a cisterna (C1), que poderia estar
associada aos silos. Por se tratarem, possivelmente, de estruturas de cariz comunitário,
poderá fazer sentido que estas estejam sob a gestão dos Homens Bons do Concelho.
Contudo, esta leitura é apenas especulativa.
O quarto silo (S4) localizava-se à esquerda da Igreja de Santa Maria do Castelo
(Fig. 2). Infelizmente hoje não há quaisquer vestígios desta estrutura a não ser duas
fotografias presentes nos arquivos fotográfico da DGEMN, que acabam por não
16
Lisboa, Acervo Pessoal de Eduardo da Cunha Serrão no Arquivo da Associação dos Arqueólogos
Portugueses...
17
Lisboa, Acervo Pessoal de Eduardo da Cunha Serrão no Arquivo da Associação dos Arqueólogos
Portugueses...
18
MONTEIRO, Rafael; FERREIRA, Octávio da Veiga – “Necrópole Púnica? em Sesimbra…”, pp. 3-15.
AS ESTRUTUR AS DE PRODUÇÃO E AR MAZENAMENTO DA VILA MEDIEVAL DE SESIMBR A
475
fornecer nenhum contributo para a sua interpretação. Pela legenda das imagens é
possível determinar que o silo terá sido encontrado, escavado e restaurado durante os
trabalhos efetuados pela DGEMN entre 1943 e 1944, porém, não havendo qualquer
menção acerca do seu conteúdo. Durante esta intervenção o silo foi identificado
como uma estrutura medieval, tendo este sido o motivo que levou ao seu restauro.
Contudo, tratar-se de um silo medieval é uma hipótese por comprovar, dado que
não é possível apontar para uma cronologia sem que se analise a estrutura e o espólio
associado, que já hoje não existem.
O quinto silo (S5) localiza-se nas traseiras da Igreja de Santa Maria do Castelo
(Fig. 2). Segundo consta este silo terá sido alvo de escavação, da qual se recuperou
um numisma de D. Fernando que foi datado de 1370 a 1372, sendo o principal
elemento para atribuição cronológica a esta estrutura. Não há referência a qualquer
outro espólio nem à localização exata deste silo, impossibilitando o seu estudo e
interpretação. Diz-se que estaria associado a uma estrutura habitacional19, algo que
poderá fazer sentido por se tratar de um silo isolado e pela sua proximidade a muros
de estruturas ainda hoje identificáveis.
2.2. Cisternas.
No interior da cerca muralhada não há vestígios de fontes ou poços, sendo a fonte
de água potável mais próxima a “fonte esquerda”20 localizada a cerca de 1 Km do
castelo. Neste cenário urge a necessidade da coleta de água no interior da cerca
muralhada, tendo sido por isso construídas cisternas com sistemas de recolha de
águas pluviais. Esta recolha far-se-ia por sistemas implementados nos telhados dos
edifícios, à semelhança do exemplo da cisterna (S3) que funcionou até meados do
século XX. De acordo com os testemunhos arqueológicos existem 3 cisternas no
Castelo de Sesimbra. Os textos publicados por outros investigadores indicam que
todas as cisternas são medievais. Com o presente estudo pretende-se propor a tese
de que apenas 2 destas sejam de facto medievais, enquanto a terceira seria uma
construção moderna.
A primeira cisterna (C1) do conjunto encontra-se no interior da “Casa da
Vereação” mais corretamente denominada “Casa da Cisterna”, situada perto da
Porta do Sol no lado Nascente do castelo (Fig. 2). Esta estrutura foi aberta durante
os trabalhos desenvolvidos pela DGEMN na década de 40, embora não haja
testemunhos desta intervenção21. Foi novamente intervencionada por Luís Pinhal
“Exposição – O Castelo de Sesimbra…”
Lisboa, Arquivo do Museu Nacional de Arqueologia. OFM, Apontamentos manuscritos do Acervo
Pessoal de Gustavo Marques, [s. d.].
21
“O Castelo de Sesimbra”. Boletim da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais 36..., p. 22.
19
20
476
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Ferreira no início do século XXI. O facto de a cisterna não conter água no seu
interior possibilitou a sua limpeza e posterior estudo, resultando desta intervenção
fotografias do seu interior, desenhos do seu corte de perfil (Fig.3) e o registo das
dimensões da estrutura, bem como medidas e capacidade22. A intervenção permitiu
a datação relativa da cisterna, que foi identificada como uma estrutura do período
medieval, construída entre os séculos XIII e XIV23. A hipótese de que tivesse um
sistema de recolha de águas pluviais implementado possivelmente no telhado do
edifício que a cobre parece favorável, devido à inexistência de água no interior da
cisterna, quando aberta por Luís Ferreira.
Fig. 3 – Corte de perfil da cisterna da “Casa da Cisterna”, da autoria de Sílvia Louro, do Núcleo de
Espeleologia da Costa Azul, presente no Relatório dos Trabalhos Arqueológicos de 1999
no Castelo de Sesimbra, no Arquivo da Biblioteca de Arqueologia da Ajuda.
FERREIRA, Luís – Da Pedra ao Acorde: o castelo de Sesimbra. Lisboa: Sextante Editora, 2009, p.58.
FERREIRA, Luís; GONÇALVES, Luís (ed.) – “O Castelo de Sesimbra: Um castelo de fronteira
marítima…”, pp. 385-388.
22
23
AS ESTRUTUR AS DE PRODUÇÃO E AR MAZENAMENTO DA VILA MEDIEVAL DE SESIMBR A
477
Tendo esta cisterna sido construída, tal como o grupo (S3) de silos, no seio de
um espaço económica e socialmente ativo, torna plausível a hipótese de que esta se
trate de uma estrutura pública, gerida pelos Homens Bons do Concelho. Serviria
possivelmente para abastecimento para a população, para açougue24 e para as
restantes estruturas de comércio e transformação que lhe estariam próximas. Devido
aos elementos identificados na sua envolvente, acreditamos que a data de construção
da cisterna seja datada entre o século XIV a XV, contrariando a tese anterior.
Propomos que a cisterna (C1) se trate do único reservatório de água comunitário
no interior da vila de Sesimbra em período medieval, dado que a cisterna (C2)
se encontra no interior da alcáçova e a partilha de água com a população seria
condicionada pela vontade do alcaide.
A segunda cisterna (C2), tal como a anterior, foi identificada como uma estrutura
baixo-medieval25 (Fig. 2). Tratando-se de uma estrutura construída no interior da
alcáçova, parece fazer todo o sentido que seja contemporânea à sua edificação, no
século XIV. Esta ideia é corroborada pelo facto de vários castelos terem sido alvo de
obras para a construção de estruturas de armazenamento na Baixa Idade Média, de
modo a que a população pudesse subsistir em caso de cercos prolongados26. Outro
dos motivos, que apoia a hipótese, é a incapacidade de se obter água em qualquer
ponto do castelo, a não ser por via de um sistema de recolha de águas pluviais. Assim,
com a construção da alcáçova no século XIV e a sua consequente ocupação, surge a
necessidade de criar um reservatório para o abastecimento da elite que aí se viria a
estabelecer. Por ter sido construída no castelo a cisterna estaria sob o controlo direto
do alcaide, ou seja, pertencia ao poder nobiliárquico que faria gestão do seu consumo.
A cisterna foi redescoberta durante as obras de nivelamento do terreno da
alcáçova, pela DGEMN, sendo consequentemente escavada, limpa e selada27. Desta
intervenção resultaram registos gráficos, nomeadamente plantas e cortes de perfil,
não havendo, no entanto, qualquer registo relativo aos materiais que estariam no seu
interior. Os perfis e planta da estrutura permitiram a comparação com a que existe na
“Casa da Cisterna” (Fig. 3), aparentando uma arquitetura semelhante.
A terceira cisterna (C3) localiza-se perto da Torre Poente (Fig. 2) e foi também
considerada, pelos anteriores investigadores, como uma estrutura medieval28. No
entanto, o presente estudo propõe a hipótese desta cisterna se tratar de uma construção
24
FERREIRA, Luís – “Castelo de Sesimbra: fenómeno de fronteira e povoamento do Portugal medieval”.
In Patrimonia: identidade, ciências sociais e fruição cultural. Cascais: Patrimonia Associação de Projectos
culturais e Formação Turística, 2001, pp. 42-48.
25
“Exposição – O Castelo de Sesimbra” ...
26
SOUSA, Bernardo de Vasconcelos e – “A monarquia entre a guerra civil e a consolidação (século
XIII)”. In RAMOS, Rui; SOUSA, Bernardo de Vasconcelos e; MONTEIRO, Nuno Gonçalo (eds.) – História de
Portugal.15ª ed. Lisboa: Esfera dos Livros, 2009, pp. 49-71.
27
“O Castelo de Sesimbra”. Boletim da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais 36..., p. 22.
28
“Exposição – O Castelo de Sesimbra…”
478
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
moderna, dado o sistema de captação de água pluviais da mesma se localizar no
telhado da igreja. ”(...)Na base da cruz que remata a empenha (...)” encontra-se a data
169829, que corresponde às obras de remodelação da Igreja. Sugere-se, neste sentido, a
proposta que esta intervenção tenha servido também para a construção da cisterna e
do sistema de captação de água para usufruto do pároco e suas clientelas, que seriam
os últimos residentes do castelo no final da Idade Moderna, num momento em que
as restantes cisternas já estariam provavelmente desativadas. Sabe-se por registo oral
que esta estrutura terá estado em funcionamento até meados do século XX, havendo
inclusive um pequeno tanque que utilizava água da cisterna para lavagem de roupa.
Contudo a estrutura foi perdendo utilidade a partir do momento em que deixou de
haver população no interior da cerca. Foi através da análise do funcionamento desta
cisterna que se percebeu o sistema de captação de águas pluviais das restantes.
3. As estruturas de produção.
O lagar é a única estrutura de produção arqueologicamente verificada, registada e
documentada, através dos trabalhos de Eduardo da Cunha Serrão30. Não obstante,
é possível que existisse também um moinho no interior da cerca muralhada. Esta
estrutura foi registada graficamente em dois documentos históricos.
3.1 Lagar.
A intervenção arqueológica realizada em 1955 junto ao troço Noroeste da cerca
muralhada, junto da Porta da Azóia, realizada por Eduardo da Cunha Serrão, deixou
a descoberto o lagar (L) (Fig. 2). Adjacentes ao engenho, identificaram-se também
algumas estruturas, possivelmente relacionadas com a cadeia produtiva do mesmo.
O lagar e as estruturas que lhe estavam associadas foram considerados medievais tal
como os materiais recuperados do seu interior e na área envolvente31.
Entre o espólio resultante da escavação estava um conjunto de numismas
portugueses com grande dispersão cronológica, embora a sua grande maioria
tenha sido atribuída ao período medieval. A moeda mais antiga data do século XII
enquanto a mais recente nos remete para o século XVI32.
“Exposição – O Castelo de Sesimbra…”
SERRÃO, Eduardo da Cunha; VICENTE, Prescott – Escavações em Sesimbra, Parede e Olelas:
métodos empregados, Vol. I. Lisboa: Congresso Nacional de Arqueologia, 1958.
31
SERRÃO, Eduardo da Cunha; VICENTE, Prescott – Escavações em Sesimbra, Parede e Olelas:
métodos empregados...
32
SERRÃO, Eduardo da Cunha; VICENTE, Prescott – Escavações em Sesimbra, Parede e Olelas:
métodos empregados...
29
30
AS ESTRUTUR AS DE PRODUÇÃO E AR MAZENAMENTO DA VILA MEDIEVAL DE SESIMBR A
479
3.2. Moinho.
O moinho (M), ao contrário das restantes estruturas abordadas neste estudo, tem
como únicos testemunhos duas gravuras onde está representado. Uma destas é o
mapa de um levantamento de estruturas de moagem realizado em 1881, que pertence
à coleção da “Direcção Geral de Trabalhos Geodésicos do Reino” (Fig.4). Segundo
este documento a estrutura de moagem estaria situada a Sul da entrada principal da
Igreja de Santa Maria do Castelo, próximo da porta da Azóia e do núcleo (S1) de silos
(Fig. 2). O outro testemunho que aponta para a existência de um moinho no interior
do Castelo de Sesimbra é uma gravura do século XVII (Fig. 5) onde está visivelmente
representada uma estrutura de moagem à esquerda da Torre Sineira da Igreja no
interior da cerca muralhada. Esta estrutura seria idêntica a outros moinhos que se
encontram em montes circundantes, também representados na mesma gravura33.
O local apontado para a implementação do moinho é relativamente elevado
estando num ponto favorável para receber a ação do vento. Atualmente ainda se
verificam alguns vestígios de alicerces de estruturas nesse local, bem como uma
possível soleira de porta adjacente ao espaço onde se encontram os silos do núcleo
(S1). Por se tratar de um conjunto considerável de silos e pela proximidade com
a estrutura de produção, propõe-se uma possível correlação destes dois elementos.
Assim, seria possível que se tratasse de um moinho e seu respetivo armazém,
composto por 12 silos.
Para tornar proveitosa a existência da estrutura de moagem no interior da cerca
muralhada, talvez faça sentido ter existido um forno, centro produtor, que utilizasse
o cereal transformado no moinho. Infelizmente não há outros vestígios materiais
para que seja possível aprofundar esta hipótese.
Considerações finais.
Em suma, o presente trabalho compilou todas as informações historiográficas e
arqueológicas referentes às estruturas de armazenamento e produção do Castelo de
Sesimbra, tentando completar, clarificar e divulgar a informação sobre as estruturas
existentes, inéditas e/ou desaparecidas.
Os trabalhos realizados pela DGEMN, Eduardo da Cunha Serrão, Rafael
Monteiro, Octávio da Veiga Ferreira, Gustavo Marques, Carlos Jorge e Luís Filipe
Ferreira são as principais fontes de informação sobre a temática. Na análise e correlação
dos documentos recolhidos, embora se tenham verificado contradições e falhas entre
33
DESENHOS e plantas de todas as praças do Reyno de Portugal, Pello Tenente General Nicolao de
Langrez Francez em 1661 que serviu na guerra da Acclamação. Dir. Cristóvão Aires Sepúlveda. Lisboa:
Biblioteca Nacional, 1941.
480
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Fig. 4 – Gravura de Sesimbra, pertencente à coleção da “Direcção Geral de Trabalhos Geodésicos
do Reino”, em 1881, cedido pela Divisão da Cultura do Arquivo Municipal de Sesimbra.
Fig. 5 – Gravura da “enseada de Sesimbra” presente na obra Desenhos e plantas de todas as praças
do Reyno de Portugal, desenhada pelo Tenente General Nicolao de Langrez Francez em 1661.
AS ESTRUTUR AS DE PRODUÇÃO E AR MAZENAMENTO DA VILA MEDIEVAL DE SESIMBR A
481
as interpretações propostas pelos diferentes autores, permitiu a construção de uma
visão detalhada acerca das estruturas de produção e armazenamento da vila medieval
de Sesimbra.
Os silos são estruturas elementares de armazenamento durante a Idade Média
que permitiam preservar os cereais e frutos secos durante o ano após a sua colheita.
Quanto às cisternas, visto a inexistência de fontes de água potável no Castelo, o
aproveitamento de água pluvial apresenta-se como uma resposta às necessidades
básicas da população. As estruturas de armazenamento tornam-se assim elementos
essenciais para a subsistência dos habitantes do castelo, especialmente em caso
de cerco. As estruturas como o lagar e o moinho, localizadas no interior da cerca
muralhada, por um lado torna a vila autossuficiente, em termos produtivos, não
dependendo das imediações para obtenção de farinha ou azeite, e por outro lado
facilita o controlo das elites sobre a produção destes produtos essenciais (claro
estando dependente do acesso à matéria prima, a azeitona e o cereal).
Referente às estruturas de armazenamento, os 28 silos e 3 cisternas, datadas do
século XIV até ao século XVII, apesar de não se encontrarem em funcionamento ao
mesmo tempo, não deixam de ser um reflexo da capacidade económica e do efetivo
populacional que a vila medieval alcançou antes da outorga da carta de foral à Povoa
da Ribeira de Sesimbra, (que por sua vez, tomou o papel como vila predominante na
região a partir do século XVI). A presença de estruturas de produção como o lagar
e moinho dentro do recinto amuralhado são de especial interesse mostrando uma
proximidade da vila medieval com o mundo rural circundante. Por sua vez, a cidade
adquire uma dualidade como centro de produção e de consumo. É interessante
verificar que ambos os pólos se encontram em zonas opostas da vila muralhada, um
espaço de produção junto à porta da Azoia e um espaço de comércio junto à Porta
do Sol. O primeiro evidencia um contacto direto com o mundo rural e o segundo
espaço de consumo e comércio com contacto direto com os mercados de internos
do concelho e a póvoa da Ribeira de Sesimbra, meio de ligação a outros pontos
do Reino por via marítima. As hipóteses de trabalho apresentadas neste estudo só
poderão ser validadas no momento em que surjam novos dados arqueológicos ou
historiográficos.
482
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Os mercadores e os mesteres
na paisagem urbana do século XV:
o contributo da documentação
notarial vimaranense
André Moutinho Rodrigues1
Resumo
Os processos logísticos e comerciais dos bens que alimentavam as cidades e vilas
portuguesas durante a Idade Média assumiam uma importância fundamental
– eram o garante da sobrevivência, bem-estar e tranquilidade social das
populações urbanas. O bom funcionamento e a eficácia das estruturas que
asseguravam o aprovisionamento dos centros populacionais era garantido por
um conjunto multifacetado de homens, técnicas e espaços que se confundiam
entre a paisagem urbana. Este estudo de caso procura demonstrar o potencial
da documentação notarial, enquanto fonte para recolha e interpretação de
testemunhos referentes aos espaços e aos agentes do abastecimento urbano.
Uma análise desta documentação, proveniente da Colegiada de Santa Maria
de Guimarães de meados do século XV, permitiu, por um lado, identificar e
relacionar os homens (mesteirais e mercadores) e os espaços (praças e ruas) e,
por outro, obter indícios sobre a organização dos mesteres e o património dos
mesteirais, protagonistas do abastecimento deste burgo medieval.
Palavras-chave
Mesteres; Mercadores; Guimarães; Paisagem urbana; documentação notarial;
1
Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
484
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Merchants and craftsmen in the urban landscape of the 15th century:
the contribution of notary documentation from Guimarães
Abstract
The logistical and commercial processes of the goods that fed Portuguese cities
and towns during the Middle Ages were of fundamental importance – they
guaranteed the survival, well-being and social stability of urban populations.
The proper functioning and effectiveness of the structures that secured the
provision of population centers was ensured by a multifaceted set of men,
techniques and spaces that blended into the urban landscape. This case study
seeks to demonstrate the potential of notary documentation as a source for
collecting and interpreting evidences concerning spaces and urban supply
agents. An analysis of this documentation from the Colegiada de Santa Maria
de Guimarães, from the mid-15th century, allowed, on the one hand, to identify
and relate men (craftsmen and merchants) and spaces (squares and streets) and
on the other, to obtain clues on the organization of the crafts and the patrimony
of the craftsmen, protagonists of the supply of this medieval borough.
Keywords
Crafts; Merchants; Guimarães; Urban landscape; Notarized documents.
1. Introdução.
Os vestígios deixados pelas mulheres e homens responsáveis pelos processos de
produção, distribuição e comercialização que compunham o abastecimento das
vilas e cidades medievais são escassos ou ainda mal conhecidos. Para a realidade
medieval portuguesa, quase não dispomos de fontes directas que permitam o estudo
de mesteirais e de mercadores2. Perderam-se os documentos ligados à realidade dos
mesteres, como livros de fiscalidade, listas de artesãos e contratos, de encomenda
ou de aprendizagem. De igual modo, para o estudo dos protagonistas do comércio,
os mercadores, são reduzidas as informações de que dispomos, sendo poucos os
contratos ou os livros de contas existentes3.
2
MELO, Arnaldo Sousa – Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média: o Porto, c.1320-c.1415.
Braga: Universidade do Minho, 2009. Dissertação de doutoramento. Vol.1, p. 48.
3
SEQUEIRA, Joana; MELO, Arnaldo Sousa – “A mulher na produção têxtil portuguesa tardomedieval”. Medievalista 11 (2012), p. 4.
OS MERCADOR ES E OS MESTER ES NA PAISAGEM URBANA DO SÉCULO XV
485
As fontes que permitiriam o estudo das estruturas profissionais e da organização
do trabalho também não chegaram até nós. Documentos normativos ou estatutários
acerca das actividades económicas desenvolvidas por artesãos e comerciantes,
bem como documentos acerca das confrarias em que se associavam, são raros ou
inexistentes, sobretudo para o período anterior a meados do século XV4.
Os estudos dedicados aos vários indivíduos e actividades que asseguravam a
vitalidade económica de um centro urbano, na Idade Média portuguesa, recorrem,
frequentemente, dadas as lacunas documentais assinaladas, a fontes indirectas. A sua
presença na documentação e as informações que ela nos transmite são assim, quase
sempre, vestigiais e filtradas, talvez inconscientemente, pelos agentes produtores da
escrita.
Apesar destas limitações, ultimamente têm sido desenvolvidos em Portugal
estudos sobre os mesteres5 e o impacto da sua actividade no espaço urbano6, a par de
outros acerca de mercadores7, feiras8, produção artesanal9. Paralelamente, é possível
4
MELO, Arnaldo Sousa – Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média: o Porto, c.1320-c.1415...,
p. 48.
5
COELHO, Maria Helena da Cruz – “O Trabalho no Portugal Medievo”. In Actas dos V Cursos
internacionais de verão de Cascais, Vol.1. Cascais: Câmara Municipal de Cascais, 1999, pp. 75-91; MELO,
Arnaldo Sousa – “A organização dos mesteres no Porto em tempos manuelinos: entre mudanças e
permanências”. In III Congresso Histórico de Guimarães, D. Manuel e a sua Época, Vol. III. Guimarães:
Câmara Municipal de Guimarães, 2004, pp. 79-100; MELO, Arnaldo Sousa – Trabalho e Produção em Portugal
na Idade Média: o Porto, c.1320-c.1415...; MELO, Arnaldo Sousa – “Salaire et salariat au Portugal au Moyen
Âge”. In BECK, Patrice; BERNARDI, Philippe; FELLER, Laurent (dirs.) – Rémunérer le travail au Moyen Âge.
Pour une histoire sociale du salariat. Paris: Ed. Picard, 2014, pp. 62-77.
6
RIBEIRO, Maria do Carmo; MELO, Arnaldo Sousa – “A influência das atividades económicas na
organização da cidade medieval portuguesa”. In Evolução da paisagem urbana: sociedade e economia. Braga:
CITCEM, 2012, pp. 145-172.
7
FREITAS, Isabel Vaz de – Mercadores entre Portugal e Castela na Idade Média. Gijón: Ediciones Trea,
2006; DOMINGUEZ, Rodrigo da Costa – Mercadores e banqueiros: sociedade e economia no Portugal dos
séculos XIV e XV. Brasília: Interlândia, 2009; CARDOSO, Ana Clarinda – Os livros de contas do mercador
Michele da Colle (1462-63): do registo contabilístico à atividade comercial e financeira na praça de Lisboa. Porto:
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2016. Dissertação de Mestrado; MOUTA, Fernando Jorge Cruz
– João Martins Ferreira, Mercador-Cavaleiro. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2017.
Dissertação de Mestrado; CARDOSO, Ana Clarinda – “O peso dos impostos na atividade de um mercador
pisano em Lisboa no século XV”. População e Sociedade 31 (Jun. 2019), pp. 57-68.
8
RAU, Virgínia – Feiras Medievais Portuguesas: subsídios para o seu estudo. Lisboa: Editorial
Presença, 1982; COELHO, Maria Helena da Cruz – A Feira de Coimbra no contexto das feiras medievais
portuguesas. Coimbra: Inatel, 1992; COELHO, Maria Helena da Cruz – “As Feiras em tempos Medievais”.
In Actas do 3º Encontro de História. Vectores de Desenvolvimento Económico: as feiras. Da Idade Média à
Época Contemporânea. Vila do Conde: Câmara Municipal, 2005, pp.13-30; GOMES, Saúl António – “As feiras
e as Indústrias Rurais no Reino de Portugal”. In ESPINACH, Germán Navarro; VILLANUEVA MORTE,
Concepción (coords.) – Industrias y mercados rurales en los Reinos Hispánicos (siglos XIII-XV). Murcia:
Sociedade Española de Estudios Medievales, 2017, pp. 17-35; CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal
Medieval (1125-1521): Evolução, Organização e Articulação. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do
Porto, 2019. Dissertação de Mestrado.
9
SILVEIRA, Cláudia – “O espaço peri-urbano de Setúbal na Baixa Idade Média: produções e estruturas
produtivas”. In La Ciudad Medieval y su influencia territorial. Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 2007,
pp. 161-180; MELO, Arnaldo Sousa; RIBEIRO, Maria do Carmo – “La mobilité des artistes et des artisans
de la construction dans les chantiers portugais au Moyen Âge: apports pour l’étude des Biscaïens”. In Les
Transferts artistiques dans l’Europe gothique. Repenser la circulation des artistes, des oeuvres, des thèmes et des
486
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
contar com algumas investigações que procuram averiguar o grau da participação
feminina nos labores produtivos e comerciais10. Mesmo com estes novos caminhos
de investigação, que despertaram o interesse de vários investigadores nacionais,
sendo que referimos apenas alguns dos trabalhos mais recentes dentro da tradição
historiográfica destes temas, o panorama nacional tem ainda muito espaço para
crescer. Pareceu-nos, por isso, oportuno reflectir sobre alguns dos aspectos que temos
vindo a referir, utilizando para tal os instrumentos notariais vimarenenses de meados
do século XV, com o objectivo de contribuir para o conhecimento existente sobre a
presença de mesteirais e de mercadores na documentação medieval portuguesa.
Os elementos recolhidos na investigação que temos vindo a efectuar relativos
a informações sobre mesteres e mercadores, bem como sobre espaços onde eles
habitavam e/ou trabalhavam, são provenientes do fundo da Colegiada de Santa
Maria da Oliveira de Guimarães, referentes ao século XV. Nesta primeira fase, foram
seleccionados, como fonte, os maços 44 a 52 dos documentos particulares daquela
colecção, correspondentes, grosso modo, ao final do reinado de D. João I e à regência
do Infante D. Pedro. Como seria de esperar, as referências aos artesãos e aos homens
de comércio encontram-se em actos, nos quais eram os principais intervenientes ou
em que apareciam como testemunhas.
Esta documentação, composta, na sua grande maioria, por prazos e contratos
de arrendamento, revela-se desafiante aos nossos olhos, pela manifesta repetição
dos formulários e das informações contidas no texto. A análise permitiu a selecção
de alguns exemplos e de casos paradigmáticos que reflectem a realidade da época,
possibilitando, eventualmente, a comparação com outros espaços e cronologias já
estudadas. A partir dos dados recolhidos procurámos identificar e relacionar os
homens11, fossem mesteirais ou mercadores, entre si e com os espaços, nomeadamente
as praças e ruas, que faziam parte da rede de abastecimento do burgo vimarenense
medieval.
savoir-faire (XII-XVI siècle). Paris: Éditions Picard, 2014, pp. 209-224; SEQUEIRA, Joana – O Pano da Terra:
Produção têxtil em Portugal nos finais da Idade Média. Porto: U. Porto Edições, 2014.; SEQUEIRA, Joana – “A
indústria da seda em Portugal entre os séculos XIII e XVI”. In Las Rutas de la Seda en la Historia de España
y Portugal. Valência: Publicacions de la Universitat de València, 2017, pp. 343-373; ACS, Luana Narcisa – Os
ofícios dos metais nas cidades medievais portuguesas: o caso dos ourives (1300-1449). Lisboa: NOVA FCSH,
2019. Dissertação de Mestrado.
10
COELHO, Maria Helena da Cruz – “A Mulher e o Trabalho nas cidades medievais portuguesas”. In
Homens, espaços e poderes: séculos XI –XVI. Vol. I. Lisboa: Livros Horizonte, 1990, pp. 37-59; GONÇALVES,
Iria – “Regateiras, padeiras e outras mais na Lisboa Medieval”. In Lisboa Medieval. Os rostos da cidade. Lisboa:
Livros Horizonte, 2007, pp. 11-29; SEQUEIRA, Joana; MELO, Arnaldo Sousa – “A mulher na produção têxtil
portuguesa tardo-medieval...”; PEREIRA, Mariana da Fonseca Antunes Alves – A mulher e o trabalho nas
cidades e vilas portuguesas medievais (séculos XIV e XV). Lisboa: NOVA FCSH, 2020. Dissertação de Mestrado.
11
Os casos de homonímia foram resolvidos através do cruzamento de dados sobre o lugar de residência
ou sobre a titulatura. Nos casos em que se revelou impossível confirmar a identidade de um individuo,
consideramos que se tratava de um novo caso.
OS MERCADOR ES E OS MESTER ES NA PAISAGEM URBANA DO SÉCULO XV
487
2. O contributo da documentação notarial vimaranense.
A vila de Guimarães era, no século XV, um ponto nevrálgico onde se desenrolavam
inúmeras actividades económicas, fundamentais para a vitalidade e sobrevivência
do burgo12. Os diferentes ofícios, desempenhados quer no interior das suas muralhas
quer nos seus arrabaldes, constituíam os pilares sobre os quais assentavam os seus
sectores produtivos e comerciais. A presença e o labor destes homens deixaram
marcas na documentação, permitindo-nos relacioná-los, entre si, e com os espaços
que percorriam.
O desempenho das funções produtoras e comerciais era determinante, não só
no que diz respeito à organização dos espaços urbanos das vilas e cidades medievais,
mas, também, no caso dos sectores produtivos, pelo acrescentado valor económico
conferido às matérias primas através de um conjunto de diversos processos e
transformações13. Esses espaços, destinados à produção ou ao comércio, deixavam
marcas na toponímia local. As ruas e praças destinadas à execução das actividades
artesanais existem em todas as vilas medievas14, sendo que Guimarães não se afigura
como uma excepção, como veremos mais à frente.
Os dados recolhidos até ao momento, relativos a 303 instrumentos notariais
dentro dos maços documentais referidos, permitem-nos verificar uma predominância
dos ofícios ligados aos sectores dos couros e ao comércio, seguidos de perto pelo dos
têxteis. Juntos, estes três sectores constituem mais de 50% das referências analisadas,
número demonstrativo da importância destas actividades produtivas e comerciais na
vila de Guimarães no século XV.
No sector dos couros, destaca-se a presença de 22 sapateiros, 11 seleiros, 7
correeiros e 2 curtidores, enquanto que no sector têxtil obtivemos 26 alfaiates, 6
tosadores, 5 tecelões e 1 costureiro15, num total de 80 artesãos. No sector comercial
encontramos 34 mercadores, 7 almocreves e 2 cambistas ou cambiadores.
Entre os diversos ofícios, cinco deles assumem uma maior presença entre os
dados recolhidos. Os mercadores, os alfaiates, os sapateiros, os barbeiros e os seleiros
constituem 58% dos 32 diferentes tipos de profissionais que identificamos16. A maior
12
Para a história urbana de Guimarães durante o período medieval ver: FERREIRA, Maria da Conceição
Falcão – Guimarães: duas vilas, um só povo: estudo de história urbana (1250-1389). Braga: CITCEM, 2010; e
FERREIRA, Maria da Conceição Falcão – Uma rua de elite na Guimarães medieval: 1376-1520. Guimarães:
Câmara Municipal de Guimarães, 1989.
13
PINTO, Olímpia Conceição Barbosa – “Mesteres Vimaranenses: o setor dos couros nos séculos XIV
e XV”. In Incipit: Workshop de Estudos Medievais da Universidade do Porto 2 (2011-2012). p. 97.
14
RIBEIRO, Maria do Carmo, MELO, Arnaldo Sousa – “A influência das atividades económicas na
organização da cidade medieval portuguesa...”, p. 151.
15
Informação recolhida na leitura da documentação notarial presente nos maços 44, 45, 46, 47, 48, 49,
50, 51 e 52 de documentos particulares do fundo da Colegiada de Santa Maria da Oliveira de Guimarães: PT/
TT/CSMOG/DP44-52.
16
Alguns destes homens encontravam-se ao serviço do Conde de Barcelos, entre eles: um barbeiro
488
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Sectores
Têxtil e vestuário
Metalúrgico
Couros
Comercial
Alimentar
Construção
Serviços
Outros
Ofícios
Nº de profissionais
Alfaiate
26
Costureiro
1
Tecelão
5
Tosador
6
Alfaieme
2
Bainheiro
4
Caldeireiro
3
Cuteleiro
1
Ferrador
5
Ferreiro
8
Ourives
2
Correeiro
7
Curador
1
Curtidor
2
Sapateiro
22
Seleiro
11
Almocreve
7
Cambiador
2
Mercador
34
Carniceiro
7
Almuinheiro
1
Carpinteiro
3
Mestre de obras
1
Mestre de pedraria
2
Pedreiro
3
Pintor
1
Serralheiro
2
Barbeiro
10
Boticário
2
Saboeiro
2
Totais
38
25
41
41
8
12
12
2
Figura 1 – Distribuição dos ofícios identificados por sectores entre 1424 e 1451).
OS MERCADOR ES E OS MESTER ES NA PAISAGEM URBANA DO SÉCULO XV
489
expressão destes ofícios na documentação poderá dever-se a uma maior importância
que estes teriam na economia urbana à época ou porque simplesmente eram os que
recorriam mais ao uso da escrita no decorrer dos seus autos transacionais com a
Colegiada de Santa Maria de Guimarães.
A identificação dos indivíduos e dos seus ofícios deve ser relacionada com
alguns dos espaços que protagonizavam um papel no abastecimento do burgo
medieval. Como em tantas outras vilas medievais portuguesas, o mercado local,
com um funcionamento diário, deveria ser realizado no interior das muralhas17. No
entanto, as feiras de âmbito regional e com um carácter não permanente eram, por
norma, realizadas em espaços exteriores, mais amplos, tendo marcado a toponímia
local18.
No caso de Guimarães, isso verifica-se no espaço chamado de “Campo da Feira”,
no arrabalde da vila, perto da “Porta do Postigo”. Este espaço, apesar de situado nas
imediações da vila, já se deveria encontrar, em meados do século XV, parcialmente
rodeado de construções permanentes e de pequenos terrenos agrícolas. Facto que é
demonstrado por um auto realizado entre o cabido da Colegiada de Santa Maria e
o Concelho de Guimarães, datado de 29 de Setembro de 1453, em que o primeiro
escamba “umas casas e almuinhas e hortas” que partiam com “o rossio que está em
a Porta do Postigo” e do outro lado com o “Campo da Feira”, “e de contra a vila parte
com umas almuinhas e latas que são do prior”19. De qualquer modo, o “Campo da
Feira” continuou, na segunda metade do século XV, a ser um local de referência
na malha urbana vimaranense: aí ficavam as casas de morada de Fernão Martins,
almuinheiro, a onde se deslocou um tabelião para a escrita de um instrumento de
nomeação de terceira pessoa em prazo, relativo ao “lugar da Ramada”, datado de 4 de
Setembro de 146020.
Outro espaço comercial, sem dúvida o mais activo da vila, por se encontrar no
coração da baixa vimaranense medieval, seguindo as palavras de Conceição Falcão,
seria “a Praça de Santa Maria e o contíguo adro de S. Tiago; nesse espaço, com a
torre dos sinos, a casa do concelho, os açougues, as tendas, em suma o fervilhar da
actividade citadina”21.
Sabemos, por exemplo, com base numa sentença escrita a 4 de Fevereiro de
(Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 44, doc. 38), um boticário (Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 44,
doc. 42.) um carpinteiro (Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 45, doc. 4.) e um seleiro (Lisboa, Torre do
Tombo, CSMOG, mç. 48, doc. 8.).
17
CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval (1125-1521): Evolução, Organização e
Articulação..., p. 33.
18
CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval (1125-1521): Evolução, Organização e
Articulação..., p. 242.
19
Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 44, doc. 13.
20
Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 51, doc. 23.
21
FERREIRA, Maria da Conceição Falcão – Guimarães: duas vilas, um só povo: estudo de história
urbana (1250-1389)..., p. 253.
490
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
1436, pelo tabelião Luís da Maia, que nessa praça existia um “alpendre onde vendem
o pão em grão”, onde certamente se escoaria a produção do termo e se adquiriam as
matérias-primas que alimentavam os moinhos do burgo. A escrita deste documento
é testemunhada por dois mercadores, João Pires e Luís Vasques22, cuja actividade
profissional dá o nome a uma das ruas que desembocava na praça da vila.
O topónimo “Rua dos Mercadores” parece indicar que aqui se encontrariam
concentrados os profissionais do ofício comercial. No entanto, os dados recolhidos
apenas nos dão a indicação de dois mercadores moradores nesta artéria urbana,
Gil Domingues23 e Pêro Álvares24. O primeiro, confrade de Santa Maria, surge
frequentemente na documentação enquanto outorgante de prazos com o cabido da
Colegiada de Guimarães. O segundo é também uma presença assídua em negócios
com a Colegiada, celebrando com esta prazos, escambos e até doações, surgindo por
vezes como testemunha de contratos alheios. Além disso, a 30 de Agosto de 142825 é
referido como vereador e ouvidor no concelho de Guimarães, testemunhando a sua
presença e participação no poder local26.
A par do sector ligado ao comércio, também o sector produtivo e
transformador dos Couros assumiria uma considerável importância, mesmo que
estes se localizassem em diferentes espaços. Os seus profissionais de excelência, os
sapateiros, encontravam-se espalhados um pouco por todo o espaço urbano, apesar
de topónimos como “Rua Sapateira ou “Rio (ou Rua) de Couros” poderem indicar
uma preferência tradicional por estas vias27. Não dispondo de dados suficientes para
fazer uma análise conclusiva sobre a distribuição dos mesteirais pelos diferentes
espaços da vila, e tendo em conta as possíveis deslocações entre local de trabalho e
local de residência, as informações recolhidas indicam-nos que apenas três sapateiros
moravam na “Rua Sapateira”, enquanto cinco moravam na “Rua Caldeiroa”, quatro
no “Rio (ou Rua) de Couros”, dois na “Rua da Torre Velha” e na “Rua Nova” e um na
“Rua da Santa Maria”.
O único sapateiro morador na “Rua de Santa Maria” que conseguimos apurar
surge, a 10 de Julho de 143828, com o nome de João Esteves, numa carta pela qual
compra a João Gonçalves umas casas e três covas de pelames, cujas confrontações
Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 48, doc. 4.
Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 46, doc. 25.
24
Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 44, doc. 26.
25
Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 45, doc. 6.
26
Sobre a participação dos mercadores no poder local ver: FARELO, Mário – A oligarquia camarária
de Lisboa: (1325-1433). Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2009. Tese de Doutoramento,
pp. 188-196. Sobre a participação dos mesteres no poder local ver: MELO, Arnaldo Sousa – “Os mesteirais e o
poder concelhio nas cidades medievais portuguesas (séculos XIV e XV)”. Edad Media: Revista de Historia 14
(2013), pp. 149-170.
27
Sobre a morfologia urbana de Guimarães na Idade Média ver: FERREIRA, Maria da Conceição
Falcão – Guimarães: duas vilas, um só povo: estudo de história urbana (1250-1389)...
28
Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 48, doc. 31.
22
23
OS MERCADOR ES E OS MESTER ES NA PAISAGEM URBANA DO SÉCULO XV
491
Fig. 2 – Mapa da vila de Guimarães medieval, adaptado pelo autor a partir de: MARQUES, A. H.
de Oliveira, et alii – Atlas de cidades medievais portuguesas: séculos XII-XV. Lisboa: Centro de
Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, 1990. p. 17. As adaptações efectuadas dizem
respeito à indicação dos arrabaldes: R. de Gato, R. Caldeiroa, Rio de Couros e Campo da Feira.
492
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
indicam: “as quais casas e pelames partem de uma parte com a Rua dos Coiros,
arrabalde da dita vila e da outra com as casas de pelames que foram de João de
Freitas”29. O sapateiro pagou a pronto 800 reais brancos pela aquisição das suas novas
propriedades, o que parece indicar que o profissional dispunha de capital suficiente
para investir numa expansão daquilo que deveria ser o seu negócio. Assim, tal
como Arnaldo Melo refere para a cidade do Porto30, é possível que os sapateiros
controlassem uma parte da curtição que era feita na vila, auferindo por isso largos
rendimentos.
A forte presença dos sapateiros nesta área de Guimarães é também confirmada
por diversos documentos em que estes surgem naquele local, no “Rio (ou Rua) de
Couros”. Para além das casas referidas, adquiridas pelo sapateiro João Esteves, nesta
artéria dos arrabaldes estariam três sapateiros, a 7 de Dezembro de 1429, enquanto
testemunhas na tomada de posse de uma propriedade pelo Cabido31. Não admira,
pois, que esta área localizada a sudoeste do perímetro amuralhado, à saída da “Porta
da Torre Velha”, fosse caracterizada pelos cheiros intensos associados às actividades
de curtição aí desenvolvidas32.
Relativamente ao sector dos têxteis, não foi possível sinalizar uma área do
espaço urbano que lhe fosse especificamente dedicado, reforçando as dificuldades
atrás referidas. Dos 26 alfaiates que conseguimos identificar, apenas conhecemos o
local de morada de um indivíduo: trata-se de João Anes, morador na “Rua Nova” e
testemunha de uma doação ao Cabido da Colegiada33. Esta escassez de informação
é contrabalançada pela existência de exemplos interessantes acerca da organização
dos ofícios. Assim, e por exemplo, a 4 de Fevereiro de 1455, são apresentados como
testemunhas de um traslado, o alfaiate Afonso Gil e o seu costureiro Diogo Vasques34,
indicando uma relação de sujeição do segundo face ao primeiro no patamar da
especialização.
Sobre a presença dos profissionais do sector da construção na paisagem urbana
de Guimarães, podemos dizer que entre os carpinteiros, mestres de obras, mestres
de pedraria, pedreiros, pintores e serralheiros recolhidos, apenas conseguimos
identificar a morada de um pedreiro, Álvaro Anes, junto à “Porta de São Domingos”35,
29
30
Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 48, doc. 31.
MELO, Arnaldo Sousa – Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média: o Porto, c.1320-c.1415...,
p. 170.
Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 45, doc. 30.
RIBEIRO, Maria do Carmo; MELO, Arnaldo Sousa – “O crescimento periférico das cidades
medievais portuguesas (séculos XIII- XVI): a influência dos mesteres e das instituições religiosas”. In Evolução
da Paisagem Urbana: cidade e periferia. Braga: CITCEM, 2014. p. 93; PINTO, Olímpia Conceição Barbosa –
Mesteres Vimaranenses: o setor dos couros nos séculos XIV e XV..., p. 99.
33
Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 46, doc. 12.
34
Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 45, doc. 4.
35
Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 50, doc. 19.
31
32
OS MERCADOR ES E OS MESTER ES NA PAISAGEM URBANA DO SÉCULO XV
493
e a de um pintor, Gonçalo Anes, próximo da “Rua Nova do Muro”36.
Sobre a organização do ofício de serralheiro, encontramos indícios que nos
permitem avançar algumas reflexões. Num instrumento de doação datado de 29
de Outubro de 1428, feito na casa do tabelião João Anes, lê-se que “Pedro Afonso,
serralheiro, que vive com Lourenço Gonçalves, serralheiro” foram presentes como
testemunhas37. Infelizmente, apenas sabemos que estes homens eram moradores na
vila de Guimarães, não nos sendo dada qualquer indicação relativamente à localização
da sua habitação. O que levaria dois homens, que partilhavam o mesmo ofício, a
viverem na mesma casa? Seria por um estar dependente do outro, por questões de
aprendizagem ou de aperfeiçoamento do ofício? Talvez funcionasse, nessa residência
comum, uma oficina de serralharia em que ambos trabalhavam. Interrogações a que
só um estudo de maior fôlego poderá responder.
De um modo geral, os dados recolhidos na documentação não nos permitiram
distribuir os diversos mesteres em áreas topográficas específicas da vila de Guimarães.
De facto, estes parecem encontrar-se dispersos um pouco por todas as artérias
urbanas. “Na Rua Caldeiroa” encontramos, correeiros, ferreiros e sapateiros, na “Rua
de Gato” temos bainheiros e correeiros, na “Rua do Muro” cuteleiros e seleiros e na
“Rua Nova” pintores, sapateiros e seleiros. O silêncio dos documentos relativamente
à morada de muitos dos artesãos e profissionais identificados não nos deu, até ao
momento, dados que possam corroborar a hipótese de uma distribuição geográfica
destes.
3. Conclusão.
Ao longo do nosso percurso sobre o fundo documental da Colegiada de Santa Maria
da Oliveira, cruzamo-nos com os vários homens38 que faziam fluir as matérias vitais
para a sobrevivência do burgo medieval de Guimarães. A frequência com que faziam
uso da escrita, através dos tabeliães, nos seus negócios com a Colegiada de Santa
Maria de Guimarães, permitiu que a sua existência chegasse, ou não, até anos nossos
dias através da documentação. Entre eles encontramos os mais especializados, à
cabeça de negócios consideráveis, com capitais ao seu dispor, os que se encontravam
ao serviço de privados como o Conde de Barcelos, e outros, os mais simples e que se
encontravam na base da hierarquia do ofício39.
Este corpo produtivo da vila, diverso e constituído pelos vários mesteirais e
comerciantes, articulava-se entre as ruas e praças vimaranenses, de forma mais ou
Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 50, doc. 22.
Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 45, doc. 12.
38
Não identificamos qualquer referência a elementos do sexo feminino associados aos setores comercial
e produtivo da vila de Guimarães no século XV.
39
MELO, Arnaldo Sousa – Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média..., p. 161.
36
37
494
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
menos homogénea, assegurando e usufruindo dos sistemas e processos logísticos que
garantiam o abastecimento da vila. Apenas o alargamento do conjunto documental
permitirá recolher todos os testemunhos referentes aos ofícios económicos urbanos,
levando a uma melhor compreensão e conhecimento sobre a presença dos mesteirais
e mercadores e impacto na paisagem urbana.
OS MERCADOR ES E OS MESTER ES NA PAISAGEM URBANA DO SÉCULO XV
495
496
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
“quallquer [...] rregateira que conprar
quaaesquer mantjmentos
em quaisquer lugarees”:
o papel das regateiras no
abastecimento alimentar urbano
Mariana Alves Pereira1
Resumo
Na participação feminina no trabalho urbano, visível sobretudo no comércio
alimentar, as regateiras ganharam destaque em várias cidades e vilas portuguesas.
Mesmo que dependentes do dinamismo económico e demográfico dos centros
urbanos, a sua existência ficou documentada para grande parte do mundo
urbano português.
Através do comércio de produtos como o pescado, a carne, os legumes
e verduras, as regateiras tiveram um papel importante no abastecimento
alimentar e, também, na economia urbana. Contudo, o temor da especulação
dos preços e o medo da fraude na qualidade dos produtos lançaram as
autoridades concelhia e régia numa busca pelo controlo das regateiras, de
modo a assegurar o abastecimento urbano. Por isso mesmo, as regateiras foram
colocadas sob alçada dos almotacés, controladas nos seus ofícios, nas suas
compras e, sobretudo, nas condições de venda.
Assim, o presente estudo pretende evidenciar a prática das regateiras nos
centros urbanos portugueses, ao longo dos séculos XIV e XV, evidenciado o seu
papel no abastecimento alimentar urbano: coarctado em tempos de escassez ou
privilegiado em tempos de abundância.
Palavras-chave
Mulher; Trabalho; Regateiras; Cidades, Abastecimento.
1
Instituto de Estudos Medievais – NOVA FCSH.
498
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
The regateiras’ role in the urban food provisioning
Abstract
The regateiras (female hucksters) have earned a leading role among women
participation in Portuguese urban work landscape, especially in the food trade.
Although their existence depended on the economic an demographic dynamics
of the urban centres, there are documents which prove that they were once
spreaded throughout many Portuguese cities and towns.
Through the trade of products such as fish, meat and vegetables, the regateiras
have played an important role in the food supplying system, as well as in the
urban economy. But the fear of price speculation and of food quality fraud
brought the attention of both the King and regional authorities who, in order
to consolidate the urban food supply, enforced a tighter control over the
regateiras. Thus, this women were put under the municipal supervision, who
started controlling their workplaces, the products they bought and, above all,
their trading conditions.
This research aims to assess the work of the regateiras in the Portuguese urban
centres throughout the 14th and 15th centuries, pointing out the role of these
women in the food supplying system – both limited in times of scarcity and
privileged in times of prosperity.
Keywords
Women; Work; Cities; Food supply.
Introdução.
Ao longo dos séculos XIV e XV, a participação feminina no trabalho urbano foi
sentida sobretudo no sector da alimentação. Esta realidade é atestada, por um lado,
pela variedade de vocábulos ocupacionais femininos presentes na documentação
coeva, fixados de acordo com o produto manuseado ou tarefa executada2. Por outro
lado, pela dispersão geográfica dessa mesma documentação, sendo possível encontrar
2
Sobre este tema, ver: MELO, Arnaldo Sousa – “Women and Work in the Houseold Economy: The
Social and Linguistic Evidence from Porto, c. 1340-1450”. In The Medieval Household in Christian Europe, c.
850 – c. 1550. Managing Power, Wealth and the Body. Turnhout: Brepols, 2003, pp. 249-269.
O PAPEL DAS R EGATEIR AS NO ABASTECIMENTO ALIMENTAR URBANO
499
ofícios como as padeiras ou vendedeiras e regateiras de produtos alimentares para
vários centros urbanos portugueses3.
A variedade de ofícios femininos no sector alimentar justifica-se, primeiramente,
pelo papel que a mulher desempenhava no mundo doméstico. Por um lado, era sobre
ela que recaía a alimentação do agregado familiar, tanto na aquisição dos alimentos
como, também, da sua confecção. Além disto, no contexto do trabalho, a mulher
participou nos processos quer de produção, de transformação ou de comércio de
vários produtos alimentares, sendo que foi neste último que a mulher ganhou algum
destaque na documentação coeva, sobretudo de índole concelhia.
Com efeito, a incumbência dos governos urbanos para garantir o abastecimento
alimentar das populações gerou vários mecanismos de controlo e vigilância para
os ofícios do sector alimentar. Ainda que com maior incidência nas ocupações
relacionadas com produtos de abastecimento alimentar básico, como o pão ou o
pescado, a verdade é que as autoridades concelhias intervieram nos ofícios femininos
de modo indelével, por meio da normativa.
Contudo, não só as autoridades concelhias se demonstraram atentas à
participação feminina no abastecimento alimentar das cidades e vilas, mas também
a autoridade régia desempenhou o seu papel. Embora mais episódica, a intervenção
régia na regulação dos ofícios femininos evidenciou a sua importância não só para o
contexto de abastecimento urbano como, também, para a economia urbana.
Assim, a regulação por parte das autoridades concelhia e régia incidiu nos
vários ofícios femininos, quer naqueles que se relacionassem com a produção ou com
a transformação4, sendo que foi no comércio que a normativa mais se acentuou. A
verdade é que a mulher apenas participava nas fases produtivas e transformadoras de
alguns produtos alimentares, fosse pela forte presença masculina – como no sector
do pescado – ou pela componente doméstica dessas actividades – como no sector
das frutas e hortaliças. No comércio de alimentos, por seu turno, a participação da
mulher foi tão variada quanto o leque de produtos passiveis de ser consumidos nos
espaços urbanos medievais5. Precisamente neste contexto, as regateiras adquiriram
algum destaque, não só pela variedade de produtos como pelo tipo de comércio
praticado.
3
Sobre este tema, ver: GONÇALVES, Iria − “Regateiras, Padeiras e outras mais na Lisboa Medieval”.
In KRUS, Luís; OLIVEIRA, Luís Filipe; FONTES, João Luís (coords.) − Lisboa Medieval. Os Rostos da Cidade.
Lisboa: Livros Horizonte, 2007, pp. 1-29; COELHO, Maria Helena da Cruz − “A Mulher e o Trabalho nas
cidades medievais portuguesas”. In Homens, espaços e poderes: séculos XI – XVI. Vol. I: Notas do viver social.
Lisboa: Livros Horizonte, 1990, pp. 37-59; PEREIRA, Mariana Alves – A mulher e o trabalho nas cidades
portuguesas medievais. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2020. Dissertação de Mestrado.
4
PEREIRA, Mariana Alves – A mulher e o trabalho nas cidades portuguesas medievais…, 2020,
Dissertação de Mestrado,pp. 58-102. .
5
GONÇALVES, Iria − “Regateiras, Padeiras e outras mais na Lisboa Medieval…”, p. 12.
500
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
1. As regateiras no abastecimento alimentar urbano.
Na longa fileira de pessoas que contribuíam para o abastecimento alimentar dos
espaços urbanos medievos encontravam-se as regateiras, cujo comércio de alimentos
vários lhes permitiu ganhar algum destaque na documentação coeva. O seu ofício
associava-se sobretudo ao comércio livre, ou seja, à venda de produtos pelo preço
que o consumidor estivesse disposto a dar, ainda que não se esgotasse aí.
Apesar da preferência da sociedade medieval por colocar o produtor directamente
em contacto com o consumidor6, desde cedo tanto as vereações urbanas quanto o
monarca consideraram essencial garantir a existência de vendedores e revendedores
que pudessem contribuir ou suprimir as falhas do abastecimento alimentar urbano.
Através da prestação de juramento quando deles houvesse necessidade7, cabia então
aos almotacés assegurar a existência de profissionais tidos como essenciais para o
espaço urbano, como padeiras, carniceiros e regateiras. A estas últimas, contudo,
podia ser dada maior liberdade de comércio de produtos como o pescado fresco ou
seco8, legumes9 e frutas variadas10, mariscos11, carnes12 ou azeites13.
Naturalmente, a oferta de produtos por parte das regateiras dependia da
dimensão espacial, da dinâmica populacional e social da população. Com efeito, nos
séculos XIV e XV, Portugal contava apenas com uma cidade de média dimensão a
nível europeu, Lisboa. Esta cidade era, então, uma excepção no conjunto do reino,
dispondo de uma dinâmica comercial apoiada e desenvolvida, entre outros, graças à
6
Cf. GONÇALVES, Iria − “Defesa do consumidor na cidade medieval: os produtos alimentares (Lisboa
– séculos XIV e XV)”. In Um olhar sobre a cidade medieval. Cascais: Patrimonia, 1996, pp. 35-39.
7
O juramento consistia numa forma de acordo entre os mesteirais e as autoridades concelhias, realizado
de forma verbal ou escrita, perante os evangelhos. Cf. Por exemplo: OS REGIMENTOS de Évora e de Arraiolos
do século XV. Introdução e revisão de Hermínia Vasconcelos Vilar. Leitura e Transcrição de Sandra Paulo.
Évora: CIDEHUS, 2005, p. 101. Sobre este tema ver: MELO, Arnaldo − O trabalho e produção em Portugal
na Idade Média: o Porto, c. 1320–c. 1415. Braga: Universidade do Minho, 2009. Tese de Doutoramento em
História, pp. 301-305.
8
Cf. OS REGIMENTOS de Évora e de Arraiolos do século XV…, p. 136; “VEREAÇOENS”. Anos de 14011449. O segundo Livro de Vereações do Município do Porto existente no seu Arquivo. Ed. de J. A. Pinto Ferreira.
Porto: Câmara Municipal do Porto, 1980, p. 76; LIVRO DE VEREAÇÃO de Alcochete e Aldeia Galega (14211422). Introdução, transcrição e notas de José Manuel Vargas. Alcochete: Câmara Municipal de Alcochete,
2005, p. 159.
9
Cf. DOCUMENTOS históricos da Cidade de Évora. Ed. de Gabriel PEREIRA. Reimpressão, Lisboa:
Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1998, p. 25; ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV. Separata da
Revista al-‘ulya 7 (1999), p. 144.
10
Cf. O LIVRO das Posturas Antigas da Cidade de Évora …. p. 90.
11
Cf. HISTÓRIA florestal, aquícola e cinegética. Ed. de C. M. Baeta Neves. Vol. I: 1208-1438. Lisboa:
Direcção Geral do Ordenamento e Gestão de Florestas, 1980 , p. 50.
12
Cf. GOMES, Saul António − Documentos Medievais de Santa Cruz de Coimbra: I-Arquivo Nacional
da Torre do Tombo. Separata de Estudos Medievais 9 (1988), p. 142.
13
Cf. “VEREAÇOENS”. Anos de 1390-1395. O mais antigo dos “Livros de Vereações” do Município do
Porto existente no seu Arquivo. Ed. de A. Magalhães BASTO. Porto: Câmara Municipal do Porto, 1937, p. 177;
LIVRO de vereação de Alcochete e Aldeia Galega (1421-1422)…, p. 159.
O PAPEL DAS R EGATEIR AS NO ABASTECIMENTO ALIMENTAR URBANO
501
presença da corte régia – e toda a máquina administrativa que a acompanhava14. O
restante território do reino caracterizava-se por vilas e cidades de menor dimensão
que, mesmo integradas no crescimento urbano verificado, nunca puderam atingir
as proporções daquela. Ainda assim, alguns centros urbanos adquiriram algum
destaque, como Évora, Santarém, Porto ou Coimbra.
Por consequência, na cidade de Lisboa o número de regateiras seria bastante
mais elevado que nos restantes centros urbanos e a oferta de produtos mais alargada,
em virtude não só da quantidade de população que ali residia como, também, da que
ali passava, dispondo de um poder de compra mais elevado. A título de exemplo,
note-se a existência de mulheres especializadas na venda de marisco naquela cidade,
as marisqueiras, caso pouco comum para o restante reino15.
Ainda assim, a presença de regateiras não foi menor por todo o reino de
Portugal, sobretudo no que refere ao comércio de produtos alimentares importantes
para a dieta medieval16. A obtenção dos produtos podia ser realizada directamente
aos produtores ou, também, a outros vendedores, muitas vezes necessitando da
autorização dos almotacés. Assim ocorreu em Évora, no final do século XIV,
quando se instituiu que a venda de pescado às regateiras da cidade necessitava do
assentimento do almotacé17.
Além disto, as regateiras podiam também deslocar-se do centro urbano onde
comerciavam para adquirir os seus produtos. Como se sabe, a cidade medieval “era
uma estrutura frágil, artificial mesmo, incapaz de se bastar a si própria”18, pelo que o
abastecimento dos produtos alimentares provenientes do seu exterior desempenhava
um importante papel. Em 1309, há notícia de que as regateiras de Setúbal e da
Pederneira se deslocavam a Santarém, onde comerciavam pescados e mariscos19.
Mais tarde, em 1403, as regateiras de Loulé deslocavam-se a Tavira e Faro a fim de
comprarem pescado e sardinha, que depois vendiam na vila20.
14
Cf. ANDRADE, Amélia Aguiar − “Lisboa Medieval, Cabeça de Reino, cidade de muitas e desvairadas
gentes”. In ANDRADE, Amélia Aguiar; FARELO, Mário (coords.) − Pão, Carne e Água: Memórias de Lisboa
Medieval. Lisboa: Arquivo Municipal de Lisboa, IEM NOVA FCSH, 2019, pp. 37-47.
15
Cf. LIVRO das Posturas Antigas. Leitura paleográfica de Maria Teresa Campos Rodrigues. Lisboa:
Câmara Municipal de Lisboa, 1974, p. 10.
16
Veja-se, a este respeito, para Coimbra: CAMPOS, Maria Amélia − “Alimentar a cidade de Coimbra
na Baixa Idade Média: notas sobre os alimentos, as estruturas de transformação alimentar e os ofícios” in
SOARES, Carmen; MACEDO, Irene Coutinho (eds.) − Ensaios sobre Património Alimentar Luso-Brasileiro.
Coimbra: Imprensa da Universidade, 2019, pp. 113-326.
17
Cf. O LIVRO das Posturas Antigas da Cidade de Évora…, p. 15.
18
Cf. GONÇALVES, Iria − “Defesa do consumidor na cidade medieval: os produtos alimentares
(Lisboa – séculos XIV e XV)…”, p. 98.
19
Cf. Descobrimentos Portugueses. Ed. de João Martins da Silva Marques. Lisboa: Instituto para a Alta
Cultura, 1944, sup. V. 1, p. 385.
20
Cf. ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV…, pp. 145-146.
502
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
2. A regulação das autoridades concelhias.
A actividade das regateiras, contudo, era bastante vigiada pelas autoridades
concelhias, que procuravam evitar o açambarcamento e a especulação de produtos
essenciais à população urbana. Para o colmatar, os governos urbanos desenvolveram
um conjunto de mecanismos de regulação do ofício, tais como o controlo do número
de regateiras, o controlo da aquisição e venda dos produtos ou a fixação dos espaços
de trabalho.
Quanto ao controlo do número de regateiras, este era realizado por meio da
obrigatoriedade de inscrição na vereação concelhia das mulheres que quisessem
exercer o ofício. No Porto, em 1401, esta medida foi estipulada para as regateiras de
caças, carnes e de pão cozido, sendo que a venda destes produtos por mulheres não
inscritas na vereação era punida com uma pena pecuniária21. Ao mesmo tempo, o
facto de o juramento estar previsto para a ocupação das regateiras pode, também,
indiciar um mecanismo de controlo do número de mulheres dedicadas a esse ofício22.
A aquisição e venda dos produtos foi dos temas que mais preocuparam as
autoridades concelhias relativamente a estas mulheres23. Por um lado, as autoridades
procuraram vigiar a obtenção dos produtos por parte das regateiras. Através do
almotacé, no final do século XIV, a vereação de Évora procurou controlar o comércio
do pescado, impedido a sua venda às regateiras sem o seu assentimento24. O mesmo
sucedeu em Lisboa, onde a vereação, já no final do século XV, impediu a revenda
de pescado por parte das regateiras, deixando o exclusivo desse comércio aos
pescadores, exceptuando-se, contudo, produtos como os caranguejos ou berbigões,
que podiam ser comerciados livremente. Neste último caso, fica patente a diferente
importância atribuída a determinados produtos por parte da vereação lisboeta, o que
permitiu às regateiras o comércio livre de algumas espécies de marisco, mas coarctou
a possibilidade de comércio do pescado. De facto, o consumo de marisco não era
considerado tão fundamental como o do pescado, mesmo que o seu comércio tenha
sido livre até à postura citada25. Por último, as regateiras de Lisboa também foram
impedidas de adquirir e revender aves e lacticínios, para que os próprios produtores
os pudessem comerciar26.
Cf. “VEREAÇOENS”. Anos de 1401-1449… p. 76.
Cf. Por exemplo: OS REGIMENTOS de Évora e de Arraiolos do século XV…, p. 29-30. Ver também:
MELO, Arnaldo Sousa – “Women and Work in the Houseold Economy: The Social and Linguistic Evidence
from Porto, c. 1340-1450…”, pp. 249-269.
23
Cf. GONÇALVES, Iria − “Regateiras, Padeiras e outras mais na Lisboa Medieval…”, pp. 11-14.
24
Cf. O LIVRO das Posturas Antigas da Cidade de Évora …, p. 15. Ver também: FEIO, Rodolfo Nunes
Petronilho − Por Prol e Bom Regimento. A cidade e o trabalho nas posturas antigas de Évora. Coimbra:
Faculdade de Letras da Universidade Coimbra, 2017. Dissertação de mestrado, p. 134. Disponível em: https://
estudogeral.sib.uc.pt/handle/10316/85618.
25
GONÇALVES, Iria − “Regateiras, Padeiras e outras mais na Lisboa Medieval…”, p. 15.
26
Cf. LIVRO das Posturas Antigas…, p. 256.
21
22
O PAPEL DAS R EGATEIR AS NO ABASTECIMENTO ALIMENTAR URBANO
503
Por outro lado, o controlo das vereações concelhias também se fez sentir na
imposição de condições de venda. A imposição de horários de venda foi uma das
estratégias para assegurar o abastecimento urbano, procurando dirimir os episódios
de açambarcamento e consequente especulação dos produtos por parte das regateiras.
Um caso paradigmático dessa situação ocorreu no Porto, no final do século XIV,
quando a vereação procurou resolver o problema decorrente do açambarcamento e
consequente subida de preços por parte das muitas regateiras que, segundo o governo
urbano, se dedicavam à venda de pescado, caça ou fruta27.
Assim, somente a partir da hora da terça – as 9h da manhã – é que era
permitida a venda por parte da regateiras28. Esta medida foi aplicada às regateiras
de Lisboa29, Santarém30 e Setúbal31, ao passo que em Évora estavam sujeitas a tal
horário as regateiras de fruta32. Até à hora estipulada, então, os alimentos deviam ser
comercializados pelos preços impostos pelos almotacés, de modo a que a população
se pudesse abastecer, sem que ficasse exposta à especulação do seu preço.
Além dos horários de venda, por último, também o desrespeito pela almotaçaria
posta aos produtos era punível com penas pecuniárias em cidades como Lisboa33,
bem como a fraude na qualidade do produto34 ou o incumprimento dos espaços
de trabalho fixados. Esta última foi outra das medidas adoptadas pelas vereações
concelhias, que, contudo, apenas foi aplicada às regateiras de determinados produtos,
como o pescado, sendo que o comércio ambulante continuou a ser prática recorrente
por parte dessas mulheres35.
Cf. “VEREAÇOENS”. Anos de 1390-1395 …, p. 201.
Esta medida teve alcance não só em cidades portuguesas, como também em Cuenca, Guadalajara ou
Tolendo. Cf. ESCRIBANO ABAD, José Luis − Política de aprovisionamiento de alimentos: el mercado urbano
en el antiguo Reino de Toledo durante la Baja Edad Media. Espanha: Universidad Nacional de Educación a
Distancia, 2013. Tese de Doutoramento, pp. 184-185. Ver também: PEREIRA, Mariana Alves – A mulher e o
trabalho nas cidades portuguesas medievais…, pp. 79-82.
29
Cf. LIVRO das Posturas Antigas …, p. 12.
30
Cf. VIANA, Mário – “A participação do concelho de Santarém em Cortes nos séculos XIV e XV. 1.
Documentação”. Arquipélago-História, Revista da Universidade dos Açores VIII (2004), p. 369.
31
Cf. BRAGA, Paulo Drumond − Setúbal medieval (séculos XIII a XV). Setúbal: Câmara Municipal de
Setúbal, 1998, p. 116.
32
Cf. O LIVRO das Posturas Antigas da Cidade de Évora …, p. 21. Ver também: FEIO, Rodolfo Nunes
Petronilho − Por Prol e Bom Regimento. A cidade e o trabalho nas posturas antigas de Évora…, p. 138
33
Cf. LIVRO das Posturas Antigas…, p. 36.
34
Ver: PEREIRA, Mariana Alves – A mulher e o trabalho nas cidades portuguesas medievais (séculos
XIV e XV)…, pp.73-96.
35
Conforme avança Saúl António Gomes, “Coimbra era cidade de forte dinâmica comercial, sobremodo
em torno da produção e do consumo nas áreas alimentares, do vestuário e do calçado, marroquinaria e da
ourivesaria. Entre os mesteirais que poderiam vir aos açougues reais por ocasião do mercado semanal das
segundas-feiras, segundo o compromisso estabelecido, em 1269, entre o Município e o rei D. Afonso II,
para venda dos seus produtos, citam-se tendeiros, correeiros, sapateiros, fanqueiros, peliteiros, manteeiros,
esteireiros e tecelões de feltro e de burel, para além dos açougueiros de carnes e de pescados e, ainda, das
muitas regateiras que se encarregavam da venda, fixa ou ambulante, de pão, lacticínios, méis, castanhas e de
especiarias, como o cominho, açafrão e pimenta, entre outros produtos hortícolas e frutícolas.” cf. GOMES,
Saul António – “Coimbra-aspectos da sua paisagem urbana em tempos medievos”. Biblos IV, nova série,
(2006), pp. 126-127.
27
28
504
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
No início do século XV, as regateiras de pescado de Évora estavam proibidas,
de acordo com o Regimento da cidade, de o vender em casa ou noutro lugar que não
a praça, onde o produto era almotaçado36. O mesmo estava previsto para Arraiolos,
onde estava prevista uma pena pecuniária para as regateiras que vendessem pescado
em casa e não na praça37. Com efeito, em ambos casos, a evasão ao espaço definido
determinava a ausência de controlo por parte dos almotacés do pescado, o que podia
ter repercussões no preço do produto, pesos e medidas ou na sua qualidade38.
O estabelecimento de espaços de trabalho para as regateiras foi também aplicado
de modo a evitar, por exemplo, concertações e conluios entre regateiras e produtores.
Atente-se ao exemplo de uma norma emitida pelo concelho de Lisboa em 1482, que
determinou que as regateiras não pudessem vizinhar com as chamadas donas do
pescado ou seja, as mulheres de pescadores que vendiam directamente o produto39.
Quanto ao cumprimento das normas impostas, não só se mostraram atentas
as autoridades concelhias como, também, a autoridade régia. No plano concelhio,
eram aplicadas penas pecuniárias, por exemplo, às regateiras que comprassem
fruta para revenda antes da hora da terça, em Évora40. A privação de liberdade foi
ainda uma outra sanção aplicada caso às mulheres vendessem pescado fora do lugar
estipulado pelas autoridades concelhias de Lisboa41. À parte destas, determinados
comportamentos podiam ainda ser sancionados com punição física, como a compra
para revenda de farinha dentro das Fangas de Lisboa42.
3. A regulação da autoridade régia.
No plano régio, a intervenção do monarca foi apenas notada quando chamado a
intervir pelos próprios concelhos que, considerando a conduta das regateiras gravosa
e não a conseguindo colmatar, a ele recorriam para deliberar sobre o tema43. Um
exemplo dessa atenção prestada pelos monarcas à conduta das regateiras surge
em 1361, aquando da reunião de Cortes em Elvas. Aí foi apresentado a D. Pedro
um capítulo geral do povo, ou seja, um capítulo ratificado por todos – ou grande
parte – dos procuradores de concelho ali presentes, em que se queixavam de cartas
régias de privilégio a regateiras, isentando-as do cumprimento da almotaçaria, ou
Cf. OS REGIMENTOS de Évora e de Arraiolos do século XV…, p. 136.
Cf. OS REGIMENTOS de Évora e de Arraiolos do século XV…, p. 137.
38
Cf. LIVRO das Posturas Antigas…, p. 122.
39
Cf. LIVRO das Posturas Antigas…, p. 151
40
Cf. O LIVRO das Posturas Antigas da Cidade de Évora…, p. 21
41
Cf. LIVRO das Posturas Antigas…, p. 151
42
Cf. POSTURAS do concelho de Lisboa: Século XIV. Leitura paleográfica de José Pedro Machado.
Lisboa: Sociedade da Língua Portuguesa, 1974, p. 49.
43
Ver: PEREIRA, Mariana Alves – A mulher e o trabalho nas cidades portuguesas medievais…, pp.
96-102.
36
37
O PAPEL DAS R EGATEIR AS NO ABASTECIMENTO ALIMENTAR URBANO
505
seja, do cumprimento de preços e pesos e medidas estabelecidos pelas autoridades
concelhias. O monarca foi sensível à argumentação apresentada pelos concelhos, de
que tal impedia a aquisição de mantimentos a preços justos, e acedeu a não mais
conceder esse tipo de privilégio e em anular os já atribuídos44. Contudo, tal não
impediu posteriores concessões régias de privilégios a regateiras.
No século XV, o monarca foi informado pelo concelho de Santarém, através de
um capítulo especial, mais uma vez em contexto de Cortes, que as regateiras daquele
lugar usavam indevidamente do privilégio de isenção de almotaçaria quando este
tinha sido atribuído aos seus maridos45, queixa que o monarca deferiu interditando
às regateiras o uso de um privilégio que não lhes tinha sido directamente concedido.
Por fim, a mesma situação é levada a cortes em 1440, desta feita pelo concelho de
Setúbal. Neste contexto, a decisão do monarca proíbe mesmo o exercício do comércio
a quem que não obedecesse às regras de almotaçaria46.
Deste modo, quando chamada a fazê-lo, a autoridade régia parecia ceder à
argumentação das autoridades concelhias, considerando que o ofício das regateiras
devia obedecer a determinadas regras para as quais não devia existir qualquer
excepção. Esta questão, contudo, evidencia também a dificuldade de aplicação da
normativa por parte das autoridades e os problemas que os privilégios régios podiam
trazer.
Contudo, também as próprias regateiras podiam ser as queixosas das normas
aplicadas pelos governos urbanos. Datada de 1338 encontra-se uma carta de Afonso
IV, dirigida aos alvazis, alcaide e concelho de Santarém, onde se registava que “as
Regateiras e alguũns outros dessa vila”, bem como os seus vedores e almoxarifes, o
tinham informado de que algumas posturas estabelecidas pelo concelho sobre o
trabalho das regateiras as prejudicavam e eram também danosas ao dito concelho.
Em resposta, o monarca regulou o trabalho das regateiras, evidenciando a sua
importância para a vila uma vez que lhes permitiu o exercício do ofício, regulando-o
de acordo com determinadas regras – todas elas tendo em vista medidas tendentes a
assegurar o abastecimento urbano, como a obrigação de cumprir os preços impostos
pelos almotacés47.
Mais tarde, em 1389, D. João I foi informado dos abusos praticados pelos
almotacés em relação às regateiras de pescado e fruta em Évora. O monarca, perante
a queixa de corrupção por parte dos almotacés, toma a decisão de permitir o livre
44
Cf. CORTES Portuguesas, reinado de D. Pedro (1357-1367). Ed. A. H. de Oliveira Marques. Lisboa:
Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, 1986, p. 53.
45
Cf. VIANA, Mário – “A participação do concelho de Santarém em Cortes nos séculos XIV e XV. 1.
Documentação...”, p. 369.
46
Cf. CORTES portuguesas: reinado de D. Afonso V: cortes de 1439. Dir. João José Alves Dias. Lisboa:
Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, 2016, p. 411.
47
Cf. CHANCELARIAS Portuguesas: D. Afonso IV. Direcção de A. H. de Oliveira Marques, Vol. 2.
Lisboa: Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, 1992, p. 227.
506
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
comércio dos produtos, determinando que “cada um possa vender e comprar o
que quiser sem almotaçaria nenhuma”48. Esta decisão, que aparentemente parece
contrária aos interesses de abastecimento urbano da população, uma vez que lhes
permite o comércio sem cumprir o preço estabelecido pelos almotacés, evidencia
a importância dada pela monarca às regateiras para o abastecimento urbano. Este
exemplo, contudo, não é caso único.
A importância das regateiras para a economia urbana fica visível numa carta
dada pelo infante D. Pedro, ao concelho de Coimbra, datada de 1437. Nesta data,
é pedido pelas autoridades concelhias que o Duque da cidade se pronuncie acerca
das regateiras de peixe frito e carne assada, argumentando que a sua existência
era negativa dados os preços praticados e as fraudes cometidas sobre o produto,
afectando a sua qualidade. A resposta do infante, contudo, vai contra as pretensões
concelhias, autorizando o comércio de tais produtos por parte das regateiras. Para
aquele, a sua existência não podia trazer qualquer mal, além de que era proveitosa
para os caminhantes que por ali passassem, evitando-lhes despesas e trabalho49.
Assim, o infante D. Pedro procurou incrementar o comércio de alimentos tendo
em vista, sobretudo, o consumo de estrangeiros e caminhantes, não se remetendo
apenas para o consumo da população urbana. Não dando maior importância às
questões apontadas pela vereação concelhia, o duque de Coimbra opta assim por
cativar a existência e consumo dos alimentos já cozinhados que, não perigando o
normal abastecimento básico da população, acrescentavam novo valor à economia
do meio urbano.
Conclusão.
Posto isto, é possível perceber que as autoridades concelhias e régias pretendiam que
o número e presença das regateiras no comércio alimentar urbano fosse constante
e suficiente para garantir, sem grandes sobressaltos, as necessidades das populações
das cidades e vilas portuguesas. A sua presença garantia a existência de produtos
alimentares essenciais para o abastecimento urbano, como o pescado, a carne, as
hortaliças ou as frutas.
Todavia, mesmo que pudessem representar o ingresso de produtos ou o seu
escoamento para a população urbana, as regateiras foram submetidas a um conjunto
de imposições de modo a evitar fraudes que pusessem em causa os esquemas
de abastecimento urbano. Neste sentido, o comércio das regateiras era apenas
praticado em horários específicos e sob a vigilância das autoridades concelhias, que
Cf. DOCUMENTOS históricos da Cidade de Évora…, parte I, p. 90.
Cf. PIMENTA, Belisário – “As cartas do Infante D. Pedro à Câmara de Coimbra (1429-1448)”,
separata de Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra XXIII (1958), pp. 18-19.
48
49
O PAPEL DAS R EGATEIR AS NO ABASTECIMENTO ALIMENTAR URBANO
507
asseguravam, entre outros, a qualidade dos produtos. Por outro lado, convém realçar
que a intervenção das autoridades concelhias foi mais premente relativamente
a regateiras que comercializassem produtos de maior importância para a dieta
alimentar ou cujos esquemas de abastecimento apresentassem maior fragilidades,
como o pescado.
Não obstante, a actuação das autoridades nem sempre foi contra a prática
das regateiras, sendo-lhes dado também espaço no contexto económico urbano
para desenvolverem a sua actividade. Tal como ficou patenteado na carta do duque
de Coimbra, onde é afirmado o papel das regateiras para o consumo e economia
urbanos, o trabalho das regateiras não se baseava somente na venda e revenda de
produtos destinados ao abastecimento alimentar básico mas, também, ao comércio
especulativo de alimentos, podendo participar na sua própria transformação e, por
isso, acrescentando valor ao produto. Deste modo, não se pense que as regateiras eram
todas reguladas da mesma maneira ou que praticavam o mesmo tipo de comércio,
dado que o comércio de determinados produtos, além de não ser controlado pelas
autoridades concelhias – como se viu no caso dos caranguejos e berbigão – podia ser
feito de modo itinerante pelas cidades e vilas portuguesas.
Dado o exposto, pode-se concluir que as regateiras detinham um papel
importante para o abastecimento urbano pois delas podia depender a existência
e venda de determinados produtos, fosse por servirem de intermediárias na sua
venda ou por perigarem a sua existência com as suas práticas de comércio. Por outro
lado, a sua importância para a economia urbana, e em parte também para o seu
abastecimento, fica evidente na defesa que lhes é feita pelo infante D. Pedro que,
não considerando as alegadas fraudes praticadas sobre os produtos, lhes permite a
existência e comércio, mesmo contra as autoridades concelhias.
508
PARTE V
Tempos de comércio: mercados
e feiras, fiscalidade e moeda
Times of Trade: Markets, Fairs,
Taxation, and Money
Na Lisboa de D. João I (1385-1433):
fiscalidade régia e abastecimento
Catarina Rosa1
Resumo
Pelas suas dimensões e peso demográfico, Lisboa era a principal cidade do
Portugal medieval e, como tal, aquela cujas necessidades de abastecimento
eram mais difíceis de satisfazer. Sobre os bens essenciais de consumo (pão,
carne, peixe, legumes, vinho, etc.), importados e/ou transacionados em Lisboa,
recaíam encargos fiscais que, ao longo do período medieval, conheceram uma
nítida evolução, sendo que o reinado de D. João I foi a este nível um ponto
de viragem. De facto, no decurso de quase meio século de governação, D.
João I reformou o quadro da fiscalidade régia em Lisboa, quer pela concessão
de privilégios de isenção, quer pela institucionalização de novos impostos,
designadamente as sisas gerais e a dízima nova do pescado. Para além disso,
o reinado deste monarca foi também um período de frequentes carestias, que
obrigaram à adaptação do fisco régio de modo a salvaguardar o abastecimento
desta cidade. Com efeito, o presente estudo presta-se a dar a conhecer o aparelho
fiscal montado pela Coroa em torno do abastecimento de Lisboa, com enfoque
sobre os produtos alimentares, e, de resto, presta-se a explicar de que forma o
abastecimento desta cidade condicionou a política fiscal régia, ao tempo de D.
João I.
Palavras chave
Abastecimento urbano; Produtos alimentares; Fiscalidade régia; Privilégios de
isenção fiscal; Crises frumentárias.
1
IEM-NOVA FCSH.
512
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Lisbon at the time of D. João I (1383-1433): royal taxation and
urban supply
Abstract
Given its dimensions and its demographic weight, Lisbon was the main city
of Medieval Portugal, and also the one whose supplying needs were harder to
accommodate. Essential goods, such as cereal, meat, fish, vegetables, wine, etc.,
that were either imported or traded in Lisbon were taxed by the Crown and,
at the time of D. João I, royal fiscality undertook significant changes, brought
about by the fiscal privileges granted to Lisbon’s municipality and by the
collection of new taxes. Furthermore, the reign of D. João I was also a period
of frequent shortages that forced royal fiscality to adapt to ensure that Lisbon’s
supplying needs were met. Therefore, the following text aims to present the
fiscal apparatus established by the Crown in order to tax Lisbon’s supply system
of essential goods, and also to explain how supplying this city conditioned royal
fiscal policy.
Keywords
Urban supply; Essential goods; Royal fiscality; Fiscal privileges; Shortages.
1. Uma aproximação à Lisboa de D. João I.
A partir da segunda metade do século XIII, Lisboa foi-se progressivamente
afirmando como cabeça do reino, um estatuto que, antes do reinado de D. João I, era
já praticamente incontestável. No contexto da rede urbana medieval portuguesa, o
protagonismo de Lisboa achava-se plasmado a diversos níveis.
Desde logo, do ponto de vista político, mercê das frequentes e prolongadas
estâncias da comitiva régia, configurava o espaço privilegiado da presença régia e do
exercício do poder real2. Para além disso, a oligarquia camarária lisboeta beneficiava
de um acesso privilegiado à figura régia e mantinha com a Coroa e respetivo oficialato
2
ANDRADE, Amélia Aguiar – “Lisboa Medieval, Cabeça do Reino, Cidade de Muitas e Desvairadas
Gentes”. In ANDRADE, Amélia Aguiar, FARELO, Mário, GOMES, Marta (eds.) – Pão, carne e água: memórias
de Lisboa medieval. Lisboa: Arquivo Municipal de Lisboa - Instituto de Estudos Medievais, 2019, pp. 37, 40.
NA LISBOA DE D. JOÃO I (1385-1433): FISCALIDADE R ÉGIA E ABASTECIMENTO
513
uma relação de forte dependência3.
Do ponto de vista económico, destacava-se pela sua intensa atividade comercial,
favorecida pela sua posição geográfica privilegiada, - assegurada pela sua implantação
na embocadura de um dos principais cursos de água peninsulares, o rio Tejo, e
pela sua proximidade ao Atlântico-, que lhe permitia, em simultâneo, estabelecer
contactos comerciais com o interior do reino, com o Norte e Sul de Portugal e
também com a restante Europa. Em acréscimo, o estuário do Tejo configurava um
porto natural, amplo e abrigado, favorável à navegação marítima e fluvial, à pesca
e à construção naval4. Com efeito, à cidade de Lisboa afluía um grande número de
pessoas e de mercadorias das mais diversas proveniências e, no contexto do Portugal
medieval, desempenhava o papel de principal centro redistribuidor5.
Por outro lado, a preponderância desta cidade explica-se pela sua dimensão
e pelo seu peso demográfico, subsequentes de uma conjuntura de acentuado
crescimento, que Lisboa viveu, desde, pelo menos, meados do século XIII. De facto,
o seu espaço amuralhado, após a edificação da Cerca Fernandina, compreendia uma
área superior a 100 hectares e, no último quartel do século XIV, tinha uma população
de aproximadamente 35.000 habitantes6, sendo, por isso, a maior e mais densamente
povoada cidade do reino, embora, em termos europeus, fosse um núcleo urbano
de médias dimensões7. Para lá da Cerca Fernandina, a cidade de Lisboa espraiavase ainda por três arrabaldes e enquadrava um termo que compreendia uma área
alargada, - conquanto nem sempre estável -, dotada de uma notável aptidão agrícola,
subjacente aos seus solos férteis e irrigados e aos seus terraços aluviais formados
pelos depósitos arenosos e lodosos gerados pelas cheias ocasionais do Tejo8.
O abastecimento de Lisboa dependia, desde logo, do seu alfoz9, que lhe fornecia
Dentro de uma população de 128 oligarcas, que estiveram em funções entre 1325 e 1433, 69
desempenharam funções ao nível do oficialato régio, 18 tinham laços de dependência com o rei e 41
apresentavam ambas as situações, sendo que dos 59 que tinham laços de dependência com o rei (18+41), 81%
eram vassalos régios, 15% eram criados do rei, 2% eram privados do monarca e 2% eram beneficiários da
mercê régia. FARELO, Mário – A Oligarquia Camarária de Lisboa (1325-1433). Lisboa: Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, 2008. Tese de doutoramento, pp. 273-274, 302.
4
ANDRADE, Amélia Aguiar – “Lisboa Medieval…”, p. 38.
5
ANDRADE, Amélia Aguiar; MIRANDA, Flávio – “Lisbon: Trade, Urban Power and the King’s Visible
Hand”. In BLOCKMANS, Wim, WUBS-MROZEWICZ, Justyna, KROM, Mikhail (eds.) – The Routledge
Handbook of Maritime Trade Around Europe, 1300-1600: Commercial Networks and Urban Autonomy.
London: Routledge, 2017, p. 336.
6
MARQUES, A. H. de Oliveira – “Lisboa”. In MARQUES, A. H. de Oliveira; GONÇALVES, Iria,
ANDRADE, Amélia Aguiar – Atlas de Cidades Medievais Portuguesas: séculos XII-XV. Lisboa: Centro de
Estudos Históricos da Universidade de Lisboa, 1990, p. 55.
7
ANDRADE, Amélia Aguiar – “Lisboa Medieval…”, p. 37.
8
CATARINO, Maria Manuela – Na Margem Direita do Baixo Tejo: paisagem rural e recursos alimentares.
Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1998. Dissertação de
Mestrado, pp. 9-10.
9
GONÇALVES, Iria – “Lisboa e o seu abastecimento em cereais”. In ANDRADE, Amélia Aguiar,
FARELO, Mário, GOMES, Marta – Pão, carne e água: memórias de Lisboa medieval. Lisboa: Arquivo
Municipal de Lisboa - Instituto de Estudos Medievais, 2019, p. 51.
3
514
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
um importante conjunto de produtos alimentares, tais como cereais, vegetais, fruta,
vinho, azeite, mel, peixe e carne10. Todavia, a capacidade produtiva do alfoz não
acompanhou o acelerado crescimento da cidade e, por isso, não podia, por si só,
satisfazer as necessidades de consumo de um núcleo urbano com as dimensões e
peso demográfico de Lisboa, que, de resto, se procurava abastecer um pouco por todo
o reino. Neste sentido, a sua influência consumidora estendia-se sobre uma vasta
área, fazendo-se sentir com particular vigor sobre os centros urbanos circundantes11.
Por outro lado, Lisboa dependia ainda dos produtos alimentares provenientes do
estrangeiro, sobretudo os cereais, em torno dos quais se organizou um complexo
circuito de abastecimento à escala internacional12.
Abastecer a cidade de Lisboa não era, portanto, tarefa fácil, especialmente em
maus anos agrícolas e em tempo de guerra, duas circunstâncias que, com frequência,
estiveram na origem de crises frumentárias, obrigando à tomada de medidas por
parte da edilidade lisboeta e da Coroa, medidas essas que, em certas ocasiões, se
traduziram na adaptação das práticas fiscais régias em função das necessidades de
abastecimento da cidade.
2. A fiscalidade régia em Lisboa nas vésperas do Interregno.
Um elemento indissociável do abastecimento de Lisboa era a fiscalidade, em
particular a fiscalidade régia, aqui entendida como um fator num difícil equilíbrio
entre as necessidades de consumo da cidade e os objetivos de cobrança subjacentes
à atuação do fisco régio13.
Nas vésperas da crise política de 1383 – 1385, que desencadeou a guerra
contra Castela (1383-1411), a fiscalidade régia em Lisboa traduzia-se na aplicação
de um conjunto diverso de impostos e taxas, que incidiam, de forma direta, sobre
a exploração agrícola (jugada), a caça (condado), a pesca (dízima do pescado), a
utilização dos fornos de telha (dízima da telha) e a escrita (tabeliado); e, de forma
indireta, sobre o comércio urbano (açougagem, fangagem, alcavala, salaio, relegagem,
mordomado, direito dos lombos) e o trânsito de mercadorias à escala nacional
(portagens e costumagens) e à escala internacional (dízima alfandegária), aos quais
acresciam ainda os impostos que recaíam sobre a minoria judaica (serviço real,
ANDRADE, Amélia Aguiar; MIRANDA, Flávio – “Lisbon: Trade, Urban Power…”, p. 337.
ANDRADE, Amélia Aguiar; MIRANDA, Flávio – “Lisbon: Trade, Urban Power…”, p. 338.
12
GONÇALVES, Iria – “Lisboa e o seu abastecimento…”, p. 53.
13
A fiscalidade aplicada pelo concelho de Lisboa incidia igualmente sobre o abastecimento urbano.
Todavia, o estudo da articulação entre o sistema fiscal concelhio e as dinâmicas de abastecimento deste núcleo
urbano ultrapassa o escopo do presente texto. Não obstante, sobre a fiscalidade municipal em Lisboa, veja-se:
RODRIGUES, Maria Teresa Campos – Aspectos da Administração Municipal de Lisboa no século XV. Lisboa:
Câmara Municipal, Separata da Revista Municipal 101-109 (1966), pp. 73-80.
10
11
NA LISBOA DE D. JOÃO I (1385-1433): FISCALIDADE R ÉGIA E ABASTECIMENTO
515
genesim, etc.) e islâmica (azaqui, alfitra, etc.)14. No seu conjunto, estes encargos
configuravam o elenco fiscal aplicado pela Coroa em Lisboa, sendo que, dentro
do quadro global da fiscalidade régia, apesar da existência de modelos de foral e
de elementos fiscais comuns a vários concelhos, cada um tinha uma configuração
fiscal própria, subjacente ao respetivo foral, às suas práticas consuetudinárias e aos
privilégios emanados do poder real.
A constituição deste aparato fiscal teve início no período subsequente à
conquista da cidade pelas forças cristãs, em 1147, tendo sido objeto de um primeiro
enquadramento aquando a outorga do foral, que, em 1170, D. Afonso Henriques
concedeu aos mouros forros de Lisboa, de Almada, de Palmela e de Alcácer15, e do
foral que, em 1179, atribuiu ao concelho de Lisboa16. Posteriormente, o quadro fiscal
consagrado nestes dispositivos foralengos sofreu alterações, subjacentes à atualização
das taxas adscritas a alguns destes impostos, à atribuição de privilégios de isenção e
à adoção de novas soluções fiscais. De facto, alguns dos referidos encargos foram, na
verdade, introduzidos num momento posterior à elaboração desses textos foralengos.
É o caso da dízima alfandegária17 e do tabeliado18, cuja institucionalização teve lugar
na segunda metade do século XIII, no contexto de uma estratégia de reforço do
poder régio desenvolvida pela Coroa nesta cronologia.
14
Sobre a aplicação da fiscalidade régia em espaços urbanos no Portugal medieval, veja-se, por exemplo:
BEIRANTE, Maria Ângela da Rocha – Santarém Medieval. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
da Universidade Nova de Lisboa, 1980, pp. 239-250. Sobre a fiscalidade régia em núcleos urbanos do espaço
ibérico, veja-se, por exemplo: MENJOT, Denis – Fiscalidad y sociedad: los murcianos y el impuesto en la Baja
Edad Media. Múrcia: Academia Alfonso X el Sabio, 1986, pp. 141-149. ORTÍ GOST, Pere – Renda i Fiscalitat en
una ciutat medieval: Barcelona, segles XII-XIV. Barcelona: CSIC, 2000, pp. 397-529.
15
Ordenações Afonsinas – Nota de apresentação de Mário Júlio de Almeida Costa e nota textológica de
Eduardo Borges Nunes, 2ª ed., Vol. 2. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998, pp. 529-531.
16
“Foral de Lisboa de 1179”. In CAETANO, Marcelo – A administração municipal de Lisboa durante
a primeira dinastia (1179-1383). Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1981, pp. 114-123. No foral de
1179, encontra-se consagrada a aplicação da jugada, açougagem, salaio, alcavala, condado, dízima do pescado,
portagens e dízima da telha. Todavia, o texto foralengo não apresenta um elenco sistemático das obrigações
fiscais dos moradores de Lisboa e respetivo alfoz, referindo apenas aquelas que, à data da outorga do foral, se
pretendeu fixar ou atualizar. Com efeito, o foral é omisso em relação a certos encargos, cuja satisfação estava
já então estabelecida. Tal pode ter sido o caso da fangagem, das costumagens, do mordomado e do direito dos
lombos, que surgem documentados a partir do século XIV, embora a sua arrecadação fosse, por certo, muito
anterior.
17
Não foi possível precisar o momento a partir do qual se impôs a cobrança da dízima alfandegária
em Lisboa. Sabe-se, porém, que remonta, pelo menos, ao reinado de D. Afonso III, uma vez que a primeira
referência documental à sua arrecadação data de 1274. Para além disso, sabe-se que, em 1288, Lisboa dispunha
já de uma alfândega, isto é, um edifício próprio onde se procedia à cobrança da dízima. PEREIRA, João
Cordeiro – Para a História das Alfândegas em Portugal no início do século XVI (Vila do Conde – Organização
e Movimento). Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1983, p. 22,
24.
18
Não foi possível determinar o momento em que se estabeleceu a cobrança do tabeliado, que, todavia,
foi objeto de um enquadramento entre 1287 e 1290, quando D. Dinis fixou o valor global a satisfazer pelos
tabeliães de cada localidade. MARQUES, A. H. de Oliveira – “A população portuguesa nos fins do século
XIII”. In Ensaios de História Medieval Portuguesa. 2ª ed. Lisboa: Editorial Vega, 1980, pp. 57-65.
516
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Para além destes impostos, que, a título ordinário, os oficiais régios arrecadavam
em Lisboa, a Coroa socorria-se igualmente de uma fiscalidade extraordinária,
constituída pelos serviços, isto é, os subsídios que o concelho de Lisboa, à semelhança
de outros, outorgava ao rei, quando para isso solicitado, recebendo, em troca,
privilégios e mercês. A outorga dos serviços era objeto de negociações particulares
entre o rei e o concelho, a cargo do qual ficava a arrecadação do quantitativo outorgado,
sendo que, para o efeito, estava autorizado a lançar impostos extraordinários, tais
como sisas, talhas e fintas19. Os serviços tinham, portanto, um caráter distinto dos
pedidos régios20, – cuja cobrança se generalizou a partir do reinado de D. João I,
conquanto não tenha substituído a outorga de serviços21 –, dado que os pedidos eram
outorgas coletivas feitas, em Cortes, pelos concelhos aí reunidos, e, por isso, eram
arrecadados de forma uniforme em todo o reino, tendo, desde cedo, tomado a forma
de um imposto direto sobre os bens das pessoas tributáveis22.
Paralelamente à outorga de serviços, o concelho de Lisboa procedia ao lançamento de sisas para solver as despesas próprias da edilidade em situações de aperto financeiro23. Uma prática que, todavia, foi abandonada no reinado de D. João I,
quando, a partir de 1387, a Coroa se apropriou das sisas concelhias, sendo que, daí
19
O primeiro destes serviços feitos pelo concelho de Lisboa à Coroa data de 1308. Não se sabe de
que forma foi arrecadado, pois as fontes não o revelam. Livro dos Pregos: estudo introdutório, transcrição
paleográfica, sumários e índices – VIEGAS. Inês Morais, GOMES, Marta (coord.), MARTINS, Miguel Gomes,
LOUREIRO, Sara de Menezes (trans.), Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 2016, doc. 26, p. 85. Ainda no
século XIV, no período precedente à crise dinástica de 1383-1385, conhecem-se outros serviços feitos pelo
concelho, sob pretextos diversos. Livro I de Místicos de Reis, Livro II dos Reis D. Dinis, D. Afonso IV, D. Pedro
– Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 1947, doc. 3, pp. 13-15 (1336); Lisboa, Arquivo Municipal de Lisboa –
Arquivo Histórico (AML-AH), Livro 1º de Serviços a El-Rei, doc. 2 (1357); Livro dos Pregos…”, doc. 71, p. 148
(1373); Lisboa, Torre do Tombo (TT), Chancelaria de D. Fernando, liv. 4, fls. 7v. e 19 (1376), fls. 68v. (1383).
20
HENRIQUES, António Castro – State Finance, War and Redistribution in Portugal, 1249-1527. York:
Universidade de York, 2008. Tese de doutoramento, p. 207.
21
De facto, no século XV, para além de participar nos pedidos régios, o concelho de Lisboa contribuiu
igualmente com serviços: em 1427, para o casamento de D. Duarte com D. Isabel de Aragão; em data incerta,
mas anterior a 1433, para o câmbio do infante D. Pedro; em 1436, por ocasião da primeira visita do príncipe D.
Afonso a Lisboa; e, por fim, em 1476, para pagar o soldo dos contingentes concelhios que se encontravam em
Castela. Chancelarias portuguesas: D. João I. Organização e revisão geral de João Alves Dias. Lisboa: Centro de
Estudos Históricos - Universidade Nova de Lisboa, 2006, vol. 4, t. 2, doc. 671, p. 159 (1427). Lisboa, AML-AH,
Livro 1º de Serviços a El-Rei, doc. 8 (1433), 9 (1436). Livro dos Pregos…”, doc. 413, 414, 415, pp. 538-540 (1476).
22
Iria Gonçalves considerou que o primeiro pedido régio foi votado nas Cortes de Guimarães de 1308.
GONÇALVES, Iria – Pedidos e empréstimos públicos em Portugal durante a Idade Média. Lisboa: Centro de
Estudos Fiscais da Direção Geral das Contribuições e Impostos – Ministério das Finanças, 1964, p. 39, 131132. Todavia, parece-nos que, na verdade, nesta reunião de Cortes não foi acordada a outorga de um pedido,
mas sim de serviços, oferecidos por vários concelhos, designadamente o de Lisboa. Na nossa opinião, a origem
dos pedidos régios situa-se no subsídio outorgado pelos povos a D. João I, nas Cortes de Coimbra de 1385, pois
foi nesta ocasião que, pela primeira vez, foi votado, em Cortes, um subsídio geral, sob um pretexto diverso da
conservação da moeda. Sobre as deliberações das Cortes de Coimbra de 1385, veja-se: CAETANO, Marcelo
– As Cortes de 1385. T. 5, vol. 2. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1951. Separata da Revista Portuguesa de
História, p. 98.
23
Livro I de Místicos de Reis, Livro II dos Reis D. Dinis, D. Afonso IV, D. Pedro…, doc. 6, pp. 23-25
(1355); Lisboa, AML-AH, Livro 1º de Serviços a el-Rei, doc. 2 (1356); Livro I de Místicos, Livro II d’el Rei D.
Fernando – Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 1949, doc. 5, pp. 33-37 (1362). Lisboa, AML-AH, Livro 1º de
Sentenças, doc. 18 (1381).
NA LISBOA DE D. JOÃO I (1385-1433): FISCALIDADE R ÉGIA E ABASTECIMENTO
517
em diante, o pagamento dos serviços ficou subordinado ao lançamento de talhas e
fintas.
3. A Crise de 1383-1385.
O quadro fiscal régio aqui apresentado sofreu, todavia, alterações significativas
durante o Interregno e ao longo do reinado de D. João I.
De facto, no contexto da crise dinástica, desencadeada pela morte de D. Fernando,
a cidade de Lisboa desempenhou um papel fundamental na afirmação da dinastia de
Avis, tendo-se pronunciado declaradamente contra a regência da Rainha D. Leonor
e recebido D. João, Mestre de Avis, como regente e defensor do reino, incentivando
outros concelhos a proceder de igual modo24. Para além do seu inestimável apoio,
Lisboa sofreu duramente os efeitos da guerra contra Castela, tendo, em Fevereiro de
1384, sofrido um ataque de uma frota castelhana e, entre Maio e Setembro de 1384,
estado cercada pelas forças de João I de Castela25, sendo que, durante este período, a
população lisboeta viveu uma situação de fome generalizada, devido à destabilização
do sistema produtivo e à interrupção dos circuitos normais de abastecimento da
cidade26. Com efeito, o Mestre de Avis, ao longo do ano de 1384, julgou necessário,
por um lado, recompensar o concelho pelo apoio e serviços prestados e assegurar a
sua colaboração em situações futuras e, por outro lado, promover o aprovisionamento
da cidade, tendo, para o efeito, atribuído diversos benefícios fiscais.
Desde logo, em Abril de 1384, na sequência do referido ataque da frota
castelhana e na preparação do cerco que se avizinhava, D. João isentou os moradores
de Lisboa da portagem, usagem e costumagem a satisfazer quer pelas mercadorias
trazidas de outras partes do reino à cidade, quer pelas mercadorias daí exportadas27.
À data, os vizinhos de Lisboa estavam já dispensados do pagamento destes direitos
pelos produtos trazidos à cidade para consumo próprio, mediante o pagamento
anual de 1 soldo à Portagem28. Todavia, mercê deste privilégio fiscal, a partir de 1384,
a isenção estendeu-se às mercadorias importadas para efeitos comerciais.
Depois, em Outubro de 1384, após o cerco ter sido levantado, o Mestre de Avis
concedeu novos privilégios, tendo isentado os moradores de Lisboa do pagamento
de portagens, usagens e costumagens em qualquer parte do reino, bem como
24
COELHO, Maria Helena da Cruz – D. João I: o que re-colheu Boa Memória. Lisboa: Temas e Debates,
2008, pp. 46-50.
25
COELHO, Maria Helena da Cruz – D. João I…, pp. 57-58, 63-69. MARTINS, Miguel Gomes – Lisboa
e a Guerra (1367-1411). Lisboa: Livros Horizonte, 2001, pp. 70-73.
26
MARTINS, Miguel Gomes – “Abastecer as cidades em contexto de guerra: o cerco de Lisboa em
1384”. In ARIZAGA BOLUMBURU, Beatriz; SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús Ángel (coord.) – Alimentar la
ciudad en la Edad Media. Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 2009, pp. 140-145.
27
Livro dos Pregos…, doc. 133, pp. 261-262.
28
Lisboa, TT, Núcleo Antigo, 357, fl. 30v. (Foral da Portagem de Lisboa).
518
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
dispensado da satisfação da alcavala, da mealharia e da açougagem todos aqueles
que trouxessem à cidade pão, carne e quaisquer outros mantimentos29, um privilégio
que visava evidentemente atrair os produtores e mercadores à cidade, tendo em vista
a satisfação das carências alimentares de uma população que estivera submetida a
um prolongado cerco30. Uma vez que a cobrança de alguns dos referidos direitos
quitados por D. João tinha lugar nos paços das carniçarias, das fangas da farinha e
do trigo, que pertenciam à Coroa, o Mestre de Avis, a pedido do concelho, doou-lhe
ainda estes equipamentos, juntamente com os direitos que aí se arrecadavam31.
Por fim, ainda em Outubro de 1384, D. João abdicou da cobrança da jugada,
da relegagem, do salaio, do mordomado, da anadaria, do direito dos lombos, da
açougagem, da mealharia e da alcavala em Lisboa32. Deste modo, o Mestre de Avis
confirmou e alargou o âmbito dos privilégios anteriormente outorgados, tendo
produzido uma reordenação da fiscalidade aplicada pelo poder régio nesta cidade,
por via da desconstrução do complexo aparelho fiscal que onerava o comércio
urbano, subjacente à cobrança da açougagem e da fangagem, que incidiam sobre
a utilização dos açougues e das fangas controlados pela Coroa33; à arrecadação da
relegagem, da alcavala e do salaio, que recaíam sobre a transação de certos produtos,
tais como o vinho, a carne, os cereais e o pão34; à aplicação do julgado das vacas,
parte integrante do mordomado, e do direito do lombos, que oneravam o abate e o
talho de vacas, bois e porcos no interior da cidade e respetivo alfoz35; bem como o
julgado das barcas, que também integrava o mordomado, incidindo, por seu turno,
sobre o peixe trazido em barcas de pesca à cidade para ser vendido no açougue36.
Livro dos Pregos…, doc. 134, pp. 261-262.
MARTINS, Miguel Gomes – “Abastecer as cidades…”, p. 139.
31
Livro dos Pregos…, doc. 128, p. 240.
32
Chancelarias portuguesas: D. João I…, vol. 1, t. 1 (2004), doc. 420, pp. 219-221.
33
A açougagem foi objeto de um primeiro enquadramento aquando a outorga do foral de 1179,
correspondendo então à satisfação de 1 dinheiro por cada vaca, zebro, veado e peixe vendido nos açougues.
É provável que, posteriormente, se tenha procedido à atualização das taxas aplicadas às açougagem. Todavia,
o registo dessa atualização não chegou até nós. “Foral de Lisboa de 1179…”, pp. 116-117. Por seu turno, a
fangagem consistia no pagamento de 1 dinheiro por cada cesto de pão vendido nas fangas. Cortes Portuguesas,
reinado de D. Afonso IV (1325-57). Ed. de A. H. Oliveira Marques. Lisboa: Centro de Estudos Históricos da
Universidade Nova de Lisboa, 1982, pp. 80-81 (artigo 65º).
34
A relegagem configurava um imposto de 1 almude por cada carga cavalar de vinho vendido ao
tempo do relego, isto é, o monopólio régio da venda do vinho. “Foral de Lisboa de 1179…, p. 115. A alcavala
correspondia ao pagamento de 3 dinheiros, pelas cabeças de vaca e de boi, e de 1 dinheiro pelas cabeças de
carneiro, ovelha, cabra e porco vendidas na cidade. Lisboa, TT, Núcleo Antigo, 357, fl. 14v. A alcavala incidia
também sobre a venda de cereais, obrigando à entrega de 3 dinheiros por cada carga de besta maior e 3 mealhas
por cada carga de besta pequena transacionada nas fangas da farinha e do trigo. Lisboa, TT, Núcleo Antigo, 357,
fl. 29v. Por seu turno, o salaio consistia no pagamento de 1 de cada 30 pães produzidos, ou de 1 pão por cada 30
soldos de pães vendidos. “Foral de Lisboa de 1179…, p. 121; Lisboa, TT, Núcleo Antigo, 357, fl. 35.
35
O julgado das vacas correspondia ao pagamento de 5 dinheiros por cada vaca e 3 dinheiros por
cada boi abatido e talhado na cidade. Livro dos Pregos…, doc. 156, p. 277. Por seu turno, o direito dos lombos
configurava um encargo de 2 soldos e meio por cada porco talhado para efeitos comerciais. Cortes Portuguesas,
reinado de D. Afonso IV…, p. 67 (artigo 20º).
36
O julgado das barcas constituía um imposto de 2 dinheiros pelo pescado trazido em barcas. Livro dos
29
30
NA LISBOA DE D. JOÃO I (1385-1433): FISCALIDADE R ÉGIA E ABASTECIMENTO
519
Não obstante, embora D. João I tenha abdicado dos direitos fiscais arrecadados nos
espaços entretanto doados ao concelho, afigura-se provável que a edilidade tenha
procedido ao aproveitamento fiscal desses equipamentos, que, sob a jurisdição do
concelho, não se terão convertido em espaços francos.
A outorga dos referidos privilégios teve lugar quando D. João era ainda regente
do reino e, portanto, quando nas Cortes de Coimbra de 1385, foi aclamado rei de
Portugal e viu a sua situação legitimada, uma das prioridades do concelho foi obter
a ratificação desses privilégios, bem como a confirmação dos privilégios, graças e
mercês de natureza diversa outorgados outrossim pelo Mestre de Avis37. Todavia,
nem todos os benefícios fiscais confirmados por D. João I, nessa reunião de Cortes,
foram, efetivamente, respeitados. De facto, em 1390 e em 1394, o concelho de Lisboa
agravou-se ao monarca por razão dos oficiais régios, designadamente o almoxarife
dos celeiros e o das ovenças, não terem respeitado a isenção do mordomado38, da
jugada39 e do direito dos lombos40. Não obstante, em resposta aos agravos do concelho,
D. João I reiterou os seus privilégios fiscais e, mais tarde, em 1415, voltou a confirmar
todos os privilégios concedidos durante o Interregno41.
Graças à prodigalidade régia, Lisboa viu a sua posição de principal cidade
do reino consolidada, achando-se, em definitivo, dotada dos maiores e melhores
privilégios, e, de resto, embora as suas dificuldades de abastecimento se tenham
prolongado para lá do levantamento do cerco, em Setembro de 138442, os benefícios
fiscais concedidos pelo Mestre contribuíram para a recuperação de Lisboa, na
sequência daquele que foi um período de intensa atividade militar, de grandes perdas
humanas e de forte destruição material, marcado outrossim pela escassez de bens
alimentares e pela fome.
4. As inovações fiscais de D. João I.
A reordenação do quadro fiscal estabelecido pela Coroa em Lisboa no contexto da
crise dinástica de 1383-1385 foi acompanhada, no reinado de D. João I, pela adoção
de novas soluções fiscais de caráter geral, cuja aplicação configurou a emergência de
uma fiscalidade de tipo estatal, traduzida na generalização dos já referidos pedidos
régios, a partir de 1385; na conversão das sisas num imposto régio ordinário, a partir
de 1387; e na instituição da dízima nova do pescado em 1420. Uma vez que as sisas
Pregos…, doc. 156, p. 277.
37
Livro dos Pregos…, doc. 129, pp. 240-248.
38
Livro dos Pregos…, doc. 156, p. 277.
39
Livro dos Pregos…, doc. 198, p. 313.
40
Livro dos Pregos…, doc. 197, p. 311-313.
41 Livro dos Pregos…, doc. 280, pp. 372-373.
42
MARTINS, Miguel Gomes – “Abastecer as cidades…”, p. 146.
520
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
incidiam sobre a compra e venda de mercadorias e a dízima nova do pescado recaía
sobre a atividade piscatória e o trânsito do pescado, a adoção destas novas soluções
fiscais, - apenas com a exceção dos pedidos régios, que incidiam sobre a propriedade
individual das pessoas tributáveis -, produziu uma nova articulação entre a fiscalidade
régia e o abastecimento urbano.
Na verdade, quando, em 1387, os concelhos, os fidalgos e os prelados, reunidos
em Cortes, outorgaram a D. João I as sisas para financiar a guerra contra Castela43,
a arrecadação deste imposto indireto em Lisboa não constituía uma novidade, uma
vez que, conforme tivemos já oportunidade de referir, desde, pelo menos, 1336, que
o concelho procedia ao lançamento de sisas, quer para satisfazer serviços oferecidos
à Coroa, quer para solver as despesas da edilidade. Todavia, até 1387, as sisas
conservaram o seu caráter de imposto extraordinário do sistema fiscal concelhio,
apesar de, entre 1373 e 1383, se ter procedido à sua cobrança de forma praticamente
ininterrupta, e de, em 1382, as sisas terem sido objeto de uma apropriação temporária
por parte de D. Fernando44. Só a partir de 1387, é que as sisas se converteram num
encargo que a população de Lisboa tinha de suportar de forma contínua, pois,
embora a outorga das sisas feita em 1387 fosse válida por apenas um ano, D. João
I, sob o pretexto de continuar a guerra contra Castela, obteve novas outorgas e
sucessivas prorrogações e, num momento em que não foi possível precisar, as sisas
converteram-se num ingresso ordinário da Coroa, sendo que, quando em 1402,
Portugal e Castela acordaram tréguas por 10 anos, as sisas eram já um imposto
ordinário, cuja arrecadação se encontrava sob a alçada do poder régio45. Deste modo,
a partir de 1387, todas as transações (compras, vendas e trocas) ficaram sujeitas ao
pagamento das sisas, das quais ninguém era isento46.
Por seu turno, a institucionalização da dízima nova do pescado, em Janeiro
de 1420, teve lugar num contexto já distinto, tendo-se destinado a dar resposta às
dificuldades sentidas pela Coroa em recrutar galeotes para servir nas galés régias47,
GONÇALVES, Iria – Pedidos e Empréstimos Públicos…, doc. 3, pp. 213-215.
Lisboa, TT, Chancelaria de D. Fernando, liv. 3, fl. 21v-22.
45
De acordo com Fernão Lopes, por ocasião da assinatura destas tréguas, o conselho régio reuniuse para discutir o estado da fazenda real. A partir da narrativa do cronista, sobressai o facto de já então as
sisas serem encaradas como um ingresso ordinário da Coroa. LOPES, Fernão – Crónica de D. João I. Porto:
Civilização, 1994, vol. 2, p. 457.
46
De facto, ninguém era isento das sisas, às quais até a família real estava obrigada pelas compras e
vendas feitas por si ou em seu nome, um princípio que surgiu, pela primeira vez, consagrado no regimento das
sisas, elaborado no ajuntamento de Coimbra de Maio de 1387. GONÇALVES, Iria – Pedidos e Empréstimos
Públicos…, doc. 3, pp. 214.
47
Os galeotes eram recrutados entre os homens do mar (pescadores e barqueiros), depois arrolados em
conjuntos de 20 (vintenas) pelos vintaneiros. Os problemas subjacentes ao seu recrutamento eram numerosos:
recrutavam-se pessoas demasiado novas ou demasiado velhas, que não estavam em condições de servir nas
galés e, muitas vezes, pereciam no mar; uma vez que o recrutamento era forçado e acarretava grandes riscos,
muitos procuraram eximir-se dele, dando dinheiro a pessoas que fossem em seu lugar ou até fugindo, sendo
que, neste caso, os seus bens eram apreendidos e depois vendidos pelos oficiais régios; de resto, não havia
pessoas suficientes para armar mais do que 4 ou 5 galés. Lisboa, TT, Chancelaria de D. João I, liv. 5, fl. 110.
43
44
NA LISBOA DE D. JOÃO I (1385-1433): FISCALIDADE R ÉGIA E ABASTECIMENTO
521
um serviço pessoal do qual os homens do mar (pescadores, barqueiros, etc.) se
podiam eximir, mediante o pagamento deste novo imposto, que consistia em pagar
a dízima de todo o peixe capturado em contexto fluvial e marítimo, sendo que, onde
era costume pagar-se a dízima do pescado, pagar-se-ia, daí em diante, duas dízimas,
ou seja, o quinto do pescado (20% da fauna piscícola capturada)48. Assim, em Lisboa,
onde, desde o século XII, os pescadores pagavam a dízima do pescado, passou a
satisfazer-se o quinto.
Todavia, a dízima nova do pescado depressa ultrapassou o seu âmbito original
de aplicação. De facto, logo em Fevereiro de 1420, D. João I respondeu a uma série
de dúvidas que lhe foram colocadas pelos oficiais da Portagem de Lisboa, -isto é, a
instituição fiscal responsável nesta cidade pela arrecadação desde novo imposto-, e, a
partir das suas respostas, ficou estabelecido que o quinto do pescado a satisfazer pelo
peixe capturado não era acumulável com a dízima que se pagava de portagem pela
entrada e saída do peixe na cidade, de maneira que os pescadores que tivessem solvido
duas dízimas pelo peixe por si apanhado, não tinham de pagar uma terceira dízima se
o levassem para o exterior da cidade, desde que, claro está, apresentassem um alvará
comprovativo segundo o qual tinham pago o quinto do pescado49. Por outro lado, os
estrangeiros que em Portugal comprassem peixe para exportar estavam obrigados a
pagar duas dízimas, em vez de apenas uma dízima de portagem como até então se
fazia50. Deste modo, a dízima nova do pescado ultrapassou o seu âmbito original de
aplicação quer ao nível das pessoas tributadas, quer ao nível do objeto taxado, pois,
em vez de onerar apenas os homens do mar que se queriam eximir do serviço de
galés, pesava também sobre os estrangeiros; e em vez de incidir exclusivamente sobre
a pesca, recaía também sobre a exportação do pescado.
5. A articulação entre o sistema fiscal e o abastecimento urbano.
Com base no que foi referido anteriormente, fica claro que, por um lado, as referidas
isenções fiscais produziram uma reordenação do quadro da fiscalidade régia aplicado
em Lisboa, de maneira que o aparelho fiscal que incidia sobre o abastecimento
da cidade ficou, entre 1384 e 1387, circunscrito às portagens, costumagens, dízima
alfandegária e dízima do pescado. Por outro lado, as inovações fiscais de D. João I
reforçaram a fiscalidade régia sobre abastecimento urbano, onerado pelas sisas gerais
de forma permanente a partir de 1387, e pela dízima nova do pescado, a partir de
1420.
Lisboa, TT, Chancelaria de D. João I, liv. 5, fl. 110.
MARQUES, João Martins da Silva – Descobrimentos Portugueses (edição comemorativa dos
descobrimentos portugueses). Lisboa: Instituto Nacional de Investigação científica, 1988, vol. 1 – Suplemento,
doc. 205-206, pp. 323-324.
50
MARQUES, João Martins da Silva – Descobrimentos Portugueses..., p. 324.
48
49
522
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
A arrecadação destes encargos fiscais fazia-se de forma articulada e bem
definida. Desde logo, o desembargo de todos os produtos provenientes do estrangeiro,
por via marítima, pertencia à Alfândega de Lisboa, onde tinha lugar a arrecadação
da dízima alfandegária, da qual, porém, os mercadores que tivessem despachado as
suas mercadorias noutra alfândega do país, antes de as ter trazido a Lisboa, estavam
dispensados, mediante a apresentação de um alvará comprovativo de como o seu
pagamento já tinha sido efetuado.
Por outro lado, os artigos de outras partes do reino, ao dar entrada em Lisboa,
eram desembargados na Portagem, onde se procedia à cobrança das portagens
e costumagens. As costumagens correspondiam a uma taxa ad valorem única de 4
dinheiros do maravedi, que incidia, exclusivamente, sobre os artigos de marçaria,
especiaria, latoaria, ouro fiado, prata, ferro, pez e aljôfar51, enquanto as portagens
recaíam sobre as restantes mercadorias, assumindo a forma de taxas ad ponderum e
ad valorem, em função da proveniência do produto e da via de acesso à cidade. Deste
modo, considerando o exemplo do trigo, – que, de todos os cereais panificáveis, era
o mais produzido e consumido em todo reino –, verifica-se que, de acordo com o
Foral da Portagem de Lisboa, vigente ao tempo de D. João I, pelo trigo que vinha
de outras partes do reino e dava entrada em Lisboa, por via fluvial, pagava-se de
portagem 1 de cada 30 alqueires52 e, por via marítima, pagava-se a dízima53. Porém, se
o trigo viesse de Almada ou de Coina, pagava-se, por argã (8 alqueires), 4 dinheiros
e, por costal (4 alqueires), 2 dinheiros54; se viesse de Alcácer do Sal, pagava-se, por
argã, 18 dinheiros e, por costal, 9 dinheiros55; e, se viesse de Odemira ou de Sines,
pagava-se de portagem 1 de cada 20 alqueires56. Para além destes direitos de portagem
propriamente ditos, que oneravam o trânsito interno de mercadorias, à Portagem de
Lisboa pertenciam igualmente outros direitos, designadamente a dízima do pescado
e a dízima nova do pescado.
Ao entrar em circulação no mercado da cidade, todos os produtos
transacionados ficavam sujeitos à satisfação das sisas, um encargo suportado a meias
por ambas as partes envolvidas na transação. Com efeito, pelo mesmo artigo, podiam
cobrar-se sisas mais do que uma vez, consoante o número de vezes que fosse vendido,
comprado ou trocado. Dada a multiplicidade de espaços onde, em Lisboa, se
realizavam operações comerciais (açougues, fangas, carniçarias, tendas, lojas, etc.), a
arrecadação das sisas dependia da colaboração dos próprios contribuintes, aos quais
cabia a obrigação de, no prazo de três dias, declarar todas as transações realizadas
Lisboa, TT, Chancelaria de D. Fernando, liv. 1, fls. 84v.-86. Lisboa, TT, Núcleo Antigo, 357, fls. 17-20.
Lisboa, TT, Núcleo Antigo, 357, fl. 26v.
53
Lisboa, TT, Núcleo Antigo, 357, fl. 5.
54
Lisboa, TT, Núcleo Antigo, 357, fl. 14.
55
Lisboa, TT, Núcleo Antigo, 357, fl. 3.
56
Lisboa, TT, Núcleo Antigo, 357, f. 4.
51
52
NA LISBOA DE D. JOÃO I (1385-1433): FISCALIDADE R ÉGIA E ABASTECIMENTO
523
junto dos rendeiros e escrivães das sisas, sob pena de extravio da mercadoria57. Para
além disso, em qualquer transação entre vizinhos do mesmo concelho, cabia ao
vendedor arrecadar a sisa de ambas as partes e depois, no prazo de dez dias, dirigirse aos siseiros para entregar o dinheiro arrecadado, sob pena de pagar o dobro da
sisa58. Numa transação entre um vizinho e um não-vizinho a responsabilidade de
arrecadar a sisa recaía sobre o primeiro59. Não obstante, para além de impor pesadas
penas sobre o incumprimento dos referidos prazos, a arrecadação das sisas era
assegurada pelos siseiros através de uma atenta ação de vigilância sobre a atividade
comercial e sobre o trânsito de mercadorias, assegurada pela consulta dos livros dos
tabeliães, onde se fazia o registo de negócios realizados no concelho60; pelo controlo
de todas as mercadorias que davam entrada e saída na cidade61; e pela realização de
varejamentos, isto é, a inspeção trianual das mercadorias62.
Ao longo do reinado de D. João I, produziram-se, em Cortes, diversos regimentos
referentes às sisas, que, sucessivamente, atualizaram as taxas que lhes estavam
adscritas63. Deste modo, considerando, de novo, o exemplo do trigo, verifica-se que,
em 1387, a taxa adscrita às sisas pela transação do trigo era de 8 dinheiros por libra64,
o que correspondia a um acréscimo de 3,3% sobre cada transação, tendo em conta
que 1 libra correspondia a 240 dinheiros65. A partir de 1398, passou a cobrar-se 2
soldos por libra66, ou seja, um acréscimo de 10% sobre cada transação, considerando
que 1 libra equivalia a 20 soldos67. Assim, tendo em conta a evolução do preço do
alqueire de trigo, em Lisboa, no período aqui considerado68, verifica-se que, por 1
alqueire de trigo, se pagava de sisas, 20 dinheiros (1,6 soldos), em 1389; 1.400 soldos
(2 reais), entre 1419-1425; e, por fim, 1.120 soldos (1,6 reais), em 143269.
57
GONÇALVES, Iria – Pedidos e Empréstimos Públicos…, doc. 3, pp. 214 (1387). Lisboa, Torre do
Tombo, Chancelaria de D. João I, liv. 5, fl. 50v. (1398), fl. 116v. (1418).
58
GONÇALVES, Iria – Pedidos e Empréstimos Públicos…, doc. 3, p. 213 (1387). Lisboa, Torre do Tombo,
Chancelaria de D. João I, liv. 5, fls. 51v-52 (1398), fl. 118v. (1418).
59
GONÇALVES, Iria – Pedidos e Empréstimos Públicos…, doc. 3, pp. 213 (1387). Lisboa, Torre do
Tombo, Chancelaria de D. João I, liv. 5, fl. 51v. (1398), fólio 117v. (1418).
60
GONÇALVES, Iria – Pedidos e Empréstimos Públicos…, doc. 3, p. 214 (1387). Lisboa, Torre do Tombo,
Chancelaria de D. João I, liv. 5, f. 51 (1398), fl. 117 (1418).
61
Lisboa, TT, Chancelaria de D. João I, liv. 5, fl. 51 (1398), fl. 117-117v. (1418).
62
Lisboa, TT, Chancelaria de D. João I, liv. 5, fl. 51 (1398), fl. 117 (1418).
63
No reinado de D. João I foram elaborados, pelo menos, quatro regimentos das sisas, em 1387, 1390,
1398 e 1418. Todavia, o de 1390 não chegou até nós.
64
GONÇALVES, Iria – Pedidos e Empréstimos Públicos…, doc. 3, p. 213.
65
FERRO, Maria José Pimenta – Estudos de História Monetária Portuguesa (1383-1438). Lisboa: [s. n.],
1974, p. 39.
66
Lisboa, TT, Chancelaria de D. João I, liv. 5, fl. 50v. (1398), fl. 116v. (1418).
67
FERRO, Maria José Pimenta – Estudos de História Monetária…, p. 39.
68
50 soldos, em 1389; 20 reais, entre 1419-1425; e 16 reais, em 1432. FERREIRA, Sérgio Matos – Preços,
Salários e Níveis de Vida em Portugal na baixa Idade Média. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do
Porto, 2014. Tese de doutoramento, p. 252.
69
1 soldo = 12 dinheiros; 1 libra = 20 soldos = 240 dinheiros; 1 real branco = 35 libras = 700 soldos.
FERRO, Maria José Pimenta – Estudos de História Monetária…, p. 39.
524
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
6. As condicionantes do abastecimento.
A existência de um aparelho fiscal que onerava o abastecimento de Lisboa não implicava,
todavia, que o fisco régio fosse indiferente aos imperativos do aprovisionamento
urbano, que foi, aliás, uma das preocupações da Coroa e dos dirigentes locais,
na justa medida em que a satisfação das necessidades de consumo de Lisboa era
indispensável à manutenção da ordem interna da cidade e, por extensão, do reino.
Evidência disso é o facto de D. João I ter concedido diversos privilégios de isenção
fiscal a algumas vilas e cidades do reino (Alcácer do Sal, Almada, Cascais, Coina,
Lourinhã, Palmela, Santarém, Setúbal e Sintra; Abrantes, Aveiro, Lagos, Odemira e
Porto), assim como a regiões e reinos estrangeiros (Andaluzia, Bretanha, Inglaterra
e Flandres), sob a condição de que trouxessem cereais a Lisboa70; bem como o facto
de D. João I, ao longo do seu reinado, ter atribuído, em diversas ocasiões, isenções
de caráter temporário da dízima e/ou das sisas sobre certos produtos alimentares,
designadamente os cereais, os legumes e o peixe.
De facto, em 1397, ainda no contexto da guerra contra Castela, D. João I, face à
escassez de géneros em Lisboa, isentou da dízima todos os cereais trazidos à cidade,
quer de outras partes do reino, quer de fora, conforme solicitado pelo concelho71.
A isenção era válida até ao final da guerra, porém, - uma vez que, entretanto, o
concelho fizera acordos com alguns mercadores para que trouxessem cereais a
Lisboa-, a pedido da edilidade, D. João I comprometeu-se a manter a isenção da
dízima para esses mercadores, ainda que a paz com Castela fosse assinada72, o que,
todavia, se verificou apenas em 1411. Após a guerra, em 1412, Lisboa achou-se, de
novo, confrontada com a falta de cereais e D. João I, a pedido do concelho, isentou
da dízima os cereais que, até 1413, fossem trazidos de fora do reino à cidade73. A
isenção era, portanto, válida por apenas um ano, todavia, em Julho de 1412, o rei
prolongou-a até Janeiro de 141474, e em Agosto de 1412, estendeu-a igualmente aos
cereais que, de outras partes do reino, fossem trazidos por via marítima à cidade75.
Em acréscimo, em Outubro de 1412, isentou das sisas todos os legumes importados
da Bretanha, sendo que a isenção se aplicava apenas ao vendedor e, portanto, o
comprador continuava obrigado à sisa76. Em Agosto de 1413, a pedido do concelho,
D. João I prolongou todas as referidas isenções até 141577.
ANDRADE, Amélia Aguiar; MIRANDA, Flávio – “Lisbon: Trade, Urban Power…”, p. 340.
Livro dos Pregos…, doc. 220, p. 334.
72
Livro dos Pregos…, doc. 221, p. 334.
73
Lisboa, AML-AH, Livro 1º do provimento do pão, doc. 17.
74
Lisboa, AML-AH, Livro 1º do provimento do pão, doc. 17.
75
Lisboa, AML-AH, Livro 1º do provimento do pão, doc. 18.
76
Lisboa, TT, Chancelaria de D. João I, liv. 5, fl. 60v.
77
Lisboa, AML-AH, Livro 1º do provimento do pão, doc. 3.
70
71
NA LISBOA DE D. JOÃO I (1385-1433): FISCALIDADE R ÉGIA E ABASTECIMENTO
525
Mais tarde, em 1422, Lisboa enfrentava, de novo, dificuldades e, por isso,
D. João I, voltou a isentar da dízima os cereais importados do estrangeiro, tendo
depois, ainda em 1422, alargado a isenção à sisa sobre a venda de cereais78. Ambas
as isenções eram válidas até Setembro de 1423, tendo sido prolongadas por mais
um ano, até Setembro de 142479, e, depois, até Setembro 142580. Por fim, em 1426,
as dificuldades persistiam, e, por isso, o concelho preparava-se para comprar cereais
em Inglaterra e, de modo a viabilizar o negócio, requereu ao rei que isentasse da sisa
tanto os compradores, como os vendedores de cereais, ao que D. João I, mais uma
vez, acedeu, tendo suspendido a cobrança da sisa do pão até Outubro de 142781.
A escassez de cereais e de legumes não foi, todavia, o único dos problemas de
abastecimento com os quais Lisboa se deparou neste período. Aliás, em 1431, devido
à falta de sardinhas, D. João I concordou em isentar da dízima nova do pescado o peixe
importado do estrangeiro. Uma isenção válida apenas por um ano, até Fevereiro de
143282.
Assim, verifica-se que no final do século XIV e nas décadas iniciais da centúria
seguinte as situações de escassez de víveres em Lisboa foram frequentes, sendo
que, embora, ao tempo de D. João I, a ocorrência de carestias não constituísse uma
novidade83, foi no seu reinado que se aplicou e generalizou a prática de atribuir
benefícios fiscais de caráter temporário, - válidos, normalmente, por 1 ano, conquanto
sujeitos a prorrogações-, em articulação com as necessidade de aprovisionamento de
Lisboa, uma cidade difícil de abastecer, devido ao seu peso demográfico, e, por isso,
vulnerável à ocorrência de maus anos agrícolas e à destabilização dos seus circuitos
normais de abastecimento.
7. Considerações finais.
O reinado de D. João I configurou, portanto, um período decisivo para a evolução da
fiscalidade régia em Lisboa, devido, por um lado, às isenções fiscais concedidas pelo
Mestre de Avis durante o Interregno; e, por outro lado, às inovações fiscais de D. João
I, que, no seu conjunto, produziram uma reordenação do quadro fiscal aplicado pelo
poder régio nesta cidade e, por extensão, uma nova articulação entre o fisco régio e
aprovisionamento deste núcleo urbano. Por outro lado, quer no contexto da crise de
1383-1385, quer no decurso da governação deste monarca, Lisboa enfrentou, por
Lisboa, AML-AH, Livro 1º do provimento do pão, doc. 6.
Lisboa, AML-AH, Livro 1º do provimento do pão, doc. 7.
80
Lisboa, AML-AH, Livro 1º do provimento do pão, doc. 9.
81
Lisboa, AML-AH, Livro 1º do provimento do pão, doc. 11.
82
Livro dos Pregos…, doc. 301, p. 396.
83
A. H. de Oliveira Marques assinalou a ocorrência de crises cerealíferas em 1355-56, 1364-1366, 137172 e 1374-76. Vide MARQUES, A. H. de Oliveira – Introdução à História da Agricultura em Portugal: a questão
cerealífera durante a Idade Média. 3ª ed. Lisboa: Edições Comos, 1978, pp. 257-260.
78
79
526
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
diversas vezes, situações de escassez de víveres, tendo-se, nestas ocasiões, colocado
a fiscalidade régia ao serviço do abastecimento da cidade, através da concessão de
privilégios fiscais, alguns de caráter permanente, e outros temporários, válidos por
curtos períodos de tempo, embora sujeitos a prorrogações.
El Diezmo de los “Trigos” del Cabildo
Catedralicio del Reino de Mallorca:
Estructura Y Recaudación (1400-1420)
Maria del Camí Dols Martorell1
Resumen
El propósito de la investigación es demostrar la importancia del diezmo de
los cereales dentro del conjunto de las finanzas catedralicias. A través de un
análisis detallado de los legajos referentes a la serie documental de Mensa
Capitular, custodiados en el Archivo Capitular, descifraremos la estructura,
el funcionamiento y los beneficios que reportaba este impuesto al Cabildo
mallorquín y, finalmente, evidenciaremos que el diezmo de los cereales era
también fuente de abastecimiento en la “Ciutat” de Mallorca a lo largo de la
época medieval.
Palabras clave
Diezmo; Cereales; Capítulo de la Catedral de Mallorca; Beneficios;
Abastecimiento.
The Ten of the “Wheats” of the Cathedral Cabildo of the Kingdom
of Mallorca: Structure and Collection (1400-1420)
Abstract
The purpose of the research is to demonstrate the importance of the tithe of
cereals within the set of cathedral finances. Through a detailed analysis of the
files referring to the documentary series of Mensa Capitular, kept in the Chapter
Archive, we will decipher the structure, operation and benefits that this tax
1
Universitat de les Illes Balears.
528
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
brought to the Majorcan Council and, finally, we will show that the tithe of
the Cereals was also a source of supply in the “Ciutat” of Mallorca throughout
medieval times.
Keywords
Tithe; Cereals; Chapter of the Cathedral of Mallorca; Catering; Benefits.
1. Introducción.
El diezmo de los cereales, que a continuación se analizará, fue uno de los tributos
más importantes del que se servía la Iglesia de Mallorca para engrosar sus arcas,
tributo que gozaba de un complejo y configurado sistema de estructuración y
funcionamiento.
El presente estudio se enmarca cronológicamente entre los años 1400 y 1420,
periodo donde la situación político-económica del Reino de Mallorca no era
demasiado alentadora. Por un lado, existía una relación tensa entre el poder terrenal
y el espiritual, liderado este último por el obispo D. Lluís de Prades i Arenós2. Por
otro lado, a esta tesitura de malestar político se le sumaría la desfavorable situación
económica. Las producciones agrícolas, durante este periodo, no eran suficientes
para abastecer a toda la población, aunque algunos propietarios almacenaban parte
de la producción: unos, con fines especulativos; y, otros, en cambio, para aligerar en
lo posible la pesada carga del pago del diezmo sobre el rendimiento deficitario.
En los campos de cultivo, al igual que en el resto de las ciudades europeas,
se practicaba una agricultura de subsistencia que, unida a las inclemencias
meteorológicas y al uso de utensilios anticuados, la abocaban a continuas crisis
productivas, conduciendo a la consiguiente crisis de subsistencia y, todo ello, a crisis
demográficas por la falta de alimentos.
La solución a la que tuvieron que recurrir las autoridades del Reino de Mallorca
para hacer frente al problema de abastecimiento básico fue la importación de víveres,
fundamentalmente, cereales.
Ante la difícil situación del campo mallorquín, el ciclo natural de los productos
agrarios seguía su curso y, aunque la producción fuera mísera y deficiente, los
diezmos, y entre ellos el de los cereales, se seguían cobrando de manera sistemática,
llegando a recaudar sustanciosas sumas de dinero, tanto por parte de la Procuración
2
SASTRE MOLL, J. – La Seu de Mallorca. La prelatura de D. Lluís de Prades i Arenós (1390-1430).
Palma: Consell de Mallorca, 2007.
EL DIEZMO DE LOS “TRIGOS” DEL CABILDO CATEDR ALICIO DEL R EINO DE MALLORCA
529
Real como por la parte del Cabildo catedralicio, a través de su Procurador General3.
En este contexto, la presente investigación girará en torno a tres ejes principales:
la estructura y funcionamiento de la recaudación del diezmo de los “trigos”4; el
desarrollo del mercado de cereales derivado de este diezmo, los precios de venta y
cómo, a la vez, dicho mercado serviría como fuente de abastecimiento alimentario
de la población; y, finalmente, la evidencia de los grandes beneficios que reportaba
el cobro del tributo a las finanzas capitulares, así como las importantes dimensiones
socioeconómicas que tuvo el gravamen del diezmo en el Reino de Mallorca.
2. Fuentes documentales: estado de la cuestión.
El estudio de los Cabildos de las catedrales españolas a lo largo de la historia ha
suscitado un gran interés y, por tanto, una proliferación de trabajos científicos que
abordan diferentes ámbitos: historia, cultura y, también, desde el punto de vista
social y económico.
En lo concerniente al Capítulo de la Seo de Mallorca entre 1400 y 1420, se ha
realizado un análisis de las fuentes primarias para poder entender su estructura
económica, centrada, fundamentalmente, en la organización, percepción y
recaudación de los diezmos. En estas fuentes, custodiadas en el Archivo Capitular
de Mallorca (ACM), en concreto, en la serie documental de Mensa Capitular5,
aparecen, de manera muy detallada, las contabilidades catedralicias: las deudas
que mantenían diversos particulares con los canónigos y el recuento de todos los
diezmos que recibían anualmente de cada una de las parroquias de Mallorca y
Menorca, especificando, incluso, cuáles entregaban el gravamen en efectivo o en
especie. Gracias a ello, se han podido puntualizar las villas que lo realizaban en
género, es decir, que entregaban el impuesto en frutos de la tierra: en un principio,
sólo fueron los casos de Sineu-Sant Joan, Porreres y Petra; no obstante, a medida que
se va avanzando cronológicamente, fue aumentando el número de parroquias que así
lo hacían. Además de toda la información sobre los diezmos, gracias al procurador
general del Capítulo, se han conocido cada una de las prebendas recibidas por cada
uno de los miembros capitulares según su rango eclesiástico, así como los costes de
las 13 fiestas anuales celebradas en la catedral y el balance final anual de las finanzas
eclesiásticas.
En cuanto a las fuentes secundarias, la publicación de trabajos sobre los
cabildos catedralicios ha ido aumentando. De ellos se desprende cómo la Curia
3
Archivo Capitular de Mallorca (de ahora en adelante ACM), Mensa Capitular, liv. 2728-2736: Del 1400
hasta 1409 ostentó el cargo Guilllem Ferrer. ACM, Mensa Capitular, liv. 2737-2745: El procurador general del
Cabildo entre 1410 y 1420 fue Guillem Seguí.
4
En la documentación aparece como “blats”.
5
ACM, Mensa Capitular, liv. 2728-2745.
530
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
eclesiástica devino centro de poder y cómo sus miembros gozaron de un status
social, económico y político superior dentro de las sociedades del Antiguo Régimen.
Los análisis ofrecen una visión general de la composición y estructura de los cabildos
en cada uno de los territorios hispánicos, la provisión de prebendas y el número
y heterogeneidad de sus miembros, todos ellos llegando a una misma conclusión
final: los Cabildos eran instituciones que disponían de grandes patrimonios y de
una amplia capacidad de maniobra social y económica. Con esta finalidad se han
consultado las investigaciones referentes a los cabildos catedralicios de Barcelona6,
Palencia7, Coria8, Málaga9, La Rioja10, Zamora11, Granada12, Toledo13 o Sevilla14, entre
otros.
Tal y como se ha indicado en la introducción, el presente estudio gira, también
en torno al mercado de los cereales procedentes del diezmo capitular recaudado,
concretamente, a los lugares de producción y precios. Por ello, es inevitable hacer
una relación bibliográfica sobre dicha cuestión. El análisis sobre la articulación del
negocio triguero que se fue desarrollando en Castilla y León durante el setecientos
ha sido realizado por Enrique Llopis y Miguel Jerez15. En referencia a los reinos
de la Corona de Aragón, deben citarse las obras de Antoni Riera Melis16, tesis que
6
TORRES FERRER, M. J. − La catedral de Barcelona en el siglo XV. Gestión económica del patrimonio
y proyección social y política. Barcelona: Universitat de Barcelona, 2001. Tesis doctoral; BAUCELLS REIG,
J. − “Les dignitats eclesiàstiques de Barcelona als segles IX-XI”. Acta Medievalia 26 (2005), pp. 69-80.
7
MARCOS MARTÍN, A. − “De nuevo sobre los diezmos. La documentación decimal de la diócesis de
Palencia: problemas que se plantea”. In Investigaciones históricas: Época moderna y contemporánea 4 (1983),
pp. 99-122 [Consultado el 20 de abril 2020]. Disponible en http://uvadoc.uva.es/handle/10324/21243
8
MELÓN JIMÉNEZ, M. A.; RODRÍGUEZ GRAJER, A. − “Modos de percepción y distribución de
los diezmos en la Diócesis de Coria (1566-1773)”. In Hernán Cortés y su tiempo: actas del Congreso “Hernán
Cortés y su tiempo”, V Centenario (1485 – 1985). Vol. 1. Mérida: Junta de Extremadura, Editora Regional de
Extremadura, 1987, pp. 177-191.
9
BRAVO CARO, J. J.- “El arrendamiento de los diezmos del obispado malagueño”. Baetica 12 (1989),
pp. 177-185.
10
IBÁÑEZ RODRÍGUEZ, S. – “El diezmo en La Rioja (s. XVI-XVIII)”. Brocar 18 (1994), pp. 189-222.
11
ÁLVAREZ VÁZQUEZ, J. A. – Los diezmos de Zamora: 1500-1840. Zamora: Universidad de Salamanca,
1984.
12
La tesis doctoral realizada por Rafael LÓPEZ MARÍN, defendida en 1998, referente al Cabildo de
Granada. LÓPEZ MARÍN, R. – El Cabildo de la Catedral de Granada en el siglo XVI. Granada: Universidad de
Granada, 1998. Tesis doctoral.
13
De María José LOP OTÍN, la tesis doctoral en donde se analiza la estructura social y económica del
Cabildo catedralicio de Toledo en el siglo XV. LOP OTÍN, M. J. – El Cabildo catedralicio de Toledo en el siglo
XV: aspectos institucionales y sociológicos. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 2008.
14
LADERO QUESADA, M. A. – Diezmo eclesiástico y la producción de cereales en el Reino de Sevilla:
1408-1503. Sevilla: Universidad de Sevilla, 1978.
15
LLOPIS AGELÁN, E.; JEREZ MÉNDEZ, M. – “El mercado de trigo en Castilla y León, 1691-1788:
arbitraje espacial e intervención”. Historia Agraria 25 (2001), pp. 13-68.
16
RIERA MELIS, A. – “Crisis frumentarias y políticas municipales de abastecimiento en las ciudades
catalanas durante la Edad Media”. In OLIVA HERRER, H. R.;BENITO MONCLÚS, P. (coords.) – Crisis de
subsistencia y crisis agrarias en la Edad Media. Sevilla: Universidad de Sevilla, 2007, pp. 125-160; RIERA
MELIS, A. – “Els cereals als mercats catalans de la Baixa Edat Mitjana”. In SABATÉ CUNILL, F.; PEDROL, M.
(coords.) – El mercat: un món de contactes i intercanvis. Barcelona: Pagès Editors, 2014, pp. 119-140; RIERA
MELIS, A. (coord.) – Crisis frumentàries, iniciatives privades i polítiques públiques de proveïment a les ciutats
catalanes durant la Baixa Edat Mitjana. Barcelona: Institut d’Estudis Catalans, 2015.
EL DIEZMO DE LOS “TRIGOS” DEL CABILDO CATEDR ALICIO DEL R EINO DE MALLORCA
531
tratan de esclarecer el funcionamiento del mercado de abasto de granos, la falta de
productos, la gestión que se derivaba de ello y la incidencia de las crisis trigueras
sobre la población. Otra obra interesante es la de Eva Serra Puig17, en donde se
examina el modus operandi del intercambio de cereales en la Barcelona medieval.
Y, para el caso del Reino de Valencia18, se estudia la comparación del mercado de
cereales que mantenían las distintas villas del reino con otros enclaves peninsulares y
mediterráneos durante el siglo XV.
Centrándose en el Reino de Mallorca, desde un punto de vista local, la
publicación de artículos sobre la evolución del Cabildo catedralicio de Mallorca a
lo largo de la historia no son tan numerosos respecto a los del resto de territorio
español. Hay que citar, para la Edad Media, los realizados por: en primer lugar, Jaume
Sastre Moll19, donde aparecen transcritos los orígenes de la Iglesia de Mallorca, el
otorgamiento de rentas y propiedades y el proceso constructivo de la Catedral; en
segundo lugar, Albert Cassanyes20; y, en último lugar, Francisco José Pérez21, enfocado
a la institución eclesiástica como centro de poder e influencia en la Mallorca del siglo
XVIII.
En lo relativo al fisco mallorquín en época medieval, antes de abordar las rentas
eclesiásticas, es de justicia, enaltecer los trabajos realizados por el Dr. Pau Cateura22 y
la obra de Francisco López Bonet23, que examina el comportamiento de los diezmos
recaudados por la Procuración Real a lo largo del XIV, además de la producción
agraria y su relación con el dicho impuesto.
17
SERRA PUIG, E. – “Els cereals a la Barcelona del segle XIV”. In Alimentació i societat en la Catalunya
medieval. Barcelona: CSIC, 1988, pp. 71-107.
18
VICIANO NAVARRO, P. – “Mercado cerealista, crédito a corto plazo y desigualdad en el Reino de
Valencia, las villas de Cocentaina y Castellón en el siglo XV”. Hispania 78 (2018), pp. 103-137.
19
SASTRE MOLL, J. – El Llibre Groc de la Seu. Palma: Cabildo de la Catedral de Mallorca, 2012;
SASTRE MOLL, J. – Llibre Verd de la Seu de Mallorca (1211-1715). Palma: Cabildo de la Catedral de Mallorca,
2017; SASTRE MOLL, J. – La Seu de Mallorca. La prelatura de D. Lluís de Prades i Arenós. Palma: Consell de
Mallorca, 2017.
20
CASSANYES ROIG, A. – “El capítol catedralici de Mallorca a la segona meitat del segle XV (14501495)”. Anuario de estudios medievales 48/2 (2018), pp. 587-614; CASSANYES ROIG, A. – “El Cabildo
catedralicio de Mallorca y la política de Fernando II el Católico”. Espacio, tiempo y forma 30 (2017), pp. 193-220.
21
GARCÍA PÉREZ, F. J. – “El Cabildo catedralicio de Mallorca (1700-1750). Estudio de una élite
de poder durante el siglo XVIII”. Tiempos Modernos. Revista electrónica de Historia Moderna 29 (2014).
[Consultado el 19 de abril 2020] Disponible en http://www.tiemposmodernos.org/tm3/index.php/tm/article/
view/364/418
22
CATEURA BENNÀSSER, P. – Comprar, vendre i pagar al rei. Els impostos indirectes del Regne de
Mallorca (segles XIV-XV). Palma: El Tall, 2009; CATEURA BENNÀSSER, P. – Recaptar per pagar deutes: el
còdex 29 de l’Arxiu del Regne de Mallorca (1390). Palma: El Tall, 2009.
23
LÓPEZ BONET, F. – El diezmo en el Reino de Mallorca y en la estructura económica de la Procuración
Real: 1315-1396. Palma: Universitat de les Illes Balears, 1983. Tesis doctoral; LÓPEZ BONET, F. – “L’estudi
del delme recaptat per la procuració reial de Mallorca en el segle XIV i el seu interès respecte a l’aproximació
de la conjuntura econòmica”. Butlletí Societat Arqueològica Lul·liana 39 (1983), pp. 381-406; LÓPEZ BONET,
F. – “Fiscalitat i producció agrària: el percepció del delme a Mallorca”. In CATEURA BENNÀSSER, P. (dir.)
– Comprar, vendre i pagar al rei: els impostos indirectes al Regne de Mallorca (segles XIV-XV). Palma: El Tall,
2005, pp. 71-116.
532
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Respecto a las finanzas del Cabildo catedralicio, es preciso nombrar a Maria
del Camí Dols Martorell24, quien realiza un análisis de los diezmos recaudados
por los capitulares de Mallorca en el primer cuarto del siglo XV para demostrar la
especialización agrícola y ganadera de Mallorca y Menorca. Referente a la percepción
de los diezmos en la Mallorca del siglo XVI, hay que destacar la publicación de José
Juan Vidal25.
En cuanto al mercado triguero practicado en el Reino de Mallorca durante la
Edad Media, ha sido uno de los aspectos más estudiados y, por tanto, con una amplia
producción bibliográfica. Se debe citar el gran número de investigaciones realizadas
por D. Álvaro Santamaría26, relativas al negocio de los cereales y a su administración
durante la Edad Media, así como las pertenecientes a Francisco Sevillano Colom27,
José Juan Vidal28, Pau Cateura29, Maria Barceló30 i Plàcid Pérez31, donde se destaca la
gran importancia de los enlaces comerciales que mantenía la ciudad de Mallorca con
otras regiones.
Realizado este breve repaso sobre las fuentes documentales consultadas, es
imperioso centrarse en el tema de la investigación: el diezmo de los cereales del
Cabildo catedralicio de Mallorca entre el 1400 y 1420.
3. Los orígenes del diezmo en el Reino de Mallorca: punto de desencuentro entre
el monarca y el Cabildo catedralicio de Mallorca32.
Tras la conquista cristiana de Mallorca, dirigida por el rey Jaume I, se empezó a
24
DOLS MARTORELL, M.C. – Estudi agro-econòmic de Mallorca i Menorca, del 1380 al 1420, segons el
delme eclesiàstic. Palma: Universitat de les Illes Balears, 2014. Tesis doctoral.
25
JUAN VIDAL, J. – “Los diezmos en la diócesis de Mallorca en el siglo XVI”. Mayurqa 22 (1989), pp.
811-824.
26
SANTAMARÍA ARÁNEZ, Á. – El reino de Mallorca en la primera mitad del siglo XV. Palma:
Diputación provincial de Baleares, 1955; SANTAMARÍA ARÁNEZ, Á. – “El mercado triguero de Mallorca en
la época de Fernando el Católico”. In VI Congreso de Historia de la Corona de Aragón. Zaragoza, 1959, pp. 379392; SANTAMARÍA ARÁNEZ, Á. – “Esglésies i administració a Mallorca en època del Cisma d’Occident”.
Estudis Baleàrics 13 (1984), pp. 55-106; SANTAMARÍA ARÁNEZ, Á. – “Sobre la gestión fiscal y la coyuntura
económica en Mallorca entorno al 1510”. Mayurqa 14 (1975), pp. 21-61; SANTAMARÍA ARÁNEZ, Á. –
Ejecutoria del Reino de Mallorca. Palma: Ajuntament de Palma, 1990.
27
SEVILLANO COLOM, F. – “De Venecia a Flandes, via Mallorca y Portugal”. Butlletí Societat
Arqueològica Lul·liana 33 (1969), pp. 1-33; SEVILLANO COLOM, F. – “Mercaderes y navegantes mallorquines
(siglos XIII-XV)”. In MASCARÓ PASARIUS (ed.) – Historia de Mallorca, Palma: Miramar, 1971, pp. 431-520
28
JUAN VIDAL, J. – “El regne de Mallorca en temps de Carles V (1466-1476)”. Mayurqa 26 (2000), pp.
11- 46.
29
CATEURA BENNÀSSER, P. – “Valencia y Mallorca en el siglo XV”. Mayurqa 26 (2000), pp. 181-193.
30
BARCECLÓ CRESPÍ, M. – “Cargamentos de trigo para Mallorca a través del puerto de Málaga (14901516)”. In II Congreso de Historia de Andalucía. Vol. II. Córdoba: Consejería de Cultura y Medio Ambiente,
1994, pp. 275-287; BARCECLÓ CRESPÍ, M. – “Aspectes de la relació de Mallorca amb el Regne de Nàpols a la
Baixa Edat Mitjana”. Butlletí Societat Arqueològica Lul·liana 72 (2016), pp. 29-51.
31
PÉREZ, P. – “El mercat de blats de la vila de Sóller (1466-1476)”. Mayurqa 21 (1985-198), pp. 147-166.
32
DOLS MARTORELL, M.C. – Estudi agro-econòmic de Mallorca i Menorca del 1380 al 1420 segons el
delme eclesiàstic. Palma: Universitat de les Illes Balears, 2015. Tesis doctoral.
EL DIEZMO DE LOS “TRIGOS” DEL CABILDO CATEDR ALICIO DEL R EINO DE MALLORCA
533
forjar en estas tierras una nueva entidad política, económica, administrativa y social,
sustentada sobre los cimientos de una “Carta de Franquesa” (1230), que conocemos
como el Reino de Mallorca33. La nueva realidad política de Mallorca traería con ella
una nueva forma de organización en todos los sentidos. Es en este momento cuando
se intuye el establecimiento del sistema feudal en la isla.
Uno de los puntos fuertes de esta realidad era la recaudación del diezmo. En
un principio, lo percibiría el monarca de manera íntegra, respetando así el privilegio
concedido por el Papa Urbano II, en 1095, al rey Pedro I, en virtud del cual el
monarca era beneficiario de los diezmos de todos los territorios conquistados a los
musulmanes, de acuerdo con el espíritu de cruzada34.
En el 1238, en el momento de la instauración de la diócesis de Mallorca, uno de
los puntos de fricción entre el poder real y el espiritual fue la percepción del diezmo.
Por este motivo, y con el fin de solucionar esta incómoda situación, el rey Jaume
I acordó con el primer obispo de Mallorca, Ramon de Torrelles, para la dotación
de la diócesis y de sus ministros, la cesión de un tercio de los diezmos de frutos de
la tierra y de los animales y a las parroquias35, una cuarta parte. Dichas cesiones
reales no fueron suficientes para satisfacer las demandas eclesiásticas y, por tanto, la
Iglesia mallorquina siguió con sus reivindicaciones para recibir todos los ingresos
que aportaban los diezmos.
Tales eran las disputas entre la autoridad eclesiástica y civil que, en el año 1308,
el Papa Clemente V, bajo las súplicas del Obispo y Cabildo, dirigió una misiva a Jaume
II de Mallorca, donde expresaba tener información de que el monarca percibía dos
partes de los diezmos y, por ello, demandaba hacer entrega íntegra de los diezmos a
la diócesis de Mallorca36.
Finalmente, ambos poderes llegaron a un pacto, el conocido “Pariatge de 1315”,
entre el monarca Sanç I y el obispo Guillem de Vilanova, por el cual se estipulaba que
33
SANTAMARÍA ARÁNEZ, Á. – Ejecutoria del…, pp. 521-522; RIERA MELIS, A. – “Els
repartiments feudals de Mallorca i les seves conseqüències immediates (1230-1245)”. Catalan Historial
Review 10 (2017), pág. 133 [Consultado el 19 de abril de 2020] Disponible en https://www.raco.cat/index.php/
CatalanHistoricalReview/article/view/96860
34
RIERA MELIS, A. – “Els repartiments…”, p. 134. Esta actuación tendría un paralelismo en diferentes
reinos de la Península Ibérica. Concretamente, en Castilla y León, el Papa Honorio III, siguiendo la misma
línea que en el Reino de Mallorca, promulgó una bula en el año 1219, concediendo al monarca castellanoleonés, Fernando III el Santo, las denominadas “Tercias del diezmo”. La diferencia residió en que en el
contexto peninsular las fricciones entre el poder civil y eclesiástico se solventaron, al contrario que en la
diócesis mallorquina, donde continuaron. (MARTÍN VIANA, J. L. – “El diezmo como tributo y costumbre.
Siglo XVIII”. Revista folklore, 69 (1986), pp. 87-96. En línea: [Consultado el 20 de abril del 2020] Disponible
en:http://www.cervantesvirtual.com/obra-visor/el-diezmo-como-tributo-y-como-costumbre-siglo-xviii/
html/). Otro ejemplo serían los pleitos sucedidos entre la curia eclesiástica y el poder real en la ciudad cacereña
de Coria, como consecuencia del desacuerdo existente en lo referente a la manera de recibir y distribuir los
diezmos (MELÓN JIMÉNEZ, M.A. y RODRÍGUEZ GRAJER, A. – “Modos de percepción y distribución de los
diezmos en la Diócesis de Coria (1566-1773)…”. pp. 177-191.
35
CAMPANER, Álvaro – Cronicon Mayoricense. 3ª ed. Palma: Ajuntament de Palma, p. 24.
36
CAMPANER, Álvaro – Cronicon…, p. 24.
534
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
la percepción del diezmo se repartiría en dos mitades, una real y la otra eclesiástica:
“que tots els delmes pertanyents a sa Majestat, Sanç I, com l’Església, es delmessin i
es repartissin a parts iguals, una meitat per al Rei i l’altra meitat per l’Església, amb
algunes reserves a favor del monarca; en quant als delmes de Menorca, quedava
l’Església, amb aquesta comunitat i divisió, damnificada amb 400 lliures, meitat de les
quals, s’obligà al Rei a pagar tots els anys a l’Església”37. Gracias a este acuerdo sobre
la percepción del diezmo, el patrimonio eclesiástico aumentó considerablemente,
acrecentando la fracción de ingresos aportados por el impuesto: del 25 al 37’5 %. Sin
embargo, el problema de las rentas seguía sin tener una solución definitiva.
Años más tarde, ya en los inicios de 133238, llegó a Mallorca Jaume III, quien
solicitó audiencia con el Obispo y el Cabildo, donde se trataron temas espinosos,
como los diezmos y su jurisdicción.
El problema de la captación del tributo seguía vigente en el Reino de Mallorca
y, por ello, en 1338, el mismo monarca concedió un real privilegio por el cual cedía
todos los diezmos de trigo, cebada, avena y legumbres que él percibía a las parroquias
de Sineu, Sant Joan, Petra i Sóller, apreciados en 666 libras, 13 sueldos y 6 dineros, al
Obispo, Berenguer de Balla, y al Cabildo.
Los propósitos reales no fueron suficientes para poner freno a las demandas
eclesiásticas, por lo tanto, los diezmos siempre fueron motivo de disputa entre la
diócesis y el monarca, debido, en gran parte, a que eran una suculenta fuente de
ingresos muy interesante para ambos39.
4. Los diezmos: estructura y funcionamiento.
Una vez terminado el ciclo agrícola, se procedía a la siega. Una cuadrilla de segadores
se disponía con la hoz a recolectar los cereales40. Iban dejando las gavillas tras de sí
para, posteriormente, conducirlas hacia las eras, donde se realizaba la tarea de la
trilla y, finalmente, el aventado41. Así, dejaban los granos limpios de polvo y paja que
eran conducidos, en última instancia, hasta los silos42, donde permanecerían hasta
CAMPANER, Álvaro – Cronicon…, p. 45.
CAMPANER, Álvaro – Cronicon…, p. 45.
39
BARCELÓ CRESPÍ, M. – “Conflicto entre los jurados y el obispo y el cabildo de Mallorca (1478)”.
Anuario de Estudios Medievales 29 (1999), pp. 21-33.
40
ACM, Mensa Capitular, liv. 2733, fl. 19: “Un hom que lloga ab sa bèstia per plegar los blats”; ACM,
Mensa Capitular, liv. 2736, fl. 24: “Un hom ab una bèstia qui aplega los blats del delme de Sineu i Sant Joan”;
ACM, Mensa Capitular, liv. 2740, fl. 25v: “Tres homes ab tres bèsties per aplegar los blats d’Inca, Selva,
Campanet i d’Uyalfàs”.
41
ACM, Mensa Capitular, liv. 2736, fl. 20: “Porgar 112 qª de tosseta de Sineu”. ACM, Mensa Capitular,
liv. 2736, fl. 33: “Tot l’ordi de porgar com lo vené”.
42
ACM, Mensa Capitular, liv. 2742, fl. 31v: “Tres sitges de Ciutat on foren mesos tots los blats”. ACM,
Mensa Capitular, liv. 2744, fl. 51v: “Lloguer de sis sitges en què foren mesos tot lo forment e ordi e rostoll e
empallar”.
37
38
EL DIEZMO DE LOS “TRIGOS” DEL CABILDO CATEDR ALICIO DEL R EINO DE MALLORCA
535
poder evaluar los rendimientos conseguidos.
Finalizados los trabajos en el campo, era importante realizar el cómputo de la
cosecha recogida. El diezmero comunicaba al procurador capitular la producción43
que se había alcanzado. Ambos efectuaban una valoración de la cosecha para calcular
el diezmo perteneciente al Cabildo. Se diezmaba sobre las eras, lo que impedía al
campesino retener para sí el fruto de mejor calidad y, por otra parte, que éste fuera
entregado en malas condiciones44.
Hecho el cálculo de los frutos decimales, se procedía al anuncio del diezmo
a lo largo de toda la geografía isleña, tal y como aparece en los documentos, “fer la
crida”45. Esta acción era delegada a los “corredors de lletres”, encargados de ir a las
parroquias foráneas para dar a conocer la puesta en arriendo del diezmo. En el caso
concreto de los cereales, el gravamen se subastaba en la villa mallorquina de Sineu,
situada en el centro de la isla, el primer domingo de mayo46. Hay que puntualizar
que los otros diezmos se arrendaban haciendo coincidir la fecha con la festividad de
algún santo, tal y como sucedía en otros territorios47.
Desde 1400 hasta el 142048, la administración capitular optó por este sistema
de transacción, efectuándose en moneda o, como sucedía en las parroquias de
Sineu-Sant Joan49, Porreres50, el conjunto político-administrativo formado por Inca,
ACM, Mensa Capitular, liv. 2737, fl. 25v: “Los hòmens qui mesuraven los blats”.
MARCOS MARTÍN, A. – “De nuevo sobre los diezmos. La documentación decimal de la diócesis de
Palencia: problemas que se plantea…”, p. 115.
45
“Fer la crida” se podría traducir como “realizar un pregón”.
46
ACM, Mensa Capitular, liv. 2729, fl. 35v: “Pagui a Jaume Robiol, qui aporta una lletra per l’illa a
tothom que volgués comprar delmes dels blats que fos a Sineu lo primer diumenge de maig”; ACM, Mensa
Capitular, liv. 2732, fl. 38: “Un hom qui porta una lletra defora de la Ciutat, que tothom que volgués comprar
delmes dels blats, fos a Sineu, diumenge a 3 de maig, per l’any 1405”; ACM, Mensa Capitular, liv. 2730, 38v: “
A 23 d’abril de 1403, un hom que aporta lletres a defora, que tothom que volgués comprar delmes dels blats fos
lo primer diumenge de maig a Sineu”. BRAVO CARO, J. J. – “El arrendamiento de los diezmos del obispado
malagueño”. Baetica 12 (1989), p. 182: “siendo tañida la campana por ellos, y a voz de pregonero”. [Consultado
el 20 de abril del 2020] Disponible en http://www.revistas.uma.es/index.php/baetica/article/view/734/698
47
BRAVO CARO, J. J. – “El arrendamiento...”, p. 181. En el Reino de Mallorca, el diezmo de la hortaliza
se arrendaba en último domingo de enero, pero, en determinadas ocasiones, coincidía con: los de los ganados,
en la festividad de San Antonio entre los días 16 y 17 de enero, en la plaza del Pan de la ciudad; el diezmo del
aceite, en Bunyola, en San Mateo, el 21 de septiembre; y el vino, el 24 de agosto, en Inca (DOLS MARTORELL,
M. C. – Estudi agro-econòmic…, p. 13.).
48
ACM, Mensa Capitular, liv. 2728, fl. 2-15; ACM, Mensa Capitular, liv. 2729, fl. 2-15; ACM, Mensa
Capitular, liv. 2730, fl. 2-16; ACM, Mensa Capitular, liv. 2731, fl. 2-15; ACM, Mensa Capitular, liv. 2732, fl.
2-15v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2733, fl. 2-15.; ACM, Mensa Capitular, liv. 2734, fl. 2-16.; ACM, Mensa
Capitular, liv. 2735, fl. 2-16v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2736, fl. 2-15; ACM, Mensa Capitular, liv. 2737,
fl. 2-16v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2738, fl. 2-16; ACM, Mensa Capitular, liv. 2739, fl. 2-16; ACM, Mensa
Capitular, liv. 2740, fl. 2-45; ACM, Mensa Capitular, liv. 2741, fl. 2-27; ACM, Mensa Capitular, liv. 2742, fl. 1-36;
ACM, Mensa Capitular, liv. 2743, fl. 1-49v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2744, fl. 2-53;ACM, Mensa Capitular,
liv. 2745, fl. 2-41.
49
Estas poblaciones formaban parte de la misma parroquia, encabezada por Sineu. ACM, Mensa
Capitular, liv. 2728, fl. 19: “Compte de los blats e llegums de les parròquies de Sineu i Sant Joan de part comuna
per l’any 1400 són les que segueixen: de forment 161 qr 4 barc 3 alm, de tosseta 97 qr 3 barc, d’ordi 140 qr 3 barc,
de faves 2 qr 2 barc 1 alm i mig, de ciurons 1 barc 4 alm i mig, de llenties 1 alm”.
50
ACM, Mensa Capitular, liv. 2728, fl. 25: “Compte de los blats e llegums de la parròquia de Porreres
43
44
536
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Fig. 1 – Parroquias donantes del diezmo en especie.
Selva, Campanet y Uyalfás51 y Petra52, en especie53. No obstante, se debe incidir en
que, a medida que se va avanzando cronológicamente, el grupo de parroquias que
aportaban el diezmo de los cereales en género se iba ampliando: a partir de 140754, se
sumó a ello Alcúdia55; en 141156, Sant Martí de Mianes de Petra57; tres años más tarde,
per l’any 1400 així com segueix: de forment 161 qr 3 barc, de xeixa blanca 51 qr 3 barc, d’ordi 201 qr, de faves
1 qr, de guixes 3 alm, de llenties 1 alm”.
51
ACM, Mensa Capitular, liv. 2728, fl. 17: “Compte de los blats e llegums de les parròquies d’Inca, Selva,
Campanet i Uyalfàs per l’any 1400 són: de forment 250 qr, de xeixa blanca 16 qr, d’ordi 109 qr, de faves 2 qr, de
guixes 1 barc 1 alm, de ciurons 1 barc 1 alm, de llenties 1 alm”.
52
ACM, Mensa Capitular, liv. 2730, fl. 25: “Compte de los blats de Petra per l’any 1401 així com segueix:
de forment, 290 qr 3 barc i 4 alm i mig, de xeixa blanca 83 qr 1 barc 3 alm, d’ordi 267 qr 2 barc 1 alm i mig, de
faves 2 qr”.
53
Los distintos reinos peninsulares tienen el mismo proceder. Por ejemplo, en La Rioja, también se
percibe en especie (IBÁÑEZ RODÍGUEZ, S. – “El diezmo en La Rioja (s. XVI-XVIII)”. Brocar 18 (1994),
Logroño, pp. 189-222.
54
ACM, Mensa Capitular, liv. 2734, fl. 20.
55
ACM, Mensa Capitular, liv. 2734, fl. 20: “Lo compte dels blats d’Alcúdia per l’any 1407 així com
segueix: de forment 91 qr 4 barc, de mestall 31 qr, d’ordi 67 qr, d’avena 2 qr, de faves 8 qr, de guixes 4 barc, de
llenties 3 barc”.
56
ACM, Mensa Capitular, liv. 2738, fl. 19.
57
ACM, Mensa Capitular, liv. 2738, fl. 19: “Compte de los blats de Sant Martí de Mianes de Petra per
l’any 1411 són: de forment, 19 qr 3 barc, de tosseta 2 qr 1 barc 3 alm, d’ordi 10 qr 3 barc”.
EL DIEZMO DE LOS “TRIGOS” DEL CABILDO CATEDR ALICIO DEL R EINO DE MALLORCA
537
lo hizo Campos58; Felanitx59, en el 1416; y las últimas localidades en agregarse a esta
práctica fueron Manacor60, Robines, Sencelles, Alaró61, Muro y Santa Margalida62, en
141763. Los canónigos alentaban dicho procedimiento por serles mucho más rentable
el recibo del diezmo en mercancía, ya que después, al poner a la venta el producto
disponible, acumulaban ingresos más cuantiosos.
El tributo sobre los cereales64 recaía, para el caso del Mallorca, sobre las
producciones anuales de trigo, toseta, cebada, morcajo, trigo blando65, habas,
garbanzos, almortas y lentejas.
En el ámbito logístico, el montante recaudado con el pago del diezmo era puesto
en subasta y, por tanto, se concedía al mejor postor. Las personas beneficiadas66
con la locación debían dejar constancia de la transacción con la firma de una
notificación ante notario. Ser “llevador” del diezmo requería gozar de un cierto nivel
adquisitivo, lo que ayudaba a la Iglesia a proteger sus intereses, contribuyendo a que
fueran potentados67 quienes monopolizaran el “cargo”, aspecto que queda patente,
nombrando, en algunas ocasiones, a clérigos de cierto rango68.
Por otra parte, una vez realizado el ejercicio económico anual, el proceder
inmediato era retirar la cosecha de los silos y transportarla69 hacia las denominadas
“botigues”70, las cuales tendrían su paralelismo en el ámbito peninsular con las
cillas decimales71. Estos grandes graneros formaban parte del patrimonio capitular
y su situación geográfica coincidía con las parroquias que aportaban el diezmo
58
ACM, Mensa Capitular, liv. 2740, fl. 45: “Compte de los blats de Campos per l’any 1414 és així com
segueix: de forment 152 qr, d’ordi 164 qr 5 barc, de faves 1 qr”.
59
ACM, Mensa Capitular, liv. 2742, fl. 35: “Lo compte de los blats de la parròquia de Felanitx que són
per l’any 1416: de forment 109 qr, d’ordi 9 qr 4 barc 3 alm, de faves 2 barc”.
60
ACM, Mensa Capitular, liv. 2743, fl. 49: “Lo compte de los blats de la parròquia de Manacor que són
per l’any 1417: de forment 175 qr, de tosseta 10 qr, d’ordi 110 qr, de faves 2 qr, de guixes 1 barc 1 alm, de llenties
1 alm”.
61
ACM, Mensa Capitular, liv. 2743, fl. 29: “Lo compte del delme dels blats de la parròquia de Robines,
Alaró i de Sencelles de l’any 1417: de forment 227 qr, de tosseta 18 qr, d’ordi 118 qr 3 barc, de faves 2 qr 3 barc,
de llenties 5 alm, de guixes 1 barc”.
62
ACM, Mensa Capitular, liv. 2743, fl. 17: “Compte de les rendes de Muro i Santa Margalida, açò és
delme dels blats per l’any 1417: de forment 160 qr, d’ordi 72 qr 3 barc, de faves 1 qr 5 barc, de guixes 4 alm, de
ciurons 1 alm”.
63
ACM, Mensa Capitular, liv. 2743.
64
En la documentación aparece con la denominación “lo delme dels blats”.
65
Blat “xeixa”
66
En los legajos se transcribe “llevadors”.
67
ÁLVAREZ VÁZQUEZ, J. A. – Los diezmos…, p. 151: “Los arrendatarios de los distintos diezmos
solían ser propietarios de bienes, que eran precisamente la garantía de las rentas”.
68
ACM, Mensa Capitular, liv. 2732, fl. 26: “Lo procurador del delme dels blats de Porreres, per la part
del Capítol, mossèn Ramon Nicolau i Jaume Vallcanera”.
69
ACM, Mensa Capitular, liv. 2743, fl. 30v: “Costaren de treure de sitja 118 qr i mitja d’ordi de Robines”,
fl. 38: “Tot lo dit forment d’Alcúdia de treure de sitja i portar-los en botiga”.
70
ACM, Mensa Capitular, liv. 2738, fl. 25: “Dues botigues en què metien los blats”.
71
MARCOS MARTÍN, A. – De nuevo sobre…., p. 103.
538
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
en especie. Por tanto, se encontraban en Sineu72, Alcúdia73, Porreres74, Campos75,
Porreres76, Petra77, Inca78, Selva79, Campanet80 y Felanitx81. Estas “botigues”, además
de salvaguardar la recolecta de granos, garantizaban la disposición de reservas de
cereales para un consumo posterior y, también, aseguraban las existencias de semillas
para las siembras venideras.
Fig. 2 – Las “botigues” (graneros) capitulares.
Asimismo, dentro de toda esa estructura, los miembros del Cabildo eran
agraciados con una serie de prebendas por su condición de eclesiásticos82, por este
motivo, un porcentaje de las producciones de cereales iban destinadas a amortizar
ACM, Mensa Capitular, liv. 2744, fl. 26: “Metre tota la toseta en la botiga de Sineu”.
ACM, Mensa Capitular, liv. 2738, fl. 38: “La botiga d’Alcúdia en que mes tots los blats”.
74
ACM, Mensa Capitular, liv. 2729, fl. 24: “La botiga de los blats de Porreres”.
75
ACM, Mensa Capitular, liv. 2740, fl. 42v: De port de la sitja a la botiga de Campos”.
76
ACM, Mensa Capitular, liv. 2744, fl. 26: “Una botiga en la vila de Petra on metien tots los blats”.
77
ACM, Mensa Capitular, liv. 2742, fl. 31v: “Una botiga en Petra en metien tots los blats”.
78
ACM, Mensa Capitular, liv. 2740, fl. 35v: “Adobar la botiga d’Inca dels blats”.
79
ACM, Mensa Capitular, liv. 2728, fl. 18v: “Una botiga en que mes los blats de Selva”.
80
ACM, Mensa Capitular, liv. 2730, fl. 23v: “Una botiga en Campanet en que meterem los blats”.
81
ACM, Mensa Capitular, liv. 2744, fl. 38v: “Una botiga de Felanitx on foren mesos tots los blats del
delme de Felanitx”.
82
DOLS MARTORELL, M. C. – “El Capítulo de la Seo de Mallorca: sus trabajos y salarios (1400-1420)”.
In SOLÓRZANO TELECHEA, J. Á.; MELO, Arnaldo Sousa (eds.) – Trabajar en la ciudad medieval europea.
Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 2018, pp. 279-292.
72
73
EL DIEZMO DE LOS “TRIGOS” DEL CABILDO CATEDR ALICIO DEL R EINO DE MALLORCA
539
estos beneficios adscritos al colegio de clérigos de la diócesis mallorquina, actuando
como una auténtica señora feudal y enriqueciéndose gracias al sistema fiscal.
De Sineu83 se les ofrecían las siguientes cantidades:
-De trigo: para el Obispo: 60 cuarteras
para el Cabildo: 30 cuarteras cada uno
para el Procurador General: 16 cuarteras
- De toseta: para todo el Cabildo 10 cuarteras
- De cebada: 40 cuarteras para el Obispo y para el resto de canónigos, cada
uno, 10 qr.
De Porreres84 percibían:
- Cebada: el Obispo, 70 qr.
Capítulo: 30 qr cada uno
Procurador General: 11 qr.
- Toseta: Obispo: 60 qr
Capítulo: 20 qr cada canónigo
Procurador General: 6 qr.
De Petra85:
- Cebada: Capítulo y Obispo: 20 qr.
Procurador General: 4 qr.
En ocasiones, en los documentos se testifica cómo algunas de estas cantidades
adjudicadas eran puestas a la venta por parte del procurador general del Capítulo
con una doble intención: en primer lugar, la introducción de dichas cosechas en
el mercado de la ciudad86 favorecía económicamente a los canónigos, pudiendo
vender su producto a unos precios sobrevalorados, más rentables para sus intereses
particulares87; y, en segundo lugar, este comercio de granos, dependiendo del año,
servía como válvula de escape ante la amenaza de una posible crisis de subsistencia,
hasta tal punto que los Jurados de la ciudad recurrían a él para abastecer el mercado
83
ACM, Mensa Capitular, liv 2728, fl. 19; ACM, Mensa Capitular, liv 2729, fl. 17-18; ACM, Mensa
Capitular, liv 2730, fl. 17-18; ACM, Mensa Capitular, liv 2731, fl. 20-20v; ACM, Mensa Capitular, liv 2732, fl. 21;
ACM, Mensa Capitular, liv 2733, fl. 17-17v; ACM, Mensa Capitular, liv 2734, fl. 24, 25v; ACM, Mensa Capitular,
liv 2735, fl. 20; ACM, Mensa Capitular, liv 2737, fl. 26; ACM, Mensa Capitular, liv 2739, fl. 31; ACM, Mensa
Capitular, liv 2741, fl. 28.
84
ACM, Mensa Capitular, liv 2728, fl. 26; ACM, Mensa Capitular, liv 2729, fl. 23-23v; ACM, Mensa
Capitular, liv 2730, fl. 27v; ACM, Mensa Capitular, liv 2731, fl. 24-24v; ACM, Mensa Capitular, liv 2732, fl. 26.
85
ACM, Mensa Capitular, liv 2730, fl. 25.
86
ACM, Mensa Capitular, liv. 2739, fl. 31v: “Venda de la toseta tramesa a los canonges per part de
Guillem Seguí”.
87
ACM, Mensa Capitular, liv. 2739, fl. 31v: “ Vengui una quartera de mossèn Francesc des Caus a raó
de 37 sous la quartera”.
540
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
público ante la falta de productos88, que, en ocasiones, servía para mostrar la
generosidad del Cabildo, donándolas a los estratos más humildes de la sociedad.
5. El diezmo de los cereales del Cabildo catedralicio de Mallorca y la venta de
granos en la Ciutat entre los años 1400 y 1420.
Pasado un tiempo, los cereales diezmados eran conducidos hasta la capital del Reino
de Mallorca, donde se ponían a la venta pública para satisfacer las necesidades
alimentarias de los conciudadanos. Para ello, entraba en funcionamiento un engranaje
que requería de gran esfuerzo. En primer lugar, se retiraban los granos custodiados
en las diferentes “botigues”, que eran, nuevamente, aventados con el fin de iniciar
el viaje hasta la ciudad. Las parroquias del interior transportaban los cereales por
tierra, y las villas costeras los trasladaban por mar89. Era en éstas últimas donde se
contaba con los servicios de un “formenter del moll”90, persona encargada de tener
preparada la embarcación y la carga. De esta manera, comenzaba el periplo hasta
el puerto de la capital, transcrito como “sa Portella”91. Una vez habían llegado, los
sacos se descargaban y los pesaban92 para comprobar que el producto había llegado
indemne. Posteriormente, los cereales llegados por tierra y mar se conducían hasta la
plaza de la cuartera93, donde se ponía en marcha el mercado de los trigos y legumbres
cosechados. Es preciso remarcar que ésta era una cuestión de primer orden por parte
de las autoridades competentes, sobre todo, en épocas de crisis de subsistencia, ya
que una de sus principales preocupaciones era disponer de granos para abastecer a
la población. Hay que tener en cuenta que en el Reino de Mallorca, al igual que en
el resto de ciudades de Europa, se necesitó durante la Edad Media un control sobre
este tipo de mercado. Los poderes locales, mediante algunas intervenciones, debían
garantizar unos precios asequibles y aptos para estos bienes a fin de que el consumo
fuera suficiente en cada hogar94.
88
ACM, Mensa Capitular, liv. 2739, fl. 31V: “Compraren los Jurats de la Ciutat 5 qr 1 barc de toseta al
procurador general del Capítol Guillem Seguí pertanyents a mossèn Jaume des Mur aº de 37 sous per qr, suma
tot, 9 lb 11 s 2 d”.
89
ACM, Mensa Capitular, liv. 2744, fl. 31: “De port de Manacor 165 qr 3 barc de forment de Manacor
fins a la mar”, fl. 34v: “Tots los blats del damunt dit delme d’Alcúdia, faves e altres llegums de portar a mar e
carregar en barca”.
90
ACM, Mensa Capitular, liv. 2734, fol 19.
91
ACM, Mensa Capitular, liv. 2740, fl. 46: “Costaren de nolit de Campos fins a la portella 165 qr d’ordi”.
92
ACM, Mensa Capitular, liv. 2740, fl. 46: “De descarregar i mesurar tot l’ordi”.
93
La construcción de la cuartera de la Ciutat de Mallorca se cita, por primera vez, en la Carta de
Franquesa, donde se estipula “la fabricació d’una quartera a Ciutat”. PONS FÀBREGUES, B. – “La Carta de
Franquesa del rei en Jaume I, constituïnt el Regne de Mallorca”. In I Congrés d’Història de la Corona d’Aragó.
Palma: Estampa “L’Esperança”, 1917; ROSSELLÓ VAQUER, R. – La Ciutat de Mallorca en el segle XIII.
Felanitx: Ramon Rosselló Vaquer, 2001, p. 20; BARCELÓ CRESPÍ, M.; ROSSELLÓ BORDOY, G. – La Ciudad
de Mallorca. La vida cotidiana en una ciudad mediterránea medieval, Palma: Lleonard Muntaner, 2006, p. 288.
94
RIERA MELIS, A. – “Crisis frumentarias y políticas municipales de abastecimiento en las ciudades
catalanas durante la Edad Media…”, pp. 63.
EL DIEZMO DE LOS “TRIGOS” DEL CABILDO CATEDR ALICIO DEL R EINO DE MALLORCA
541
Fig. 3 – El transporte de cereales desde las parroquias costeras hasta la ciudad.
En cuanto a los valores monetarios de cereales, se podría afirmar que no
estaban unificados a nivel del Reino, sino que dependían del lugar de procedencia y
a la temporada. Los tomos de contabilidad eclesiástica permiten construir una serie
de precios locales de la venta de granos. Dicho muestreo procede de los libros de
Mensa Capitular del Cabildo de Mallorca, donante sistemático de cereales. A estos
importes se les tenían que sumar todos los gastos ocasionados de la recolección y del
transporte del producto95, aumentando así su precio final.
El coste de la cuartera de trigo mantuvo un comportamiento irregular en el caso
de Sineu. Entre los meses de septiembre a febrero, el valor era de 20 a 22 sueldos96.
Los importes más bajos coincidían entre marzo y julio con 8 sueldos la cuartera97.
La cebada, por su parte, sí mantenía unas pautas lineales: su cotización no variaba
95
ACM, Mensa Capitular, liv 2737, fl. 26: “De port de Petra a Ciutat 80 qr de toseta aº de 2 sous 6 diners
per quartera: 10 lliures”; ACM, Mensa Capitular, liv 2739, fl. 25: “De port 122 qr de forment de Sineu a Ciutat
aº de 2 sous per quartera: 12 lliures 4 s”; ACM, Mensa Capitular, liv 2740, fl. 46: “De port de Porreres a Ciutat
153 qr 1 barc de forment aº de 2 sous per quartera: 14 lb 11 d”.
96
ACM, Mensa Capitular, liv. 2728, fl. 19; ACM, Mensa Capitular, liv. 2732, fl. 21; ACM, Mensa Capitular,
liv. 2734, fl. 24v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2736, fl. 15; ACM, Mensa Capitular, liv. 2740, fl. 18; ACM, Mensa
Capitular, liv. 2741, fl. 17v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2744, fl. 18v-19; ACM, Mensa Capitular, liv. 2745, fl. 19v.
97
ACM, Mensa Capitular, liv. 2735, fl. 18; ACM, Mensa Capitular, liv. 2737, fl. 16; ACM, Mensa
Capitular, liv. 2742, fl. 16.
542
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
a lo largo del año, conservando el precio de la cuartera a 9 sueldos98. La cuantía fija
vendría determinada por que este cereal era muy fecundo en la zona, lo cual permitía
la disposición del precio a la baja. Al contrario sucedía con el trigo toseta, el más
caro. Los valores de la cuartera ascendían entre 24 y 27 sueldos99, llegando hasta tal
punto que, en el año 1412, se llegó a pagar a 37 sueldos100. Por su parte, las legumbres
más demandadas eran las habas, pagándose a 18 sueldos la cuartera101 sin mostrar
ninguna variación. En cambio, las almortas y los garbanzos, al tener producciones
reducidas, se ponían a la venta en “almuds”102, con unos de precios de entre 5 y 8
dineros103.
En referencia a los precios de los cereales procedentes de Porreres, hay que
decir que el de mayor cuantía era el trigo blando o “xeixa”: se ponía a la venta a 22
sueldos la cuartera104. Le seguía el trigo y el toseta, que en comparación con los de la
parroquia de Sineu, ambos tasaban inferior. El importe oscilaba entre 18 y 15 sueldos
por cuartera105. El cereal más barato, igual que para el caso anterior, era la cebada106:
sus precios, entre marzo y abril, se mantenían a 7 sueldos; y, en mayo, a 8 sueldos la
cuartera. En alusión a las legumbres, no aparecen datos contabilizados al respecto.
En lo concerniente al valor del trigo de la parroquia de Petra, se pueden
dilucidar dos etapas: una primera, comprendida entre 1400 y 1415107, en la que el
precio de la cuartera se sostiene a 20 sueldos durante todo el año; y la segunda, a
partir de 1416, en la que se observa una devaluación del producto, pagándose entre
12-13 sueldos por cuartera108. Lo mismo sucedió con el trigo toseta: entre el 1410 y
el 1415, la cuartera se pagaba entre 21 y 23 sueldos109, pero, desde 1416, los valores
98
ACM, Mensa Capitular, liv. 2728, fl. 16v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2729, fl. 17; ACM, Mensa
Capitular, liv. 2731, fl. 20v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2736, fl. 15; ACM, Mensa Capitular, liv. 2740, fl. 18;
ACM, Mensa Capitular, liv. 2744, fl. 18v-19.
99
ACM, Mensa Capitular, liv. 2735, fl. 18; ACM, Mensa Capitular, liv. 2740, fl. 18; ACM, Mensa
Capitular, liv. 2745, fl. 19v.
100
ACM, Mensa Capitular, liv. 2739, fl. 17.
101
ACM, Mensa Capitular, liv. 2729, fl. 17; ACM, Mensa Capitular, liv. 2734, fl. 24v; ACM, Mensa
Capitular, liv. 2736, fl. 15; ACM, Mensa Capitular, liv. 2740, fl. 18.
102
Almud: Medida de áridos equivalente a 1’95 kg [dcvb.es].
103
ACM, Mensa Capitular, liv. 2731, fl. 20v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2737, fl. 16
104
ACM, Mensa Capitular, liv. 2728, fl. 25; ACM, Mensa Capitular, liv. 2729, fl. 23v; ACM, Mensa
Capitular, liv. 2730, fl. 27v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2732, fl. 27v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2732, fl. 26v;
ACM, Mensa Capitular, liv. 2734, fl. 22v;
105
ACM, Mensa Capitular, liv. 2730, fl. 27v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2732, fl. 26v; ACM, Mensa
Capitular, liv. 2740, fl. 39; ACM, Mensa Capitular, liv. 2742, fl. 48; ACM, Mensa Capitular, liv. 2743, fl. 45; ACM,
Mensa Capitular, liv. 2745, fl. 36.
106
ACM, Mensa Capitular, liv. 2740, fl. 39; ACM, Mensa Capitular, liv. 2742, fl. 48; ACM, Mensa
Capitular, liv. 2743, fl. 45.
107
ACM, Mensa Capitular, liv. 2730, fl. 25v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2731, fl. 21; ACM, Mensa
Capitular, liv. 2738, fl. 25v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2740, fl. 38; ACM, Mensa Capitular, liv. 2741, fl. 25.
108
ACM, Mensa Capitular, liv. 2742, fl. 31; ACM, Mensa Capitular, liv. 2743, fl. 34; ACM, Mensa
Capitular, liv. 2744, fl. 24v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2745, fl. 25v.
109
ACM, Mensa Capitular, liv. 2737, fl. 26; ACM, Mensa Capitular, liv. 2738, fl. 25v; ACM, Mensa
Capitular, liv. 2740, fl. 38; ACM, Mensa Capitular, liv. 2741, fl. 25.
EL DIEZMO DE LOS “TRIGOS” DEL CABILDO CATEDR ALICIO DEL R EINO DE MALLORCA
543
descendieron hasta los 16 y 15 sueldos110. El trigo blando, por otra parte, oscilaba
entre 20 y 21 sueldos la cuartera111, mientras que el coste de la cuartera de la cebada
fue, al igual que en el resto, continuo a lo largo de estos años, de 9 sueldos112. En
cuanto a las legumbres, únicamente se cita el precio de las habas en el 1406, que,
como en Sineu, el importe fue de 18 sueldos113.
Enrique Llopis Agalán y Miguel Jerez Méndez114, autores de un estudio sobre la
articulación del mercado del trigo en Castilla y León, a partir de las contabilidades
del Cabildo catedralicio, apuntan que en la zona castellana-leonesa existiría un
anacronismo entre los precios de un cereal en distintos lugares y, también, un
anacronismo entre los precios de los distintos cereales en una misma localidad.
Mismo comportamiento se podría extrapolar en algunos cereales de Mallorca,
exceptuando la cebada y en las legumbres, las habas.
En este contexto, se debe considerar que en una sociedad eminentemente
agraria, subordinada a las inclemencias climáticas y al desfase tecnológico, si se sufría
una mala cosecha, como consecuencia, había una caída de la oferta de cereales. Este
declive comportaba a un aumento de los precios, y, por tanto, el inicio de una crisis.
Siguiendo a D. Álvaro Santamaría115, unos de los puntos de inflexión de la
agricultura en Mallorca en la primera mitad del siglo XV era el déficit de cereales,
lo que obligaba a las autoridades competentes a realizar importantes importaciones
de granos. El trigo era la base de la alimentación y, por ello, era necesario conseguir
una fuente de abastecimiento. El Cabildo catedralicio complementaba, de alguna
forma, las actuaciones de los poderes civiles en este aspecto. Como se ha indicado
anteriormente, su diezmo de los cereales servía, también, como suministro para la
ciudad, pero no era suficiente como para satisfacer las demandas de granos, pese a que
disponían de grandes extensiones de tierra con este cultivo. Por todos estos motivos,
era necesaria la búsqueda de otros mercados que actuasen como proveedores de
trigo. Las mismas respuestas dieron las autoridades catalanas ante la situación de
carestía116.
110
ACM, Mensa Capitular, liv. 2742, fl. 31; ACM, Mensa Capitular, liv. 2743, fl. 34; ACM, Mensa
Capitular, liv. 2744, fl. 24v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2745, fl. 25v.
111
ACM, Mensa Capitular, liv. 2730, fl. 25v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2731, fl. 24v; ACM, Mensa
Capitular, liv. 2745, fl. 25v.
112
ACM, Mensa Capitular, liv. 2728, fl. 25v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2737, fl. 26; ACM, Mensa
Capitular, liv. 2732, fl. 27v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2741, fl. 25; ACM, Mensa Capitular, liv. 2743, fl. 34;
ACM, Mensa Capitular, liv. 2744, fl. 24v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2745, fl. 25v.
113
ACM, Mensa Capitular, liv. 2733, fl. 18.
114
LLOPIS AGALÁN, E. y JEREZ MÉNDEZ, M. − “El mercado de trigo en Castilla y León, 1691-1788:
arbitraje espacial e intervención…”, pp. 13-68.
115
SANTAMARÍA ARÁNEZ, Á. − “El reino de Mallorca en la primera mitad del siglo XV”. In IV
Congreso de la Historia de la Corona de Aragón, Palma: Diputación Provincial de las Baleares, 1955, p. 123.
116
SERRA PUIG, E. − “Els cereals a la Barcelona del segle XIV”. en Alimentació i societat en la Catalunya
medieval, p. 73. En este artículo se constata que en el siglo XIII, Sicilia era un importante centro de importación
de trigo a Barcelona. Las cargas de trigo siciliano se complementaban con los de origen sardo. No obstante, la
544
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Para proveerse de trigo, el eje comercial practicado por el Reino de Mallorca
era Mallorca-Cerdeña-Sicilia117 y Nápoles118. También adquiría granos producidos en
Berbería119, en Castilla120, en el Mediodía francés y en diferentes zonas de la península
italiana. Asimismo, también fueron importantes las entradas de cereales procedentes
del Reino de Valencia121, mismo procedimiento que utilizó la Barcelona medieval122.
Estos reinos tenían un estrecho vínculo comercial, pues el intercambio de productos
era la tónica habitual. Respecto a los negocios mercantiles mallorquines, se deben
tener en cuenta los trabajos de Francisco Sevillano Colom123, donde queda latente el
intenso tráfico marítimo y comercial experimentado en el puerto de la “Ciutat” de
Mallorca. Gracias al análisis de los registros de “guiatges” del siglo XIV, el autor pudo
constatar la enorme complejidad de conexiones del puerto de Palma con puertos
peninsulares mediterráneos y atlánticos, así como el carácter internacional del
Reino de Mallorca a lo largo de la Edad Media124. Para reafirmar, todavía más, estas
actuaciones, es necesario referirse a los enlaces que mantenía, a la vez, el Reino de
Mallorca con las ciudades de Almería y Málaga125, en donde las naves mallorquinas
requerían de cargamentos de trigo.
Retornando a tierras mallorquinas, la falta de trigo era de tal magnitud que,
en determinadas ocasiones, las autoridades competentes decretaban permiso a los
alcaldes de las poblaciones marítimas para asaltar embarcaciones cargadas de trigo
que estuvieran navegando en aguas de Mallorca126.
6. Los ingresos del diezmo de los cereales del Capítulo de la Seo de Mallorca
(1400-1420).
A través de los recuentos de las contabilidades catedralicias, se pueden observar las
ciudad condal no únicamente se nutría de cereales extranjeros, sino que también contaba con las inyecciones
de trigo procedente del delta del Ebro y del Reino de Valencia, tal y como sucedía en el Reino de Mallorca.
117
JUAN VIDAL, J. − “El regne de Mallorca en temps de Carles V: balanç i perspectives”, Mayurqa, 26
(2000) p. 53.PÉREZ, P. − “El mercat de blats de la vila de Sóller (1466-1476)”. Mayurqa 21 (1985-1987), p. 147.
118
BARCELÓ CRESPÍ, M. − “Aspectes de la relació de Mallorca amb el Regne de Nàpols a la Baixa Edat
Mitjana”. Butlletí de la Societat Arqueològica Lul·liana 72 (2016), pp. 29-51.
119
PÉREZ, P. − “El mercat de …”, p. 147.
120
SEVILLANO COLOM, F. − “Mallorca y Castilla (1276-1343)”. Boletín de la Sociedad Castellonense
de Cultura 46 (1970), pp. 321-366.
121
CATEURA BENNÀSSER, P. − “Valencia y Mallorca en el siglo XV”. Mayurqa 26 (2000), p. 184;
RIERA MELIS, A. – “Crisis frumentarias y políticas municipales de abastecimiento en las ciudades catalanas
durante la Edad Media…”, p. 63: El autor apunta a que se exportaba trigo a Mallorca desde la ciudad de Orihuel.
122
SERRA PUIG, E. − “Els cereals…”, p. 73.
123
SEVILLANO COLOM, F. − “De Venecia a Flandes…”, pp. 1-33
124
SEVILLANO COLOM, F. − “De Venecia a Flandes…”, pp. 1-33; SEVILLANO COLOM, F. −
“Mercaderes y navegantes…”, pp. 431-520.
125
BARCELÓ CRESPÍ, M. − “Cargamentos de trigo para Mallorca a través del puerto de Málaga
(1490-1516)”. In II Congreso de Historia de Andalucía. Córdoba: Consejería de Cultura y Medio Ambiente,
pp. 275-287.
126
CAMPANER, Á. − Cronicon…, p. 68.
EL DIEZMO DE LOS “TRIGOS” DEL CABILDO CATEDR ALICIO DEL R EINO DE MALLORCA
545
fluctuaciones de los beneficios que reportaba el diezmo de los “trigos” al colegio
de canónigos. Al ser muy cuantiosos los ingresos procedentes de este impuesto,
constituían una de sus principales reservas. Como se puede observar en las tablas, los
reportes oscilaban entre 1500 y 2700 libras anuales. Las cuotas máximas, establecidas
en el año 1409, se presentaron con unos totales de 3135 libras, 18 sueldos y 10 dineros.
Por contra, el “annus horribilis” recaudó 1358 libras, 18 sueldos y 7 d, en el 1411.
Los gastos derivados del diezmo, a los cuales tenía que hacer frente el Cabildo, no
supusieron, a lo largo de la etapa analizada, ningún inconveniente. Nunca alcanzaron
un importe superior a 300 libras. Por tanto, las finanzas catedralicias tuvieron un
balance contable positivo, pudiendo disfrutar de unas cuentas perfectamente
saneadas.
1400
1401
1403
2.679 lb
11 s 3 d
2.860 lb
12 s 7 d
1410
1411
1412
2.784 lb
7 s 10 d
1.358 lb
18 s 7 d
1.680 lb
17 s
1404
1405
1406
1407
1408
1409
2.227 lb 2.707 lb 2.622 lb 1.838 lb 1.887 lb 1.727 lb 3.135 lb
15 s 5 d 4 s 6 d
10 s 7 d 5 s 5 d
12 s 10 d 17 s 4 d 18 s 10 d
1414
1415
1416
1417
1418
2.164 lb 1.727 lb
12 s 10 d 11 s 7 d
1.654 lb
12 s 4 d
1.585 lb
6s4d
1.346 lb
5s
1407
1408
1420
1.506 lb
15 s 4 d
Tab. 1 − Ingresos.
1400
160 lb
6s1d
1410
106 lb
3s1d
1401
201 lb
3s1d
1411
94 lb
16 s 6 d
1403
586 lb
3s1d
1412
100 lb
11 s
1404
1405
1406
145 lb
11 s 2 d
172 lb
19 s 9 d
76 lb
17 s 7 d
1414
1415
1416
289 lb
7s4d
115 lb
15 s 9 d
Tab. 2 − Gastos.
254 lb
4s6d
154 lb
1s1d
1417
387 lb
14 s 2 d
35 lb
4s8d
1418
410 lb
3s1d
1409
67 lb
12 s 6 d
1420
151 lb
2s4d
546
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
3500
LIBRAS
3000
2500
2000
1500
1000
500
1400
1402
1404
1406
1408
1410
1412
1414
1416
1418
1420
1418
1420
AÑOS
Gráfico 1 − Ingresos anuales del diezmo de los cereales.
700
LIBRAS
600
500
400
300
200
100
1400
1402
1404
1406
1408
1410
1412
1414
AÑOS
Gráfico 2 − Gastos de la venta del diezmo.
1416
EL DIEZMO DE LOS “TRIGOS” DEL CABILDO CATEDR ALICIO DEL R EINO DE MALLORCA
547
7. Conclusiones.
Recapitulando, el diezmo de los cereales fue un impuesto que recaía sobre el 10%
de la producción de trigo, toseta, cebada, trigo blando, morcajo y legumbres: habas,
lentejas, garbanzos y almortas.
Su implantación en el Reino de Mallorca tiene su origen en el siglo XIII con
la conquista cristiana de la isla, dirigida por el rey Jaume I, que estableció un nuevo
régimen político, económico y social, al cual se sumaba un régimen fiscal favorable
al soberano, destacando la percepción íntegra del diezmo.
En el momento de la dotación de la Iglesia de Mallorca, empezaron a surgir
una serie de problemas en torno a la estructura del fisco y su cobro. Inicialmente,
para la dotación de la nueva diócesis y sus miembros, el rey concedió las dos terceras
partes de todos sus diezmos, pero la decisión no fue suficiente para contentar a los
religiosos, ya que lo que ellos perseguían era conseguir la captación completa de los
diezmos. Pese a los intentos de los soberanos por sofocar el problema de los diezmos
demandados por la curia eclesiástica, el problema siguió en plena vigencia hasta
la llegada, en 1315, del “Pariatge”, pacto por el cual se repartían los diezmos, por
mitades indivisas, entre el rey y el Cabildo de Mallorca.
A todo ello se le debe sumar el malestar político, social y económico en el que
estaba inmerso el Reino, fundamentalmente durante los últimos años del siglo XIV
y en el siglo XV. Las tensas relaciones entre el poder civil y la Iglesia, el asalto de
la aljama judía de la ciudad en 1391, las plagas, las malas cosechas, la producción
agrícola era insuficiente para poder hacer frente a las demandas de alimentos, la
especulación y el fraude sobre los productos y los precios fueron la dinámica habitual
en esta sociedad feudal.
No obstante, en ese clima de desasosiego, los diezmos se seguían cobrando con
regularidad, de los cuales se veían beneficiados los canónigos de la catedral. El sistema
de transacción se realizaba mediante el arrendamiento, en efectivo o en especie. Entre
los productos fiscalizados, el más importante era el diezmo de los cereales, el cual se
ponía en subasta el primer domingo de mayo en la parroquia de Sineu.
De las villas, donde el arriendo se tramitaba en especie, destacaron: Sineu-Sant
Joan, Petra y Porreres. Al existir una mayor demanda de trigos, sus producciones se
transportaban hasta la capital del Reino. Una vez en la ciudad, eran conducidas hasta
la cuartera para ponerlas a la venta a particulares. Los precios de los cereales estaban
sujetos una variabilidad condicionada por su lugar de origen y la temporada. Tras el
análisis de los valores contabilizados, los únicos cereales que se escapaban de estas
fluctuaciones de precios fueron el trigo, cuyo coste por cuartera oscilaba entre 20 y
22 sueldos, y la cebada, el cereal más asequible al mantenerse de manera continua
a 9 sueldos por cuartera. En lo concerniente al precio de las legumbres, las habas se
548
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
cotizaron de una manera unificada, a 18 sueldos por cuartera. Por el contrario, el resto
de producciones cerealistas, en cuanto a su tasación, estaban sujetas a variaciones.
Hay que tener en cuenta que los sistemas de cultivo eran deficitarios y que, en
ocasiones, conducían a una caída de la oferta de los cereales, aumentando los precios
e iniciando una crisis. No obstante, el Cabildo catedralicio seguía manteniendo su
capacidad financiera. Sus ingresos ordinarios procedentes del cobro del diezmo iban
al alza. Cabe apuntar que el diezmo de los cereales perteneciente a los canónigos de
la Catedral de Mallorca fue el más importante del conjunto tributario. Además, con
todo ello, se puede observar la evolución de la administración contable capitular,
poniendo de manifiesto que las estructuras eclesiásticas capitulares fueron complejas
y que se iba dibujando un mayor control, dirigido al bien de la diócesis, en particular,
y al bien común del Reino, en general.
EL DIEZMO DE LOS “TRIGOS” DEL CABILDO CATEDR ALICIO DEL R EINO DE MALLORCA
549
550
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Pro Bono Communitatis:
The Towns and Monetary Policy
in León and Castile, c.1130-1230
James J. Todesca1
Abstract
The commercial awakening of Europe in the long 12th century depended
on trustworthy currency. As the economy quickened, governments faced
the challenge of producing an ample, reliable coinage for the burgeoning
merchant class while still making a profit at their mints. Incorporating both
diplomatic and numismatic evidence, this paper traces the interplay between
royal monetary policy and town interests in León and Castile. In 1202, Alfonso
IX of León (1188-1230) called “many men from each town” to an assembly at
Benavente. There the townsmen agreed to a tax of one gold morabetino per
head in return for the king’s promise not to alter the coinage for seven years.
In neighboring Castile, Alfonso VIII (1158-1214) opted to debase his coinage
without consulting his subjects. To combat the ensuing inflation, he was then
forced to issue price ceilings in consultation with “the good men of my towns”
in 1207. His successors soon imitated León and sought consent for a tax as a
way to maintain the coinage. Both crowns then took innovative steps to supply
their towns with a stable coinage. Years later, when Alfonso X (1252-84) of a
united Castile-León deviated from this policy, it helped topple him from power.
Keywords
Coinage; Legislative assemblies; León; Castile; Numismatics.
1
Georgia Southern University.
552
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Pro bono communitatis: Los burgos y la política monetaria en León
y Castilla, c.1130-1230
El despertar comercial de Europa a lo largo del siglo XII dependió de una
moneda fiable. A medida que la economía se aceleraba, los diferentes gobiernos
se encontraban con el desafío de crear un sistema monetario amplio y seguro
para la incipiente clase comerciante, mientras que al mismo tiempo sacaban
un beneficio de esas riquezas. Incorporando pruebas tanto diplomáticas como
numismáticas, este ensayo traza la interacción entre la política monetaria real y
los intereses del pueblo en León y Castilla. En 1202 Alfonso IX de León (11881230) llamó en asamblea a “muchos hombres de cada villa” en Benavente. Allí
los ciudadanos acordaron pagar un impuesto de un maravedí de oro por cabeza
a cambio de la promesa del rey de no cambiar la acuñación monetaria durante
siete años. En la vecina Castilla, Alfonso VIII (1158-1214) optó por degradar
su acuñación sin consultar a sus súbditos. Para hacer frente a la resultante
inflación, lo forzaron a que fijara precios máximos con el asesoramiento de los
“hombres buenos de mis villas” en 1207. Sus sucesores pronto imitaron a León
y buscaron un consentimiento para un impuesto como manera de mantener la
acuñación. Ambas coronas dieron pasos innovadores para ofrecer a sus pueblos
un sistema monetario estable. Años más tarde, cuando Alfonso X (1252-84) − de
una ya unida Castilla y León − se apartó de su política, esto ayudó a derrocarlo
del poder.
Palabras clave:
Sistema monetario; Asambleas legislativas; León; Castilla; Numismática.
The small church of Santiago in Carrión de los Condes displays on its western door a
team of eight minters at work (Fig. 1). They appear alongside bread makers, jugglers,
scribes, peasants fighting and a judge. Together these sculptures, probably carved in
the 1160s, warned townsfolk of the moral danger of “avarice, luxury and violence”
associated with commercial expansion.2 The sculptor’s knowledge of the various
2
“Iglesias de Santiago”. In GARCIÁ GUINEA, Miguel Ángel; PÉREZ, José María (eds.) − Enciclopedia
del Románico en Castilla y León: Palencia. Vol. 2. Aguilar de Campoo: Fundación Santa María la Real, 2002,
pp. 1012-13. Slightly north of Carrión, the church of San Pelayo in Arenillas de San Pelayo also seems to display
moneyers at work as does a capital in the old cathedral cloister of Salamanca. TORRES, Julio − “Obreros,
monederos y casas de mondeda. Reino de Castilla, siglos XIII-XV”. Anuario de Estudios Medievales 41 (2011),
PRO BONO COMMUNITATIS:THE TOWNS AND MONETARY POLICY IN LEÓN AND CASTILE
553
stages of minting, however, is striking. His detailed figures serve as a poignant
reminder of the growing importance of coinage in 12th-century León-Castile. In
order to prosper, towns depended on it.
Fig. 1 − Minters on the western door of the Iglesia de Santiago, Carrión de los Condes (Castilla).
Source: A. García Omedes, La Guía Digital del Arte Románico
(http://www.romanicoaragones.com).
As the scholastic philosopher Nicholas Oresme noted “money is... for the good
of the community”3. While barter might suffice in small villages, farmers bringing
produce to weekly town markets looked to be paid in coin. The decrees drawn up by
the canons and citizens of Santiago de Compostela in 1133 make clear that country
folk and town residents (rusticus vel civis) would have been hard pressed to conduct
business without it4. Indeed as a destination for pilgrims, Santiago was particularly
reliant on coin as these visitors had little else to trade. They were also susceptible
to cheating. Alfonso VI (1065-1109) complained that the coins of Santiago were
frequently counterfeited, and the decrees of 1133 specifically warn minters and money
p. 684, and figs 1-4; MOZO MONROY, Manuel − Enciclopedia de la moneda medieval románica en los reinos
de León y Castilla, siglos VIII-XIV. Vol. 2. Madrid, 2017, pp. 151-52, 320-22.
3
“Moneta de natura sua instituta est et inventa pro bono communitatis”. JOHNSON, Charles (ed. and
trans.) − The De Moneta of Nicholas Oresme and English Mint Documents. London: Thomas Nelson and Sons,
1956, p. 10.
4
FALQUE REY, Emma (ed.) − Historia compostellana. Turnhout: Brepols, 1988, bk. 3, chap. 33, pp.
472-75.
554
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
changers not to use false weights in providing coin5. Likewise, the contemporary
Codex Calixtinus, commenting on the array of artisanal products available for sale,
confirms that “one finds moneychangers, innkeepers and merchants of all sorts” on
the main pilgrim route into town6.
If Santiago was the bustling terminus of the pilgrim road, lesser towns still
demanded coin. The monastery of Sahagún lies slightly west of Carrion de los Condes
on the Camino de Santiago. Sometime in the 1080s, Alfonso VI granted a charter of
population so as to establish a town alongside the abbey7. In 1093, he allowed that
town a weekly market, with the revenue from any fines (calumpnia) incurred going to
the monastery. By the opening years of Queen Urraca’s troubled rule (1109-26), the
town of Sahagún had prospered enough for its burghers to revolt against the abbey’s
lordship. As part of her effort to quell the rebellion, Urraca established a mint in the
town in 11168. A mint allowed the townsfolk and more affluent peasants of Sahagún
to more readily commute seigniorial dues into cash9. The abbot and local lords could
then in turn use that coin to procure more than what the local market provided. The
author of the Codex Calixtinus, writing sometime after 1139, described Sahagún as
“prosperous in all sorts of goods.”10
Coinage was the lifeblood of the growing mercantile class in the twelfth
century, before instruments of credit were widely known11. In Bernard of Clairvaux’s
estimation, a skilled merchant was one who collected “sacks” of money12. But these
5
TODESCA, James J. – “The Crown Renewed: The Administration of Coinage in León-Castile
c.1085-1200”. In TODESCA, James J. (ed.) − The Emergence of León-Castile c.1065-1500: Essays Presented to
J. F. O’Callaghan. Farnham, England: Ashgate Publishing, 2015, pp. 13-14. On coinage and travellers, see
NAISMITH, Rory − “The Social Significance of Monetization in the Early Middle Ages”. Past and Present 223
(2014), pp. 24-25.
6
FALQUE REY, Emma − Historia compostellana, p. 474. Terminal dates for the Codex Calixtinus are
1139 and 1173. MELCER, William (ed. and trans.) − The Pilgrim’s Guide to Santiago de Compostela. New
York: Italica Press, 1993, pp. 122-23. On Santiago’s market, see further FLETCHER, Richard A. − St. James’s
Catapult: The Life and Times of Diego Gelmírez of Santiago de Compostela. Oxford: Clarendon Press, 1984, pp.
182-84.
7
BARRERO GARCÍA, Ana María − “Los fueros de Sahagún”. Anuario de historia del derecho español
42 (1972), pp. 393-401, 493-97; UBIETO ARTETA, Antonio (ed.) − Crónicas anónimas de Sahagún. Zaragoza:
Anubar Ediciones, 1987, pp. 19-24.
8
HERRERO DE LA FUENTE, Marta (ed.) − Colección diplomática del monasterio de Sahagún. Vol. 3.
(1073-1109). León: Centro de Estudios e Investigación “San Isidoro”, 1988, pp. 229-31, no. 911. FERNÁNDEZ
FLÓREZ, José Antonio (ed.) − Colección diplomática del monasterio de Sahagún (857-1300). Vol. 4. (11101199). León: Centro de Estudios e Investigación “San Isidoro”, 1991, pp. 47-49, no. 1195.
9
In 1096, three years after the establishment of the market in Sahagún, the abbot agreed to renounce
his right that all bread had to be baked in the abbey’s oven. The townsfolk agreed to pay one solidus (12 denarii)
annually per family for the right to bake on their own. HERRERO DE LA FUENTE, Marta − Colección
diplomática, pp. 305-306, no. 974.
10
MELCER, William − The Pilgrim’s Guide, 1993, pp. 28-29, 86-87. On coin and growth of trade, see
SPUFFORD, Peter − Money and Its use in Medieval Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 1988,
pp. 240-52.
11
On the develoment of credit in twefth-century Italy, see LOPEZ, Robert S. − The Commercial
Revolution of the Middle Ages, 950-1350. Cambridge: Cambridge University Press, 1976, pp.72-77.
12
“Si prudens mercator es, si conquisitir huius saeculi”: LECLERCQ, Jean and ROCHAIS, H. (ed.) −
PRO BONO COMMUNITATIS:THE TOWNS AND MONETARY POLICY IN LEÓN AND CASTILE
555
coins were “struck at the orders of governments”13. Richard Fitz Nigel, in his Dialogue
of the Exchequer, stressed that by the time of Henry I (1100-35) coin (numerata
pecunia) had become of the “utmost necessity” (summe necessaria) in England.
But he also stressed that “it is the king’s profit that is served in all these matters”14.
The tension then between the needs of an expanding market economy and the
fickleness of authorities that might spend more than they could afford, often made
the maintenance of coinage a “constitutional project”15. This paper examines the
earliest known negotiations over coinage between the townsmen of León-Castile and
their kings. The former sought an ample, reliable currency while the latter, following
Richard Fitz Nigel’s axiom, kept an eye on the profit generated from minting.
The coin common to Latin Europe since the days of Charlemagne was the
silver-alloyed denarius. The opening of the Goslar silver mines in Germany in the
10th century greatly increased production of these coins. Although Goslar was drying
up at the close of the 11th century, the discovery of new sources of silver at Freiberg
and other sites in the late-12th century allowed the pace of monetization to again
pickup speed16. But in the mid-12th century, denarii were seemingly in short supply in
Christian Iberia. In 1137, Urraca’s son, Alfonso VII (1126-57), granted the monastery
of Oña the right to the salt works called Pozo del Conde. In his charter, which survives
only in a copy, he stipulates that merchants coming from the far side of the Pisuegra
river were to pay one denarius for each beast they brought to haul salt while those
on the nearer side could pay this toll in bread. Yet for the actual purchase of salt, the
king expected they would pay in “gold or silver or whatever other royal money”17. By
“silver or whatever other royal money”, Alfonso probably meant merchants might
pay in silver plate weighed out in marks or in his own silver-based denarii18. Payment
Sancti Bernardi Opera. Vol. 8. Epistolae. Rome: Editiones Cisterciensis, 1977, pp. 311-17, no. 363.
13
LOPEZ, Robert − The Commercial Revolution..., p. 71.
14
JOHNSON, Charles (ed. and trans.) − Dialogus de Scaccario and Constitutio Domus Regis. London:
Thomas Nelson and Sons, 1950, pp. 38, 40-42.
15
DESAN, Christine – Making Money: Coin, Currency and the Coming of Capitalism. Oxford: Oxford
University Press, 2014, pp. 1-4, 37-69.
16
WOODS, Andrew R. − “From Charlemagne to the Commercial Revolution (c. 800-1150)”. In
NAISMITH, Rory (ed.) − Money and Coinage in the Middle Ages. Leiden: Brill, 2018, pp. 105-109; SPUFFORD,
Peter − Money and Its Use, pp. 74-121.
17
“Trajeren oro o plata o otra qualquier moneda real.” Dated 19 November 1137, the grant survives as a
hybrid copy in the Archivo de la Diputación Provincial de Burgos. The beginning and ending are in Latin, but
the main body is in Spanish. The copyist appears to have struggled with the original Latin, rendering “Michael
Feliz, merinus” as “Michael, filius Marinus.” The style and witness list closely parallel another royal donation
done the same day, although the former gives Christopher as abbot and the latter John. Christopher, however,
also appears as abbot in a donation dated December 1137. While suspect, the grant of 19 November should
not be wholly rejected as a forgery. A forger working after c.1200 would likely betray himself by giving prices
in morabetinos or some later silver coinage. OCEJA GONZALO, Isabel (ed.) − Documentación del monasterio
de San Salvador de Oña (1032-1284). Burgos: Ediciones J. M. Garrido Garrido, 1983, pp. ix-xii, 44-45, no. 52;
ALAMO, Juan del (ed.) − Colección diplomática de San Salvador de Oña (822-1284). Vol 1. Madrid: Concejo
Superior de Investigaciones Científicas, 1950, pp. 209-213, nos. 174 and 177; p. 217, no. 180.
18
For payment in silver plate alongside denarii, see Urraca’s sale of land for “iii mille solidos de
556
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
in gold is a reference to the Almoravid dinar, the morabetino, which came into the
Christian kingdoms as Almoravid power in the south weakened.19
While the denarius in this grant is only one method of payment, demand for
the coin was surely on the rise. The longer a coin stayed in circulation, however, the
more it was susceptible to wear as well as counterfeiting and clipping20.To combat this
deterioration, a minting authority, be it king, bishop or local lord, had to periodically
change the coinage. An honest change, or mutatio, involved altering the coin’s motif
while making no change to the standard of weight or fineness. To cover production
cost and to generate some profit, however, a mutatio was also normally accompanied
by a declaration that all other coins were now invalid and must be turned in to the
mint at a discount21. For example, Afonso III of Portugal declared in 1261 that it took
sixteen old coins to equal twelve of his new ones22. A mutatio, then, amounted to a
tax on one’s holding in coin and was felt hardest by the merchants and artisans of the
towns.
Though Alfonso’s grant to Oña speaks casually of “whatever royal money”, he
and his predecessors did attempt periodic mutationes or changes of the coinage.
Palencia, just south of Carrión de los Condes, was the site of a mint overseen by the
bishop, who enjoyed a third of its profits. In a charter of 1140, Alfonso reveals that his
predecessors used to give the bishop a gift of furs on those occasions “when the money
was changed (quando mutatio monete fierit)”. Reflecting the increasing availability
of coin, the king now agreed to pay the bishop fifty gold morabetinos “when there
denarios...et de xii markos argenti”. FERNÁNDEZ CATÓN, José María (ed.) − Colección documental del
archivo de la Catedral de León (775-1230). Vol. 5. (1109-1187). León: Centro de Estudios e Investigación “San
Isidoro”, 1990, pp. 32-33, no. 1340. See further PHILLIPS, Marcus − “The Monetary Use of Uncoined Silver in
Western Europe in the Twelfth and Thirteenth Centuries”. In ALLEN, Martin; MAYHEW, Nicholas (eds.) −
Money and Its Use in Medieval Europe Three Decades On. London: Royal Numismatic Society, 2017, pp. 1-18.
The Oña charter’s reference to “otra qualquier moneda real” is possibly a nod to the jaccensis of Aragon which
circulated in León-Castile in these years, but it would be odd for Alfonso VII to recognize it. More likely, the
phrase indicates that the crown was not able to completely invalidate older royal issues so as to have only one
coin type in circulation. For marks of silver as well as the jaccensis, see TODESCA, James J. − What Touches
All: Coinage and Monetary Policy in León-Castile to 1230. New York: Fordham University, 1996. Ph.D. Thesis,
pp.166-78; 195-96, 240-41.
19
On the morabetino, see TODESCA, James J. − “Selling Castile: Coinage, Propaganda and
Mediterranean Trade in the Age of Alfonso VIII”. In GÓMEZ, Miguel; SMITH, Damian; LINCOLN, Kyle
C. (ed.) − King Alfonso VIII of Castile: Government, Family and War. New York: Fordham University Press,
2019, pp. 41-42.
20
Richard Fitz Nigel recognized the effects of wear, counterfeiting and clipping. JOHNSON, Charles
− Dialogus de Scaccario, p. 12.
21
Oresme acknowledged that sometimes a minting authority changed their coin without “prohibiting
the previous money from circulating.” JOHNSON, Charles − The De Moneta..., pp. 13-14; cf. TODESCA,
James − “The Crown Renewed...”, pp. 15-16.
22
“Duodecim denarii de moneta nova valeant per cambium in omnibus emptionibus et venditionibus
et rebus aliis sexdecim denarios de veteribus denariis.” HERCULANO, Alexandre (ed.) − Portugaliae
Monumenta Historica, Leges et Consuetudines. Vol. 1. 1856, reprint Nendeln, Liechtenstein: Kraus, 1967, pp.
210-12, no. 9.
PRO BONO COMMUNITATIS:THE TOWNS AND MONETARY POLICY IN LEÓN AND CASTILE
557
is a change to new money”23. 50 gold pieces was not a small sum. Alfonso clearly
anticipated a profit when he changed the coinage which he was willing to share with
the bishop. Herein lay the problem with the mutatio; it was subject to abuse.
In February of 1155, the papal legate Hyacinth, the future Celestine III (119198), convoked a large church council in the Castilian town of Valladolid. Following
the tradition of the councils of Toledo, Emperor Alfonso and his two sons attended.
Hyacinth, trained in theology and perhaps law at Paris, was respected throughout
Europe despite his association with the radicals Abelard and Arnold of Brescia24. But
at Valladolid relations between him and Alfonso grew tense over a dispute involving
the archbishops of Braga and Compostela25. Alfonso was undoubtedly further
annoyed by the council’s final decree, monetam quidquam, which requested that the
emperor swear to maintain one coinage for the rest of his days, without exacting a
price26. It further stipulated that this coin be of good weight and 4 denarii fine or onethird silver, a standard then becoming common in southern Europe27.
While the presence of townsmen is not recorded at Valladolid, we can perhaps
detect their input in monetam quidquam. First, the canon’s call for a specific fineness
sounds like the expert advice of men attuned to the market. Secondly, its demand that
Alfonso henceforth maintain one coin is clearly a protest against frequent mutations,
a policy costly to the mercantile class since it taxed their capital in coin.28 Indeed
the numismatic record affirms Alfonso changed his coin often. In his pioneering
ABAJO MARTÍN, Teresa (ed.) − Documentación de la catedral de Palencia (1035-1247). Burgos:
Ediciones J.M. Garrido Garrido, 1986, pp. 80-82, no. 35; TODESCA, James − “The Crown Renewed...”, pp.
22-23.
24
Louis VII (1137-80) of France and Eleanor of Aquitaine both valued his friendship. DUGGAN, Anne
J. − “Hyacinth Bobone: Diplomat and Pope”. In DORAN, John and SMITH, Damian J. (eds.) − Pope Celestine
III (1191-1198): Diplomat and Pastor. Farnham, England: Ashgate, 2008, pp. 3-8.
25
SMITH, Damian J. − “The Iberian Legations of Cardinal Hyacinth Bobone”. In DORAN, John − Pope
Celestine..., pp. 91-93.
26
For the canon monetam quidquam, see TODESCA, James − “The Crown Renewed...”, p. 26, n. 55;
TODESCA, James − What Touches All..., pp. 485-89. Precedent for confirming or swearing to uphold a coinage
can be found in Catalonia. In 1118, Ramon Berenguer III (1086-1131) of Catalonia swore to maintain his
coinage in Cerdanya, upon inheriting the county. But he exacted a cash payment in return which monetam
quidquam condemns. Bisson believed monetam quidquam was first promulgated at Hyacinth’s council in
Lerida, held after Valladolid, and suggests Bishop Pere of Vich may have been influential in drawing up the
canon. But monetam quidquam addresses the emperor and so clearly originated at Valladolid. BISSON,
Thomas − Conservation of Coinage: Monetary Exploitation and its Restraint in France, Catalonia, and Aragon
(c. A.D. 1000-c.1225). Oxford: Clarendon Press, 1979, pp. 50-51, 81-82, 199-200, no. 1.
27
Medieval mints designated fineness by a special use of the term denarius. Pure silver was 12-denarii
fine; a coin of half silver was 6-denarii fine. The Council of Valladolid called for a coin of 4 denarii or 0.33 fine.
The coins of Jaca, Melgueil and Tours were all struck at this quaternal standard. SPUFFORD, Peter − Money
and Its Use..., pp. 102-103.
28
It seems unlikely that the initiative behind monetam quidquam came solely from the clergy though
the archbishop of Toledo presided over a council in Palencia in 1129 that warned against counterfeiting.
GARCÍA Y GARCÍA, Antonio − “Concilios y sínodos en el ordenamiento jurídico del reino de León”. In El
reino de León en la alta edad media. Vol. 1. Cortes, concilios y fueros. León: Centro de Estudios e Investigación
“San Isidoro”, 1988, pp. 489-90, no. 6.
23
558
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
catalogue of the coinage, Heiss assigned thirty denarii to the reign29. But Alfonso
VII’s reference to “qualquier moneda real” in the Oña grant of 1137 implies these
changes were not executed efficiently and left a confusing array of older types in
circulation, a further annoyance to merchants.
The emperor, however, had little time to accept or reject the Valladolid council’s
admonition; he died unexpectedly in August of 1157. The following May his eldest
son, Sancho III (1157-58), accepted a division of the realm with his brother. Sancho
became king of “Toledo and Castile” while Fernando II (1157-88) ruled as king in
“León and Galicia”30. Sancho, however, died three months after the Sahagún meeting
leaving his son, Alfonso VIII (1158-1214), as successor. The boy, not yet three, was
now an orphan as his mother had died shortly before. Let us leave Alfonso for the
moment as a child in Castile where rival factions vied for the regency. The continued
contest between the towns and the crown over coinage can be traced more clearly in
the Leonese sources31.
Despite having attended the Valladolid council, Fernando II continued to
exercise his sovereign right to periodically change the coinage. Coins in Fernando’s
name are rare today, but Manuel Mozo, in his recent corpus, provides photographs of
examples held in private collections. Mozo’s evidence indicates that Fernando struck
at least fourteen types in his thirty-one years on the throne, implying he changed the
coinage every two years or so32. Fernando’s proclivity to impose mutationes can also
be glimpsed in his dealings with the see of Santiago. As we have seen, Santiago had
a thriving mint thanks to an influx of foreign coins brought by pilgrims. Alfonso VI
(1065-1109) had granted the bishop and cathedral chapter of Santiago full control of
that mint, but Fernando’s father, Alfonso VII, reclaimed half the revenue. Fernando in
turn restored full mint rights to the cathedral in 117133 and confirmed that privilege
29
HEISS, Aloïss − Descripción general de las monedas hispano-cristianas desde la invasión de los
Árabes. Vol. 1. l865; reprint, Madrid: J.R. Cayon, 1975, plates 1-3. Many of these types carry no ruler’s name but
invoke the imperial title. It is conceivable that some predate Alfonso VII and belong to his grandfather or even
great grandfather. CRUSAFONT, Miquel; BALAGUER, Anna M.; GRIERSON, Philip − Medieval European
Coinage, Vol. 6. The Iberian Peninsula. Cambridge: Cambridge University Press, 2013, pp 235-49, conclude
that there are “more than 70 distinct monetary types” belonging to Alfonso VII, but they do not delineate how
they arrive at that number.
30
According to the Primera crónica general, Sancho buried his father in Toledo and commenced to
rule. He settled with his brother almost a year later at Sahagún. MENÉNDEZ PIDAL, Ramón (ed.) − Primera
crónica general. Vol. 1. Madrid: Bailly-Bailliere é Hijos, 1906, pp. 663-64, chaps. 983-85; PROCTER, Evelyn
S. − Curia and Cortes in León and Castile, 1072-1295. Cambridge: Cambridge University Press, 1980, pp. 73-74;
GONZÁLEZ, Julio (ed.) − Regesta de Fernando II. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas,
1943, pp. 241-43, no. 1; TODESCA, James − “Selling Castile”, pp. 31-32.
31
As PROCTER, Evelyn − Curia..., pp. 73-74, observes, “in the chaotic conditions of the minority (of
Alfonso VIII) the curia did not play an effective role.”
32
Mozo catalogues 28 types under Fernando II. But his types 8-10 likely belong to Alfonso VIII of
Castile. Likewise, I exclude types 11-16 which Fernando may have struck jointly with Alfonso VIII in Castile
during the latter’s minority. In other instances, Mozo enters as separate types coins I interpret as variants of
one type. MOZO MONROY, Manuel – Enciclopedia..., pp. 47-161.
33
RECUERO ASTRAY, Manuel; ROMERO PORTILLA, Paz; RODRÍGUEZ PRIETO, Angeles (eds.) −
PRO BONO COMMUNITATIS:THE TOWNS AND MONETARY POLICY IN LEÓN AND CASTILE
559
in 1182. His charter of 1182 to Archbishop Peter and his canons outlines how this
independent mint in Santiago was to operate alongside the king’s other mints:
From this day you shall hold fully the entire mint with all its dues (directuris)...so
that however much I lord king F(ernando) or my son lord king A(lfonso) or any
of our successors may wish to remove (tollere) the money from the kingdom or
permit it to be diminished in value, you and your successors shall be able to let
this money of yours continue at full and firm value, valid and steadfast, in your
town of Santiago and throughout your entire archdiocese as long as you wish,
and this money of yours, granted and conceded to you, will suffer minimum
damage due to any commutation and diminishment of value34.
From what we know of the mechanics of mutation, the charter’s language makes
precise sense. Fernando speaks of his right to “take” (tollere) a coin out of circulation
and explains that this removal was accomplished by a commutation where the old
coins were diminished in value against the new ones. He assures Santiago that their
coins will remain exempt from this process; they will continue to circulate within the
archdiocese at full value.
Obv. IACOBI, bust facing front.
Rev. REX, lion passant left; scepter/cross above.
Source: Jesús Vico, S.A., auction 135, lot 400.
Fig. 2 − Anonymous denarius minted at Santiago de Compostela.
Documentos medievales del reino de Galicia: Fernando II (1155-1188). La Coruña: Xunta de Galicia, 2000, pp.
151-52, no. 122; TODESCA, James − “The Crown Renewed...”, pp.13-14, 27-28.
34
RECUERO ASTRAY, Manuel − Documentos, pp. 251-53, no. 193; Cf. TODESCA, James − “The
Crown Renewed...”, pp. 27-28.
560
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Figure 2 shows one of the independent coins of Santiago. On the obverse we
can just make out an image of St. James wearing a wide pilgrim’s hat with the legend
IACOBI underneath. The reverse shows a lion passant facing left with a scepter
rising above. Underneath is the legend REX, pointedly omitting the king’s name. By
renouncing his father’s claim to the Santiago mint, Fernando had in effect allowed a
feudal coinage at a time when Phillip Augustus (1180-1223) of France managed to
get rid of many of the local coins in his realm in favor of two regional royal issues,
the parisis and the tournois.35 The king’s indulgence of Santiago was at best awkward.
Pilgrims and merchants travelling across León would be reluctant to change coins
upon entering the archdiocese if they were to soon return along the same road and
be expected to again use the royal coin. Overall, his tolerance of an independent
mint in Santiago combined with frequent changes to the coinage in the rest of the
realm amounted to a feckless monetary policy which could only have frustrated his
subjects.
Popular dissatisfaction with Fernando’s reign is evident in the action taken by
his son Alfonso IX (1188-1230) as he moved to secure the throne after his father’s
death in January 118836. In June, the sixteen-year-old Alfonso journeyed to Carrión
de Los Condes where his cousin, the now grown-up Alfonso VIII, held “a famous
and noble curia”37. At that assembly, Alfonso VIII knighted his young cousin and
received his homage. Girded with the sword of knighthood, Alfonso IX returned
to his realm where he convoked his first large curia in León that July38. The meeting
was attended not only by his bishops and lay magnates but by “selected citizens of
each city”, the earliest reference to townsmen at the Leonese court39. At the meeting,
SPUFFORD, Peter – Money and Its Use..., pp. 197-200.
Alfonso IX, born August 1171, was the product of Fernando’s first marriage to Urraca of Portugal; the
couple separated in 1175 under pressure from Rome. Fernando’s third wife, Urraca López de Haro, survived
her husband. With her own young son, she opposed Alfonso’s claim to the throne. ARVIZU, Fernando de −
“Las cortes de León de 1188 y sus decretos: Un ensayo de critica institucional”. In El reino de León...,Vol. 1, pp.
19-22; BIANCHINNI, Janna − The Queen’s Hand: Power and Authority in the Reign of Berenguela of Castile.
Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2012, pp. 22-24.
37
O’CALLAGHAN, Joseph F. (trans.) − The Latin Chronicle of the Kings of Castile. Tempe: Arizona
Center for Medieval and Renaissance Studies, pp. 22-23, chap. 11. The author of the chronicle, presumably
Juan de Osma, here refers to Alfonso IX as “who now reigns,” indicating he composed at least this section
during the king’s lifetime. Rodrigo de Rada described the assembly at Carrión in 1188 as a plena curia.
O’CALLAGHAN, Joseph F. − The Cortes of Castile-León, 1188-1350. Philadelphia: University of Pennsylvania
Press, 1989, p. 14; O’CALLAGHAN, Joseph F. – “The Beginnings of the Cortes of León-Castile”. American
Historical Review 74 (1969), p. 1516.
38
Similarly, Alfonso VIII called his first curia to Burgos directly after being knighted in 1169.
GONZÁLEZ, Julio − El reino de Castilla en la época de Alfonso VIII. 3 Vols. Madrid: Consejo Superior de
Investigaciones Científicas, 1960, Vol. 2, pp. 211-16, nos. 124-26; TODESCA, James – “Selling Castile...”, p. 34.
39
“Cum celebrarem curiam apud Legionem cum archiepiscopo et episcopis et magnatibus regni mei et
cum electis civibus ex singulis civitatibus.” This undated charter records decrees dealing mainly with violence
and judicial procedure. It seems likely that it is part of the acta of a large curia held in July 1188. ARVIZU,
Fernando de − “Las cortes de León...”, p. 28; FERNÁNDEZ CATÓN, José María − “La curia regia de León...”,
p. 485. González, however, argued that these decrees were produced at a meeting in April and that a second
curia was held in July. GONZÁLEZ, Julio − Alfonso IX..., 2 Vols. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones
35
36
PRO BONO COMMUNITATIS:THE TOWNS AND MONETARY POLICY IN LEÓN AND CASTILE
561
Alfonso accused his father of having given “extravagantly of what ought to be given
and what ought not to be given.” He therefore revoked his father’s charters pertaining
to “royal storehouses (regiis cellariis) and other things (aliis)”, though what those
other things were is unclear40. As with so many medieval assemblies, both lay and
ecclesiastical, we surely do not have all the acta of this extraordinary curia which
must have met over several days in the summer of 118841. By way of comparison, the
only evidence we have of Henry II (1154-89) of England’s curia at Oxford in 1180,
where he reached the important decision to change his coinage for only the second
time, comes from passing references in two charters. As Paul Brand stressed, Henry’s
councilors presumably wrote the various assizes of the reign down, but few have
survived42.
Likewise, we have only a single document that attests to two other royal
assemblies held in León fourteen years after Alfonso’s initial curia of 1188. This text
records a series of judicial decisions reached by a “full court” (plena curia) meeting
at Benavente in March 1202. It tells us that “many men from each town” north of
the Duero were in attendance43. The first few judgements address how knights and
townsmen were to hold land from the church. The last has to do with the coinage:
Científicas, 1944, Vol. 1, p. 46; Vol. 2, pp. 23-26, no. 11. PROCTER, Evelyn S. − “The Interpretation of Clause
3 of the Decrees of León (1188)”. English Historical Review 85 (1970), p. 45; O’CALLAGHAN, Joseph −
“Beginnings...”, pp. 1513-1514;” O’CALLAGHAN, Joseph − The Cortes..., p. 16, accepted Gonzalez’ theory of
two assemblies.
40
“Quia pater meus...prodigaliter dederat danda et non danda, revocarem omnes incartationes de
regiis cellariis et de aliis quas ipse fecerat.” Alfonso is here recalling his actions at the curia in an undated
mandate. He reveals further that the curia in question was held “in primordio regni mei, cum primo curiam
celebravi apud Legionem, in claustro Sancti Isiodoro, presentibus archiepiscopo et episcopis, et ceteris
ordinibus et religiosis viris, et presentibus comitibus et ceteris nobiliibus regni mei, cum ibi decreta mea
institui.” GONZÁLEZ, Julio − Alfonso IX..., Vol 2, pp. 737-38, no. 662.
41
In addition to the documents discussed in notes 38 and 39 above, a third, dated July 1188, was done
“cum venisem ego rex dominus Adefonsus Legionem.” It contains constitutiones addressing lawlessness in the
kingdom and was enacted with “communi assensu et consilio baronum et curie mee.” GONZÁLEZ, Julio −
Alfonso IX..., Vol 2, pp. 26-28, no. 12. This third document seems to date the curia to July, although Fernández
Catón suggests it took place in June, before Alfonso journeyed to Carrión, and that the constitutiones were
redacted later. FERNÁNDEZ CATÓN, José María − “La curia regia de León de 1188 y sus “decreta” y
constitución”. In El reino de León en la alta edad media, Vol. 4. La monarquía (1109-1230) León: Centro de
Estudios e Investigación “San Isidoro”, 1993, pp. 487, 492-97.
42
STACK, Gilbert M. − English Mint Administration, Moneyers and the Monetary Reform in the Reign of
Henry II, 1154-1189. New York: Fordham University, 2004. Ph.D. Thesis, pp. 104-105; BRAND, Paul − “Henry
II and the Creation of the English Common Law”. In HARPER-BILL, Christopher; VINCENT, Nicholas −
Henry II: New Interpretations. Suffolk: Boydell Press, 2007, p. 228; ALLEN, Martin − “Henry II and the English
Coinage”. In HARPER-BILL, Christopher − Henry II…, pp. 268-69. With regards to ecclesiastical gatherings,
between 1049 and 1122 the popes or their legates called “at least one hundred councils... Of only one fourth of
these synods do we possess a full or partial record of the decrees they issued.” ZEMA, Demetrius B. − “Reform
Legislation in the Eleventh Century Church and Its Economic Import”. The Catholic Historical Review 27
(1941), p. 22.
43
The document, preserved in the cathedral of Zamora, appears to be original. A later Latin copy exist
as well as a copy in Spanish. MUÑOZ Y ROMERO, Tomás − Colección de fueros municipales y cartas pueblas.
1847, reprint Madrid: Ediciones Atlas, 1972, pp. 107-110; ARVIZU, Fernando de − “Las cortes de León...”, p. 61;
ESTEPA DIEZ, Carlos − “Las Cortes del reino de León”. In El reino de León..., Vol. 1, p. 230.
562
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Also in this curia it was decided, just as it always was, that if the king should
again wish to change (mutare) his coinage for another, everyone from his
kingdom must receive it uniformly. But if he wishes to sell (it), the people of
the land shall not unwillingly buy it; and if the people of the land wish to buy
it, the king shall not sell it to them unless he wishes to. But if he wishes to sell
it and the people of the land wish to buy it, every one of his kingdom ought to
uniformly buy it from him44.
This is the first clear sign of a monetary conservation tax in León. Similar
imposts had emerged earlier in the Anglo-Norman realm, as well as in Capetian
France and Aragon-Catalonia45. The tax was an alternative to the king exercising his
sovereign right to change the coinage. Rather than see their old coins invalidated,
the assembly at Benavente agreed to pay a flat tax of one morabetino per head in
exchange for the king not altering the money for seven years. The text refers to this
levy as moneta.46 In England and Normandy it was called monetagium. The document
goes on to inform us that a separate assembly meeting slightly earlier in the frontier
zone of Extremadura also agreed to the moneta tax. It is safe to assume townsmen
attended this meeting as well47.
That the Benavente agreement was to last seven years should give us pause.
Alfonso’s first assembly at León was fourteen years prior. While the three extant
documents pertaining to the 1188 curia fail to mention coinage, there is clear
evidence that the moneta levy had been agreed to before Benavente in 1202. In 1199,
Alfonso confirmed for Salamanca’s town council the privileged status of twenty-five
men working on the cathedral. The grant originated with Alfonso VII and was twice
confirmed by Fernando II48. Alfonso IX’s charter, however, adds a qualification that
44
GONZÁLEZ, Julio − Alfonso IX..., Vol. 1, pp. 236-37, no. 167; TODESCA, James − “The Crown
Renewed,” p. 28-30.
45
BISSON, Thomas − Conservation of Coinage: Monetary Exploitation and its Restraint in France,
Catalonia, and Aragon (c.A.D. 1000–c.1225), passim.
46
The Benavente charter speaks of the sale of the money, “de emtione ipsius monete,” but in a later
passage uses moneta in the sense of the tax collected: “Quod rex nec militibus nec aliis tenetur partem facere
de pecunia quam collegerit pro su moneta...aut de pecunia quam colligat pro fossadaria.” This seems to say
that the “king shall not be held to concede (facere) to his knights or others part of the wealth (pecunia) that
he collects from his money tax (moneta) ...or from the wealth (pecunia) that he collects from fossadaria.”
GONZÁLEZ, Julio − Alfonso IX..., Vol. 2, pp. 236-37, no. 167. This passage does not appear to be in the later
Castilian version of the charter. MUÑOZ Y ROMERO, Tomás − Colección de fueros, pp. 109-110.
47
“Similiter eodem anno, et tempore simili eorum empta fuit moneta in tota Extremadura”. The
Spanish translation is slightly different: “Otrosi en este mismo año, é tiempo, por esa mesma moneda de
toda Exrtremadura”. GONZÁLEZ, Julio − Alfonso IX..., Vol. 2, pp. 236-37, no. 167; MUÑOZ Y ROMERO,
Tomás - Colección de fueros, p. 110.
48
MARTÍN MARTÍN, José Luis, et alii (ed.) − Documentos de los archivos catedralicio y diocesano de
Salamanca (siglos XII-XIII). Salamanca: Universidad de Salamanca, 1977, pp. 103-104, no. 17; pp. 122-24, no.
33; pp. 172-73, no. 85. These three older privileges are addressed to the cathedral chapter. Alfonso IX’s charter,
however, is addressed to the town council.
PRO BONO COMMUNITATIS:THE TOWNS AND MONETARY POLICY IN LEÓN AND CASTILE
563
does not appear in his predecessors’ privileges. It stipulates that these workers “are
exempt and perpetually free so that henceforth no one shall demand anything from
any of them... even if moneta is decreed in Salamanca or in its district”49. The text
leaves no doubt that the moneta tax appeared before 1202, though it implies it had
not been collected recently. The logical conclusion is that the assembly of León in
1188 had approved the sale of the coinage for seven years, or until 1195. Indeed
in November 1194, Alfonso granted the military Order of Santiago a “full tenth of
my moneta from the land of León, Zamora, Villafranca and my Asturias”50, another
indication the tax existed before 120251. Alfonso did not include a tenth of moneta
revenues from the archdiocese of Santiago in this grant because earlier in the year he
had confirmed that the mint there was still independent of royal authority52.
Since the cortes of 1188 was only months into his reign, Alfonso’s agreement to
not change the coinage at that time probably meant maintaining his father’s last coin
for seven years. He would have been able to sell the money again in 1195, but there
is no indication he did so53. Perhaps his subjects balked at paying another moneta
levy so soon, or perhaps Alfonso deemed it profitable at that point to issue a new
coin in his own name. Hence the grant to Salamanca of 1199 anticipates that moneta
might be decreed in the future. Three years later, in 1202, the levy was agreed to at
Benavente and at an assembly south of the Duero.
The Benavente texts says that at that meeting the “king sold his money to the
people of the land from the Duero to the sea”, implying the agreement encompassed
the archiepiscopacy of Santiago. Two undated royal mandates corroborate that
Alfonso had by this point revoked Santiago’s independence, insisting his coin
circulate in Galicia and that he collect moneda there when appropriate.54 The
“Excusaverunt et perpetuo liveraverunt, sic quod nullus ab aliquo illorum deinceps aliquid exigat
pro aliqua fazendaria seu pecto vel petito aut fossato, licet moneda mittatur in Salamanca vel in suo termino
ad forum vel ad defforum, et ipsi excusati nulli teneantur de aliquo foro respondere nisi operi Sancte Marie.”
MARTÍN MARTÍN, José Luis - Documentos, pp. 198-99, no. 109; GONZÁLEZ, Julio − Alfonso IX..., Vol. 2, pp.
186-88, no. 130. Cf. PROCTER, Evelyn − Curia, pp. 54-55; GRASSOTTI, Hilda − “Dos problemas de historia
castellano-leonesa, 2: El pueblo y la moneda real en León y Castilla durante el siglo XII”. Cuadernos de Historia
de España 49/50 (1969), pp. 182-84.
50
The following month, December 1194, Alfonso reaffirmed the privilege of moneta revenues to the
Order of Santiago, granting “decimam partem tallii totius monete regni mei”. The language here assures
us that moneta means a tax (tallage). The phrase “of my kingdom”, however, must not have encompassed
independent Santiago. GONZÁLEZ, Julio − Alfonso IX..., Vol. 2, pp. 133-35, nos. 89-90.
51
Though they date it to 1197, Sánchez Albornoz and Prieto Prieto both took Alfonso’s grant to the
Order of Santiago as evidence that moneta had been agreed to at León in 1188. SÁNCHEZ ALBORNOZ,
Claudio − “La primitiva organización monetaria de León y Castilla”. Anuario de Historia del Derecho Español
5 (1928), pp. 339-40; PRIETO PRIETO, Alfonso − “La historiología de las cortes leonesas del 1188”. In El reino
de León..., Vol. 1, 164.
52
GONZÁLEZ, Julio − Alfonso IX..., Vol. 2, pp. 122-23, no. 82.
53
Alfonso did hold a curia in the fall 1194, addressing its constitutiones to “omnibus regni sui prelatis
et principibus et populis universis.” GONZÁLEZ, Julio − Alfonso IX..., Vol. 2, pp. 125-29, nos. 84-85;
FERNÁNDEZ CATÓN, José María − “La curia regia de León...”, pp. 455-64, 470-75.
54
GONZÁLEZ, Julio − Alfonso IX..., Vol. 2, p. 733, no. 653, p. 739, no. 665; GONZÁLEZ BALASCH,
49
564
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
numismatic evidence also supports this conclusion. Figure 3 shows two variations
of a well-struck denarius which may be Alfonso IX’s first issue, struck c.1195. Type A
invokes the city of León, while type B alludes to Santiago. Both weigh over a gram, a
good weight for a 12th-century denarius. A donation to San Pelayo of Oviedo in 1192
equates the gold morabetino to 84 royal denarii giving the Leonese denarius the same
purchasing power as the well-respected denarii of Tours and Anjou55. Alfonso’s new
coin likely upheld that strength.
In 1202, then, Alfonso’s subjects agreed to again pay moneta in order to avoid
another mutatio. At some point after that, however, the king resorted to debasement.
One of his undated mandate reads:
To all of Galicia who see this letter...I firmly and openly command that you
shall accept this money of mine that now circulates just as you always (unquam)
accepted a better one. And he who shall hence do otherwise, shall forfeit himself
and all his possessions to me. And I command that my man who carries this
letter of mine, along with the man of the archbishop, should seize him and take
him and in this way bring him before me56.
The mandate clearly seeks to quash resistance to a coin that had been reduced
in either fineness or weight. Its stern language may indicate that the populace saw the
debasement as particularly grievous, i.e., it occurred before the Benavente agreement
expired in 1209. In 1204, Alfonso’s marriage to Berenguela, the daughter of Alfonso
VIII of Castile, had collapsed. He not only had to field an army to counter Castilian
aggression but by early 1205 made concessions to both Alfonso VIII and some “of
the highest-ranking Castilian nobility”57. It was precisely at this time, January 1205,
that Bartholomew and Simon Bonefacii mortgaged a vineyard in the environs of
the city of León for 30 gold morabetinos, reserving the right to buy it back in one
year or, failing that, in two years. But there were stipulations. If the denarius “should
be debased (deteriorata fuerit)”, they agreed to redeem their land using gold. If the
denarius remained stable (stabilis fuerit), however, they could buy back the property
with denarii at the rate of 96 to the morabetino, a higher rate than what was current in
the 1190s. It seems that despite the Benavente agreement, the Leonese denarius had
fallen some by early 1205, and the Bonefacii feared it may do so again58.
María Teresa (ed.) − Tumbo B de la Catedral de Santiago: Estudio y Edicíon. Santiago: Seminario de Estudios
Gallegos, 2004, pp. 302-303, no. 143.
55
FERNÁNDEZ CONDE, Francisco Javier; TORRENTE FERNÁNDEZ, Isabel; LA NOVAL
MENÉNDEZ, Guadalupe de (ed.) − El monasterio de San Pelayo de Oviedo: Historia y fuentes. Vol. 1. Colección
diplomática (966-1325). Oviedo: Monasterio de San Pelayo, l978, pp. 91-94, no. 42. For the strength of the
tournois and angevin, see TODESCA, James − What Touches All, pp. 276-78.
56
GONZÁLEZ, Julio − Alfonso IX..., Vol. 2, p. 733, no. 653.
57
BIANCHINNI, Janna − The Queen’s Hand..., pp. 76-80.
58
FERNÁNDEZ CATÓN, José María (ed.) − Colección documental del archivo de la catedral de León
PRO BONO COMMUNITATIS:THE TOWNS AND MONETARY POLICY IN LEÓN AND CASTILE
Type A:
Obv. ADEFONSVS REX., lion.
Rev. LEGIO CIVITAS:, cross. Wt. 1.01 g.
Source Áureo y Calicó, auction 318, lot 1250.
Type B:
Obv. :ADEFONSVS REX:, lion passant, right.
Rev. APIS.CI IACOBI., cross. Wt. 1.04 g.
Source: Museo Arqueológico Nacional 1994.50.265.
Fig. 3 − Two variations of a denarius of Alfonso IX of León,
perhaps struck between 1195 and 1202.
565
566
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
The numismatic record suggests that this slight drop in the purchasing power
of the Leonese denarius was caused by a reduction of its weight standard. The two
coins shown in Figure 4 are less carefully struck than the denarius in Figure 3, and
surviving specimens consistently weigh less than a gram59. One of these two coins
likely represents Alfonso’s debasement c.1205. The Bonefacii, as informed residents
of the town of León, may well have realized that Alfonso IX’s appeasement of his
erstwhile father-in-law was not complete in 1205, but their fear that the denarius
might fall again does not seem to have materialized. There is no further hint of
popular resentment toward the coinage, and the sale of a house in Oviedo in 1217
quotes the same rate of 96 denarii to the morabetino that the Bonefacii had agreed to60.
In the remaining years of his reign, Alfonso probably alternated between selling the
coinage and issuing at least one more type though without any further diminishment
in weight or fineness.
Through a combination of mutatio and sale of the coinage, Alfonso IX and the
populace of León managed to avoid drastic debasement. The same cannot be said
for Alfonso VIII and Castile. The Castilian king was badly defeated by the Almohad
caliph al-Mansur at Alarcos in 1195. Though al-Mansur followed up his victory with
additional campaigns, Alfonso procured a truce c.1197. Roughly ten years later,
perhaps around the time the peace was to expire, Alfonso convoked a large curia
to deal with a mounting economic crisis61. As with the extraordinary assembly at
Benavente in 1202, we have only a single document generated by this meeting, a
set of price ceilings sent to the concejo of Toledo dated 120762. As Hernández points
out, the document is an early example of a cuaderno, a record sent out by the king’s
chancery of decisions made at his curia. This curia assembled during the Christmas
season of either 1206 or 1207. The preamble tells us the ceilings, or cotos, were
necessary because “things were being sold for more than is right and there was great
damage to yourselves (i.e., the concejo of Toledo), the land, the archbishop and all
the good men of my towns”63. The reference here to the archbishop perhaps indicates
that the meeting was held in Toledo itself. Since the decrees were sent to the towns to
(775-1230). Vol. 6. (1188-1230). León: Centro de Estudios e Investigación “San Isidoro”, 1991, pp. 157-58, no.
1780.
59
OROL PERNAS, Antonio − Acuñaciones de Alfonso IX. Madrid: Editorial Vico, l982.
60
FERNÁNDEZ CONDE, Francisco − El monasterio de San Pelayo, pp. 105-107, no. 50. For the series of
treaties Alfonso IX made with Castile, see BIANCHINNI, Janna − The Queen’s Hand..., pp. 80-96.
61
The truce with the Almohads is reported both in the “Latin Chronicle” and by Rodrigo Jiménez de
Rada, but neither specifies how long it was to last. O’CALLAGHAN, Joseph – The Latin Chronicle..., pp. 30-32,
chap. 15; FERNÁNDEZ VALVERDE, Juan (ed.) – Roderici Ximenii de Rada, Historia de rebus hispanie sive
historia gothica. Turnhout: Brepols, 1987, bk. 7, pp. 252-53, chap. 30; p. 256, chap. 34. Cf. O’CALLAGHAN,
Joseph F. – Reconquest and Crusade in Medieval Spain. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2003,
p. 63.
62
“Facta carta apud Toletum. ERA M CC XLV.” HERNÁNDEZ, Francisco J. – “Las cortes de Toledo de
1207”. Las cortes de Castilla y León en la Edad Media. Vol 1. Valladolid: Cortes de Castila y León 1988, p. 246.
63
HERNÁNDEZ, Francisco − “Las cortes,” p. 240.
PRO BONO COMMUNITATIS:THE TOWNS AND MONETARY POLICY IN LEÓN AND CASTILE
Obv. AN FO NS REX, cross divides field, scallop in each quadrant.
Rev. LEO, lion passant right, cross above, O mark to right. Wt. .88g.
Source: Áureo y Calicó, auction 297, lot 1320.
Obv. + ILDEFONS: REX. Cross w. fleur de lys in each quadrant.
Rev. Floral cross, square mark to each side, lions below. Wt. .87 g.
Source: Museo Arqueológico Nacional 1994.50.358.
Fig. 4 – Two denarii of Alfonso IX of León, probably struck between 1209 and 1230.
567
568
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
be read publicly and put into effect fifteen days after Christmas, it seems certain that
town representatives participated in drawing them up64.
While the document that has come down to us is not an original, it appears
to be a contemporary copy and is in Castilian rather than Latin. It is possible the
original was in Castilian as well so as to make the edicts more easily understood
when they were read out65. The prices are set in morabetinos and dineros pepiones.
It is perhaps not coincidental that this Romance text is the earliest text known to
employ the colloquial term pepión to describe one of Alfonso VIII’s coins66. The term
may derive from pepita or pipa, a seed or pip, connoting something of little value67.
Shortly after Fernando III (1217-52) ascended the throne of Castile, he made a treaty
with his father, Alfonso IX of León, where he recognized it took 180 pepiones to
equal a morabetino68. Since 96 leoneses also equaled a morabetino, it is evident that
the pepión was far weaker. It was what Catalan sources call a doblench, a coin of 2
denarii fine as opposed to the 4 denarii standard the council of Valladolid had hoped
to maintain69. The distribution of types in 13th-century hoards suggests that the coin
in Figure 5 is the debased pepión introduced by Alfonso VIII70.
Once we recognize the pepión as a drastically debased coin, the price edicts of
1207 make sense. Prices were rising because merchants had discovered the coin’s
reduced intrinsic value. That meant that anyone receiving fixed rents saw their
64
“Este establecemiento compice de seer curiado de quince dias despues de la fiesta de Natal qee es
passada cabedelant. Et esta carta fagades la leer en el conceio, despues en los mercados e fagades que todos la
iuren.” HERNÁNDEZ, Francisco − “Las cortes…” p. 245. The stipulation that the decrees be enacted fifteen
days after Christmas raises two possibilities for the year of the actual assembly. It may have met late in 1207
with the edicts to go into effect in early1208. Or it met in late 1206 with the cuaderno itself not drawn up until
early 1207 as HERNÁNDEZ, Francisco − “Las cortes…”, p. 225, suggests.
65
The treaty of Cabreros in 1206 between Alfonso IX and Alfonso VIII, which survives as an original
with royal seals attached, is in Spanish. GONZÁLEZ, Julio − El reino de Castilla..., Vol. 3, pp. 365-74, no. 782;
HERNÁNDEZ, Francisco − “Las cortes…” p. 223.
66
An undated will of Sancho I of Portugal (1174-1211) mentions “solidi et pipiones”. If this is a reference
to Alfonso VIII’s coin, the will must be later than the year 1188 which Azevedo assigns it. AZEVEDO,
Rui Pinto de; JESUS, P. Avelino de Jesus da; PEREIRA, Marcelino Rodrigues − Documentos de D. Sancho
I (1174-1211). Vol 1. Coimbra: University of Coimbra, 1979, pp. 49-51, no. 31; MOZO MONROY, Manuel –
Enciclopedia, pp. 304-305.
67
WILLIAMS, Edwin B. − Spanish and English Dictionary. Cali, Colombia: McGraw-Hill, 1978, p. 452,
gives the idiom “no dárselo a uno un pepino de” as “to not give a fig for” or “to not care about”. ALONSO,
Martín – Diccionario medieval español. Vol. 2. Salamanca: Pontifical University of Salamanca, 1986, p. 1488,
suggests pepión derives from the Latin pipio meaning a young bird or piping. Cf. MOZO MONROY, Manuel
– Enciclopedia, pp. 311-312.
68
The treaty survives in an undated “draft” and a shorter “official” version dated 26 August 1218.
GONZÁLEZ, Julio − Alfonso IX. Vol. 2, pp. 460-62, no. 352; p. 479, no. 366; BIANCHINI, Janna − The Queen’s
Hand, pp. 137-38, 154-56.
69
Contemporary to these events in Castile, Pedro II (1196-1213) introduced a coin of 2 denarii fine
in Barcelona around 1209. BISSON, Thomas N. – “Coinages of Barcelona (1209 to 1222): The Documentary
Evidence”. In BROOKE, C. N. L. et alii (ed.) − Studies in Numismatic Method Presented to Philip Grierson.
Cambridge: Cambridge University Press, 1983, pp. 196-202.
70
TODESCA, James J. – “Coinage and the Rebellion of Sancho of Castile”. Mediterranean Studies 4
(1994), pp. 35-37.
PRO BONO COMMUNITATIS:THE TOWNS AND MONETARY POLICY IN LEÓN AND CASTILE
569
Obv. ANFVS REX, bust 1.
Rev. +TOLLETAº, cross, star in 1st and 4th quadrant.
Source: The American Numismatic Society.
Fig. 5 – Denarius, the pepión, of Alfonso VIII, struck before 1207.
income diminished as they paid higher market prices in pepiones. While this affected
all levels of society, the king specifically mentions the damage done “to the good
men of my towns” in the preamble to the edicts. He clearly had summoned leading
townsmen from different parts of the realm to lend their knowledge of markets in
drawing up the detailed edicts. In the copy sent to the concejo of Toledo, Alfonso
promises that if the decrees need tweaking, he will only do so after seeking their
advice71. Some fifty years later, when Alfonso X (1252-84) issued economic decrees
at his first cortes in Sevilla, he said that he had seen the posturas or agreements made
by his great-grandfather, Alfonso VIII, “for all the people of the land.”72
Like the selling of the coinage at León in 1188 and Benavente in 1202, the
edicts compiled at the cortes of Toledo c.1207 represent real cooperation between
crown and people. The Leonese agreed to a tax, moneda, in exchange for the king
not exercising his right to change the coinage. The motivation behind the townsmen
consenting to this tax was, on one level, frustration with repeated mutationes since
each introduction of a new coin brought a devaluation of the old currency. But
underneath the resentment toward mutationes lay the populace’s fear that the crown
might debase. That fear was justified by the appearance of Alfonso IX’s weakened
71
“E de mais sepades, que si alguna (cosa) fuere de emendar en esta carta; que la emendare io con
conseio de los de vostra villa”. HERNÁNDEZ, Francisco − “Las cortes…”, p. 246. On the detailed knowledge
required by the merchants attending the assembly, see HERNÁNDEZ, Francisco − “Las cortes…”, p. 225.
72
PROCTER, Evelyn – Curia..., pp. 273-84, no. 4; HERNÁNDEZ, Francisco − “Las cortes…”, pp.
226-29.
570
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
coin c.1205 and his threat to drag before him anyone who did not accept it. More
drastic debasement in neighboring Castile, however, showed Alfonso VIII and his
townsfolk the “great damage” such action inflicted. In the wake of that debasement,
Castilian townsmen consulted with their king in an attempt to stem the ensuing
inflation. By 1215, the year after Alfonso VIII’s death, the people of Castile, like those
in León, had consented to the monetary conservation tax as references to moneta
begin to appear in the documents73.
Concern over the currency was not the sole reason the kings of León and
Castile first called townsmen to their court. The earliest evidence of townspeople
attending a royal assembly in Castile is in 1187, when the chief men (maiores) of fifty
towns came to a curia at San Esteban de Gormaz to witness Alfonso VIII negotiate
the betrothal of his daughter Berenguela to Conrad of Hohenstaufen74. Likewise, the
townsmen who bargained with Alfonso IX over coinage at Benavente also had been
summoned to acknowledge the rights of his new-born son, the future Fernando III
who would reunite León and Castile in 123075. Nonetheless, the minters engraved on
the archivolt of the church of Santiago in Carrión are a reminder of the importance
of money to the towns of the late 12th century. Coinage was, to paraphrase a maxim
of Roman law, something that “touched all”76. As a result, in the 13th century popular
concern for the coinage continued to bring townsmen to the royal curias of Christian
Spain. In December of 1253, for example, Afonso III of Portugal (1248-79) called
churchmen, lay magnates and merchants along with “citizens and the good men of
the town councils” to an assembly in Lisbon because they feared he would debase the
money77. Similarly, citing the poor state of the coinage of Barcelona, Jaime I of Aragon73
GONZÁLEZ, Julio − El reino de Castilla..., Vol. 3, pp. 702-704, no. 986; pp. 719-21, no. 999; pp.746-47,
no. 1015; O’CALLAGHAN, Joseph F. − “Beginnings...”, pp. 1519-20.
74
GONZÁLEZ, Julio − El reino de Castilla..., Vol. 2, pp. 807-808, no. 471, p. 857-63, no. 499, cf. pp.
800-807, nos. 467-470; O’CALLAGHAN, Joseph − “Beginnings...”, pp. 1512-13. The marriage never came off,
however, and Berenguela married Alfonso IX of León in 1197. Their eldest son was Fernando III, born in 1201.
BIANCHINNI, Janna − The Queen’s Hand, pp. 33-34, 42, 65.
75
O’CALLAGHAN, Joseph F. − “Beginnings...”, p. 1521. Rodrigo de Rada reports that “the bishops,
magnates and town councils (civitatum concilia)” had, at Alfonso IX’s command, sworn fealty to Fernando
on two occasions, a further indication that there were two large assemblies held in 1202. BIANCHINNI,
Janna − The Queen’s Hand..., pp. 65-66.
76
“Quod omnes similiter tangit, ab omnibus comprobetur” was originally a precept applied in Roman
civil law. By the early 13th century, it came to the notice of the decretalists and eventually made its way into
Bracton. In 1295, Edward I (1272-1307) of England cited it in ordering the archbishop of Canterbury “to
summon representatives of the clergy.” POST, Gaines − “A Romano-Canonical Maxim, Quod Omnes Tangit,
in Bracton and in Early Parliaments”. In POST, Gaines (ed.) − Studies in Medieval Legal Thought: Public Law
and the State, 1100-1322. Princeton: Princeton University Press, 1964, pp. 165-66 and passim.
77
“Pro eo quod timebant quod ego frangerem monetam...habui consilium cum riquis hominibus
sapientibus de curia mea et consilio meo et cum prelatis et militibus et mercatoribus et cum civibus et bonis
hominibus de consiliis regni”. HERCULANO, Alexandre (ed.) − Portugaliae Monumenta Historica..., pp. 19196, no. 3. The Lisbon cortes proceeded to pass price edicts analogous to those of Toledo c.1207. As is evident
from these decrees, the Portuguese denarius had in fact already been debased by Afonso’s predecessors. Cf.
HERNÁNDEZ, Francisco − “Las cortes…”, pp. 229-30.
PRO BONO COMMUNITATIS:THE TOWNS AND MONETARY POLICY IN LEÓN AND CASTILE
571
Catalonia (1213-76) issued a new denarius on 1 August 1258. While he did so on his
own authority, the king promised that in the future he would first consult the bishop
and probi homines of Barcelona before minting.78 And Alfonso X, after repeated
manipulation of León-Castile’s coinage, called delegates from “every city and every
town” to a cortes in Sevilla in November of 1281 to propose yet another debasement.
The representatives complained bitterly to Alfonso’s son, the future Sancho IV (128495), that they could not return home with such news79. When Sancho, angry with his
father over his inheritance, rebelled the following spring, he called nobles, prelates
and townsmen to an assembly at Valladolid. That cortes demanded Sancho reform
the coinage80. Thanks to the efforts of townsmen in Spain and beyond the Pyrenees
to exert control over the currency, by the 14th century Oresme, though an advisor to
the Charles V (1364-80) of France, argued that coinage belonged not to the crown
but to the people81.
78
HUICI MIRANDA, Ambrosio; DESAMPARADOS CABANES PECOURT, María (ed.) − Documentos
de Jaime I de Aragón. Vol. 4. Zaragoza: Anubar, 1982, p. 124-26, no. 1033.
79
ROSELL, Cayetano (ed.) − Crónicas de los reyes de Castilla desde don Alfonso el Sabio hasta los
católicos don Fernado y doña Isabel. Vol. 1. Madrid: M. Rivadeneyra, 1875, chap. 75, pp. 59-60.
80
GONZÁLEZ DIÉZ, Emiliano (ed.) − Colección diplomática del concejo de Burgos (884-1369). Burgos:
Imprenta de Aldecoa, 1984, pp. 205-206, no. 118; TODESCA, James – “Coinage and the Rebellion...”. pp. 31-32.
81
JOHNSON, Charles − The De Moneta..., pp. 10-11, 37-42. LANGHOLM, Odd − Wealth and Money
in the Aristotelian Tradition: A Study in Scholastic Economic Sources. Bergen: Universitetsforlaget, 1983,
pp. 11-13. In the 12th century, John of Salisbury anticipated Oresme, holding that the king “must count his
wealth as the people’s. He does not, therefore, truly own that which he possesses in the name of someone else”.
SALISBURY, John of – Polycraticus. Ed. and trans. Cary J. Nederman. Cambridge: Cambridge University
Press, 1990, p. 40. See also WOOD, Diana − Medieval Economic Thought. Cambridge: Cambridge University
Press, 2002, pp. 105-107.
572
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Entre o abastecimento da vila e o
comércio regional:
Feiras mensais e quinzenais na
Idade Média portuguesa
Paulo Morgado e Cunha1
Resumo
Quando pensamos nas feiras durante a época medieval, a nossa primeira
imagem é a da feira anual, atraindo comerciantes de regiões distantes, como
as célebres Feiras de Champagne. No entanto, outros modelos existiram, com
periocidades mais frequentes e durações mais curtas. Embora, incomparáveis
em termos de escala e de raio de atração, estas outras feiras desempenharam
um papel importante na economia e sociedade da época. Como tal, irei focar a
minha atenção nas feiras mensais e quinzenais em Portugal. Ocupando funções
entre o centro abastecedor da cidade e um polo articulador do comércio de
pequena e média escala, estas feiras contribuíram para o desenvolvimento
económico das suas zonas de implantação. São também demonstrações
da adaptabilidade do modelo das feiras a diferentes realidades comerciais,
demográficas ou geográficas.
Partindo da análise dos seus documentos instituidores, as “cartas de feira”,
procurarei perceber os padrões e a evolução destes dois fenómenos. Esta análise
será complementada com outra documentação avulsa, como os capítulos de
Cortes, de forma a dar uma perspetiva o mais abrangente possível. Desta forma,
tentarei compreender melhor não só o seu papel na estruturação económica de
Portugal ao longo da Idade Média, como a sua continuação no período pósmedieval.
Palavras-chave
Comércio medieval; Feiras medievais portuguesas; Feiras mensais e quinzenais.
1
Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
574
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Between the town’s supply and regional trade:
monthly and fortnightly fairs in the Portuguese Middle Ages
Abstract
When we think about fairs in the middle ages, our minds are drawn to the annual
fair, meeting place for far-flung merchants, like the renowned Champagne
Fairs. Nonetheless, other types of fairs existed, taking place more frequently
and during fewer days. Despite being incomparable in terms of scale and
attraction radius, these other fairs had an important role in the economy, trade
and society. Therefore, I will focus my attention on the monthly and fortnightly
fairs in medieval Portugal.
Assuming a role midway between the town’s supply centre and a node in small
and mid-scale trade, these fairs contributed to the economy of the surrounding
region. They are also good demonstrations of the adaptability of the institution
to different commercial, demographic or geographic contexts.
By analysing their founding charters, the so called “cartas de feira”, I will try
to understand the trends and evolution of these two phenomena. This study is
complemented by other miscellaneous documents, like parliamentary records,
in order to give as wide a perspective as possible. With this, I will not only
understand their role in the economic structure of Portugal in the middle ages,
as their post-medieval evolution.
Keywords
Medieval commerce; Portuguese Medieval fairs; Monthly and fortnightly fairs.
Quando pensamos nas feiras durante a época medieval, a nossa primeira imagem é
a da feira anual, atraindo comerciantes de regiões distantes, como as célebres Feiras
de Champagne. No entanto, outros modelos existiram, com periocidades mais
frequentes e durações mais curtas. Embora, incomparáveis em termos de escala
e de raio de atração, estas outras feiras desempenharam um papel importante na
economia e sociedade da época. Neste texto, irei focar a minha atenção nas feiras
mensais e quinzenais em Portugal.
As feiras têm sido um tema clássico da historiografia, quer europeia quer
portuguesa, embora tenha vindo a perder importância. Em Portugal, o trabalho
ENTR E O ABASTECIMENTO DA VILA E O COMÉRCIO R EGIONAL...
575
mais reconhecido data já de meados da década de 19402 e o último grande congresso
internacional dedicado ao tema foi realizado em 20003. É minha vontade que a
minha dissertação de mestrado, recentemente apresentada e defendida, venha
trazer um novo fôlego ao tema, motivando novas análises e discussões. Em larga
medida as conclusões a que chego vêm confirmar as ideias de Virgínia Rau, com
ligeiros reparos. Por exemplo a periodização por mim proposta é semelhante a
mencionada por esta autora no final da sua obra, mas com uma maior justificação e
sustentação documental. No entanto em alguns outros aspetos as minhas hipóteses
divergem das de Virgínia Rau, sobretudo no que toca a imagem antagónica que
esta autora descreve entre o comércio marítimo e as feiras. Com a análise de novos
fenómenos, como as feiras algarvias (que são explicitamente voltadas para a atração
de mercadores vindos por via marítima4), parece-me ser necessário rever esta
oposição que Virgínia Rau apresenta. Existem ainda outros assuntos sobre os quais
a obra de Virgínia Rau é omissa que procurei explorar na minha dissertação, como
a existência de uma hierarquia e estatutos diferenciados nas feiras portuguesas5, a
adaptação dos privilégios da feira a realidade socioeconómica do espaço em que esta
se irá realizar, a existência de redes articuladas de feiras ou a importância das feiras
mensais e quinzenais. Todos estes tópicos são particularmente relevantes para o tema
do presente trabalho.
Antes de iniciar a análise que aqui pretendo apresentar, parece-me importante
definir conceitos, clarificando o que entendo por feira e o que distingue estas dos
2
RAU, Virgínia – Feiras Medievais Portuguesas: subsídios para o seu estudo. Lisboa: Presença, 1982 (a
versão original foi apresentada como tese de licenciatura em 1943). Embora Portugal tenha, até Virgínia Rau
seguido, grosso modo, o desenvolvimento da historiografia europeia, este tema não teve grande continuidade.
Após a publicação da tese de Virgínia Rau, poucos têm sido os trabalhos que procuram analisar feiras, sendo
que as grandes sínteses contidas nas Histórias de Portugal remetem para as suas conclusões. No entanto,
algumas abordagens parcelares existiram, como a de Maria Helena da Cruz Coelho da Feira de Coimbra
(COELHO, Maria Helena da Cruz – A Feira de Coimbra no contexto das feiras medievais portuguesas.
Coimbra: Inatel, 1992) ou de Luís Miguel Duarte sobre a feira de Santa Maria da Feira (DUARTE, Luís
Miguel – A feira da Vila: 1407-2007. Santa Maria da Feira: Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, 2007).
Mais recentemente são de destacar o 3º Encontro de História realizado em Vila do Conde no ano de 2005,
que procurou uma análise das feiras nacionais na longa duração (Actas do 3º Encontro de História. Vectores
de Desenvolvimento Económico: as feiras. Da Idade Média à Época Contemporânea. Vila do Conde: Câmara
Municipal, 2005) e as reflexões de Saul António Gomes sobre a relação entre as feiras e as indústrias rurais
(GOMES, Saúl António – “As feiras e as Indústrias Rurais no Reino de Portugal”. In ESPINACH, Germán
Navarro; MORTE, Concepción Villanueva (coords.) – Industrias y mercados rurales en los Reinos Hispánicos
(siglos XIII-XV). Murcia: Sociedade Española de Estudios Medievales, 2017, pp.17-35).
3
CAVACIOCCHI, Simonetta (dir.) – Fieri e mercati nella integrazione delle economie europee secc.
XIII-XVIII: Atti della “Trentaduesima Settimana di Studi”, Prato, 8-12 Maggio 2000. Florença: Le Monnier,
2001. Para uma síntese da historiografia sobre o tema, veja-se: CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no
Portugal Medieval (1125-1521): Evolução, Organização e Articulação. Porto: Faculdade de Letras, 2019. Tese
de Mestrado, pp.16-23.
4
Na carta de feira de Tavira mencionam-se os “Navios do Ponente” (CUNHA, Paulo Morgado e – As
Feiras no Portugal Medieval..., pp. 195-196).
5
Especificamente a existência de feiras designadas como gerais ou como reais. Veja-se CUNHA, Paulo
Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., pp. 228-233.
576
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
mercados. A definição clássica baseia-se no cruzamento entre a periodicidade e o
papel desempenhado pela reunião comercial em questão. O mercado seria mais
frequente, ligado, sobretudo, ao abastecimento quotidiano e regular da povoação
que servia. Já a feira realizar-se-ia menos vezes, por exemplo, apenas uma vez por
ano. Nestas, o motivador seria o comércio de média e longa escala, articulando
regiões distantes, atraindo mercadores de paragens longínquas. Esta distinção clara
turva-se quando refletimos acerca das feiras mensais ou quinzenais, relativamente
frequentes ao longo da Idade Média6. Definidas como “feiras-mercados” ou feiras
regionais, estas foram, por vezes, renegadas como versões imperfeitas das grandes
feiras. No entanto, mais recentemente têm sido valorizadas, procurando-se perceber
o seu papel na circulação de bens e no comércio medieval7. Ao longo deste artigo
irei referir como feira toda a reunião comercial, num dado local, com periodicidade
quinzenal ou superior, seguindo a definição mais consensual na historiografia8.
Parece-me também essencial refletir acerca das fontes que utilizei para a
construção deste trabalho e a minha dissertação9. A principal fonte de dados
relativos a feiras no Portugal Medieval é, sem dúvida nem surpresa, a carta de feira.
Esta tipologia documental tipicamente estipula uma duração e uma data para as
feiras, contendo ainda disposições sobre os privilégios e obrigações das mesmas,
muitas vezes reduzidas a uma simples remissão para os privilégios de uma outra
feira, tomadas como modelo10. Embora sejam fundamentais para a compreensão do
fenómeno, estas cartas sofrem de duas limitações: apenas surgem em 1255, com a
carta de feira da Guarda; carecem de uma série de informações relevantes, como
os produtos comercializados ou as relações com feiras vizinhas11. Antes da sua
autonomização enquanto tipologia documental dentro da chancelaria no reinado
de D. Afonso III, os dados relativos a feiras em Portugal eram contidos nas cartas
de foral, como nos casos supracitados de Ponte de Lima, Vila Nova de Famalicão
6
Embora relativamente frequentes, poucas têm sido as análises focadas sobre elas. Destas destaco:
EPSTEIN, Stephan R. – “Regional Fairs, Institutional Innovation and Economic Growth in Late Medieval
Europe”. The Economic History Review 47 (1994), pp. 459-482. Embora não seja estritamente sobre este tipo
de feiras, estas são também alvo de uma análise na interessante obra de Carme Battle i Gallart (BATLLE I
GALLART, Carme – Fires i mercats, factors de dinamisme econòmic i centres de sociabilitat (segles XI a XV).
Barcelona: Rafael Dalmau, 2004).
7
Veja-se, por exemplo, o artigo de Stephan R. Epstein, acima citado.
8
Sobre esta definição: CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., pp. 31-35.
9
CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., pp. 24-26.
10
Por modelo, entenda-se um conjunto de feiras que partilham os mesmos privilégios, podendo variar
detalhes como a data em que se realizam e a sua duração. No caso português, este fenómeno de remeter para
uma outra feira é particularmente notório no caso do Trancoso, cujos privilégios são a base da maioria das
fundações no período entre 1385 e 1420. Pelo contrário, no caso das feiras que obedecem ao modelo da de
Covilhã, os privilégios, embora idênticos, são explicitamente copiados em cada carta. Para uma caracterização
mais pormenorizada desta tipologia documental, veja-se CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal
Medieval..., pp. 24-25.
11
Vários autores já comentaram o carácter quase “telegráfico” das cartas de feira portuguesas, como por
exemplo: DUARTE, Luís Miguel – A feira da vila....
ENTR E O ABASTECIMENTO DA VILA E O COMÉRCIO R EGIONAL...
577
e Vila Real12. As informações incluídas são em tudo semelhantes às das cartas de
feira, embora o conjunto de privilégios mencionados seja mais curto13. De forma
a suprir algumas das lacunas deixadas por estas duas tipologias documentais, é
importante recorrer a algumas outras, tais como: cartas de ofício, onde encontramos
alguns ofíciais ligados a feiras, como escrivães14; cartas de perdão, onde os crimes
relatados estão de alguma forma relacionados com feiras15; e capítulos de Cortes,
onde são apresentadas questões relativas ao funcionamento das feiras16. Muito mais
específicas, estas fontes podem oferecer alguns dados preciosos, que por vezes são o
único testemunho de uma antiga feira17. No entanto, é preciso entender que mesmo
usando um conjunto diversificado de fontes, estas deixam ainda muitos pormenores
por entender18, sendo a realidade particularmente dramática para as feiras de menor
dimensão que são o foco desta comunicação19.
Embora, como mencionei, tenha procurado utilizar o maior número de fontes
possível, o quadro geral da realidade portuguesa medieval continua a apresentar
alguns dados que suscitam enormes dúvidas. Por exemplo, a relação entre os grandes
centros urbanos e as feiras é difícil de perceber. Lisboa, por exemplo, não tem qualquer
12
Com o surgimento da carta de feira enquanto tipologia própria, assiste-se a um virtual
desaparecimento de cláusulas relativas a feiras nas cartas de foral (excetuam-se casos como o já citado de Vila
Real, por exemplo). No entanto, continua-se a assistir a uma relação muito próxima entre ambos documentos,
sobretudo no período Dionisino, conforme adiante farei menção.
13
Tal dever-se-á mais ao próprio desenvolvimento das feiras e seus privilégios do que à tipologia
documental. Tendencialmente, os privilégios das feiras portuguesas foram sendo progressivamente
expandidos, sendo o modelo de Tomar do século XV mais complexo e descritivo do que o modelo da Covilhã
do século XIV.
14
Veja-se, por exemplo, o caso da feira de Albergaria-a-Velha, da qual apenas temos notícia através
da nomeação de Afonso Eanes como requeredor das sisas régias, panos e outras coisas que vêm a essa feira
(Lisboa, Torre do Tombo, Chancelaria de D. Afonso V, l.15, f.122v e CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no
Portugal Medieval..., pp. 305-306).
15
A título de exemplo, veja-se a carta de perdão concedida a Vasco da Fonseca em 1491 (Lisboa, Torre
do Tombo, Chancelaria de D. João II, l.10, f.128). Este havia sido acusado de furtar dois jovens a caminho da
feira de Penela de 1488. Na descrição da acusação é-nos não só fornecida a proveniência dos dois jovens (Vila
Franca de Xira, viajando uma distância considerável até Penela) como também a carga furtada (sete côvados
e meio de fustão, seis côvados de lenço de pano de Paris e dois côvados e duas terças de seda rasa) e a forma
como eram transportadas (umas “canastras”), tudo dados de uma enorme relevância para o conhecimento do
quotidiano das feiras medievais.
16
O exemplo mais significativo são, talvez, os capítulos apresentados por Trancoso nas Cortes de 1459,
já referidos por Virgínia Rau e Gama Barros (RAU, Virgínia – Feiras Medievais Portuguesas..., pp. 87-90 e
CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., pp. 166-168).
17
Como no caso supracitado de Albergaria-a-Velha.
18
Acima mencionei a existência de escrivães das feiras que, mesmo que apenas fossem das sisas,
deveriam produzir inúmeros documentos relativos aos produtos comercializados, aos preços pagos, entre
outros dados de enorme relevância. No entanto, não chegaram até nós vestígios desta documentação.
19
Maior parte da documentação conservada provém de fontes relacionadas com a administração
central do reino, que, possivelmente, seria mais interventiva nas grandes feiras, que contribuiriam de forma
mais avultada para o erário régio. Esta é uma das hipóteses para a relativa ausência de dados sobre as feiras
mensais e quinzenais, embora seja impossível de confirmar ou infirmar esta suposição. O próprio facto de a
larga maioria da documentação conservada relativa a feiras se encontrar neste tipo de fontes pode contribuir
para um certo enviesamento da nossa perspetiva, obscurecendo alguns fenómenos de menores dimensões,
mas que desempenhariam um papel importante à escala local e regional.
578
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
menção de uma feira, mas apenas um mercado semanal20. Santarém teria uma feira
de grandes dimensões que, a pedido das autoridades locais é proibida em 132121.
Para Évora apenas temos dados para uma feira no século XIII, sem continuidade
aparente22. Apenas Coimbra e o Porto parecem ter tido feiras com alguma
regularidade, mesmo que com aparente fragilidade23. Na minha dissertação avanço
a hipótese de ser prejudicial para um centro populacional de grandes dimensões a
concentração da atividade comercial numa época do ano (como aconteceria com
uma feira), sendo mais apetecível um circuito de feiras, possivelmente mensais e
quinzenais. No entanto, os dados de que dispomos são insuficientes para provar esta
hipótese24.
Vistas as limitações das fontes e clarificados os conceitos podemos então
começar a analisar as feiras quinzenais e mensais em Portugal na Idade Média. Estas
têm, entre nós, uma longa tradição, sendo mesmo possível que a primeira referência
a uma feira em território nacional se trate de uma feira quinzenal – a de Ponte de
Lima, em 112525. A feira de Vila Nova de Famalicão, conhecida em 1205, realizar-seia de quinze em quinze dias, ao Domingo. Já a mais antiga feira mensal seria fundada
já por Afonso III em 1272 em Vila Real. Curiosamente, esta é criada em simultâneo
com uma feira anual, assunto sobre o qual me debruçarei mais adiante. Seria moroso
listar todas as feiras mensais e quinzenais registadas em Portugal. Uma vez que o
meu objetivo com este texto é analisar as tendências gerais, opto por apresentar dois
mapas, representando as feiras por periodicidade.
O primeiro remete para a situação das feiras registadas até 1325, o final do
reinado de D. Dinis e do primeiro ciclo de feiras portuguesas26. Já o segundo avança
20
Livro dos Pregos. Estudo Introdutório, transcrição paleográfica, sumários e índices. coord. Inês Morais
Viegas e Marta Gomes; estudo introdutório de Edite Martins Alberto; Transcrição, sumário e índices Miguel
Gomes Martins e Sara de Menezes Loureiro. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 2016, p. 129, doc. 53.
21
A feira de Santarém seria uma das mais longas do reino, com 62 dias de duração em 1317. No entanto,
apenas quatro anos depois, os moradores desse local pedem para proibir essa feira. As referências conhecidas
para uma suposta feira em Santarém no século XV parecem ligar-se a um mercado de âmbito local. Veja-se:
CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., p. 369.
22
É uma das primeiras feiras a ser franqueada em Portugal, referida como tal em 1286. No entanto
parece ter desaparecido, não existindo qualquer outra menção a ela. Em 1461, os moradores de Évora pedem
para ter uma feira, mas este pedido é rejeitado pelo monarca, não sendo percetível a motivação para a resposta
negativa. Veja-se: CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., p. 331.
23
A feira de Coimbra alterou seis vezes de data de realização entre 1377 e 1515, e o Porto apenas possui
feira no século XV, sem grandes dados relativos a esta. Vejam-se as respetivas entradas em CUNHA, Paulo
Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., pp. 327-328 e 362.
24
Este é apenas um exemplo de um problema para o qual as feiras analisadas parecem não dar resposta.
Nas conclusões da minha dissertação apresento algumas outras, como a possibilidade de o número de feiras
mensais e quinzenais, de âmbito local, ser maior do que o registado, abrindo a hipótese de algumas destas
serem de fundação concelhia ou espontânea. Veja-se: CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal
Medieval..., pp. 284-287.
25
CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., p.43. Sobre esta vila medieval,
veja-se, por todos: ANDRADE, Amélia Aguiar – Um espaço urbano medieval: Ponte de Lima. Lisboa: Livros
Horizonte, 1990.
26
A periodização das feiras no contexto português é um assunto complexo. Neste texto sigo
ENTR E O ABASTECIMENTO DA VILA E O COMÉRCIO R EGIONAL...
579
mais de 100 anos na cronologia, até ao final do reinado de D. Afonso V, remetendo
para a situação nos finais do segundo ciclo das feiras em Portugal.
A primeira evidência bastante clara da leitura destes mapas é que estas feiras se
encontram sobretudo em duas regiões específicas do país: as quinzenais no EntreDouro-e-Minho; as mensais na bacia média do Douro e seus afluentes, mas com uma
maior dispersão pelo território. Algumas exceções existiram, como a feira de Santa
Maria da Feira, de periodicidade quinzenal, fora do Entre-Douro-e-Minho ou feiras
mensais em Vouzela ou Torres Novas, consideravelmente mais a Sul.
A explicação para esta distribuição é complexa e difícil de determinar, uma
vez que estamos no reino do implícito, não existindo qualquer menção taxativa
à motivação para a periodicidade de uma feira, ao contrário do que ocorre, por
exemplo, para as datas em que estas se realizam. Mas, grosso modo, podemos ver
uma certa correspondência entre as zonas mais densamente povoadas e as feiras de
periodicidade quinzenal27. Estas também estariam situadas em importantes nexos
viários, como o caso de Ponte de Lima ou Santa Maria da Feira – uma domina as
rotas entre a Galiza e Portugal, com a importante passagem sobre o rio Lima; a outra
está na rota Norte-Sul entre o Porto, Coimbra, Santarém e Lisboa, um eixo vital do
Reino28. Uma maior densidade populacional e a circulação nas vias tornariam mais
a periodização por mim definida na minha dissertação de mestrado. Para ter uma ideia da relevância do
contexto para a periodização destes fenómenos, contraste-se a periodização apresentada por Virgínia Rau com
a apresentada por Ladero Quesada para a realidade Castelhano-Leonesa (LADERO QUESADA, Miguel-Ángel
– Las Ferias de Castilla. Siglos XII a XV. Madrid: Comité Español de Ciencias Históricas, 1994, pp. 77-100) e
por mim para a realidade portuguesa. Virgínia Rau segue uma organização cronológica complexa, dividindo
o seu arrolamento das feiras por reinados, mas tomando apenas a data de fundação para catalogar uma
determinada feira e nessa entrada relatar todos os dados, independentemente do contexto. Esta decisão leva a
uma certa descontinuidade na análise, com cada feira autonomizada. A própria autora parece refletir acerca
desta questão, quando, num breve capítulo, apresenta uma periodização mais geral para o fenómeno das feiras
em Portugal (RAU, Virgínia – Feiras Medievais Portuguesas..., pp. 165-169.). Pelo contrário, Ladero Quesada
após analisar os vários núcleos regionais de feiras, tomando um critério mais geográfico que cronológico,
apresenta uma síntese da realidade Castelhano-Leonesa periodizando com base em critérios ligados tanto ao
desenvolvimento político como a própria realidade do fenómeno em análise. Seguindo este princípio, mas
adaptando-o a realidade que estudei, defini uma cronologia das feiras em Portugal na Idade Média com cinco
períodos: Uma fase incipiente, entre 1125 e 1260, entre a primeira feira registada e o primeiro modelo de carta
de feira; um primeiro ciclo, entre 1260 e 1323, correspondendo ao predomínio das feiras de tipo Covilhã
e a proliferação destas reuniões comerciais um pouco por todo o território; um período intermédio, entre
1331-1383, marcado por um abrandamento na concessão de feiras e pela decadência de algumas anteriormente
registadas; um segundo ciclo, entre 1385-1476, grosso modo correspondendo a um segundo momento de
fomento de novas feiras e renovação institucional, com o predomínio de modelos como o de Trancoso e de
Tomar; e, por último, um período de transição entre a medievalidade e a modernidade, entre 1482 e 1521,
onde se assiste simultaneamente à manutenção e confirmação de privilégios antigos e ao surgimento de novas
realidades, como a feira de Tavira, voltada para o comércio marítimo. Para mais detalhes desta periodização e
a sua fundamentação, veja-se CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., pp. 27-30.
27
Compare-se a dispersão das feiras no mapa da Fig. 1 e o povoamento de Portugal, segundo o “Rol
de Igrejas” de 1320-1321 (RAMOS, Rui (coord.) – História de Portugal. Lisboa: Esfera dos Livros, vol. 9, 2009,
mapa I.6.
28
Sobre a rede viária medieval portuguesa, dispomos ainda de poucos estudos. Destaca-se o já clássico
trabalho de Carlos Alberto Ferreira de Almeida: ALMEIDA, Carlos Alberto Ferreira de – Vias Medievais:
Entre-Douro-e-Minho. Porto: Faculdade de Letras, 1968. Dissertação de Licenciatura. Alguns outros trabalhos,
580
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Fig.1 – Feiras, por periodicidade, entre 1125 e 1325.
Adaptado de CUNHA, Paulo Morgado e – As feiras no Portugal Medieval...
ENTR E O ABASTECIMENTO DA VILA E O COMÉRCIO R EGIONAL...
Fig. 2 – Feiras, por periodicidade, entre 1325 e 1482.
Adaptado de CUNHA, Paulo Morgado e – As feiras no Portugal Medieval...
581
582
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
desejável uma feira realizada mais periodicamente.
Já a concentração das feiras mensais ao longo do rio Douro e em Trás-osMontes parece ser fruto de uma política da monarquia para fixar populações nesse
espaço e as enquadrar institucionalmente. Assim, a feira desempenharia um papel de
articulador do comércio, desenvolvendo-se de forma paralela e por vezes simultânea
aos vários forais da região, numa ação claramente concertada. Se por um lado o foral
regulamenta o jurídico e o social, a feira regulamenta o comércio29.
Em geral, duravam apenas um dia, embora tenha registo de feiras mensais que
durariam até três dias. A este único dia acrescentar-se-iam os dias de duração dos
privilégios, como a isenção da penhora, o que indicaria que tais feiras conseguiriam
ter um raio de ação ligeiramente superior ao que o seu único dia de duração poderia
indiciar, podendo mesmo supor-se que estes dias seriam destinados a atração de
comerciantes externos, que beneficiariam dos privilégios na jornada de e para a
feira30.
É também possível constatar que, ao contrário do que alguns teóricos, como
Stephan Epstein, propuseram para outras realidades europeias, não parece existir em
Portugal um incremento destas feiras de menor escala e maior frequência à medida
que avançamos na cronologia31. Se alguma tendência é detetável é a inversa, sendo o
período em que estas feiras são mais comuns o de D. Dinis32.
O seu papel na estrutura económica oscilaria, como aludo no título, entre o
abastecimento da vila e seus arredores e um polo do comércio de curta e média
distância.
como os baseados nos itinerários régios, trouxeram importantes contributos: GALEGO, Júlia; GARCIA, João
Carlos; ALEGRIA, Maria Fernanda – Os itinerários de D. Dinis, D. Pedro e D. Fernando. Interpretação gráfica.
Lisboa: Centro de Estudos Geográficos, 1988. Mais recentemente, Rúben Filipe Conceição tem em curso um
projeto para o estudo da rede viária medieval em Portugal, partindo das Inquirições de 1258. Até ao momento,
apenas a região do Entre-Cávado-e-Minho foi estudada (CONCEIÇÃO, Rúben Filipe Teixeira da – “«Quo
Vadis?»: pelos caminhos do Entre-Cávado-e-Minho nas Inquirições Gerais de 1258”. In Omni Tempore:
atas dos Encontros da Primavera 2018. Porto: Universidade do Porto, 2019, pp. 163-197), aguardando-se
brevemente os resultados para Trás-os-Montes. Aproveito para deixar o meu agradecimento por este me ter
deixado consultar os resultados provisórios.
29
Esta ação é particularmente notória nos reinados de D. Afonso III e D. Dinis. Compare-se as feiras
apresentadas na Fig. 1 com os mapas dos forais apresentados por Sottomayor-Pizarro: SOTTOMAYORPIZARRO, José Augusto de – “Monarquia e Aristocracia em Portugal (séculos XII-XIV). «Forais» e
«Inquirições» na construção de uma geografia do Poder Régio”. In GUILLÉN, Fernando Arias; SOPENA,
Pascual Martinez – Los Espacios Del Rey: Poder y Territorio en las monarquias hispánicas (siglos XII-XIV).
Bilbao: Universidad del Paíx Vasco, 2018, pp. 133-184. Já António Matos Reis havia discernido uma importante
ligação entre estas duas tipologias documentais. No entanto a sua análise é focada nos forais enquanto aqui me
ocupam as feiras, sendo a sua análise destas segundas bastante elementar: REIS, António Matos – Os Concelhos
na Primeira Dinastia: à luz dos forais e outros documentos da Chancelaria Régia. Porto: Universidade do Porto,
2004. Tese de Doutoramento. Sobre as feiras desses reinados veja-se: CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no
Portugal Medieval..., pp. 47-50 e 58-80.
30
Para uma lista completa destas e outras feiras e seus privilégios, consulte-se: CUNHA, Paulo Morgado
e – As Feiras no Portugal Medieval..., anexo 1, pp. 304-396.
31
EPSTEIN, Stephan R. – “Regional Fairs, Institutional Innovation...”.
32
CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., pp. 43-227.
ENTR E O ABASTECIMENTO DA VILA E O COMÉRCIO R EGIONAL...
583
A primeira função é bastante evidente, sendo mencionado várias vezes a
importância da prosperidade de uma feira para a manutenção de uma vila33. Temos
ainda evidências do comércio de bens de primeira necessidade nestas feiras. Por
exemplo, na de Montalegre seriam negociados cereais34. De particular interesse,
para esta questão da relação entre as feiras de periodicidade curta e o abastecimento
urbano, é a cláusula existente em várias feiras, que obrigava a população do termo
a comparecer. Esta disposição não era exclusiva das feiras, existindo também no
mercado semanal de Loulé, por exemplo35. Esta imposição poderia variar, entre
a obrigação de comparecimento mediante o pagamento de uma multa ou a mais
simples proibição de comércio em locais que não a feira. Esta medida parece-me que
se destinaria a garantir um fluxo razoavelmente constante de recursos da região sob
o controlo de uma vila ou cidade, destinando-se, sobretudo, ao seu consumo interno.
A medida não era popular, registando-se várias queixas sobre ela. Por exemplo, em
1459, os “lavradores aldeãaos do termo da nossa villa de viana” pedem para deixarem
de ser obrigados de irem à feira quinzenal de Viana do Castelo36. Segundo estes,
originalmente eram apenas proibidos de ir a outros locais vender os seus bens no
dia da feira de Viana, mas, nos últimos anos, os da vila haviam determinado que
seria obrigatória a comparência de um membro de cada casa. Depois, os rendeiros
da feira faziam avenças com os do termo, obrigando-os a entregar cereais ou a
prestarem serviços para puderem não comparecer. O monarca determina em favor
dos habitantes do termo, remetendo para os privilégios originais. Situação distinta
alegam os de Marialva, que se queixam de serem pobres e de apenas se deslocarem
para a sua feira mensal para evitar a multa, perdendo um ou dois dias de valioso
trabalho37.
A existência de vários locais onde uma feira mensal coexistia e, por vezes, era
fundada em simultâneo com uma anual38, parece também apontar para a distinção
entre uma e outra em termos funcionais, sendo a mensal ligada, sobretudo, ao
abastecimento da vila e ao comércio regional. Outro bom exemplo desta relação é
expresso pelos moradores de Trancoso que, em 1459, pedem para que o seu mercado
33
A título de exemplo, vejam-se os argumentos utilizados na disputa entre os arrabaldes e o interior
da vila de Torre de Moncorvo acerca do seu mercado: MORENO, Humberto Baquero – “O mercado na Idade
Média (o caso de Torre de Moncorvo)”. In Estudos de História de Portugal, Vol. 1: Séculos X-XV. Homenagem
a A. H. de Oliveira Marques. Lisboa: Editorial Presença, 1982, pp. 309-325. Embora se trate de informações
relativas a um mercado, a situação seria semelhante em muitas feiras.
34
Lisboa, Torre do Tombo, Chancelaria de D. Dinis, l.3, f.107v.
35
ACTAS de Vereação de Loulé: séculos XIV-XV. coordenação Manuel Pedro Serra; leitura e transcrição
Luís Miguel Duarte, João Alberto Machado e Maria Cristina Cunha. Loulé: Arquivo Histórico Municipal,
separata da revista Al-Ulya 7 (1999), p. 95
36
Lisboa, Torre do Tombo, Leitura Nova, Além Douro, l.4, f.123.
37
Lisboa, Torre do Tombo, Chancelaria de D. Afonso V, l.33, f.55v, copiado em Lisboa, Torre do Tombo,
Leitura Nova, Beira, L.2, f.186.
38
Veja-se, por exemplo, o caso de Vila Real em: CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal
Medieval..., p. 60.
584
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
semanal passe a ser uma feira mensal devido a concorrência com outros espaços
vizinhos, uma vez que esta afetava o povoamento da vila39.
Mas, como referi, estas feiras não se limitavam a ser pontos de abastecimento
urbano e de coordenação entre o termo e a vila, mas desempenhavam também um
importante papel no comércio regional.
Já em cartas de feira como a de Viana do Castelo de 1286, parece ficar claro
que na sua feira tanto participariam pessoas do termo, que, como mencionei, eram
obrigadas a fazê-lo, e pessoas de outras proveniências, parecendo indicar que seriam
esperados comerciantes de outras paragens40.
Uma das mais claras provas do desempenho desta função pelas feiras mensais
é a existência de redes que articulavam várias destas, organizando e regulando o
comércio de uma região. Depois estas redes poder-se-iam coordenar com outras
redes, feiras ou centros urbanos. O caso mais claro no período estudado é o das feiras
transmontanas, fundadas por D. Dinis: Alfândega da Fé, Mirandela, Mogadouro,
Murça, Chaves e Vila Boa de Montenegro. As três primeiras seriam um pequeno
grupo já em 1295, consolidando-se depois com a fundação da feira de Murça, ligando
esse grupo inicial às restantes, em 130441.
Organizadas em sentido Este-Oeste, começando, junto da fronteira, em
Mogadouro, e progredindo em direção ao interior antes de rumar a Norte com as
feiras de Vila Boa de Montenegro e Chaves este circuito poder-se-ia ainda articular
com algumas outras feiras transmontanas, como Torre de Moncorvo, Freixo de
Espada a Cinta ou Ansiães, ou com um outro pequeno circuito, a sul do Douro,
formado por Trevões, Ranhados e S. João da Pesqueira42, onde seria feita a travessia
do Douro.
Esta rede poderia ser a espinha dorsal do comércio na região, tão acarinhada por
D. Dinis, que se esforçou no seu povoamento e enquadramento no Reino português,
após o desaparecimento dos principais senhores locais, os Braganções43.
Em certas circunstâncias, o comércio destas feiras aparentemente menores
poderia atrair mercadores de paragens mais longínquas, desempenhando um papel
num comércio a uma outra escala. Já no circuito acima mencionado, o facto de as
feiras se orientarem da fronteira para o interior parece-me significativo, possivelmente
procurando captar mercadores vindos de Castela e Leão, embora tal seja meramente
39
Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., pp. 167-168. Esta feira coexistiria com a mais
célebre, realizada anualmente pelo dia de S. Bartolomeu.
40
Lisboa, Torre do Tombo, Chancelaria de D. Dinis, l.1, f. 182v.
41
Estas datas apenas são as de fundação sendo difícil de percecionar a longevidade desta rede.
42
Estas três são também referidas em conjunto no ano de 1304: CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras
no Portugal Medieval..., pp. 72-73.
43
Veja-se: SOTTOMAYOR-PIZARRO, José Augusto de – “Monarquia e Aristocracia em Portugal...”,
pp. 149-150.
ENTR E O ABASTECIMENTO DA VILA E O COMÉRCIO R EGIONAL...
Fig. 3 – Rede de Feiras Transmontanas e outras feiras, no século XIV.
Adaptado de CUNHA, Paulo Morgado e – As feiras no Portugal Medieval...
585
586
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
especulativo44.
De forma concreta, a feira de Miranda do Douro, em virtude da sua localização,
contaria com a presença de mercadores castelhanos. Em 1498, por exemplo,
denunciam que os mercadores de panos vindos de Castela sofriam com a obrigação
de venderem os seus bens na alfândega, situação que já ocorreria há vários anos45. No
entanto, mais significativo é o caso de Ponte de Lima, para a qual temos um curioso
agravo apresentado em Cortes em 145946. Segundo os procuradores desta vila, uma
portagem na vila de Ponte da Barca estaria a prejudicar a sua feira quinzenal, uma
vez que limitava a normal deslocação dos galegos de Milmanda, Araújo e Monterrey,
que vinham a essa feira vender o seu gado e comprar sal, entre outros produtos47.
Tal situação deveria ser comum em muitas das feiras que mencionei, uma vez que
quase todas se localizam próximas da fronteira, tornando-as importantes pontos de
passagem e de comércio entre as várias regiões, quer fossem de diferentes reinos quer
do mesmo Reino48.
Antes de terminar, parece apenas importante refletir que estas feiras, ao se
realizarem ao longo de todo o ano, deveriam certamente variar em importância e,
consequentemente, em área de atração de feirantes. Numa altura menos propícia
do ano, como o inverno49, poderiam reduzir-se a um local de intercâmbio entre o
termo e a vila, sendo por vezes necessário coagir os habitantes para que a esta se
deslocassem. Noutras alturas, fosse pela existência de excedentes agrícolas, fosse pela
44
Para contextualizar o comércio entre os dois reinos e a importância das feiras no mesmo, vejam-se:
FREITAS, Isabel Vaz de – Mercadores entre Portugal e Castela na Idade Média. Gijón: Ediciones Trea, 2006
(destacando-se a análise das feiras nas pp.51-66) e MEDRANO FERNANDEZ, Violeta – Un mercado entre
fronteras: Las relaciones comerciales entre Castilla y Portugal al final de la Edad Media. Valladolid: Universidad
de Valladolid, 2010 (destacando-se a análise das feiras nas pp. 189-205).
45
Lisboa, Torre do Tombo, Chancelaria de D. Manuel I, l.31, f.49v, copiado em Lisboa, Torre do Tombo,
Leitura Nova, Além Douro, l.1, f.214. Embora não seja certo que as informações acima mencionadas se
referiam a sua feira mensal, pois a vila teria uma outra semestral que é mencionada em 1290 e 1516, sendo
incerto que se realizasse em 1498.
46
Lisboa, Torre do Tombo, Chancelaria de D. Afonso V, l.36, f.168, copiado em Lisboa, Torre do Tombo,
Leitura Nova, Além Douro, l.3, f.20v.
47
O tema das relações galaico-minhotas foi já várias vezes abordado, destacando-se: MORENO,
Humberto Baquero – “Relações entre Portugal e a Galiza nos séculos XIV e XV”. Revista da Faculdade de
Letras: História 7 (1990), pp. 35-45; COELHO, Maria Helena da Cruz – “As relações fronteiriças galaicominhotas à luz das cortes do século XV”. Revista da Faculdade de Letras: História 7 (1990), pp. 59-70;
ANDRADE, Amélia Aguiar – “Entre Lima e Minho e Galiza na Idade Média: uma relação de amor e ódio”.
In BARROCA, Mário – Carlos Alberto Ferreira de Almeida: in memoriam. Vol. I. Porto: Faculdade de Letras
da Universidade do Porto, 1999, pp. 77-91; MARQUES, José – “A fronteira do Minho, espaço de convivência
galaico-minhota, na Idade Média”. In Estudos em Homenagem a Luís António de Oliveira Ramos. Vol. 2. Porto:
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004, pp. 697-712; FONSECA, Luís Adão da (coord.) – Entre
Portugal e a Galiza (sécs. XI a XVII): um olhar peninsular sobre uma região histórica. Porto: CEPESE – Centro
de Estudos da População, Economia e Sociedade, 2014.
48
Feiras como Santa Maria da Feira, embora quinzenais, poderiam articular o comercio entre o interior
e o litoral, entre o Norte e o Sul. Sobre esta feira em particular, veja-se: DUARTE, Luís Miguel – A feira da
vila...
49
Sobre os efeitos da época da realização no sucesso das feiras, veja-se a análise, baseada sobretudo nas
feiras anuais, em: CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., pp. 234-242.
ENTR E O ABASTECIMENTO DA VILA E O COMÉRCIO R EGIONAL...
587
procura de algum produto sazonal50, fosse pela realização de uma grande feira ou por
uma romaria nas proximidades, estas feiras seriam mais concorridas, possivelmente
atraindo mercadores de locais mais distantes. Assim, estas tornar-se-iam mais
flexíveis do que as anuais, que dependeriam de uma boa data de realização para
prosperarem.
Em suma, as feiras mensais e quinzenais têm sido relegadas para segundo plano
na análise desta instituição, pois a documentação sobre elas (e sobre as feiras em geral)
é escassa e a sua importância na estrutura comercial e económica do Reino seria
reduzida51. Com este trabalho espero ter demonstrado como, apesar de dificilmente
comparáveis com as feiras de maiores dimensões, estas feiras de periodicidade curta
desempenharam um papel fundamental na estruturação económica de Portugal ao
longo da Idade Média, servindo como pontos de abastecimento para as povoações
e como polos de articulação do comércio regional e mesmo inter-regional. Como
tal, qualquer tentativa de compreensão da estrutura económica e comercial da
medievalidade portuguesa ficará incompleta sem uma reflexão e discussão do
papel de todas as reuniões comerciais, do mais pequeno mercado à maior feira, na
circulação de bens, de ideias e de pessoas.
50
Embora se trate de feiras anuais, o exemplo mais ilustrativo do condicionamento cronológico de
uma feira em torno de um produto é o das feiras algarvias. Centradas no comércio da fruta local, até ao século
XVI apenas se testemunham feiras nesta região na chamada época da carregação, entre setembro e novembro.
Veja-se CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., pp. 236-237.
51
No entanto, parece-me ser crucial a análise destas feiras para uma maior compreensão da importância
das feiras em contexto rural, uma das questões clássicas da historiografia sobre feiras, à qual já foram dedicados
importantes congressos como: DESPLAT, Charles (dir.) – Foires et Marchés dans les campagnes de l’Europe
Médievale et Moderne: actes des XIVes Journées Internationales d’histoire de l’Abbaye de Flaran, septembre
1992. Toulouse: Presses Universitaires du Mirail, 1996.
588
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Vegetais nos mercados do
Ġarb al-Andalus (séculos VIII-XIII).
Entre a arqueobotânica e os textos
António Rei1
Resumo
A alimentação, para o período islâmico e para o Ġarb al-Andalus, é uma das
áreas temáticas sobre que temos vindo a trabalhar desde 2014.
A nossa base de trabalho tem sido o conjunto vegetal, que se situa
cronologicamente entre os séculos X e XIII, que temos vindo a identificar a
partir da arqueo-botânica em Portugal, e confirmados, nos conteúdos, nas
fontes andalusis de botânica e agronomia.
Aquele conjunto vegetal autóctone, do Ġarb al-Andalus (Ocidente Ibérico)
chegava aos mercados, ou por produção local ou através de rotas comerciais.
E é esse conjunto, que chegaria aos mercados e lhes daria dinamismo comercial,
mas também social e cultural, que iremos aqui identificar e elencar.
Palavras-chave
Vegetais; Mercados; Ġarb al-Andalus; Arqueo-botânica; Fontes andalusis.
Vegetables in the markets of Ġarb al-Andalus (8th-13th centuries).
Between archaeobotany and texts
Abstract
Food, for the Islamic period and for Ġarb al-Andalus, is one of the thematic
areas we have been working on since 2014.
Our base of work has been the plant cluster, which is chronologically located
between the 10th and 13th centuries, which was identified from the archeo1
Investigador IEM / NOVA FCSH. “Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT –
Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito da Norma Transitória - DL 57/2016/CP1453/CT0072”
590
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
botany in Portugal, and confirmed, in the contents, in the Andalusian sources
of botany and agronomy.
That native plant cluster from Ġarb al-Andalus (Western Iberian) reached
markets either by local production or by trade routes.
And is this native plant cluster that reached the markets and give them
commercial, but also social and cultural dynamic, that we will identify and list
here.
Keywords
Vegetables; markets; Ġarb al-Andalus; Archeo-botany; Andalusian sources.
Introdução.
O que se encontraria nos mercados do Ġarb al-Andalus? O que produziriam as suas
hortas, pomares e campos? O que abasteceria aqueles mercados? É a isso que iremos
procurar responder, através do que as fontes materiais arqueo-botânicas por um lado,
e as fontes textuais árabes por outro, nos podem proporcionar para aquele período.
Em relação a esta temática, de mercados e alimentação, e a algumas outras
que lhe são próximas e algo acessórias, como a agricultura e a botânica, existe em
Portugal uma extrema escassez de fontes, e que apenas incidem sobre a Baixa Idade
Média.
Assim, tem sido nossa intenção procurar preencher aquela ausência informativa
a partir de fontes provenientes da cultura do al-Andalus e que trataram a botânica, a
agronomia2 e também a alimentação.
Nestas áreas temáticas atrás referidas, como em outras que trabalham a partir
de fontes textuais árabes, não existe, em Portugal, comparação possível com o
que se passa em Espanha. Espanha tem a formação de base do conhecimento do
idioma, em universidades mas não só, e do período histórico andalusi; tem muitas
e diversificadas fontes árabes para trabalhar, disponíveis em vários pontos do país;
e tem, naturalmente, neste momento, a maior produção de edições, traduções e
2
A informação bibliográfica é bastante extensa, pelo que aqui apenas deixamos os nomes dos autores, e
os títulos das fontes andalusis de agronomia e de botânica que temos trabalhado. Tratados agronómicos: Abū
‘l-Khayr – Kitāb al-Filāḥa; Al-Tiġnarī – Kitāb zuhrat al-bustān wa nuzhat al-aḏhān; Ibn al-’Awwām – Kitāb
al-Filāḥa; Ibn Baṣṣāl – Kitāb al-qaṣd wa’l-bayān; Ibn Ḥajjāj – Al-Muqnī ‘ fī’ l-filāḥa; Ibn Wāfid – Majmū‘
fī ’l-filāḥa: Kitāb fī tartīb awqāt al-ġirāsa wa ‘l-maġrūsāt. Um tratado agrícola andalusi anónimo. Tratados
botânicos: Abū l-Khayr – ‘Umdat al-Tabīb fī ma’rifat al-nabāt; Ibn al-Bayṭār – Kitāb al-Jami’ li-Mufradāt
al-Adwiya wa-l-Aġdiya.
VEGETAIS NOS MERCADOS DO ĠARB AL-ANDALUS (SÉCULOS VIII-XIII)
591
estudos de toda a Europa.
Voltando à “nossa corte na aldeia”: tem sido essencialmente sobre os elementos
vegetais que tenho vindo a trabalhar desde 20143, e em função do qual tenho entre
mãos, já terminado, e em vias de publicação o estudo, muito mais vasto, e intitulado
«Alimentação e Cura no Ġarb al-Andalus, entre os séculos X e XIII», para além de
vários estudos parcelares anteriores, já publicados ou a aguardar publicação4.
Ainda assim, agora apenas se pretende abordar aquilo que se poderia encontrar
nos mercados do Ġarb al-Andalus e que proviria das produções agrícolas, na sua
quase totalidade. Ao nível de algumas ervas aromáticas existiriam algumas exceções,
que confirmam a regra, pois as mesmas poderiam ser obtidas diretamente na
natureza, sem necessidade de cultivo.
Todo um substancial conjunto de mais de quatro dezenas de plantas que eu
caracterizei como “Ervas Selvagens Diversas” e que apresentei na comunicação
em Castelo de Vide, não as integro neste trabalho, pois ultrapassaria os limites de
páginas, mas constam naquele trabalho mais extenso e que atrás referi.
Em busca dos vegetais nos mercados do Ġarb al-Andalus.
Para construir o quadro genérico de quais seriam os vegetais que se poderiam
encontrar nos mercados do Ġarb al-Andalus, foram cruzados os dados que a arqueobotânica tem proporcionado em Portugal nos últimos anos, para estratigrafias em
contexto islâmico, entre os séculos X e XIII, com as informações que constam nas
fontes escritas de botânica andalusi.
3
Investigação, com o título “Alimentação e Cura no Ġarb al-Andalus a partir dos tratados agrobotânicos hispano-árabes (séculos X-XIII)”, esteve sedeada no Instituto de Estudos Medievais (NOVA FCSH),
de 2014 ao início de 2019, e na Escuela de Estudios Árabes (EEA-CSIC), (Granada), durante a Bolsa Pos-Doc
da FCT (SFRH / BPD / 100519 / 2014). Durante as estadias em Granada, tive o privilégio de trabalhar com a
Doutora Expiración García Sánchez, Investigadora Emérita do CSIC, com longa carreira na EEA-CSIC, e com
a Doutora Julia Carabaza Bravo, Professora na Universidade de Granada, e investigadora com nome firmado
há muito nestas temáticas.
4
Publicados: “Moçárabes e o Saber Médico em Al-Andalus entre os séculos VIII e X”. Revista Diálogos
Mediterrânicos online 12 (2017), pp. 205-216; “Elementos vegetais na alimentação de al-Ušbûna, entre os séculos
X e XII”. In SENNA MARTINEZ, João Carlos et alii (ed.) – Diz-me o que comes… Alimentação Antes e Depois da
Cidade. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa/ Direcção Municipal de Cultura/ Departamento de Património
Cultural/ Centro de Arqueologia de Lisboa, Sociedade de Geografia de Lisboa/ Secção de Arqueologia, pp. 6775; “Pelas margens do Funcho”. Cadernos do Endovélico 3. Livro do Congresso Internacional: “O Vale Sagrado
do Lucefécit : da Arqueologia à Etno-Botânica e da Etnografia à Etno-Literatura”, CM Alandroal / Ed. Colibri,
pp. 37-47. “Na Cozinha e na Botica do rei D. Dinis. Substâncias locais e importadas”. Diálogos Mediterrânicos
online 15 (2018), pp. 166-180. No prelo: entregues, avaliados e aguardando publicação: “Na mesa do Ġarb
al-Andalus (séculos X-XIII)”. In Da Mesa dos Sentidos aos Sentidos da Mesa. 4º Colóquio Luso-Brasileiro
da História e Cultura da Alimentação. Universidade de Coimbra: no prelo; “Matéria Médica no «Livro dos
Conselhos de El-rei D. Duarte». Uma abordagem preliminar”. In Livro do I e II Encontros sobre Artes da Cura.
IELT, Museu da Farmácia: no prelo; “Flora do Algarve entre os séculos X-XIII”. In Xarajîb 9: Atas do Colóquio
Internacional “As plantas do Gharb al-Andalus na botica e na cozinha (séculos X-XIII)”, no prelo; “Da Flora de
Lisboa e sua região, a partir das fontes árabes (séculos X-XII)”. In Lisboa Medieval: Os territórios de Lisboa.
Lisboa: IEM, no prelo.
592
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Os dados arqueo-botânicos dão-nos a informação sobre as plantas que de facto
existiam naquele período; e os tratados botânicos dizem-nos o que naquela mesma
época se conhecia sobre aquelas plantas, e a sua utilização nos aspetos alimentares e
sanitários.
A principal referência, no que à arqueo-botânica diz respeito, encontrei-a num
trabalho de síntese da autoria de Paula F. Queiroz e José E. Mateus5, e foi o ponto de
partida para conseguir uma ideia global, que não total, do que se poderia encontrar
nos mercados do Ġarb al-Andalus.
As informações textuais sobre as plantas encontradas, provém de fontes
andalusis de botânica, em concreto de dois tratados, a obra de Abū l-Khayr, ‘Umdat alTabīb fī ma’rifat al-nabāt (Prontuário do Médico no Conhecimento das Plantas) (UM),
e a de Ibn al-Bayṭār, Kitāb al-Jami’ li-Mufradāt al-Adwiya wa-l-Aġdiya (Coletânea
Completa de todos os Remédios e Alimentos Simples, conhecido como Tratado dos
Simples) (BY)6.
Nas notas que procedam destas fontes, os títulos, serão abreviados,
respetivamente por UM e BY. E a identificação, na nota, será, em UM (+ nº romano
do volume, e nº de página); em BY (+ letra do volume, e nº da entrada).
As palavras arabizadas7, de origem latina ou romance, que, a despeito dos
termos árabes, continuavam a identificar várias plantas (e que apresentamos em
itálico), indicam-nos plantas autóctones, ou há muito aclimatadas à Península
Ibérica, e cujas identificações antigas sobreviveram, ainda que tocadas pela fonética
do idioma árabe. Após o nome vulgar acrescentamos o respetivo nome científico,
antes dos respetivos termos árabes ou arabizados.
Observando aquela mesma terminologia árabe ou arabizada que identifica
os vegetais, constatamos que havia termos que identificavam diferentes espécimes
5
QUEIROZ, Paula; MATEUS, José – “As plantas no quotidiano do mundo islâmico. Vestígios
arqueobotânicos do sul de Portugal”. In GÓMEZ MARTÍNEZ, Susana (coord.) – Memória dos Sabores do
Mediterrâneo. Mértola/Porto: Afrontamento, 2012, pp. 177-199.
6
AL-KHAYR, Abū – ‘Umdat al-Tabīb fī ma’rifat al-nabāt (UM), Ed. M. A. al-Khattābī. Rabat: Matbū’āt
Akadīmiya al-Mamlaka al-Maġribīya, 1990; Abū l-Khayr al-Išbīlī – Kitābu ‘Umdati Tabīb fī ma’rifati
nnabāt likulli labīb, Eds. y trads. J. Bustamante; F. Corriente, y M. Tilmatine. Madrid: Consejo Superior de
Investigaciones Científicas, 4 vols., 2004-2010. V. ainda o ms. XL da coleção Gayangos, da Real Academia
de la Historia, Madrid; AL-BAYTAR, Ibn – Kitāb al-Jami’ li-Mufradāt al-Adwiya wa-l-Aġdiya (Coletânea
Completa de todos os Remédios e Alimentos Simples, conhecido como Tratado dos Simples [BY]), trad. franc.
Lucien LECLERC, Traité des Simples, 3 vols.: A, B e C, Paris, Institut du Monde Arabe, 1990 (ed. fac-símile da
original, Paris: I – 1877; II – 1881 e III – 1883).
7
Dizemos “arabizadas”, porque é fácil perceber que algumas das designações identificadoras das plantas
em causa, são pré-árabes, com origem latina, ou mesmo já romance, e a que o árabe apenas deu alguma alteração
em função da sua própria fonética. Sobre estas questões da linguística ligada à botânica hispano-árabe v. ASÍN
PALACIOS, Miguel − Glosario de Voces Romances: registradas por un botánico anónimo hispano-musulmán
(siglos XI-XII). CSIC: EEAMG, 1943 (ed. facsim. Universidad de Zaragoza, 1994); CORRIENTE, Federico −
“El Romandalusi reflejado por el Glosario Botánico de Abulxayr”. Estudios de Dialectología Norteafricana
y Andalusí 5 (2000-2001), pp. 93-241. V. também CORRIENTE, Federico − Dictionary of Arabic and Allied
Loanwords: Spanish, Portuguese, Catalan, Galician and Kindred Dialects. Leiden, Boston: E. J. Brill, 2008.
VEGETAIS NOS MERCADOS DO ĠARB AL-ANDALUS (SÉCULOS VIII-XIII)
593
dentro de cada tipologia. Tal facto pode expressar diferenças regionais da própria
agricultura andalusi dos séculos X a XIII; ou os termos em causa, serem marcas das
diferentes origens e formações dos agrónomos que, nos seus tratados, descreveram
as plantas em causa.
Cereais.
Comecemos pelos Cereais, os vegetais base da alimentação medieval.
Os principais cereais então produzidos, consumidos e também comercializados,
eram o trigo, nas suas variedades duras (Triticum vulgare Vill. [Triticum aestivum
(L.)] / Qamḥ, ḥinṭah, burr, jibayrah) e nas variedades moles (Triticum spelta L. /
Ḥinṭah, burr, ḥinṭah fārisiyyah, ḥinṭah rūmiyya, qamḥ al-baqar, sult, ša’īr, ašbiṭāllah,
ašqāliyā)8, e também a cevada (Hordeum vulgare L. / Ša’īr, urdi’um ša’īr rūmī)9.
Em alturas de carestia, e sempre que as condições orográficas o permitiam, as
variedades tremesinas (Tirmīj, Tirmīš) de trigos (Triticum spelta L.) e de cevadas
(Hordeum distichum L.) impunham-se, por permitirem mais do que uma colheita
por ano10.
O centeio (Secale cereale L. /Sult barrī, jintīnuh)11 era maiormente usado para
forragem de animais, mas também era usado pelo seu aspeto curativo. A aveia (Avena
sativa L. / Khurṭāl, abunuh), mais selvagem que cultivada, era usada principalmente
no aspeto medico-sanitário, como um revigorante12.
Os restantes cereais, como o painço (ou milho-miúdo) (Panicum sp. e Panicum
milliaceum / Dukhn barrī, jāwars) produziam-se em muito menores quantidades13.
Sendo um derivado direto de um qualquer cereal, muito preferencialmente
do trigo, constata-se também a referência às massas alimentares (iṭriyya)14 termo
onde é fácil perceber a etimologia da nossa palavra aletria (< al-iṭriyya), a qual é um
tipo de massa que manteve aquela mesma denominação, e por se tornar, no idioma
português, praticamente um sinónimo de um doce que tem por base precisamente
aquela massa filamentosa muito fina.
AL-KHAYR, Abū, UM, III, pp. 192-194. AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 715.
AL-KHAYR, Abū, UM, III, pp. 109-110. AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 1255, 1321; C 2068.
10
As variedades tremesinas, também eram designadas por “romanas”, trigo romano (ḥinṭah rūmiyya
[AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 193. AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 716]) e cevada romana (ša’īr rūmī [AL-KHAYR,
Abū, UM, III, p. 109. AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 1322]), e por vezes também designadas genericamente, pelos
termos khandarūs ou khundurūs (AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 109. AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 716; B 825,
1322), com idênticos significados. (v. também DOZY, R. − Supplément aux Dictionnaires Arabes. Leyden:
E.J.Brill, 1881, vol. I, p. 407)
11
AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 177. AL-BAYTAR, Ibn, BY, B, 1209.
12
AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 55. AL-BAYTAR, Ibn, BY, B, 747, 775; C, 1779, 2256.
13
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 460 e B, 858. AL-KHAYR, Abū, UM, III, pp. 144-145.
14
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 94.
8
9
594
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Leguminosas.
No relativo às Leguminosas, uma das maiores fontes de proteína não-animal e
grande reforço da alimentação do homem medieval, e desde há muito presentes na
Península Ibérica, constatam-se o chícharo (Pisum sativum L. / Basīl, basīla, arbilyaš
(variedade de grão amarelado e rugoso)15 e a ervilha (Pisum sativum L. / Bizāj,
julbān, jullabān (variedade de grão verde e liso)16, duas variedades de uma mesma
família vegetal. Também o cizirão (Lathyrus latifolius L. / Jullabān barrī, ġalūkuš)17
e a ervilhaca (Vicia sativa L. / Julbān, ‘adas barrī, bīqiyah)18, leguminosas antigas e
autóctones, com aplicação na alimentação humana e como forragem para animais.
Nesta condição podemos incluir ainda o tremoço (Lupinus albus L. / Turmus)19.
Mas as mais substanciais e energéticas Leguminosas, ainda hoje grandemente
consumidas, e já então de presença consolidada na Ibéria, eram a fava (Vicia faba L. /
Bāqilla, fūl, fābah, fābaš)20, o feijão-frade (Vigna unguiculata L. / Lūbyā, fayṣūlyā)21, o
grão-de-bico (Cicer arietinum L. / Ḥimmiṣ, ḥummuṣ, arbānsuš)22, e as lentilhas (Lens
esculenta Moench. / ‘Adas, lintilyaš)23.
Do ponto de vista linguístico, constatamos que também entre o conjunto das
Leguminosas existem diferentes plantas identificadas por um mesmo termo, ou por
termo muito semelhante.
Também entre elas se constatam várias identificações através de termos de
origem latina ou romance, o que nos confirma a sua implantação na Península Ibérica
já de muito antes do início do século VIII, e das terminologias árabes mais recentes.
Do ponto de vista culinário e gastronómico, as Leguminosas já eram parte da
dieta ibérica desde a Antiguidade pré-clássica, bem anterior ao período romano.
Hortaliças.
Quanto às Hortaliças, os vegetais que costumam ser produzidos nas hortas, vamos
integrar, nesta designação mais abrangente, as Verduras, os Bolbos e os Cogombros.
Entre as espécies hortícolas a maioria já cá estavam desde bem antes do século
VIII, e tal facto deixou marcas nas identificações das mesmas, pois na respetiva
nomenclatura, de origem árabe ou arabizada, voltamos a encontrar vários termos
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 495; B, 784; C 2060. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 154.
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 287, 495; B 817, 1330. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 154.
17
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 495; B, 784, 817. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 116.
18
AL-KHAYR, Abū, UM, III, pp. 199-200; AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 495; B, 784, 817.
19
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 406. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 122.
20
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 224; C, 1659. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 154.
21
AL-BAYTAR, Ibn, BY, C, 2042. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 200.
22
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 696. AL-KHAYR, Abū, UM, III, pp. 71-72.
23
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 350; B, 1518. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 118.
15
16
VEGETAIS NOS MERCADOS DO ĠARB AL-ANDALUS (SÉCULOS VIII-XIII)
595
com origem latina ou romance.
Verduras.
Entre as Verduras de folha, constata-se a presença da alface (Lactuca sativa L. / Khass,
lakhtūqah, laytūqaš)24 e da couve (Brassica oleracea L. / Kurunb, akrunb)25.
A arqueobotânica identifica a presença de vários tipos de Brassica, a que
pertencem não só as couves, mas também os nabos, a mostarda e a couve-flor.
No entanto, em relação à couve-flor, (Brassica oleracea L. var. botrytis / Kurunb
šāmī, qunnabīṭ), a mesma terá tido uma entrada mais tardia na Ibéria, já em pleno
período andalusi, aparecendo referida nos Calendários omíadas do período califal26.
No entanto, e no relativo concretamente ao Garb al-Andalus, e em paralelo
com outros vegetais que também abordaremos em contexto mais alargado, a couveflor também coloca problemas de inserção cronológica. Assim, temos bastantes
reservas sobre se a couve-flor, até ao século XII, ou mesmo XIII, já estaria aqui no
ocidente peninsular, completamente aclimatada, divulgada, consumida e mesmo
comercializada.
Entre as verduras de folha há também um caso que merece uma menção
especial pela similitude com o anterior. É o caso dos espinafres (Spinacia oleracea
L. / Asfānākh, isfānākh)27, os quais aparecem referidos nos textos agronómicos
andalusis desde o início do século XI28, mas dos quais não se encontram quaisquer
presenças concretas no solo em Portugal. E se a arqueo-botânica não os identifica
materialmente até ao século XIII, as referências escritas aos espinafres são ainda
muito mais tardias, sendo a mais antiga de finais do século XIV, mais concretamente
em 1388, num elenco de produções de verduras de uma almuinha dos arredores de
Coimbra, já durante o reinado de D. João I29.
Entre outras espécies hortícolas encontramos também o aipo (Apium graveolens
L. / Karafs, abiyuh)30, mas também o espargo, que aqui descriminamos entre a
AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 115. AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 495; B, 784, 817.
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 321; C 1909. AL-KHAYR, Abū, UM, III, pp. 58-59.
26
Os “Calendários” (em árabe: Kitāb al-anwā‘), identificam um género literário (do género almanaque),
onde constam dados astrológicos, meteorológicos, médicos, agrícolas e veterinários, todos ordenados
pelos dias dos meses. Produtos de uma civilização se sínteses, estes calendários informavam ainda sobre
as festividades das diferentes comunidades religiosas que compunham a sociedade (sobre os Calendários,
origens, desenvolvimentos e tipologias, v. NAVARRO, María Ángeles − Risāla fī Awqāt al-sana. Un calendário
anónimo andalusí. Granada: CSIC-EEA, 1990, pp. 15-29.
27
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 63. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 183.
28
Kitāb fī tartīb awqāt al-ġirāsa wa ‘l-maġrūsāt. Um tratado agrícola andalusi anónimo, Ed. Ángel C.
LÓPEZ Y LÓPEZ. Granada: CSIC-EEA, 1990, pp. 95 e 249-250.
29
COELHO, Maria Helena da Cruz − “Apontamentos sobre a comida e a bebida do campesinato
coimbrão em tempos medievos”. In Homens, Espaços e Poderes. Séculos XI-XVI. Vol. I: Notas do Viver Social.
Lisboa: Livros Horizonte, 1990, pp. 9-22, p. 12.
30
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 203, 307; C 1902, 2161, 2304. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 45.
24
25
596
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
variedade cultivada (Asparagus officinalis L. / Halyūn, asfarāj, asfāraj) e a variedade
brava ou selvagem (Asparagus acutifolius L. / Asfāraj, asfāraġus, asmāraġū)31, a qual
era, e continua a ser, obtida diretamente da natureza.
E encontramos também mais dois casos, muito singulares, ainda que
completamente diferentes, pois revelam realidades opostas.
Um primeiro caso, relacionado com a beringela (Solanum melongena L. /
Bādanjān, bādinjān)32. Aquela planta, apesar de referida nos textos andalusis, já
desde o século X33, não se constata, em absoluto, no espaço do Garb al-Andalus, no
que terá sido numa realidade semelhante à dos espinafres, com uma aclimatação e
uma divulgação também terá sido bastante tardia.
O outro caso, pelo contrário, é o que envolve o morango (Fragaria vesca L. / Tūt
arḍī). A singularidade do morango advém do facto de o mesmo ter sido identificado
pela arqueo-botânica nas regiões de Lisboa e do Vale do Tejo, já desde o século X e
com uma presença que se constata, pelo menos até ao século XII34.
Mas, ao contrário da beringela e dos espinafres, e de forma no mínimo curiosa,
senão mesmo surpreendente, a planta do morangueiro e o seu fruto encontramse completamente ausentes das fontes hispano-árabes, sejam elas agronómicas,
botânicas ou mesmo culinárias, não se encontrando um único autor que a refira,
nem para o Ġarb, nem para qualquer outra região do al-Andalus35.
Bolbos.
Entre os bolbos também vamos encontrar uma dominante de espécies autóctones ou
aclimatadas desde bem antes da presença árabe na Península Ibérica, sendo, uma vez
mais, prova disso, as denominações de origem latina ou romance que se constatam.
Assim, entre os bolbos encontramos o alho (Allium sativum L. / Ṯūm, alyuš)36
e a cebola (Allium cepa L. / Baṣal, jubullah)37, e entre os bolbos radiculares, temos
a cenoura (Daucus carota L. / Jazar, bištināqah, isfannāriyah, safnāriyah)38, o nabo
AL-BAYTAR, Ibn, BY, C 2260. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 51.
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 177, 227, 649; C, 1984, 2152, 2294. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 181.
33
Kitāb fī tartīb awqāt al-ġirāsa wa ‘l-maġrūsāt. Um tratado agrícola andalusi anónimo, ed. Ángel C.
López y López. Granada: CSIC-EEA, 1990, pp. 96 e 252-253.
34
QUEIROZ, Paula F; MATEUS, José − “As plantas no quotidiano do mundo islâmico. Vestígios
arqueobotânicos do sul de Portugal…”, pp. 182 e 187.
35
Uma curiosidade final, ainda sobre os morangos. Já bem ultrapassada a Idade Média, e antes de
Domingos Rodrigues, Chefe de Cozinha do rei D. Pedro II, e da sua obra, Arte da Cozinha, publicada em 1693,
não encontramos os morangos nos textos culinários portugueses, nem mesmo no famoso Livro de Cozinha da
Infanta D. Maria, de 1565.
36
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 453. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 39.
37
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 96, 481; B, 1389. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 90.
38
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 296; B, 979. AL-KHAYR, Abū, UM, III, pp. 38-39.
31
32
VEGETAIS NOS MERCADOS DO ĠARB AL-ANDALUS (SÉCULOS VIII-XIII)
597
(Brassica rapa L. / Lift, saljam, nābuh)39, já atrás referido, e o rábano (Raphanus
sativus L. / Fujl, lift, rābanuh, rābānš, rābānūš)40.
Relativamente à cenoura existe a possibilidade de que a mesma possa ser
confundida, por semelhança e por coexistência documentada em al-Andalus nos
séculos XI e XII, com a chirivia ou pastinaca, uma outra radicular que podemos
situar, tipologicamente, algures entre a cenoura e o rábano, mas que em árabe surge
identificada com os mesmos termos, como se pode constatar nas terminologias
presentes no parágrafo anterior41.
Cogombros.
Também entre as famílias dos cogombros, das vulgarmente chamadas “abóboras”,
se constata a presença de alguns termos de origem latina ou romance nas respetivas
identificações.
Entre os cogombros, encontramos a propriamente dita abóbora (Cucurbita
maxima L. / Dubbā’, qarʻ, ququbrah)42, com uma utilização predominantemente
culinária; mas também a cabaça (Lagenaria siceraria L. / qarʻ)43, as quais eram, e
ainda são, muito usadas, depois de tratadas e secas, como recipientes.
Deste grupo, e também com uma grande presença no universo culinário,
constatamos também a abobrinha (Cucumis flexuosus L. / Qiṯṯā’)44, o pepino /
cogombro (Cucumis sativus L. / Khiyār, ququmruš)45, e o melão (Cucumis melo L. /
Baṭṭīkh, khirbiz)46.
Árvores e Arbustos − de Fruto e de Lenha.
As árvores, são ainda hoje uma fonte de frutos e também de lenha. Se os frutos
foram enriquecendo a alimentação humana ao longo de milénios; a lenha, constituiu
uma das principais fontes de combustão da história humana, quase exclusiva desde
a descoberta da produção e manuseamento do fogo, até ao século XIX, e ainda hoje
não abandonada. E com influência decisiva na evolução humana, pois foi a partir de
então que se começou a cozinhar, e não apenas a comer diretamente e em cru.
Vamos elencar, por ordem alfabética, as árvores que já enchiam os campos
AL-BAYTAR, Ibn, BY, C, 2035. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 59.
AL-BAYTAR, Ibn, BY, B, 938. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 166.
41
Kitāb fī tartīb awqāt al-ġirāsa wa ‘l-maġrūsāt. Um tratado agrícola andalusi anónimo, ed. Ángel C.
López y López. Granada: CSIC-EEA, 1990, pp. 272-273.
42
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 303; B 851, 919; C 1739, 1752, 2317.
43
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 303; B 851, 919; C 1752. AL-KHAYR, Abū, UM, III, pp. 115-116.
44
AL-BAYTAR, Ibn, BY, C 1739, 2317. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 82.
45
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 508; B 835; C 1690, 1739, 1743, 2071. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 83.
46
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 303; B 780, 870 919; C 2034, 2175. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 82.
39
40
598
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
do Ġarb al-Andalus, e indiretamente, com os seus frutos, ajudavam a encher e
diversificar os seus mercados, e com a sua lenha aqueciam as casas, e os estômagos
das gentes de então.
Deixaremos em nota algumas informações em relação às menos comuns.
- Abrunheiro ou Ameixeira brava (Prunus spinosa L. / Ijjāṣ barrī, ‘abqar jabalī;
ou Prunus insititia L. / ijjāṣ barrī, ‘abqar barrī)47.
- Açofeifeira (Ziziphus jujuba Mill. / Nabq, zufayzaf, ‘unnāb)48.
- Agreira / Lódão bastardo (Celtis australis L. / Ajru, aḥrw, lūṭīs, mays, našam,
qayqab)49
- Álamo / Choupo / Ulmeiro (Populus nigra L. e Populus alba L. / Ḥawr, ḥawar
rūmī, ḥawar fārīsī, šajarat al-tawz)50.
- Alfarrobeira (Ceratonia siliqua L. / Kharnūb, kharrūb)51
- Alfena (Ligustrum vulgare L. / Ḥinnā’)52.
- Alperceiro / Damasqueiro (Prunus armeniaca L. / Barqūq, mišmiš, ‘ayn baqar
[pl.’uyūn baqar], ‘ayn baqar aṣfar)53.
- Ameixeira (Prunus domestica L. / Ijjāṣ, ‘abqar, ‘anbaqar, ‘ayn al-baqar pl.
‘uyūn al-baqar)54
- Amendoeira (Prunus dulcis ou amygdalus Batsch. / Lawz, amdlš,
amiqdālġlūqiyā, mqdlāws)55
- Amoreira (Morus alba L. Tūt, tūt al-ḥarīr, mūrā; ou Morus nigra L. / Tūt
aswad)56.
- Aroeira / Lentisco (Pistacia lentiscus L. / Ḍarw, fākihat al-ḥajal, fulful al-ḥajal,
lintiškuh, šajarat al-maṣṭikà)57.
- Azinheira (Quercus ilex L. / Ballūṭ; ou Q. rotundifolia Lam. / Ballūṭ ḥulw’,
lāndš)58 .
- Carvalho (Quercus faginea & pyrenaica / ‘Afṣ)59.
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 480, 574, C 1749. AL-KHAYR, Abū, UM, III, pp. 160.
AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 1116 e B 1594. AL-KHAYR, Abū, UM, III, pp. 2203-204.
49
AL-BAYTAR, Ibn, BY, C 2195. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. UM, III, pp. 66. Árvore comum
em Portugal, mesmo em meio urbano, mas hoje sem grande utilização entre nós, para além de ser usada
na arborização de zonas urbanísticas. Por informação oral da Profª. Doutora Expiración García, a quem
agradecemos, soubemos que em Espanha são feitas compotas com os frutos destas árvores, os quais são
colhidos nos finais de setembro e outubro.
50
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 108, 724, 725; B 1398; C 1982. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. UM, III, pp. 158.
51
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 763 a 766. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 68.
52
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 719. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 119.
53
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 274, 419, B 929, C 2136. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 159.
54
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 274. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 160.
55
AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 926, 927, 1412, C 2040. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 159.
56
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 434, C 1679. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 133.
57
AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 923, 924; C 2139. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 153.
58
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A273, 339, 493. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 163-164.
59
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A273, 339, 493. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 163-164.
47
48
VEGETAIS NOS MERCADOS DO ĠARB AL-ANDALUS (SÉCULOS VIII-XIII)
599
- Castanheiro (Castanea sativa Mill. / Qasṭalah, qašṭāniyaš, šāhballūṭ)60.
- Cerejeira (Prunus avium L. / Qarāsiyā, ḥabb al-mulūk, širulyaš); e Ginjeira
(Prunus cerasus L. / Ḥabb al-mulūk, qarāsiyā, širulyaš)61.
- Cidrão ou Toranja (Citrus medica L. / Taranj, turunj, utrujj, utrunj)62.
- Figueira (Ficus carica L. / Tīn, fīquh)63
- Framboeseira (Rubus idaeus L. / ‘Ullayq)64.
- Freixo (Fraxinus excelsior L. / Dardār, farākhšinuh)65.
- Loureiro (Laurus nobilis L. / Ġār, rand, rayḥān)66.
- Macieira (Malus domestica Borkh / Tuffāḥ, mansānah, mansāniyā)67.
- Marmeleiro (Cydonia oblonga Mill. / Safarjal, malmāluh)68.
- Medronheiro (Arbutus unedo L. / Qaṭlab, quṭlub, janā, al-janā al-aḥmar,
maṭrunyuh, maṭrūniyah, maṭrūniyuh, maṭrūnnuh, maṭrūnyuh)69.
- Nogueira (Juglans regia L. / Jawz, nūj, nūjī)70.
- Oliveira / Zambujo (Olea europaea L. / Zaytūn, āzmmūr, šajarah mubārakah,
ūliyyah); (Olea europaea L. subsp. silvestre Mill. /Aġriyālā, azabūj, azabbūj, āzabbūj,
ūlīastīr, zabbūj, zanbaj, zanbūj, zanbūj)71.
- Pereira / Sorveira ou Pereira brava (Pyrus communis L. / Ijjāṣ, injāṣ, kummaṯrà,
bīraš); (Sorbus domestica L. / Ġubayrā, sabsiyār, saysabān)72.
- Pessegueiro - (1 - pêssego veloso) (Prunus persica (L.) Batsch / Khawkh, ‘uyūn
baqar); (2 - pêssego careca ou nectarina) (idem / Khawkh banūš, khawkh bunūš)73.
- Pinheiro bravo (Pinus pinaster Aiton / Ṣanawbar, bīnnuh, bīnnuš) e Pinheiro
manso (Pinus pinea L. / Ṣanawbar, bnūniyā). Este último termo, arabizado, significa
“o dos pinhões”74.
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A273, 339, 493. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 66.
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 480, C 1749. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 159-160.
62
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 16; B945; C 2086. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 76.
63
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 352, 439. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 99-101.
64
A framboeseira (Rubus idaeus L.) está identificada na zona do Vale do Tejo, em concreto Lisboa e
Santarém, entre os séculos X e XII (QUEIROZ, Paula; MATEUS, José − “As plantas no quotidiano do mundo
islâmico. Vestígios arqueobotânicos do sul de Portugal…”, pp. 182 e 187.), embora esteja ausente das fontes
árabes destas temáticas. Um termo árabe que identifica a framboeseira, ‘ullayq, por vezes designa também
outras espinhosas similares (Rubus spp.), como a amora silvestre (Rubus fruticosus L.), que poderia originar
uma confusão entre ambas. Questão para um futuro estudo de caso.
65
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 383; B 861, 1305; C 2025. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 102.
66
AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 1065, 1540; C 1619. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 116-117.
67
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 417. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 124-125.
68
AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 908, 1192. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 84.
69
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 246, B 1290, C 1729, 1807. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 46. Sobre esta planta
e a sua abundância na Serra de Monchique, apresentaremos muito em breve um estudo, com nova leitura, e
onde se cruzarão informações das fontes botânicas e das fontes geográficas árabes.
70
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 525. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 114.
71
AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 1141. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 138-139.
72
AL-BAYTAR, Ibn, BY, C 1963. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 163.
73
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 420, B 830, 864. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 161.
74
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 433, B 1417, 1581, C 1806. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 152.
60
61
600
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
- Romãzeira (Punica granatum L. / Rummān, jullinār) e Romãzeira brava
(Punica granatum L. / Jullanār, jullinār, rummān barrī)75.
- Rosa e Roseira (Rosa sp. / Ward, rūšah)76.
- Sabina (Juniperus phoenicea L., [ou Juniperus sabina] / Abhal, ‘ar‘ar)77.
- Sobreiro (Quercus suber / Ballūṭ murr, qrniyūš, šubar, šūbar)78.
- Vide (Vitis vinifera L. / Karm, ‘inab)79.
No conjunto de árvores recenseadas conseguimos identificar, de forma evidente,
três grupos que se sobrepõem, pela quantidade, ao resto: os Prunus spp. (Abrunheiro,
Ameixeira, Amendoeira, Cerejeira, Damasqueiro, Pessegueiros), os Quercus spp.
(Azinheira, Carvalho e Sobreiro) e os Pinus spp. (Pinheiro bravo e Pinheiro manso)80.
Sendo o primeiro grupo, Prunus spp., essencialmente frutícola, os dois outros,
no aspeto alimentar, acabam por ter características diferenciadas.
Os pinheiros, em especial os pinheiros mansos e os seus frutos - os pinhões
-, enquanto oleaginosas, constituem um importante complemento proteico na
alimentação humana em geral; e já no período andalusí com uma importante
presença na cozinha das elites, constatando-se quer em pratos salgados, quer em
pratos doces.
Os Quercus spp. ou “árvores das bolotas”, entram na alimentação humana
de duas formas, direta e indireta. De forma direta as bolotas, grandes reservas de
hidratos de carbono, podem ser consumidas diretamente, cruas, cozidas ou assadas;
ou, se pisadas e desfeitas, também podem vir a dar origem a um tipo de papas, ou
a um género de pães, que, em ambos os casos, supriam, muitas vezes, a falta dos
cereais.
Indiretamente, as bolotas alimentavam, e continuam a alimentar, animais, em
especial ovinos e suínos, os quais depois entram na alimentação humana.
Ervas Aromáticas.
Depois dos cereais, das leguminosas, das hortaliças e dos frutos, a culinária cedo
AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 1058. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 162
AL-BAYTAR, Ibn, BY, C 2274. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 168-169.
77
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 7; B 985, 1289, 1402. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 115.
78
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A273, 339, 493. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 163-164.
79
AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 1595. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 201-103.
80
Os pinheiros, foram, entre outras aplicações, matéria-prima para os estaleiros que existiram no
Arade, em Silves, e no Sado, em Alcácer do Sal. Nesses estaleiros foram construídos, desde a segunda metade
do século IX, embarcações para defesa das costas do Garb al-Andalus, muito especialmente em frente das
incursões normandas, que durante a segunda metade do século IX e praticamente durante todo século X
fustigaram o al-Andalus, pilhando e destruindo. (v. REI, António − O Gharb al-Andalus al-Aqsâ na Geografia
Árabe (séculos III h. / IX d.C. – XI h. / XVII d. C.). Lisboa: IEM, 2012, pp. 128 e 165. V. ainda COELHO, A.
Borges – Portugal na Espanha Árabe. 2ª Edição. Lisboa: Editorial Caminho, 1989, vol. 2, pp. 127-134).
75
76
VEGETAIS NOS MERCADOS DO ĠARB AL-ANDALUS (SÉCULOS VIII-XIII)
601
terá aprendido que a utilização de alguns outros vegetais, ajudavam a alterar sabores
e efeitos dos alimentos principais, fossem estes vegetais ou não. Ou seja, estes
condimentos ajudaram a que a simples alimentação se fosse transformando em
gastronomia.
Mas se num primeiro aspeto, e funcionando essencialmente como condimentos,
e buscando um efeito predominantemente gustativo e olfativo, e daí serem entendidas
como “aromáticas”, numa segunda vertente, já se procura um efeito de maior alcance,
de cariz mais medico-sanitário, para além dos anteriormente referidos, já se podem
considerar como sendo “ervas medicinais”.
Estas ervas, aromáticas e / ou medicinais, eram, e ainda são, muitas vezes
obtidas localmente, através de colheita direta na natureza, no entanto, também
podem, ao menos algumas delas, ser obtidas através de cultivo. Obtidas diretamente
da natureza, ou como produto agrícola, chegariam por certo aos mercados.
Entre as identificadas no Ġarb al-Andalus, com presença atestada nas cozinhas,
com funções tónicas, estimulantes, calmantes e digestivas; mas também, todas elas,
com uma possível presença nos seus mercados, estão:
- Alcaparra (Capparis spinosa L. / Kabbārā, qbārrā)81.
- Alcaravia (Carum carvi L. / Karawiyā, karawiyyah, kammūn armīnī)82.
- Alecrim (Rosmarinus officinalis L. / Iklīl, iklīl al-jabal, ṣa’tar rūmī)83.
- Alfazema (Lavandula sp./ Khuzāma, šīḥ)84.
- Coentros (Coriandrum sativum L. / Kuzbarah, juljulān, qulānturuh)85.
- Cominhos (Cuminum cyminum L. / Kammūn, kūmīnūn)86.
- Funcho (Foeniculum vulgare Miller subsp. Sativum / Rāziyānaj, bisbās, fnjuh,
fnulyuh)87.
- Hortelã (Mentha sativa L. / Na’na’, hartamā, māntah mayūrā)88.
- Melissa / Cidreira (Melissa officinalis L. / Ḥabaq aš-šuyūkh, kāšif al-ḥuzn,
marw, māntah jṭriyah, mufarriḥ qalb al-maḥzūn, turunjān)89.
- Mostarda (Brassica nigra (L.) Koch [= Sinapis nigra L.] / Khardal, sinabī,
ṣināb)90
- Orégãos (Origanum sp. / Ṣaʻtar, zaʻtar, awrīġānus)91.
- Poejo (Mentha pulegium L. / Fūdanj jabalī, bulāyuh, fūdanj barrī, ġubayrah,
AL-BAYTAR, Ibn, BY, C 1877. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 63.
AL-BAYTAR, Ibn, BY, C 1772, 1913. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 65.
83
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 129. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 169.
84
AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 791, 1558. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 117.
85
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 424; C 1926, 1933. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 79.
86
AL-BAYTAR, Ibn, BY, C 1967. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p.83.
87
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 286; B 1019. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 101-102.
88
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 595; B 852, 1442; C 2227. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 129.
89
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 221, 324, 414, 592. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 128-129.
90
AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 767. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 59.
91
AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 1398. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 141-142.
81
82
602
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
ṣaʻtar nahrī)92
- Rosmaninho (Lavandula stoechas L. / Khuzāma naḥliyyah, mattāllah,
mawrškuh, mawruh bškuh, mūqif al-arwāḥ)93.
- Salsa (Petroselinum crispum (Mill.) / Maqdūnas, baṭrasāliyūn)94.
- Sálvia / Salva (Salvia officinalis L. / Salīmah, sālimah, šālbiyah)95.
- Tomilho (Thymus sp. / Ṣa’tar)96.
- Verbena (Verbena officinalis L. / Qulunbayrah, qulunbāris, qulunbārs, ri’y alḥamām, šajarat al-ḥamām, ‘ušbah muqaddisah)97.
Apesar de se constatarem, e de entre estas Ervas terem prevalecido algumas
denominações com origem árabe, a quase totalidade deste conjunto de Aromáticomedicinais, já vinha de muito antes da presença da civilização árabo-islâmica
na Península Ibérica, se atendermos às, também presentes, denominações,
maioritariamente de origem latina e romance, e, por tanto, anteriores ao período
andalusi.
Produtos Transformados.
Também nos mercados se encontravam produtos transformados, obtidos a partir de
diferentes bases vegetais.
Perfumes.
De algumas das Ervas atrás referidas também se obtinham, por destilação, essências
com usos terapêuticos ou de adorno e cosmética, usadas na produção de perfumes.
Entre elas, encontramos as Rosas (Rosa sp.), de que era extraída a famosa,
ainda hoje, “água de rosas”; mas também diferentes plantas do tipo Lavandula
spp.: a Alfazema e o Rosmaninho; outra, a homónima Verbena; e ainda o Alecrim
(Rosmarinus officinalis).
Tecidos de seda.
Temos uma árvore, a amoreira, numa realidade produtiva e económica diferente,
situando-se na base de um processo que dava origem a tecidos de luxo,.
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 507, 584; C 1639, 1712. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 129.
AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 791, 1558. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 117.
94
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 307; C 1902, 2161. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 147-148.
95
AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 1387. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 173.
96
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 62. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 191.
97
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 132, 211, 241; B 1046; C 1667. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 199.
92
93
VEGETAIS NOS MERCADOS DO ĠARB AL-ANDALUS (SÉCULOS VIII-XIII)
603
As suas folhas servem de alimento aos gusanos da seda, e por essa razão, a
amoreira, é também identificada, entre outas denominações, pela expressão árabe tūt
al-ḥarīr, que significa, literalmente, “a amoreira da seda”.
Pela sua condição de artigo de luxo, a seda, e também mesmo os perfumes,
tinham locais diferenciados nos mercados, as suas zonas mais nobres, as chamadas
“alcaiçarias”.
Plantas Oleaginosas e Saboeiras.
Se a dietética é, de há muito, uma forma de cuidados médico-sanitários, pois já a
Hipócrates (sécs. V-IV a.C.) se atribui a frase “faz do teu alimento o teu medicamento”,
sabemos que a higiene também influi em muito na manutenção de uma condição
saudável.
Deixamos aqui uma listagem de plantas com potencialidades de cariz
higienizante. Os óleos serviam, maioritariamente, para aplicações tópicas, mas
também para a elaborações de óleos defumadores e purificadores. As ervas
“saboeiras”, ricas em soda, e como o nome indica, serviam para produzir sabões,
barrilhas saboeiras, que serviam para lavar roupas e todo o tipo de tecidos.
A lavagem de tecidos usados pelos humanos, era uma medida sanitária
preventiva, em especial nos tecidos em contacto direto com os indivíduos doentes.
A especificidade das suas potencialidades faria com que as mesmas, e o seu uso,
não fosse indiscriminado, mas sujeito a receitas e quantidades.
- Gipsofila (Gypsophila struthium L. / Ġāsūl, šajarat Abū Mālik, šabunayra)98,
usada na produção de sabões.
- Pilriteiro ou Espinheiro alvar (Crataegus monogyna Oxyacantha L. / Alšawkat al-bayḍā’, bāḏāward, zaʻrūr, asbinah albah)99, com usos diversificados, quer
para obtenção de óleo para iluminação, quer como medicamento, ou como substância
tintureira.
- Rícino, mamona, ou carrapateiro (Ricinus communis L. / Khirwa’, rijinuh)100,
de onde se obtém um óleo com uso medicinal.
- Salicórnia (Salicornia europaea L. / Ġāsūl miṣrī, ušnān al-qattārīn, ušnān
’aqrabī)101, também usada para produzir sabões.
- Quenopódio marítimo (Chenopodium album / Qaṭaf baḥrī, qaṭaf barrī, baql
arrūm barrī, sarmaq abyaḍ)102, para produção de sabões, como a anterior.
AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 1286. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 106.
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 123; B 1009, 1112, 1290, 1614; C 2232. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 81.
100
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 693; B 771, 925, 1476 bis. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 167-168.
101
AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 1037. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 171.
102
AL-BAYTAR, Ibn, BY, C 1811, 2037, 2171. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 70.
98
99
604
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Para uso culinário, mas não só…
Determinados produtos, de importância na cozinha, mas não só e que eram obtidos
através de diferentes processos.
Entre os que provinham de colheita direta, constatamos o agraço (ḥiṣrim)103
- uvas verdes e ácidas, usadas como condimento −, ou o balaústo104 (o balaustion
dos gregos: flor da romãzeira brava seca) (jullanār, jullinār), também usada como
condimento alimentar acidificante.
Por extração, temos o azeite (zayt). Através de secagem, as diferentes frutaspassas, de figo (tīn) ou de uva (zabīb).
Por extração e transformação, temos o vinho (nabīḏ)105, enquanto que por
transformação do mesmo vinho, se obtinha o vinagre (khall).
Todos com utilização no universo culinário e gastronómico, ainda que o azeite
também tivesse um inestimável papel na iluminação; e o vinagre, que pelo seu papel
de antisséptico e desinfetante, sempre teve um grande uso no campo sanitário.
Conclusões.
A realidade do mundo rural do Ġarb al-Andalus entre os séculos X e XIII, e das suas
produções de origem vegetal, cujos excedentes chegariam aos mercados, não seria
muito diferente do que existiria nos períodos imediatamente anteriores, pelo menos
desde o período romano.
É significativo que algumas plantas, cuja importação e vulgarização é
tradicionalmente associada ao período islâmico, como vimos, a beringela e os
espinafres, mas mais ainda os citrinos, a laranja amarga o limão, se encontrem
completamente ausentes.
E pelo contrário, tenhamos presenças, como o morango e a framboesa, que se
constatam ao longo daqueles mesmos séculos, e dos mesmos não tenha ficado o mais
pequeno registo em nenhum dos tratados agronómicos que foram produzidos ao
longo do século XI em al-Andalus.
Por certo que, como também no período romano, quando a Hispânia era, então
também, o extremo dessa outra malha económica mediterrânica, o Mare Nostrum,
cá chegariam aos mercados outros elementos vegetais importados, embora em
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 119, 342, 679; C 1645. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 202.
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 494. O botânico anadalusi refere que já como “balaustion” ou “balaustium”
a flor da romãzeira brava foi identificada, respetivamente, por Dioscórides e por Galeno. Com a formulação
“billoto” surge entre os condimentos usados na cozinha do rei D. Afonso V, embora na altura não identificado
pela autora (V. SANTOS, Maria José Azevedo − “O peixe e a fruta na alimentação da corte de D. AfonsoV”.
In A Alimentação em Portugal na Idade Média. Fontes, Cultura, Sociedade. Coimbra: INATEL, 1997, pp. 1-33,
p. 8).
105
AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 244; C 2211.
103
104
VEGETAIS NOS MERCADOS DO ĠARB AL-ANDALUS (SÉCULOS VIII-XIII)
605
quantidades mais modestas, e apenas acessíveis às elites regionais.
De qualquer forma, com todas as exceções, pelas presenças e ausências, o Ġarb,
região periférica em al-Andalus, e mais ainda no que era o mundo islâmico de então, e
das respetivas rotas comerciais, parece, pois, ter mantido uma matriz económica algo
autárcica nas produções agrícolas, e no que se comprava e vendia nos seus mercados,
muito próxima daquela que existiria no período hispano-romano, aparentemente
sem alterações significativas, entre os séculos I-II d.C. e o século XIII.
606
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
El Almirantazgo de Castilla y la ‘saca de
pan’ en la segunda mitad del siglo XV:
el control de un tráfico marítimo y sus
consecuencias
Lorenzo Lage Estrugo1
Resumen
El almirante de Castilla tenía entre sus numerosos privilegios el control de la
saca de pan. Teniendo en cuenta la importancia del comercio de trigo para el
abastecimiento de las villas y ciudades medievales la injerencia del almirante
causó numerosos conflictos. La expedición de licencias por parte del almirante
encarecía los precios, lo cual propició un rechazo frontal a la aplicación de
su jurisdicción en los puertos andaluces. La aspiración del almirante por
controlar firmemente la exportación de trigo se manifestó social, económica y
políticamente. Es reseñable como los grandes magnates regionales rechazaron
la injerencia de la institución castellana, ya que eran propietarios de extensas
tierras agrícolas y buscaban exportar sus productos sin intervención de
otro noble castellano-leonés. Las ciudades, a su vez, buscaban garantizar el
abastecimiento de trigo a un precio razonable y rechazaban las imposiciones del
almirante como gravosas, tomando medidas en su contra. Finalmente, destaca
el enorme volumen de dicho comercio, lo cual entre otras razones explica la
incapacidad del almirante de controlarlo.
Palabras clave
Comercio; Fiscalidad; Almirante de Castilla; Cereales; Abastecimiento.
1
Universidad de Cádiz.
608
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
The Admiralship of Castile and the ‘saca de pan’ in the second
half of the 15th century: the control of a maritime traffic and its
consequences.
Abstract
The Admiral of Castille had among its many privileges the control over the grain
exports, or ‘saca de pan’. Accounting for the material importance of grain trade
for the adequate supply of medieval towns, the imposition of any kind of control
by the admiral was bound to cause conflict. The expedition of licences by the
admiral provoked a price raise, which was soundly refused by the Andalusian
harbour societies. Even if it might be considered a lesser topic, the admiral’s goal
to exert control over the exports manifested itself socially, economically and
politically. It is remarkable how the great regional lords rejected the admiral’s
intervention, because they were great landholders and wished to export grain
without paying customs. The cities, by their own authority, sought to guarantee
the supply of grain and bread at a reasonable price and, thus, flatly rejected
the admiralship’s customs, taking measures against their application. Finally,
it is remarkable the sheer volume of that trade, which, among other reasons,
explains by itself why the admiral was unable to fully control it.
Keywords
Trade; Fiscal policies; admiral of Castile; Grain; Supply.
Introducción.
Los cereales eran la base de la alimentación medieval, pesada en hidratos de
carbono, suficientemente nutricia pero algo repetitiva y, normalmente, carente en
proteínas. El pan, en todas sus modalidades, era un elemento vital de la vida del
hombre y mujer medios del medievo2. Incluso tenía una potente vertiente simbólica
como sujeto de la transubstanciación, esto es, la conversión en la carne de Cristo
2
Las clases populares tenían un acceso menor a la carne tanto por su elevado precio como por cuestiones
sociales, ya que era un símbolo de estatus y la carne de caza, por ejemplo, estaba reservada a las mesas nobles.
El pescado dependía de la cercanía a regiones costeras o fluviales y al precio de éste. Generalmente los
campesinos complementaban su dieta pesada en cereales con frutas y legumbres. GONÇALVES, Iria –“Acerca
da alimentação medieval”. Revista da Faculdade de Letras, 4 série, 2 (1978), pp. 441‐458; FERREIRA, Nuno
Paulo Soares –“A alimentação portuguesa na Idade Medieval”. Alimentação Humana. Revista da SPCNA 14,
3, (2008), pp. 104-114.
EL ALMIR ANTAZGO DE CASTILLA Y LA ‘SACA DE PAN’ [...]
609
según se anunció en la Última Cena. Es sorprendente constatar las numerosísimas
ocasiones – ya sea en grabados, miniaturas, pintura o esculturas – en que algún
elemento relacionado con el pan como concepto general hace aparición, desde la
siega del trigo maduro a una hogaza siendo partida por Jesús y unos incrédulos
apóstoles en medio de su sagrado refrigerio. Tal importancia justifica que el comercio
de cereales, el abastecimiento de pan fuera, sin duda, la principal preocupación de
cualquier población, junto con el igualmente indispensable suministro de agua
potable3.
La compraventa de cereales, desde la Antigüedad, como demuestra la Annona
romana, era uno de los negocios más proclives a caer en manos de especuladores sin
escrúpulos, que en tiempos de carestía encarecían el producto, o que incluso llegaban
a provocar crisis de subsistencia retrayendo y reteniendo el pan para provocar un
alza artificial de los precios que les beneficiase. Por todo ello el comercio de cereales
es uno de los que reciben más atención institucional. Los concejos medievales
siempre estaban al tanto de las fluctuaciones del mercado y en numerosas ocasiones
acumulaban cereal o se encargaban de costear la llegada de cargamentos de pan que
pudieran solucionar una potencial hambruna4. La venta y compra de trigo y otras
especies frumentarias afines, era probablemente el flujo comercial más elemental,
y por ello, toda cuestión que incidiera en dicho circuito, como hemos reiterado,
era de gran consideración5. El comercio de cereales era imprescindible, ya que
3
El pan tiene una fuerte carga simbólica en la Edad Media derivado de un sincretismo de tradiciones
heterogéneas –judaísmo, religiones clásicas- originado en los tiempos finales del Imperio romano. En la Edad
Media, época simbólica donde las haya, cada aspecto de la comida tenía un trasfondo cultural. MONTANARI,
Massimo – Alimentazione e cultura nel Medioevo. Roma: Laterza, 1992, pp. 124-137; MONTANARI, Massimo
– Mangiare da Cristiani: diete, digiuni, banchetti, storie di una cultura. Milano: Rizzoli, 2015, pp. 23-33; WEISS
ADAMSON, Melitta – Food in medieval times. Londres: Greenwod Press, pp. 1-4; pp. 181-189; GONÇALVES,
Iria –“A alimentação”. In MATTOSO, José (dir.) – História da Vida Privada em Portugal, Vol I: A Idade Média,
SOUSA, Bernardo Vasconcelos e (coord.). Lisboa: Círculo de Leitores, 2011, pp. 226-260.
4
Las crisis de cereales han atraído la atención de numerosos investigadores, en buena medida por
su recurrencia en ciertos períodos y la evidente gravedad de una situación de carestía alimenticia. Véanse:
MARTÍN GUTIÉRREZ, Emilio –“La crisis de 1503-1507 en Andalucía: reflexiones a partir de Jerez de la
Frontera”. In OLIVERA HERRER, Hipólito Rafael; BENITO I MONCLÚS, Pere (coords.) – Crisis de
subsistencia y crisis agrarias en la Edad Media. Sevilla: Universidad de Sevilla, pp. 207-302; IRANZO MUÑÍO,
María Teresa –“Abastecimiento urbano, fiscalidad y política frumentario: el mercado del trigo en Huesca en el
siglo XV”. In LALIENA CORBERA, Carlos; LAFUENTE GÓMEZ, Mario (coord.) – Una economía integrada.
Comercio, instituciones y mercados en Aragón, 1300-1500. Zaragoza: Grupo de Investigación Consolidado
CEMA, 2013, pp. 205-250; TOMÁS FACI, Guillermo – “Las estrategias señoriales en el mercado del cereal: el
conde de Ribagorza ante la carestía gascona de 1347”. In LALIENA CORBERA, Carlos; LAFUENTE GÓMEZ,
Mario (coords.) – Una economía integrada. Comercio, instituciones y mercados en Aragón, 1300-1500.
Zaragoza: Grupo de Investigación Consolidado CEMA, pp. 251-261; BORRERO FERNÁNDEZ, Mercedes
–“Crisis de cereales y alzas de precios en la Sevilla de la primera mitad del siglo XVI”. Historia, Instituciones,
Documentos 18 (1991), pp. 39-57; GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel – “Las crisis cerealistas en Carmona a fines
de la Edad Media”. Historia, Instituciones, Documentos 3 (1976), pp. 283-308.
5
Había regiones tradicionalmente productoras y otras naturalmente deficitarias. La integración de los
mercados medievales en relación con el grano permitía el abastecimiento de las zonas más proclives a sufrir
escasez. La especulación era constante, grandes productores solían retener grano para alzar los precios. Véanse:
ESPEEL, Stef – “The grain market and preferential trade of large landowners in Flemish cities during the Age
610
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
ciertas regiones eran deficitarias, no produciendo suficiente grano para mantener
su población, lo que se agravaba en épocas de crisis de subsistencia, que conducía
a una importación de grano de otros territorios. Ello provocaba la existencia de un
flujo comercial constante entre regiones productoras y deficitarias. El ejemplo más
paradigmático a nivel mediterráneo es Sicilia, que siempre ejerció ejemplarmente su
rol de granero en la cuenca occidental de dicho mar.
1. La saca de pan. Una cosa vedada y su problemática.
En Castilla, literalmente se denomina como “saca” a la comercialización de un
producto para su exportación, por mar o por tierra. Sin embargo, el concepto de
sacar, en sí mismo, tiene una acepción negativa en el derecho medieval castellano,
ya que solía denominarse como tal a aquellos productos cuya salida del reino
conllevaba un perjuicio de éste y debía, por tanto, evitarse en la medida de lo posible.
Por ello, la saca de pan, ganado, carne, metales o paños estaban comprendidas
dentro de los que se denominaba como “cosas vedadas” 6. Teniendo esto en cuenta la
participación en dicho comercio dependía de la expedición de un albalá o licencia
que permitía al negociante en cuestión exportar cualesquiera de estas cosas vedadas,
incluyendo el pan. Esto no sólo aseguraba que siguiera vedada una comercialización
indebida de dicho producto estratégico, sino que también derivaba en una serie de
ingresos arancelarios significativos. Las cosas vedadas, por naturaleza, eran aquellas
of Shocks (1330-1370)”. Mélanges de l’École française de Rome. Moyen âge 131-1 (2019), en línea, consultado
el 20 de diciembre de 2019. URL: http://journals.openedition.org/mefrm/5351; DOI: 10.4000/mefrm.5351;
PÉREZ SAMPER, María de los Ángeles –“El pan nuestro de cada día en la Barcelona moderna”. Pedralbes
22 (2002), pp. 29-36; GENICOT, L. –Comunidades rurales en el Occidente medieval. Barcelona: Crítica, 1993,
pp. 141-153; MIRANDA, Flavio; FARIA, Diogo –“Lisboa e o comercio marítimo com a Europa nos séculos
XIV e XV”. In FONTES, João Luís; OLIVEIRA, Luís Filipe; TENTE, Catarina; FARELO, Mário; MARTINS,
Miguel Gomes (coords.) – Lisboa medieval: gentes, espaços e poderes. Lisboa: Instituto Estudos Medievais,
2016, pp. 241-266; MARQUES, A. H. de Oliveira – Introdução à história da agricultura em Portugal. A questão
cerealifera durante a Idade Média. Lisboa: Edição Cosmos, 1968; GONÇALVES, Iria – “A propósito do pão
da cidade na Baixa Idade Média”. In SILVA, Carlos Guardado da (coord.), Turres Veteras IX. História da
Alimentação. Torres Vedras 2007, pp. 49-72; GONÇALVES, Iria – “Defesa do consumidor na cidade medieval:
os produtos alimentares (Lisboa –séculos XIV e XV). Um olhar sobre a cidade medieval. Cascais: Patrimonia,
1996, pp. 97-116.
6
En 1268, en las cortes de Jerez, ya incluyó Alfonso X el pan entre las cosas vedadas: “ninguno non saque
de mis rreynos… oro, plata, cobre e pannos, cauallos e todas las otras bestias, bueyes, vacas, puercos e toçinos e
todos los otros ganados (…) nin pan, nin vino, nin otra vianda ninguna (…)”. Las cortes de Haro de 1288 bajo
Sancho IV y las de Palencia de 1313 de Alfonso XI ampliaron y cimentaron esta serie de prohibiciones dentro
del derecho castellano; incluso llegaron a especificar el territorio de Portugal como particularmente vedado.
Enrique II reiteró con contundencia las cosas vedadas en sendas ordenaciones Burgos y Toledo en 1377 y 1378
respectivamente, sentando las bases de la cuestión bajo la nueva dinastía. PINO ABAD, Miguel – “La saca
de cosas vedadas en el derecho territorial castellano”. Anuario de historia del derecho español LXX (2000),
pp. 200-207; MONTES ROMERO-CAMACHO, Isabel – “Las instituciones de la ‘saca’ en la Sevilla del siglo
XV. Aproximación al estudio de la organización institucional del comercio exterior de la corona de Castilla
al final de la Edad Media”. Historia, Instituciones, Documentos 31 (2004), pp. 417-421; BERMEJO CABRERO,
José Luis – “Dos Ordenamientos de Enrique II sobre sacas”. Cuadernos de Historia del Derecho 5 (1998), pp.
271-280.
EL ALMIR ANTAZGO DE CASTILLA Y LA ‘SACA DE PAN’ [...]
611
cuyo comercio debilitaba al reino frente a sus competidores, fortaleciendo su base
poblacional en ocasión de una guerra. Sin embargo, la veda estricta del comercio de
cereales sólo se realizaba en tiempos críticos, como guerra abierta, para impedir un
desabastecimiento de la población en una potencial carestía, cortándose el comercio
a causa del enfrentamiento armado. En tiempos de paz, o sin que hubiera una
circunstancia excepcional, el comercio de trigo era común y corriente y no había
un control específico más allá del pago de los debidos aranceles. Es decir, aunque
según se había establecido en Cortes la exportación de pan era una cosa vedada, ésta
solamente era prohibida taxativamente en tiempos críticos, siendo un tráfico con un
gran volumen comercial en cualquier otra circunstancia. Los dos reinos que eran
objeto más frecuente de un cese del comercio regular eran Portugal y el reino nazarí
de Granada, uno por la encendida rivalidad dinástica con Castilla y el segundo por
cuestiones militares e ideológicas7.
La obligación de obtener una licencia del almirante o sus agentes para poder
sacar pan condujo, naturalmente, a la frecuente redacción de cédulas y misivas en
las cuales se conminaba al almirante que permitiera a tal o cual individuo sacar pan
por vía marítima. Ejemplo de ello, la carta del rey actuando a favor del adelantado
mayor de Andalucía y hermano menor del almirante, Pedro Enríquez de Ribera
conminándole a que le autorizara a sacar trigo de Sevilla –la misiva también está
dirigida a los miembros del concejo hispalense-, o una de Diego de Herrera, hombre
principal de las Islas Canarias en aquel entonces, para que se le permitiera sacar pan
de dicha localidad, con destino a las posesiones ultramarinas de la corona castellana8.
La corona en ocasiones expedía una orden explícita al respecto. Como puede verse
en un documento regio de 1477, en el cual se ordenaba al almirante y al concejo
de Sevilla que se permitiera sacar pan con licencia al doctor Antonio Rodríguez de
Lillo9.
Las instituciones castellanas que podían tener mano en dicha saca del pan eran
7
Debe diferenciarse la teoría de la práctica, ya que ambos territorios tenían un próspero flujo
comercial con las regiones circundantes, tanto por mar como por tierra. La economía granadina dependía
en buena medida de las exportaciones de sus productos de alta demanda: seda, azúcar, trabajos en cuero
y otras manufacturas de lujo. Castilla podía acceder a ese mercado vendiendo sus materias primas –como
los cereales-, lo cual estaba expresamente censurado dentro de la ordenación de las cosas vedadas. Véanse:
FÁBREGAS GARCÍA, Adela – “El reino nazarí de Granada como área de comercio internacional: ¿Colonia
mercantil o espacio de integración?”. Anales de la Universidad de Alicante. Historia Medieval 18 (2012-2014),
pp. 153-169; FÁBREGAS GARCÍA, Adela – “Redes de comercio y articulación portuaria del reino de Granada:
puertos y escalas en el tráfico marítimo bajomedieval”. Chronica Nova 30 (2003-2004), pp. 69-102.
8
La carta fue dada el 28 de mayo de 1476, en la ciudad de Burgos. Simancas, Archivo General de
Simancas, Registro General del Sello, RGS,LG,147605,363. La isla además había oscilado su producción agrícola
hacia el sector vitivinícola, especialización que sucedió a la primigenia azucarera. La existencia de cultivos
destinados a la exportación provocó un déficit permanente de cereales. MACÍAS HERNÁNDEZ, Antonio
M. – “Población, producción y precios del trigo, 1498-1560”. Anuario de Estudios Atlánticos 57 (2011), p. 330.
9
Documento dirigido al almirante y los concejos sevillanos para sacar mil cahíces de trigo de dichas
localidades el 20 de junio de 1477. Simancas, Archivo General de Simancas, Registro General del Sello,
RGS,LEG,147706,256,3.
612
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
varias: el almojarifazgo, el almirantazgo y el guarda mayor de las cosas vedadas10.
El trigo era un producto estratégico. Evidentemente una población bien alimentada
y abastecida era más poderosa y próspera, y de poder evitarse había que impedir
que las naciones enemigas se abastecieran de pan propio. Por ello, la exportación
de cereales estaba férreamente controlada por la propia corona, garante última del
mantenimiento del abastecimiento y de la prosperidad de la población; así como
del cumplimiento de los derechos y elementos jurisdiccionales de las diversas
instituciones involucradas. Pues bien, mientras que el almojarife tenía bajo su
supervisión la expedición de licencias de comercio de pan, así como de la exacción
de elementos aduaneros que afectaban, también, al flujo de la saca, el almirante
tenía potestad jurisdiccional sobre dicho negocio por vía marítima. Percibiendo,
por ello, unos derechos fijos sobre la actividad económica, así como la capacidad de
supervisarlo, mientras que fuese, por supuesto, por mar. El control y la regulación
de la saca del pan por localidades de frontera – tanto terrestre como marítima –
correspondía a su vez a otras autoridades, los guardas de la saca. Éstos se hallaban
apostados por todo el territorio y prestaban especial atención al borde con Portugal,
país con el cual había un intenso comercio, a pequeña y gran escala, de cereales11.
El almirante, por su parte, como elemento derivado de su control efectivo del
tráfico marítimo, inspección de navíos y de instalaciones portuarias, debía supervisar
y revisar la exportación del pan que se realizara dentro de su jurisdicción. Para ello,
sus agentes debían no sólo expedir licencias, sino ejercer una supervisión efectiva
del flujo comercial y penar a aquellos que se saltaran la prohibición. Sin embargo,
la escasa delimitación inter-jurisdiccional provocaba enfrentamientos comunes con
los almojarifes y los guardas de la saca. El almirante ejercía su control del tráfico
marítimo inspeccionando los navíos, los cuales debían de pagar los derechos debidos
al almirante en su llegada al puerto respectivo. Por ello, el control de las instalaciones
portuarias a través de sus agentes – criados, lugartenientes, alguaciles y subordinados
varios – era fundamental.
La institución castellano-leonesa tenía, pues, que lidiar con toda una serie de
interferencias derivadas de poderes señoriales, concejiles y privados, que buscaban
o bien evitar el pago de dichos derechos o asegurarse una exención de su pago. En
ello, el árbitro era la corona. Con respecto a la oposición nobiliaria, debe entenderse
10
En su momento fueron definidas por Isabel Montes, en un artículo de 2004, véase: MONTES,
ROMERO-CAMACHO, Isabel – “Las instituciones de la ‘saca’ en la Sevilla del siglo XV. Aproximación al
estudio de la organización institucional del comercio exterior de la corona de Castilla al final de la Edad
Media”. Historia, Instituciones, Documentos 31 (2004), pp. 417-436.
11
Flávio Miranda caracterizó esa serie de pequeñas ciudades y plazas fronterizas cuya economía estaba
profundamente interconectada con localidades castellanas. Lugares con actividad comercial, en muchas
ocasiones un tráfico de baja intensidad. Véase: MIRANDA, Flávio – “Urban economy in a ‘Kingdom without
cities’: population and exchange in late medieval Portugal”. In ANDRADE, Amélia Aguiar; COSTA, Adelaide
Millán da (eds.) – La ville médiévale en débat. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, 2013, pp. 175-184.
EL ALMIR ANTAZGO DE CASTILLA Y LA ‘SACA DE PAN’ [...]
613
que la aristocracia andaluza tenía enormes extensiones de tierras donde se producía
cereal y el reino de Sevilla, era una de las grandes zonas de producción de pan de toda
la península ibérica12. Así pues, estos nobles buscaban colocar el excedente en otros
mercados, para lo cual la solución menos costosa era el transporte marítimo, ya que
el terrestre era más lento y más caro13. Los grandes magnates intentaban de continuo
conseguir como concesión regia los derechos sobre la saca de pan. Ello no sólo
aumentaba sus ingresos al disminuir la presión fiscal sobre la actividad económica
de sus territorios, sino que también impedía el obstruccionismo de poderes externos
dentro de su área de influencia. Los puertos francos eran un gran aliciente para
mercaderes extranjeros y dentro de la competitividad regional se buscaba poseer
cualquier elemento que pudiera dar una ventaja. En la Bahía de Cádiz, villas como
Sanlúcar de Barrameda o Cádiz se disputaban la flotante población de mercaderes
estantes, buscando aumentar el volumen comercial de sus puertos ofreciendo
exenciones y ventajas fiscales y arancelarias. El impago de derechos del almirantazgo,
como el quinto de presas, los aranceles sobre la exportación o la expedición de
licencias eran una constante, en buena medida porque los grandes nobles querían
aumentar el atractivo económico de sus localidades y aumentar sus rentas.
Por otro lado, debe recordarse que el almirante tenía específicamente derechos
sobre la saca de pan14. Ello justifica los enfrentamientos con otros poderes, ya que
disminuía, por un lado, los beneficios de la venta del trigo producido y, por otro
lado, encarecía un producto ya de por sí bastante susceptible a la inflación y a los
cambios bruscos en el nivel de los precios. Sobre todo, en tiempos de carestía, cuando
había una necesidad perentoria de buscar grano en otras regiones, comprarlo y
transportarlo. Incluso, ha de tenerse en cuenta que no sólo el almirante recibía una
serie de beneficios sobre el precio de la harina, los cereales, el pan o el bizcocho,
sino que toda una serie de personajes percibían rentas concretas sobre la saca15. La
superposición de privilegios y mercedes podía llegar a encarecer gravosamente el
12
Miguel Ángel Ladero Quesada ofrece unas cifras totales concretas para finales de la Edad Media, de
1,5 a 1,65 millones de quintales de trigo anuales producidos en Andalucía, siendo más de la mitad proveniente
del reino de Sevilla, en especial de las campiñas sevillana y jerezana. Ello indica un volumen de producción
bastante considerable. La excepcional situación comercial de la región a finales del siglo XV favoreció el
crecimiento del tráfico comercial de grano. LADERO QUESADA, Miguel Ángel – Andalucía a fines de la Edad
Media. Cádiz: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Cádiz, 1999, pp. 29-35; pp. 60-94.
13
Sólo hay que ver el costo de las reparaciones periódicas que necesitaban las carreteras, que era bastante
notable. Además, los caminos eran bastante frágiles, sufriendo su curso con la acción de los fenómenos
atmosféricos. RUIZ PILARES, Enrique José – “La política viaria municipal a finales de la Edad Media (14301530): el caso de Jerez de la Frontera”. Norba. Revista de Historia 25-26 (2012-2013), pp. 207-227.
14
AZNAR VALLEJO, Eduardo – “Las rentas del almirantazgo castellano. Entre la ley y la costumbre”.
En la España Medieval 37 (2014), pp. 132-135.
15
Alfonso de Ávila, o Dávila, ganaba como escribano de la saca (en 1478) seis maravedíes por cada cahíz
de pan, trigo, cebada, centeno o semillas, y tres por cada quintal de bizcocho salido de Sevilla, MONTES,
ROMERO-CAMACHO, Isabel – “Las instituciones de la ‘saca’ en la Sevilla del siglo XV. Aproximación al
estudio de la organización institucional del comercio exterior de la corona de Castilla al final de la Edad
Media”. Historia, Instituciones, Documentos 31 (2004), p. 432.
614
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
precio final de los productos mencionados, desde el pan en sí a los cereales, pasando
por semillas y el llamado bizcocho, producto muy demandado por la armada.
2. El almirantazgo castellano y la saca de pan.
Los derechos del almirante sobre la saca de pan eran variables, dependiendo en
buena medida del momento y del volumen del comercio. Los beneficios debían ser
bastante importantes como para requerir una atención constante por parte de aquel
que ocupara dicha dignidad y, sobre todo, de sus subordinados jurisdiccionales, los
lugartenientes16. Probablemente, fuera el derecho más importante de la institución
junto con el porcentaje percibido por el quinto real de las presas tomadas en la mar17.
El nombramiento de Rodrigo Álvarez de la Becerra como lugarteniente de almirante
llevó asociados una serie de documentos, entre 1455 y 1456, en los cuales hay una
mención de la saca de pan. Como puede observarse en la toma de posesión por parte
del citado arrendador, en presencia de Alonso de Valladolid, criado del almirante, y
de varios otros personajes, incluyendo Antonio Spínola y Pedro Ferrández de Casino,
mercader estante y vecino de la ciudad; ambos de orígenes genoveses. El documento
adjunta una carta del propio almirante, Fadrique Enríquez:
(…) para que podades reçibir e recabdar en my nombre e para my según
dicho es qualesquier derechos que a my pertenesia asy de maravedíes e de
mercaderías e pan e moros e otras cosas por rason del dicho my ofiçio de
almyrantazgo e me pertenese por razon de la saca del pan que se ha sacado
fasta aquí commo de lo que se sacare de aquí adelante fuera de reyno
con todas las penas e calomnyas en que sea caydo e incuirrido e cayere e
yncurriere de aquí adelante por rason de la dicha saca e qualesquier otros
derechos que a my pertenecen e pertenesian (…)18
La carta de poder del magnate castellano a su criado, Alonso de Valladolid,
destaca los elementos principales de las rentas del almirantazgo: las presas de la mar,
de las cuales posee legalmente el quinto, o un porcentaje de él, las cosas vedadas y
la saca del pan. En el caso que se sacase sin licencia que se persiguiera al infractor
y se le obligara a pagar una multa correspondiente al delito. El impago de licencias
equivalía a una vulneración de los derechos jurisdiccionales del almirantazgo, algo
16
AZNAR VALLEJO, Eduardo –“Las rentas del Almirantazgo castellano. Entre la ley y la costumbre”.
En la España medieval 37 (2014), pp. 132-135.
17
Los quintos de presas y los beneficios asociados aumentaron progresivamente en importancia a
lo largo del siglo XV por su peso comparativo dentro del total. AZNAR VALLEJO, Eduardo – “Las rentas
del Almirantazgo castellano. Entre la ley y la costumbre”. En la España medieval 37 (2014), pp. 135-146;
CALDERÓN ORTEGA, J. M. – El Almirantazgo de Castilla: Historia de una institución conflictiva. Alcalá de
Henares: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Alcalá de Henares, 2003, pp. 271-277.
18
Sevilla, Archivo General de Andalucía, Archivo de la Casa Ducal de Alba, Fondo del Almirante, C. 58.
EL ALMIR ANTAZGO DE CASTILLA Y LA ‘SACA DE PAN’ [...]
615
que su titular no deseaba.
Un episodio muy significativo de intento de burlar la jurisdicción del almirante
en la saca de pan es del 5 de mayo de 1528. Hernando de Zayas, criado de Fadrique
Enríquez, almirante de Castilla y de Granada, y su lugarteniente, Pedro de Soria,
requieren al tesorero mayor de Rodrigo Ponce de León, el pago “de todos los derechos
en quasquier manera le pertesian e pertenece (…) del pan que por el puerto desta
villa de Rota (…)” fuese exportado, que el duque de Arcos y marqués de Zahara
había conseguido evitar “de seys annos a esta parte”. Literalmente el noble andaluz
no había pagado ni un sólo maravedí al almirante por todos los cereales que se
habían embarcado en el puerto gaditano19. El duque de Arcos no tenía privilegio
de exención de dicho pago, con lo cual su impago era una ilegalidad. Simplemente,
estaba buscando evitar la intervención de otro noble en sus estados y, seguramente,
no encarecer los costes de dicho tráfico comercial. En 1483 los monarcas ya habían
ordenado al abuelo del I duque de Arcos, el marqués de Cádiz, que pagase los
derechos sobre la saca del pan de sus posesiones y también que se asegurara de que
los pagos se hicieran correctamente en su área de influencia. En aquella ocasión el
almirante Alonso Enríquez de Quiñones envió a un apoderado, Alonso de Xeres,
para reclamar dicho impago y regularizar la situación20. Ambos documentos son un
ejemplo revelador de la fuerte oposición señorial al pago de una serie de derechos
que eran considerados intrusivos. Debe considerarse además que el comercio de
grano en la zona era bastante próspero. Otro señor regional que estaba involucrado
en el comercio de grano andaluz era el duque de Medinaceli, que tenía por señorío
el Puerto de Santa María, en la Bahía de Cádiz. En 1477, el 9 de julio, en la ciudad de
Sevilla, los Reyes Católicos enviaban una carta a petición de Luis de la Cerda para
que se le consintiera a éste, por parte del almirante, sacar trigo de sus propiedades
agrícolas en dicho señorío21.
En 1513 encontramos otra carta, un tercer ejemplo a otro de los grandes señores
de la región, el duque de Medina Sidonia22, por la cual se prohíbe que ni él mismo,
19
Carta de pago otorgada en nombre del almirante Fadrique. Toledo, Archivo Histórico de la Nobleza,
Fondo de Osuna, OSUNA,C.183,D.82-83.
20 El documento es del 25 de octubre de 1483 y fue expedido en la ciudad de Vitoria. Hace referencia a
los derechos de la saca de pan en los puertos de Andalucía. Simancas, Archivo General de Simancas, Registro
General del Sello, RGS,LEG,148310,22.
21
Simancas, Archivo General de Simancas, Registro General del Sello, RGS,LEG,147709,510.
22
La casa de Medina Sidonia, era la más rica del reino de Sevilla, por la entidad de sus posesiones.
Claramente la capacidad productiva y económica de unos señoríos tan numerosos era considerable. El duque
no sólo deseaba sacar pan –por ejemplo, de Niebla hacia Melilla- y otras mercancías sin pago de licencias o
aranceles, sino que además buscaba asentar su hegemonía sobre la ciudad hispalense y su reino. Teniendo
ello en cuenta el almirantazgo, bien asentado en la cabecera del dicho territorio, era un estorbo para ambas
cuestiones. Algunos de los duques, como Juan Alonso Pérez de Guzmán tenían un fuerte interés en incrementar
la prosperidad de sus estados. Véanse: MORENO OLLERO, Antonio – “Moreras, caña de azúcar y pastel:
Los proyectos del duque de Medina Sidonia en el siglo XVI”. Andalucía en la Historia 58 (2017), pp. 36-41;
PAREJO FERNÁNDEZ, Luis. – “Los intereses de Sevilla sobre el almojarifazgo de Sanlúcar (1297-1645)”. In
616
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
ni sus gobernadores, ni sus factores (sus subordinados directos) saquen pan de sus
posesiones, como eran el condado (de Niebla) o Sanlúcar de Barrameda, cabeza de
sus posesiones andaluzas23. Los Guzmanes buscaban evitar el pago de derechos al
almirante – no sólo por el pan, sino también los quintos y las cosas vedadas – en sus
posesiones desde la primera mitad del siglo XV – en 1445 habían llegado a ordenar
un asalto a la casa del lugarteniente de almirante, llevándose dinero, documentos
y mercaderías –, mayormente cuando estaban expandiendo y consolidando su
influencia en el occidente andaluz.24 De hecho, Juan de Guzmán, I duque de Medina
Sidonia, y su hijo Enrique de Guzmán, consiguieron en tiempos del pretendido
rey Alfonso, hermano de Isabel la Católica, derechos sobre la saca de pan de las
posesiones ducales. El 9 de junio de 1467, el príncipe-rey Alfonso hacía merced
a Enrique de Guzmán de las tercias del pan de Sanlúcar, Trebujena, Condado de
Niebla, Almonte, Huelva y Medina Sidonia con sus términos25. La enorme extensión
de las concesiones, lógicas teniendo en cuenta que Alfonso contaba con el apoyo
del duque, no pervivieron más allá de los turbulentos años finales del reinado de
Enrique IV. Pero, sí que sobrevivió la intencionalidad, equiparable a la persistencia
en el impago de los Ponce de León, por parte de los sucesivos duques de Medina
Sidonia de intentar que sus puertos fueran francos o al menos eximirse del pago al
almirante26.
En ocasiones los agentes del almirantazgo cometían irregularidades o se
excedían en sus funciones. Algo que ocasionaba las quejas de los concejos y de
los mercaderes. Lo cual es totalmente comprensible, ya que los derechos del
almirantazgo de por sí eran considerados una imposición opresiva que encarecía
y dificultaba el tráfico mercantil de ciudades como Sevilla. Por ejemplo, el concejo
llegó a enviar una carta en 1479 al almirante Alonso Enríquez de Quiñones sobre el
IGLESIAS RODRÍGUEZ, Juan José; PÉREZ GARCÍA, Rafael; FERNÁNDEZ CHAVES, Manuel Francisco
(eds.) – Comercio y cultura en la Edad Moderna, Vol. 2. Sevilla: Universidad de Sevilla, 2015, pp. 660-662;
MORENO OLLERO, Antonio; FRANCO SILVA, Alfonso –“Datos sobre el comercio del puerto de Sanlúcar
de Barrameda en el primer tercio del siglo XVI”. In Hacienda y comercio: actas del II coloquio de Historia
Medieval Andaluza. Sevilla: Diputación Provincial de Sevilla, 1982, pp. 283-296;
23
Sevilla, Archivo General de Andalucía, Archivo Ducal de la Casa de Alba, Fondo del Almirante, C.
78-24.
24
El mandato de Juan de Guzmán para registrar las casas del almirantazgo nos remite a un episodio
durante el cual el lugarteniente de almirante Diego Álvarez de la Becerra tuvo un encuentro con los agentes del
magnate castellano, liderados por Pedro de Xeres, que ordenaba el registro de dichas casas en busca de ciertos
documentos y un monto de dinero. Sevilla, Archivo General de Andalucía, Archivo de la Casa Ducal de Alba,
Fondo del Almirante, C. 77-44.
25
ANASAGASTI VALDERRAMA, A. Mª.; RODRÍGUEZ LIÁÑEZ, L. – Niebla y su tierra en la Baja
Edad Media: historia y documentos. Huelva: Diputación de Huelva, Servicio de Publicaciones, 2006, p. 803-804.
26
El comercio de grano tenía un peso específico para el duque, ya que este poseía las tierras más
productivas en la zona. En 1509 los Guzmán obtenían 3.794 fanegas de trigo y 1.608 de cebada de sus
propiedades en torno a Sanlúcar, un tercio de la producción del mismo. Generalmente dicho trigo era
exportado o usado para abastecer las fortalezas del duque. No es de extrañar intentara sustraerse de la
jurisdicción del almirantazgo. NAVARRO SAINZ, José María – “Aspectos económicos de los señoríos de los
duques de Medina Sidonia a principios del siglo XVI”. Huelva en su historia 2 (1988), pp. 321-325.
EL ALMIR ANTAZGO DE CASTILLA Y LA ‘SACA DE PAN’ [...]
617
asunto de la saca del pan27. Debe considerarse que las mercancías al salir de la ciudad
de Sevilla, siguiendo el ejemplo, tenían que pagar derechos arancelarios, incluyendo
el portazgo, con lo cual la necesidad de expedir una licencia podía llegar a ser una
obligatoriedad dolosa28. La consecuencia más grave y más conocida de las quejas y
problemas en torno a la saca de pan y del almirantazgo es la revuelta de Málaga. El
alzamiento de la población malagueña no sólo anuló la influencia de la institución en
la ciudad, sino que extendió un descontento cerval y generalizado al almirante y sus
agentes por todo el reino de Granada y parte del de Castilla, con las grandes ciudades
sintiéndose agraviadas por los impuestos que habían de pagar sobre el precio del pan
al susodicho Fadrique Enríquez de Cabrera. Una revuelta violenta que conllevó la
destrucción de la sede del almirantazgo en Málaga y la expulsión del lugarteniente
de la ciudad29.
La insistencia recurrente del almirante en el respeto a sus derechos es debida
a que, frecuentemente, estaban intrínsecamente unidos: el impago de unos solía
ir acompañado del impago de otros, como el tercio del quinto real. Así que, el
incumplimiento de alguno de ellos solía conllevar un dominó de delitos contra la
jurisdicción del almirantazgo. Debe tenerse en cuenta que disputaban con grandes
poderes regionales. También se debe considerar, que la mayor parte de dichas
cuestiones están relacionadas con la Andalucía Occidental porque éste era el gran
punto comercial del reino castellano-leonés, enhebrando las rutas atlánticas con
las mediterráneas. Lo cual, por otra parte, favorecía que fuera la zona donde más
numerosas fueron las infracciones con respecto a la saca de pan, ya que el volumen
mercantil favorecía la proliferación del fraude fiscal y el impago de los derechos
del almirante. Hay que tener en cuenta que, pese al tenor de las órdenes regias al
respecto, ello no es sino una respuesta a los intensos flujos con las consideradas
coronas enemigas, sobre todo Portugal y Granada30.
27
La carta, en concreto, fue a petición del Marqués de Cádiz, Rodrigo Ponce de León. Sevilla, Archivo
General de Andalucía, Archivo Ducal de la Casa de Alba, Fondo del Almirante, C. 77-82.
28
El Padrón del Portazgo, idéntico para las ciudades de Sevilla y Toledo, contiene 124 referencias
fiscales, lo cual nos explicita lo complejo y extenso de los derechos arancelarios sobre las mercancías sacadas
de una villa de las características de Sevilla. Debía pagarse, por ejemplo, por mercancías traídas de tierras
musulmanas, el diezmo de los bajeles, el diezmo aduanero y el portazgo. GONZÁLEZ ARCE, J.D. – “Las rentas
del almojarifazgo de Sevilla”. Studia histórica. Historia medieval 15 (1997), pp. 145-154.
29
CALDERÓN ORTEGA, José Manuel – “El almirantazgo de Granada (1512-1538): una historia
conflictiva”. Revista de Historia Naval 92 (2003), pp. 7-50; CRUCES BLANCO, E.; LÓPEZ DE COCA
CASTAÑER, J. E.; RUIZ POVEDANO, J. M. – Málaga y el almirantazgo mayor del reino de Granada (15101538). Málaga: Fundación Unicaja, 2017.
30
Pese a que motivos ideológicos o políticos clausuraran las fronteras o entorpecieran el flujo marítimo
es indudable que había un considerable tráfico comercial y que ambos mercados tenían un gran interés tanto
para los comerciantes castellanos como portugueses. Véanse: LOBO CABRERA, Manuel – “El comercio de
cereales entre Tenerife y Portugal en el primer tercio del siglo XVI”. Arquipiélago 1 (1997), pp. 65-83; GARCÍA
PORRAS, Alberto; FÁBREGAS GARCÍA, Adela – “Genoese trade networks in the sourthen Iberian península:
trade, transmission of technical knowledge and economic interactions”. Mediterranean Historical Review 25
(2010), pp. 35-51; MALPICA CUELLO, Antonio; FÁBREGAS GARCÍA, Adela – “Los genoveses en el reino de
618
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
3. El comercio de cereal con Portugal. Un flujo difícil de regular.
El tráfico de grano entre Castilla y Portugal – tanto por vía terrestre como marítima
– está constatado como una cuestión recurrente. Pese a la paulatina expansión
agrícola portuguesa durante la Edad Media las condiciones climáticas y geográficas
del país dificultaban el abastecimiento31. Así como fueron constantes los pleitos que
dicho comercio de cereales ocasionaba para los infractores en tiempos de conflicto
o fricción entre los monarcas de uno u otro reino. Ha de tenerse en cuenta que las
fronteras políticas en muchas ocasiones no representan una división real: el Alentejo
y la Extremadura castellana, por ejemplo, están en perpetua conexión32. No es una
frontera “violenta” como la habida con el reino nazarí de Granada – aunque hubo
largos períodos de paz entre ambas monarquías –, sino una permeable, donde
poblaciones e individuos interactúan continuamente. La frontera marítima entre
ambos reinos, Castilla y Portugal, también es una zona de constante encuentro, y
la interrelación del Algarve con Andalucía es profunda33. Así pues, pese a que los
guardas de la saca procuraban limitar el tráfico comercial sin licencias, este comercio,
en ocasiones de muy baja intensidad, era muy difícil de regular34. Simplemente, la
interconexión de los ámbitos económicos luso-castellano hacía muy difícil limitar
Granada y su papel en la estructura económica nazarí”. In GALLINARI, Luciano (ed.) – Genova: la ‘Porta’ del
Mediterraneo. Genova: Brigati, Istituto di Storia dell’Europa mediterránea, 2005, pp. 227-258.
31
Véanse: RAU, Virgínia –“A grande exploração agraria em Portugal a partir dos fins da Idade Média”,
Revista de História 30, 61, (1965), pp. 65-74; MARQUES, A. H. de Oliveira – Introdução à História da
agricultura em Portugal. A questão cerealifera durante a Idade Média…, pp. 33-60.
32
Las villas fronterizas de Portugal dependían económicamente no sólo de la producción ganadera y
agrícola de su entorno, sino también del comercio con Extremadura, Castilla y Galicia. MIRANDA, Flávio –
“Urban economy in a ‘Kingdom without cities’: population and exchange in Late Medieval Portugal…”, pp.
179-182; SERRÃO, Joaquim Veríssimo. – História de Portugal. Vol. II: (1415-1495). Lisboa: Verbo, 2003, pp.
286-291; SERRÃO, Joaquim Veríssimo. –História de Portugal, Vol. III: (1495-1580). Lisboa: Verbo, 2001, pp.
322-328.
33
Las ciudades del Algarve tenían con frecuencia crisis de abastecimiento. Las villas portuarias
andaluzas solían ser el mercado en el cual se compraba el cereal necesario para alimentar lugares como Faro,
Tavira o Portimão. Puertos que además formaban una red urbana profundamente interconectada económica,
social y políticamente desde su conquista y la reorganización del reino por D. Dinis. SILVA, Gonçalo Melo da
–“Alimentar la red urbana: las villas y ciudades portuarias del Algarve y el abastecimiento cerealista a finales
de la Edad Media”. RIPARIA, Suplemento 2: Paisajes y redes portuarias en el Golfo de Cádiz (siglos XII-XVI)
(2019), pp. 220-236; SILVA, Gonçalo Melo da – “A Coroa, as vilas e o mar: a rede urbana portuária do Algarve
(1266-1325)”. In COSTA, Adelaide Millán da; ANDRADE, Amélia Aguiar; TENTE, Catarina (eds.) – O papel
das pequeñas ciudades na construção da Europa Medieval. Castelo de Vide: Instituto de Estudos Medievais,
Câmara Municipal de Castelo de Vide, 2017, pp. 558-566.
34
El fraude estaba muy extendido. Muestra de ello la disputa (recogida en una pesquisa de 30/5/1486)
entre Juan de Villalobos, guarda de la saca, y Juan de Villafuerte, alcalde de Cardón que llevaba acémilas
con trigo a Portugal sin licencia. O el poder (27/8/1486) expedido a Juan de Villalón, alcalde de la Hinojosa,
para que cortara el flujo de grano al país vecino. Diego Mudarra recibió orden de la corona de informar
sobre dicho comercio ilícito (9/1/1495). Simancas, Archivo General de Simancas, Registro General del Sello,
RGS,LEG,148605,212; RGS,LEG, 148608,65; RGS,LEG,148605,76.
EL ALMIR ANTAZGO DE CASTILLA Y LA ‘SACA DE PAN’ [...]
619
por completo el comercio entre ambos países, especialmente en zonas fronterizas.35
Se constata un tráfico marítimo entre Portugal y Castilla, y hay noticias de
cargamentos de cereales andaluces hacia el Algarve o hacia las plazas norteafricanas
– Ceuta, Arcila, Tánger –, que, teniendo un hinterland insuficiente para proveerlas
necesitaban de la exportación de pan para mantenerse. Una de las causas del
proverbial sangrado que provocaba el mantenimiento de estas ciudades, según
opinaba el infante-regente Pedro de Portugal en la misiva dirigida a su hermano,
Don Duarte, escrita en Brujas entre diciembre y abril de 142636. El Algarve sufría
periódicas crisis de abastecimiento, debiendo traerse pan de fuera del reino37. Todo
ello pese a que dicho comercio frecuentemente contara entre las cosas vedadas
por la rivalidad entre portugueses y castellanos durante el siglo XV38. Relaciones
comerciales que, en el lado castellano-leonés de la frontera marítima, debían de
ser supervisadas por el almirante y su lugarteniente situado en tierras andaluzas
occidentales, particularmente en Sevilla; que por otra parte albergaba todas las
grandes instituciones que se ocupaban de la saca del pan. Así pues, las necesidades de
unas regiones u otras y las propias dinámicas internas del comercio dificultaban en
sobremanera la regulación de un negocio de tanta intensidad entre ambas coronas.
También explica la recurrente búsqueda por parte de las ciudades del entorno de
convertirse en puertos francos y privilegiados que no pagasen derechos arancelarios
y de exportación al almirante
35
El comercio terrestre entre el Alentejo y la Extremadura castellana es bastante intenso. Y no se
interrumpía totalmente ni siquiera en tiempos de guerra. MEDRANO FERNÁNDEZ, Violeta – “El comercio
terrestre castellano-portugués a finales de la Edad Media: infraestructuras de apoyo a la actividad comercial y
mercaderes”. Edad Media. Revista de Historia 8 (2007), pp. 332-336; MEDRANO FERNÁNDEZ, Violeta – “El
contrabando de Castilla a Portugal al final de la Edad Media”. In ÁVILA SEOANE, Nicolás (ed.) – Cultura y
mentalidades: de la Antigüedad al siglo XVII (Nuevas Investigaciones). Madrid: Castellum, 2007, pp. 137-167.
36
AA.VV. – Monumenta Henricina. Vol. I. Coímbra: 1960, Comissão Executiva das Comemorações do
V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, p. 148. La posesión de las villas africanas era vista como un
triunfo político e ideológico de la Casa de Avís, pero eran costosísimas de mantener. GOMES, Saul António
– D. Afonso V. Lisboa: Círculo de Leitores, 2018, pp. 177-197; FONSECA, Luís Adão da – D. João II. Lisboa:
Círculo de Leitores, 2018, pp. 24-34; BARROS, Amândio – “A preparação das armadas no Portugal de finais
da Idade Média”. Revista da Faculdade de Letras. Historia 7 (1990), pp. 106-110.
37
Gonçalo Melo da Silva, quien hace una extensa recopilación de las fuentes documentales sobre la
cuestión en: SILVA, Gonçalo Melo da – “Alimentar la red urbana: las villas y ciudades portuarias del Algarve
y el abastecimiento cerealista a finales de la Edad Media”. RIPARIA, Suplemento 2: Paisajes y redes portuarias
en el Golfo de Cádiz (siglos XII-XVI) (2019), pp. 231.
38
Acerca de las relaciones entre Portugal y Castilla en el siglo XV, enturbiadas por los conflictos políticos
y rivalidad constante en el escenario atlántico, véanse: GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel – “Las relaciones entre
Portugal y Castilla en el siglo XV (1411-1474)”. In RIBOT GARCÍA, Luis Antonio; CARRASCO MARTÍNES,
Adolfo; FONSECA, Luís Adão da (coords.) – El Tratado de Tordesillas y su época, Vol. 2. Valladolid: Junta
de Castilla y León, Sociedad V Centenario del Tratado de Tordesillas, 1995, pp. 781-792; MARQUES, José
– Relações entre Portugal e Castela nos finas da Idade Média. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994;
OLIVERA SERRANO, César – “Portugal y Castilla entre la paz y la guerra durante el siglo XV”. In ARRANZ
GUZMÁN, Ana; RÁBADE OBRADÓ, María del Pilar; VILLARROEL GONZÁLEZ, Óscar (coords.) – Guerra
y paz en la Edad Media. Madrid: Sílex, 2013, pp. 375-400.
620
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Conclusiones.
Teniendo en cuenta la información recogida en el presente estudio, se puede por
todo ello inferir que el papel del almirante en la saca y el comercio del pan era de
todo menos secundario. Aunque no fuese determinante y estuviese frecuentemente
alienado o limitado, sí que los agentes del almirantazgo tuvieron un rol importante en
la supervisión de uno de los comercios más estratégicos de la monarquía castellanoleonesa a finales de la Edad Media. La saca del pan era muy importante para en
el abastecimiento urbano, supliendo las deficiencias de la producción local, con lo
cual todo elemento que fuera partícipe de dicha cuestión debe ser tenido en cuenta.
La debilidad estructural del almirantazgo en numerosas ocasiones disminuye
la incidencia real de la imposición de derechos, aunque estos debieron de ser lo
suficientemente gravosos como para que protagonizaran toda una serie de quejas y
pleitos con nobles, mercaderes y otras instituciones, incluyendo concejos como el de
Málaga o el de Sevilla. También demuestra que únicamente a través de la corona y
con su apoyo puede la institución aplicar esta serie de derechos sin estorbo, ya que el
nivel de mediatización de estas cuestiones es elevado, sobre todo por la multiplicidad
de privilegios, exenciones, franquicias e incluso fraudes e impago que existieron en
dichos años en Andalucía.
Sin duda alguna, esta es una cuestión únicamente aplicable al reino de Sevilla,
exacerbada por la presencia del almirante y por la proximidad a dos reinos en
frecuente disputa con los castellanos: Portugal y Granada. Frecuentemente, la saca
del pan a estos países era limitada por razones estratégicas y/o ideológicas. Pero,
también con recurrencia las prohibiciones eran saltadas y las licencias expedidas
por el almirante ignoradas, ante lo jugoso del volumen comercial de la exportación
de cereales. También, ofrece un buen ejemplo de la aplicación real de la teórica
jurisdicción del almirantazgo castellano-leonés y de cómo el almirante gestionaba sus
derechos y rentas en el sur peninsular, mediante el empleo sucesivo de apoderados,
criados y arrendatarios. Así como, muestra que el irregular desempeño de éstos
afectó al cobro de dichas tasas y en ocasiones. Ya que una incorrecta gestión de
dichos elementos jurisdiccionales desembocó en un menoscabo de dichas rentas y a
una mayor oposición por parte de nobles con influencia regional, concejos e incluso
individuos privados. La existencia de menciones a multas y la continua insistencia
del almirante y sus agentes al respecto es paradigmática.
En numerosas ocasiones, simple y llanamente, era la corona directamente
quien se encarga de gestionar dichas cuestiones, ante lo problemático de la cuestión,
poniendo orden en las frágiles relaciones del almirante con los diversos elementos
que se oponían a su jurisdicción. Así pues, se puede aseverar que el almirante tuvo un
papel importante, si bien no esencial ante lo mediatizado de la realidad de finales del
EL ALMIR ANTAZGO DE CASTILLA Y LA ‘SACA DE PAN’ [...]
621
siglo XV, en la saca del pan. Y, por ello, en el abastecimiento y el comercio de grano
marítimos, mediante la expedición de licencias y el control de las cosas vedadas,
pudiendo influir en la naturaleza y la cuantía de los flujos comerciales del momento.
El apoyo de una corona, reforzada en sus atribuciones y autoridad, durante el reinado
de los Reyes Católicos, permitió una influencia superior de la debida a un gran noble
castellano –rentista y absentista-, en un sur peninsular donde realmente estaba
realizándose dicho comercio, los fraudes consiguientes y la supervisión de dicho
tráfico.
622
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL
Apoio: