Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                
ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Provisioning Medieval European Towns IEM – Instituto de Estudos Medievais Coleção ESTUDOS 22 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Provisioning Medieval European Towns Amélia Aguiar Andrade Gonçalo melo da Silva editores Lisboa, 2020 Textos selecionados das IV Jornadas Internacionais de Idade Média “Abastecer a Cidade na Europa Medieval” (Castelo de Vide, de 10 a 12 de Outubro de 2019) e da Escola de Outono (Castelo de Vide, 8 e 9 de Outubro de 2019 ). Arbitragem Científica: Adelaide Millán da Costa (Universidade Aberta) Antonio Collantes de Terán (Universidade de Sevilha) Beatriz Arizaga Bolumburu (Universidade de Cantábria-Santander) Catarina Tente (Universidade Nova de Lisboa) Denis Menjot (Universidade Lyon 2) Dolores Villalba Sola (Universidade de Granada) Emilio Martín Gutiérrez (Universidade de Cádiz) Eduardo Aznar (Universidade de La Laguna) Hermenegildo Fernandes (Universidade de Lisboa) Hermínia Vilar (Universidade de Évora) Isabel del Val Valdivieso (Universidade de Valladolid) João Luís Fontes (Universidade Nova de Lisboa) Jonathan Wilson (Instituto de Estudos Medievais, NOVA FCSH) Luísa Trindade (Universidade de Coimbra) Manuel Fialho Silva (Centro de História da Universidade de Lisboa) Manuela Santos Silva (Universidade de Lisboa) María Asenjo González (Universidade Complutense de Madrid) Maria Filomena Barros (Universidade de Évora) Maria Helena da Cruz Coelho (Universidade de Coimbra) Mário Farelo (Universidade Nova de Lisboa) Mário Jorge Barroca (Universidade do Porto) Michel Bochaca (Universidade de La Rochelle) Pere Verdes Pijuan (Institución Millá y Fontanals (CSIC)) Santiago Macías (Universidade Nova de Lisboa) Sara Prata (Instituto de Estudos Medievais, NOVA FCSH) Sauro Gelichi (Universidade Ca’Foscari Veneza) Wim Blockmans (Universidade de Leiden) O Instituto de Estudos Medievais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVA FCSH) é financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito do Projecto UID/ HIS/00749/2020. Publicação financiada pela Câmara Municipal de Castelo de Vide. Título Editores Edição Imagem de capa Coleção ISBN Paginação e execução Revisão Depósito legal Impressão Abastecer a Cidade na Europa Medieval | Provisioning Medieval European Towns Amélia Aguiar Andrade, Gonçalo Melo da Silva IEM – Instituto de Estudos Medievais / Câmara Municipal de Castelo de Vide Muralha da vila de Castelo de Vide, fotografia de Eduardo Alves © Estudos 22 978-989-54529-2-7 (IEM) | 978-972-9040-17-7 (C. M. de Castelo de Vide) Marcel L. Paiva do Monte, com base no design de Ana Pacheco Mariana Alves Pereira 474746/2020 Tipografia Priscos, Lda. Índice Apresentação ............................................................................................................. 11 António Pita Abastecer a cidade na Europa medieval: algumas reflexões em torno de um colóquio, de um livro e de um tema ........................................................... 13 Amélia Aguiar Andrade, Gonçalo Melo da Silva PARTE I A Intervenção dos Poderes The Intervention of Powers Strange Cities on the Waters: North Adriatic settlements between 7th–9th centuries AD................................................................................................... 23 Sauro Gelichi Some problems about urban transitions in 12th and 13th Iberia .......................... 37 Hermenegildo Fernandes Ciudades y procesos de “agrarización” en Andalucía Occidental durante el siglo XV.................................................................................................... 63 Emílio Martín Gutiérrez Lisboa e o abastecimento de vinho para Ceuta na primeira metade do século XV .......................................................................... 91 José Miguel Zenhas Mesquita Do cultivo ao consumo: o abastecimento de cereal na Gafaria de Coimbra nos séculos XIV e XV ................................................... 111 Ana Rita Rocha O abastecimento alimentar da cidade em finais do século XIV: o contributo do Livro das Posturas Antigas de Évora ....................................... 129 Rodolfo Petronilho Feio PARTE II Gerir Crises e Conflitos no Abastecimento Managing Crises and Conflicts in Supply Defender la ciudad medieval contra el hambre: abastecimiento y políticas anonárias.................................................................... 151 Denis Menjot 8 Uma pequena cidade medieval e o seu pão na Baixa Idade Média: o caso de Loulé .................................................................. 179 Iria Gonçalves El abastecimiento cerealista de Manresa durante la hambruna de 1333-1334 ..................................................................... 215 Adrià Mas i Craviotto A luta pelo controlo do abastecimento e repartição da carne e do peixe na cidade de Braga nos séculos XIV e XV .......................................................... 237 Raquel Oliveira Martins Del mar Cantábrico a la meseta castellana. Las dificultades de los mercaderes de las Cuatro Villas de la Costa en la distribución del pescado en el norte de Castilla a finales de la Edad Media .............................................. 253 Javier Añíbarro Rodríguez Problemas en el abastecimiento del pescado en la meseta meridional castellana a finales de la Edad Media ............................................... 271 Julián Sánchez Quiñones PARTE III Ao Gosto da Cidade: Matérias-Primas e Produtos To the Taste of the City: Raw Materials and Products Provision in Medieval Rome: data on the building activities ........................... 295 Nicoletta Giannini Matérias-primas para o Paço da Alcáçova: a intervenção régia num Paço lisboeta (1507-1513) ...................................................................................... 309 Diana Martins Provisioning the building sites of the mendicant convents in Auvergne (Realm of France) in the Middle Ages (early 13th-early 16th centuries) .......... 329 Claire Bourguignon Abastecer um estaleiro construtivo: O exemplo do Colégio da Graça (1543–1548) .............................................................................. 347 João Paulo Graça Pontes A louça quotidiana e identidade social em Santarém na Idade Média (séculos XI-XIV) ..................................................................................................... 365 Tânia Manuel Casimiro; Carlos Boavida; Telmo Silva 9 PARTE IV Espaços, Equipamentos e Rostos do Abastecimento Spaces, Infrastructure, and Faces of Supply Espaços e arquiteturas de abastecimento da cidade medieval .......................... 383 Maria do Carmo Ribeiro Las alhóndigas. Análisis de una nueva arquitectura civil. Importancia de su implantación en las ciudades de Castilla y León en el siglo XVI ................ 403 José Miguel Remolina Seivane Moleiros, moinhos e azenhas no Porto nos séculos XIV e XV: um setor-chave do abastecimento cerealífero urbano ....................................... 423 Arnaldo Melo O armazenamento e a gestão dos recursos nas cidades do Gharb al-Andalus: o exemplo de Alcácer do Sal ................................................ 449 Marta Leitão As estruturas de produção e armazenamento da vila medieval de Sesimbra .............................................................................................................. 467 Rui Filipe Gil; Rafael Santiago Os mercadores e os mesteres na paisagem urbana do século XV: o contributo da documentação notarial vimaranense ....................................... 483 André Moutinho Rodrigues “quallquer […] rregateira que conprar quaaesquer mantjmentos em quaisquer lugarees”: o papel das regateiras no abastecimento alimentar urbano..................................................................................................... 497 Mariana Alves Pereira PARTE V Tempos de comércio: mercados e feiras, fiscalidade e moeda Times of Trade: Markets, Fairs, Taxation, and Money Na Lisboa de D. João I (1385-1433): fiscalidade régia e abastecimento .......................................................................................................... 511 Catarina Rosa El diezmo de los trigos del cabildo catedralicio del Reino de Mallorca: estructura y recaudación (1400-1420) ................................................ 527 María del Camí Dols Martorell The Crown, Towns and Currency: The Constitutional Restraint of Coinage in León and Castile, 1157-1230 ............................................................. 551 James Todesca Entre o abastecimento da vila e o comércio regional: feiras mensais e quinzenais na Idade Média Portuguesa ............................................................... 573 Paulo Morgado e Cunha Vegetais nos mercados do Ġarb al-Andalus. Entre os tratados agronómicos e a arqueo-botânica (séculos X-XIII).. ................................................................. 589 António Rei La saca de pan y el almirantazgo castellano: jurisdicciones, conflictos institucionales y tensiones sociales....................................................................... 607 Lorenzo Lage Estrugo Apresentação “A Arte é tudo – tudo o resto é nada. Só um livro é capaz de fazer a eternidade de um povo.” Eça de Queirós in “A Correspondência de Fradique Mendes.” Com esta quarta publicação dos artigos produzidos no âmbito das Jornadas Internacionais de Idade Média, as quais, desde 2016, ininterruptamente, se têm vindo a realizar nesta Notável Vila, reforça-se a firmeza do compromisso assumido entre a Câmara Municipal de Castelo de Vide e o Instituto de Estudos Medievais, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Na realidade, as vivências e a oralidade intrínsecas à realidade presencial própria dos dias em que se desenrolam as Jornadas, caraterizam-se por terem um sabor insubstituível, tão específico do inigualável prazer que brota do diálogo nas relações entre seres humanos. E, por assim ser, contamos mentalmente os meses que faltam para mais um reencontro anual neste espaço-projeto, onde, entre a riqueza das apresentações pluridisciplinares e os profícuos debates em diferentes línguas, há sempre um intervalo para desfrutar do tempo – deste tempo denso e sedimentado que só as terras fundadas na Idade Média possuem. É, pois, nesta atmosfera plácida e tranquila, entre prenúncios de outono, que esta Notável Vila (onde nasceu Garcia de Orta, Mouzinho da Silveira, Laranjo Coelho e Salgueiro Maia), sente o orgulho de ser palco desta feliz cooperação entre Academia, Universidade e Poder Local, cujos resultados, ano após ano, subsidiam indelevelmente o conhecimento histórico. De facto, por um lado, é neste ambiente telúrico e de entusiasmo que decorrem as Jornadas da Idade Média, sentindo-se a riqueza intrínseca na descontraída interação entre investigadores, alunos e colaboradores – e ainda com o próprio lugar! Um espaço de experiências, de reflexões, de diferentes abordagens, de distintas perspetivas, que em sala, nos corredores ou no jardim, resulta em enriquecimento dos participantes e alimenta a harmonia entre medievalistas. Contudo, será sempre através da forma de LIVRO que o conhecimento transcrito ganha garantias da sua perenidade, na medida em que essa materialidade substantiva ultrapassa as coordenadas do Tempo 12 e dos Lugares, cumprindo assim (ainda) a sua primordial missão de transmissão do saber entre as sociedades. Por cada ano que passa, e verificando-se a continuidade deste projeto, cresce o orgulho de Castelo de Vide, na medida em que, embora participando de forma muito modesta mas muito empenhada, cumpre e faz jus ao compromisso formal e público assumido desde a primeira hora: “proporcionar as condições necessárias para que Castelo de Vide, durante longos e frutuosos anos, se afirme como um fórum de discussão entre investigadores que tragam luz sobre os infindos mistérios que envolvem a cidade medieval europeia!” Porém, há no tempo presente uma ameaça latente que rasga o planeamento e torna a decisão sobre a realização da iniciativa depender da realidade circunstanciada quase ao dia. De facto, no momento em que estas linhas são escritas importa sublinhar o período verdadeiramente excecional em que vários países do mundo, e particularmente Portugal, estão assolados pela pandemia COVID-19, cuja evolução e desfecho a ciência ainda não domina. Porém, não obstante este contexto de risco – e naturalmente porque Castelo de Vide iça a sua bandeira de lugar “Clean and Safe”, sendo, portanto, e por ora, um território sanitariamente seguro –, reiterámos ao Instituto de Estudos Medievais a nossa determinação em prosseguir com as Jornadas no presente ano de 2020, ou seja, daqui a poucas semanas. E a resposta intrépida foi: “– Vamos a isso! Seguindo obviamente os protocolos de segurança!” E, é precisamente neste acreditar de que podemos ser proprietários do nosso destino que sentimos a profunda convicção de 2021 trazer mais um livro a esta fantástica coleção. Queremos muito acreditar que todo o esforço já produzido até à data será justamente compensado pela força providencial de repetirmos esta tarefa concretizando as Jornadas dedicadas à Governança da Cidade Medieval, servindo assim a investigação histórica e ganhando conhecimento à Idade Média. Por último, importará sempre – e uma vez mais! –, como ato da mais elementar justiça, agradecer genuinamente à Direção do Instituto de Estudos Medievais. A ilustre plêiade das Professoras/Investigadoras/Diretoras que têm sido verdadeiras construtoras desta arquitetura de conhecimento em torno da cidade medieval, graças ao empenhamento e dedicado trabalho produzido na organização e coordenação desta iniciativa, semearam frutos que, ano após ano, evidenciam um inestimável sucesso consubstanciado com esta notável obra fundada já em 4 livros. E Castelo de Vide agradece reconhecidamente o privilégio por associar o seu nome a este singular projeto de investigação que assim vai fazendo a sua própria história! António Pita Presidente da Câmara Municipal de Castelo de Vide Abastecer a Cidade na Europa Medieval: algumas reflexões em torno de um colóquio, de um livro e de um tema Amélia Aguiar Andrade1 Gonçalo Melo da Silva2 Em Outubro de 2019 decorreram em Castelo de Vide a 3ª Escola de Outono em Estudos Medievais e as 4ªs Jornadas Internacionais de Idade Média, estas últimas em torno do tema Abastecer a cidade na Europa medieval. Um ano depois, graças ao apoio da Câmara Municipal de Castelo de Vide disponibiliza-se ao público uma recolha de textos selecionados de entre os apresentados nesses dois eventos, depois de terem sido alvo de uma dupla avaliação por pares. Apesar das dificuldades colocadas pelo actual contexto pandémico ao desenvolvimento de trabalhos de investigação, é possível publicar um conjunto de trinta textos elaborados por trinta e três investigadores provenientes de Portugal, Espanha, Itália, França e Estados Unidos da América. Esta obra, revelando e ampliando o que foram as lições da Escola de Outono e as conferências plenárias e comunicações das Jornadas, vem dar continuidade ao desiderato que desde sempre se quis associar à organização destes dois eventos: ultrapassar o âmbito mais restrito dos que neles participaram para chegar a públicos mais vastos, através da divulgação, em formato papel e digital, de conhecimento novo e de qualidade sobre a cidade medieval. Contudo, este livro não recolhe os posters apresentados pelos alunos da Escola de Outono, reveladores de trabalhos em curso destinados à obtenção do grau de mestre ou de doutor, que suscitaram não só animadas discussões como novas interpelações que constituíram importantes contributos para a melhoria das problemáticas e das metodologias de trabalho a empreender pelos estudantes. A sua 1 2 IEM - NOVA FCSH. IEM - NOVA FCSH. 14 diversidade temática foi reveladora de que, apesar dos constrangimentos no apoio à investigação, continua a haver jovens disponíveis para desbravarem novos caminhos para um melhor conhecimento da Idade Média. A adesão de um número cada vez mais elevado de estudantes e a participação, para além dos professores convidados, de outros professores e/ou investigadores interessados em participar nas discussões, comprovam a importância deste tipo de actividade para a formação de jovens investigadores e de como a Escola de Outono de Castelo de Vide se tem vindo a impor, paulatinamente, na agenda de trabalho de mestrandos e doutorandos nacionais e estrangeiros. Condicionalismos de vária ordem impedem também, a transcrição nesta obra, dos debates que tiveram lugar no final das distintas sessões das Jornadas, a partir dos quais se alargaram perspectivas, se sugeriram outras interpretações dos dados, se contextualizaram de forma mais ampla resultados. Contributos que muitos autores inseriram nas versões escritas das suas apresentações agora publicadas, o que é revelador da importância que o debate científico sempre tem para a melhoria da qualidade dos estudos históricos. A diversidade da proveniência, formação e interesses historiográficos dos participantes bem como a saudável mistura entre investigadores experientes e jovens em início de carreira que caracteriza as Jornadas, tem sido particularmente estimulante para uma frutuosa troca de ideias, que não se esgota nas sessões e, se prolonga nos momentos de convívio, abrindo caminho ao estabelecimento de futuras redes de trabalho colaborativo. Os textos agora apresentados comprovam a pertinência da escolha do tema do abastecimento da cidade medieval para as Jornadas, não só porque este surge como um elemento incontornável na subsistência das comunidades urbanas medievais como também se revela com um objecto historiográfico de enorme potencialidade, uma vez que pode interligar-se com problemáticas bem presentes na sociedade actual, como o equilíbrio dos ecossistemas, a exploração regrada dos recursos naturais, a protecção do ambiente, entre outras. Apresenta ainda uma especial disponibilidade para o desenvolvimento de estudos de carácter interdisciplinar em que a História e a Arqueologia medievais podem beneficiar muito do diálogo com outros ramos do saber que estão para além das Ciências Sociais e Humanas como é o caso, por exemplo, da Geologia, da Biologia ou, da Agronomia. Contudo, quando um encontro científico resulta, como acontece com as Jornadas Internacionais de Idade Média de Castelo de Vide, de um apelo a comunicações amplamente divulgado, tende sempre a ocorrer um certo distanciamento entre o que desejam os organizadores – plasmado no texto de apresentação e nas sugestões temáticas – e a resposta da comunidade científica, expressa nas propostas de comunicação. Os organizadores pretendem que o programa seja temático, espacial e cronologicamente o mais completo e abrangente possível, enquanto os investigadores 15 traduzem, nas suas propostas, as dinâmicas actuais da investigação desenvolvida nos contextos historiográficos em que se inserem. As palestras dos oradores convidados pretendem por isso ser, nesse contexto, as âncoras que possibilitam que a temática central encontre um levantamento de problemáticas inovadoras e/ou a proposta de metodologias capazes de lhe responderem com a maior eficácia. Circunstâncias que se reflectem no conteúdo desta publicação, em que se mesclam as propostas de escopo mais profundo e reflexivo com os estudos de caso, mais circunscritos temática e espacialmente. Em todos, o leitor pode ainda encontrar remissões para uma vasta bibliografia complementar ou, a referência a colecções documentais que poderá consultar. A riqueza desta obra, que nos apraz salientar, assenta na complementaridade entre as perspectivas apresentadas, a diversidade de espaços de observação considerados e a amplitude das problemáticas equacionadas. De entre os textos apresentados pelos oradores convidados cumpre destacar os que equacionaram as questões de abastecimento urbano de uma forma mais profunda lançando perspectivas e metodologias de trabalho muito estimulantes e os que, não tendo o abastecimento como cerne das suas apresentações, todavia traçaram quadros de reflexão problematizantes sobre espaços, cronologias e protagonistas do processo urbano em espaços e cronologias menos glosados. No primeiro caso contam-se os artigos de Emílio Martín Gutiérrez e de Denis Menjot. No seu texto Ciudades y processo de “agrarizacíon” en Andalucía Occidental durante el siglo XV, o primeiro dos autores referidos parte de uma escala regional e do estabelecimento de uma cartografia exemplar para realçar a interacção entre a cidade e o campo na construção das paisagens sociais medievais. Valorizando a interdisciplinaridade reflecte sobre a importância da análise dos ecossistemas em que se inserem os núcleos urbanos pois estes constituem a base da exploração dos recursos naturais, fundamentais no abastecimento urbano e na sua inserção em circuitos de consumo mais vastos. O texto de Denis Menjot – Defender la ciudad contra el hambre: las políticas anonarias de los gobiernos urbanos en la Europa bajomedieval – assume-se como uma síntese reflexiva que tem como espaço de observação a Europa medieval e que glosa as principais problemáticas sobre as questões relacionadas com o abastecimento de cereal e com a capacidade de resposta das cidades ao problema das carestias de cereal, na perspectiva dos poderes em presença. Um texto que se completa com o excelente estudo de uma pequena cidade no contexto português que Iria Gonçalves, oradora convidada desenvolve em Uma pequena cidade e o seu pão na Baixa idade Média: o caso de Loulé. Sauro Gelichi por seu turno, em Strange Cities on the waters: north Adriatic settlements between 7th-9th centuries AD, tendo como espaço de observação a região lagunar de instalação das cidades de Veneza e Commachio, estabelece um reflexão sobre um adequado entrosar de fontes escritas e arqueológicas e do seu 16 questionamento para a recuperação de cronologias mais recuadas e para equacionar a problemática da instalação de comunidades urbanas em espaços marginais. No seu texto de Hermenegildo Fernandes – Alguns problemas em torno de uma transição urbana no Sudoeste da Península Ibérica (séculos XI-XII) – reencontramos a afirmação das potencialidades da utilização simultânea e completar de fontes narrativas e resultados da investigação arqueológica, no esclarecimento dos processos de transformação sociais e espaciais urbanos. Aplicada ao estudo das transformações sofridas pelas cidades do al-Andalus no contexto das ocupações de Almorávidas e Almóadas permite apontar ainda permanências que se prolongam no pós-conquista cristã e consequentemente, um melhor entendimento das transformações que a ocupação cristã vai gerar. A maioria dos textos agora disponibilizados têm como cronologia dominante os séculos XIV e XV, tanto mais esperável quanto predominam os estudos que têm a Península Ibérica como quadro espacial de observação e dentro desta, sobretudo os reinos medievais cristãos. A conjuntura peninsular de guerra com o Islão, que se prolongou de forma mais evidente até à 2ª metade do século XIII, gerou uma afirmação tardia da cidade ibérica em relação a outras regiões europeias e consequentemente, a sua presença nas fontes disponíveis. Este predomínio espacial peninsular tem o seu contraponto nas aproximações a espaços de além Pirinéus que tanto privilegiam a escala regional – o Auvergne considerado na cronologia longa que se estende entre os séculos XIII e XVI e em função de um elemento específico como era a presença mendicante – como uma cidade de referência de tradição romana e feição mediterrânica como foi a Roma medieval e o seu abastecimento de matérias primas, aqui também analisados, numa ampla diacronia. Desde sempre que as comunicações resultantes das distintas edições das Jornadas têm vindo a revelar que a Europa urbana medieval tende a organizar-se em função da dicotomia grande cidade/média e pequena cidade, com claro predomínio deste último modelo, por isso cada vez mais presente na agenda de investigação sobre a cidade medieval. É pois maioritariamente em função de pequenas e de médias cidades que os problemas de abastecimento se encontram apresentados, quer estas se apresentem articuladas em redes de contactos ou de espaços regionais quer consideradas per si. A elaboração dos estudos inseridos nesta obra recorreu a uma enorme diversidade de fontes: materiais, documentais, normativas, iconográficas, numismáticas, arqueológicas às quais há que acrescentar todos os materiais – especialmente os de natureza cartográfica – produzidos pelos autores dos textos e resultantes do tratamento de informação inédita, alguns constituindo propostas interpretativas inovadoras. Destacam-se as que traduzem as preocupações das comunidades e dos poderes seus enquadradores com as questões de abastecimento, especialmente em momentos de 17 crise ou, as que decorrem da organização dos sistemas produtivos, de circulação de produtos ou, da fiscalidade que lhe estava associada. Metodologicamente é de salientar, como cada vez mais, os estudiosos da cidade medieval tendem a utilizar, de forma crítica, informação muito diversa, contornando, ainda que nem sempre com facilidade, barreiras disciplinares ou cronológicas. A multiplicidade de fontes utilizada explica, em parte a diversidade de perspectivas desenvolvidas quer estas sejam protagonizadas pela fiscalidade, pela normativa ou pela expressão material de marcas sobre as paisagens urbanas e periurbanas e a sua articulação com a afirmação dos diferentes poderes em presença. Não admira por isso, que as problemáticas decorrentes surjam também variadas podendo salientar-se as mais frequentemente glosadas, como é o caso das resultantes das preocupações com o abastecimento alimentar urbano, geradas pelas recorrentes situações de carestia e pelos fenómenos que lhe estavam associados como as fomes, a alta de preços e, a especulação. Associáveis aos problemas de abastecimento de aglomerados humanos concentrados e com de alguma dimensão, são sem dúvida, as questões decorrentes das difíceis dinâmicas de articulação entre os diferentes poderes em presença, sobretudo quando em momentos de crise, se torna evidente a necessidade de garantir a paz social e a simultânea afirmação da sua eficácia como garantes do bem comum. Outras problemáticas subjacentes às investigações reveladas nesta publicação centram-se na posse e usufruto de recursos naturais e agrícolas sendo que estes têm inerentes processos de enriquecimento que podem estar em directa correlação com a posse da terra, dos meios de produção e do transporte desses mesmos recursos e produtos. O crescimento urbano e a maior complexidade das sociedades urbanas e a sua consequente hierarquização fomentavam situações de conflitividade entre os possidentes mas, não menos importante situações de pluriactividade quer entre as oligarquias urbanas como nos sectores artesanais, acrescentando complexidade à análise dos grupos sociais intervenientes no processo de abastecimento urbano. Fica também evidente que o abastecimento da cidade medieval e as suas problemáticas específicas se entrosam com outras que, não as integrando directamente lhe são paralelas e por vezes até sistémicas, como as que se associam com os níveis de produção agrícola, com o trabalho, sobretudo o de natureza artesanal, com as dinâmicas da actividade mercantil, ou ainda, com ao enquadramento fiscal das actividades económicas em contexto urbano. Torna-se claro ainda, que tal como muitos autores têm chamado a atenção, é indispensável, para estudar o abastecimento urbano medieval, equacionar a cidade como um simultâneo centro consumidor, produtor, transformador e distribuidor, mas levando sempre em conta as diferentes escalas urbanas e o estabelecimento da relação entre o consumo e a organização e hierarquização social que caracteriza 18 cada vila ou cidade. Mas também emerge destas distintas abordagens a necessidade de não equacionar a cidade medieval como um espaço fechado, antes o integrando em redes de abastecimento e circuitos comerciais, quer por via terreste quer por via fluvial e/ou marítima com escalas que encontram denominadores diversos tais como a relação cidade-campo, os contactos inter-regionais e os de escala internacional. Tendo em vista o que já se conhece sobre a natureza das fontes disponíveis para o estudo da cidade medieval europeia teria sido esperável que outras temáticas tivessem estado presentes nestas Jornadas, que tinham como objectivo estudar e reflectir sobre o abastecimento urbano. Sem preocupações de exaustividade podem referir-se alguns, bastante sugestivos. Seria o caso do estudo dos circuitos de produção e distribuição de produtos de luxo como os livros ou os tecidos de elevado preço. Ou, os problemas levantados pelo abastecimento de minorias confinadas como judeus e mouros nos contextos urbanos e seus conflitos com as maiorias cristãs em momentos de crise ou em relação a práticas alimentares específicas. A disponibilidade de fontes normativas, por seu lado, permite o esclarecimento do papel arbitral e regularizador dos poderes em presença nas vilas e cidades sobre as actividades associadas ao seu abastecimento. A arqueologia do edificado, se bem que constituindo uma orientação recente, permite recuperar a presença dos equipamentos urbanos associados à produção, transformação e venda de produtos – moinhos, mercados, carniçarias, entre outros – permitindo aclarar os lugares de abastecimento quer no entre muralhas quer no espaço urbano. E é surpreendente a presença discreta de uma parte substancial dos protagonistas do processo de abastecimento urbano: os mercadores, os mesteirais, os vendedores e vendedoras de retalho, os oficiais da máquina administrativa e fiscal de enquadramento. A análise do abastecimento das cidades e vilas medievais necessita da arqueologia para ajudar a melhor interpretar dados documentais existentes ou, a minimizar omissões de informação documental. E no desenho dos seus quadros espaciais de observação necessita de recorrer, cada vez mais, à interdisciplinaridade de modo a recuperar com fiabilidade os ecossistemas e as intervenções antrópicas em que se desenvolveram as cidades medievais e as suas envolventes. Mas, mais precisa de equacionar esta problemática através de investigações tendencialmente sistémicas, que saiam da análise de um cidade, de uma região ou de um reino específicos em favor de perspectivas mais globais, que possam captar circuitos interligados de abastecimento. * * * Os editores querem ainda deixar público o seu agradecimento a todas as instituições e pessoas que contribuíram para tornar este conjunto de iniciativas – 19 Jornadas Internacionais de Idade Média, Escola de Outono e publicação desta obra – um êxito, garantindo ainda, a sua continuidade no tempo. À Câmara Municipal de Castelo de Vide na pessoa de António Pita, seu Presidente temos a agradecer a aceitação incondicional das nossas propostas e o modo como criou as condições humanas e materiais necessárias para a sua concretização. Através da Drª Patrícia Martins queremos agradecer aos funcionários e funcionárias da Câmara Municipal de Castelo de Vide, muitos dos quais não se deixam ver durante a Semana Medieval mas que, nos bastidores, asseguram que os eventos decorram sem falhas e com o maior profissionalismo. Ao Instituto de Estudos Medievais, na pessoa da sua Diretora, Profª Maria João Branvco, devemos não só o acolhimento destas iniciativas desde o primeiro momento mas também o apoio às tarefas de organização e o financiamento da participação dos oradores convidados e de estudantes da Escola de Outono. O Marcel L. Paiva do Monte tornou possível com o seu saber, rigor e bom gosto toda a linha gráfica de divulgação da Semana Medieval bem como a concepção e paginação deste livro. A Mariana Pereira, recém-chegada à equipa de organização, agradecemos a sua capacidade de aceitar as tarefas correntes e as inesperadas com a mesma eficácia. A quantos participaram na Escola de Outono e nas Jornadas – conferencistas convidados, comunicantes, estudantes e assistentes – bem como aos revisores científicos desta obra queremos deixar o nosso obrigado uma vez que a sua participação empenhada transformou a Escola de Outono e as Jornadas Internacionais de Idade Média em consolidados pontos de encontro e discussão entre todos os que se interessam pelo estudo da cidade medieval. E por fim, o nosso obrigada aos habitantes de Castelo de Vide, pois também é deles o sucesso desta Semana Medieval. PARTE I A Intervenção dos Poderes The Intervention of Powers Strange Cities on the Waters: North Adriatic settlements between 7th–9th centuries AD Sauro Gelichi1 Abstract The paper discusses, through archaeological and written sources, the characters of some cities (or new settlements that aspired to become cities) that arose in the northern Adriatic arc during the early Middle Ages: one of the characteristics of these new settlements (such as Venice and Comacchio) is that they arose in marginal and unsuitable places, such as the lagoons. The paper also wants to understand what were the reasons that pushed to colonize these lagoons (first areas of natural resources then points of commercial mediation) and tries to follow the times of their various life cycles. Finally, it aims to enhance the concept of marginality as a determining component in creating the ‘fortune’ of these places. Keywords Cities; North-Adriatic; Lagoon; Early Middle Ages. Strane città sulle acque: gli insediamenti dell’area nord adriatica tra VII e IX secolo Riassunto Questo articolo discute, attraverso la documentazione archeologica e scritta, i caratteri di alcune città (o nuovi insediamenti che aspirarono a diventare città) che si svilupparono dell’arco nord adriatico durante l’alto medioevo: una delle caratteristiche di questi nuovi insediamenti (come Venezia e Comacchio) 1 University of Ca’ Foscari, Venice. 24 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL è quello di essere sorti in luoghi marginali e non particolarmente idonei, come le lagune. L’articolo vuole anche comprendere le ragioni che spinsero a colonizzare questi spazi (in un primo momento aree di risorse naturali, poi snodi commerciali) e tentare di seguire nel tempo i loro diversi “cicli di vita”. Infine, esso intende valorizzare il concetto di marginalità come componente determinante nel favorire la ‘fortuna’ di questi luoghi. Parole chiave Città; Adriatico del Nord; Lagune; Alto Medio Evo. 1. Why Colonize a lagoon. A lagoon is not an easy place to colonize. While it does have a few advantages (e.g., in terms of security), it also presents several drawbacks. The need to build on firm ground requires a continuous monitoring of the dry land. Moreover, although lagoons consist almost exclusively of water, drinking water is not always available: this has indeed always been a problem for the Venice area, lacking as it is in natural freshwater springs. Finally, food supply too can be quite a challenge if one wishes to avoid relying entirely on external sources. And yet, despite these objective difficulties, as many as two coastal saline lagoons in the Northern Italy – Venice and Comacchio – were colonized in the early Middle Ages2. Not only were they colonized, but they also gave birth to two communities that developed into considerably populated and, later, institutionally prominent settlements. One of them was to become Venice, a city built on the water. Asking why as well as how it all came to be is therefore a highly promising project for archaeology. 2 About Venice, on the archaeological point of view: GELICHI, Sauro – “La storia di una nuova città attraverso l’archeologia: Venezia nell’alto medioevo”. In WEST-HARLING, Veronica (ed.) – Three Empires, three Cities: Identity, Material Culture and Legitimacy in Venice, Ravenna and Rome, 750-1000. Turnhout: Brepols 2015, pp. 51–98; GELICHI, Sauro – “Venice in the Early Middle Ages. The material structures and society of the “civitas apud rivoaltum” between the 9th and 10th centuries”. In C. LA ROCCA, Cristina; MAJOCCHI, Piero (eds.) – Urban Identities in Northern Italy (800-1100 ca.). Turnhout: Brepols, 2015, pp. 251-271; GELICHI, Sauro; FERRI, Margherita; MOINE, Cecilia – “Venezia e la sua laguna tra IX e X secolo: strutture materiali, insediamenti, economie”. In GASPARRI, Stefano; GELICHI, Sauro (eds) – I tempi del consolidamento. Venezia, l’Adriatico e l’entroterra tra IX e X secolo. Turnhout: Brepols, 2017, pp. 79-128. About Comacchio: GELICHI, Sauro et alii – “The history of a forgotten town: Comacchio and its archaeology”. In GELICHI, Sauro; HODGES, Richard (eds.) – From one sea to another. Trading places in the Europe and Mediterranean Early Middle Ages. Turnhout: Brepols, 2012, pp. 169-205; GELICHI, Sauro – “Comacchio: A Liminal Community in a Nodal point during the Early Middle Ages”. In GELICHI, Sauro, GASPARRI, Stefano (eds.) – Venice and Its Neighbors from the 8th to 11th Century. Through Renovation and Continuity. Leiden: Brill, 2018, pp. 142-167. STR ANGE CITIES ON THE WATERS: NORTH ADRIATIC SETTLEMENTS... 25 2. When and why. The North Adriatic sea during the 8th and 9th centuries (Fig. 1) Fig.1 – Location of the main cities and settlements mentioned in the text (Laboratorio di Archeologia Medievale, University of Ca’ Foscari, Venice). During the Early Middle Ages, the entire northern Adriatic arc appears to have been affected by a very marked phenomenon: the movement of cities. This was a clearly distinctive sign compared to that recorded throughout the rest of the north of the peninsula, where the ancient cities were either abandoned or they survived, 26 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL yet no new cities were founded. Instead, in the northern Adriatic arc, new urban settlements were established; or, in any case, settlements developed which aspired to become cities or, at least which markedly reflected the urban model. The other peculiarity is that these centres developed especially along the coast and in locations, such as lagoons or river estuaries,that were used rather infrequently in the ancient world as a location in which to establish cities, although there are some exceptions, such as Ravenna and Altinum. There are various issues that may lead to providing an explanation for this phenomenon, yet generally these are summarised by the need of the local population to defend and protect themselves from their enemies: we seem to be faced with the migration of entire populations originating from the mainland areas towards the safer lagoon areas. Security was the main reason, but security is not always a permanent status. Such narratives basically derive from historical-narrative texts, of more or less recent origin and writing. These are complex texts, that normally tend to simplify complex social, political and economic phenomena. Moreover, these refer to paradigms of an ancient mythographic nature, such as that relating to migrations. Such paradigms are used in order to explain – definitely in retrospect – a new state of affairs: in short, to report historical processes in a well-known, legendary and, as such, reassuring context. Thus, they are functional in order to establish new identities of populations, drawing on historic episodes that have more value for the present, in which they were elaborated, than for the past to which they were attributed. The traditional explanations would have produced new narratives about the settlements. In the lagoon area direct descendants of ancient cities situated on the mainland (in decline or abandoned) will be: Grado for Aquileia, Cittanova or Equilo for Oderzo, Torcello for Altinum, and Metamauco for Padua. The reasons for this ‘construction’ are rather clear and can be easily identified in the future history, especially of Venice, that needed to re-create its own past, the moment in which the new city took on a decisive, pre-eminent political and economic role; and the text that aided the construction of these narratives is the Istoria Veneticorum, written most likely by a certain Giovanni Diacono towards the beginning of the eleventh century3. In fact, by examining the narratives in detail, focusing on the individual areas and, when possible, integrating them with archaeological data, we realise that these describe quite a variety of situations which are necessary to bear in mind if one wishes to critically analyse what we can define as ‘traditional explanations’. 3 GIOVANNI DIACONO – Historia Veneticorum. Ed. L. A. Berto. Fonti per la Storia dell’Italia Medievale. Bologna: Zanichelli, 1999. STR ANGE CITIES ON THE WATERS: NORTH ADRIATIC SETTLEMENTS... 27 3. Old and new towns: the vocabulary of the written sources. We still know very little of the Roman cities situated along the coast – or in neighbouring areas – belonging to the ancient Regio X Venetia et Histria, which were either abandoned or presumed to be in decline: like ancient Adria, Este (Ateste), Oderzo or Padova (Padua). We’ve more archaeological data about the Roman city of Altinum, because was abandoned. However, the later historical phases of the city (sixt, seventh, eight c. AD) remain little known4. Basically, with the exception of Altinum, none of the ancient Roman cities founded near the Venetian Lagoon, or slightly further south, disappear completely, rather these continue being inhabited towns, also of a significant nature, during the Middle Ages and up to the present day. The overall picture that emerges from this appears therefore to agree with ‘traditional explanations’: but is this really the case? These written sources make of vocabulary relating to inhabited areas is particularly significant for this study. With regards to our areas, it would be sufficient to consult a text that has already been cited, the Istoria Veneticorum, in order to demonstrate this: the same locations are defined in a different way depending on the passage in which they are mentioned. There are several reading options available in order to explain these differences: a different origin of passages taken from the Istoria, different political-social circumstances in which the same places would have been mentioned, perhaps also a different overall intention to treat the role played by these locations on a hierarchical basis5. In any case, such a situation calls for overall reflection and advises caution, especially as concerns terms such as civitas and castrum, that, in this period, no longer represent material and institutional entities that can be compared with those that existed in the ancient world. Currently, archaeology does not seem to have been used in the best possible way. It is necessary to admit that the profound changes in the components of ‘material culture’ make these interpretative options easier. The antinomy of masonry structures vs wooden buildings for housing purposes gives us the idea of complexity 4 About Altinum during the Late Antiquity: CALAON, Diego – Altino (VE) – “Strumenti diagnostici (GIS e DTM) per l’analisi delle fasi tardoantiche ed altomedievali”. In ZACCARIA RUGGIU, Annapaola (a cura di) – Le missioni archeologiche dell’Università di Venezia. 5 Giornata di Studio, Venezia: Università Ca’ Foscari, 2006, pp. 143-158; TIRELLI, Margherita; POSSENTI, Elisa – “Sepolture e ritualità funeraria in Altino tardoantica”. In RINALDI, Federica; VIGONI, Alberto (a cura di) – Le sepolture nella media e tarda età imperiale (III-IV secolo D. C.) a Iulia Concordia e nell’arco altoadriatico. Organizzazione spaziale, aspetti monumentali e strutture sociali. Rubano (PD): Fondazione Colluto, 2015, pp. 245-261. 5 About this subject BERTO, Luigi Andrea – Il vocabolario politico e sociale della “Istoria Veneticorum” di Giovanni diacono. Padova: Il Poligrafo, 2001; see also GELICHI, Sauro – “Flourishing places in NorthEastern Italy: towns and emporia between late antiquity and the Carolingian Age”. In HENNING, Joachim (ed.) – Post Roman Towns, Trade and Settlement in Europe and Byzantium, vol. 1. The Heir of the Roman West. Berlin-New York: De Gruyter, 2007, pp. 77-104. 28 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL vs poverty and simplification. In this context the phenomenon of urbanism, a conceptual category and a material entity that transitions from the Early Middle Ages to the present day, is read in this perspective. The impression is that of archaeology as unable to fill in the gaps or to correct the distortions in historical narratives. The problem is that the settlement stages during the Early Middle Ages require different archaeological methods and approaches, not only of an instrumental kind, but also of a conceptual nature. An interesting theoretical concept could be to consider the history of the cities not in a biological sense (birth, growth and death = foundation, life, decline), yet as spaces where various lifecycles alternate. A suitable area in which new conceptual and methodological approaches can be experimented with in order to create a different quality of archaeological record, as well as a different type of narrative, can be represented precisely by what we are currently dealing with here; where new cities are established, or better still, where there are places aspiring to become cities, regardless of the fact of whether they actually do become one or not. I will take two examples into account: the first, extremely famous, regarding a ‘successful’ site, or rather Venice, the second one the case of Comacchio. 4. Life cycles and settlements: the case of the Venetian Lagoon. In Roman times, the lagoon was neither mainland nor was it densely inhabited (or permanently inhabited), as has been imagined by some scholar6. This does not mean that it had never been frequented, or exploited, but no permanent settlement of any sort is known prior to the Late Antique period. The analysis of the Venetian Lagoon ecosystem has shown how its environmental conditions changed between the fifth and the sixth centuries, in an interesting coincidence with the initial processes of settlement that we can deem as being of a permanent nature, meaning buildings with structures partly in masonry, the topographical organisation of spaces, the preparation of waterfronts, reclamations and backfills. At that time, a worsening of the climate would have caused a strong sea ingression, and this could have also contributed to a more intensive exploitation in the production of salt. However, these environmental changes could have affected the development of the settlement in another way. The nearby city of Altinum underwent a progressive process of transformation from the late imperial period. The port functions of the city were slowly delegated to other locations, situated in the Lagoon, some of which have been archaeologically surveyed, such as Torcello, San Lorenzo di Ammiana, 6 1983. In particular DORIGO, Wladimiro – Venezia Origini. Fondamenti Ipotesi Metodi. Milano: Electa, STR ANGE CITIES ON THE WATERS: NORTH ADRIATIC SETTLEMENTS... 29 San Francesco del Deserto (St. Francis in the Desert)7. Such settlements had to fulfil a commercial and itinerary function. From an archaeological point of view, this process is linked to two types of data. The first is the presence of permanent forms of occupation, characterised by buildings of a residential nature and of good quality, in relation to wooden warehouses and waterfronts (such as those found in San Francesco del Deserto), that bear witness to the constant interest in preserving the inhabitable and usable area. The second archaeological data consists of a substantial quantity of imported products, such as pottery and amphoras, of Mediterranean origin, numerically not to scale when compared to the density of the lagoon settlement and above all, to what we could define as its key social factor8. A letter by Cassiodorus (6th c. AD) (Cassiodorus, Variae, XII 24) tells us that the lagoon played an important role in maritime communications, by constituting a transit point in transporting Istrian oil, wheat and wine towards Ravenna, the new capital of the empire (and subsequently of the Ostrogothic Kingdom). In this period, the entire north lagoon, seemed anything but in crisis. The next step must be to acknowledge a process in the selection and concentration of the settlements. This process is currently rather evident, always in the north lagoon area, in certain settlements that were abandoned, or re-converted into funerary areas such as San Lorenzo di Ammiana, between the sixth and the seventh centuries. Thus, between the sixth and the seventh centuries, the progressive loss, by the Altinum district, of its urban functions conversely produces the birth and the development of the residential area: residential area which later became the emporium, of Torcello and, in the middle of the lagoon, of that of Olivolo. Significantly, both in the first case, Torcello in the seventh century, and in the second, Olivolo in the eighth century, these cities became episcopal sees. In short, up to the eighth century, the Venetian Lagoon appeared to be at the centre of a pluri-focal process, at least in terms of settlements. This multitude of settlements obtained visibility especially in the political formations that they took on or that, subsequently, they were attributed. Basically, places qualified by either the presence of the bishop emerged; first Torcello, then Olivolo Cittanova, Metamauco, 7 About the movement of the settlements in the Venetian lagoon area see GELICHI, Sauro; MOINE, Cecilia (eds.) – “Isole fortunate? La storia della laguna nord di Venezia attraverso lo scavo di San Lorenzo di Ammiana”. Archeologia Medievale XXXIX (2012), pp. 9-56. 8 In particular see the variety and quantity of imported pottery: GRANDI, Elena – “Ceramiche fini da mensa dalla laguna veneziana. I contesti di San Francesco del Deserto e Torcello”. In GELICHI, Sauro; NEGRELLI, Claudio (a cura di) – La circolazione delle ceramiche nell’Adriatico tra Tarda Antichità ed Altomedioevo. III Incontro di Studio Cer.am.Is. Mantova: SAP, 2007, pp. 127-153. On the anphoras: TONIOLO, Alessandra – “Anfore dall’area lagunare”. In GELICHI, Sauro; NEGRELLI, Claudio (a cura di) – La circolazione delle ceramiche nell’Adriatico tra Tarda Antichità ed Altomedioevo. III Incontro di Studio Cer.am.Is. Mantova: SAP, 2007, pp. 91-106. 30 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL and finally Equilo; or by that of a position that was to take on a political role and meaning, especially at a later stage, that of a ducal nature. It is very likely that this situation reflected tensions, conflicts and competition among the members of the aristocracy that were slowly freeing themselves from imperial power. The transfer of the palatium from Cittanova, initially to Metamauco, and then to Rialto – and with it also the ducal power –, as is described in the historic-narrative sources, can be explained both following this logic and in this context. Among all the places in the Venetian Lagoon, the islands of the Rialto archipelago play an extremely significant role. A recent reconstruction of the paleoenvironmental picture gives us a very useful starting point. In Roman times (and Late Antiquity), the lagoon was slightly different compared to the period immediately afterwards. The most interesting fact is that the ancient coastal cords coincide, more or less, with those of today; and above all that the port mouths coincide, i.e. the accesses to the lagoon from the sea. The proximity between these latter and the easternmost islets of the Rialto archipelago help us to explain the reason for the colonisation of the island of Olivolo that seems to constitute, given the current state of our knowledge, the most ancient and significant settlement of the entire complex. Excavations carried out between the end of the 1980s and the early 1990s have brought to light the ruins of a commercial headquarters that was operational between the fifth and the sixth centuries, perhaps directly linked with Byzantine power, as the three seals and the golden coin discovered inside a residential complex appear to imply9. Such hypothesis is in line with the same position of the site in Olivolo, at the far end of the Rialto archipelago and in close proximity to the port inlets, a protected area yet, at the same time, near to the accesses to the Adriatic Sea, therefore, an ideal area for the Byzantine fleet to be stationed. Viewed in this context, the choice to transfer the youthful ducal power – or simply the centre of power – to the Rialto archipelago, even if slightly more inland when compared to Olivolo, can be best explained. The choice of Rialto, is explained by its centrality, not only in the lagoon, but also by its communications with the outside world. Moreover, here the fleet, first Byzantine, then of a ducal nature could well have found its logical ragion d’être. The willingness, I would also add the necessity, to colonise this specific archipelago, is reflected very well also in the proven reclamation activities. These appear not only as a constant presence in urban archaeological research, but they also can be seen with extreme clarity if one places the map of the lands that have naturally emerged, on top of the location of 9 TUZZATO, Stefano – “Venezia. Gli scavi a San Pietro di Castello (Olivolo). Nota preliminare sulle campagne 1986-1989”. Quaderni di Archeologia del Veneto 7 (1991), pp. 92-103; TUZZATO, Stefano; FAVERO, Vito; VINALS, Maria Jose – “San Pietro di Castello a Venezia. Nota preliminare dopo la campagna 1992”. Quaderni di Archeologia del Veneto 9 (1993), pp. 72-80. STR ANGE CITIES ON THE WATERS: NORTH ADRIATIC SETTLEMENTS... 31 the ecclesiastical foundations, namely churches and monasteries. Their imperfect matching is a clear indication of the efforts that the nascent Venetian community made so as to occupy as much land as possible, as we are reminded once again, by the main source for this period, the Istoria Veneticorum. 5. A settlement in a grey zone: Comacchio. I will start with a brief introduction to Comacchio10. In the written sources Comacchio is famous for being at the centre of a treaty drawn up between the Lombards and the inhabitants of the site in question in relation to trading activities that occurred along the Po and its tributaries. This treaty is the first historical text referencing Comacchio and it dates to 715 (or to 730). A number of references about Comacchio are then in the Historia Veneticorum attributed to John the Deacon. In 875, the settlement would have been damaged by an attack from the Saracens, who had previously attempted to conquer Grado. The Saracens, who had been put to flight by a fleet of Venetics, had bent towards Comacchio, sacking it. But another war episode seems to have been even more terrible and definitive. In 932, the Venetian duke, Peter II Candiano, send an army against the Comaclenses, to respond to an insult. This time, the use of weapons seems really decree the end of the settlement. According the Historia Veneticorum, Comacchio was burned and its inhabitants deported to Venice. The archaeological excavations, conducted between 2007 and 2009 in two areas of the historical town (around the cathedral and within the zone of Villaggio San Francesco) have brought to light a sequence that spans the time periods over which the settlement developed (it started in the second half of the 6th century, progressed towards the 7th century and consolidated in the 8th century)11. They have also revealed its economic and social characteristics and, above all, they confirm that the settlement had been an important trading centre. These excavations have also directly confirmed Comacchio as an episcopal see over the course of the 8th century, and they provide evidence of a crisis having occurred towards the 10th century, represented by the destruction and reconstruction of the Episcopal church and by the abandonment of the area of Villaggio San Francesco (according to the written sources). This area (now outside the historical town centre) has been very important during the early middle age because the presence of port structures and warehouses; and, above all, because it was in an interconnection point between the waterways and the sea communications. Comacchio remains a bishopric, but the economic 10 The bibliography on Comacchio is enormous. However, in relation to the most recent archaeological research and its results see note 1. 11 GELICHI, Sauro et alii – “The history of a forgotten town…”, pp. 169-205. 32 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL situation changed radically. Archaeological excavations have shown that there are no import pottery or amphorae in the layers back to the 10th century onwards. In the debate about Comacchio (and, in some respects, about Venice), the term emporium is brought up; a word infrequently used in relation to the Early Medieval Period (and, of consequence, in our historiography). Conversely, and as is well known, emporium is commonly used in relation to discussions about northern Europe, where it is used to define a series of trading settlements that, in many cases, would have formed the grounds for the origin of the urbanization in these territories. A comparison between the emporia of northern Europe and these settlements appearing near the littoral areas of the Mediterranean has been proposed, not only to identify possible typological similarities (albeit on rather dangerous grounds), but also in order to help contextualise a phenomenon that has been largely within the scientific debate until now. There are a number of similarities, including temporal overlapping, between the phenomena of the emporia of northern Europe and the birth of these new settlements on the North Adriatic Sea that are worth highlighting. Furthermore, there are many similarities between Comacchio and the class B emporia originally proposed by Richard Hodges (some of them are mentioned above): the fact that it developed in a previously unsettled area (or that it did not evolve directly from an ancient city); the fact that it was mainly based on trade, including long-distance trade; the fact that it was a place where crafts activities developed; finally, the fact that it was not directly established by the central power, and that, in the initial stage at least, it had no direct link with ecclesiastical power. But was Comacchio also at that heart of dependant territory? Did it exercise the functions that we usually assign to a central place? In a recent article Soren Sindbæk re-examined central places, organizing them according to a hierarchy of basic concepts (such as open access and nodal points) characterizing coastal settlements12. This approach appears to be equally applicable in explaining the existence of a centre like Comacchio (and, why not?, Venice). In an initial phase at least, Comacchio seemed to fall into the category of nodal points: favourable position for trade routes protected by a lagoon, thus offering safe landing places and berths for ships; arrival and nodal point for international goods; absence of a strong power. At the same time, until the first quarter of the 8th century at least, Comacchio does not seem to have controlled a territorial district or to have carried out a specific function of redistribution of goods in its immediate hinterland given that its trading sphere covered the entire Po plain. It was only during a subsequent phase (from the second quarter of the 8th century at least) that the presence of a 12 SINDBAEK, Søren – “Open access, nodal points, and central places. Maritime communication and locational principles for coastal sites in South Scandinavia, c. AD 400-1200”. Estonian Journal of Archaeology 13, 2 (2009), pp. 96-109. STR ANGE CITIES ON THE WATERS: NORTH ADRIATIC SETTLEMENTS... 33 bishop (directly appointed by the archdiocese of Ravenna) would introduce a figure of institutional rank and with a high political profile playing a key role in the centuries to come. It is in this period moreover that the few surviving documents testify to the existence of a landowning aristocracy. Comacchio, therefore, seems to be evolving towards functions causing it to resemble a central place, while at the same time maintaining the prerogatives of a place for the long-distance redistribution of goods, also because in this circumstance “long-distance transport can be understood as a simply extension of the central place function.” Comacchio’s decline after the 9th century would not only lead to the collapse of a maritime trading link, but would also constrain its community within an increasingly lifeless dimension of localism. Comacchio had not time to elaborate its mythography like Venice, so we don’t know almost anything about its previous past through narratives. 6. Why strange cities? The cases we have presented are different (in the times, in the ways, above all in the outcomes), but they also have different points in common, as we have seen. I would like to highlight the ones that seem most interesting to me. McCormick writes that Venice was not founded by a king13 and the same we could say about Comacchio. Both settlements arise in marginal spaces, and most probably owe their fortune to arise in marginal spaces. In a different way, the Comacchio and Venetic aristocracies were able to free themselves from the neighboring strong powers: Longobards, Byzantines and then Franks. For example, Comacchio is not an extension of a great city, like Ravenna: Comacchio is not the port of Ravenna. These centers owed their fortune to being raised in a “grey zone”. Another aspect that should not be underestimated is the ability to move in a new economic space. The private dimension of this space is not absolutely determinable (even if the contemporary sources speak of the existence of mercatores), but unquestionably Comacchiesi (before) and Venetic (then) were able to exploit their geographical position in an economic opportunity. Both areas had been producing goods deriving from the specific resources of those territories (salt and fishing), but it was not only salt and fishing that decreed its fortune. Both became nodal points, junctions and connections between the Adriatic sea and the interior. The fortunes of Comacchio are probably due to the role played by the economy of the Lombard kingdom; those of Venice, to relations that it was able to establish with the Franks. In terms of settlement, Comacchio and Venice are two new cities, built in a 13 McCORMICK, Michael – “Where do trading towns come from? Early medieval Venice and the northern emporia”. In HENNING, Joachim (ed.) – Post Roman Towns…., p. 44. 34 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL very special environment. But they had very little of the ancient cities, not only because they were not originated from ancient cities, but because they were not even the result of a planned action, as instead seems to be the case with Leopoli, founded by Pope Leo IV in Lazio in the 854. Although they did not have much of the ancient cities, they continued to have, as a model, the ancient city. More than for Comacchio (which did not have its own narrator), this is evident for Venice, where the Istoria Veneticorum is able to indicate this passage very well. Not only because it is explicitly explained (“Circa hec vero tempora domnus Petrus dux cum suis civitatem aput Rivoaltum edificare cepit”: Istoria Veneticorum II, 39), but also because the text refers to some qualifying “aspects” of ancient cities, such as the presence of the city walls. In any case, it is the whole of the Istoria Veneticorum a creative document of an urban identity. Venice (and also Comacchio) were abnormal cities that wanted to look normal. The short history of Comacchio does not allow us to appreciate its evolution well. In the 9th century, the Adriatic emporium was put out of action by the more aggressive and better equipped neighbors of Venice. Something more we know about Venice, even if archaeology has to tell us much more than we know. The fact is that, even in the tenth century, much of the city had to be made of wood, except for churches, monasteries and the ducal palace. Fires particularly devastating between the 11th and 12th centuries canceled many of the ancient traces: the city was now ready. After the Fourth Crusade (1198-1204) Venice had become a maritime power, and ruled over large parts of the Adriatic, up to Constantinople. From here will come the marbles that will adorn the new churches, the new monasteries and, now, even the new brick houses: now finally the city could show its new sparkling face, what we are still able to appreciate. STR ANGE CITIES ON THE WATERS: NORTH ADRIATIC SETTLEMENTS... 35 36 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Alguns problemas em torno de uma transição urbana no Sudoeste da Península Ibérica (séculos XI-XII) Hermenegildo Fernandes1 Resumo No quadro cronológico da segunda transição na Península Ibérica, discutirei como as redes urbanas do sudoeste da Península Ibérica suportaram (e conseguiram sobreviver) à crescente militarização do território e da estrutura social durante os períodos almorávida e almóada e, finalmente, a conquista cristã. A primeira questão a ser considerada é o crescimento constante a partir do século X, revelado pela arqueologia urbana recente, que deve ser interpretado como um sinal de uma recuperação económica precoce na Península Ibérica. O equivalente no domínio social e político a esse crescimento, como mostram, por exemplo, os dicionários biográficos, é um sistema social de base urbana, ainda ligado a famílias de origem árabe, mas agora muito mais vertical do que tribal. O regime dos muluk at-tawa’if, principalmente no Gharb, deve ser visto como resultado desse crescimento urbano e da capacidade de promover a autonomia local ou regional. A conquista almorávida absorverá essa rede social e territorial sem colocá-la em risco e vai até mesmo depender dela para controlar uma parte do império (o sudoeste ibérico) que se está tornando mais estratégica, protagonismo que se acentuará durante o período almóada. A crise do sistema durante este período deve, portanto, ser vista menos como resultado da dissidência entre os governantes berberes e a população urbana andaluza, do que como uma combinação de agitação social interna e ampla militarização do território e da sociedade. A transformação da rede urbana numa sociedade de fronteira parece potenciar fracturas sociais, problemas de abastecimento e, em alguns casos, crises graves que produzem o abandono do sítio. Este ambiente, argumentarei, não mudará, no seu todo, de forma duradoura após a conquista 1 CH, Universidade de Lisboa. 38 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL portuguesa do baixo vale do Tejo em meados do século XII e permanecerá até à massiva reorganização territorial de Afonso III no terceiro quartel do século XIII. As principais transformações no urbanismo que marcam a transição urbana estudada por L. Trindade e M. Fialho também são principalmente desse período. Palavras-chave Transições; Redes urbanas; Militarização; Gharb al-Andalus. Some problems about urban transitions in 12th and13th centuries Iberia Abstract In the chronological framework of the second transition in Iberia, I will discuss how southwest Iberia urban networks endured (and managed to survive) growing militarization of territory and social structure during almoravid and almohad rule and, finally, christian conquest. The first issue to be considered is the steady growth from the 10th century onwards revealed by recent urban archaeology, which should be interpreted as a sign of an early economic recovery in Iberia. The social and political counterpart, as shown for example by biographical dictionaries, is an urban based social system, still connected to Arab origin hassa families but now much more vertical than tribal. The muluk at-tawa’if regime, mainly in Gharb, should be seen both as a result of urban growth and the ability to promote local or regional autonomy. Almoravid conquest will absorb this social and territorial network without putting it into jeopardy and even depending on it to control a part of the empire (the Iberian southwest) which is becoming more strategic, and will become more so during the Almohad period. Crisis in the system during this period must thus be seen less as a result of dissidence between berber rulers and andalusian urban population, than as a combination of internal social unrest and extensive militarization of territory and society. Complete transformation of the urban network into a frontier society seems to enhance social fractures, problems of supplies and in some cases severe crisis that produces abandonment of the site. This environment, I will argue, will not, in the whole, change durably after Portuguese conquest of lower Tagus valley in the mid 12th century and will stand until Afonso III’s massive territorial reorganization in the third quarter ALGUNS PROBLEMAS EM TORNO DE UMA TR ANSIÇÃO URBANA [...] 39 of the 13th century. The major transformation in urbanism that marks urban transition studied by L. Trindade and M. Fialho are also mostly from this period. Keywords Transitions; Urban Networks; Militarization; Gharb al-Andalus. I É ponto consensual entre os historiadores, removida a concepção romântica que via nas cidades do sul de Portugal um testemunho vivo do “urbanismo islâmico”, que a conquista cristã promoveu por toda a parte no al-Andalus, o Gharb não sendo aqui excepção, uma renovação urbanística profunda. Essa mudança será particularmente visível no caso do parcelário, em resultado da substituição do modelo da casa pátio e de uma planta orgânica voltada para o interior e formando aglomerados que expressam materialmente potenciais relações de parentela (ex. da casa XVI de Mértola)2, por um modelo de loteamento “gótico”3, organizando perpendicularmente às vias parcelas compridas e estreitas que forçam o estilhaçamento do parcelário islâmico, com consequências no sistema viário. Às diferenças nas formas de habitar, somam-se ainda opções diversas do ponto de vista político e religioso, observáveis por exemplo nas reconfigurações dos bairros da alcáçova de Mértola, ou de Lisboa, ocupados num caso por um cemitério, e no outro, pelo menos em parte, pelo paço do bispo. Numa e noutra situação a descontinuidade é marcada pela demolição dos anteriores bairros. Embora seja de admitir que essa descontinuidade foi mais profunda em algumas zonas do al-Andalus do que noutras, registando-se exemplos de persistência da casa pátio na arquitectura diferenciada das zonas de conquista do reino de Castela, não restam dúvidas de que a transição nos territórios incorporados na coroa portuguesa foi rápida e extensiva4. Por estas razões, e também pela radical substituição de elites 2 PALMA, Maria de Fátima − “Configurações singulares do urbanismo da Casa XVI do Bairro Islâmico da Alcáçova do Castelo de Mértola”. In VII Encuentro de Arqueología del Suroeste Peninsular. Arroche: Ayuntamento de Arroche, 2015, pp. 1081-1095. 3 TRINDADE, Luísa − Urbanismo na Composição de Portugal. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2013. 4 Cite-se a este respeito a relativamente rápida demolição do bairro da Alcáçova de Lisboa após a conquista cristã, entre os reinados de Afonso Henriques e o de Sancho I. GOMES, Ana; SEQUEIRA, Maria José − “Continuidades e descontinuidades na arquitectura doméstica do período islâmico e após a conquista da cidade de Lisboa: Escavações arqueológicas na Fundação Ricardo Espírito Santo Silva”. Arqueologia Medieval 7 (2001), pp. 103-110. 40 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL urbanas, pelo movimento de mudança da posse da terra e pelo desmoronamento, ao menos aparente, do sistema institucional, o período subsequente à conquista cristã, de resto de cronologia muito variável, tem sido associado, com razão, a uma transição urbana tão importante como aquela que, a partir do século VII ou VIII ditou o fim da cidade antiga. Esta visão tem o atrativo de ser verdadeira ainda que o seja apenas em parte. Em primeiro lugar porque, como tentarei provar noutro lado5, os indícios inequívocos de uma transformação da forma urbana não são acompanhados, à mesma velocidade, por idênticos sinais de ruptura institucional, sendo muitas, as soluções de governo e regulação encontradas, citações com semântica reconstruída ou reinterpretações das formas de governo urbano como praticadas no al-Andalus. No Sharq, em Valência ou em Múrcia, zonas de conquista respectivamente das coroas aragonesa e castelhana, já se sabe isto há bastante tempo, muito por culpa dos sistemas de governo da água que regulam a economia regional em que a feudalização da exploração é montada em cima do sistema pré-existente6. Já para a área de conquista portuguesa o hibridismo das estruturas da sociedade que nasce da conquista cristã tem sido menos considerado. Em segundo lugar porque – e é deste porque que aqui me ocuparei – o peso simbólico e material da conquista cristã, sobretudo por ter durado, obscurece anteriores transformações na rede urbana, deixando sempre marcada a oposição entre o antes e o depois. Esse ponto de observação, creio, tem impacto directo quer sobre a interpretação dos textos quer sobre a do registo arqueológico e, pela nitidez de limites que propõe, contribui para escurecer mais do que para iluminar a complexa realidade de um período, que, no caso do território português, não está sempre servido pela abundância das fontes diplomáticas. A essa delimitação precisa preferiria sempre, porque muito mais próxima da realidade, a procura simultânea dos cortes e das hibridações, do que muda, do que vai mudando e do que fica. A mesma coisa aliás se pode aplicar ao período do antes da conquista cristã na maior parte dos sítios. E é sobre esse período de aproximadamente século e meio, o que medeia entre as vésperas da conquista das cidades do vale do Tejo (a primeira metade de Undecentos) e a das do vale do Guadiana (até aos meados de Duzentos) que aqui me proponho reflectir do ponto de vista do sistema urbano. O objectivo é o de testar a aplicabilidade do conceito de transição, isto é, tentar discernir o que muda antes 5 Interessa-me particularmente a reformulação semântica de formas institucionais, quer do ponto de vista da sua evolução em período islâmico, quer na adopção dessas instituições pelos conquistadores cristãos. Estudei já o problema em várias comunicações sobre as instituições de mercado (“From Suq to Açougue: Market and Public Policies from Al-Andalus to Christian Kingdoms”, comunicação apresentada a Money, Power and Profit. A conference on the economy of medieval Portugal and Europe, Lisboa – Porto, 26-29 Abril 2017, org. CITCEM/IEM) a retomar em breve em livro que ultimo sobre a transição. 6 Cf. os estudos clássicos de GLICK, Thomas F. − Irrigation and Society in Medieval Valencia. Belknap Press of Harvard University Press, 1970 e BARCELÓ, Miquel; KIRCHNER, Helena; NAVARRO, Carmen − El Agua que no duerme. Fundamentos de la arqueologia hidráulica andalusí. Granada: El Legado andalusí, 1996 ALGUNS PROBLEMAS EM TORNO DE UMA TR ANSIÇÃO URBANA [...] 41 da mudança política que será a conquista e consequente saída do Dar al-Islam. E procurar assim antes da transição outra transição7. II Partirei de um pressuposto geral sobre a evolução e os ritmos de regressão/ crescimento urbano no al-Andalus que discuto noutro lugar8: a retoma urbana fazse aqui mais precocemente do que no mundo carolíngio e pós-carolíngio, em parte porque o surto urbano do mundo antigo mostra alguns sinais de continuar até um período bastante tardio, no limiar do século VII, o exemplo mais evidente sendo a fundação visigótica de Recópolis9, o que não exclui algumas quebras contemporâneas (a Ammaia, por exemplo10); em parte porque a conquista arabo-berbere assente, aqui como no Mediterrâneo oriental, na fórmula urbana, mantém ou mesmo revitaliza a monetarização da economia e a centralidade do mercado. O robustecimento da máquina do estado omíada pela proclamação do califado (929) e a criação de uma sociedade de corte enquanto centro de consumo de luxo, cria condições para reproduzir na Ibéria um modelo económico análogo ao do oriente abássida, o que me parece aliás decisivo para a revitalização da economia em todo o Mediterrâneo ocidental. Isso deve-se em grande medida ao facto de esse processo ter lugar em contraciclo com a Europa pós-carolíngia que atravessa por então uma fase recessiva muito acentuada, só se fazendo sentir uma viragem nessa tendência durante o século XI. A excepção a esta excepcionalidade da Ibéria estará na península itálica 7 Um estado da questão para a evolução urbana no extremo ocidente do Mediterrâneo pode ser encontrado em CRESSIER, Patrice; GARCÍA-ARENAL, Mercedes (eds.) − Genèse de la ville islamique en al-Andalus et au Maghreb occidental. Casa de Velásquez, CSIC, 1998; FIERRO, Maribel; STAEVEL, Jean-Pierre Van (eds.) − L’urbanisme dans l’Occident musulman au Moyen Âge. Aspects juridiques. Madrid: Casa de Velásquez, CSIC, 2000. E ainda: ACIÉN ALMANSA, Manuel – “La formación del tejido urbano en al-Andalus”. In PASSINI, Jean (coord.) − La casa medieval: de la casa al tejido urbano. Cuenca: Universidad de Castilla-La Mancha, 2001, pp. 1132; NAVARRO PALAZÓN, Julio; JIMÉNEZ CASTILLO, Pedro − Las ciudades de al andalus: nuevas perspectivas. Zaragoza: Instituto de Estudios Islámicos y del Oriente Próximo, Conocer Alandalús, 2007. Com particular atenção ao caso do Gharb, GÓMEZ-MARTÍNEZ, Susana – “Las ciudades del Garb al-Andalus”. In Al-Andalus: un país de ciudades. Actas del Congreso celebrado en Oropesa (Toledo) del 12 al 14 de marzo de 2005. Toledo: Dip. Prov. De Toledo, 2008; GÓMEZ-MARTÍNEZ, Susana; MACIAS, Santiago; TORRES, Cláudio – “Las ciudades del Garb al-Andalus”. In Al-Andalus: país de ciudades. Toledo: Diputación Provincial de Toledo, 2007, pp. 115-132. Para o caso português: ANDRADE, Amélia Aguiar; COSTA, Adelaide Millán (eds.) − La ville medieval en débat. Lisboa: IEM, 2013 e, sobretudo, ANDRADE, Amélia Aguiar − “Medieval portuguese towns: the difficult affirmation of a historiographical topic”. In MATTOSO, José (dir.) − The historiography of medieval Portugal, c.1950-2010. Lisboa: IEM, 2011, pp. 283-301. 8 No capítulo 1 da obra colectiva coordenada por Pedro Lains, Iberian Economic History, em publicação na Cambridge University Press. 9 HENNING, Joachim; MCCORMICK; Michael; ENCISO, Lauro Olmo; RASSMANN, Knut; EYUB, Eyub Fikrit − “Reccopolis revealed: the first geomagnetic mapping of the early medieval Visigothic royal town”. Antiquity 93,369 (2019), pp. 735–751. Disponível em https://doi.org/10.15184/aqy.2019.66. 10 PEREIRA, Sérgio − A cidade romana de Ammaia: escavações arqueológicas, 2000-2006. Lisboa: Colibri, 2009. Aguardam-se os resultados muito promissores das escavações da equipa liderada por Carlos Fabião e Amílcar Guerra. 42 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL contemporânea 11, em cidades que, como as hispânicas, beneficiam da ligação às redes de comércio mediterrânico, ocidental, representando aqui o Magrebe um papel que deverá ser reavaliado, e oriental, com o Rum, a Síria e o Egipto à cabeça. É o caso de cidades novas, como Veneza, ou antigas revitalizadas, como Pisa ou Palermo. Um segundo pressuposto prende-se com o reconhecimento de importantes variações regionais no interior da Ibéria, no que ao comportamento do sistema urbano diz respeito (e aliás em vários outros sentidos). Dessas diferenças regionais, uma Ibéria dividida em pelo menos três áreas distintas, têm consciência os próprios historiógrafos andaluzes do período omíada ou os seus compiladores. Veja-se por exemplo o Muqtabis (II,2), onde é clara a distinção para o século IX de três zonas de domínio ou reinos: o dos emires de Córdova, o dos Banu Qasi na marca superior, em torno de Saragoça, e o reino da Jilliqyia, ou asturiano12. A tentação de sobrepor esta geografia política e de dominação territorial ao esboço de zonamento económico que acabei de traçar é inevitável. Estas variações diferenciam não só o sul islamizado e arabizado do norte cristão, mas também as duas partes da península no seu interior, o norte asturiano ou pirenaico apresentando índices de urbanização muito menores que a área mediterrânica da marca hispânica onde a velha Barcino parece mostrar precocemente poder aguentar a comparação com as cidades italianas, enquanto na área atlântica, apesar da revisão em alta que as escavações das últimas décadas talvez autorizem, continuam a dominar as transações sem mercado de que fala E. Páscua para a “Galiza foral”, o que só por si chegaria para explicar a anemia comparativa do fenómeno urbano que sobrevive até bem entrado o século XIII e porventura para além dele. Creio que prova suficiente disso será o facto de, uma vez conquistado o essencial do al-Andalus, pelos meados de Duzentos, todas as cidades maiores da coroa de Castela (Toledo, Sevilha, Córdova, Jaén, Múrcia), várias das da coroa de Aragão (Saragoça, Valência, Maiorca) e quase todas as da coroa portuguesa (Coimbra, Santarém, Lisboa, Évora) fazerem parte do sistema urbano andaluz pelo menos até ao meio do século XI, e várias delas até ao fim do domínio almoáda na península. Essas diferenças regionais afectam também o próprio al-Andalus, apesar do verniz de uniformidade garantido pelo acesso generalizado à economia de mercado e os níveis de monetarização de que o estado cordovês é o garante material, simbólico e ideológico e que por isso mesmo os seus sucessores regionais do século 11 WICKHAM, Chris − Framing the Early Middle Ages. Europe and the Mediterranean, 400-800. Oxford: Oxford UP, 2005, pp. 591 e seguintes; e, explorando o caso de três cidades italianas, WEST-HARLING, Veronica − Identity, Material Culture and Legitimacy in Venice, Ravenna and Rome, 750-1000. Turnhout: Brepols, 2015. 12 Cf., por exemplo, IBN HAYYAN, Crónica de los emires Alhakam I y ‘Abdarrahman II entre los años 796 y 847 [Almuqtabis II-1]. Tradução de Mahmud ‘Ali Makki e Federico Corriente. Zaragoza: Instituto de Estudios Islâmicos y del Próximo Oriente, 2001, fl. 188r-188v, pp. 320-321. ALGUNS PROBLEMAS EM TORNO DE UMA TR ANSIÇÃO URBANA [...] 43 XI irão assegurar e que, talvez paradoxalmente, o domínio dos impérios berberes construídos sobre as rotas do ouro, vai reforçar durante os séculos XII e XIII. Uma simples observação do mapa do mapa urbano do al-Andalus reconstruído por Mazzoli-Guintard a partir das informações do Sharif al-Idrisi, no Kitab Rudjar, reportando-se aos meados do século XII (a obra é de 1154)13, isto é, ao período que medeia entre o eclipse almorávida e o total controle almóada que se desenrolará nas décadas seguintes, mas incorporando algumas informações já anacrónicas (por exemplo Toledo surge ainda como uma das cidades andaluzas, o que sugere que o quadro geral será válido para o século XI) mostra essa desigualdade regional14. Assim, as maiores concentrações urbanas encontram-se no que é hoje a Andalusia, como expectável, desenhando um sistema estruturado pelo vale do Guadalquivir e pela cordilheira montanhosa que o separa a sul do Mediterrâneo, que em grande medida prolonga o da província romana Bética. Aí está a zona da maior concentração de distritos (9), logo seguida do Sharq (Levante) com cinco. Esse pode ser aliás um indício relevante, uma vez que apenas os núcleos urbanos com uma suficiente acumulação de funções centrais aparecem referenciados, testemunhando o número de cabeças de distritos em cada área não só da densidade populacional relativa mas também da aglomeração dessa população em cidades e, portanto, da relevância económica e do peso dos mercados. Nas regiões de marca com o mundo cristão al-Idrisi regista três distritos em cada uma (na região do Ebro, a Superior, na de Toledo, a Média, e na da antiga Lusitânia, a Inferior). O modelo é bem conhecido e corresponde ao da instalação muçulmana na Hispânia (e antes dela ao da romana e da púnica), produzindo uma organização territorial basculada para oriente e para o Mediterrâneo e um contraste entre as áreas litorais ou articuladas com o mar através de vias fluviais e o interior ocupada pelas Tughur que organizam um povoamento menos denso que faz a articulação com o norte cristão. Mesmo entre os distritos do Sul ou do Levante, como se sabe, as diferenças são consideráveis em resultado de ecologias contrastantes que tornam esta última área fortemente dependente do desenvolvimento e manutenção de sistemas de irrigação que virão a constituir um traço de ligação entre o al-Andalus e os reinos de reconquista. O traço que me importa aqui relevar é no entanto outro e prende-se com a posição no sistema das cidades da marca Inferior, que grosso modo correspondem às que integravam a província da Lusitânia e que, no século XII constituem a zona de conquista de facto do reino de Portugal. Num mundo em que as ligações atlânticas entre o Mediterrâneo e a Europa do norte tinha deixado praticamente de funcionar 13 AL-IDRISI, Description de l’Afrique et de l’Espagne. Edição de Reinhardt Dozy e Michaël de Goeje. Amsterdam: Oriental Press, 1969. 14 MAZZOLI-GUINTARD, Christine − Ciudades de al-Andalus. España y Portugal en la época musulmana (siglos VIII-XV). Granada: Ediciones ALMED, 2000, p. 471. 44 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL (a relativa raridade das incursões vikings no al-Andalus e a sua total ausência no século que medeia entre o emirado de Muhammad e o califado de al-Hakam II são testemunho disso15) é natural que o Finisterra tenha perdido a relevância que outrora tivera, tanto nos ricos centros cerealíferos de Emmerita Augusta ou de Pax Iulia quer nos portos onde se situavam os grandes entrepostos conserveiros. E se essa geografia está ainda activa aquando da conquista árabe, como o mostram textos com o Fath al-Andalus16, que dão bem a medida da importância do controle de Mérida e Beja, o futuro de modelo de ocupação do território pelos omíadas, apesar de algumas tentativas feitas em finais do século X durante o regime amirida, mostra senão o desinteresse, pelo menos um desinvestimento do poder central de Córdova na região do extremo ocidente. Desinvestimento que só será realmente contrariado durante o período almoáda com resultados variáveis, mas tão duráveis quanto o regime. Ora o questionário que me interessaria seguir aqui é precisamente o do impacto dessa variação regional interna ao al-Andalus no sistema urbano do Gharb. III Começaria por interrogar a escala das cidades em medida relativa, como forma de aferir do seu peso no sistema global do al-Andalus. Mais uma vez recorrerei à sistemática do cálculo das áreas urbanas feita por Mazzoli-Guintard já no século passado17 e que por isso mesmo carece de actualizações pontuais em grande medida resultantes dos dados novos trazidos pela arqueologia ou por novas investigações documentais resultantes da utilização de fontes cristãs. No caso português, em que o conhecimento arqueológico das cidades islâmicas deu, nos últimos vinte anos um salto assinalável18, a calibração desses resultados é ainda mais necessária. Há pelo menos três formas de aferir essa posição relativa: a primeira, o cálculo da área dos perímetros urbanos, facilitado pela sobrevivência de muitos dos redutos defensivos, alguns de origem romana, todos reutilizados em contexto cristão, mantendo-se pelo menos até ao século XIV como estruturas funcionais; a segunda, um indício que mede o nível de islamização mas que pode servir para aferir o peso relativo de cada madina, num universo social progressivamente dominado pelas elites escrituralísticas, o do número de ulemah associados a cada madina pelos 15 PIRES, Hélio − Os Vikings em Portugal e na Galiza. As incursões nórdicas medievais no ocidente Ibérico. Lisboa: Zéfiro, 2017. FERNANDES, Hermenegildo − “Os Madjus através do espelho: algumas glosas em torno da incursão de 844”. In BARROCA, Mário Jorge; SILVA, Armando Coelho Ferreira da (coords.) − Mil anos da Incursão Normanda ao Castelo de Vermoim. Porto: CITCEM, 2018, pp. 87-110 16 La conquista de al-Andalus [Fath al-Andalus], trad. Mayté Penelas. Madrid: CSIC, 2002. 17 MAZZOLI-GUINTARD, Christine − Ciudades de al-Andalus. España y Portugal…, pp. 458-459. 18 Veja-se, embora a arqueologia da última década já tenha dado muitos mais resultados, MACIAS, Santiago − “Islamic and Christian Medieval Archaeology”. In MATTOSO, José (dir.) − The Historiography of Medieval Portugal. C. 1950-2010, Lisboa: IEM, 2011 p. 153-177. ALGUNS PROBLEMAS EM TORNO DE UMA TR ANSIÇÃO URBANA [...] 45 sucessivos dicionários biográficos; a terceira, a consideração da dimensão política representada pela hierarquia das funções centrais, que permite considerar a evolução do peso político do Gharb no conjunto do al-Andalus, assim como perceber as variações cronológicas na geografia das centralidades dentro do próprio extremo ocidente. Comecemos pelo primeiro, capaz de nos garantir uma medida comparativa aparentemente mais segura. O cálculo das áreas resultante da soma entre o perímetro muralhado, a alcáçova, o arrabaldes ou arrabaldes e, nalguns casos, a parte do recinto que ficava vazia, feito por Mazzoli-Guintard19, permite estabelecer alguns intervalos que, mesmo que de forma imprecisa, dão uma medida da escala das cidades andaluzas, muito grande aliás se comparada com a de cidades do mundo carolíngio e pós-carolíngio contemporâneas, como Paris. Considerada a longa duração (séculos IX-XIII), o primeiro lugar é ocupado por Sevilha, muito por culpa do grande crescimento em contexto almóada, que a faz ultrapassar Córdova em importância (tendência que se faz anunciar logo durante o período taifa abádida), a única madina a atingir 300ha. Segue-se depois um grupo de cidades de grande dimensão (100-200ha), composto pela mesma Córdova, com quase 200ha, aos quais na segunda metade do século X se poderiam juntar os 100ha da cidade áulica de al-Zahra e por Toledo. Num terceiro grupo (50-100ha), aparece a primeira cidade do Gharb, Badajoz, com 75 ha, acompanhada por Almeria, Ecija, Granada, Jaén, Múrcia, Maiorca e Valência. Todas, excepto Ecija, são no século XI cabeças de reinos Taifa, o que diz bem da sua capacidade para aglutinar funções centrais. Quase todas são levantinas, o que é consentâneo com o modelo de povoamento de matriz mediterrânica e com a hipótese da relativa anemização dos centros urbanos atlânticos já antes levantada. Mesmo num quarto grupo (25-50ha) onde poderemos encontrar Carmona, Denia, Jerez de la Frontera, Lérida, Málaga e Saragoça, mais uma vez todas capitais taifa, continuam ausentes cidades ocidentais que vamos encontrar apenas no grupo abaixo, das cidades com menos de 25ha: Cáceres, Évora, Lisboa, Mértola, Saltes, Silves. É evidente que a lista é muito incompleta, por um lado, e os dados necessitam de revisão, pelo outro. Assim se calibrarmos a lista pelo mapa das mudun estabelecido por Picard20 há quase quatro décadas, chama a atenção a ausência das três capitais de conventii do período romano, uma delas também capital provincial, Emmerita, Pax Iulia e Scallabis, todas elas mudun importantes em período islâmico, embora com percursos urbanos distintos, e ainda de outro centro administrativo de peso, Ocssónoba, para falar apenas dos centros urbanos mais importantes. É verdade que duas dessas ausências, Pax Iulia (Baja) e Scallabis (Shantarin), são difíceis de 19 MAZZOLI-GUINTARD, Christine − Ciudades de al-Andalus. España y Portugal..., pp. 458-459. 20 PICARD, Cristophe − Le Portugal musulman, VIIIe-XIIIe siècle: L’Occident d’al-Andalus sous domination islamique. Paris: Maisonneuve et Larose, 2000. 46 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL preencher do ponto de vista do cálculo do perímetro muralhado: no primeiro caso os historiadores ainda não se puseram de acordo quanto à extensão da cidade no período islâmico21, as muralhas sobreviventes necessitando de um estudo urgente de arqueologia do edificado, mas podendo datar da reconstrução de Afonso III; no segundo caso, o problema da extensão da cidade islâmica para a área de Marvila não está ainda resolvido, porque as campanhas de escavação iluminam melhor o espaço da alcáçova22 (e apesar dos esforços da importante tese de Mário Viana23). Finalmente, se Ocssónoba corresponde à madina dos Banu Harun, daí não virá nenhuma revisão desta hierarquia relativa de cidades. A revisão mais significativa, talvez a única com impacto, diz assim respeito a Lisboa que beneficiou nos últimos vinte anos de uma sequência aleatória de intervenções arqueológicas que permitiram reescrever a sua história24. A maior parte dessas descobertas foram utilizadas na tese recente de Manuel Fialho25, que cobre precisamente o período transicional aqui em discussão. Se, no que respeita ao perímetro amuralhado (a “Cerca Moura”) as novidades são de precisão, destacandose por exemplo a hipótese muito plausível de localização dos mercados (aswaq), junto à mesquita aljama, depois Sé, o arrabalde oriental, o de Alfama, e, sobretudo, o ocidental, são agora muito melhor conhecidos, neste último caso muito por efeito das escavações de emergência na Baixa. E aqui o mapa varia muito consideravelmente, com as áreas que se suponham resultantes de uma ocupação do vale posterior a 1147, dando aliás origem a uma intensificação da rede paroquial, já urbanizadas em período islâmico26. O que sai desta pequena revolução é uma cidade muito maior do que se 21 MACÍAS, Santiago − La küra de Beja et Le territoire de Mértola entre l’Antiquité tardive et la Reconquête chrétienne. CAM, 2005, 3 vols e ainda MACIAS, Santiago − “Islamização no território de Beja: reflexões para um debate”. Análise Social 173 (2005), pp. 807-826. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0003-25732005000100005&lng=pt&nrm=iso. Perspectivas diferentes sobre a dimensão do intra-muros de Beja em periodo islâmico foram partilhadas em MACÍAS, Santiago; FERNANDES, Hermenegildo − “Beja islâmica - problemas de topografia”. Xelb 9. Actas do 6º Encontro de Arqueología do Algarbe: O Gharb no al-Andalus: síntesis e perspectivas de estudo. Silves: Câmara Municipal, 2009. 22 FERNANDES, Hermenegildo − “Em torno de Shantarin: posição e funções”. In ARRUDA, Ana Margarida; VIEGAS, Catarina; ALMEIDA, Maria José de (coords.) − De Scallabis a Santarém. Catálogo da Exposição no Museu Nacional de Arqueologia. Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia, 2002, pp. 47-59. 23 VIANA, Mário − Espaço e povoamento numa vila portuguesa: (Santarém 1147-1350). Lisboa: Caleidoscópio, CHUL, 2007 24 Um panorama, muito completo à data, em BUGALHÃO, Jacinta; GOMEZ-MARTÍNEZ, Susana − “Lisboa, uma cidade do Mediterrâneo islâmico”. In BARROCA, Mário Jorge; FERNANDES, Isabel Cristina (coords.) − Muçulmanos e cristãos entre o Tejo e o Douro, sécs. VIII-XIII: actas dos seminários realizados em Palmela, 14 e 15 de Fevereiro de 2003, Porto 4 e 5 de Abril de 2003. Palmela: Câmara Municipal, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2005, pp. 237-262. E mais actualizado em BUGALHÃO, Jacinta − “Lisboa Islâmica: uma realidade em construção”. In Xelb 9 – Actas do 6º Encontro de Arqueologia do Algarve: O Gharb no al-Andalus: sínteses e perspectivas de estudo, Silves, 23, 24 e 25 de Outubro de 2008. Homenagem a José Luís de Matos. Silves: Câmara Municipal de Silves, 2009, pp. 377-395. 25 FIALHO, Manuel − Mutação urbana na Lisboa Medieval: das Taifas a D. Dinis. Lisboa: FLUL, 2017. Tese de Doutoramento. Disponível em: http://hdl.handle.net/10451/29987. 26 FIALHO, Manuel − Mutação urbana na Lisboa Medieval…, pp. 231 e ss. e em síntese pp. 406 e ss. ALGUNS PROBLEMAS EM TORNO DE UMA TR ANSIÇÃO URBANA [...] 47 pensava até aqui, transcendendo largamente os cerca de 14 ha que o Atlas de A. H. de Oliveira Marques lhe atribuíra27 e podendo mesmo ombrear, nos seus cerca de 45 ha, com as cidades daqui a que chamei o quarto grupo, todas elas, como vimos, capitais taifa no século XI, ao contrário de al-Ushbuna (se exceptuarmos o breve episódio de Sabur) e aproximando-se muito das capitais regionais que constituem o selecto terceiro grupo. Isso e a sua posição portuária atlântica que é para o melhor e o pior (Lisboa foi em 844 o primeiro alvo, falhado, dos ataques vikings28) parte decisiva de uma identidade histórica de longa duração que transcende a futura capitalidade do reino português, talvez permitam explicar melhor a razão porque essa capitalidade se irá afirmar progressivamente como um facto natural depois de ter sido palco do desembarque do conde de Bolonha em 1245. Já no que respeita a Évora, o cálculo, conservador, foi feito com base no perímetro amuralhado da cidade romana, que se manteve operacional durante o período islâmico, embora com reconstruções como aquela empreendida pelos Banu Marwan, protectores da cidade, depois do assalto de Ordonho II (913). Sendo certo que a cidade só conhece uma nova e muito mais ambiciosa cintura de muralhas durante o século XIV (Vilar e Fernandes)29, está ainda por estabelecer se se verificam ou não pré-existências para os arrabaldes cristãos já perfeitamente documentados na segunda metade do século XIII 30. A intensa militarização do território que se verifica no período imediatamente anterior à conquista cristã, assim como no meio século posterior, seguramente até à conquista de Alcácer de 1217, e, mesmo depois disso, até à década de 30, a proximidade da fronteira, aconselham no entanto a ver essa possibilidade com alguma prudência. A subsidiariedade histórica da madina Yabura em relação a Badajoz, patente já durante o período dos Banu Marwan e depois durante o regime taifa Aftássida, no século XI, converge também para considerar com moderação a sua escala. No conjunto, mesmo após revisão, e enquanto aguardamos dados que permitam resolver de vez as questões pendentes que afectam duas importantes mudun de origem romana, Baja e Shantarin, o sistema urbano do Gharb, grosso modo correspondente à zona de conquista do reino português, acusa uma significativa diferença de escala face ao resto do al-Andalus, em particular às zonas Bética e Levantina, o que não pode deixar de afectar o modelo da transição, quer a resultante da militarização do século XII, quer a da conquista cristã. Importaria agora calibrar essa diferença 27 MARQUES, A. H. de Oliveira; GONÇALVES, Iria; ANDRADE, Amélia Aguiar − Atlas de Cidades Medievais Portuguesas Séculos XII-XV, s.v. “Lisboa”. Lisboa: Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, 1990. 28 FERNANDES, Hermenegildo − Os Madjus… 29 VILAR, Hermínia; FERNANDES, Hermenegildo − “O Urbanismo de Évora no período medieval”. Monumentos 26 (2007), p. 6-15. 30 PEREIRA, Gabriel − Documentos Históricos da Cidade de Évora. Évora: Typographia da Casa Pia, 1885, aliás [Lisboa, INCM, s.d.], p. 32 e ss. 48 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL de escala através de outra variável, a do número de ulemah representados, antes de considerarmos a evolução interna do jogo de funções centrais. IV A grande auto-prosopografia deixada pelo grupo cada vez mais dominante dos ulemah, a partir do século X, no ocidente islâmico como no oriente, serve várias funções. Para os próprios assegurava a legitimidade das cadeias de transmissão intelectual, que era também e sobretudo religiosa, garantindo a prova da pertença a um contínuo que garante cargos urbanos e na corte e por isso mesmo fortuna, estando a administração urbana cada vez mais oligarquizada, e através dela o consenso da comunidade em torno da sua função. Para os historiadores permite conhecer socialmente o grupo, na sua composição e origens, estudar a mobilidade social e geográfica assim como a circulação no interior do mundo islâmico. Foi tudo isto que permitiu a Maria Luísa Ávila uma tentativa de reconstrução da demografia no califado tardio e no período taifa31. A mim os dados recolhidos em três sucessivos e complementares Diccionários biográficos, datáveis entre o século X e o XIII interessam aqui como indício suplementar da escala das cidades do Gharb, por comparação interna e face ao conjunto do al-Andalus, assim como primeiro indício de uma redefinição dos lugares centrais em curso a partir do século XI32. A consideração dos dados totais permite-nos formar uma imagem da posição do Gharb no conjunto do al-Andalus assim como dos equilíbrios regionais, dando uma medida dos níveis de islamização da sociedade assim como da escala dos espaços urbanos que a difundem. Aguarda-se, para uma maior precisão, o trabalho em conclusão sobre Letrados do Gharb al-Andalus, que servirá de tese de doutoramento a Ana Luísa Miranda (na FLUL sob orientação do autor destas linhas), que revê profundamente todos os dados permitindo uma análise fina das famílias, dos seus percursos e da sua implantação regional33. Assim, e por ora, a observação dos dados sobre ulemah para o conjunto da cronologia no Gharb, permite detectar duas mudun 31 ÁVILA NAVARRO, María Luisa − La sociedad hispanomusulmana al final del califato: aproximación a un estudio demográfico. Madrid: CSIC, 1985. 32 MARÍN, Manuela; ÁVILA NAVARRO, María Luisa (coord.) − Biografías y género biográfico en el occidente islámico. Madrid: CSIC, 1997, assim como a série EOBA (Estudios Onomástico-Biográficos de al-Andalus), também publicada pelo CSIC e a base de dados online ÁVILA, M. L. (coord.); MOLINA, L.; PENELAS, M.; LÓPEZ, M. − Prosopografía de los ulemas de al-Andalus (PUA). Disponível em: http://www. eea.csic.es/pua/. 33 MIRANDA, Ana Luísa − Redes de circulação numa periferia do mundo islâmico: o Gharb al-Andalus do século XI entre o Mediterrâneo e o Atlântico, tese de doutoramento em História Medieval (em conclusão na FLUL). Alguns resultados preliminares apresentados em Ana L. S. Miranda − “The 11th century scholars in a periphery of the Muslim world: travel and conflict between Gharb, al-Andalus, Maghreb and the East”, trabalho apresentado em Travel and Conflict in the Medieval and Early Modern World Conference, Bangor, 2015. ALGUNS PROBLEMAS EM TORNO DE UMA TR ANSIÇÃO URBANA [...] 49 com mais de quarenta letrados, Badajoz (43) e Beja (41), uma com mais de vinte, Silves (27), e outras quatro com dez ou menos, Mérida (10), Lisboa (10), Santarém (6) e finalmente Évora (5). Outro centro urbano próximo, Niebla, que no século XIII será gémeo de Silves enquanto outra capital do reino do Algarve, surge representado com 27 letrados; já Sevilha, indubitavelmente o maior núcleo andaluz do período tardio tem documentados 467 ulemah, mas Córdova, a capital original, 1561. Outras capitais regionais apresentam também números avultados, como Elvira/Granada (314), Jaén (100), Málaga (114), Tudmir/Múrcia (150), Toledo (231), apesar da conquista cristã e tendo ulemah documentados ainda para além dela, Valência (235) e Saragoça (126)34. Se comparados com os dados apresentados antes sobre os perímetros amuralhados, estes não mostram novidade relativa, quase os mesmos grandes centros urbanos aparecendo entre o primeiro e o terceiro nível, agora com afinações posicionais, por exemplo Córdova trocando com Sevilha, o que dá consistência sociológica à extensão do edificado, mostrando que a dimensão da cidade é directamente proporcional ao nível de islamização e ao peso das suas elites. Ainda geograficamente se regista uma grande constância: o sul, o levante, as marcas média e superior. Nada de inesperado também na posição secundária do Gharb, variando apenas a escala, porque do ponto de vista social a diferença parece ainda mais cavada do que do ponto de vista do edificado, como se poderia constatar fazendo a ratio ha/ ulemah. Quer isso dizer que a capacidade para atrair população diminui na direcção do Gharb e do Atlântico, por contraste com o centro da Andaluzia ou o Levante, mas diminui ainda mais o potencial de polarizar as elites que governam a sociedade andaluza. Internamente os números relativos ao Gharb permitem estabelecer uma hierarquia regional, que merece afinação cronológica. Badajoz, que desde o final do século IX assume a capitalidade de Mérida, surge sem surpresa num primeiro lugar, facto que respeita a antiga tradição provincial emeritense e a geografia da conquista, assim como a evolução dos poderes regionais sob os Banu Marwan. Esta é a base sobre a qual se irá construir a capitalidade regional durante os séculos XI e XII, primeiro sob os aftássidas, depois no regime almóada. Beja, um caso estudado para este efeito por Manuela Marin35, encontra-se no entanto praticamente a par e parece ser mesmo até ao fim do reinado de ’Abd al-Rahman III a cidade do ocidente extremo com mais letrados documentados. Tudo isto aponta, diria, para uma manutenção até um período muito tardio da ordem urbana romana, quer nas mesmas cidades quer em 34 A fonte é por ora o anexo de MAZZOLI-GUINTARD, Christine − Ciudades de al-Andalus. España y Portugal…, pp. 462-464. 35 MARÍN, Manuela − “Los Ulemas de Beja: formación y desapariciόn de una elite urbana”. In BARATA, Filipe Themudo (ed.) − Elites e Redes Clientelares na Idade Média. Évora: CIDEHUS, 2001, pp. 27-44. 50 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL cidades ersatz, interpretação corroborada pela presença, ainda que mais modesta, da própria Mérida, de Lisboa (estudada por Maribel Fierro36) de Santarém e de Évora. O caso de Silves fornece uma pista para o momento da mudança, dado que a sua ascensão em número de ulemah, que corresponde à queda dos velhos centros, como Beja, coincide com a última fase documentada pelos dicionários biográficos, o período almóada. Noutros lugares regista-se o mesmo aumento espectacular em época almóada. É o caso de Almeria, Denia, Málaga, Múrcia, Maiorca e Valência, todas Levantinas, todas ocupando posições modestas ou irrelevantes do ponto de vista do protagonismo na nomina de ulemah antes do século XII, mas transformadas agora, pelo encontro combinado da sua posição privilegiada enquanto cidades portuárias (à excepção de Múrcia, no entanto ligada à costa pelo Segura), do protagonismo de algumas delas no centro de uma economia do regadio, da política regional dos impérios berberes no al-Andalus e, finalmente, do crescente protagonismo intelectual do al-Andalus no quadro do Islão do século XII, em centros urbanos de primeira grandeza. Essa progressão já havia de resto sido anunciada no século precedente pela capitalidade de reinos taifa que todos esses casos partilham. A ocidente Sevilha, Niebla e Silves partilham desse movimento. Aquela organizando-o e tornando-se a maior cidade que há nestas Espanhas de que falava Fernando III em 1248. Estas substituindo-se a Beja enquanto capital regional. O quase eclipse da madina Baja durante o século XII, se contrastado, simetricamente, com o vazio referente a Silves durante o primeiro período islâmico, parece ser o testemunho eloquente de uma importante transição em curso. Se pensarmos que também Badajoz, apesar do investimento material e militar feito na cidade e na rede de centros urbanos que a defendem, tal Elvas, pelos almóadas, conhece um decréscimo muito substancial no número de ulemah documentados, não poderemos deixar de associar essa transição à mudança das condições sociais nos centros urbanos do sudoeste peninsular ditadas pela instalação dupla de uma sociedade de fronteira e de uma economia de guerra. V Caberá agora discutir a cronologia e as condições dessa transição. A proposta é a de um crescimento assinalável, apenas parcialmente, e em alguns centros urbanos, condicionado ou mesmo neutralizado pelo impacto da fronteira e da economia de guerra. Isso colocaria o crescimento urbano no Gharb em linha com o crescimento global do al-Andalus e do ocidente mediterrânico (ainda que se admita uma maior 36 FIERRO, Maribel − “Os Ulemas de Lisboa”. In KRUS, Luís; OLIVEIRA, Luís Filipe; FONTES, João Luís − Lisboa medieval: os rostos da cidade. Lisboa: Livros Horizonte, 2007, pp. 33-59. ALGUNS PROBLEMAS EM TORNO DE UMA TR ANSIÇÃO URBANA [...] 51 precocidade em relação ao mundo latino, se exceptuarmos alguns casos itálicos). É verdade, como já se provou, que no Gharb se parte de uma escala diferente da do alAndalus central ou mesmo do Sharq, quer porque o modelo de ocupação territorial islâmico tenha descurado a fachada atlântica, quer porque aí as cidades de velha matriz romana, que assim se tinham mantido durante o período visigótico, tenham resistido pior ao efeito das dissidências durante a crise da segunda metade do século IX e à posterior recomposição califal. Será este processo, talvez, que explica a descida das cidades do Gharb na hierarquia urbana hispânica assim como a anemização evidente dos principais centros urbanos romanos (sobretudo afectando o único de primeira dimensão, Mérida). Pelo século XI, ou talvez um pouco antes, sendo a cronologia dos fenómenos tanto menos precisa quanto dependente dos dados da arqueologia, começa a desenhar-se uma mutação que se traduz não só por um crescimento mas por uma reorganização material e social dos centros urbanos assim como da hierarquia relativa entre eles. Dela restam indícios ainda fragmentários do ponto de vista urbanístico, mas muito claros se nos ativermos às sucessivas recomposições politicas e territoriais e aos testemunhos da mudança social. Começando pelos indícios arqueológicos, a maior novidade estará na estruturação das alcáçovas de que o caso de Mérida, datando ainda do século IX, constituirá antecedente. Trata-se aqui de um corte maior com o modelo urbanístico romano tradicional, embora em sítios de limites do Baixo Império se possam registar precedentes de uma deslocação do centro de poder do fórum para um pretório situado excentricamente ao eixo da cidade (no limes do Eufrates, por exemplo em Dura Europos, Zenóbia e, especialmente na última fase de Palmira, contemporânea de Diocleciano)37. Nas mudun do Gharb que conhecemos mais de perto (Lisboa, Évora, Silves, Mértola), a estruturação da alcáçova parece tardia. Assim, em Lisboa não deverá ser anterior ao século XI, estando com toda a probabilidade o topo da acrópole vazio de assentamento desde o período romano até a um período islâmico avançado38. Neste caso aliás, as datações para o bairro da alcáçova apontam para o momento almorávida, nas casas, ou mesmo anterior, do período taifa, o que configuraria um uso muito tardio, relacionável com o investimento na marca inferior e na fronteira atlântica que a profundidade da ofensiva de Afonso VI na região, assim como a própria estruturação territorial do império almorávida, muito basculado para o oceano, aconselham. Já para Évora propus noutro lugar uma cronologia mais precoce, ainda assim provavelmente não anterior ao século XI39. O que é certo é que ISAAC, Benjamin − The Limits of Empire: The Roman Army in the East. Oxford: Clarendon, 1993 FIALHO, Manuel − Mutação urbana na Lisboa Medieval…, pp. 155 e ss. 39 VILAR, Hermínia; FERNANDES, Hermenegildo − “O Urbanismo de Évora no período medieval…”, pp. 6-15. 37 38 52 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL aquando do ataque de Ordonho II a alcáçova não existia, servindo o antigo templo da praça como fortificação, pelo que a criação de um reduto na zona mais elevada do perímetro urbano poderá ser relacionada com a redução das dissidências regionais durante o califado, ou, talvez mais plausivelmente, com a importante posição da cidade enquanto segundo polo do reino aftássida. Seria neste quadro, talvez, que se poderiam explicar os alcáçeres (palácios) velhos de que fala Afonso Henriques na doação aos cavaleiros de Évora. Cronologias análogas, predominantemente do século XII, se poderiam aplicar aos bairros das alcáçovas de Silves e Mértola 40. Se é verdade que os usos do edificado exigem aqui alguns cuidados na datação, podendo como sabemos uma casa ter ocupação ao longo de muitas décadas ou mesmo centenas de anos, como aliás as transformações internas de algumas delas sugerem, e sendo as datações correspondentes amiúde a níveis de abandono, podermos no entanto pensar, sem muita margem de erro, numa intervenção global nos espaços urbanos do sudoeste, tendente a dotá-los de áreas fortificadas no seu interior, a decorrer entre os séculos XI e XII, o que se liga, creio, não só à militarização do território ditada pela fronteira, mas também e talvez sobretudo, à militarização da própria estrutura social e às tensões sociais, proporia, que as acompanham, com a consequente criação de zonas áulicas de onde governam elites locais ou, durante o longo período dos impérios berberes, alcaides e talibes representantes dos poderes magrebinos. O investimento nas alcáçovas é acompanhado por uma reestruturação das estruturas defensivas que atinge um ponto alto durante o período almóada, particularmente bem documentado do ponto de vista da arqueologia do edificado em Alcáçer do Sal, Elvas, Silves, Tavira, Loulé, e nos husun algarvios de Salir e Paderne e do ponto de vista documental em Beja. Esse movimento de grande alcance, que apresenta soluções técnicas inovadoras nas dimensões militar e construtiva, sobre as quais não é o lugar para nos determos, revela um programa consciente de intervenção no território que indica claramente uma revalorização da fronteira ocidental (ou marca inferior), e do antigo reino de Badajoz, percepcionada como uma das chaves da presença almóada na península, por permitir o acesso a Sevilha, o lugar de residência do califa no al-Andalus. Esse programa só foi possível graças a uma imensa capacidade de mobilização de recursos e estrita organização e também a técnicas construtivas, sobretudo em taipa, que permitem uma grande rapidez de execução e, no limite, uma certa modularidade. Tudo isto implica um poder central GOMES, Rosa Varela − Silves (Xelb), uma cidade do Gharb Al-Andalus: a Alcáçova. Instituto Português de Arqueologia, 2003; MACIAS, Santiago − Mértola islâmica: estudo histórico-arqueológico do Bairro da Alcáçova (séculos XII-XIII). Mértola: Campo Arqueológico de Mértola, 1996; GÓMEZ, Susana (coord) − Alcáçova do Castelo de Mértola, 1978-2008: trinta anos de arqueologia. Mértola: Câmara Municipal, 2008. Cf. ainda, para o exemplo de um hisn, MACIAS, Santiago − Castelo de Moura. Escavações Arqueológicas 1989-2013. Moura: CM Moura, 2016 40 ALGUNS PROBLEMAS EM TORNO DE UMA TR ANSIÇÃO URBANA [...] 53 robusto, organizado e bem articulado com as elites regionais que constitui a marca de água do modelo social e político almóada apesar das frequentes fissuras que ele esconde e que se tornarão evidentes após o seu colapso, no século seguinte. O caso da refundação tentada de Beja, a que me referirei abaixo, é bem sintomático desses métodos. A militarização global implícita no que acabo de dizer não impede o crescimento de arrabaldes muito visível em Lisboa, mas também na ribeira do Arade, Silves, este último escavado por Maria José Gonçalves41. Aliás, o crescimento de arrabaldes parece contrariar uma interpretação demasiado estrita das alcáçovas enquanto estrutura defensivas viradas para ameaças, externas, embora o fossem também a espaços, como se prova pelo desenvolvimento do cerco de Badajoz em 1169, onde a al-Qasaba salva os defensores almóadas do ataque de Afonso Henriques, depois deste se ter apoderado da madina42. Este episódio sublinha ainda que, no quadro da poliorcética da época, a cidade não está rendida de facto antes da tomada do bairro áulico. Porém, sendo os cercos em forma apenas um pouco mais frequentes do que as batalhas campais, o mesmo é dizer raros, creio que a definição das estruturas defensivas deverá ser tanto ligada, nas cidades do al-Andalus, ao robustecimento das cidades contra os inimigos cristãos, ou contra poderes islâmicos rivais, como à definição de espaços de poder e à representação, simbólica e material da sua preeminência sobre o restante espaço urbano. E é isso que explica, a contrario, a constância de arrabaldes, nem sempre fortificados. No caso de Lisboa sabemos com segurança que nenhuma muralha circunscreve o crescimento urbano que extravasa a “cerca moura” até ao muro da ribeira mandado erigir por D. Dinis, com finalidades militares duvidosas 43 e é a própria parede exterior das casas que garante no arrabalde ocidental alguma espécie de protecção informal no cerco de 1147. Os dados muito pontuais não permitem ainda conclusões suficientemente seguras sobre a cronologia do crescimento desses arrabaldes mas parece plausível que a sua difusão seja concomitante com o processo de formação das alcáçovas, durante o século XI, ou talvez um pouco antes, formando o seu contraponto social. Um bom exemplo disso será, mais uma vez em Lisboa, o contraste entre o bairro da Alçáçova e o bairro da praça da Figueira, ambos planeados, mas contrastantes na qualidade das casas e por isso na posição dos grupos sociais a que se destinam44. 41 GONÇALVES, Maria José da Silva − Silves islâmica: a muralha do arrabalde oriental e a dinâmica de ocupação do espaço adjacente. Faro: Universidade do Algarve, 2008. Tese de Mestrado. Cf. quanto à cronologia de ocupação a “Síntese 1 - Períodos de Ocupação do Espaço do Arrabalde”, que evidencia uma estatigrafia predominantemente almóada. 42 IBN SAHIB AL-SALA − Al-mann bil-imama, est. preliminar, trad. e índices de Ambrosio Huici Miranda. Valência: Editorial Anubar, 1969. 43 FIALHO, Manuel − Mutação urbana na Lisboa Medieval…, pp. 310 e ss. 44 GOMES, Ana; GASPAR, Alexandra − “O Castelo de S. Jorge: da fortaleza islâmica à alcáçova cristã. Contribuição para o seu estudo”. In Mil Anos de Fortificações na Península Ibérica e no Magreb (500-1500): 54 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Assim, se o crescimento da alcáçova se liga à oligarquização também promovida pelos impérios berberes, o desenvolvimento de arrabaldes poderá ser resultado do dinamismo demográfico da população urbana durante o século XI, mas será dificilmente explicado sem recorrer à variável êxodo rural, numa sociedade em que o mundo rural é sempre campo de uma cidade. Essas mudanças remetem para um segundo campo de observação no quadro da mutação urbana dos séculos XI e XII, o dos indícios sociais. Começaria por registar um movimento de oligarquização que consolida a posição da hassa, estimulada pela integração das elites nos quadros do império almóada que opera a benefício de famílias pré-existentes mas sem protagonismo aparente durante o primeiro período taifa. Estas emergem politicamente no segundo período taifa mantendo-se até à conquista cristã de Alcáçer. São ainda aparentes tensões sociais entre a hassa e a plebe, assim como uma oposição campo cidade, expressas politicamente na difusão do movimento sufi45. Creio que estas tensões, parcialmente resolvidas pela integração no império almoáda (que não as resolverá completamente e lhes junta outras, como aquelas que opõem as elites andaluzas aos dignitários berberes, mas funciona enquanto dura como um verniz unificador), são sintomas da maturidade do sistema urbano andaluz e em particular do Gharb, tendo paralelo na evolução da sociedade urbana na Síria e no Egipto contemporâneos, em que os vestígios dos vínculos tribais estavam a dar lugar a um modelo verticalizado das relações sociais. Essa mutação caracteriza-se, por um lado, por um peso cada vez maior das elites escrituralísticas (o que vai no sentido da oligarquização)46 e, por outro, pela manifestação de fenómenos de contra-poder de matriz popular quase sempre expressos através de formas alternativas de religiosidade (sufismo). A militarização geral da sociedade, estimulada na Síria pela presença do elemento turco (e também curdo) e no alAndalus pelo berbere, e em ambos os casos pelo confronto com reinos cristãos organizados pela Cruzada, faz com que essas tensões sejam capitalizadas a favor da hassa que acumula quer o capital simbólico que lhe é garantido pelo controle das cadeias de transmissão intelectual, quer o capital de domínio político que lhe advém da presença na corte e da liderança militar (uma estrutura de poder mais complexa, Actas do Simpósio Internacional sobre Castelos. Lisboa: Edições Colibri, Câmara Municipal de Palmela, 2001; SILVA, Rodrigo Banha da − “O bairro islâmico da Praça da Figueira (Lisboa)”. In Cristãos e Muçulmanos na Idade Média Peninsular: Encontros e Desencontros. Navarra: Instituto de Arqueologia e Paleociências das Universidades Nova de Lisboa e do Algarve, 2011. 45 FERNANDES, Hermenegildo − “O Campo Muçulmano - Crises e pressão fiscal. Fracturas sociais”. In SERRÃO, Joel; MARQUES, A. H. de Oliveira (dir.) – Nova História de Portugal, Vol. III: Portugal em Definição de Fronteiras (1096-1325): Do Condado Portucalense à crise do Século XIV, coord. de Maria Helena da Cruz Coelho e Armando Luís de Carvalho Homem. Lisboa: Presença, 1996, pp. 73-81; FERNANDES, Hermenegildo − Entre Mouros e Cristãos. A sociedade de fronteira no sudoeste peninsular interior (séculos XII-XIII). Lisboa: FLUL, 2000. Dissertação de doutoramento. 46 CHAMBERLAIN, Michael − Knowledge and Social Practice in Medieval Damascus, 1190-1350. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. ALGUNS PROBLEMAS EM TORNO DE UMA TR ANSIÇÃO URBANA [...] 55 integrada e, sobretudo urbana do que a nobreza cristã do período, embora algumas analogias possam ser feitas, se tivermos em conta a apropriação parcial desta da ordo clerical). Proporia aqui que esta estrutura, de base inteiramente urbana, atingiu no entanto um grau de complexidade tal que necessita para funcionar do principado, leia-se do império, com uma administração suficientemente robusta para precisar da hassa e um domínio territorial capaz de lhe garantir as bases do seu assentamento. Essa interdependência é bem visível no mais notório caso de intervenção territorial programática do império almóada no Gharb, a tentativa de refundação urbana de Beja. Este caso, que analiso num artigo a publicar em breve47, é eloquente já do ponto de vista da reconstrução do sistema de funcionamento do império à escala regional, permitindo perceber o papel da comunicação política e o protagonismo das elites, berberes e andaluzas que constituem a sua ossatura, já do ponto de vista das estruturas materiais e dos esforço envolvido na refundação de uma cidade gravemente afectada pela guerra de fronteira. Aproveitando a trégua pedida, segundo o Bayan, por Afonso Henriques (ou por Sancho I, visto todos os descendentes de D. Henrique serem tratados pelos cronistas árabes seus contemporâneos com o nasab, ou patronímico, de Ibn al-Rink) em 1174, o califa Yusuf, estando em Sevillha com toda a corte, decide empreender a intervenção em Beja que se inicia em Novembro de 1174, estando por Março do ano seguinte os trabalhos de reconstrução muito avançados. O espaço ocupado pela narrativa no Bayan48, que esclarece a magnitude do empreendimento, permite conhecê-lo em detalhe. Por enquanto deixarei aqui apenas alguns leitmotiven. Em primeiro lugar, a perda não é associada à ameaça cristã mas às contradições internas na cidade: verticais: entre a hassa, apoiada pela amal e a sufal (que inclui aqui o campesinato); horizontais sendo notória a subliminar tensão entre o patriciado andaluz e os berberes. Outro problema prende-se com a necessidade do califa servir como equilibrador dos poderes em confronto na cidade o que revela o difícil funcionamento de uma administração central periférica. O repovoamento é assim um balão de ensaio de soluções integradoras que juntam andaluzes e almóadas: povoar é submeter à máquina do império e tem por isso razões que transcendem o interesse militar. Por outro lado, os espaços dessa intervenção (alcáçova, casas, tendas, agricultura) revelam os interesses califais, centrados na reposição de uma fiscalidade e em fazer cidade através de uma reconstrução da capitalidade. Beja faz desta forma parte de um programa mais amplo de matriz dinástica que inclui a própria Sevilha, Em submissão. Resulta da comunicação “As mudun e a fronteira: o projecto almóada de reocupação de Baja” nas Jornadas Internacionais Terra, Pedras e Cacos do Garb al-Andalus. Org. Grupo CIGA, Palmela, 23-25 de Janeiro, 2020. 48 IBN ʻIḎĀRĪ AL-MARRĀKUŠĪ − al-Bayān al-mugrib fi ijtiṣār ajbār muluk al-Andalus wa al-Magrib. Los Almohades. T. I-II., trad. Ambrosio Huici Miranda. Tetuán: Editora Marroquí, 1953-1954. 2 vol. A narrativa ocupa os primeiros capítulos do vol. 1 da tradução, cf. pp. 13 e ss. 47 56 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Rabat, Marrakush e, nesta cronologia, se encontra ligado ao programa de Yusuf I de capitalidade no ocidente do al-Andalus. Por estas razões parece evidente que o exame da mutação urbana no sudoeste peninsular dos séculos XI e XII terá de ter também em conta os indícios políticos que apontam no sentido de uma redefinição da hierarquia das funções centrais, assim como a definição de espaços de articulação política e territorial potenciais. A matriz dessa reconfiguração parece já assumida de forma práctica no século XI, qualquer que seja a valia das divisões administrativas constantes das obras dos geógrafos. Ela pressupõe uma estruturação da rede urbana em função de três unidades, o reino de Badajoz, o complexo urbano dos estuários (Tejo e Sado), a parte ocidental do reino abádida de Sevilha, que seria o reino do Algarve, acompanhada por um novo sistema de lugares centrais. Creio que essa reestruturação tem um impacto decisivo na evolução dos centros urbanos envolvidos per se e no sistema urbano do Gharb no seu conjunto, assim como na forma da sua recepção pelo reino português e pela coroa de Leão Castela. O ponto de partida da mutação no sistema é a configuração que resulta do conflito entre os muluk al-tawa’if e das áreas de influência definidas durante o século XI49. Distingue-se aí claramente a área do extremo meridional, composta pelas cidades litorais do futuro reino do Algarve, repartidas em cinco taifas diferentes, numa margem e noutra do Guadiana, todas nalgum momento incorporadas no reino abádida de Sevilha, a que se junta Beja, que sempre esteve nessa esfera de influência, do interior no Entre Guadiana e Tejo, e além deste, centrado em Badajoz e Évora e pertencente ao reino aftássida de Badajoz. A terceira zona, a dos estuários do Tejo e do Sado, tem uma definição e vinculação política menos clara, embora no primeiro caso nominalmente dependente de Badajoz. A autonomia mesma dessa região explica a cedência feita pelos aftássidas a Afonso VI, de Lisboa e Santarém (entendem seguramente que não estão a ceder uma parte nuclear do seu reino) mas não deixa de ser revelador quanto à sua composição social que nunca se tenha aí declarado nenhuma solução monárquica durável (excepto, como disse, o episódio de Sabur), o que pode ser o resultado de um certo nivelamento da oligarquia. As mesmas razões, explicam, creio, as condições territoriais da conquista de 1147, que não inclui, de forma imediata, nenhuma cidade principal do antigo reino de Badajoz. Proporia, assim, que data do período taifa a reorganização política do sistema urbano que define a hierarquia dos lugares centrais que se manterá durante os séculos seguintes e cuja lógica os rumos da conquista cristã se esforçarão por manter. Que a razão principal do fracasso final de ambos os reinos (Portugal e Leão) nesta tentativa e a consequente reorganização das hierarquias territoriais a partir da década de 30 49 GUICHARD, Pierre; SORAVIA, Bruna − Les royaumes de Taifas: apogée culturel et déclin politique des émirats andalous du XIe siècle. Paris: Geuthner, 2007 ALGUNS PROBLEMAS EM TORNO DE UMA TR ANSIÇÃO URBANA [...] 57 de Duzentos, seja a impossibilidade de manter a integridade territorial do que fora o reino taifa de Badajoz, finalmente dividido entre as duas coroas, diz muito sobre a forma como o sistema urbano do sudoeste hispânico se organizava durante os séculos XI e XII. Enunciaria aqui algumas dessas características. Em primeiro lugar, o eixo vertebrador continua mais interior que litoral sendo claramente a região dos estuários supletiva do ponto de vista dos poderes andaluzes mas não dos berberes, que se mostram mais atentos à importância do mar e da frota. Essa mesma contradição explica a relativa facilidade da conquista de Santarém e Lisboa, mas também a tentativa de recuperação de Santarém (1184) e o encarniçamento em torno de Alcácer do Sal. A tensão entre o peso do litoral e da região articulada à costa e as cidades das peneplanícies interiores que prolongam a meseta, vai percorrer todo o plano de conquista do reino português no período intermediário de meados do século XII e durante todo o período almóada, resolvendo-se, apesar dos interesses iniciais da coroa portuguesa, a favor do eixo litoral e de uma divisão da zona interior que a vai menorizar, assim como aos seus centros urbanos. O destaque de Lisboa, que é a maior cidade da fachada atlântica andaluza, assim como de Santarém, que é a fortificação mais importante a dominar a melhor região cerealífera, e, num plano secundário, de al-Qasr Abi Danis, que controla o Sado, nunca poderá ser sublinhado o suficiente, antecedendo, com toda a evidência em muito a conquista cristã. Nas peneplanícies interiores, o reino de Badajoz recupera todas as funções centrais de Mérida encontrando-se agora investido da capitalidade de marca inferior. A sua importância resulta não apenas do território que estrutura mas também da função de tampão em relação a Sevilha. Todos os centros urbanos da região se referem concentricamente à cidade do Guadiana que lhe serve de matriz. Qual fosse essa organização pode inferir-se à posteriori pelo circuito das conquistas de Geraldo Sem Pavor nos anos 60 do século XII, que culminam nos assaltos finais frustrados à própria madina, a lógica sendo de envolvimento da periferia para o centro: Évora, Trujllo, Cáceres, Montanchéz, Serpa e Juromenha50. Isso explica o investimento de recuperação urbana feita pelos almóadas na região, quer em Badajoz quer por exemplo em Elvas. O colapso de Beja e a posterior tentativa de refundação almóada mostra as dificuldades que este sistema está a sofrer no século XII e seguramente ajuda a explicar a sua debilitação e dificuldade de recuperação após a conquista cristã. Finalmente, na região de Beja e Évora mas sobretudo mais a sul, o período intermediário de meados do século XII é marcado por autonomias políticas que de 50 FERNANDES, Hermenegildo − Entre Mouros e Cristãos. A sociedade de fronteira…, sobretudo o capítulo III. LOPES, David − O Cid Português: Geraldo Sempavor. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Instituto de Estudos Históricos Dr. António de Vasconcelos, 1940. PEREIRA, Armando de Sousa − Geraldo sem Pavor. Um guerreiro de fronteira entre cristãos e muçulmanos, c. 1162-1176. Porto: Fronteira do Caos, 2008. 58 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL certa forma evocam os reinos taifa do extremo ocidente no século anterior. É certo que as realidades sociais são agora outras e se no lugar dos Banu Harun ou dos Banu Muzayn se encontram também famílias da hassa como os Banu Wazir, o dinamismo vem de novos grupos, como aqueles representados pelo sufi Ibn Qasi. Mas não se pode deixar de pensar numa individualização do sistema urbano dessa região, de organização policêntrica, em que Silves assume desde o século XII, capitalidade crescente. Esse mesmo esquema será repetido na década de 30 do século XIII pela constituição do reino de Ibn Mahfud. Numa escala mais reduzida, a manutenção no interior do reino português do reino do Algarve como entidade diferenciada é um testemunho evidente desse percurso. Assim, a conquista cristã tem uma lógica que é determinada por um conjunto de eixos pré-existentes: 1. O controle dos estuários que tem uma aparente rápida resolução em 1147 aproveitando o vazio de poder entre impérios berberes e a debilidade relativa do senhores regionais, tais os Banu Wazir ou Ibn Qasi, mas fica incompleto até à conquista final de Alcácer do Sal de 1217, o que mantém Lisboa e Santarém numa posição de fronteira durante setenta anos (quase todo o período almóada) e adia a construção da capitalidade do reino português em torno desse eixo urbano. 2. A luta pelo reino de Badajoz, que envolve todos os protagonistas em presença, o reino português, sendo este o grande projecto da última fase do reinado de Afonso Henriques, o leonês e os almóadas que defendem. Prolonga-se desde antes de 1169 até 1230 e aqui está a grande área vertebradora da fronteira durante esse longo período. As consequências para o sistema urbano pré-existente são variáveis mas em muitos locais devastadoras, o que nunca pressupõe porém o vazio. 3. A batalha pelo reino do Algarve que se estende também durante bastante tempo (11891249), embora com o grosso das operações concentradas no biénio 1189-1191 e nas décadas de 30 e 40 de Duzentos. Isso permite que a exposição dos centros urbanos às condições da fronteira seja mais breve havendo mais de meio século de recuperação entre um e outro momento, durante o qual o reino tem um papel importante na política almóada (é o caso de Abu Ula Idris, que antes de ser califa com o laqab de al-Ma´mun governa o Gharb e deixa uma importante epígrafe fundacional em Silves51) o que, juntamente com a consciência da sua importância estratégica para o controle do al-Andalus e dos Estreitos explica o investimento urbanístico que aí é feito numa cronologia próxima às importantes obras que estão a ser realizadas em Sevilha. A preservação do sistema resultante da menor exposição à fronteira explica que aqui a conquista cristã encontre estruturas muito intactas, justificando também 51 MIRANDA, Ambrosio Huici − Historia poltica del imperio almohade. II. Instituto General Franco de Estudios e Investigacion Hispano-Árabe. Tetuán: Editora Marroquí, 1957. BORGES, Artur Goulart de Melo − “Epigrafia Árabe no Garb”. In Portugal Islâmico. Os últimos sinais do Mediterrâneo. Catálogo da Exposição. [s.1.]: Museu Nacional de Arqueologia, [s.d.], p. 227 e seguintes. ALGUNS PROBLEMAS EM TORNO DE UMA TR ANSIÇÃO URBANA [...] 59 a permanência da memória do cadastro do período islâmico. VI Do que se disse parece-me poder destacar-se um modelo para uma mutação urbana no al-Andalus do período tardio, que se destaca, já dos problemas que envolvem a primeira transição, a que assegura a transformação da cidade romana antes e imediatamente a seguir à conquista árabe-berbere, assim como daqueles que se colocam a seguir à conquista cristã, pelo ajustamento dos sistemas de controle político e social e das próprias formas de vida. Creio ainda poderem deduzir-se algumas características que permitem individualizar o sistema urbano do Gharb alAndalus no conjunto das cidades islâmicas da península ibérica. Assim e em primeiro lugar, refira-se que essa mutação está em linha com o crescimento europeu dos séculos XI e XII traduzindo-se numa significativa reurbanização da vida social. Duas particularidades, a primeira delas constitutiva porque anterior na cronologia, destacam o al-Andalus: não só a retoma se verifica mais cedo como a velha estrutura urbana romana dá lugar à cidade islâmica sem hiatos cronológicos e sem cortes tão profundos como aqueles que se registam na maior parte do antigo império do ocidente, ficando essa retoma a dever-se aos processos de orientalização proporcionados pela conquista árabe; ao contrário do que sucede no conjunto do ocidente europeu neo-latino, as condições desse crescimento são, a partir do fim do século XI, e plenamente nos séculos XII e XIII, interferidas pela generalização da fronteira enquanto modelo social e económico, assim como pela omnipresença da economia de guerra. Isso não quer dizer, evidentemente, que a guerra seja um fenómeno especifico da Hispânia medieval, mas que a luta pelo espaço, investida ideologicamente pelos conceitos de reconquista, cruzada e jihad, atinge um paroxismo capaz de influir duradouramente nos modelos de organização social e territorial, tal como em atmosfera mais restrita e controlada está a acontecer na Síria (Outremer), na mesma cronologia. O al-Andalus e as cidades que constituem a sua ossatura, sofrem esse impacto de formas variadas, dependendo da exposição e proximidade à área de fronteira, do investimento feito pelos impérios berberes, da solidez do tecido social das cidades e, finalmente, da sua capacidade de ligação à esfera mediterrânica e magrebina que assegura a sobrevivência para lá da crise dos meados do século XIII de um último alAndalus escorado no triângulo Granada/Málaga/Almeria. O que parece ser comum é o facto de essas circunstâncias imporem uma transição urbana anterior à conquista cristã (que dela em certa medida faz parte), como acontece também em Shams (Síria) nos casos de Alepo, Homs ou Damasco, nunca conquistadas pelos reinos cruzados mas cuja vida social e forma urbis serão fortemente dominadas pela generalização 60 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL da guerra. No caso do Gharb al-Andalus essa transição faz-se sentir de forma talvez ainda mais nítida e precoce do que no resto da península. Em primeiro lugar porque o relativo desinvestimento omíada, que a operação amirida na zona de Coimbra não chega para contrariar de forma duradoura, permitiu um avanço muito mais rápido, em latitude, do reino leonês, do que nas outras zonas da Hispânia. Em segundo lugar, o que decorre do anterior, porque nunca até Zalaca, o ocidente foi um palco militar de primeira grandeza para os omíadas e seus epígonos. Essas condicionantes explicam que Coimbra, no extremo da fronteira ocidental, tenha sido a primeira cidade importante do al-Andalus perdida de forma permanente para os cristãos do norte. Explicam ainda que o reino de Afonso VI esteja no ocidente mais a sul do que em qualquer outro lugar a partir do fim do século XI, incluindo Toledo, e que mais ou menos todas as cidades do Gharb se encontrem a partir dessa data numa situação de fronteira52. Excluiria da equação, por enquanto e até à segunda metade do século XII, quando a sua posição litoral acaba por desencadear as operações militares que tornam visível uma outra dimensão da fronteira, a marítima, o reino a que depois se chamará do Algarve, com Silves à cabeça. Assim, do meu ponto de vista, o sistema urbano do sudoeste está já em transição antes da conquista cristã e os fenómenos que caracterizam essa mutação da última fase de domínio islâmico são precocemente visíveis no Gharb, deixando uma marca na paisagem urbana que só a grande revitalização do reinado de Afonso III começará a apagar. A mutação, determinada pela militarização do território e da estrutura social, pode ser observada quer à escala macro da hierarquia dos lugares centrais, quer à escala micro dos principais centros urbanos considerados per se. No primeiro caso tem lugar um redesenho territorial que privilegia cidades antes de segunda linha, ou recentes, em detrimento das velhas centralidades herdadas do período romano. Assim Beja cede o passo a Silves e, em menor grau, também a Évora, como Mérida já o cedera a Badajoz; no Atlântico a antiquíssima al-Ushbuna ganha uma nova preponderância urbana, mesmo se Shantarin continua a ser a chave militar e agrícola da região. Esse redesenho de centralidades, quando combinado com a variável “fronteira”, está por detrás das individualizações políticas efémeras durante o primeiro período taifa, antes da absorção pela Sevilha abádida, assim como da constituição do reino de Badajoz; do volátil mapa político regional do período intermédio que antecede o controle almóada; da constituição do reino de Ibn Mahfud depois do fracasso de Ibn Hud, na década de 30 de Duzentos e ainda da constituição de um senhorio contemporâneo de contornos quase desconhecidos, o 52 cf. LOURINHO, Inês Bailão − Fronteira do Gharb Al-Andalus: terreno de confronto entre almorávidas e cristãos (1093-1147). Lisboa: FLUL, 2018. Tese de Doutoramento. Disponível em: http://hdl.handle. net/10451/34780. ALGUNS PROBLEMAS EM TORNO DE UMA TR ANSIÇÃO URBANA [...] 61 do infante D. Fernando em Serpa. Quer os almorávidas quer sobretudo os almóadas, parecem validar essa redefinição de hierarquias urbanas, o que poderá ser visto como uma necessidade de adaptação aos interesses das elites locais que constituem a base do seu poder na região. E é precisamente em linha com esses interesses que se programa e executa parcialmente a mais ambiciosa tentativa de resistir à erosão provocada pela presença da fronteira nas estruturas urbanas regionais, o projecto de repovoamento de Beja. No segundo caso, o da escala micro, espreita uma variedade de casos que parece diluir a tentação de um modelo único. O contraste entre os centros urbanos em crescimento e estruturação e a anemização de outros não podia ser mais evidente. Essa diversidade a que já aludi e que as intervenções arqueológicas dos últimos trinta anos iluminam com bastante rigor, do crescimento inesperado de Lisboa ao quase desaparecimento de Beja, parece no entanto não invalidar um quadro geral de crescimento apesar da fronteira e da economia de guerra, nalguns casos talvez beneficiando dela, que atinge um ponto alto através da grande injecção de capital providenciada pelo império almóada. Apesar de muito durável no tempo, ele já não abrangeu a totalidade do sistema urbano do sudoeste, várias das cidades citadas estando já dentro da esfera cristã. Os anos que se seguem à conquista por Afonso IX de Badajoz e que fecham com a conquista de Faro por Afonso III, ou talvez melhor ainda, com a rendição da Niebla de Ibn Mahfud e, depois deles o tratado de Badajoz de 1267, vão pôr à prova a sobrevivência desse sistema, determinando uma nova redefinição. 62 Ciudades y procesos de “agrarización” en Andalucía Occidental durante el siglo XV Emilio Martín Gutiérrez1 Resumen Durante el siglo XV en Andalucía Occidental – que contaba con una importante tradición urbana de época andalusí – cada localidad controlaba un término donde se ubicaban las explotaciones agrarias que sirven de guía para establecer la equivalencia entre tierra cultivada y tierra productiva. Y, por supuesto, hubo una orientación pecuaria – el papel de los espacios incultos es fundamental – muy intensa que debe ser interpretada en esta misma línea. Mediante dos estudios de casos – el estuario del Guadalquivir y la Bahía de Cádiz – se presta atención al litoral – en estrecha relación con las ciudades, como centros de consumo, y con los complejos portuarios – con la creación de poblaciones, la organización de sus correspondientes parcelarios rurales y la explotación de sus recursos naturales. Se trata de un proceso muy interesante de “agrarización tardía” fechada a finales de la Edad Media. Palabras clave Ciudades; Agrarización; Andalucía Occidental; Siglo XV. 1 Universidad de Cádiz. 64 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Cities and processes of land reclamation in Western Andalusia during the 15th century Abstract During the 15th century in Western Andalusia – which had an important urban tradition from the Andalusian era – each town controlled a term where located the agricultural farms that serve as a guide to establish the equivalence between cultivated land and productive land. And, of course, there was a livestock orientation – the role of uncultivated spaces is fundamental – very intense that must be interpreted along these same lines. Through two case studies – the Guadalquivir estuary and the Bay of Cádiz – attention is paid to the coast – in close relationship with cities, as centers of consumption, and with port complexes – with the creation of populations, the organization of their corresponding land plots and the exploitation of its natural resources. It is a very interesting process of land reclamation dated to the end of the Middle Ages. Keywords Cities; Land reclamation; Western Andaluzia; 15th century. 1. A modo de introducción. El miércoles 10 de febrero del año 1500 el concejo de Jerez de la Frontera accedía a la petición presentada por los labradores Francisco Berrocal, Pedro Guillén y Antón López y por los carpinteros Gonzalo Martínez y Pedro Sánchez. Todas estas personas, que tenían sus correspondientes cartas de vecindad lo que les permitía demostrar que vivían en la ciudad, habían solicitado permiso para cortar madera en el bosque de la Jardilla ubicado en el alfoz jerezano. La decisión del gobierno de la ciudad fue que cada uno de ellos pudiese cortar, como máximo, una “carretada” de madera: los labradores, para el servicio de su labor, y los carpinteros, para sus tiendas. En este procedimiento administrativo, los implicados aceptaban y se sometían a la normativa vigente incluida en el articulado de las Ordenanzas Municipales2. He seleccionado este ejemplo, uno de los muchos susceptible de ser localizado en la documentación de archivo de las poblaciones andaluzas, porque dibuja 2 [A]rchivo [M]unicipal de [J]erez de la [F]rontera, Actas Capitulares, Año 1500, fol. 191v. CIUDADES Y PROCESOS DE “AGRARIZACIÓN” EN ANDALUCÍA OCCIDENTAL [...] 65 con nitidez la gobernanza de la ciudad, las políticas desplegadas en lo tocante al abastecimiento, el carácter proteccionista de la normativa legal y la interacción entre el espacio urbano y el rural a finales de la Edad Media. No entra entre los objetivos de este estudio plantear un estado de la cuestión en torno al papel de la ciudad como agente galvanizador en las políticas de abastecimiento durante el siglo XV. En cualquier caso, sí quisiera valorar de forma positiva el trabajo de los investigadores que han analizado esta problemática. En las siguientes páginas, iré incluyendo las referencias bibliográficas que me han parecido más significativas y que me han ayudado a sostener las siguientes reflexiones. 2. Planteamiento de la problemática. Resulta un lugar común en la historiografía europea sostener que “sul finire del XIII secolo, l’Italia comunale è l’Italia del trionfo delle città, trionfo politico, economico e culturale che si traduce concretamente in un tasso di popolamento sorprendentemente alto rispetto ad altre realtà europee”3. En este sentido, y tomando como referente el desarrollo urbano en el centro y norte de Italia entre los siglos XII y XV, Maurizio Vitta ha puesto el acento sobre el hecho de que la calle, la plaza, la fachada de un palacio o la construcción de un puente no sólo fueron respuestas a las exigencias de la praxis cotidiana, sino que formaron parte de un proyecto político de organización jerárquica de las relaciones sociales4. Estos planteamientos se asientan, evidentemente, en una lectura interdisciplinar en la que el historiador debe atender otros presupuestos generados desde la sociología, la antropología, la geografía o el urbanismo por citar algunas disciplinas. En estos mismos términos, y en relación con la historiografía portuguesa, se manifestaba recientemente Amélia Andrade: “Mais l’urbanisation intensive de la population portugaise, tout comme les interrogations face à la croissance désordonnée des villes et la conséquente complexification des expériences urbaines qui se sont développées au Portugal à partir des années 1960, a coïncidé avec l’affirmation universitaire d’autres branches des sciences humaines et sociales, telles que la sociologie et l’anthropologie, qui considèrent la ville et surtout les sociétés urbaines comme l’un de leurs objets d’étude”5. 3 CROUZET-PAVAN, Elisabeth – Le città viventi. Italia XIII-XV secolo. Siena: Salvietti & Varabuffi Editori, 2014, p. 178. 4 VITTA, Maurizio – Il paesaggio, Una storia fra natura e architettura. Torino: Enaudi, 2005, pp. 110115 y 128. 5 ANDRADE, Amélia Aguiar – “La ville médiévale au Portugal. Perspectives et tendances”. In ANDRADE, Amélia Aguiar; COSTA, Adelaide Millán da (eds.) – La ville médiévale en débat. Lisboa: IEM, 2013, pp. 145-156, pp. 151-152. 66 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Estas lecturas, que me interesa como formulación metodológica, las pongo en relación con la interpretación, defendida por Patrick Boucheron y Denis Menjot, que aboga por comprender la ciudad medieval de una forma global y que ha sido formulada en términos de “ser”: la ciudad “es un paisaje organizado y [es], a la vez, una sociedad y un centro” que interactuaba con el campo6. Así pues, la ciudad y el campo no pueden ser considerados, desde luego, ni espacios opuestos ni neutrales. No es una novedad que focalice la atención en la interacción ciudad y campo en los siglos medievales. En efecto, “città e campagne – como en su momento señaló Giuliano Pinto – furono elementi complementari di un processo unitario, che non può essere correttamente inteso senza che se ne studino nessi e rapporti, dipendenze e reciproche interferenze”7. Un diálogo entre el ámbito urbano y el rural que se fue materializando en la “creazione di nuovi paesaggi sociali”8. Fig. 1 – Andalucía en el siglo XIII9. 6 BOUCHERON, Patrick y MENJOT, Denis – La ciudad medieval. In PINOL, Jean-Luc (dir.) – Historia de la Europa urbana, Vol. II. Valencia: Universidad de Valencia, 2010, pp. 14-15. 7 PINTO, Giuliano – Città e spazi economici nell’Italia comunale. Bologna: CLUEB, 1996, p. 15. Son, también, muy sugerentes las reflexiones del mismo autor incluidas en el siguiente trabajo: PINTO, Giuliano – “I rapporti economici tra città e campagna”. In GRECI, Roberto (ed.) – Economie urbane ed etica economica nell’Italia medievale. Roma-Bari: Laterza, 2005, pp. 3-73. 8 RAO, Riccardo – I paesaggi dell’Italia medievale. Roma: Carocci Editore, 2015, p. 176. 9 La cartografía SIG ha sido realizada en el Seminario Agustín de Horozco de la Universidad de Cádiz por el profesor Enrique José Ruiz Pilares. CIUDADES Y PROCESOS DE “AGRARIZACIÓN” EN ANDALUCÍA OCCIDENTAL [...] 67 La ubicación de Andalucía Occidental – en las cercanías de El Estrecho de Gibraltar – es un factor, no determinante pero sí a tener en cuenta, a la hora de comprender la integración de las ciudades en las rutas comerciales entre el Mediterráneo y el Atlántico. Tras la conquista feudal de mediados del siglo XIII, Andalucía Occidental, que contaba con una sólida tradición urbana de época andalusí, pasó a formar parte del Reino de Sevilla, un territorio que superaba los 45.000 km2 y en el que cohabitaron las jurisdicciones realengas y señoriales con una clara incidencia en la organización del territorio o en las políticas fiscales. Los medievalistas han tratado de dar respuesta al fenómeno urbano en Andalucía Occidental mediante propuestas de jerarquización de las ciudades en función del número de habitantes o de la extensión de las zonas urbanizadas dentro y fuera de las murallas o de la ampliación del recinto defensivo10. De esta manera, se ha estimado que a finales del siglo XV la mitad de los andaluces vivían en ciudades y en “agrociudades” con más de 5.000 habitantes11. Localidades Habitantes Sevilla 50.000 Écija 22.500 Jerez de la Frontera 19.000 Utrera 10.025 Carmona 9.405 Aracena 7.740 El Puerto de Santa María 7.680 Ayamonte 5.692 Moguer 5.258 Sanlúcar de Barrameda 5.080 Cazalla de la Sierra 5.000 Tabla 1 – Ciudades en Andalucía Occidental con más de 5.000 habitantes. Algunos ejemplos. Año 153312. 10 Véase, con las referencias biográficas oportunas, el trabajo de COLLANTES DE TERÁN, Antonio – “Las ciudades de Andalucía desde el siglo XIII a comienzos del XV”. In COLLANTES DE TERÁN, Antonio – Una gran ciudad bajomedieval. Sevilla. Sevilla: Universidadde Sevilla, 2008, pp. 225-262, p. 231. En torno a esta problemática, resultan también oportunas las reflexiones de PINTO, Giuliano – “I nuovi equilibri tra città e campagna in Italia fra XI e XII secolo”. In CASTAGNETTI, A. (dir.) – Città e campagna nei secoli altomedievali, 56° Settimana di studio, Spoleto marzo 2008. Spoleto: CISAM, 2009, pp. 1055-1082, pp. 1064-1065. 11 La problemática en torno a las pequeñas ciudades, con referencias explícitas a la historiografía italiana, francesa e inglesa, puede seguirse en GINATEMPO, Maria – “Vivere ‘a modo di città’. I centri minori italiani nel basso medioevo: autonomie, privilegio, fiscalità”. In Città e campagne del Basso Medioevo. Studi sulla società italiana offerti dagli allievi a Giuliano Pinto. Firenze: Olschki Editore, 2014, pp. 1-30, pp. 2-3 y 7-12. 12 DOMÍNGUEZ ORTIZ, Antonio – “La población del Reino de Sevilla en 1534”. Cuadernos de Historia. 68 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Sin entrar a discutir estos planteamientos, sería conveniente prestar atención al dinamismo de la ciudad, a su capacidad para atraer productos y personas o para establecer contactos con otros centros. Pero no quisiera olvidar la clave medioambiental, con especial mención al ecosistema en el que se ubica el núcleo de población. En este sentido me llama poderosamente la atención el enfoque de Richard Hoffmann al plantear el estudio de las ciudades medievales como ecosistemas especiales en la que la urbanización no es entendida como “a transformation of nature, but creation of an entire second nature”. Así, en su opinión: “Cities are unusual ecosystems because, unlike most others, urban ecosystems cannot maintain or replace themselves. City ecosystems are formed and maintained by cultural inputs, really in one sense by inputs of information. Much as rural decisions made woodlands into fields, urban cultural ferment generated programmes, which generated work, in this case the construction and maintenance of the city itself. Cities are not colonized ecosystems either, but rather wholly artificial ones. Urbanization was not a transformation of nature, but creation of an entire second nature. Natural processes certainly go on in every city, but many of those processes were not in that place, did not exist, until the city was created”13. Al igual que en otras comarcas europeas, en Andalucía Occidental hay una amplia variedad de ecosistemas – campiñas adecuadas para el desarrollo de la agricultura, bosques, montañas, ríos, marismas, costas – que constituye la base para la comprensión del aprovechamiento de los recursos naturales. Las políticas de abastecimiento de las ciudades se acoplaron a esta realidad y estuvieron en consonancia con la diversidad de paisajes del entorno. Por ejemplo, aunque el abastecimiento de la carne estaba en manos de los arrendadores de la carnicería, el concejo de Sanlúcar de Barrameda controlaba y fiscalizaba su actuación: una misión que recaía en el fiel ejecutor y en los almotacenes. Los arrendadores de la carnicería – ubicada en las cercanías de la actual iglesia de la Caridad – estaban “obligados”14 a proveer a la población de carne de vaca y puerco desde el día de Santa María de agosto hasta Carnestolendas, carne de vaca y carnero desde Pascua Florida hasta Anexos de la revista Hispania 7 (1977), pp. 351-355. 13 HOFFMANN, Richard C. – An Environmental History of Medieval Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 2015, p. 231. 14 “Con características similares en todas las ciudades que lo adoptaron, el sistema de obligados consistía, a grandes rasgos, en lo siguiente. Se dejaba la gestión de la venta en manos de particulares que, mediante contrato y con la contrapartida de la exclusividad, es decir, del monopolio sobre el abasto, se comprometían a suministrar la carne al consumidos a unos precios, durante un tiempo y con unas condiciones previamente estipuladas con representantes de la ciudad. En el caso de Córdoba hay que señalar que el sistema tardó mucho en establecerse, pues en la segunda mitad del siglo XV aún no se encontraba plenamente definido y sólo a partir de la última década de esta centuria comienza a desarrollarse de forma continuada y más o menos estable”. HERNÁNDEZ ÍÑIGO, Pilar – “Abastecimiento y comercialización de la carne en Córdoba a fines de la Edad Media”, Meridies VIII (2006), pp. 73-120, p. 74. CIUDADES Y PROCESOS DE “AGRARIZACIÓN” EN ANDALUCÍA OCCIDENTAL [...] 69 el día de San Juan y carne de vaca y ternera hasta finales de agosto. Los precios de la carne seguían las tarifas de las ciudades de Sevilla y Jerez de la Frontera. Ya que el ganado existente en el término sanluqueño era insuficiente para abastecer a la población, las reses sacrificadas procedían de las comarcas próximas como Trebujena, Lebrija, Las Cabezas de San Juan, Bornos, Paterna, Alcalá de los Gazules o Arcos de la Frontera. Hay constancia documental del total de carne vendida en Sanlúcar de Barrameda en 1532: 253 bueyes, 58 toros, 206 vacas, 75 terneras, 638 puercos y 2.967 carneros. Estas reses, en su mayoría, fueron compradas a ganaderos de Rota, Jerez de la Frontera y Medina Sidonia. La venta de todas estas carnes supuso para la carnicería una ganancia de 2.417.187 maravedíes15. Como tendré ocasión de comentar posteriormente, los procesos de “agrarización” estuvieron en consonancia con las relaciones contractuales entre los propietarios y los campesinos, de una parte, y entre los artesanos-mercaderes y los comerciantes, de otra. La narrativa que aborda el siglo XV está marcada por un signo optimista: desarrollo económico-demográfico y presencia de comerciantes que animaban las transacciones comerciales internacionales16. De aquí se deriva, en palabras de Mercedes Borrero, “el fuerte desarrollo del comercio de productos agrarios especulativos, como el vino o el aceite, base de la potencia imparable de la oligarquía andaluza ya sea la urbana o la rural”17. En efecto, en un contexto económico y social marcado por el signo del cambio – donde algunas personas podían perderlo todo y otras obtener sustanciales ganancias – hubo personajes que llevaron a cabo políticas especulativas aprovechándose de las condiciones del mercado urbano y rural. Este fue el caso, por ejemplo, del contador mayor de la Casa de la Contratación Juan López de Recalde. Entre 1515 y 1528 invirtió casi tres millones de maravedíes comprando casas, molinos y propiedades rústicas en Lebrija. Más del 85% de las tierras adquiridas fueron de olivar. Aunque se convirtió en el principal propietario de la villa, López de Recalde continuó viviendo en Sevilla. Desde esta ciudad dirigía sus negocios mercantiles con América y con Flandes; de hecho, fue también un propietario de barcos18. 15 MORENO OLLERO, Antonio – Sanlúcar de Barrameda a fines de la Edad Media. Cádiz: Diputación, 1983, pp. 100-104. 16 MARTÍN GUTIÉRREZ, Emilio – “El Golfo de Cádiz durante el siglo XV: una prospectiva ambiental”, Pequenas cidades e ambiente. Da Idade Média à Época Contemporânea. Castelo de Vide. 14 a 16 de março 2019, En prensa. 17 BORRERO FERNÁNDEZ, Mercedes – “Andalucía ante las crisis agrarias. La incidencia decisiva del factor endeudamiento a fines de la Edad Media”. In BENITO I MONCLÚS, Pere (ed.) – Crisis alimentarias en la Edad Media. modelos, explicaciones y representaciones. Lleida: Milenio, 2013, pp. 231-250, p. 235. 18 FRANCO SILVA, Alfonso – “Las inversiones de Juan López de Recalde, Contador Mayor de la Casa de la Contratación”. In GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel (ed.) – I Jornadas de Historia de Lebrija. Edad Media. Lebrija, 28-30 de octubre de 2004. Lebrija: Ayuntamiento-Universidad, 2005, pp. 101-162, pp. 105-106 y 121-123. 70 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL La conectividad es un factor clave que ayuda a valorar la inclusión de los productos en las redes comerciales locales, comarcales e internacionales. A modo de ejemplo, y entre los muchos casos que podrían ilustrar esta afirmación, me detengo en los mecanismos de compraventa y distribución del carbón desde el pueblo de Hinojos en el Aljarafe hacia Sevilla. Desde los primeros años del siglo XVI la Casa de Medina Sidonia mostró un claro interés por controlar estas actividades mediante su regulación a través de las Ordenanzas Municipales19. La conectividad también podría aplicarse a la hora de valorar el paisaje cultural: esto es, estudiar los mecanismos a través de los cuales las ciudades se fueron autoalimentando con su propia imagen. Tomando como referente Venecia, Bolonia, Parma o Siena, Elisabeth Crouzet-Pavan ha evidenciado que a partir del siglo XIII se fue creando “la memoria viva di un’azione politica” asentada tanto en el “paesaggio urbano” como en el “paesaggio documentario”20. Esta lectura también se aprecia en las ciudades andaluzas, aunque en un momento algo más tardío: es lo que, de forma acertada, Richard L. Kahan ha denominado “orgullo cívico”: una expresión con la que explicaba la elaboración de historias urbanas asentadas en “un retrato fantasioso, casi mitológico, del pasado”21. La “Civitates Orbis Terrarum”, que incluye varias vistas de ciudades, fue publicado entre 1572 y 1617 en la ciudad de Colonia gracias a Goerg Braun y Franz Hongenberg22. La localidad de Écija, por ejemplo, según aparece en el grabado de Joris Hoefnagel incluido en las “Civitates Orbis Terrarum”, fue representada desde el exterior, junto al río Genil, y en armonía con los caminos que la unían con Sevilla y Córdoba. En el caserío sobresalen las torres, las construcciones, los edificios monumentales, como los arcos ubicados en cada uno de los extremos del puente, y las puertas que dan acceso a la ciudad. “El texto que explica la imagen [se refiere a la indicación aquí se lava la lana] reafirma el concepto de una ciudad en la que la riqueza y los negocios consisten en mercancías de lana producida en tierras fértiles para el pastoreo, a través de un ganado que se alimenta y engorda muy bien. Asimismo, da cuenta que por medio de él sus habitantes sacan provecho”23. 19 ALÁN PARRA, Isabel – “Las Ordenanzas de 1504 para Huelva y el Condado de Niebla”. Huelva en su Historia. Miscelánea Histórica 3 107-174, (1990), p. 149; OTTE SANDER, Enrique – Sevilla, siglo XVI: Materiales para su Historia económica. Edición a cargo de Antonio Miguel BERNAL RODRÍGUEZ et al. Sevilla: Centro de Estudios Andaluces. Consejería de la Presidencia, 2008, pp. 122-123; MARTÍN GUTIÉRREZ, Emilio – “En los bosques andaluces. Los carboneros a finales de la Edad Media”. In ARIZAGA BOLUMBURU, Beatriz et alii (ed.) – Mundos medievales. Espacios, sociedades y poder. Homenaje al profesor José Ángel García de Cortázar, Vol. 2. Santander: Universidad, 2012, pp. 1561-1572. 20 CROUZET-PAVAN, Elisabeth – Le città viventi. Italia XIII – XV secolo…, pp. 167-168. 21 KAGAN, Richard L – “Ciudades del siglo de Oro”. In KAGAN, Richard L. (dir.) – Ciudades del Siglo de Oro. Las vistas españolas de Anton van den Wyngaerde. Madrid: ediciones El Viso, 1986, pp. 68-83, p. 80. 22 MADERUELO, Javier – El paisaje. Génesis de un concepto. Madrid: Abada, 2005, p. 306. 23 MARIANA NAVARRO, Andrea – Ciudades de Andalucía: paisajes e imágenes. Siglos XIII-XVII, Madrid: Dykinson, 2017, p. 87. CIUDADES Y PROCESOS DE “AGRARIZACIÓN” EN ANDALUCÍA OCCIDENTAL [...] 71 3. Las ciudades y los paisajes de agua desde la “Riparia”. Sin defender planteamientos deterministas, creo que el componente geográfico es una clave imprescindible para adentrarse en la problemática del abastecimiento: el historiador debe reconsiderar el fenómeno urbano en estrecha relación con las características ambientales del territorio. En mis investigaciones vengo prestando atención al concepto “Riparia”: según la propuesta de Ella Hermon, este planteamiento integra interpretaciones ambientales y culturales en una lectura holística de la gestión del agua. Mediante su aplicación se analizan tres ámbitos diversos: el paisaje conocido con sus elementos naturales, el paisaje construido gracias a la intervención antrópica y en función de los recursos naturales del medio y el paisaje percibido por una sociedad en una época determinada24. El agua es un componente fundamental del paisaje y su gestión – desde las ciudades o desde las comunidades campesinas – es clave para entender las sociedades bajomedievales. En Andalucía, el papel del Guadalquivir es incuestionable a la hora de abordar la configuración y ordenación de este territorio. Desde su nacimiento en la Cañada de las Fuentes hasta su desembocadura en Sanlúcar de Barrameda, este río recorre una distancia de casi 650 km. marcando a la región andaluza25. Durante los siglos medievales el Guadalquivir fue utilizado como vía de comunicación y como vehículo para transportar productos. Los “rebaños de pinos”, que se trasladaban desde la Sierra de Segura hasta Sevilla, satisfacían la demandada de madera por parte de las atarazanas sevillanas y también por parte de las ciudades y villas situadas en su ribera26. Esta conectividad tuvo consecuencia en la organización de los paisajes: en Aracena y Constantina, pueblos de la Sierra Norte de Sevilla, se acotaron los montes más aptos para el crecimiento del roble con el objeto de aportar madera para los astilleros sevillanos que también se nutrían de la extraída en las Marismas del Guadalquivir27. El río también servía para conectar el trabajo campesino con el mercado urbano. Se han analizado los contratos de venta de ceniza de almarjos para la fabricación de jabón, estudiándose la conexión entre su recolección y distribución en las marismas lebrijanas y su transporte hacia Sevilla a través de los caños de agua de Ester de Cañas y Tarfía. El destino final del producto era el mercado sevillano. 24 HERMON, Ella (dir.) – “Riparia dans l’Empire Romain pour la définition du concept”. Actes des Journées d’étude de Québec, 29-31 Octobre 2009. Oxford: BAR, 2010, pp. 4-5. 25 RUBIALES TORREJÓN, Javier – El río Guadalquivir. Sevilla: Junta de Andalucía, 2008. 26 GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel – “El Guadalquivir Medieval”. In RUBIALES TORREJÓN, Javier (ed.) – El río Guadalquivir. Sevilla: Junta de Andalucía, 2008, pp. 213-221, p. 220. 27 PÉREZ-EMBID, Javier – “Deforestación y reforestación en Sierra Morena Occidental (siglos XIIIXVI)”. In CLEMENTE RAMOS, Julián (ed.) – El medio natural en la España Medieval. Actas del I Congreso sobre Ecohistoria e Historia Medieval. Cáceres: Universidad de Cáceres, 2001, pp. 451-473, pp. 456-457. 72 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL La recolección de esta planta se efectuaba durante el verano una vez recogido el trigo y antes de abrirse el mercado de trabajo temporal del olivar. Sevilla fue uno de los centros principales de la industria del jabón blanco. Según las investigaciones de Enrique Otte, durante el reinado de los Reyes Católicos este mercado estuvo controlado por la familia genovesa de los Ripparolio. Fueron los genoveses los que “introdujeron en Sevilla el jabón blanco, o duro, hecho con sosa, que se obtuvo con la ceniza de plantas marinas”28. La conexión de las ciudades de interior con el mar facilitaba el transporte de mercancías y personas. En 1525 el humanista Fernán Pérez de Oliva escribía “El razonamiento sobre la navegación del río Guadalquivir”, a petición de un grupo de caballeros del cabildo de Córdoba. El discurso, estructurado en torno al binomio ciudad-río, pretendía recuperar una vieja idea: hacer navegable el Guadalquivir entre Córdoba y Sevilla. Una empresa de esta envergadura – no llevada a cabo, pero cuyo impacto ambiental hubiese sido notable – exigía la eliminación de los obstáculos que impedían el tránsito de las embarcaciones: presas, molinos, azudas, etc. Según Pérez de Oliva la prosperidad de las ciudades estaba asociada a la navegabilidad de sus cursos fluviales como ocurría en El Cairo y el Nilo, París y el Sena, Londres y el Támesis, Milán y el Po y, por supuesto, Roma y el Tíber29. El “Razonamiento” de Pérez de Oliva – que incluyo dentro de una perspectiva urbano-céntrica de gran predicamento en la historiografía – no fue un hecho aislado. Durante el siglo XV la gestión del agua – que no dejaba de ser una preocupación por un bien común, como ha puesto de relieve Denis Menjot30 – estuvo ligada al discurso político de las ciudades: no sólo fue un signo del poder urbano sobre el territorio sino también una manifestación de honor, fama y honra de los poderosos como se ha encargado de evidenciar María Isabel del Val en sus investigaciones31. 28 OTTE SANDER, Enrique – Sevilla y sus mercaderes a finales de la Edad Media, eds. Antonio Miguel BERNAL y Antonio COLLANTES DE TERÁN. Sevilla: Universidad de Sevilla, 1996, pp. 65-72; BORRERO FERNÁNDEZ, Mercedes – “Lebrija en la Baja Edad Media. Población y economía”. In GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel (ed.) – I Jornadas de Historia de Lebrija. Edad Media. Lebrija, 28-30 de octubre de 2004. Lebrija: Ayuntamiento, 2005, 81-100, p. 96. 29 PÉREZ DE OLIVA, Fernán – Diálogo de la dignidad del hombre. Razonamientos. Ejercicios. Edición de María Luisa CERRÓN PUGA. Madrid: Cátedra, 1995, 188-204, p. 200. CARRIAZO RUBIO, Juan Luis – “Fernán Pérez de Oliva y el proyecto de navegación del Guadalquivir: teoría y práctica del Humanismo”. In GÓMEZ CANSECO, Luis (ed.) – Anatomía del Humanismo. Benito Arias Montano 1598-1998. Huelva: Diputación, 1998, pp. 395-397; COLLANTES DE TERÁN, Antonio – “Del Betis a Guadalquivir: la victoria de Mercurio”. In COLLANTES DE TERÁN, Antonio – Una gran ciudad bajomedieval. Sevilla. Sevilla: Universidad, 2008, pp. 195-224, pp. 202-203; SUÁREZ QUEVEDO, Diego – “Navegación fluvial e ingeniería militar en España, siglos XVI-XVII. De Pérez de Oliva y Antonelli a Leonardo Torriani y Luis Carduchi”, Anales de Historia del Arte 17 (2007), pp. 177-153, 118-125. MARTÍN GUTIÉRREZ, Emilio – “Entre ambos dos mares. Una visión orgánica de los paisajes ribereños desde la cultura del siglo XV”. In MORALES SÁNCHEZ, María Isabel; ROBLES ÁVILA, Sara; PIRES, Maria da Natividade (eds.) – Lecturas del agua. Un acercamiento interdisciplinar desde la cultura y el turismo. Madrid: Catarata, 2016, pp. 167-179, 170-171. 30 MENJOT, Denis – “La élite dirigente urbana y los servicios colectivos en la Castilla de los Trastámaras”. Dominar y controlar en Castilla en la Edad Media. Málaga: Diputación, 2003, pp. 140-170. 31 VAL VALDIVIESO, María Isabel – Agua y poder en la Castilla bajomedieval. El papel del agua en CIUDADES Y PROCESOS DE “AGRARIZACIÓN” EN ANDALUCÍA OCCIDENTAL [...] 73 Me detengo en un ejemplo que ha sido estudiado recientemente. Entre los miembros más conspicuos de la sociedad sevillana hubo casos notables de evergetismo desde principios del siglo XV. Así, las investigaciones de Rafael Sánchez han revelado las acciones emprendidas por doña Guiomar Manuel para suministrar agua a la cárcel de la ciudad desde los Caños de Carmona32. Este acueducto, los Caños de Carmona, conducía el agua desde el manantial de la ermita de Santa Catalina, en Alcalá de Guadaíra, hasta Sevilla. Junto a esta instalación, la ciudad tenía acceso a otros recursos hídricos: la Fuente del Arzobispo o los Pilares de la Alameda; a ello hay que sumar las fuentes particulares cuyas licencias se fueron concediendo durante el siglo XV33. En el despegue urbanístico de Sevilla el Guadalquivir siempre estuvo presente. En las inmediaciones del río se llevó a cabo una profunda reordenación urbanística: así, a finales del siglo XVI y según las palabras del comendador de la orden de Santiago don Luis de Zapata y Chaves, en este espacio se localizaba el “mejor cahiz de tierra”. Con esta expresión aludía a la zona donde se habían construido la Catedral, el Alcázar Real, la Casa de Contratación, el almacén de Aceite, la Aduana, las Atarazanas, el Cabildo, la Lonja de los Mercaderes, las Gradas y la Audiencia Real34. Una realidad, desde luego, que venía de tiempo atrás: a finales del siglo XIV, y en el entorno de la Catedral, del barrio de los Castellanos y de la collación de San Salvador, “se daba la más alta concentración de poder municipal”35. En este sentido, y al reflexionar sobre la problemática de la retórica política que sostenían las actividades constructivas entre los siglos XV y XVI, Patrick Boucheron ha señalado tres líneas argumentales que deben ser tenidas en cuenta: “Aussi peut-on envisager, dans cette perspective, l’efficacité persuasive du signe architectural comme la résultante d’une configuration monumentale qui el ejercicio del poder concejil a fines de la Edad Media. Valladolid: Junta de Castilla y León, 2003, pp. 50-60; MARITANO, Cristina – “Paisajes escritos y paisajes representados”. In CASTELNUOVO, Enrico; SERGI, Giuseppe (eds.) – Arte e Historia en la Edad Media. Vol. I: Tiempo, espacios, instituciones. Madrid: Akal, 2009, pp. 253-281; VAL VALDIVIESO, María Isabel – “Usos del agua en las ciudades castellanas del siglo XV”, Cuadernos del CEMYR 18 (2010), pp. 145-166, pp. 162-165; TOSCO, Carlo – Il paesaggio storico. Le fonti e i metodi di ricerca. Bari: Laterza, 2011, pp. 99 y 107. 32 SÁNCHEZ SAUS, Rafael – La Sevilla de doña Guiomar Manuel. Un ejemplo medieval de evergesía cívica y cristiana. Sevilla: Real Maestranza, 2015, pp. 118-133. 33 FERNÁNDEZ CHAVES, Manuel F. – Los Caños de Carmona y el abastecimiento de agua en la Sevilla Moderna. Sevilla: Emasesa, 2011; MARIANA NAVARRO, Andrea – Ciudades de Andalucía: paisajes e imágenes. Siglos XIII-XVII…, pp. 182-184. 34 LLEÓ CAÑAL, Vicente – Nueva Roma. Mitología y humanismo en el Renacimiento sevillano. Madrid: CEEH, 2012. 35 SÁNCHEZ SAUS, Rafael – Las élites políticas bajo los Trastámaras. Poder y sociedad en la Sevilla del siglo XIV. Sevilla: Universidad, 2009, pp. 182-183. Sobre la pujanza económica y artesanal de la collación de la collación de San Salvador durante el siglo XV: COLLANTES DE TERÁN, Antonio – “Relaciones entre espacio urbano y actividades artesanales: algunas consideraciones a partir de la imagen que ofrece la Sevilla bajomedieval”. In COLLANTES DE TERÁN, Antonio – Una gran ciudad bajomedieval. Sevilla, Sevilla: Universidad de Sevilla, 2008, pp. 115-141, p. 133. 74 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL combinerait trois variables principales: le rapport des édifices aux traces du passé de la ville dont ils réaffectent la portée mémorielle en l’actualisant; le rapport des objets urbains entre eux par des jeux symboliques d’opposition, de compensation et de polarisation que l’on doit envisager à plusieurs échelles, du quartier au territoire; le rapport des lieux aux usagers de la ville qui, en situation, par le seul fait de l’habiter, de la parcourir ou de l’énoncer, trament leur sens social”36. Si se centra la atención en la construcción de la Catedral, iniciada en 1433, hay que poner en relación la organización de los circuitos productivos y la comercialización de los materiales37. En efecto, Juan Clemente Rodríguez ha estudiado el esfuerzo económico y organizativo de la Fábrica de la Catedral de Sevilla en lo tocante a la extracción y transporte de la piedra desde la Sierra de San Cristóbal – en la Bahía de Cádiz – hacia Sevilla: la piedra era transportada en carros hacia un embarcadero en el Guadalete, desde el río se emprendía la ruta por el Atlántico hacia Sanlúcar de Barrameda y desde esta localidad se remontaba el Guadalquivir hasta alcanzar Sevilla38. Es decir, y como señalaba al principio de mi intervención, la ciudad es poder político y económico, es centro comercial y financiero, es una puerta interconectada con el exterior. Quisiera, finalmente, añadir, aunque sea con brevedad, una pequeña reflexión sobre la incidencia de las frecuentes riadas que condicionaron la vida de las personas que habitaban en las ciudades y pueblos ribereños. Si desde mediados del siglo XIV las referencias documentales a inundaciones catastróficas se multiplican en toda Europa39, lo mismo podría decirse de las avenidas del Guadalquivir: entre 1297 y 1510 hay referencias documentales a dieciocho desbordamientos del río40. Por citar único ejemplo, me detengo en la riada del año 1485 descrita por el cronista castellano Andrés Bernáldez. La avenida afectó a varias localidades desde Córdoba hasta Sevilla: Palma del Río, Guadagenil, Écija, Cantillana, Brenes, El Copero o El Rincón. Junto a unas consecuencias que son fáciles de imaginar – muerte de 36 BOUCHERON, Patrick – “L’implicite du signe architectural: notes sur la rhétorique politique de l’art de bâtir entre Moyen Âge et Renaissance”. Perspective. Actualité en histoire de l’art 1 (2012), pp. 173-180, p. 174 37 RODRÍGUEZ ESTÉVEZ, Juan Clemente – “Cambio y continuidad en el proyecto gótico de la catedral de Savilla”, Laboratorio de Arte 23 (2011), 33-64, p. 47; JIMÉNEZ MARTÍN, Alfonso – Anatomía de la catedral de Sevilla. Sevilla: Diputación, 2013, p. 11. 38 RODRÍGUEZ ESTEVEZ, Juan Clemente – Cantera y obra. Las canteras de la Sierra de San Cristóbal y la Catedral de Sevilla. El Puerto de Santa María: Ayuntamiento, 1998, pp. 54 y 96. 39 MOUTHON, Fabrice – Le sourire de Prométhée. L’homme et la nature au Moyen Âge, Paris: La Découverte, 2017, p 228. 40 COLLANTES DE TERÁN, Antonio – Sevilla en la Baja Edad Media. La ciudad y sus hombres, Sevilla: Ayuntamiento, 1984, pp. 431-440; MARTÍN GUTIÉRREZ, Emilio – “Sistemas socio-ecológicos. El aprovechamiento de las marismas en la región del Golfo de Cádiz durante el siglo XV”. In ARIAS-GARCÍA, Jonatán; GARCÍA-CONTRERAS RUIZ, Guillermo; MALPICA CUELLO, Antonio (eds.) – Los humedales de Andalucía como sistemas socio-ecológicos. Aproximaciones multidisciplinares, Granada: Alhulia, 2019, pp. 61-119, p. 104. CIUDADES Y PROCESOS DE “AGRARIZACIÓN” EN ANDALUCÍA OCCIDENTAL [...] 75 personas, pérdida de ganado y cultivos – quisiera subrayar la percepción que el cronista transmite de la ciudad y el lenguaje utilizado para describir los problemas ocasionados por las inundaciones: miedo, destrucción, falta de abastecimiento. “Estuvo la ciudad [de Sevilla], en aquellos once días, en muy gran temor de ser perdida por agua. E entró el agua en ella, por las Atarazanas, e andavan cópanos [esto es, pequeños barcos] por la ciudad. E por la Laguna andavan barcos, que pasavan la gente de un cabo a otro. Cayéronse infinitas casas. Derribó el río gran parte de Triana e bañó todo el monasterio de las Cuevas. E sacaron los monjes en barcos e recibió muy gran daño el monasterio […] Derribó el río la media parte de los arrabales de Sevilla que dicen Cestería e Carretería. E estovo Sevilla cercada de aguas de todas partes: en manera que en tres días no le entró pan cocido de fuera, ni otra cosa; ni podían entrar en ella ni salir con las muchas aguas”41. Estas situaciones fueron frecuente hasta tiempos relativamente recientes. Si la supresión de los grandes meandros – las denominadas “cortas” – no se llevó a cabo hasta el siglo XVIII logrando proteger a la ciudad de Sevilla, la fuerza del río no fue controlada hasta la segunda mitad del XX gracias a las obras hidráulicas42. 4. Las ciudades y los procesos de “agrarización”. La construcción del paisaje medieval ha sido explicada como producto de la colonización llevada a cabo por la expansión de la sociedad feudal entre mediados del siglo X y mediados del XIV. Las roturaciones – y la consiguiente apuesta por el cultivo del cereal, lo que el medievalista británico Robert Bartlett ha denominado “cerealización” – caminaron al mismo ritmo que la expansión del cristianismo en diversas regiones europeas. Las crónicas que relataron estas empresas en las que participaron diferentes sectores de la sociedad, recrearon el pasado inmediato a esta colonización como “un período bárbaro y primitivo” donde predominaban los “yermos salvajes y boscosos”. Al optar por esta lectura, los cronistas buscaban un “efecto estético” poniendo el énfasis, de forma positiva, en la fundación de pueblos y en la introducción de cultivos, contrarrestando, de esta forma, el “horror y soledad desolada” del territorio y justificando, de la misma manera, la adquisición de la propiedad por parte de los nuevos colonos43. En un artículo reciente Josep Torró ha 41 BERNÁLDEZ, Andrés – Memoria del Reinado de los Reyes Católicos. Edición y estudio por Manuel GOMÉZ MORENO y Juan de Mata CARRIAZO. Madrid: Real Academia de la Historia, 1962, pp. 166-167. GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel – “El Guadalquivir Medieval…”, pp. 213-221, p. 221. 42 SUÁREZ JAPÓN, Juan Manuel – “Sobre el río Guadalquivir y las riadas que asolaban a sus pueblos y campos”. In CASTILLO MARTOS, Manuel; RODRÍGUEZ MATEOS, Joaquín; SUÁREZ JAPÓN, Juan Manuel – Sevilla y su río en el siglo XVIII. Un proyecto ilustrado para la mejora del cauce del Guadalquivir. Sevilla: Universidad, 2012, 65-94, p. 67. 43 BARTLETT, Robert – La formación de Europa. Conquista, civilización y cambio cultural. Valencia: 76 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL reflexionado sobre el concepto de “agrarización”, un neologismo que considera más apropiado que el de “cerealización” utilizado por Robert Bartlett. El planteamiento de Torró es muy interesante y resulta válido para analizar la expansión de la sociedad feudal en detrimento de la andalusí en la península Ibérica. En su opinión, los procesos de “agrarización” incluyen no sólo la apuesta por el cereal, sino también por otros cultivos especulativos, como el viñedo o el olivar. De esta manera, establece una equivalencia entre tierra cultivada y tierra productiva, un binomio “que se halla en el núcleo de la ideología colonizadora cristiana entre los siglos XI y XIII”44. He reflexionado recientemente en torno a esta problemática tomando como objeto de estudio las comarcas litorales del Golfo de Cádiz. En este espacio geográfico hubo una equivalencia entre explotación agropecuaria y “tierra productiva” y las políticas de abastecimiento estuvieron en consonancia con la adquisición de productos: vino, aceite, carne; pero, también, hubo un aprovechamiento de los recursos naturales de litoral que consolidó el poblamiento y cuyos productos – sal y atún, fundamentalmente – abastecieron los mercados de las ciudades y formaron parte de las redes comerciales45. 4.1. Los procesos de “agrarización” en el interior. A finales del siglo XV había cristalizado una red socioeconómica con tres nodos activos en el estuario del Guadalquivir: Sevilla, Jerez de la Frontera y Sanlúcar de Barrameda. En este espacio las ciudades más pobladas estaban situadas en el interior: Sevilla con 50.000 habitantes y Jerez de la Frontera con 19.000 habitantes según el censo de 1533-1534. Ambas fueron ciudades realengas, mientras que Sanlúcar de Barrameda formó parte del señorío de los Medina Sidonia. Los tres núcleos, en los que el mercado y las actividades financieras internacionales tuvieron un papel primordial, dejaron su impronta sobre el paisaje, garantizaron el abastecimiento y actuaron como centros exportadores hacia otras redes en Andalucía, en la península Ibérica y en Europa. Dejando a un lado Sanlúcar de Barrameda, que será analizada más adelante, me detengo en los casos de Sevilla y Jerez: aunque estaban comunicadas con el Atlántico gracias al Guadalquivir y al Guadalete, respectivamente, ambas ciudades dejaron sentir su influencia sobre el interior. Durante el siglo XV la presión antrópica tuvo un impacto en cada uno de los ecosistemas que formaban parte de los términos Universidad de Valencia, 2003, pp. 208-213. 44 TORRÓ, Josep – “Paisajes de frontera: conquistas cristianas y transformaciones agrarias (siglos XII al XIV)”, Edad Media. Revista de Historia. Monográfico 20 (2019), pp. 13-46, pp. 28-32. 45 MARTÍN GUTIÉRREZ, Emilio – “Sistemas socio-ecológicos. El aprovechamiento de las marismas en la región del Golfo de Cádiz durante el siglo XV…”, pp. 61-119, pp. 73-79. CIUDADES Y PROCESOS DE “AGRARIZACIÓN” EN ANDALUCÍA OCCIDENTAL [...] 77 municipales de las localidades andaluzas. Así pues, en este epígrafe me centraré en estas dos ciudades y en Utrera y Cazalla de la Sierra. Fig. 2 – Comarcas de la Tierra de Sevilla y término de Jerez de la Frontera. Sevilla, gracias a su puerto fluvial, se convirtió en un centro comercial y financiero internacional46. Tras la conquista de 1248, la ciudad ejercía su jurisdicción sobre un amplio territorio de 12.000 km2 en los que había más de setenta poblaciones. Su alfoz fue diseñado “como un gran marco económico” asentado en las comarcas de La Campiña, La Sierra, La Ribera y El Aljarafe. Cada una de estas comarcas desempeñaba funciones complementarias en virtud de la orientación de sus cultivos, cuyos productos abastecían el mercado sevillano. Las “Ordenanzas para la tierra” son un ejemplo claro de la influencia sevillana en la economía rural de su entorno: en esta normativa, en palabras de Mercedes Borrero, “Priman los cultivos orientados al mercado urbano – caso del olivar –, se regula la utilización de las zonas de pastos – siempre a favor de determinados intereses 46 COLLANTES DE TERÁN, Antonio – “Del Betis a Guadalquivir: la victoria de Mercurio…”, pp. 195-224, pp. 217-218; GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel; BELLO LEÓN, Juan Manuel – “El puerto de Sevilla en la Baja Edad Media”. In ABULAFIA, David; GARÍ, B. (eds.), En las costas del Mediterráneo occidental. Las ciudades de la península Ibérica y del reino de Mallorca y el comercio mediterráneo en la Edad Media. Barcelona: Omega, 1997, pp. 213-241. 78 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL ciudadanos – o se controla el mercado interior local para canalizar en el mismo determinados productos”47. De este amplio espacio geográfico, tomo en consideración dos situaciones diversas que me servirán de guía para ilustrar mi argumentación. La primera alude a las comunidades campesinas de los pueblos de la Sierra Norte de Sevilla integrados en un sistema económico marcado por las actividades pastoriles, apícolas y cinegéticas. El territorio estuvo vinculado a ciudades realengas y éstas, a su vez, a Sevilla. La necesidad de abastecer a una población en crecimiento propició la siembra del cereal en los llanos próximos a las poblaciones, junto con los cultivos de huertas y viñas. Este incremento de los espacios cultivados no implicó el abandono de las actividades vinculadas a la caza, a la apicultura y al pastoreo48. El segundo ejemplo se refiere a la relación estrechísima entre el olivar del Aljarafe, la oligarquía sevillana y las grandes instituciones religiosas. Los argumentos que sostienen esta afirmación apuntan hacia el buen rendimiento del cultivo y a la introducción del aceite en el mercado nacional e internacional a través de Sevilla49. Jerez de la Frontera fue organizando su amplio alfoz, cuya superficie era de 139.320 hectáreas, en dos momentos diferentes: cuando fue conquistada en 1264 y al recibir la aldea y término de Tempul en 1333. Como en el caso anterior, la ciudad creó las condiciones adecuadas para el establecimiento de un cuerpo mercantil y favoreció que la oligarquía urbana ejerciese su preeminencia mediante sus propiedades agropecuarias50. Al igual que en otras comarcas andaluzas, la ganadería dejó su impronta en los paisajes jerezanos. En este sentido fue notable la relevancia de la industria del cuero en cuyo trabajo participaba el 14% de la población artesana jerezana según el padrón de 1533. La ciudad emitió varias ordenanzas en la que buscaba proteger los recursos naturales de los bosques – casca, arrayán, lentisco, zumaque – en estrecha relación con esta actividad artesanal. La industria del cuero estuvo conectada con el comercio mediterráneo y atlántico: los mercaderes portugueses, genoveses e ingleses tuvieron un peso notable. El siguiente caso es revelador: en los años centrales del siglo XVI el curtidor genovés Guillermo Conde de Gave compraba zumaque, vendía cueros 47 BORRERO FERNÁNDEZ, Mercedes – “Influencia de la economía urbana en el entorno rural de la Sevilla Bajomedieval”. In BORRERO FERNÁNDEZ, Mercedes – Mundo rural y vida campesina en la Andalucía Medieval. Granada: Universidad de Granada, 2003, pp. 221-238, p. 228. 48 PÉREZ-EMBID, Javier – “Deforestación y reforestación en Sierra Morena Occidental (siglos XIIIXVI)…”, pp . 451-473. 49 BORRERO FERNÁNDEZ, Mercedes – La organización del trabajo. De la explotación de la tierra a las relaciones laborales en el campo andaluz (Siglos XIII al XVI). Sevilla: Universidad de Sevilla, 2003, pp. 48-50. 50 MARTÍN GUTIÉRREZ, Emilio – La identidad rural de Jerez de la Frontera. Territorio y poblamiento durante la Baja Edad Media. Cádiz: Universidad de Cádiz, 2003, pp. 71-139. CIUDADES Y PROCESOS DE “AGRARIZACIÓN” EN ANDALUCÍA OCCIDENTAL [...] 79 a zapateros y chapineros e invertía sus ganancias comprando bienes inmuebles y viñas en la ciudad y término de Jerez de la Frontera51. Utrera es un buen exponente de la explotación de cereal en La Campiña y de su comercialización hacia la ciudad de Sevilla. El dibujo de la propiedad muestra la presencia de grandes propietarios nobles absentistas, de arrendatarios o grandes propietarios incluidos en el grupo dirigente de la localidad, de receptores de traspasos de partes de la renta y de campesinos que trabajaban en las explotaciones. En aquel contexto económico, el mercado es el factor clave al vincular al propietario absentista con el arrendatario directo. Fig. 3 – La Campiña sevillana. La villa de Utrera. En una encuesta elaborada en 1533 el concejo de Utrera declaraba que anualmente se cogían hasta 70.000 fanegas de trigo y cebada y que los vecinos de la villa vendían cada año en Sevilla hasta 20.000 fanegas de pan. El dato es, en mi opinión, significativo: así, “algo menos del 30% de la producción de cereales del término de Utrera era comercializado en el mercado ciudadano”. No debe extrañar, por tanto, que la ciudad considerase a Utrera como su “despensa de pan”. Y esta 51 MARTÍN GUTIÉRREZ, Emilio – Paisajes, ganadería y medio ambiente en las comarcas gaditanas. Siglos XIII al XVI. Cádiz-Extremadura: Universidad, 2015, pp. 75-83. 80 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL percepción cobraba aún más fuerza en los períodos de carestía. Así, según las investigaciones de José Luis Villalonga que es el autor a quien estoy siguiendo en estas líneas: “La ciudad acapara de manera coercitiva tanto el grano como la fabricación de pan de Utrera y – cuando, al traerse trigo del extranjero, se produzca una sobreoferta – obligará a que su villa dependiente se haga cargo de una parte muy importante del cereal que la ciudad ha comprado y ahora no puede vender”. Las instalaciones de transformación del grano en pan – molinos, atahonas, hornos – es otro índice de la gobernanza de Sevilla: era la ciudad la que tomaba la decisión sobre sus construcciones y controlaba la fuente de energía procedente del río Guadalete y de los arroyos Salado y Utrera52. Pero el caso de Utrera no es un ejemplo aislado. En 1533-1534 Carmona contaba con 9.405 habitantes. Es muy probable que su proximidad a Sevilla, auténtico “polo de atracción” para las poblaciones de su entorno, limitase su crecimiento demográfico53. En esta localidad se observa el mismo modelo: el interés de la oligarquía sevillana por las tierras de cereal existentes en su término municipal. Entre 1503 y 1528, el 75% de los contratos de arrendamiento de tierras de cereal fueron realizados por propietarios que vivían en Sevilla54. En definitiva, los casos de Utrera, Carmona o Alcalá de Guadaíra revelan la existencia: “de un mercado que proporciona, allí donde la demanda de arrendatarios es más intensa o donde hay menor oferta para arrendar – caso posible en el término de Alcalá de Guadaíra –, la satisfacción de las necesidades económicas de estos propietarios sevillanos para sus fincas situadas en términos colindantes. También es cierto que puede influir en ello la cercanía a la urbe, pero no creemos que éste sea un factor decisivo para el fenómeno detectado”55. Al igual que en otras regiones peninsulares y europeas el viñedo tuvo un carácter eminentemente social que se tradujo en propiedades familiares de pequeñas dimensiones entre 1 y 1,5 aranzadas. Pero este minifundio no tenía capacidad para responder a la fuerte demanda de vino de las ciudades. La necesidad de atender el consumo interno de Sevilla y el comercio internacional focalizó la atención de la 52 VILLALONGA SERRANO, José Luis – Las estructuras agroganaderas de la campiña sevillana a finales de la Edad Media. El caso de Utrera. Sevilla: Diputación, 2008, pp. 160-173. 53 GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel – Carmona Medieval. Sevilla: Fundación José Manuel Lara, 2006, p. 91. 54 BORRERO FERNÁNDEZ, Mercedes – La organización del trabajo. De la explotación de la tierra a las relaciones laborales en el campo andaluz (Siglos XIII-XVI)…, p. 142. 55 BORRERO FERNÁNDEZ, Mercedes – La organización del trabajo. De la explotación de la tierra a las relaciones laborales en el campo andaluz (Siglos XIII-XVI)…, p. 140. CIUDADES Y PROCESOS DE “AGRARIZACIÓN” EN ANDALUCÍA OCCIDENTAL [...] 81 oligarquía sevillana en una zona concreta de su alfoz: la Sierra Norte o Sierra de Constantina. No en balde, como señaló en su momento Antonio Miguel Bernal, la apuesta por la vid fue uno de los signos más notables de las transformaciones capitalistas experimentadas por la agricultura andaluza durante el siglo XVI56. En Cazalla de la Sierra en 1482 había 35 propietarios sevillanos – miembros de la oligarquía de la ciudad – con propiedades vitivinícolas. Éstos, que habían invertido su capital comprando viñas, contaban con el mercado sevillano para introducir el producto57. Sin embargo, los vecinos de Sevilla – exceptuando los períodos de carestía o la visita de los monarcas – no podían introducir libremente sus cosechas de vino en la ciudad. Así pues, la falta de vino en determinados momentos estuvo más relacionada con los problemas de comercialización que con una carencia del producto58. Como apunta Mercedes Borrero, “la única forma no penalizada de vender vino sería hacerlo in situ [es decir, en el mismo pueblo de Cazalla de la Sierra] a sevillanos que lo introducirían en el mercado urbano”. El mecanismo empleado consistió en la venta anticipada de las cosechas entre los propietarios sevillanos y los vecinos de la Sierra59. 4.2. Los procesos de “agrarización” en el litoral. Hasta ahora estoy aludiendo a productos obtenidos de la puesta en explotación de espacios cultivados. Pero, como decía con anterioridad, los recursos naturales del litoral también deben ser tenidos en cuenta a la hora de valorar este proceso de “agrarización” tardía. En efecto, durante el último cuarto del XV y las primeras décadas del XVI hubo una intensificación del poblamiento en el litoral de Andalucía Occidental, como fue el caso de Sanlúcar de Barrameda, núcleo rector de la Casa de Medina Sidonia. Aunque carecía de un término amplio – 174 km2, nada comparable a los casos de Sevilla y Jerez de la Frontera a los que acabo de referirme – los duques de Medina Sidonia apostaron por esta localidad desde donde llevar a cabo sus empresas africanas y atlánticas. Hubo una relación entre el crecimiento urbanístico de esta villa – la edificación del “Barrio Bajo” en terrenos ganados gracias al alejamiento del río – el volumen del tráfico comercial y la presencia de hombres de negocios. Dicho de otra manera, el dinamismo de Sanlúcar de Barrameda – ubicada en la 56 BERNAL RODRÍGUEZ, Antonio Miguel – “Andalucía, siglo XVI. La economía rural”. In Historia de Andalucía, Vol. IV. Madrid: Planeta, 1982, p. 151. 57 BORRERO FERNÁNDEZ, Mercedes – “Las élites rurales en Andalucía bajomedieval. Singulares perfiles según comarcas”, Archivo Hispalense 297-298 (2015), pp. 235-262, pp. 249-250. 58 GARCÍA-BAQUERO LÓPEZ, Gregorio – Sevilla y la provisión de alimentos en el siglo XVI. Sevilla: Diputación, 2006, pp. 201-218. 59 BORRERO FERNÁNDEZ, Mercedes – “Las élites rurales en Andalucía bajomedieval. singulares perfiles según comarcas…, pp. 235-262, pp. 252-253. 82 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL desembocadura del Guadalquivir, puerta de entrada y salida de productos y personas hacia Sevilla – se fue asentando en su puerto y en las actividades comerciales conectadas con esta instalación. Como en los casos anteriores, los mercaderes foráneos – ingleses, flamencos y, en menor medida, bretones y genoveses – tuvieron un peso determinante60. La complementariedad entre los espacios cultivados y los incultos fue habitual en el término sanluqueño y la ciudad de Sanlúcar de Barrameda supo aprovecharse de los recursos naturales incluidos en su término municipal: me refiero al Coto de Doñana que, ubicado en la margen derecha de la desembocadura del río, estuvo vinculado a la Casa de Medina Sidonia desde el año 1309. En este ecosistema hubo un aprovechamiento de los recursos naturales – pastos, pesca, caza, madera – y sus productos abastecieron a Sanlúcar de Barrameda y a otras ciudades61. En efecto, los ecosistemas marismeños del estuario del Guadalquivir no fueron espacios marginales, tuvieron un papel significativo y deben tener cabida en la narrativa. Asociadas al antiguo “Lacus Ligustinus”, las Marismas del Guadalquivir tienen una extensión aproximada de 200.000 hectáreas62. Como decía con anterioridad, la carrera hacia el litoral fue tomando cuerpo mediante la fundación de pueblos63. La creación de nuevas poblaciones tuvo un impacto ambiental y generaron cambios en los paisajes. El modelo se repite en todos los casos: las autoridades – la corona, las ciudades o los señores laicos – crearon las condiciones adecuadas para la instalación de nuevos pobladores: entregaron casas y solares para su construcción y lotes de tierras para que fuesen roturadas. Así ocurrió en Chipiona en 1477, en Puerto Real en 1483, en Trebujena en 1494 o en Villafranca de las Marismas en 1501. Y, desde luego, estos no fueron los únicos ejemplos conocidos64. En definitiva, el binomio cereal y viñedo – pan y vino, base 60 IRADIEL MURAGARREN, Paulino – “Metrópolis y hombres de negocios”. In XXIX Semana de Estudios Medievales. Las sociedades urbanas en la España Medieval. Estella: Gobierno de Navarra, Departamento de cultura, Turismo y Relaciones Institucionales, 2002, pp. 277-310; LADERO QUESADA, Miguel Ángel – Guzmán. La casa ducal de Medina Sidonia en Sevilla y su reino. 1282-1521. Madrid: Dykinson, 2015, pp. 127-127. 61 MUÑOZ BORT, Domingo – La ganadería caballar en la villa de Almonte. Introducción histórica, Almonte: Ayuntamiento, 2004, pp. 31-35; GRANADOS CORONA, Manuel – “La Casa de Medina Sidonia y el Coto de Doñana”. In RUBIALES TORREJÓN, Javier (coord.) – El río Guadalquivir. Del mar a la marisma. Sanlúcar de Barrameda. Sevilla: Junta de Andalucía, 2011, pp. 143-159, p. 157. 62 ARTEAGA MATUTE, Oswaldo y ROSS, Ana María – “El proyecto geoarqueológico de las Marismas del Guadalquivir. Perspectivas arqueológicas de la campaña de 1992”, Anuario Arqueológico de Andalucía 92 II, Sevilla, (1995), pp. 329-339; LAGÓSTENA BARRIOS, Lázaro – La percepción de la ribera en la costa atlántica de la provincia Hispania Ulterior Baetica. El Lacus Ligustinus. In HERMON, Ella, WATELET, Anne (dirs.) – Riparia un patrimoine culturel. La gestion intégrée des bords de l’eau. Actes de l’atelier Savoirs et pratiques de gestion intégrée des bords de l’eau. Sudbury, 2012. Oxford: BAR, 2014, pp. 187-197. 63 COLLANTES DE TERÁN, Antonio – “Nuevas poblaciones del siglo XV en el Reino de Sevilla”, Cuadernos de Historia VII (1977), pp. 283-336. 64 COLLANTES DE TERÁN, Antonio – “Nuevas poblaciones del siglo XV en el Reino de Sevilla…”, pp. 283-336; FRANCO SILVA, Alfonso – “Población y reparto de la propiedad en Chipiona en el primer cuarto del siglo XVI”. In ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz et al. – Mundos medievales. Espacios, sociedades CIUDADES Y PROCESOS DE “AGRARIZACIÓN” EN ANDALUCÍA OCCIDENTAL [...] 83 de la alimentación, y productos fundamentales en las políticas de abastecimiento – tuvo un peso decisivo en esta “agrarización” tardía: “Para fazer e hedificar las dichas casas e poner e plantar la dicha arançada de viña cada uno, mando que les sean dados solares en que aya e puedan asy mesmo fazer sus corrales e pertenençia para seruidumbre de las dichas casas, syn que por ello paguen tributo ni otra cosa alguna. E asy mesmo les sean dadas en lugar perteçiente e prouechoso a ellos tierra en que aya dos arançadas a cada uno, de la manera que se dauan a los otros vezinos que allí solían biuir e poblar”65. El binomio salinas-almadrabas es una guía válida para analizar la “agrarización” como proceso que permite comprender la consolidación del poblamiento en el litoral. Además, sus productos – la sal y el atún – fueron demandados por las ciudades y formaron parte de las rutas comerciales. El desarrollo de las almadrabas se asentó en la comprensión del ciclo biológico de los túnidos. Los duques de Medina Sidonia pretendieron hacer valer el control absoluto sobre las almadrabas en el litoral atlántico andaluz. Pero este monopolio fue siempre cuestionado, originándose enfrentamientos con otros señores jurisdiccionales – como fue el caso, por ejemplo, del Marqués de Cádiz – que no hacían sino revelar la importancia de estas instalaciones en lo tocante al control del territorio y al valor del producto. Así, por ejemplo, las almadrabas ubicadas en Cádiz y que formaron parte del patrimonio de la Casa de Arcos. Los gastos para armar una almadraba eran elevados: según el Libro de Cuentas del duque de Medina Sidonia, en 1513 se invirtieron 769.116 maravedíes y 730 fanegas de trigo en las almadrabas de Conil. Este dato puede completarse con la información que, para el mismo complejo, tenemos de 1528: en aquel año alrededor de 225 personas trabajaron en las almadrabas de Conil66. El atún de las almadrabas del duque de Medina Sidonia se dirigía hacia Barcelona, Valencia, Tarragona, Alicante, Cartagena y hacia las ciudades del sur de Italia: Cagliari, Nápoles, Livorno. En los años treinta del siglo XVI se exportaban anualmente alrededor de 600 barriles grandes. Junto al consumo de atún en las y poder. Homenaje al profesor José Ángel García de Cortázar y Ruiz de Aguirre. Vol. II. Santander: Universidad de Cantabria, 2012, pp. 1319-1338; GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel – La Carta Puebla de Trebujena (1494). Trebujena: Ayuntamiento, 1994; COLLANTES DE TERÁN, Antonio; CARRIAZO RUBIO, Juan Luis, VILLALONGA SERRANO, José Luis (eds.) – Carta Puebla de Villafranca de las Marismas. Sevilla: Diputación, 2003. 65 GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel – La Carta Puebla de Trebujena (1494)…, p. 18. 66 LADERO QUESADA, Miguel Ángel – “Las almadrabas de Andalucía”. Boletín de la Real Academia de la Historia CXC t. III (1993), pp. 345-354, p. 351; FRANCO SILVA, Alfonso; MORENO OLLERO, Antonio – “Datos sobre el comercio del puerto de Sanlúcar de Barrameda en el primer tercio del siglo XVI”. In Actas del II Coloquio de Historia Medieval Andaluza. Hacienda y comercio. Sevilla, 8-10 de abril, 1981. Sevilla: Diputación, 1982, pp. 284-296, p. 292. 84 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL ciudades, los duques de Medina Sidonia entregaban varias piezas a los monasterios y conventos de su señorío, a sus familiares, criados y procuradores encargados de tramitar sus pleitos en la Chancillería de Granada. Se trataba, por tanto, de un sistema socioeconómico “fundamentado en una “economía de prestigio”67. Tipo de captura Año 1514 Año 1515 Año 1516 Atún blanco y badán 1.912.639 mrs. 235.000 mrs. 940.423 mrs. Cabezas y menudos 164.969 mrs. 63.808 mrs. 54.234 mrs. Atunes a la vara 73.971 mrs. 35.246 mrs. Mojama seca 41.818 mrs. 12.211 mrs. 17.530 mrs. 44.059 mrs. 76.275 mrs. Mojama verde - - Tabla 2 – Valor, en maravedíes, de las capturas de atunes en las almadrabas de Cádiz. Años 1514-151668. A finales de la Edad Media el paisaje salinero del Golfo de Cádiz se concentraba en el Algarve, en el litoral onubense, en el Estuario del Guadalquivir, en la Bahía de Cádiz, en la desembocadura del río Barbate y en las marismas de Palmones en el Estrecho de Gibraltar. Las explotaciones salineras de los duques de Medina Sidonia – en la costa onubense, en el estuario del Guadalquivir y en la Bahía de Cádiz – estaban en estrecha relación con las almadrabas. Los duques llevaron a cabo una intensa actividad roturadora que conllevó la transformación de los ecosistemas en las desembocaduras de los ríos Guadalquivir y Barbate y en la bahía gaditana69. A finales de la Edad Media se intensificaron las roturaciones de marismas y la creación de paisajes salineros en la bahía gaditana. Estos movimientos roturadores fueron dirigidos y alentados por los concejos, los grandes señores y las oligarquías 67 FRANCO SILVA, Alfonso y MORENO OLLERO, Antonio – “Datos sobre el comercio del puerto de Sanlúcar de Barrameda en el primer tercio del siglo XVI…”, pp. 284-296, pp. 292-293; BELLO LEÓN, Juan Manuel – “Almadrabas andaluzas a finales de la Edad Media. Nuevos datos para su estudio…”, pp. 81-113, p. 95; FLORIDO DEL CORRAL, David – “Las almadrabas andaluzas: entre el prestigio y el mercado”. In CHIC, Genero (dir.) – Economía de prestigio versus economía de mercado. Sevilla: Padilla Libros, 2006, pp. 193-214, pp. 2-11. 68 BELLO LEÓN, Juan Manuel – “Almadrabas andaluzas a finales de la Edad Media. Nuevos datos para su estudio”. Historia. Instituciones. Documentos 32 (2005), pp. 81-113, p. 95. 69 LADERO QUESADA, Miguel Ángel – “Las almadrabas de Andalucía…”, pp. 345-354. CIUDADES Y PROCESOS DE “AGRARIZACIÓN” EN ANDALUCÍA OCCIDENTAL [...] 85 urbanas. Desde el último cuarto del siglo XV y durante las primeras décadas del XVI y con la implicación del concejo de Jerez de la Frontera, del marqués de Cádiz y del duque de Medinaceli las salinas se fueron instalando en los espacios marismeños de Jerez de la Frontera-Puerto Real, El Puerto de Santa María y Cádiz. En los años treinta del siglo XVI y en las décadas siguientes, estas explotaciones se fueron extendiendo por los términos de Chiclana de la Frontera y la Isla de León, la actual San Fernando, gracias a la labor emprendida por el duque de Medina Sidonia y el duque de Arcos70. Fig. 4. – Explotaciones salineras en el Golfo de Cádiz. Siglo XV. A finales de la Edad Media El Puerto de Santa María, villa incluida en el señorío del ducado de Medinaceli, era un núcleo comercial, salinero y pesquero. Su ubicación en la bahía gaditana, junto a la desembocadura del Guadalete, había resultado crucial para la consolidación y desarrollo de esas actividades económicas. Un índice del valor alcanzado por la villa lo constituye la colonia de mercaderes italianos, genoveses principalmente, que se habían asentado en ella. No es de extrañar que en 1528 la población de El Puerto de Santa María alcanzase los 1.586 vecinos, alrededor de 7.000 habitantes71. 70 MARTÍN GUTIÉRREZ, Emilio – “Sistemas socio-ecológicos. El aprovechamiento de las marismas en la región del Golfo de Cádiz durante el siglo XV…”, pp. 61-119, pp. 95-96. 71 IGLESIAS RODRÍGUEZ, Juan José – “Ciudad y fiscalidad señorial: las rentas del condado de El Puerto 86 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL El papel de Jerez de la Frontera, núcleo urbano de referencia en la bahía gaditana, en relación con las salinas es significativo. Una vez depositada la sal en los almacenes de la ciudad, una parte era distribuida entre los vecinos y otra entraba en los circuitos comerciales. Al igual que había ocurrido en los años anteriores, el 22 de agosto de 1489 el concejo repartía medio cahiz de sal entre los monasterios de San Francisco, Santo Domingo y Santa María de la Merced. Los repartos de sal entre las diferentes collaciones de la ciudad muestran un incremento en el número de cahíces, lo que constituye un índice del valor de la producción. Años Cahíces repartidos Índice 1450 182 100 1454 180 100 1489 270 149,45 1490 275 151,09 1492 210 115,38 1494 254 139,56 1500 300 164,83 Tabla 3 – Distribución cahíces de sal en Jerez de la Frontera72. Desde 1489 las cifras aumentan siendo sólo la cosecha de 1492 inferior a las restantes, aunque superior al índice 100. Este incremento estaba en consonancia con las explotaciones salineras en Puerto Real, villa incluida en la jurisdicción de Jerez de la Frontera. 5. Consideraciones finales. “L’Allegoria del Buon e Cattivo Governo” – fresco pintado por Ambrogio Lorenzetti en 1338-1339 – se acoplaba al ideario político del Gobierno de los Nueve en Siena: una ciudad bien gobernada generaba paisajes ordenados, favorecía el adecuado aprovechamiento de los recursos naturales, amparaba el libre tránsito de las personas y propiciaba el desarrollo de las actividades artesanales y comerciales73. de Santa María en el siglo XVI”. In Actas del VI Coloquio Internacional de Historia Medieval de Andalucía. Las ciudades andaluzas (Siglos XIII-XVI). Málaga: Universidad de Málaga, 1991, pp. 215-224, p. 215. 72 MARTÍN GUTIÉRREZ, Emilio – “Salinas y explotaciones salineras en la Bahía de Cádiz a finales de la Edad Media”. In MORÈRE MOLINERO, Nuria (ed.) – Las salinas y la sal de interior en la Historia: economía, medio ambiente y sociedad, Tomo I. Madrid: Dykinson, 2007, pp. 535-560, p. 547. 73 DESSÌ, Rosa Maria – “Il bene comune nella comunicazione verbale e visiva. Indagini sugli affreschi CIUDADES Y PROCESOS DE “AGRARIZACIÓN” EN ANDALUCÍA OCCIDENTAL [...] 87 Aunque “L’Allegoria del Buon e Cattivo Governo” la interpreto como un discurso político, como un panegírico – incluso, como un “miedo” que hay que conjurar – aludo a este fresco porque me sirve para ilustrar con claridad la interacción entre los ámbitos urbanos y rurales. De hecho, esta comunicación estuvo vigente hasta las grandes transformaciones generadas por las revoluciones industriales durante el siglo XIX o las urbanísticas desde la segunda mitad del XX. Ambos procesos han provocado profundos cambios, marcando en la actualidad una fractura entre estos dos ámbitos con una indudable repercusión en la historiografía. Como sostiene el antropólogo y geógrafo norteamericano David Harvey, “los lugares y las formas locales de vida se construyen en virtud de una variedad de procesos socioecológicos entrecruzados que se producen a niveles espacio-temporales muy distintos”. Su método, aplicado para analizar la problemática urbana de nuestra contemporaneidad, es una herramienta teórica válida con la que adentrarse en las ciudades y campos de época medieval74. La construcción cultural del paisaje se fue haciendo desde la ciudad como exponente paradigmático de la civilización. No conviene olvidar que durante los siglos bajomedievales y modernos los discursos de las historias urbanas se ajustaron al género de las “laudes civitates” y al tópico del “locus amoenus”75. Como ya he comentado, las vistas de ciudades incluidas en las “Civitates Orbis Terrarum” son un ejemplo notable: “En gran medida, el carácter de las Civitates está determinado por sus mejores vistas urbanas, las de Joris Hoefnagel, quien aportó más y mejores vistas que ningún otro. Las ciudades españolas de Hoefnagel en particular fueron la más perfecta expresión de lo que en su tiempo eran los grabados de paisajes urbanos”76. Esta lectura urbano-céntrica ha sido la predominante en la narrativa. Sin embargo, este discurso se ha asentado en una lectura que ha evidenciado los conflictos entre la ciudad y el campo o entre los espacios cultivados y los incultos. Podría ser aconsejable ampliar nuestra mirada sobre los paisajes con lecturas alternativas que presten atención a la interacción entre el ámbito urbano y el rural del Buon Governo”. In Il bene comune: forme di governo e gerarchie sociali nel Basso Medioevo. Atti del XLVIII Convegno storico internazionale. Todi, 9-12 ottobre 2011. Spoleto: Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, 2012, 89-130; BOUCHERON, Patrick – Scongiurare la paura. La forza politica delle immagini. Milano: Jaca Book, 2018. 74 HARVEY, David – Senderos del mundo. Madrid: Akal, 2018, p. 133. 75 MARIANA NAVARRO, Andrea – Ciudades de Andalucía: paisajes e imágenes. Siglos XIII-XVII…, pp. 30-56. 76 HAVERKAMP-BEGEMANN, Egbert – “Las vistas de España de Anton van den Wyngaerde”. In KAGAN, Richard L. (dir.) – Ciudades del Siglo de Oro. Las vistas españolas de Anton van den Wyngaerde. Madrid: Ediciones El Viso, 1986, pp. 54-67, p. 65. 88 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL manifestada en la complementariedad entre las propiedades urbanas, agropecuarias y el aprovechamiento de los recursos silvopastoriles y pesqueros. Aunque sea con brevedad, no quisiera pasar por alto un tema que – aunque ha estado presente en mi texto – no he podido abordar por cuestiones de espacio. Me refiero a la profunda transformación derivada de la circulación de la moneda en la ciudad y en el campo a finales de la Edad Media. Si, por un lado, los excedentes propiciaron que se invirtiesen en procesos de comercialización, por otro, el aumento de la población provocó que muchas personas formasen parte del mercado laboral77. Durante el siglo XV Andalucía Occidental vivió una fase de expansión – con un crecimiento de la producción agraria – que vino acompañada de un desarrollo comercial basado en productos agrarios especulativos: vino y aceite, fundamentalmente. Pero esta lectura – asentada en una narrativa optimista que sostiene el relato del siglo XV – no puede poner sordina a los ciclos de crisis que dejaron sentir sus efectos – aumento de los procesos de endeudamiento e incremento de la pobreza – sobre los grupos más desfavorecidos. Desde los inicios del siglo XVI la intensidad de los períodos de crisis se fue acentuando. La imposición de una Tasa de precios para el cereal por los Reyes Católicos en 1502 tuvo unos efectos desastrosos. Como apunta Mercedes Borrero esta política intervencionista “hizo aún más compleja la adquisición de alimento y provocó una mayor incidencia negativa en los niveles más bajos de la sociedad”78. He analizado esta problemática a través de un caso de estudio: la crisis de 1503-1507 en Jerez de la Frontera. Las buenas cosechas de la década de los noventa del siglo XV propiciaron un incremento en las exportaciones de cereal por motivos comerciales y un aumento de las sacas por razones políticas. Si desde el año 1500 el precio del pan fue en alza, la Tasa de 1502 contribuyó a intensificar los signos de una crisis anunciada: acaparamiento y especulación de cereal y endeudamiento de los sectores más desfavorecidos. El gobierno de la ciudad intentó buscar soluciones: prohibiendo que los particulares vendiesen el trigo y la cebada sin la licencia del corregidor o concentrando la venta de cereal en la alhóndiga79. La crisis de 1503-1507 – y otras que se fueron produciendo en diversas comarcas – es una prueba de la transformación profunda que estaba afectando a las sociedades europeas bajomedievales. Es desde la óptica del cambio, de la transformación, desde donde he querido plantear la problemática del abastecimiento de las ciudades 77 BORRERO FERNÁNDEZ, Mercedes – “El subempleo agrario. Un modo de vida común en los campos andaluces a finales de la Edad Media”. Studia Historica. Historia Medieval 32 (2014), pp. 23-45, p. 27. 78 BORRERO FERNÁNDEZ, Mercedes – “Andalucía ante las crisis agrarias. La incidencia decisiva del factor endeudamiento a fines de la Edad Media…”, pp. 231-250, p. 235-237. 79 MARTÍN GUTIÉRREZ, Emilio – “La crisis de 1503-1507 en Andalucía. Reflexiones a partir de Jerez de la Frontera”. In OLIVA HERRER, Hipólito Rafael; BENITO I MONCLÚS, Pere (eds.) – Crisis de subsistencia y crisis agrarias en la Edad Media. Sevilla: Universidad de Sevilla, 2007, pp. 277-302, pp. 281-290. CIUDADES Y PROCESOS DE “AGRARIZACIÓN” EN ANDALUCÍA OCCIDENTAL [...] 89 durante el siglo XV; y lo he querido hacer sin perder de vista la imbricación entre lo urbano y lo rural. La respuesta a este problema es compleja, porque, al y fin y al cabo, como apuntaba David Harvey en su análisis de los problemas de nuestra sociedad contemporánea: “Hay un problema ecológico, un problema urbano, un problema de comercio internacional, y sin embargo parecemos incapaces de decir nada profundo sobre ninguno de ellos. Cuando decimos algo, parece trillado y bastante ridículo. En resumen, nuestro paradigma no está funcionando bien”80. 80 HARVEY, David – Senderos del mundo…, p. 30. 90 O abastecimento alimentar e vinícola de Ceuta na primeira metade do século XV José Miguel Zenhas Mesquita1 Resumo O presente artigo investiga o abastecimento alimentar, em particular de vinho, a Ceuta na primeira metade do século XV. Uma vez determinadas as características e especificidades do perfil da ocupação portuguesa no Norte de África, serão expostas as diferentes formas de abastecimento encontradas localmente e estruturadas a partir do reino. A Casa de Ceuta, como principal instituição criada com a finalidade de gerir o abastecimento da praça norteafricana, conta com um conjunto de cartas de quitação, datadas da década de 1450, que descrevem a sua atividade e fornecem elementos que permitem compreender os mecanismos logísticos empregues na recolha e redistribuição de vinhos, desde a sua origem até ao seu destino final. Desta forma poderá concluir-se que as condicionantes militares necessárias à manutenção de Ceuta levaram à criação de meios, que a partir do reino, garantiam o fornecimento regular de cereais e vinho, oriundos maioritariamente das lezírias ribatejanas e redistribuídos para África a partir de Lisboa. Palavras-chave Vinho; Abastecimento; Lisboa; Ceuta; Casa de Ceuta. 1 IEM, NOVA FCSH. 92 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL The food and wine supply of Ceuta in the first half of the 15th century. Abstract This article investigates Ceuta’s food supply, namely wine, in the first half of the 15th century. Once the characteristics and specificities of the Portuguese occupation in North Africa have been determined, the different forms of supply structured (locally and from the kingdom) will be presented and discussed. The Casa de Ceuta, an institution created to manage the logistics and supply of goods to that North-African port, has a set of letters of acquittance, dated from the 1450s, which describe its activity and provide elements that help us recreate the logistical mechanisms employed in the collection and redistribution of wines from its origin to its final destination. In this way, it can be concluded that the military conditions necessary for the maintenance of Ceuta, led to the creation of logistical means which guaranteed the regular supply of cereals and wine, mostly collected in the Tagus valley, channeled to Lisbon and then to North Africa. Keywords Wine; Supply; Lisbon; Ceuta; Casa de Ceuta. Introdução. Após a conquista de Ceuta, em 21 de agosto de 1415, sucederam-se dias de pilhagem, marcados pela destruição das infraestruturas urbanas e dos bens no seu interior2. Os ceutís, debandaram perante a chacina generalizada, queimando e arrasando, à sua passagem, as hortas, pomares e campos de cultivo que bordejavam a cidade, para que as recém-chegadas forças de ocupação se vissem privadas da capacidade de se abastecerem a partir do terreno3. Esta prática, vulgar em todo o período medieval4, 2 ZURARA, Gomes Eanes de – Crónica da Tomada de Ceuta por el Rei D. João I composta por Gomes Eanes de Zurara. Ed. Francisco Maria Esteves PEREIRA. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1915, pp. 234-235. 3 ZURARA, Gomes Eanes de – Crónica da Tomada de Ceuta …, p. 240. 4 VERBRUGGEN, J. F. – The Art of Warfare in Western Europe during the Middle Ages from the Eight O ABASTECIMENTO ALIMENTAR E VINÍCOLA DE CEUTA [...] 93 correspondia àquilo que Philip Slavin classificou como “ecocídio”5. Foi perante este cenário que D. João I decidiu reclamar para Portugal uma posição-chave na única via marítima de ligação entre o Mediterrâneo e o Atlântico. A cidade que pouco antes da conquista era habitada por 20.000 a 25.000 habitantes, havia perdido a sua finalidade como entreposto comercial, tendo sido convertida em reduto militar6. O istmo onde se localiza oferecia proteção natural a investidas por mar, desde que fosse garantida a superioridade naval daqueles que a defendiam, ficando o acesso ao interior limitado pelo sistema montanhoso que permanecera em mãos inimigas7. Após a sua ocupação pelos portugueses, Ceuta foi inicialmente povoada por cerca de 3.000 homens8, passando este novo reduto a servir, na primeira metade do século XV, como base às incursões guerreiras promovidas contra o reino de Fez e como porto de abrigo aos corsários portugueses que operavam no estreito de Gibraltar9. Uma vez determinado o número hipotético de habitantes e o perfil de ocupação desta praça, nas primeiras décadas de presença portuguesa, cabe levantar a questão de como a mesma foi abastecida de produtos alimentares. Quem primeiro problematizou as questões da logística e do abastecimento alimentar de Ceuta foi A. H. de Oliveira Marques na obra Introdução ao Estudo da Agricultura em Portugal: a questão cerealífera durante a Idade Média10. Em capítulo próprio dedicado ao Norte de África, os desafios do abastecimento de Ceuta foram interpretados de forma complementar à produção e circulação de cereal em Portugal. Com recurso às cartas de quitação existentes para meados do século XV, o autor demonstrou que Ceuta, cronicamente deficitária em cereal, era abastecida regularmente deste produto pela Casa de Ceuta, que recolhia em Lisboa a produção das lezírias ribatejanas (Valada, Vila Franca, Muje, Toxe e Santarém) destinadas a este efeito. Century to 1340. 2ª ed. Woodbridge: The Boydell Press, 1998, pp. 331-338. 5 SLAVIN, Philip – “Warfare and Ecological Destruction in Early Fourteenth-Century British Isles”. In Environmental History 19 (3), (2014), pp. 528-550. No mesmo sentido vejam-se as práticas guerreiras de devastação dos recursos produtivos realizada em Portugal no século XIV descritas por Miguel Gomes Martins. MARTINS, Miguel Gomes – “Ficou aquela terra estragada que maravylhosa cousa era de ver. Guerra e paisagem no Portugal medieval (1336-1400)”. In GONÇALVES, Iria (coord.) – Paisagens Rurais e Urbanas: fontes, metodologias, problemáticas – Actas das II Jornadas. Lisboa: Centro de Estudos Históricos – Universidade Nova de Lisboa, 2006, pp.130-134. 6 ABULAFIA, David – Cambridge in Morocco. Perspectives on North African and Islamic Studies. Cambridge: The University of Cambridge, 2013, p. 82; MONTEIRO, João Gouveia; COSTA, António Martins – 1415. A conquista de Ceuta. Barcarena: Letras & Diálogos, 2015, p. 50. 7 ABULAFIA, David – Cambridge in Morocco …, p. 61. 8 MONTEIRO, João Gouveia; COSTA, António Martins – 1415. A conquista de Ceuta…, p. 39. 9 MESQUITA, José Miguel Zenhas – O abastecimento alimentar de Ceuta, 1415-1458. Porto: Universidade de Letras, 2017. Dissertação de mestrado, pp. 24-25. Disponível em https://repositorio-aberto. up.pt/handle/10216/110153. 10 MARQUES, A. H. de Oliveira – “O Norte de África”. In Introdução à História da Agricultura em Portugal. A questão cerealífera durante a Idade Média. 2ª ed. Lisboa: Edições Cosmos, 1968, pp. 231-245. 94 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL David Lopes, em A Expansão Portuguesa em Marrocos11, recuperou as problemáticas do abastecimento de Ceuta, através das cartas de quitação outorgadas para este efeito a Gonçalo Pacheco, compreendidas entre os anos de 1451 e 1454. O seu foco de análise foi sobretudo a orgânica administrativa da Casa de Ceuta, a cujas cartas se referiam, e às questões da tutela em que recaía a designação dos ofícios que a compunham. Contudo, não deixou de destacar os cereais, sobretudo o trigo, como o principal produto a ser expedido com destino a África. Teresa Ferreira Rodrigues, trabalhando as mesmas cartas de quitação, num artigo com a finalidade de problematizar o papel do Algarve nas relações com Ceuta durante o reinado de D. Afonso V12, concluiu que a Casa de Ceuta foi a manifestação de um processo de centralização, em Lisboa, da recolha de financiamento e de alimentos com destino à manutenção da praça africana. A atenção do seu trabalho seguiu predominantemente as contribuições em dinheiro e a sua entrega a oficiais régios, seguindo-se colateralmente a recolha de bens alimentares, onde pela primeira vez foi destacado não só a recolha de grandes quantidades de cereal, mas também, a existência de vinho, e em menor dimensão a carne. A primeira monografia com um capítulo dedicado ao abastecimento de Ceuta deve-se a Paulo e Isabel Drummond Braga13, no qual se descreveram as várias formas de abastecimento da cidade, tais como a produção local, as pilhagens, o corso, o mercado e as mercadorias providenciadas pela Casa de Ceuta. Esta exposição referia-se predominantemente a uma cronologia posterior às primeiras décadas de ocupação, situando-se mais precisamente na época moderna, altura em que as problemáticas associadas à logística de abastecimento haviam mudado. Em 2017, com a minha dissertação de mestrado intitulada O abastecimento alimentar de Ceuta, 1415-145814, procurei determinar as características especificas da ocupação portuguesa em Ceuta, na primeira metade do século XV, que orientavam as necessidades de abastecimento alimentar e, consequentemente, os agentes e instituições responsáveis pelo provimento, as diferentes formas de abastecimento encontradas, tanto de origem local como de origem metropolitana, tendo destacado o papel da Casa de Ceuta no quadro geral do abastecimento, à luz das informações recolhidas nas cartas de quitação já aqui referidas. O abastecimento alimentar de Ceuta na primeira metade do século XV não é, portanto, um tema inédito na produção historiográfica portuguesa. Genericamente, LOPES, David – A Expansão Portuguesa em Marrocos. Lisboa: Teorema, 1989. RODRIGUES, Teresa Ferreira – “Relações entre o Algarve e Ceuta no reinado de D. Afonso V (As Cartas de Quitação)”. In Actas das I Jornadas de História Medieval do Algarve e Andaluzia. Loulé: Câmara Municipal de Loulé, 1987, pp. 243-269. 13 BRAGA, Isabel Drummond; BRAGA, Paulo Drummond – “Abastecimento”. In Ceuta Portuguesa (1415-1656). Ceuta: Instituto de Estudios Ceutíes, 1998, pp. 81-98. 14 MESQUITA, José Miguel Zenhas – O abastecimento alimentar de Ceuta, 1415-1458…. 11 12 O ABASTECIMENTO ALIMENTAR E VINÍCOLA DE CEUTA [...] 95 as formas de abastecimento que serviram a cidade é conhecido. De todos os bens alimentares necessários à sobrevivência da guarnição portuguesa, coube aos cereais, nas questões da sua origem, recolha e logística de transporte, o principal destaque na produção científica de conhecimento até ao momento. Contudo, a par da ênfase empregada à relevância do cereal pela tradição historiográfica portuguesa, de igual modo será importante salientar as questões relacionadas com o abastecimento de vinho, alimento inseparável do pão em todas as refeições. Este artigo pretende investigar, precisamente, os problemas concretos que a necessidade do seu abastecimento levantou. Em primeiro lugar, será feita uma exposição das características e condicionantes do acesso à produção e recolha de alimentos no território ao redor de Ceuta. Seguir-se-á a demonstração da necessidade do transporte de mantimentos desde o reino até ao Norte de África, e os consequentes mecanismos de abastecimento que foram criados para esse efeito. Por fim, serão expostos os resultados da recolha de informação sobre vinho nas cartas de quitação emitidas por Afonso V e outorgadas a Gonçalo Pacheco, tesoureiro da Casa de Ceuta15, para os anos de 1451-1454, e a carta de quitação outorgada a João Vaz, almoxarife do celeiro de Santarém, correspondente aos anos de 1451-145316. Estes documentos, provenientes da chancelaria régia, foram editados por Pedro de Azevedo e correspondem à fonte de informação mais detalhada sobre o vinho como produto de abastecimento para Ceuta, na primeira metade da centúria de quatrocentos. Com as ressalvas necessárias à sua interpretação, será possível traçar uma visão radiográfica da origem dos vinhos, a sua recolha, o seu acondicionamento e transporte, desde as lezírias ribatejanas, ou dos reguengos próximos à capital, até à Casa de Ceuta, centro aglutinador e redistribuidor desta mercadoria para o seu destino final. 1. Abastecimento local. Nos anos em que permaneceu um bastião isolado, até 1458, Ceuta viu a capacidade produtiva do seu hinterland seriamente condicionada pela estratégia de defesa iniciada por D. Pedro de Meneses. Como forma de evitar a hipótese de um cerco prolongado foi criada uma zona tampão de seis léguas, através da prática continuada de razias e destruição sistemática de árvores de fruto, hortas e campos de cultivo. Junto à cidade formou-se, assim, uma terra de ninguém livre de obstáculos e de barreiras visuais, pontuada por atalaias e vigias17. Com o passar dos anos, a estabilização da ocupação 15 DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 relativos a Marrocos. Vol. 2. Ed. de Pedro de Azevedo. Lisboa: Academia das Ciências, 1934, doc. CCCXXI, pp. 342-364, doc. XIX, pp. 669-709. 16 DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531…, Vol. 2, doc. CCLXXXIII, pp. 290-295. 17 ZURARA, Gomes Eanes de – Crónica do Conde D. Pedro de Meneses, ed. Maria Teresa Brocado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 260. DUARTE, Luís Miguel – “África”. In BARATA, 96 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL portuguesa permitiu o aproveitamento das terras situadas à vista dos muros da cidade, surgindo então herdades de pão, vinhas, hortas, pomares e unidades de produção agropecuária, ciclicamente destruídas por ataques inimigos18. As capacidades produtivas do espaço deveriam ser semelhantes em ambos os lados do estreito, não tendo, por isso, sido particularmente custosa a adaptação dos portugueses ao seu novo território, podendo manter inalterados os hábitos alimentares que traziam do reino. Nestes, o pão e o vinho desempenhavam um papel central, sendo complementados com carne de várias qualidades, peixe, vegetais e frutas19. O solo era propício à cultura de sequeiro, mas, dada a morfologia do território e as condicionantes já referidas ao desenvolvimento desta cultura, a cidade carecia do espaço necessário à produção em quantidade suficiente para se sustentar, ao contrário de outras regiões mais a sul, como Arzila, Larache, Mazagão ou Safim20. No mesmo sentido, as vinhas existentes junto à cidade eram manifestamente escassas para a produção de vinho em quantidade suficiente para abastar a população. No que respeita à carne produzida localmente, criavam-se aves de capoeira e gado, sobretudo caprino, embora também bovino e suíno, em currais e pastos ao redor da cidade, mas também nos seus montes adjacentes, que igualmente poderiam fornecer os proventos da caça21. Quanto ao peixe, era capturado em barcas que navegavam pelo estreito, ou recolhido em armadilhas denominadas almadravas22. Podia ainda ser pescado à linha a partir do pano de muralha junto à montanha da Almina23. Outra forma de acesso a produtos alimentares decorria dos saques provenientes das operações de corso no mar. A maioria das embarcações apreendidas seria de média ou pequena dimensão, estabelecendo rotas de ligação entre o Norte de África e o Sul da Península Ibérica, ainda sob o domínio muçulmano. Estas carregavam, predominantemente, peixe, cereais, frutas e legumes. Por exemplo, quando o navio que transportou o embaixador do reino de Fez foi corseado, a carga era composta por Manuel Themudo; TEIXEIRA, Nuno Severiano (dirs.) – Nova História Militar de Portugal. vol. 1. coord. José MATTOSO. Lisboa: Círculo de Leitores, 2003, pp. 411-412. 18 DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 relativos a Marrocos. Vol. 1, Ed. de Pedro de Azevedo. Lisboa: Academia das Ciências, 1915, doc. CLXV, p. 200; Vol. 2, doc. CCLXXI, p. 279, doc. IX, p. 659. ZURARA, Gomes Eanes de – Crónica do Conde D. Pedro de Meneses..., pp. 284, 347, 632. 19 GONÇALVES, Iria – “A alimentação”. In MATTOSO, José (dir.) – História da Vida Privada em Portugal. Vol. 1: A Idade Média. Coord. Bernardo Vasconcelos e SOUSA. [s.l.]: Temas e Debates, 2010, pp. 226-230. MARQUES, A. H. de Oliveira – A Sociedade Medieval Portuguesa. 2ª ed., Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1971, pp. 9-16. 20 LOPES, David – A Expansão em Marrocos..., p. 59; GODINHO, Vitorino Magalhães – A Expansão Quatrocentista Portuguesa 3ª ed.. Lisboa: Dom Quixote, 2008, p. 162. 21 ZURARA, Gomes Eanes de – Crónica do Conde D. Pedro de Meneses…, pp. 254, 260, 411. 22 ZURARA, Gomes Eanes de – Crónica do Conde D. Pedro de Meneses…, pp. 349, 445. DUARTE, Luís Miguel – Ceuta, 1415. Lisboa: Livros Horizonte, 2015, p. 144. 23 ZURARA, Gomes Eanes de – Crónica do Conde D. Pedro de Meneses…, p. 46. O ABASTECIMENTO ALIMENTAR E VINÍCOLA DE CEUTA [...] 97 cavalas, figos e amêndoas24, outros navios capturados iam carregados com cavalas, trigo, cevada, feijões e legumes genericamente identificados25. Por terra, as almogavarias rendiam avultadas quantidades de carne. As estimativas do número total de animais capturados variam. Para Nuno Silva Campos teriam sido, até 1437, capturadas 4.412 cabeças de gado graúdo e miúdo e 78 cavalos26, enquanto que Paulo Drummond Braga calculou um total de 232 cabras e bois, 53 podengos, 45 cavalos e 16 éguas, apreendidas entre 1415 e 146427. Nestas surtidas, o ataque era precedido de uma sondagem aos locais de pasto e aos estábulos ou currais onde se reuniam à noite as reses, de forma a que, quando a ação guerreira tivesse lugar, se soubesse ao certo a localização dos bens mais valiosos que poderiam ser tomados28. Aos animais – que, quando vivos, eram fáceis de transportar na evasão de regresso à segurança de Ceuta, muitas vezes sob perseguição de hostes inimigas – opunha-se o cereal, que para além de existir em quantidades residuais, seria mais difícil de acondicionar e transportar, sendo por isso destruído no local. No terreno, a responsabilidade do abastecimento alimentar recaía no capitão, cargo que foi primeiramente ocupado por D. Pedro de Meneses logo após a conquista29. Este estava investido de poder absoluto, era a cabeça da administração militar, judicial e da fazenda, respondendo apenas perante o rei30. Caber-lhe-ia o encargo de garantir que os armazéns da cidade se encontravam sempre atestados de mantimentos necessários a suster a cidade, em especial perante o isolamento repentino em situações de cerco. Permanece, em grande medida, desconhecido o papel do capitão de Ceuta, e da sua administração, na alocação dos recursos produtivos locais, com exceção da outorga de algumas cartas de doação, confirmadas por D. Afonso V, de casas e terras destinadas à agricultura31. Em suma, as diferentes formas de abastecimento local permitiam aos portugueses o acesso a variadas fontes de alimentação, em maior ou menor quantidade, no diaa-dia, de carne, peixe, vegetais e fruta. Os bens essenciais – pão e vinho – eram, no entanto, escassos, sendo, por isso, necessária a criação de uma rota regular que os transportasse desde o reino. ZURARA, Gomes Eanes de – Crónica do Conde D. Pedro de Meneses…, p. 491. ZURARA, Gomes Eanes de – Crónica do Conde D. Pedro de Meneses…, pp. 304-305, 309, 380. 26 CAMPOS, Nuno Silva – D. Pedro de Meneses e a construção da Casa de Vila Real (1415-1437). Lisboa: Sete Caminhos, 2008, p. 84. 27 BRAGA, Paulo Drummond – Uma Lança em África: História da conquista de Ceuta. Lisboa: Esfera dos Livros, 2015, pp. 56-60. 28 ZURARA, Gomes Eanes de – Crónica do Conde D. Pedro de Meneses…, pp. 278, 330. 29 BRAGA, Isabel Drummond; BRAGA, Paulo Drummond – Ceuta Portuguesa (1415-1656) …, p. 187. 30 LOPES, David – A Expansão em Marrocos…, p. 41. 31 DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 1, doc. CLXV, p. 200; Vol. 2, doc. CCLXXI, p. 279, doc. IX, p. 659. 24 25 98 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL 2. Abastecimento a partir do reino. A ausência de fontes sequenciais para a cronologia em estudo, com exceção das cartas de quitação referentes a alguns anos das décadas de quarenta e cinquenta do século XV, complica a compreensão daqueles que seriam os mecanismos de abastecimento a Ceuta a partir do reino. Certamente que o capitão e outros agentes presentes no terreno, dotados de casa senhorial própria, fariam chegar dos seus domínios, às suas custas, alimentos para o seu sustento. Esta hipótese permanece, contudo, no plano teórico, e serviria apenas os próprios e os seus séquitos. Para prover a restante guarnição militar e população local, D. João I, logo em 1416, atribuiu ao Infante D. Henrique tal incumbência32. Esta obrigação parece ter sido cumprida de forma intermitente até ao momento em que D. Afonso V retirou ao seu tio a responsabilidade pela administração da cidade, já em inícios dos anos de 145033. Da sua atuação podemos saber que, para a preparação da expedição a Tânger, em 1437, o Infante contribuiu, através do seu governador D. Fernando de Castro, com biscoito, cevada, trigo, vinho, vinagre e carne34. E que, em 1453, Gonçalo Pacheco recebeu em Lisboa o pão que, segundo a quitação, era devido à Casa de Ceuta por obrigação de contribuição de D. Henrique. A logística do transporte e acondicionamento deste cereal foi inteiramente paga pela Casa de Ceuta35. Paralelamente à entrega de responsabilidades ao infante D. Henrique, o rei continuou a garantir o abastecimento alimentar de Ceuta através de diferentes mecanismos36. Assim, foram criados novos impostos como os “Dez reais para Ceuta”, que oneraram particularmente as comarcas a norte do país, e os “Ferreiros de Ceuta” que incidiam sobre as comunidades judaicas, bem como a subordinação de outros tributos, já existentes, como as jugadas de Santarém37. Os rendimentos de alguns mestrados e instituições religiosas foram igualmente canalizados para a mesma finalidade. Foram ainda lançados pedidos em dinheiro ou alimentos, que por vezes, originavam queixas, como as dos concelhos de Viana, Ponte de Lima e Guimarães, nas Cortes de Lisboa em 1456, os procuradores alegavam que os navios locais eram desviados das suas funções originais para o abastecimento cerealífero de Ceuta, em alturas do ano que deveriam sair com mercadorias para comércio38. Seguia-se a MONUMENTA Henricina. Vol. II, dir. e org. de António Joaquim Dias Dinis. Coimbra: Comissão Executiva das Comemorações do Vº Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1960, doc. 116, pp. 240-241. 33 MONUMENTA Henricina …, Vol. VI, 1964, p. XXI. 34 DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 1, doc. CXXXI, pp. 163-168. 35 DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. XIX, pp. 670-672. 36 MESQUITA, José Miguel Zenhas – O abastecimento alimentar de Ceuta…, 1415-1458, pp. 44-48. 37 Para mais informações sobre o financiamento de Ceuta e as queixas que o mesmo originou em Cortes, vejam-se os textos de Iria Gonçalves e Armindo de Sousa. GONÇALVES, Iria – Pedidos e empréstimos públicos em Portugal durante a Idade Média. Lisboa: Centro de Estudos Fiscais e Aduaneiros, 1964; SOUSA, Armindo de – As Cortes Medievais Portuguesas (1385-1490). Vol. I. Lisboa: INCM, 1990. 38 DESCOBRIMENTOS Portugueses: Documentos para a sua História. Sup. ao Vol. I, ed. de João Martins 32 O ABASTECIMENTO ALIMENTAR E VINÍCOLA DE CEUTA [...] 99 argumentação de que o rei possuía navios próprios para garantir a logística alimentar da sua possessão africana, sendo por isso desnecessário o recurso às embarcações dos concelhos agravados. Em resposta, o rei apenas aceitou parcialmente esta argumentação, determinando que iria continuar a socorrer-se dos ditos navios, mas apenas entre abril e dezembro, deixando os meses de janeiro a março, livres para o transporte comercial de mercadorias39. Nas mesmas Cortes de 1456, o procurador de Guimarães queixou-se do pagamento reduzido pelo rei dos cereais comprados aos lavradores de Entre-Douro-e-Minho, assim como, do seu carreto até aos pontos na costa de onde partiriam para a cidade norte-africana. Estes lavradores pretendiam receber o mesmo que se recebia na Estremadura. Em resposta, o rei mandou que o cereal fosse pago pelo seu valor corrente ao tempo em que o pedido fosse lançado40. Na realidade, não sabemos se efetivamente estas queixas surtiram efeito positivo, mas parece seguro que o cereal recolhido desta forma não passava pela Casa de Ceuta em Lisboa antes de viajar para o seu destino. Para o transporte exclusivo de alimentos para Ceuta, existia pelo menos durante o reinado de D. Afonso V uma barca chamada de Santa Maria de África. A sua manutenção, logística, aparelhagens e tripulação eram asseguradas pelo monarca. A existência de embarcações designadas para o transporte alimentar não se deveria restringir à barca Santa Maria de África, pois o documento legal que estipula os direitos do escrivão e da sua tripulação era aplicável a outros escrivães e marinheiros que desempenhassem as mesmas funções41. 3. Casa de Ceuta. O principal expediente de abastecimento a Ceuta a partir do reino foi a Casa de Ceuta. Fundada por iniciativa régia, possivelmente logo em 1415, era gerida por um tesoureiro e o seu escrivão. Situada na Ribeira de Lisboa, contava com armazéns próprios, moagens e fornos de biscoito, espaços de desmanche e salga de carne e peixe, adegas e tanoarias, a par das casas de residência do tesoureiro42. A função desta instituição consistia na centralização dos mecanismos de recolha e distribuição de alimentos, na forma de cereal, carne, peixe e vinho, de várias regiões do país, com destino a Ceuta, mas também a concentração das fontes de financiamento e material logístico necessárias à manutenção dos ofícios e armadas destinados a garantir a da Silva Marques. [reimpressão do original de 1956], Lisboa: INIC, 1988, doc. 987, p. 530. 39 DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCCLXIX, pp. 410-411. 40 DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCCLXXXIX, p. 430. 41 DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCXXXVIII, pp. 247, 248. 42 CAETANO, Carlos – “Um olhar sobre a Casa de Ceuta”. Cadernos do Arquivo Municipal, 2º Série, 4 (julho-dezembro 2015), pp. 70-83; MESQUITA, José Miguel Zenhas – O abastecimento alimentar de Ceuta, 1415-1458…, pp. 52-55. 100 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL presença portuguesa no Norte de África43. Da sua atividade apenas conhecemos algumas cartas de quitação que indiciam a continuidade e permanência destas funções ao longo da cronologia em estudo44. 4. Cartas de quitação. No presente artigo, serão apresentados os resultados da recolha de informação em três cartas de quitação relacionadas com a Casa de Ceuta, datadas da década de cinquenta do século XV, pois são aquelas que permitem uma análise mais detalhada às questões que pretendo abordar. Como já anteriormente foi referido, estas cartas não são as únicas que abrangem a temática do abastecimento de Ceuta, contudo, são aquelas que discriminam o total de receitas e despesas de uma forma mais uniformizada, contrastando com outras cuja informação é apresentada de uma forma menos esclarecedora para os objetivos deste trabalho45. As duas primeiras quitações analisadas datam de 1456, referindo-se aos anos de 1451-1454, e foram elaboradas por Gil Vaz, contador das coisas de Ceuta, que quitou Gonçalo Pacheco, tesoureiro-mor46. Estas quitações apresentam um nível de detalhe superior a outras do género, pois correspondem aos primeiros anos em que o rei recuperou para si a responsabilidade do provimento a Ceuta, querendo saber, detalhadamente, como esta instituição era gerida. A terceira quitação que irei abordar data de 1455, e alude aos anos de 1451-1453, tendo sido feita por Gil Vaz, contador das coisas de Ceuta, a João Vaz, almoxarife do celeiro de Santarém, e referindo-se aos rendimentos e produtos que o celeiro de Santarém devia recolher e encaminhar para a Casa de Ceuta em Lisboa47. Antes de avançar com a exposição e interpretação destes resultados deve ser referido que as cartas de quitação, em apreciação, correspondem a um resumo, feito pelo contador do rei, para ser inserido na chancelaria régia. Este resumo resultava da inspeção pelo contador, aos livros próprios de atividade que cada um dos oficiais quitados e seus escrivães possuía. Os livros originais, que, entretanto, se perderam, estavam estruturados segundo entrada e saída de produtos e dinheiro (recebeu e despendeu), divididos de forma anual. RODRIGUES, Teresa Ferreira – “Relações entre o Algarve e Ceuta no reinado de D. Afonso V (As Cartas de Quitação)…” , pp. 245-250. 44 MESQUITA, José Miguel Zenhas – O abastecimento alimentar de Ceuta, 1415-1458…, pp. 44-48, 66-86. 45 Sobre as questões de abastecimento alimentar em relação às restantes cartas de quitação veja-se RODRIGUES, Teresa Ferreira – “Relações entre o Algarve e Ceuta no reinado de D. Afonso V (As Cartas de Quitação)…” , pp. 243-269. VIANA, Mário – Vinhedos Medievais de Santarém. Cascais: Patrimonia, 1998, p. 172. MESQUITA, José Miguel Zenhas – O abastecimento alimentar de Ceuta, 1415-1458…, pp.72-86. 46 DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCCXXI, pp. 342-364, doc. XIX, pp. 669 – 709. 47 DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531…, Vol. 2, doc. CCLXXXIII, pp. 290-295. 43 O ABASTECIMENTO ALIMENTAR E VINÍCOLA DE CEUTA [...] 101 Talvez pelo facto de estes documentos serem um resumo, o critério de estruturação por anos e entradas e saídas não é uniforme, podendo a informação que diz respeito ao que se recebeu entrar no capítulo do que se despendeu e viceversa. Esta informação pode ainda surgir repetida e nem sempre a divisão por anos é respeitada. Acrescem a estes problemas a ocorrência de informação em diferentes níveis, umas vezes de forma detalhada, outras vezes de forma lacunar, sem que para tal se conheça um motivo que não seja o facto de estas quitações corresponderem a um resumo dos livros de contas, tendo-se provavelmente optado por copiar certas informações em detalhe, pois seriam essas as mais relevantes para a administração régia. Não existe um critério definido para designar a forma da receção dos produtos alimentares e a quantidade enviada a partir de Lisboa, pelo que, estes produtos são registados segundo várias unidades de medida, sem que exista uma referência clara à equivalência das utilizadas pela Casa de Ceuta com as demais em vigor nesse período. Não sabemos também se as medidas utilizadas pelo celeiro de Santarém eram equivalentes àquelas utilizadas por esta instituição. Assim, a tentativa de tratamento estatístico dos resultados alcançados deverá ser feita com as cautelas que estes problemas colocam ao rigor dos resultados48. 5. Cartas de quitação outorgadas a Gonçalo Pacheco, tesoureiro da Casa de Ceuta (1451-1454). Nestes anos, Gonçalo Pacheco recebeu em dinheiro: os valores do imposto dos Ferreiros de Ceuta da comuna de judeus de Alenquer, Lisboa e Setúbal; as contribuições dos almoxarifados de Viseu, Lamego, Santarém; e ainda, do almoxarife das lezírias, do paço da Madeira, do armazém da cidade de Lisboa, do tesoureiro real em Lisboa e da renda da sisa da fruta de Lisboa. As contribuições recebidas foram empregues: no pagamento da tença e no mantimento dos oficiais e trabalhadores responsáveis pela administração e manutenção da Casa de Ceuta; no pagamento a outros oficiais régios ligados a Ceuta, como o contador e o escrivão; na satisfação de parte do soldo e mantimento a vassalos do Rei que se deslocavam ao Norte de África; na compra de material logístico necessário ao acondicionamento dos produtos recolhidos; na compra de bens alimentares (carne, peixe, cereais e vinho); e no pagamento do frete às embarcações que levaram mantimentos para Ceuta desde 48 Para a análise das quantidades de vinho que estão discriminadas nas cartas de quitação, utilizei as equivalências de medidas propostas por Mário Viana e Sérgio Ferreira. Estas são, 1 tonel igual a 2 pipas, 4 quartos, 50 almudes, 600 canadas e 2.400 quartilhos. VIANA, Mário – Vinhedos Medievais de Santarém…, p. 144; FERREIRA, Sérgio – Preços e Salários em Portugal na Baixa Idade Média. Porto: Universidade de Letras, 2007. Dissertação de Mestrado, p. 235. Disponível em https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/14653. 102 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Buarcos, foz do Mondego, Mira, Alcácer do Sal e Lisboa49. Com destino a Ceuta foram recolhidos cereais (milho, trigo, centeio e cevada): do celeiro de Santarém (jugadas de Santarém, e rendas do ramo de Muge e Valada), do celeiro de Aveiro, do almoxarife de Vila Franca, do almoxarife da Azambuja, do almoxarife dos fornos de Lisboa; das rendas dos reguengos de Ribamar, de Algés, e de Oeiras, e do ramo de Calhariz. Recebeu ainda carne: do vedor da fazenda real, do almoxarife das taracenas de Lisboa, e de Santarém; de Mem Rodrigues, morador em Estremoz, como pagamento de uma dívida contraída junto do almoxarife real dessa vila. Recebeu peixe (pescadas, raias, peixes minhotos, peixe-prego, cavalas e sardinhas), por compra, e pela entrega do almoxarife do armazém da cidade de Lisboa50. Quanto ao vinho, deram entrada na Casa de Ceuta: em 1451, 22 tonéis provenientes do celeiro de Santarém, 18 tonéis provenientes das rendas dos reguengos de Ribamar, e 8,66 tonéis de vinho por compra; em 1452, 210, 52 tonéis oriundos do celeiro de Santarém, e 25,5 tonéis das rendas dos reguengos de Ribamar51; em 1453, o total de 365,24 tonéis recolhidos é de origem incerta52; e em 1454, 153 tonéis do celeiro de Santarém, 15,25 tonéis dos reguengos de Ribamar, 0,52 tonéis do reguengo de Oeiras, 10,52 tonéis comprados, e 5 tonéis que haviam ficado armazenados na adega desde Pela análise do gráfico 1, detetamos que os valores totais de vinho recolhido oscilaram consideravelmente ao longo destes quatro anos. A principal fonte de recolha foi o celeiro de Santarém, de onde provinham os vinhos das jugadas e das rendas dos ramos de Muge e Valada, mas os valores de cada uma destas contribuições não se encontram aqui discriminados. Segue-se o reguengo de Ribamar, cuja renda anual correspondia a 18 tonéis. Se verificarmos os anos seguintes, em 1452 estes reguengos renderam 25,5 tonéis, e em 1454, 15,24 tonéis. Este facto poderá estar relacionado com a forma de pagamento da renda, que poderia corresponder a uma parte proporcional da produção, oscilando assim de acordo com o sucesso do ano agrícola para os vinhos. Quanto ao reguengo de Oeiras, parece ter tido uma 49 Para uma interpretação detalhada das formas de financiamento da Casa de Ceuta veja-se RODRIGUES, Teresa Ferreira – “Relações entre o Algarve e Ceuta no reinado de D. Afonso V (As Cartas de Quitação)…” , pp. 243-249. 50 Sobre a recolha de bens alimentares nas cartas de quitação veja-se a minha dissertação de mestrado e o já referido texto de A. H. de Oliveira Marques para o caso dos cereais. MESQUITA, José Miguel Zenhas – O abastecimento alimentar de Ceuta, 1415-1458…, pp. 69-86. MARQUES, A. H. de Oliveira – “O Norte de África”…” , pp. 231-245. 51 Na carta de quitação, encontra-se ausente a referência à quantidade de vinho recolhida proveniente das rendas do reguengo de Oeiras no ano de 1452. Apenas sabemos que os mesmos terão efetivamente chegado à Casa de Ceuta, pois Lopo de Évora pagou 300 reais aos homens que efetuaram a sua recolha no dito reguengo. 52 No capítulo das despesas referentes a este ano são contabilizados 88 tonéis de vinho provenientes do celeiro de Santarém e 166,5 tonéis provenientes dos reguengos de Ribamar e Santarém. A ausência de mais informações impede a possibilidade de discriminar os valores quantitativos de cada uma destas origens no total de vinhos recolhidos. O ABASTECIMENTO ALIMENTAR E VINÍCOLA DE CEUTA [...] 800 700 600 500 400 300 200 100 0 1451 1452 1453 1454 Vinho recolhido na Casa de Ceuta Vinho embarcado para Ceuta Vinho entregue como mantimento a vassalos e tripulações Gráfico 1 – Casa de Ceuta: recolha e distribuição de vinho (em tonéis) 250 200 150 100 50 0 1451 1452 1453 1454 Celeiro de Santarém Reguengos de Ribamar Origem desconhecida Compra Reguengo de Oeiras Santarém e Ribamar Gráfico 2 – Casa de Ceuta: proveniência dos vinhos (em tonéis). 103 104 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL contribuição diminuta para o vinho a ser entregue à Casa de Ceuta. Contudo, devem ser tidos em consideração os diferentes níveis de informação que esta fonte apresenta. Por fim, a compra, parece ter sido um expediente excecional e destinado a colmatar necessidades do momento. O vinho recolhido do modo acima descrito foi empregue da seguinte forma. Em 1451, embarcaram 64 tonéis de vinho, no navio de Lançarote, com destino a Ceuta. Nos anos seguintes foram enviados para Ceuta em embarcações cuja denominação não é precisa: 685,73 tonéis em 1452; 102,32 tonéis em 1453; e 136,46 tonéis em 1454. Foram ainda entregues, como parte do mantimento devido a vassalos do rei que se dirigiam ao Norte de África: 21,4 tonéis em 1451; 9,4 tonéis em 1452; 19,35 tonéis em 1453; e 215,26 tonéis em 1454. Com exceção de 1453, o vinho recolhido foi sempre inferior ao vinho distribuído. Mesmo assim, analisando as contas, o saldo do vinho que ficou na Casa de Ceuta foi de 335,89 tonéis de vinho, tendo o tesoureiro, no ano seguinte, apenas declarado que ficaram 5 tonéis de vinho disponíveis do ano anterior. As diferenças de valor entre o recolhido e o enviado poderão ser justificadas pela omissão de grande parte dos valores recolhidos, como ficou evidente no gráfico anterior, bem como, em muitos casos, da indicação das quantidades de vinho transportadas para Ceuta, estando estas incluídas na referência genérica ao pagamento dos fretes dos navios que se deslocavam de Lisboa para o Norte de África. Assim, terá de ser interpretada a grande quantidade de vinho enviada para Ceuta em 1452, face aos restantes anos, ou o aumento dos valores entregues como tença e mantimento em 1454. O vinho recolhido não tinha, exclusivamente, Ceuta ou as armadas que partiam para o Norte de África como destino final. Em 1452 foram entregues 195 reais, 40 alqueires de trigo, 25 almudes de vinho, e 64 “sõas” de carne para o mantimento de um mês, a Jorge, embaixador do Preste João, que o Rei enviou ao duque da Borgonha53. No mesmo ano foi entregue 1 tonel de vinho para o mantimento dos tanoeiros que nesse ano trabalharam na Casa de Ceuta54, e em 1454 a instituição contribuiu com 256 “soãs” de carne, 3 alqueires de trigo, e 1,72 tonéis de vinho para a armada que foi enviada como represália ao ataque de navios ingleses55. 6. Carta de quitação outorgada a João Vaz, almoxarife do celeiro de Santarém (1451-1453). Entre 1451 e 1453, o almoxarife do celeiro de Santarém recebeu em dinheiro os DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCCXXI, p. 357. DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCCXXI, p. 361. 55 DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. XIX, p. 709. 53 54 O ABASTECIMENTO ALIMENTAR E VINÍCOLA DE CEUTA [...] 105 valores do imposto dos Ferreiros de Ceuta, das comunas dos judeus, de Leiria, Abrantes, Alenquer, Santarém e Torres Novas. Este dinheiro foi aplicado na gestão logística dos produtos recolhidos, na compra de material necessário à escrita dos registos, e no pagamento da tença e mantimento a oficiais régios encarregados da manutenção de Ceuta, como Martim Gomes Leitão, vedor da fazenda de Ceuta, ou Vasco Gonçalves, contador de Ceuta. A recolha de produtos alimentares, neste caso, cingia-se quase exclusivamente ao trigo proveniente das rendas das jugadas de Santarém, estipuladas por uma avença entre o Rei e os rendeiros. Estes comprometiam-se, segundo a condição do arrendamento, a entregar anualmente em Lisboa 400 moios, o que não sucedeu em 1451, ficando por apurar as razões e consequências de tal falha. Só em 1453 haveria uma nova referência à recolha de trigo e grão, que foram entregues pelo contador de Santarém ao celeiro desta vila, e reencaminhados para a Casa de Ceuta no mesmo ano. Assim como o trigo, a recolha da maior parte do vinho correspondia aos frutos da renda das jugadas de Santarém, estipulada por uma avença em 165 tonéis anuais56. Em 1451 foram entregues no celeiro 171 tonéis referentes às jugadas, ficando os 16 tonéis que acresciam ao valor avençado, de ser descontados na quantidade de vinho a entregar em 1452. Desta forma, quando em 1452 foram entregues ao celeiro 156,6 tonéis de vinho, referentes à avença das jugadas, deveriam novamente ser descontados 7,5 tonéis de vinho a entregar no ano seguinte, uma vez que em 1452 só haveria a obrigação de serem entregues no celeiro 149 tonéis. Neste mesmo ano, o almoxarife do celeiro pediu emprestado a João Gonçalves “Folga na Palha” 3 tonéis de vinho, que o segundo entregou como sendo de boa qualidade, quando na verdade estavam estragados, ficando por isso declarados como perdidos nos registos. Em 1453 deveriam ter sido entregues 157,5 tonéis correspondentes às jugadas do vinho, mas tal não se verificou, pois este “sse finou ante da novidade”57. As quantidades de vinho provenientes das jugadas variavam, pois, consoante o sucesso das colheitas, verificando-se a realização de ajustes ao valor fixo que deveria ser entregue anualmente, tendo em consideração o que tinha sido entregue no ano anterior. A requisição de vinho emprestado funcionou como uma forma complementar de recolha. Quando comparamos os valores da recolha no celeiro de Santarém, com aqueles que o almoxarife João Vaz alegou ter entregue à Casa de Ceuta, e com os valores que o tesoureiro Gonçalo Pacheco afirma ter recebido em Lisboa, inseridos 56 Sobre o âmbito de aplicação e cobrança da jugada do vinho de Santarém nos séculos XIV e XV veja-se Mário Viana. VIANA, Mário – Vinhedos Medievais de Santarém…, pp. 169-173. 57 DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531..., Vol. 2, doc. CCLXXXIII, p. 293, doc. XIX, p. 678. 106 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL no gráfico 1, constatamos que em 1451, fazendo jus ao cruzamento de informações, de todo o vinho recolhido em Santarém, apenas chegaram a Lisboa 22 tonéis de vinho, desconhecendo-se o destino dos restantes 149 tonéis. Em 1452 o almoxarife declarou ter entregado à Casa de Ceuta 147 tonéis de vinho, enquanto que o tesoureiro declarou ter recebido do celeiro de Santarém um total de 210,52 tonéis. Por fim, o maior contraste surge no ano de 1453, perante a ausência da recolha de vinhos em Santarém e a declaração em Lisboa de que do celeiro da vila Ribatejana haviam chegado 88 tonéis de vinho. 250 200 150 100 50 0 1451 1452 1453 Celeiro de Santarém: recolha da renda das jugadas do vinho Celeiro de Santarém: recolha de vinho por empréstimo Celeiro de Santarém: vinho entregue à Casa de Ceuta Casa de Ceuta: recolha de vinho proveniente do celeiro de Santarém Gráfico 3 – Celeiro de Santarém e Casa de Ceuta: valores comparados (em tonéis) 7. Logística e transporte. Para a recolha dos vinhos nos seus locais de origem, a Casa de Ceuta enviava tonéis constituídos por vários arcos de madeira unidos por vimes. As “cabeças” destes tonéis eram seladas por pregos, e a abertura, por onde o líquido passava, vedada por um batoque58. Os vinhos a serem recolhidos eram então colocados nestes tonéis, e transportados em barcas, desde os reguengos de Ribamar e Santarém até Lisboa. O trabalho de recolha, manutenção e transporte era pago pela Casa de Ceuta. De destacar que o cereal proveniente dos reguengos de Ribamar era transportado de 58 DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCLXXXIII, p. 293, doc. XIX, p. 678. O ABASTECIMENTO ALIMENTAR E VINÍCOLA DE CEUTA [...] 107 forma diferente, nomeadamente por via terrestre, carregado por bestas conduzidas por lavradores ou almocreves59. Os vinhos correspondentes às jugadas de Santarém eram recolhidos nas adegas dos lavradores logo após a vindima60. A partir deste momento, o acondicionamento e transporte eram garantidos pela Casa de Ceuta, que enviava recursos financeiros e material logístico ao celeiro de Santarém61. Assim, os vinhos eram recolhidos num primeiro momento nas adegas de Muge e Valada, onde estagiavam sobre esteios de pinho, e num momento posterior transportados por “alivadoiras” para a adega do celeiro de Santarém62. Face à quantidade de vinho recolhida em 1452, foi necessário complementar o espaço disponível na adega do celeiro com o recurso ao aluguer de casas e “logeas” na vila63. Partindo das adegas de Santarém, o vinho era carregado por “polinheiros”, em barcas que desciam o Tejo até Lisboa64. Uma vez chegados a Lisboa, os vinhos eram descarregados das barcas e arrumados nas adegas ou paióis da Casa de Ceuta por “ganhadinheiros” ou “pulinheiros” e “afundadores”65. A compra, em 1451, de 12 tonéis para servirem de balseiros, indica que nas adegas da instituição se procedia à fermentação de vinho, talvez daquele oriundo dos reguengos de Ribamar ou do reguengo de Algés, uma vez que os vinhos de Santarém eram colocados em adegas locais antes de serem transportados para Lisboa66. Assim, a recolha dos vinhos em locais geograficamente mais próximos poderia ser, hipoteticamente, feito logo após a vindima, enquanto que os vinhos de Santarém viriam já fermentados para Lisboa. Antes de serem embarcados com destino a Ceuta, os vinhos eram “olhados” e atestados. Em 1452 gastaram-se 139 almudes neste processo67. Em 1453 gastaram-se 2 toneis e 39 almudes de vinho, sendo que, um destes dois toneis caiu ao chão e partiuse, após o “cantell” em que estava assente ter quebrado68. Em 1454, despenderam-se 174 almudes, dos quais se perderam, derramados pelo chão 24 almudes, pois, o tonel onde estavam encontrava-se furado69. DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCCXXI, p. 348. DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCLXXXIII, p. 292. 61 DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCLXXXIII, pp. 291-292. 62 DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCLXXXIII, pp. 290, 292. 63 DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCLXXXIII, p. 293. 64 DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCLXXXIII, p. 292. 65 DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCCXXI, p. 360, doc. XIX, 59 60 p. 676. DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCCXXI, pp. 343, 351. DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. CCCXXI, p. 361. 68 DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531 …, Vol. 2, doc. XIX, p. 679. 69 Em Santarém haveria mesmo um tanoeiro dedicado em exclusivo à reparação dos recipientes destinados ao transporte dos vinhos provenientes das jugadas com destino a Ceuta. DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531…, Vol. 2, doc. XIX, p. 697; VIANA, Mário – Vinhedos Medievais de 66 67 108 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Sobre o desembarque e armazenamento em Ceuta pouco ou nada sabemos, apenas existindo uma quitação a Fernão de Andrade, tesoureiro das obras de Ceuta, datada de 1454, e que nos informa de que nos anos de 1452 e 1453 os homens que levaram o vinho e o pão desde as embarcações até ao celeiro de Ceuta receberam 8.878 reais70. Conclusões. Historicamente, o vinho era uma bebida e alimento de primeira necessidade para a sociedade medieval portuguesa: assim o foi em tempos de paz e em tempos de guerra. Mesmo perante a mudança para novas formas de vida, marcadas pela beligerância guerreira, em territórios novos, de exigências climáticas diferentes àquelas que muitos conheciam no reino, os hábitos alimentares quotidianos trazidos de Portugal mantiveram-se. Na paisagem rural de Ceuta, apesar das condicionantes espaciais impostas para defesa da cidade, com o passar dos anos reproduziram-se, em pequena escala, as estruturas de produção agrárias, conhecidas desde há muito pelos portugueses. Estas eram recorrentemente atacadas pelo inimigo e esporadicamente ocupadas durante operações de cerco que isolavam a guarnição portuguesa no interior dos muros da cidade. Durante os períodos de ocupação mais calmos, em que a ofensiva estava do lado português, em campanhas de pilhagem ou ações de corso, os frutos do saque não eram suficientes para complementar a produção local de pão e vinho, produtos essenciais em qualquer refeição. Assim, foi necessário criar mecanismos de abastecimento a partir do reino, desde o primeiro momento, após a conquista e ocupação de Ceuta. Das diferentes formas de abastecimento encontradas para abastecer Ceuta a partir do reino, é a Casa de Ceuta aquela que melhor conhecemos, e aquela que foi instituída exclusivamente para esse efeito. Sediada em Lisboa, esta instituição procedia à recolha de financiamento, alimentos e material logístico, para garantir a manutenção da praça africana e de uma rota marítima regular que a ligasse ao reino. A recolha dos vinhos oriundos de rendas e direitos régios, era financiada e apoiada logisticamente pela Casa de Ceuta, desde a sua origem até ao destino final. Lisboa funcionaria assim como um centro redistribuidor de produtos recolhidos nas lezírias ribatejanas e em reguengos geograficamente próximos à cidade. As cartas de quitação analisadas neste artigo, referentes à década de 1450, permitem uma “radiografia” do sistema logístico de abastecimento a partir da Casa de Ceuta num momento em que a instituição e a presença portuguesa na praça marroquina estavam já consolidadas por décadas de existência. Nos seus registos encontraram-se grandes quantidades Santarém…, p. 173. 70 DOCUMENTOS das Chancelarias Reais anteriores a 1531…, Vol. 2, doc. CCCXIV, p. 333. O ABASTECIMENTO ALIMENTAR E VINÍCOLA DE CEUTA [...] 109 de vinho enviadas para Ceuta, certamente suficientes para suprir as necessidades da guarnição local. Recuperando a afirmação de A. H. de Oliveira Marques, que acreditava que na década de 1450 o maior contingente de cereal para abastecer Ceuta provinha das lezírias ribatejanas, podemos complementarmente afirmar, com base nas informações recolhidas, que também o vinho que durante estes anos chegou à cidade era originário da mesma região. Investigações futuras poderão trazer novos dados sobre este assunto, como por exemplo o duplo impacto que a redistribuição de vinhos desta região teve ao nível do consumo local, por um lado, a deslocação dos vinhos do rei para novas finalidades poderá ter-se cifrado num decréscimo do vinho disponível localmente, sobretudo durante o período do relego em que apenas estes vinhos podiam ser vendidos. Por outro lado, o envio dos vinhos para Ceuta e a sua consequente saída do circuito comercial traduziu-se na perda de rendimentos para o seu proprietário, o rei. O trabalho de Doutoramento que tenho vindo a realizar poderá, por seu turno, trazer novos dados que permitam avaliar o impacto desta redistribuição sem fins comerciais nos circuitos de fornecimento e no mercado do vinho de Lisboa. 110 Do cultivo ao consumo: O abastecimento de cereal na Gafaria de Coimbra nos séculos XIV e XV Ana Rita Rocha1 Resumo Na Idade Média, o pão ocupava um lugar central à mesa de todos os grupos sociais. Neste sentido, as instituições medievais eram proprietárias de terras destinadas à cerealicultura, desenvolvendo uma política de produção de trigo e outros grãos panificáveis. A Gafaria de Coimbra não era exceção, detendo um apreciável número de herdades onde se cultivavam os cereais, destinados, em parte, ao seu próprio abastecimento. Este artigo tem por objetivo analisar o processo de aprovisionamento de cereal da leprosaria conimbricense, desde o cultivo até ao seu consumo. Primeiro, atentaremos no património que possuía associado à produção e transformação de cereal, como herdades e moinhos, focando-nos no modo como o administrava e nas rendas cobradas em géneros. De seguida, abordaremos as práticas e estruturas de armazenamento e tratamento do cereal, da competência do medidor da instituição, e o seu destino, tanto para consumo dos gafos, merceeiros sãos e oficiais da casa, como para venda. Por fim, focaremos a intervenção do poder régio no provimento de cereal, sobretudo durante o reinado de D. Fernando e no contexto dos maus anos agrícolas do século XIV, para avaliarmos o impacto destes no consumo de pão numa gafaria medieval. Palavras-chave Produção de cereal; Consumo de pão; Abastecimento urbano; Gafaria de Coimbra; Séculos XIV-XV. 1 IEM – NOVA FCSH; CHSC – UC 112 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL From farming to consumption: the Coimbra’s leper house cereal provisioning in the 14th and 15th centuries Abstract In the Middle Ages, bread was the centrepiece in the table of all social groups. Thus, the medieval institutions owned lands reserved for cereal farming, developing a strategy to produce wheat and other breadmaking grains. Coimbra’s leper house was no exception, owning a sizable number of properties where cereal was the main crop. The goal of this paper is to analyse the process of the cereal supply of Coimbra’s leper house, since cultivation to consumption. First, we will study the property linked to cereal production and processing. We will analyse farmsteads and mills, focusing in their management and how the land rent was collected in foodstuffs. Next, we will approach the cereal storage practices, structures and its handling, a task of the leper house mesurer. We will also analyse the cereal’s distribution among the lepers, the healthy merceeiros and the leper house officials and the cereal marked for sale. In the end, we will focus on royal intervention in the cereal supply, mainly in D. Fernando’s reign and in the bad farming years context, during the 14th century, to evaluate their impact in the consumption of bread in a medieval leper house. Keywords Cereal production; Bread consumption; Urban provisioning; Coimbra’s leper house; 14th-15th centuries. Introdução. Cultivado de norte a sul do país, o cereal, transformado, sobretudo, em pão, ocupava um lugar central na alimentação da população medieval2, integrando os principais fluxos de abastecimento urbano. O termo de Coimbra, onde se localizavam os férteis campos do Mondego, contava-se entre as regiões do reino onde a produção Sobre a importância do pão na mesa medieval, ver ADAMSON, Melitta Weiss – Food in Medieval Times. Westport, Connecticut, London: Greenword Press, 2004, pp. 1-5; COELHO, Maria Helena da Cruz – “Apontamentos sobre a comida e a bebida do campesinato coimbrão em tempos medievos”. In Homens, Espaços e Poderes (séculos XI a XVI). I – Notas do Viver Social. Lisboa: Livros Horizonte, 1990, p. 10 e MARQUES, A. H. de Oliveira – A Sociedade Medieval Portuguesa: Aspectos de Vida Quotidiana. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2010, pp. 36-37. 2 DO CULTIVO AO CONSUMO: O ABASTECIMENTO DE CER EAL NA GAFARIA [...] 113 cerealífera atingia níveis bastante razoáveis, numa época em que esta tarefa não era fácil nem simples, como a caracterizou Iria Gonçalves3. Era, pois, principalmente, daqueles campos que chegava, à urbe conimbricense, a maior parte do trigo e outros grãos panificáveis consumidos pela sua população, quer em contexto doméstico, quer em contexto institucional. Neste sentido, as instituições medievais, nomeadamente as de assistência, detinham terras e outras propriedades dedicadas ao cultivo de cereais, com o intuito, não só de obterem os rendimentos necessários à sua correta administração, mas também de se proverem autonomamente4. Tomando como exemplo a Gafaria de Coimbra, também conhecida como Hospital de S. Lázaro, proprietária de um vasto património, que se estendia por todo o território envolvente, descreveremos o processo de abastecimento de cereal numa leprosaria urbana medieval, desde a sua produção até ao seu destino final, que consistia, maioritariamente, em alimentar os seus hóspedes e dependentes, tanto leprosos, como merceeiros sãos, e os oficiais e funcionários que a serviam. 1. A produção e transformação de cereal nas propriedades da Gafaria de Coimbra. Em 1210, D. Sancho I lançou as bases para a fundação da Gafaria de Coimbra, ao doar, no seu segundo testamento, 10 000 morabitinos para esse fim5. Desde então, os lázaros da cidade empenharam-se em construir um património imóvel capaz de garantir o sustento material da nova instituição assistencial. Recorrendo ao valor legado por D. Sancho, começaram por adquirir, em 1212, a herdade de Enxofães, 3 Ver GONÇALVES, Iria – “Lisboa e o seu abastecimento em cereais”. In ANDRADE, Amélia Aguiar; FARELO, Mário; GOMES, Marta (eds.) – Catálogo da Exposição Pão, Carne e Água. Memórias da Lisboa Medieval. Lisboa: Arquivo Municipal de Lisboa e Instituto de Estudos Medievais, 2019, pp. 49-51, onde a autora salienta alguns fatores, como, por exemplo, o baixo rendimento da semente, a fraca potência dos instrumentos aratórios e a deficiente força de trabalho humana e animal, que “contribuíam para [que] a produção cerealífera fosse muitas vezes deficitária”, exigindo um elevado esforço por parte dos camponeses para se atingirem resultados minimamente aceitáveis. Não obstante, Iria Gonçalves ressalva que, em Portugal, existiam algumas regiões mais propícias ao cultivo de cereais e onde a produção era mais satisfatória, nomeadamente os campos do Mondego, no geral, e o reguengo do Bolão, em particular. Sobre a cultura do cereal no Baixo Mondego, ver COELHO, Maria Helena da Cruz – O Baixo Mondego nos Finais da Idade Média. Vol. I. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1989, pp. 130-152. 4 São inúmeros os estudos realizados em Portugal sobre o património das instituições medievais, incluindo as de assistência, ou que abordam essa mesma questão, nos quais sobressai a importância das propriedades onde se cultivavam cereais. Citemos, entre muitos outros, COELHO, Maria Helena da Cruz – O Baixo Mondego... Vol. I, pp. 130-152; GONÇALVES, Iria – O Património do Mosteiro de Alcobaça nos Séculos XIV e XV. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1989, pp. 65-81; GOMES, Saul António – “A propriedade do hospital de Sta. Maria da Vitória (Batalha) no séc. XV”. Revista Portuguesa de História 27 (1992), pp. 4757; MATA, Luís António – Ser, Ter e Poder. O Hospital do Espírito Santo de Santarém nos finais da Idade Média. Santarém: Magno Edições e Câmara Municipal de Santarém, 2000, pp. 117-119; ROCHA, Ana Rita – A Assistência em Coimbra na Idade Média: Dimensão Urbana, Religiosa e Socioeconómica (Séculos XII a XVI). Coimbra: FLUC, 2019. Tese de Doutoramento, pp. 444-448. 5 Sobre as origens da Gafaria de Coimbra, ver ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos. O Hospital de S. Lázaro de Coimbra nos séculos XIII a XV. Coimbra: FLUC, 2011. Dissertação de Mestrado, pp. 44-47. 114 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL no atual concelho de Cantanhede, e, em 1214, uma vinha, em Montarroio, nos arrabaldes de Coimbra6. A primeira propriedade era, de acordo com os limites descritos na carta de venda, uma herdade de grandes dimensões7, que veio a tornarse numa importante fonte de rendimento da leprosaria, fornecendo-lhe parte dos seus recursos alimentares. Foi, precisamente, com esse objetivo que, em setembro de 1275, os leprosos e o seu procurador, juntamente com os alvazis e concelho de Coimbra, outorgaram aos caseiros e cabaneiros do lugar de Enxofães uma carta de aforamento coletivo, que terá vigorado ao longo de toda a Idade Média8. As rendas, foros e encargos cobrados aos moradores desta extensa propriedade, composta por diversas herdades e terras, de culturas variadas, espelham já perfeitamente a importância que os cereais tinham no território conimbricense e que vieram a ter no aprovisionamento do Hospital de S. Lázaro. Com efeito, ao longo de toda a carta de foro, recolhem-se referências à obrigação de entrega, pelos caseiros e cabaneiros de Enxofães, de parte da produção de pão9 e também ao pagamento de foros, como a eirádiga e a fogaça10, e de outros tributos e encargos em quantidades variáveis de cereal. Em alguns casos, inclusivamente, este devia ser entregue já panificado, como nos prova a obrigação de todos os foreiros, em conjunto, darem três boas fogaças11 aos lázaros, por altura da Páscoa. Refira-se ainda que, em algumas passagens do documento, são especificadas as variedades de grãos que compunham estas rendas e foros e que, portanto, seriam cultivadas em maior escala nesta herdade, salientando-se o trigo e a cevada, que abasteceriam os celeiros da Gafaria. Mas terá sido ao longo dos séculos XIV e XV que o património do Hospital de S. Lázaro de Coimbra aumentou de forma considerável e se consolidou, em grande parte graças a uma intervenção mais atenta e eficaz na sua gestão. Assim nos provam o regimento da instituição, outorgado por D. Afonso IV, em 1329, e as dezenas de 6 Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo (doravante ANTT), Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, 1.ª incorporação, Documentos Particulares, mç. 3, n.os 15 e 21 ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, docs. 1 e 2, pp. 148-150. 7 Atendendo aos seus limites, cremos que esta herdade corresponderia, grosso modo, ao atual lugar de Enxofães, na freguesia de Murtede, no concelho de Cantanhede. 8 Coimbra, Arquivo da Universidade de Coimbra (doravante AUC), Tombo do Hospital de S. Lázaro (1515), cofre, fls. 8-9v ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, doc. 3, pp. 151-154. A cópia desta carta de foro no tombo quinhentista da Gafaria de Coimbra é, por si só, reveladora da importância e durabilidade deste contrato. 9 Relembremos que, na Idade Média, o vocábulo “pão” referia-se a qualquer cereal panificável e não exclusivamente ao alimento que resultava do seu fabrico. Ver MARQUES, A. H. de Oliveira – Introdução à história da agricultura em Portugal: a questão cerealífera durante a Idade Média. Lisboa: Edições Cosmos, 1978, pp. 85-86. 10 Sobre estes dois foros, em particular a fogaça, ver MARREIROS, Maria Rosa Ferreira – Propriedade fundiária e rendas da coroa no reinado de D. Dinis: Guimarães. Vol. 2. Coimbra: FLUC, 1990. Tese de Doutoramento, pp. 520-529 e 530-535. 11 Como a própria fonte o demonstra, a fogaça era, além de um foro, um tipo de pão. Ver GONÇALVES, Iria – Por terras de Entre-Douro-e-Minho com as Inquirições de Afonso III. Porto: CITCEM / Edições Afrontamento, D. L. 2012, pp. 107-109. DO CULTIVO AO CONSUMO: O ABASTECIMENTO DE CER EAL NA GAFARIA [...] 115 contratos agrários que chegaram até nós e que constituem a principal fonte para o estudo do abastecimento cerealífero da instituição12. Antes de mais, o próprio regimento de 1329 oferece-nos um importante ponto da situação das propriedades que a Gafaria possuía, das rendas e foros que delas recebia e, consequentemente, da produção de grãos panificáveis nessas mesmas terras13. Neste ano, a instituição detinha 24 casais nos lugares de Rio de Vide e Vidual, no atual concelho de Miranda do Corvo, e 13 casais e 4 cabaneiros em Condeixa, onde predominavam os cereais, nomeadamente o trigo, entre os géneros que compunham as rendas e foros impostos. Enquanto em Rio de Vide e Vidual cada casal pagava a oitava parte do pão, um alqueire de trigo e uma fogaça, por ano, em Condeixa apenas sabemos que era cobrada uma ração do pão que “Deus der” a todos os casais, cabaneiros e moinhos e que o casal de Fernão Lourenço pagava, de foro, entre outros, dois alqueires de trigo14. Não obstante a informação parcelar, o diploma normativo de S. Lázaro constitui já uma antevisão dos locais e processos produtivos de cereal nas suas propriedades, revelados de modo mais consistente na documentação enfitêutica. Efetivamente, a análise dos contratos agrários, complementada com dados recolhidos noutros diplomas, oferece-nos informações mais ricas e concretas acerca do cultivo e transformação de cereal nas propriedades da Gafaria de Coimbra. No total, recolhemos 74 documentos, entre aforamentos (28), emprazamentos (44) e arrendamentos (2), datados entre 1355 e 147715. Embora nem sempre seja possível discernir de forma clara em que terras eram produzidos os grãos panificáveis, as 12 Até 1329 não dispomos de documentação suficiente que nos permita analisar o património da Gafaria de Coimbra, devido, ao que tudo indica, à negligência dos seus administradores, que D. Afonso IV procurou combater, regulamentando o funcionamento do hospital. Tal como se pode ler no próprio documento normativo, o rei determinou que devia existir, na Gafaria, uma arca, fechada à chave, onde se guardariam as escrituras relativas às suas propriedades “porque foy certo que se perderam muytas scripturas por a malicia dos vedores”. Coimbra, AUC, Regimento do Hospital de S. Lázaro, cofre, n.º 34, fls. 2-2v ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, doc. 5, p. 160. 13 A lista de propriedades incluída no final do regimento parece-nos, todavia, incompleta, como se depreende do seu confronto com a nota explicativa que se encontra no início do documento. Com efeito, são elencados apenas casais e cabaneiros em três localidades (Rio de Vide, Vidual, em Miranda do Corvo, e Condeixa), enquanto no início do documento é referido que nele se encontram descritas as aldeias e herdades que a Gafaria tinha no Campo do Mondego e fora dele, assim como casas, vinhas, olivais, almuinhas e moinhos. Coimbra, AUC, Regimento do Hospital de S. Lázaro, cofre, n.º 34, fls. 1 e 3-3v ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, doc. 5, pp. 156 e 162-164. 14 AUC, Regimento do Hospital de S. Lázaro, cofre, n.º 34, fls. 3-3v ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, doc. 5, p. 163. 15 Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 51, pt. 1, n.º 4 e IV, 3.ª, Gav. 53, pt. 3, n.º 89. Este corpus documental corresponde ao que serviu de base à análise que fizemos do património da Gafaria de Coimbra, ao longo da Idade Média, na nossa dissertação de mestrado. Ver ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, pp. 91-131. Recentemente, foi publicado o catálogo da coleção de pergaminhos do Hospital de S. Lázaro, conservada no Arquivo da Universidade de Coimbra, no qual cada exemplar foi descrito de forma mais ou menos completa, sendo bastante útil para a identificação e conhecimento dos contratos aqui analisados. QUEIRÓS, Abílio; BANDEIRA, Ana Maria – “Catálogo da Coleção de Pergaminhos do Hospital de São Lázaro de Coimbra (1197-1723)”. Boletim do Arquivo da Universidade de Coimbra 29 (2016), pp. 7-87. 116 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL caraterísticas de algumas delas e a descrição das rendas e foros a que os seus foreiros estavam obrigados permitem-nos apresentar algumas conclusões. Antes de mais, importa esclarecer que as vinhas e os olivais eram predominantes, atingindo, no conjunto, um terço do total dos bens imóveis de S. Lázaro, a que se juntam algumas herdades e terras onde eram plantadas estas culturas (Fig.1). Esta situação está relacionada com a importância que tanto a vinha, como a oliveira tinham na região de Coimbra, registando-se mesmo um período de expansão da primeira ao longo de Trezentos e Quatrocentos16. Não obstante, em muitas das terras de semeadura que compunham os casais e herdades da Gafaria cultivava-se pão, como se depreende da análise das rendas e foros pagos em algumas dessas propriedades, que, uma vez entregues à instituição, iriam engrossar as suas provisões cerealíferas. Com efeito, os contratos indicam, com alguma frequência, que o pagamento da renda era feito com uma parte (ou uma medida exata) dos géneros produzidos na propriedade. Por exemplo, em fevereiro de 1420, ao emprazarem meio casal em Quimbres (fr. São Silvestre, c. Coimbra), ao qual encabeçaram um outro meio casal, o vedor, escrivão e leprosos de S. Lázaro determinaram que os foreiros deviam pagar, entre outros, uma parte “de todo pam (…) que lhes Deus em cada hum ano der nas erdades do dicto meo de casal e das outras de que ja ante tragia”17. Fig. 1 – Património imóvel da Gafaria de Coimbra (1355-1477). 16 Sobre a importância da vinha e do olival na região de Coimbra e a sua evolução ao longo da Baixa Idade Média, ver COELHO, Maria Helena da Cruz – O Baixo Mondego..., Vol. I, pp. 152-181. 17 Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 51, pt. 1, n.º 27. DO CULTIVO AO CONSUMO: O ABASTECIMENTO DE CER EAL NA GAFARIA [...] 117 A produção de cereais nas propriedades da Gafaria de Coimbra sofreu, contudo, algumas flutuações, durante o período em análise. Antes de mais, embora em número muito reduzido, as condições impostas aos foreiros, em alguns contratos, refletem o movimento mais vasto de expansão da vinha e consequente substituição do cereal por aquela cultura, sobretudo ao longo dos séculos XIV e XV. Inversamente, outros contratos refletem o movimento de recuperação da produção cerealífera, no Baixo Mondego e áreas próximas, sobrepondo-se, novamente, à vinha18. Ilustremos com os exemplos que temos ao nosso dispor. Em 1423, o vedor e escrivão da Gafaria alteraram as condições de um contrato, determinando que o seu foreiro passava a estar obrigado a plantar vinha numa herdade, onde até aí era obrigado a semear pão, “porquanto a dicta herdade nom podia seer lançada a pam que con proveyto da dicta cassa nem do dicto lavrador fosse”19. Alguns anos antes, em 1420, e alguns mais tarde, em 1451, pelo contrário, denota-se um ligeiro incentivo ao cultivo de cereal, em terras do campo, perante a possibilidade de os usufrutuários do aforamento deixarem as vinhas aí plantadas morrer, adaptando-se a renda cobrada à cultura produzida20. Para além das terras vocacionadas para a produção de pão, o Hospital de S. Lázaro era ainda proprietário de um pequeno, mas significativo, número de azenhas e moinhos, que desempenhavam um papel fundamental na engrenagem do abastecimento cerealífero urbano. Os engenhos de transformação do cereal em farinha, utilizada na panificação, concentravam-se, maioritariamente, em Alfora, no atual concelho de Cantanhede, onde existia uma ribeira, citada na documentação21, enquanto os restantes se situavam em Condeixa22 e Casconha (fr. Cernache, c. Coimbra), que correspondiam, de resto, a algumas das zonas de maior implantação de imóveis deste tipo23. Aqui era produzida a farinha utilizada no fabrico do pão, que haveria de alimentar a população urbana, entre a qual se contavam os leprosos e seus servidores. Aos foreiros dos moinhos, a Gafaria exigia, por norma, que vivessem nesses assentamentos e que os reparassem e zelassem pelo seu bom funcionamento, mantendo-os “moentes e correntes”24. Porém, de acordo com a Ver COELHO, Maria Helena da Cruz – O Baixo Mondego..., Vol. I, pp. 168-172. Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 51, pt. 1, n.º 28. 20 Coimbra, AUC, Traslado do Livro Gótico (1774), IV, 2.ª E, 8, 3, 4, 6, fls. 199v-201v. 21 Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 52, pt. 2, n.º 38 e 40. 22 Mencione-se, a título de curiosidade, que as mós utilizadas nos moinhos de Condeixa eram levadas da zona de Enxofães, ficando o seu transporte a cargo dos caseiros e cabaneiros desta localidade. Coimbra, AUC, Tombo do Hospital de S. Lázaro (1515), cofre, fl. 9 ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, doc. 3, p. 153. 23 Ver COELHO, Maria Helena da Cruz – O Baixo Mondego... ,Vol. I, pp. 215-216. 24 Por exemplo, em janeiro de 1438, o vedor e escrivão da Gafaria de Coimbra aforaram uma azenha e moinho, com o seu pomar, na ribeira de Alfora, impondo aos novos foreiros a obrigação de repararem as mós, as rodas e a levada do engenho, para que este ficasse, precisamente, “moente e corrente”. Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 52, pt. 2, n.º 40. 18 19 118 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL informação disponibilizada pela documentação, raramente a leprosaria recebia, nos séculos XIV e XV, parte do resultado da produção destes engenhos. Com efeito, apenas o aforamento de um moinho, a construir a expensas dos foreiros, estipulou o pagamento anual da sétima parte “do que o dicto moynho gaanhar”25. Não podemos, contudo, excluir a hipótese de S. Lázaro receber rendas e foros em farinha de outros equipamentos moageiros, dos quais se poderão desconhecer os contratos de alienação do domínio útil26. 2. O armazenamento e destino do cereal. Todo o cereal arrecadado através das rendas e foros era, depois de seco, debulhado e limpo na eira27, levado para os celeiros da Gafaria, maioritariamente implantados na cidade, como iremos ver. O transporte do pão podia ficar a cargo do próprio senhorio ou ser imposto como obrigação aos foreiros, que o deviam assegurar às suas custas e com os seus próprios animais. Não muito diferente de outros grandes proprietários, S. Lázaro exigiu, algumas vezes, a prestação deste serviço, tornando as obrigações dos usufrutuários mais onerosas. Nestas situações, em vez de cobrar o foro de carreto, para poder suportar as despesas inerentes à condução das rendas, a Gafaria de Coimbra estipulava que os enfiteutas ficavam responsáveis por levar os foros, em particular os que eram compostos por géneros, aos locais de armazenamento, nas suas próprias bestas, como se pode ler em alguns contratos do século XV28. Chegado à cidade, o cereal proveniente das rendas e foros era, então, recebido pelo vedor e escrivão, em conjunto29, e depositado num dos vários celeiros que pertenciam à leprosaria e que eram, na definição de François-Olivier Touati, instrumentos e símbolos da exploração rural destas instituições assistenciais, mas também um meio imediato da sua sobrevivência30. Um deles, documentado desde Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 51, pt. 1, n.º 5. A referência a outros moinhos e azenhas, no tombo do Hospital de S. Lázaro, de 1515, que não constam nos contratos agrários trecentistas e quatrocentistas analisados, parece comprovar que muitos documentos enfitêuticos terão desaparecido, existindo a possibilidade de, em alguns deles, ser cobrada uma parte da produção daqueles equipamentos, nos séculos anteriores. Coimbra, AUC, Tombo do Hospital de S. Lázaro (1515), V-3.ª-cofre-39. 27 Alguns contratos especificam que o pagamento do pão ao senhorio apenas seria feito depois de debulhado e limpo na eira. Ver, por exemplo, Coimbra, AUC, Traslado do Livro Gótico (1774), IV, 2.ª E, 8, 3, 4, 6, fls. 212-212v e Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 53, pt. 3, n.º 88. 28 Coimbra, AUC, Traslado do Livro Gótico (1774), IV, 2.ª E, 8, 3, 4, 6, fls. 199-202. Sobre o transporte dos foros até aos celeiros ou outros locais de armazenamento dos senhorios, ver COELHO, Maria Helena da Cruz – O Baixo Mondego..., Vol. I, pp. 356-357 e MARREIROS, Maria Rosa Ferreira – Propriedade fundiária e rendas da coroa... ,Vol. 2, pp. 579-582. 29 Coimbra, AUC, Regimento do Hospital de S. Lázaro, cofre, n.º 34, fl. 1v ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, doc. 5, p. 158. 30 TOUATI, François-Olivier – Maladie et société au Moyen Âge. La lèpre, les lépreux et les léproseries dans la province ecclésiastique de Sens jusqu’au milieu du XIVe siècle. Bruxelas: De Boeck Université, 1998, pp. 25 26 DO CULTIVO AO CONSUMO: O ABASTECIMENTO DE CER EAL NA GAFARIA [...] 119 132931, localizava-se no próprio recinto hospitalar, à semelhança de outras gafarias do reino32, e foi até palco de reunião e de redação de alguns atos escritos33. Com uma escada de acesso, seria um edifício dividido em dois pisos ou localizado num piso superior, podendo ficar por cima da adega ou mesmo de uma outra dependência, desconhecendo-se, porém, as suas dimensões34. Embora se saiba muito pouco sobre a arquitetura destas estruturas de armazenamento na Idade Média35, o celeiro de S. Lázaro de Coimbra seria semelhante aos de outros grandes senhorios, como se depreende da descrição do celeiro da Ordem de Cristo, em Castelo Branco, que, tal como aquele, era sobradado e a ele se acedia por uma escada de pedra de 15 degraus36. Por ordem do rei, esta dependência da Gafaria encontrava-se fechada e a sua segurança era garantida pelos oficiais superiores da instituição, o vedor e o escrivão, que ficavam responsáveis por guardar, cada um deles, uma chave, demonstrando o valor e importância dos géneros aí armazenados37. Note-se, inclusivamente, que esta medida régia consta no regimento de 1329, outorgado por D. Afonso IV na sequência de queixas dos leprosos contra os administradores anteriores, que não 444-445. 31 Coimbra, AUC, Regimento do Hospital de S. Lázaro, cofre, n.º 34 ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, doc. 5, pp. 156-164. 32 Como era o caso das gafarias de Santarém e de Lisboa, em cujos espaços se erguiam celeiros, documentados, pelo menos, ao longo dos séculos XIV e XV. CONDE, Manuel Sílvio Alves – “Subsídios para o Estudo dos Gafos de Santarém (Séculos XIII-XV)”. Estudos Medievais 8 (1987), pp. 140-141 e NÓVOA, Rita Luís Sampaio da – A Casa de São Lázaro de Lisboa: Contributos para uma História das Atitudes face à Doença (Sécs. XIV-XV). Lisboa: FCSH-UNL, 2010. Dissertação de Mestrado, pp. 92-93. 33 Entre estes documentos citemos, a título exemplificativo, a carta de doação do leproso Álvaro Dias, redigida, a 27 de dezembro de 1474, “demtro no esprital de Sam Lazaro da cidade de Coimbra e aa porta da escada do celeiro”. Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 53, pt. 3, n.º 86. 34 A escada do celeiro surge mencionada em alguns contratos enfitêuticos, além do documento citado na nota anterior, como local adequado à reunião do cabido dos lázaros. Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 53, pt. 3, n.º 68 e Coimbra, AUC, Traslado do Livro Gótico (1774), IV, 2.ª E, 8, 3, 4, 6, fls. 201v-202. 35 Manuel Sílvio Conde salienta, precisamente, esta ideia, acrescentando que os celeiros medievais eram muito semelhantes aos edifícios correntes rurais, distinguindo-se deles apenas pela existência de frestas de arejamento. O autor concluiu ainda, a partir dos exemplos ao seu dispor, que estas estruturas de armazenamento eram, por norma, térreas. CONDE, Manuel Sílvio Alves – Uma paisagem humanizada. O Médio Tejo nos finais da Idade Média. Vol. 1. Cascais: Patrimonia, 2000, pp. 318-320. 36 GONÇALVES, Iria – “A construção corrente na Beira Interior nos finais da Idade Média”. In AMORIM, Norberta; PINHO, Isabel; PASSOS, Carla (coord.) – III Congresso Histórico de Guimarães. D. Manuel e a sua Época. Vol. III. População, Sociedade e Economia. Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães, 2004, p. 113. 37 Coimbra, AUC, Regimento do Hospital de S. Lázaro, cofre, n.º 34, fl. 1v ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, doc. 5, p. 158. O celeiro da Gafaria de Santarém também se encontrava protegido com fechadura, pelo menos desde 1483, competindo ao chaveiro guardar uma das chaves e ao escrivão guardar a outra. CONDE, Manuel Sílvio Alves – “Subsídios para o Estudo dos Gafos…”, p. 130 e doc. 2, p. 161. A preocupação com a segurança dos géneros armazenados não se limitava aos cereais e aos celeiros. Com efeito, na própria Gafaria de Coimbra, assim como na escalabitana, a adega, à semelhança do celeiro, tinha duas chaves, que eram, igualmente, guardadas pelo escrivão e vedor (ou chaveiro, no caso de Santarém). Fora do contexto assistencial, em Coimbra, no século XIV, existia uma casa, onde se conservava o vinho vendido nos açougues do rei, que tinha duas chaves, uma entregue a um homem nomeado pelos porteiros e a outra a um dos almocreves que aí tivesse o vinho. CORTES Portuguesas: Reinado de D. Afonso IV (1325-1357). Ed. A. H. de Oliveira Marques, Maria Teresa Campos Rodrigues e Nuno José Pizarro Pinto Dias. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1982, p. 60. Esta referência foi partilhada pela colega Maria Amélia Álvaro de Campos, a quem agradecemos. 120 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL os manteriam de acordo com o que o património do hospital permitia, sonegando mesmo escrituras. Esta terá sido uma forma de evitar apropriação indevida de cereal, um género indispensável ao sustento da instituição e, consequentemente, dos seus hóspedes. Mas o Hospital de S. Lázaro era ainda proprietário de outros celeiros e estruturas de armazenamento de grão, em número incerto, espalhados pelo termo e espaço urbano de Coimbra. Segundo uma carta régia de 1371, sabemos que alguns deles se encontravam mesmo instalados em casas “dentro na cerca dessa cidade”, beneficiando da proteção conferida pela muralha, enquanto outros estavam situados “em outros logares da dicta gafaria que som em thermo dessa cidade”38. Estes, talvez de arquitetura muito simples e dimensões reduzidas, estariam muito mais próximos das terras de produção de cereal e neles seriam armazenados, num primeiro momento, os géneros colhidos na área circundante e que se destinavam ao pagamento de rendas ao senhorio39. Uma grande parte do cereal produzido nas propriedades da Gafaria destinavase ao sustento de todos aqueles que dela estavam dependentes, como definido no regimento de 1329 (Tab.1)40. Em primeiro lugar, os leprosos, razão de ser da instituição, recebiam uma generosa quantidade anual de trigo e cereal de segunda como ração, atingindo um total de 160 alqueires de grãos panificáveis por ano, por pessoa41. A este sustento básico somavam-se algumas pitanças, que podiam, por vezes, incluir pão, como a que era distribuída por ocasião da vindima da vinha que se encontrava junto da casa. Aos merceeiros sãos42, por sua vez, era atribuída uma quantidade anual de cereal idêntica, mas composta, maioritariamente, por cereal de segunda, demonstrando que não eram tão privilegiados como os gafos43. Além Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 51, pt. 1, n.º 7 ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, doc. 9, p. 170. 39 Ver, como exemplo, a distribuição espacial dos celeiros do rei, na região de Guimarães, em MARREIROS, Maria Rosa Ferreira – Propriedade fundiária e rendas da coroa..., Vol. 1, pp. 420-421. 40 A alimentação dos leprosos foi por nós analisada num artigo anterior, onde, entre outros, prestámos atenção ao pão consumido na Gafaria de Coimbra. Ver ROCHA, Ana Rita – “A dieta dos leprosos numa gafaria medieval: o caso de Coimbra”. Revista de História da Sociedade e da Cultura 16 (2016), pp. 55-73. Por esse motivo, não desenvolveremos aqui demasiado esta questão, descrevendo apenas as quantidades globais de trigo e cereal de segunda atribuídos a cada hóspede e funcionário da instituição, no sentido de compreendermos uma das principais funções dos grãos produzidos nas terras da Gafaria. 41 Na conversão de moios e quarteiros para alqueires, recorremos ao moio de 64 alqueires, comum em Coimbra, embora este não seja um valor estanque. Sobre estas questões, ver, por todos, VIANA, Mário – Estudos de história metrológica. Medidas de capacidade portuguesas. Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 2015. 42 Desde, pelo menos, as primeiras décadas do século XIV, o Hospital de S. Lázaro assistia indivíduos sãos, por comparação com os leprosos, que, pela idade avançada ou por uma qualquer doença debilitadora, não tinham condições para trabalhar e necessitavam de auxílio económico. Ver ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, pp. 65-67. 43 Na Idade Média, a cor do pão, resultante do tipo de cereal utilizado na sua confeção, definia uma hierarquia social. O pão alvo, de trigo, era consumido sobretudo pelos estratos mais elevados da sociedade, enquanto o escuro, de mistura, marcava presença à mesa dos camponeses. Ver COELHO, Maria Helena da 38 DO CULTIVO AO CONSUMO: O ABASTECIMENTO DE CER EAL NA GAFARIA [...] 121 disso, a sua ausência na missa dominical, celebrada na igreja da Gafaria, era punida com a perda de um alqueire do trigo a que tinham direito. Por último, o vedor e o escrivão eram compensados, pelo desempenho dos seus ofícios, com 2 moios anuais de trigo e a mesma porção de cevada44. As quantidades atribuídas a cada um dos assistidos e oficiais do hospital atestam a sua capacidade de autossuficiência, mas também a importância que os grãos panificáveis tinham na sua economia, sendo, provavelmente, um dos seus principais motores. Trigo Cereal de segunda Leprosos Merceeiros sãos Vedor e escrivão 2 moios 1 moio 2 moios 2 quarteiros + [2 quarteiros]* 6 quarteiros 2 moios * Distribuídos apenas quando o trigo esgotava no celeiro Tab. 1 – Rações individuais de cereal distribuídas na Gafaria de Coimbra (regimento de 1329). Em todos estes casos, contudo, previam-se situações de escassez de pão no celeiro, sobretudo trigo, estipulando-se, na própria ordenação e no seu aditamento, datado de 1346, a sua substituição por outros grãos ou mesmo por dinheiro. Nestas situações, especificamente “des que sair o trigo do celeiro”, os leprosos recebiam o dobro da quantidade de cereal de segunda, quando este era suficiente. Caso contrário, o vedor devia comprá-lo45. Já no referido aditamento pode ler-se que o rei mandou que se “temperassem” as rações dos sãos “quando hy ouver pouco pam e pouco vinho”, definindo que “quando o pam fosse pouco”, os merceeiros não deviam receber trigo, nem segunda dobrada, mas antes 13 alqueires deste último cereal46. Mais tarde, em 1367, ao fazer mercê de uma ração a 12 gafos, o rei D. Fernando aproveitou para reduzir definitivamente as quantidades de cereal atribuídas a lázaros Cruz – “Apontamentos sobre a comida e a bebida…”, p. 10 e GRIECO, Allen – “Food and social classes in late medieval and renaissance Italy”. In FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (eds.) – Food: A Culinary History from Antiquity to the Present. New York: Columbia University Press, 1999, p. 303. 44 Coimbra, AUC, Regimento do Hospital de S. Lázaro, cofre, n.º 34, fls. 1-2v ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, doc. 5, pp. 157-161. 45 Coimbra, AUC, Regimento do Hospital de S. Lázaro, cofre, n.º 34, fl. 1 ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, doc. 5, p. 157. 46 Coimbra, AUC, Regimento do Hospital de S. Lázaro, cofre, n.º 34, fl. 2v ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, doc. 5, p. 161. 122 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL e sãos, tornando-as bem mais moderadas47. Até esta data, os lázaros recebiam dois moios deste cereal, por ano, ou seja, 128 alqueires, que foram substituídos por 48 alqueires anuais, distribuídos pelos doentes em entregas mensais. Já os merceeiros, além de verem a sua ração de trigo ser reduzida, perderam o direito de receber cereal de segunda. Fruto de uma conjuntura muito particular, a que voltaremos com mais atenção, esta alteração tornou-se definitiva, como nos comprova o regimento de 1502, outorgado por D. Manuel, no qual as rações a distribuir pelos gafos eram compostas pelo mesmo volume de grãos panificáveis que as concedidas pelo rei Formoso48. A documentação, embora um pouco lacónica, dá-nos ainda conta de outros destinos para as grandes quantidades de pão que chegavam aos celeiros do Hospital de S. Lázaro, para além do sustento alimentar dos seus hóspedes e oficiais. Em primeiro lugar, uma parte desse cereal era utilizada no pagamento de serviços prestados por outras instituições à leprosaria. Contam-se entre estes a administração dos sacramentos aos leprosos e às restantes pessoas ligadas à instituição e ainda a celebração de algumas festas litúrgicas, na sua capela, da responsabilidade dos clérigos da igreja de Santa Justa, sede da paróquia onde a Gafaria estava implantada. Por estes serviços a Gafaria tinha, naturalmente, de pagar o dízimo, um dos mais importantes tributos eclesiásticos, e as primícias, frequentemente associadas àquele49. Neste sentido, S. Lázaro era obrigado a entregar, anualmente, à igreja paroquial, segundo uma sentença de 1385, o dízimo do pão, vinho e azeite, e, de acordo com uma outra sentença, de 1442, 20 alqueires de trigo e 20 alqueires de milho50. Ao longo deste último documento são frequentes as referências ao celeiro do pão do hospital, de onde eram retirados os cereais para o referido pagamento. Em segundo lugar, algum do cereal arrecadado seria comercializado numa venda que se realizava anualmente na própria Gafaria. Efetivamente, embora as informações disponíveis sejam muito escassas, a referência às “vendas dos moyos que se em cada hum anno vendem desse esprital”, numa carta de D. Afonso V, de Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 52, pt. 2, n.º 33 ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, doc. 8, pp. 167-168. 48 Coimbra, AUC, Regimento do Hospital de S. Lázaro, cofre, n.º 34, fl. 9 ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, doc. 44, p. 249. Sobre estas questões, ver ROCHA, Ana Rita – “A dieta dos leprosos numa gafaria medieval…”, pp. 61-62, onde concluímos que os valores de cereal entregues a cada leproso, em Coimbra, eram iguais aos da Casa de S. Lázaro de Lisboa. 49 Ver TORRES, Ruy d’Abreu – “Dízimos Eclesiásticos”. In SERRÃO, Joel (dir.) – Dicionário de História de Portugal. Vol. II. Porto: Livraria Figueirinhas, 1985, pp. 328-329; TORRES, Ruy d’Abreu – “Primícias”. In SERRÃO, Joel (dir.) – Dicionário de História de Portugal. Vol. V. Porto: Livraria Figueirinhas, 1985, p. 184 e COELHO, Maria Helena da Cruz – “Património Eclesiástico”. In AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.) – Dicionário de História Religiosa de Portugal. Vol. J-P. Rio de Mouro: Círculo de Leitores, 2001, pp. 401-402. 50 Lisboa, ANTT, Colegiada de Santa Justa de Coimbra, mç. 15, n.º 321 e Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 52, pt. 2, n.º 45 ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, doc. 29, pp. 208-214. Sobre esta questão, ver ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, p. 79 e CAMPOS, Maria Amélia Álvaro de – Cidade e Religião: a colegiada de Santa Justa de Coimbra na Idade Média. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2017, p. 130. 47 DO CULTIVO AO CONSUMO: O ABASTECIMENTO DE CER EAL NA GAFARIA [...] 123 145451, aponta nesse sentido, além de nos levar a deduzir que a produção cerealífera da instituição seria excedentária. Esta seria uma forma de o hospital obter um rendimento extra e gerir a sua capacidade de armazenamento, libertando espaço para novas colheitas52. O regular abastecimento de cereal estava a cargo de alguns dos oficiais e funcionários da Gafaria, dependendo do eficiente exercício das suas funções. Ao vedor e escrivão, além de estarem responsáveis pela proteção do celeiro, cabia receber e dividir, entre outros, o pão resultante do pagamento das rendas. Era ainda obrigação do vedor distribuir as rações pelos leprosos e merceeiros53. Mas era ao medidor que cumpriam as principais tarefas relacionadas com o aprovisionamento de cereal. Este funcionário, documentado entre 1409 e 146154, estava, segundo o compromisso outorgado por D. Afonso V em 1452, encarregado de medir o pão nas eiras e, mais tarde, no celeiro do hospital, aquando da distribuição das rações, assim como padejar o grão, para o libertar da moinha e outras partículas que comprometessem a sua qualidade. Competia-lhe, ainda, manter os celeiros limpos, varrendo-os e comprando, às suas custas, as vassouras destinadas a essa função55. O cargo de medidor não seria de somenos importância, sendo, aliás, fundamental e de grande responsabilidade, pois dele dependia a justa distribuição do cereal, sem que aqueles que o recebiam, quer na forma de ração, quer na forma de pagamento de serviços, ou mesmo através da compra, fossem prejudicados56. Talvez por isso, o ofício de medidor era, à semelhança dos ofícios de vedor e escrivão, de nomeação régia, o que resultava na sua ocupação por servidores da família real, como Fernando Afonso, criado da rainha D. Leonor, indicado em 1450, por D. Afonso V57. Mas este 51 Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 53, pt. 3, n.º 67 ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, doc. 36, p. 232. 52 Na Gafaria de Santarém, no século XV, procedia-se de forma semelhante relativamente às reservas de vinho. Sempre que, no final de cada ano, sobrasse vinho na adega, o provedor devia colocá-lo à venda e pôr o dinheiro daí resultante em “boa Recadeçam”, para se despender no tratamento das vinhas e no que fosse necessário à casa. CONDE, Manuel Sílvio Alves – “Subsídios para o Estudo dos Gafos…”, doc. 2, p. 161. 53 As funções do vedor e escrivão da Gafaria, relacionadas com o abastecimento cerealífero, encontramse descritas no regimento de 1329. Coimbra, AUC, Regimento do Hospital de S. Lázaro, cofre, n.º 34, fls. 1-1v ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, doc. 5, pp. 157-158. Na Casa de S. Lázaro de Santarém, a que temos recorrido como modelo de comparação, todas estas tarefas estavam reunidas no chaveiro, que era o principal responsável pela gestão económica do hospital. Ver CONDE, Manuel Sílvio Alves – “Subsídios para o Estudo dos Gafos…”, p. 130. 54 Ver ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, p. 62. 55 Coimbra, AUC, Regimento do Hospital de S. Lázaro, cofre, n.º 34, fl. 4 ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, doc. 34, p. 228. 56 Sobre a importância do medidor, enquanto oficial concelhio, e da correta aferição dos pesos e medidas dos produtos transacionados na cidade medieval, ver GONÇALVES, Iria – “Defesa do consumidor na cidade medieval: os produtos alimentares (Lisboa-séculos XIV-XV)”. Arquipélago. História 1 (1995), pp. 40-43. 57 Ver ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, pp. 62-63. Neste aspeto, é importante realçar que, para a cidade do Porto, Arnaldo Sousa Melo concluiu que a tarefa de medir o pão na feira era quase exclusivamente de responsabilidade feminina, recebendo o cargo correspondente o nome de “medideira do pão”. O autor salientou ainda que encontrou apenas um único caso em que esta função era exercida por um homem. Mais recentemente, a dissertação de mestrado de Rodolfo Feio, sobre a cidade e o trabalho em Évora, 124 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL aspeto estaria, acima de tudo, relacionado com a crescente intervenção do poder régio nas instituições de assistência, que se fez notar de forma particular na Gafaria de Coimbra58. 3. A intervenção régia no abastecimento cerealífero da Gafaria de Coimbra. Fatores de natureza diversa punham, por vezes, em causa as capacidades de aprovisionamento cerealífero do Hospital de S. Lázaro. Nestas circunstâncias, os monarcas viam-se obrigados a intervir, de modo a regularizar a situação e a defender os interesses da instituição sobre a qual exerciam o seu poder, mas também, e talvez sobretudo, a proteger os seus próprios interesses. Embora a documentação não seja muito numerosa, a ingerência de D. Fernando nesta matéria, que tomamos como exemplo, foi particularmente relevante, relacionando-se com os anos de escassa produção agrícola que afetaram o país durante o seu reinado e mesmo com a guerra que o opôs ao monarca castelhano e que deixou um rasto de destruição nos campos por onde passou59. Antes de mais, D. Fernando procedeu a uma reformulação das rações entregues a lázaros e raçoeiros sãos, reduzindo as quantidades de cereal, especialmente de trigo, e de vinho a que tinham direito. Em 1367, como já vimos anteriormente, esta na Idade Média, confirma esta aceção, sendo numerosas as referências às medideiras do pão, enquanto as menções ao medidor apontam para a sua ligação à aferição de pesos e medidas de outros géneros alimentares, como o vinho, ou objetos, como os tecidos. MELO, Arnaldo Sousa – Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média: o Porto, c. 1320-c. 1415. Vol. 1. Braga: Universidade do Minho; Paris: École des Hautes Études en Sciences Sociales, 2009. Tese de Doutoramento, pp. 271 e p. 346 e FEIO, Rodolfo – Por prol e bom regimento: a cidade e o trabalho nas Posturas Antigas de Évora. Coimbra: FLUC, 2017. Dissertação de Mestrado. 58 Acerca da cada vez maior ingerência do poder régio nas instituições caritativas, em particular nas conimbricenses, que conduziu à reforma assistencial, nos finais da Idade Média, ver ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, pp. 80-89 e ROCHA, Ana Rita – A Assistência em Coimbra na Idade Média…, pp. 473-482, onde citamos bibliografia específica sobre o tema. 59 Como é do conhecimento geral, o reinado fernandino ficou marcado por alguns anos de más colheitas, registando-se uma reduzida produção cerealífera, e ainda pela guerra contra Castela, nos períodos de 1369-1371, 1372-1373 e 1381-1382. Todos estes problemas têm sido associados à conjuntura de crise geral que se vivia no século XIV. No entanto, estudos mais recentes têm questionado o conceito de “crise”, de “crises agrárias”, de “carestias” e “fomes”. Destaca-se, entre nós, o artigo que Luís Miguel Duarte dedicou a este tema, no qual procurou demonstrar que nem sempre estamos perante uma crise agrícola, mas antes dificuldades pontuais que colocavam em risco o abastecimento alimentar das cidades. Ver MARQUES, A. H. de Oliveira – Introdução à história da agricultura…, pp. 258-260; MARQUES, A. H. de Oliveira – “Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV”. In SERRÃO, Joel; MARQUES, A. H. de Oliveira (dir.) – Nova História de Portugal. Vol. IV. Lisboa: Presença, 1987, pp. 509-523; COELHO, Maria Helena da Cruz – O Baixo Mondego..., Vol. I, pp. 30-31; MENANT, François – “Crisis de subsistencia y crisis agrarias en la Edad Media: algunas reflexiones previas”. In OLIVA HERRER, Hipólito Rafael; BENITO I MONCLÚS, Pere (ed.) – Crisis de subsistencia y crisis agrarias en la Edad Media. Sevilha: Universidad de Sevilla, 2007, pp. 17-60 e DUARTE, Luís Miguel – “‘Tomar o pão dos coitados’: Para Repensar a Crise do Século XIV em Portugal”. In GARRIDO, Álvaro; COSTA, Leonor Freire; DUARTE Luís Miguel – Estudos em homenagem a Joaquim Romero Magalhães: Economia, Instituições e Império. Coimbra: Edições Almedina, 2012, pp. 241-261. Muito recentemente, Alexis Wilkin também abordou a questão do conceito de crise, procurando compreender se este é ou não útil à História Medieval. WILKIN, Alexis – “Le concept de crise est-il utile pour l’histoire médiévale? Remarques conclusives”. Mélanges de l’École française de Rome – Moyen Âge 131-1 (2019), pp. 79-85. DO CULTIVO AO CONSUMO: O ABASTECIMENTO DE CER EAL NA GAFARIA [...] 125 alteração era já uma realidade, registando-se uma redução superior a 50%, no caso da porção de trigo atribuída aos leprosos, e o desaparecimento da ração de cereal de segunda distribuída pelos merceeiros, que passaram a consumir apenas trigo60. Três cartas posteriores, outorgadas pelo mesmo monarca e datadas de 1371, 1375 e 1376, parecem esclarecer-nos acerca das razões desta mudança61. Em todas elas transparece a ideia de escassez provocada por maus anos agrícolas e de baixos rendimentos da instituição, que a impossibilitavam de distribuir as porções fixadas pela ordenação fernandina de 1367. No segundo documento pode mesmo ler-se que a Gafaria não conseguia suportar as novas rações de cereal, agora iguais para todos, devido às “menguas das rendas pellos annos casos que foram”62, numa clara alusão a um período de baixa produção cerealífera, que a impedia de prover ao sustento dos seus assistidos e de conceder novas rações a outros lázaros que por elas aguardavam. Acrescem ainda às causas desta medida as guerras fernandinas, que, não só destruíam edifícios e culturas, como absorviam imensos recursos. Emanados da chancelaria fernandina em anos em que se registaram quebras de produção, devido, por um lado, às guerras com Castela e, por outro, a fenómenos naturais diversos, estes diplomas poderão inserir-se nos esforços reguladores da Coroa, que, todavia, nada resolveram, como salienta Luís Miguel Duarte63. Ocorrido na mesma altura, um outro episódio é também bastante ilustrativo dos tempos conturbados que se viviam. A 27 de março de 1371, D. Fernando deu conta da queixa apresentada pelo vedor e escrivão da Gafaria contra os juízes e almotacés do concelho de Coimbra, pela qual os acusavam de terem roubado, dos celeiros da instituição, o cereal destinado ao mantimento dos gafos e raçoeiros sãos. Inclusivamente, é salientado que aqueles oficiais concelhios mandaram “britar e abrir as portas da dicta gaffaria dos celeiros em que teem o dicto pam”64. Daqui resultaram grandes perdas e danos para a instituição, que a impediam de cumprir a entrega de rações de cereal aos lázaros e outros raçoeiros. O rei, procurando defender os 60 Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 52, pt. 2, n.º 33 ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, doc. 8, pp. 167-169. 61 Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 51, pt. 1, n.º 14 ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, doc. 14, pp. 180-184. O segundo documento encontra-se trasladado numa carta de D. Fernando, de 1380, trasladada, por sua vez, juntamente com os outros dois diplomas, num instrumento notarial, datado de 12 de janeiro de 1383, com o objetivo de se regularizarem e cumprirem as rações do vinho. 62 Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 51, pt. 1, n.º 14 ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, doc. 14, p. 182. Nesta carta de D. Fernando é indicado que os sãos recebiam, segundo a sua ordenação, uma ração igual à dos leprosos, composta por 4 alqueires de trigo e 2 alqueires de cereal de segunda, por mês. Todavia, como vimos acima, de acordo com o diploma de 1367, os merceeiros não tinham direito a cereal de segunda ou, à falta de indicação clara, receberiam a mesma quantidade definida em 1329 (6 quarteiros por ano, ou seja, 8 alqueires mensais). Não sendo possível esclarecer esta questão, o que importa aqui é frisar a diminuição das rações numa conjuntura muito específica. 63 DUARTE, Luís Miguel – ““Tomar o pão dos coitados”…”, p. 249. Ver também MARQUES, A. H. de Oliveira – Introdução à história da agricultura…, pp. 258-260. 64 Coimbra, AUC, IV, 3.ª, Gav. 51, pt. 1, n.º 7 ou ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, doc. 9, pp. 170-171. 126 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL interesses de S. Lázaro, proibiu os juízes e almotacés de tomarem o grão dos seus celeiros e obrigou-os a devolver todo aquele que já tinham roubado. A interpretação deste documento poderá ser um pouco mais complexa do que, à primeira vista, aparenta, levando-nos a ponderar algumas hipóteses e a estabelecer comparações. Em primeiro lugar, devemos procurar compreender o que levou os oficiais do concelho a roubar uma instituição de assistência. Mais uma vez, como é natural, estamos perante uma situação de escassez de pão na cidade, que poderá ter esvaziado os celeiros do concelho, obrigando os seus oficiais a procurar alternativas de abastecimento, neste caso, ilícitas. No entanto, o roubo protagonizado por autoridades municipais lembra-nos, em certa medida, o comportamento de prelados, mestres e ricos-homens, denunciado pelo povo, nas cortes de Lisboa de 1371. Aqueles consumiam, de forma abusiva, o pão e vinho dos outros e guardavam os seus próprios géneros, com o intuito de os venderem apenas em épocas de carestia, naturalmente por um preço mais elevado65. Seria esta a intenção do concelho de Coimbra? Do mesmo modo, a reação de D. Fernando poderá não se resumir apenas a uma comum atitude de intervenção em S. Lázaro. O rei poderia ter interesse em proteger o cereal da Gafaria para, mais tarde, o poder comprar por um preço quase simbólico, para fazer face à falta de pão na sua frota de guerra, tomando “o pam dos coitados”66. Não passando de meras hipóteses e não nos sendo possível clarificar e justificar as ações dos oficiais concelhios e do monarca, fica, no entanto, o convite à reflexão. A ausência de dados mais concretos exige-nos alguma cautela, parecendo-nos talvez mais lógico que este documento se inscreva nas tentativas protagonizadas pelo concelho de Coimbra para exercer o seu domínio sobre a leprosaria, disputando-o com o rei, aqui num claro contexto de carestia. No entanto, tal como noutras circunstâncias, o poder régio conseguiu sempre impor-se e intervir nos assuntos de maior importância da administração do hospital, nomeadamente no que ao seu aprovisionamento alimentar diz respeito67. Conclusão. Mesmo as dificuldades impostas por maus anos agrícolas ou por guerras, que contribuíam para a diminuição acentuada da produção cerealífera, não impediram a Gafaria de Coimbra de manter uma certa estabilidade no seu abastecimento de pão. Detentora de numerosas terras onde se cultivavam os grãos panificáveis, aos 65 CORTES Portuguesas: Reinado de D. Fernando I (1367-1383). Ed. A. H. de Oliveira Marques e Nuno José Pizarro Pinto Dias. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1990, pp. 48-49. 66 DUARTE, Luís Miguel – “‘Tomar o pão dos coitados…’, pp. 257-258. 67 Sobre as relações de domínio em torno da administração da Gafaria de Coimbra e a predominância do poder régio sobre a mesma, ver ROCHA, Ana Rita – A Institucionalização dos Leprosos…, pp. 80-89. DO CULTIVO AO CONSUMO: O ABASTECIMENTO DE CER EAL NA GAFARIA [...] 127 seus celeiros chegavam consideráveis quantidades de trigo e de cereal de segunda, que serviam o propósito de alimentar aqueles que, de uma forma ou de outra, dela estavam dependentes e contribuir para a sua subsistência económica, ao integrarem os circuitos comerciais da cidade ou ao garantirem, enquanto forma de pagamento, o cumprimento das suas funções assistenciais. Recorrendo a uma ideia de Françoise Bériac, a existência de celeiros e, naturalmente, de reservas de trigo e outros grãos, provenientes das propriedades da própria instituição, espalhadas por toda a região de Coimbra, “evoca a perspetiva tranquilizadora de uma casa onde os doentes não morriam de fome”68. 68 BÉRIAC, Françoise – Histoire des Lépreux au Moyen Âge: une société d’exclus. Paris: Éditions Imago, 1988, p. 256. Tradução nossa e ligeira adaptação do original. 128 O abastecimento alimentar da cidade em finais do século XIV: contributos do Livro das Posturas Antigas de Évora1 Rodolfo Petronilho Feio2 Resumo O presente artigo aborda a temática do abastecimento alimentar da cidade, em finais do século XIV, enfatizando os elementos que podemos encontrar no Livro das Posturas Antigas de Évora. Iniciamos com um breve enquadramento, caracterizador do Livro das Posturas Antigas, pondo em destaque a sua singularidade em contexto nacional e a sua extraordinária riqueza documental. Adotamos, em seguida, no capítulo do abastecimento alimentar, correspondente ao cerne do artigo, uma divisão temática pelos principais produtos alimentares: o pão; a carne e o peixe; a fruta e os legumes; o vinho e o azeite e a água. Em termos gerais, a preocupação de localizar, no tecido urbano, os palcos privilegiados do aprovisionamento alimentar e nomear os agentes intervenientes neste processo não deixaram de estar presentes. Ainda assim, pelas características da fonte que utilizámos, a tónica recai, maioritariamente, em temas relacionados com a regulamentação do setor, através das normas impostas pelas autoridades camarárias que têm, naturalmente, nas questões relativas ao abastecimento alimentar uma das suas principais preocupações. Palavras-chave Abastecimento alimentar; Évora; posturas municipais. 1 Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto MedCrafts – “Regulamentação dos mesteres em Portugal nos finais da Idade Média: séculos XIV e XV”, Ref.ª PTDC/HAR-HIS/31427/2017. 2 CHSC-UC. 130 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL The city’s food supply at the end of the 14th century: contributions of the Livro das Posturas Antigas de Évora Abstract This article addresses the theme of the city’s food supply in the late 14th century, emphasizing the elements that can be found in the Livro das Posturas Antigas de Évora. We begin with a brief framework, characterizing the Livro das Posturas Antigas, highlighting its uniqueness in the national context and its extraordinary documentary richness. We then adopt, in the chapter on food supply, which corresponds to the core of the article, a thematic division into the main food products: bread, meat and fish; fruit and vegetables; the wine and the oil and the water. In general terms, the concern to locate, in the urban fabric, the privileged stages of food supply and to appoint the actors involved in this process were not present. Nevertheless, due to the characteristics of the source we have used, the focus is mainly on issues related to the regulation of the sector, through the rules imposed by the municipal authorities that naturally have food supply issues as one of their main concerns. Keywords Food supply; Évora; municipal ordinances. Introdução. O presente artigo retoma, essencialmente, o conteúdo da comunicação, com o mesmo título, que apresentámos nas IV Jornadas Internacionais de Idade Média, dedicadas ao tema Abastecer a Cidade na Europa Medieval3. Subordinado à temática em apreço, põe em relevo alguns dos principais contributos do Livro das Posturas Antigas de Évora4 para o estudo do abastecimento alimentar daquela cidade, em finais do século 3 As referidas jornadas contaram com uma organização conjunta da Câmara Municipal de Castelo de Vide e do Instituto de Estudos Medievais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tendo-se realizado em Castelo de Vide, entre os dias 10 e 12 de outubro de 2019. 4 O Livro das Posturas Antigas de Évora constitui, a par com o de Lisboa, um dos dois únicos livros de posturas, datados do período medieval, conservados em Portugal. A par disto, e não obstante a sua compilação apenas ser realizada em 1466, algumas das posturas ali trasladadas datam de 1375, e das décadas seguintes, O ABASTECIMENTO ALIMENTAR DA CIDADE EM FINAIS DO SÉCULO XIV 131 XIV, retomando parte de uma temática que abordámos já na nossa dissertação de mestrado5. A tónica está colocada no papel e na atuação dos agentes diariamente responsáveis pela efetivação do abastecimento alimentar da cidade, a que correspondiam rostos concretos, hoje impossíveis de identificar, mas também práticas baseadas em costumes enraizados, que a legislação municipal permite conhecer. A preocupação de localizar os palcos privilegiados do aprovisionamento alimentar não deixa de estar presente, embora, devido às características da fonte que utilizámos, o destaque recaia, maioritariamente, nas medidas adotadas pelas autoridades municipais para a regulamentação do setor, através das normas impostas, traduzidas nas posturas aprovadas, que têm, naturalmente, nas questões relativas ao abastecimento alimentar uma das suas principais preocupações. O vasto conjunto de medidas adotadas no sentido de proteger a produção agrícola e pecuária destinada ao abastecimento alimentar da cidade, bem como com as que, genericamente, se destinam à regulamentação do mercado, sobretudo, tendo em conta os locais, os horários e as condições de venda e que, evidentemente, correspondem também, na outra face da mesma moeda, às condições de acesso do consumidor, são alvo de uma análise mais aprofundada. Deixámos, consequentemente, de fora, questões relacionadas com o afilamento de pesos e medidas, com o tabelamento de preços e salários ou com a cobrança da sisa que, contudo, não deixam de, abundantemente, estar presentes ao longo da fonte que compulsámos e que, de resto, explorámos no âmbito da nossa dissertação6. 1. A fonte: o Livro das Posturas Antigas de Évora. O Livro das Posturas Antigas de Évora, composto por um conjunto de 254 posturas e dois documentos régios, foi elaborado em 1466, por Fernão Lopes de Carvalho, constituindo algumas das posturas municipais mais antigas que se conhecem em Portugal. Formam um longo corpo legislativo, dedicado a diversos temas, principalmente de cariz socioeconómico, da vida na cidade de Évora, na transição do século XIV para o XV, cobrindo um período fundamental na compreensão da história do Portugal medievo, como a crise de 1383-1385. As referidas posturas têm sido utilizadas por diversos historiadores, no âmbito dos mais variados tipos de estudo, destacando-se, pela vasta utilização desta fonte, autores como A. H. de Oliveira Marques, Maria Ângela Beirante, Maria Helena da Cruz Coelho, Arnaldo de Sousa Melo, Joaquim Bastos Serra ou Sérgio Carlos Ferreira, para além, entre muitos outros, de nós mesmos. A título de exemplo, será ainda pertinente referir que, no contexto nacional, não obstante a não existência de outros livros de posturas medievos, se conservam, no âmbito dos livros de atas de vereação, posturas relativas aos concelhos do Alcochete e Aldeia Galega, Coimbra, Funchal, Loulé, Montemor-o-Novo, Porto, Vila do Conde, entre algumas outras existências pontuais. 5 Cf. FEIO, Rodolfo Petronilho – Por prol e bom regimento: a cidade e o trabalho nas Posturas Antigas de Évora. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2017. Dissertação de Mestrado, pp. 124-136. 6 Cf. FEIO, Rodolfo Petronilho – Por prol e bom regimento…, especialmente, pp. 136-166. 132 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL cavaleiro cidadão e escrivão do concelho de Évora7. A 16 de dezembro de 1662, atendendo ao seu estado de conservação, foi reencadernado pelo escrivão Francisco Cabral8. O traslado original contém diversas gralhas e erros que, por vezes, dificultam a compreensão do conteúdo de algumas posturas. A forma como o escrivão realizou o traslado compromete também a datação da maioria daquelas que o integram, uma vez que esta está, em alguns casos, indevidamente transcrita, tanto por falta de alguns elementos cronológicos, como por lapsos do escrivão9. Nesse sentido, no âmbito da nossa dissertação de mestrado, procurámos datar criticamente cada uma das posturas, trabalho que, ainda assim, não se revelou frutuoso. Sabíamos que a sua maioria fora produzida entre finais do século XIV e princípios do século XV; mais concretamente, de acordo com as datas expressas, entre 1375 e 1395. Não obstante, importa reter que foi possível datar criticamente posturas do ano camarário de 14061407, podendo balizar-se outras ad quem até 141410. Cremos que seja também útil fazer uma breve incursão no conteúdo das posturas. Para esse efeito, partimos dos núcleos temáticos Mesteirais e Ofícios; Agricultura e Pecuária; Comércio; Caça, Pesca e Silvicultura; Urbanidade; Pesos e Medidas; Justiça e Oficiais; Sociedade e Vária. Posto isto, verificámos que as posturas se distribuíam, pelos núcleos temáticos, da forma como o quadro e o gráfico apresentados demonstram: 7 LIVRO das Posturas Antigas de Évora. Apr. Maria Filomena Lopes de Barros e Maria Leonor F. O. Silva Santos. Transc. Ana Sesifredo, Fátima Farrica e Miguel Meira. In Posturas Municipais Portuguesas: séculos XIV-XVIII. Ed. Maria Filomena Lopes de Barros e Mário Viana. Ponta Delgada: Centro de Estudos Gaspar Frutuoso/Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades, 2012, pp. 110. Quando, sem qualquer outra indicação, aludirmos ao Livro das Posturas Antigas de Évora referimo-nos sempre à sua transcrição publicada nesta obra, pp. 21-110. 8 LIVRO das Posturas Antigas…, pp. 29. Importante será acrescentar que o presente Livro das Posturas foi alvo de duas transcrições. A primeira, parcial, da autoria de Gabriel Pereira, publicada no século XIX, no âmbito da coletânea DOCUMENTOS Históricos da Cidade de Évora (Ed. de Gabriel Pereira. Ed. fac-similada. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988, pp. 127-154) e a segunda, da autoria de Ana Sesifredo, Fátima Farrica e Miguel Meira, primeiro disponibilizada on-line e, posteriormente, publicada na obra Posturas Municipais Portuguesas…, pp. 21-110. 9 Estas questões foram já colocadas em relevo na apresentação da mais recente transcrição do LIVRO das Posturas Antigas…, p. 11-26. Sobre elas e outros aspetos relevantes para uma caracterização mais aprofundada do Livro das Posturas, veja-se também FEIO, Rodolfo Petronilho – “Som servidores d’El Rey e do Concelho: a presença judaica no Livro das Posturas Antigas de Évora”. Revista de História da Sociedade e da Cultura 18 (2018), pp. 34-37, e, mais amplamente, FEIO, Rodolfo Petronilho – Por prol e bom regimento…, pp. 19-22. 10 Para um melhor conhecimento deste processo, e dos resultados que foi possível obter, veja-se FEIO, Rodolfo Petronilho – Por prol e bom regimento…, pp. 22-27. A mesma questão havia já sido preliminarmente aflorada em FEIO, Rodolfo Petronilho – “A Cidade e o Trabalho nas Posturas Antigas de Évora: um projeto de dissertação”. In SILVA, André; TEIXEIRA, Carlos; FERREIRA, João Martins; FERREIRA, Leandro; LEITE, Mariana (coords.) Incipit 6. Porto: Universidade do Porto, Faculdade de Letras, 2018, p. 143. O ABASTECIMENTO ALIMENTAR DA CIDADE EM FINAIS DO SÉCULO XIV Núcleo N.º de posturas Mesteirais e Ofícios 61 24,02% Agricultura e Pecuária 51 20,08% Comércio 40 15,75% Caça, Pesca e Silvicultura 28 11,02% Urbanidade 21 8,27% Pesos e Medidas 20 7,87% Justiça e Oficiais 20 7,87% Sociedade 7 2,76% Vária 6 2,36% 254 100% 133 Percentagem Quadro I – Distribuição das Posturas, existentes no Livro das Posturas Antigas de Évora, por núcleos temáticos (1375-[1411]). Mesteirais e Ofícios Agricultura e Pecuária Comércio Caça, Pesca e Silvicultura Urbanidade Pesos e Medidas Justiça e Oficiais Sociedade Vária Gráfico 1 – Distribuição das posturas, existentes no Livro das Posturas Antigas de Évora, por núcleos temáticos (1375-[1411]). Uma análise superficial dos elementos apresentados permite concluir que os três primeiros núcleos temáticos, isto é, as questões relacionadas com os mesteirais e ofícios, com a agricultura e pecuária e com o comércio, correspondem a quase 60% 134 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL das posturas existentes no Livro. De facto, as grandes preocupações das autoridades municipais encontram a sua nota dominante na regulamentação do mercado, não somente através do tabelamento de preços dos diversos artigos e serviços, mas também procurando garantir a qualidade e a acessibilidade dos produtos, sobretudo alimentares. Controla-se a circulação dos produtos, bem como a forma como se devia (ou podia) proceder à sua comercialização. Outro tópico de grande importância prende-se ainda com medidas tomadas com o que, avant la lettre, poderíamos chamar higiene e segurança alimentar, procurando garantir a qualidade dos produtos comercializados. Uma outra das questões de maior premência é o estabelecimento de um valor considerado justo para a moagem do cereal, claramente no contexto do aprovisionamento alimentar da cidade, campo onde se enquadram também as medidas tomadas no âmbito da proteção da cultura da vinha, da cultura cerealífera e da pecuária11. Conhecida a fonte que estrutura o estudo que ora apresentamos, convidamos o leitor a mergulhar no seio do Livro das Posturas. Aí procuraremos conhecer os principais produtos alimentares, cujo abastecimento mais preocupou as autoridades camarárias, levando-as a produzir um número mais elevado de posturas. 2. O abastecimento alimentar: produtos, agentes e normas. Neste segundo ponto, dedicado ao abastecimento alimentar, pretendemos dar conta da forma como se processava e organizava o provimento alimentar da cidade que, como dissemos, constituiu sempre um tópico recorrente entre as resoluções discutidas e aprovadas pelas autoridades concelhias. Aludiremos aos principais intervenientes desses processos e às atividades que cada um desenvolvia, não deixando de privilegiar a temática vincadamente reguladora que emana das posturas. Alguns estudos sobre Évora, sobretudo da autoria de Ângela Beirante, avançaram uma caracterização económica da cidade, fornecendo elementos para o estudo do mercado cujo abastecimento alimentar se procura garantir12. Às tendas fixas e oficinas, espalhadas pela cidade13, somam-se – e são esses os pontos-chave do abastecimento alimentar – a Praça da Porta de Alconchel, o açougue e o Rossio14. 11 À semelhança do que temos vindo a referir, para um contacto mais aprofundado com as questões que aqui apresentamos veja-se FEIO, Rodolfo Petronilho – Por prol e bom regimento…, pp. 27-33. 12 Entre eles, destaquem-se BEIRANTE, Maria Ângela da Rocha – Évora da Idade Média. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian e Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, 1995, bem como alguns dos artigos compilados em O Ar da Cidade: ensaios de História Medieval e Moderna (Lisboa: Edições Colibri, 2008). 13 Em BEIRANTE, Maria Ângela da Rocha – Évora na Idade Média, pp. 402-433 encontra-se uma análise da distribuição das tendas e oficinas dos diferentes mesteres na cidade. 14 Uma caracterização mais detalhada destes lugares encontra-se em FEIO, Rodolfo Petronilho – Por prol e bom regimento…, pp. 59-66. O ABASTECIMENTO ALIMENTAR DA CIDADE EM FINAIS DO SÉCULO XIV 135 Acresce um sistema de revenda, porta-a-porta, dominado por regatões e regateiras, que as autoridades municipais olham com maus olhos e procuram regulamentar apertadamente, quando não desincentivar ou mesmo proibir. A escala considerada neste nível diário do abastecimento da cidade aumenta, semanalmente, no mercado, pois garantiria o abastecimento dos lugares rurais do termo15. E, uma vez por ano, durante os quinze dias da feira, era alargada a um contexto regional, ainda mais amplo16. A cidade, localizada em plena planície alentejana, é ainda hoje dominada por extensos campos de cereais, pastagens e olivais de características mediterrânicas17. Encabeçava um termo, cuja área fixa os seus limites no século XIV, próximos dos do atual concelho, com cerca de 1300 km²18. Não possuímos indicadores seguros sobre a sua população, mas Ângela Beirante calcula que, em 1475, a cidade teria cerca de 10 000 habitantes19. As principais produções eram de carácter agrícola, cabendo a primazia aos cereais (essencialmente trigo e cevada) e ao vinho, para além do azeite e dos produtos hortícolas. Enorme importância tinha a criação de gado, sobretudo cavalar, bovino e suíno, levando a que a cidade e o seu termo tivessem uma relação de grande interdependência – ainda mais profunda do que na maioria das cidades medievais portuguesas –, assumindo-se como verdadeiramente indissociáveis20. Os historiadores acentuam a forma como a crise do século XIV foi profunda no Alentejo. Ângela Beirante chama a atenção para o facto da reduzida densidade populacional e da baixa produtividade do solo serem responsáveis por acentuar a falta de mão-de-obra e de víveres, tendentes ao agravamento da situação21. Pelo menos a partir dos anos de 1375-1376 assiste-se, como corolário de vários surtos 15 Da categorização como mercado deste evento semanal discordou Ângela Beirante, considerando que, se pela periodicidade o deveríamos considerar apenas um mercado, pela dinâmica regional que gerava devia ser entendido como uma feira (Cf. BEIRANTE, Ângela – Évora na Idade Média..., p. 456). 16 Sobre o mercado semanal e a feira anual veja-se o que se diz em FEIO, Rodolfo Petronilho – Por prol e bom regimento…, pp. 65-66. Atente-se também nos contributos disponibilizados em RAU, Virgínia – Feiras Medievais Portuguesas: subsídios para o seu estudo. Lisboa: Editorial Presença, 1982, p. 91 e em MONIZ, Manuel Carvalho de – As Feiras de Évora. Évora: Câmara Municipal de Évora, 1997. 17 Para uma caracterização geográfica da cidade veja-se RIBEIRO, Orlando – “Évora: sítio, origem, evolução e funções de uma cidade”. In BRITO, Raquel Soeiro de (coord.) –Estudos de Homenagem a Mariano Feio. Lisboa: Rua, 1986, p. 377. 18 Para um conhecimento mais detalhado da evolução e constituição do termo de Évora veja-se BEIRANTE, Maria Ângela da Rocha – Évora da Idade Média..., pp. 27-38. 19 Sobre a quantificação, caraterização e evolução da população de Évora na Idade Média veja-se BEIRANTE, Maria Ângela da Rocha – Évora da Idade Média..., pp. 141-186. 20 MARQUES, A. H. de Oliveira – “O Surto Urbano, a Moeda e os Preços”, p. 197 e CARVALHO, Sérgio Luís – Cidades Medievais Portuguesa: uma introdução ao seu estudo. Lisboa: Livros Horizonte, 1989, pp. 58-59. Acerca desta questão, e não obstante a cronologia ser posterior, veja-se também BEIRANTE, Maria Ângela da Rocha – “O vínculo cidade-campo na Évora de quinhentos”. In O Ar da Cidade..., pp. 295-304. 21 BEIRANTE, Maria Ângela da Rocha – “O Alentejo na 2.ª metade do século XIV: Évora na crise de 1383-1385”. In O Ar da Cidade…, p. 263. 136 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL de peste e de maus anos agrícolas, a um prolongado período de escassez e fome22, notório nas preocupações que as autoridades municipais revelam, adotando medidas para os combater23. Acrescem as consequências das Guerras Fernandinas, mormente a terceira, entre 1381 e 138224. Basta recordar a política de terra queimada e as frequentes razias, perpetradas pelo exército castelhano e pelos soldados ingleses, nas vilas em torno de Évora25. Também o deflagrar da Revolução de 1383-1385 foi particularmente violento, culminando, na cidade, com o assalto ao castelo e o assassinato da abadessa do mosteiro de S. Bento de Cástris26, num quadro de grande instabilidade social. Traçado este breve enquadramento socioeconómico, devemos agora deter-nos na análise de cada um dos principais produtos alimentares visados na legislação municipal. 2.1 O pão27. O pão era o principal alimento da mesa medieval, tendo, como tal, uma enorme importância no quotidiano, razão pela qual a sua abundância se encontrava no cerne das preocupações das autoridades municipais28. 22 SERRA, Joaquim António Felisberto Bastos – Governar a Cidade e Servir o Rei: a oligarquia concelhia de Évora em tempos medievais (1367-1433). Évora: Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora, 2018, pp. 39-40. 23 Cf., por exemplo, Livro das Posturas Antigas de Évora…, post. 84, 104A, 104B, 105B e 105C. 24 BEIRANTE, Ângela – “O Alentejo na segunda metade do século XIV…”, p. 263. 25 Cf. LOPES, Fernão – Crónica de D. Fernando. 2.ª ed. Ed. crít., intr. e índices Giuliano Macchi. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004, caps. CXXXII e CXXXIV, pp. 465-467 e 471-473. 26 Cf. LOPES, Fernão – Crónica de D. João I. Intr. Humberto Baquero Moreno, pref. António Sérgio. Vol. 1. Porto: Livraria Civilização, 1990, cap. XLIV, pp. 88-90 e cap. XLV, pp. 90-92. Fernão Lopes enfatiza ainda, ao longo de toda a primeira parte da Crónica de D. João I, os conflitos que ocorrem no termo, destacando-se a ameaça de uma batalha campal, nas imediações do Divor, na zona noroeste do concelho, no verão de 1384 (cap. CXLVI, pp. 296-299). 27 Sobre esta temática devemos deixar uma referência à comunicação apresentada por Arnaldo de Sousa Melo, nestas IV Jornadas Internacionais de Idade Média, igualmente na sessão 9, dedicada ao projeto Medcrafts: regulamentação dos mesteres em Portugal nos finais da Idade Média: séculos XIV e XV, intitulada “Moleiros, moinhos e azenhas no Porto nos séculos XIV e XV: um setor-chave do abastecimento cerealífero”, que permite fazer uma pertinente comparação entre as realidades portuense e eborense no que à moagem do cereal diz respeito. Reforçando a extrema importância do pão da alimentação medieval e nas preocupações das autoridades municipais do Portugal medievo lembramos ainda a conferência de abertura das mesmas Jornadas, proferida por Iria Gonçalves, intitulada “Uma pequena cidade medieval e o seu pão na Baixa Idade Média: o caso de Loulé”. 28 Cf., entre numerosos outros, MARQUES, A. H. de Oliveira – “A mesa”. In A Sociedade Medieval Portuguesa: aspectos de vida quotidiana. 6.ª ed. Lisboa: Estampa dos Livros, 2010, pp. 36-37; ARNAUT, Salvador Dias – “A arte de comer em Portugal na Idade Média”. In O “Livro de Cozinha” da Infanta D. Maria de Portugal. Leitura Giacinto Manuppella e Salvador Dias Arnaut. Intr. histórica Salvador Dias Arnaut. Coimbra: Por ordem da Universidade, 1967, pp. XXIV-XXX; COELHO, Maria Helena da Cruz – “Apontamentos sobre a comida e a bebida do campesinato coimbrão em tempos medievos”. Revista de História Económica e Social 12 (1987), pp. 92-93 e GONÇALVES, Iria – “A alimentação”. In História da Vida Privada em Portugal. Vol. 1: A Idade Média. Dir. José Mattoso. Coord. Bernardo Vasconcelos e Sousa. 2.ª ed. Alfragide: Círculo de Leitores/ Temas e Debates, 2011, pp. 227-228. O ABASTECIMENTO ALIMENTAR DA CIDADE EM FINAIS DO SÉCULO XIV 137 O ciclo do pão inicia-se, naturalmente, com a produção de cereal, cujas preocupações de proteção são notórias em numerosas posturas29. Nesse sentido, as instâncias municipais não só proíbem a sega e a apanha de erva nas searas alheias (post. 97), como são explícitas ao afirmar que aqueles que lavrassem os ferregiais deviam trazer os bois devidamente sinalizados com chocalhos (post. 98) para impedir que neles causassem danos. É também para proteger as culturas que, por exemplo, se proíbe, em 1378, que os porcos andassem nos ferregiais de dentro e de fora da cidade, nos pães e nos alcáceres (post. 106). Da mesma forma, proíbe-se, em 1380, que os bois e as vacas andassem nas coutadas antes do dia de Santa Iria (20 de outubro) (post. 101A), entre vários outros exemplos que podíamos avocar. Parte considerável do cereal produzido no termo do concelho – quando não no aro urbano ou mesmo no interior da própria cerca – era armazenado nas chamadas covas de pão30, com cuja preservação as autoridades municipais se preocuparam, em mais do que um momento (post. 80, 211 e 212). As posturas municipais permitem-nos também identificar a existência de moinhos de água, como comprova o topónimo ribeira do Rio de Moinhos (post. 115 e 230A), aplicado à atual ribeira de Valverde. Contudo, na sua maioria, as alusões a atafonas suplantam as referências a moinhos (cf. post. 144, 230A e 230B). Assim, somos levados a concluir que o grosso da moagem do cereal, pelo menos durante o estio, se realizasse em atafonas, movidas a força animal, ou mesmo braçal31. Consequentemente, as preocupações das autoridades municipais – e os conflitos que se geram no seu seio – acabam por envolver sobretudo os atafoneiros e, apenas em muito menor escala, os moleiros. Contudo, ainda antes da transformação do cereal, assumiam grande importância as chamadas medideiras de pão, que deviam emprestar, a título gratuito, as medidas oficiais do concelho para medir a quantidade de cereal transacionada, no terreiro da praça de Alconchel (post. 42). O transporte do cereal para as atafonas e moinhos 29 Tenham-se, por exemplo em conta as posturas 92, 94, 97, 98, 105A, 106, 108, 110, 217, 235, 236, 238, 244, 247 e 250, onde essas preocupações com a proteção da cultura cerealífera são bem notórias. Relativamente à numeração das posturas, retomamos aquela que utilizámos na nossa dissertação de mestrado, para a qual remetemos (cf. FEIO, Rodolfo Petronilho – Por prol e bom regimento…, p. 7). No final da mesma encontrase, em anexo, uma ficha interpretativa para cada uma das 254 posturas que o Livro inclui (FEIO, Rodolfo Petronilho – Por prol e bom regimento…, pp. 222-355). 30 Acerca de algumas covas de pão existentes na cidade, cujos vestígios ainda hoje se conservam, vejamse os elementos adiantados por CORREIA, Miguel – “Um conjunto de silos do final da Idade Média, na rua Cândido dos Reis – Évora”. A Cidade de Évora, 2.ª série, 7 (2007-2008), pp. 237-258. 31 O mesmo acontecia, por exemplo, em Lisboa, local para o qual Oliveira Marques calcula que mais de 80% da moagem fosse realizada em atafonas (MARQUES, A. H. de Oliveira – Introdução à História da Agricultura: a questão cerealífera na Idade Média. 3.ª ed. Lisboa: Cosmos, 1978, p. 191). Pelo contrário, para a cidade do Porto, Arnaldo Melo, apresentou elementos que põem em destaque a relevância que a atividade dos moleiros tinham no cômputo moagem cerealífera naquela cidade (MELO, Arnaldo Rui Azevedo de Sousa – Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média: o Porto, c. 1320-c. 1415. Vol. 1. Braga: Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho/École des Hautes Études en Sciences Sociales, 2009. Tese de Doutoramento, pp. 293-296). 138 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL ficava, geralmente, a cargo de molinheiros e acarretadores de pão que vêem também o valor que lhes era lícito exigir pelo transporte do cereal tabelado pelas autoridades concelhias (post. 144). Na transformação atuavam, principalmente, moleiros, moendeiras e atafoneiros, não obstante estar também documentada a existência de mós de braço (post.119). Ainda assim, como dizíamos, as referências mais numerosas são claramente as que dizem respeito aos atafoneiros, a quem competiria o grosso da moagem do cereal. O nível de detalhe que as autoridades municipais colocam na averiguação dos custos de moagem do cereal, para permitir a colocação de um valor justo para trabalhadores e consumidores, é de tal ordem que nos permite entrar em algumas das atafonas da cidade e encontrá-las em pleno funcionamento. Uma atafona trabalhava durante dia e noite, assegurada por duas bestas, capazes de moer, nesse período de laboração, entre um quarteiro (ca. 217,5 l) e 16 alqueires (232 l) de trigo lento e 18 alqueires (cerca de 261 l) de trigo seco (post. 145 e 194A). Ali trabalhava também, pelo menos, um mancebo que, incluindo o mantimento e a soldada, recebia à volta de 4 soldos por dia. Em termos de despesas, calcula-se que cada besta consumisse, diariamente, um alqueire (14,5 l) de cevada, grama ou erva no valor de 9 dinheiros e meio alqueire (ca. 7,25 l) de farelo (post. 145, 192A e 194 A). Para assegurar o normal funcionamento da atafona, seria ainda necessário despender entre os 2 e os 4 soldos, por dia, para ferragem; 1 soldo para azeite; 8 soldos para pão e conduto e 3 libras em calçado e burel. Acresce ainda o arrendamento do espaço, cifrado entre um e os quatro soldos diários (post. 145 e 192A), o que nos indicia que o atafoneiro não era, geralmente, proprietário da atafona em que exercia o seu mester ou, pelo menos, da divisão/edifício onde a atafona se encontrava instalada. No mesmo sentido, encontramos também alguns elementos relacionados com o funcionamento dos moinhos de água que se localizavam, privilegiadamente, nas margens da ribeira de Valverde. Ainda assim, a postura em causa (230A) é bastante confusa no tocante aos valores apresentados, impedindo-nos de chegar a qualquer conclusão segura. Os intervenientes no processo de moagem do cereal, sejam moleiros ou moendeiras, mas principalmente atafoneiros, vêem, diversas vezes, o valor que deviam cobrar pela moagem do alqueire de trigo e de segunda, tabelado pela vereação. Embora algumas das posturas que abarcam esta temática não se encontrem datadas com segurança, é evidente que este tabelamento causou profundos conflitos entre os atafoneiros e a vereação, sendo os representantes dos atafoneiros repetidas vezes ouvidos na câmara para que, de acordo com as oscilações do valor do cereal que moíam, fosse ajustado o valor que deviam receber como remuneração do seu trabalho. Nesse sentido, sucedem-se posturas datadas de julho de 1380 (post. 145), junho O ABASTECIMENTO ALIMENTAR DA CIDADE EM FINAIS DO SÉCULO XIV 139 e julho de 1382 (post. 146A, 146B e 146C), junho e agosto de 1394 (post. 192A, 192B, 194A e 194B), em que, sucessivamente, se revêm os valores tabelados para a moagem do cereal. Assiste-se a uma subida dos preços entre julho de 1380 e os primeiros seis meses de 1382. A tendência inverte-se, porém, em junho/julho de 1382. A 3 de julho, os valores, novamente retificados em baixa, aproximam-se com os tabelados dois anos antes – 16 dinheiros por alqueire de trigo seco e 20 por alqueire de trigo lento, em 1380 (post. 145), e 18 dinheiros por alqueire de trigo seco e 20 pelo de lento, em 1382 (post. 146C). Só voltamos a ter valores para a moagem do cereal doze anos depois. O verão de 1394 denuncia uma acentuadíssima subida do preço dos cereais. A 13 de junho, estabelece-se que o alqueire de trigo fosse moído a 12 soldos32 e alguns dias depois, a 21, é necessário chegar-se a novo entendimento, acabando por colocar-se o alqueire moído a 15 soldos (post. 192B). Apesar destes ajustamentos, a 8 de agosto, os atafoneiros exigem receber 20 soldos pela moagem do alqueire de trigo, situação que a vereação terá recusado (post.194A). Assim o percebemos, quando, na reunião de 11 de agosto, se dá conta que os atafoneiros haviam formado uma união, tentando “por a cidade em tal que lhes leixassem moer como eles quisessem” (post.194B). Esta última informação é também de extraordinária importância para conhecermos a forma como os atafoneiros se encontravam organizados sob o ponto de vista socioprofissional. Ao contrário do que acontece relativamente a alguns mesteirais da cidade, não encontramos, neste conjunto documental, quaisquer referências à existência de nenhum tipo de organização profissional permanente dos atafoneiros. Aliás, e ao contrário que acontece relativamente aos profissionais de outros setores, nem sequer se regista a participação de procuradores dos atafoneiros das reuniões de vereação. Assim, na esmagadora maioria das numerosas vezes em que ali se deslocam, para participar na discussão dos valores da moagem do cereal, dando conta das despesas desse processo, as indicações referem-nos sempre como simples atafoneiros, sem qualquer outro grau de representação dos seus pares (cf. post. 145, 146A, 146B, 146C, 192A). Não obstante, entre todos os grupos profissionais identificados nas posturas, os atafoneiros são, não só aquele que apresenta um maior grau de reivindicação, 32 Devemos sublinhar que não estamos, neste momento, em condições de calcular a real oscilação do preço do alqueire de trigo, uma vez que este intervalo de doze anos corresponde a um dos períodos de maior desvalorização monetária da história portuguesa. De acordo com Oliveira Marques, entre 1383 e 1398, a desvalorização da moeda oscilou entre os 1000 e os 1200%, com 1 libra de 1383 a equivaler a 10 ou 12 em 1398. Cf. MARQUES, A.H. de Oliveira – “A moeda portuguesa durante a Idade Média”. In Ensaios de História Medieval Portuguesa. Lisboa: Editorial Vega, 1980, p. 213. Sobre a desvalorização da moeda, por esta época, atente-se ainda nos contributos de TAVARES, Maria José Ferro – “Para o estudo da numária de D. Fernando”. Estudos Medievais 2 (1982), pp. 3-32 e Estudos de História Monetária Portuguesa (1383-1438). Lisboa: Edição do Autor, 1974, especialmente, pp. 23-41. 140 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL como aquele que leva mais longe as formas de luta adotadas para levar avante essas reivindicações33. Se partimos do princípio que os atafoneiros se integram nas procissões da cidade junto dos molinheiros, podemos considerar que ali ocupam já um lugar relativamente significativo34. Da mesma forma, estariam, naturalmente, bem conscientes da extrema importância da sua função no abastecimento alimentar da urbe. No verão de 1394, momento em que as atafonas seriam a única forma possível de moer o cereal, porque, certamente, o estio levara à inoperacionalidade dos moinhos de água, espalhados pelo termo do concelho, atinge-se o auge da sua capacidade organizativa. A questão seria, certamente, mais antiga. Logo a 13 de junho, a vereação acusa os atafoneiros de serem “perfiosos e nom querem husar de razom o que ser agram mingua da dicta çidade”, forçando-os a moer ao valor tabelado, sob “boom escarmento asy da cadea como de pena de dinheirros” (post. 192A). As ameaças do corregedor parecem, no entanto, não ter surtido qualquer efeito, antes aumentado a união entre os atafoneiros e a sua capacidade reivindicativa. Na semana seguinte, deslocam-se novamente à vereação, desta feita munidos de uma carta assinada e selada pelo corregedor, em que se dava autorização ao concelho para rever, a favor dos atafoneiros, os valores tabelados na semana anterior, indicando que se encontravam, inclusivamente, dispostos a fazer o agravo chegar ao monarca (post. 192B). Na presença da carta, a vereação acede, mas mesmo assim, os atafoneiros ainda não estavam satisfeitos. Pouco mais de um mês depois, a 8 de agosto, deslocam-se uma vez mais à vereação. Desta feita, encontram-se já legalmente representados pelos seus procuradores, apresentando a competente procuração, realizada por todos os atafoneiros da cidade, redigida por um tabelião (post. 194A). Vemos, pois, como apenas excecionalmente os atafoneiros se fazem representar por procuradores, querendo, seguramente, aumentar a sua força diante das autoridades municipais. A proposta apresentada vai no sentido de aumentar a moagem em cerca de 33%, valor que a vereação não aceita. Ainda assim, porventura por prudência, procura conhecer, uma vez mais, as despesas de moagem, para definir o valor considerado justo. Os atafoneiros, certamente saturados do processo, ou desconfiando da não anuência das autoridades a novo aumento, decidem então partir para a “greve”. Como dissemos, na reunião de 11 de agosto, refere-se que os atafoneiros “se ajuntarom em maneira de confraria e que andarom per todallas atafonas da çidade tomamdo lhe as segurrelhas pera averem azo de nom moerem por a çidade em tal que lhes lleixassem moer como 33 Esta mesma força reivindicativa está também patente, por exemplo, entre os moleiros da cidade do Porto como Arnaldo Melo não deixou de por em evidência na sua comunicação “Moleiros, moinhos e azenhas no Porto nos séculos XIV e XV…”, a que já, anteriormente, aludimos. 34 Cf. DOCUMENTOS Históricos da Cidade de Évora…, p. [372]. O ABASTECIMENTO ALIMENTAR DA CIDADE EM FINAIS DO SÉCULO XIV 141 elles quisesem” (post. 194B). Embora, infelizmente, nada mais possamos saber acerca desta união, nem das consequências que dela resultaram para os atafoneiros, ela é exemplar no sentido de evidenciar a capacidade de união e reivindicação deste grupo socioprofissional. Não obstante o seu lugar na hierarquia social, os atafoneiros conheciam a sua importância, imprescindível no quotidiano urbano, já que garantia a própria subsistência da cidade. Por outro lado, ainda no âmbito do processo de transformação do cereal em pão, não devemos também esquecer o papel de padeiras e forneiras. As padeiras estavam obrigadas a amassar, contínua e diariamente, até ao dia de S. João (24 de junho) para que a cidade fosse abastada, devendo levar, diariamente, pão à praça (post. 49). Deviam também garantir que o pão, não só tinha o peso regulamentado, como era finto e cozido como devia (post. 18). No respeitante à comercialização, as posturas registam ainda a atividade de vendedeiras das poias de forno e das obradas, que eram obrigadas a vender na Praça, apartadas das padeiras, pondo os seus produtos nos poios que lhes estavam destinados (post. 47). 2.2 A carne e o peixe Entre a carne e o peixe a primazia está, claramente, na carne. De facto, a carne assumia ‒ excetuando os períodos de jejum, bastante longos no período medievo ‒ o protagonismo à mesa, assim houvesse capacidade para a adquirir35. A importância que a carne assumia denota-se também nas preocupações que as autoridades municipais colocam na proteção da pecuária36. É evidente que se preocupam, fundamentalmente, com a proteção do gado utilizado na agricultura e com a proteção do gado equídeo, mas a par destas preocupações encontra-se também o gado pertencente a carniceiros e enxerqueiros, precisamente destinado ao aprovisionamento do açougue e abastecimento alimentar da cidade37. Carniceiros, e em menor escala enxerqueiros, têm um papel fundamental nesta dinâmica. No aro da cidade, em zonas que as posturas procuram delimitar com 35 Cf., entre numerosos outros, MARQUES, A. H. de Oliveira – “A mesa...”, pp. 28-31; ARNAUT, Salvador Dias – “A arte de comer em Portugal na Idade Média...”, pp. XXX-XXXVII; COELHO, Maria Helena da Cruz – “Apontamentos sobre a comida e a bebida do campesinato coimbrão…”, pp, 93-94 e GONÇALVES, Iria – “A alimentação…”, pp. 229-232. 36 Existem, na verdade, algumas posturas dedicadas a esta temática, tomando-se, inclusivamente, medidas extraordinárias em períodos de seca ou de guerra, procurando minorar os seus efeitos sobre as espécies animais. Atente-se, nesse sentido, nas posturas 13, 37, 38, 39, 59, 75, 84, 103, 104A, 105B, 105C e 114, muito embora existam numerosas outras que procuram regulamentar as atividades agro-pastoris. 37 Mesmo assim, importa não esquecer que diversas outras posturas, indiciam os esforços das autoridades concelhias na proteção das culturas agrícolas, sobretudo cerealífera e vinícola, produzindo posturas que procuram, no essencial, impedir que o gado nelas provoque danos e prejuízos (cf., p. ex., post. 84, 89, 90, 91, 92, 94, 98, 101A, 101B, 103, 104B, 105A, 105B, 105C, 106, 108, 109, 110, 114, 115). 142 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL algum pormenor, pastam, privilegiadamente, as suas manadas (post. 100, 103, 105B, 235 e 244). Era permitido que o seu gado pastasse, quer no restolho dos ferragiais e panasqueiras, quer nas vinhas abandonadas. Era-lhes, porém, como seria de esperar, proibido levar gado para vender fora da cidade (post. 38). Noutros casos, igualmente documentados, as reses destinadas ao consumo não eram pertença dos próprios carniceiros, pelo que estes compravam os animais, destinados a abate. Essa operação tanto podia ser efetuada diretamente aos ovelheiros e pegureiros ‒ situação proibida pelas posturas (post. 75) e apenas autorizada mediante mandado dos respetivos donos (post. 39), ou mesmo dos almotacés (post. 13) –, como no mercado. Contudo, neste último, apenas podiam comprar animais depois das 10,00h, procurando impedir-se o abate para consumo de animais aptos para os trabalhos agrícolas (post. 59). Se, nestes exemplos, o abastecimento alimentar da cidade parece ficar para segundo plano, no veiculado na postura 228 a tónica está, claramente, nesse abastecimento. Face a um contexto extraordinário, motivado pela guerra, atendendo “a mingua que ham das carnes”, revoga-se, a título excecional, o que era costume na cidade, e proíbe-se que os vizinhos pudessem tomar, para criar, o gado que os carniceiros e enxerqueiros tinham para o aprovisionamento alimentar (post. 228). A etapa seguinte era o abate. Ora, as reses, cuja carne se destinava ao comércio, deviam ser abatidas no curral do concelho ou no Rossio, junto daquele curral, atividade que, mais uma vez, se realizava sob a responsabilidade dos carniceiros (post. 6) e, de acordo com as posturas, somente depois da hora de Vésperas (post. 71). Pelo contrário, quando o abate não pressupunha a posterior venda da carne, era permitido noutros lugares, autorizando-se, nesse sentido, que os enxerqueiros se deslocassem a casa dos homens-bons que os chamassem, para o abate de porcos e friames (post. 61). A carne era comercializada no açougue (post. 9 e 12), muito embora, mediante algumas condições descriminadas na legislação municipal, pudesse também ser comercializada nas enxercas da Praça (post. 10, 11, 12 e 76). Para isso, era necessário não só ter parceiros no açougue, como cortar lá a carne (post. 11). Soma-se ainda a necessidade de garantir que a qualidade da carne era a mesma no açougue e na Praça, bem como permitir que, caso o consumidor o desejasse, pudesse pesar no açougue a carne que comprara na enxerca e pagá-la ao preço que lhe fora pedido na enxerca (post. 11). Procura ainda assegurar-se a organização das enxercas, ordenando que se estabelecessem em três ruas, uma para carne de cabras e cabritos, outra de ovelhas e recentais e a terceira para a de carneiro (post. 10). De resto, a carne vendida nas enxercas seria, tendencialmente, mais barata do que no açougue, uma vez que ali O ABASTECIMENTO ALIMENTAR DA CIDADE EM FINAIS DO SÉCULO XIV 143 o controlo era mais apertado, tanto ao nível da qualidade, como da pesagem. Por exemplo, relativamente à carne de carneiro, publica-se uma postura no sentido de impedir a sua venda nas enxercas, caso o corte não fosse realizado no açougue, uma vez que os carniceiros somente a cortavam nas enxercas, sem a pesar e cobrando preços elevados, recusando-se, inclusivamente, a vendê-la no açougue (post. 76). Existe, como é evidente, alguma preparação e mesmo transformação da carne. Esta inicia-se com a desmancha do animal abatido, mas passa também pela limpeza da carne. Nestes processos atuam, não só carniceiros e enxerqueiros, mas alguns outros mais especializados, como o caso dos esfoladores das carnes, a quem cabia assegurar a sua preparação e limpeza (post. 63). As autoridades municipais manifestam também grandes preocupações com o que podemos chamar, higiene e segurança alimentar, procurando garantir os direitos do consumidor, a qualidade e a acessibilidade da carne (cf. post. 7, 8, 9, 12, 14, 63, 70, 71, 72, 73, 74, 76, 78 e 199). Nesse sentido, a atividade de carniceiros e enxerqueiros torna-se a atividade profissional mais apertadamente regulamentada da cidade, através de um considerável número de posturas, como alguns autores, como Arnaldo Melo, puseram já em destaque para outros espaços urbanos do Reino38. Entre diversas outras determinações, no campo da segurança alimentar, proíbe-se a compra de bovinos maus ou doentes (post. 8), a comercialização de carne “llixossa” (post. 63), a venda de diferentes tipos de carne misturadas (post. 10) e de carne inchada (post. 14). Determina-se que a carne de ovinos e caprinos apenas pudesse ser vendida caso a cabeça se mantivesse presa às carcaças, até que as partes tivessem sido vendidas (post. 12). No mesmo sentido, deviam expor-se os couros dos bois e das vacas abatidos, entre as 9h e cerca das 18h, e ao outro dia até às 9h, o mesmo se aplicando nos talhos de mouros e judeus (post. 7). No respeitante à acessibilidade do consumidor, prevê-se que os carniceiros se mantivessem continuamente no açougue e que ali permanecessem, pelo menos dois, durante a hora de almoço (post. 70), estando proibidos de esconder a carne (post. 72) e forçados a vendê-la a quem a pedisse (post. 199). Estabelece-se a quantidade mínima de carne que os carniceiros tinham que disponibilizar – dois talhos de carne de vaca e outros tantos de carneiro, aos sábados, entre as vésperas e o por do sol, bem como desde domingo, de manhã, até quinta-feira, ao fim do dia (post. 9) –, bem como a obrigatoriedade de ali vender carne de carneiro (post. 76). Em relação aos pesos utilizados, não só se insiste na necessidade de pesar, direitamente, a carne Cf. MELO, Arnaldo Rui Azevedo de Sousa – Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média. Vol. 1, p. 257. O mesmo autor chama também a atenção para a tónica que as autoridades camarárias colocam, sistematicamente, na defesa do consumidor (p. 310), aspeto que igualmente acontecia em Évora. Atente-se ainda nas informações coligidas e adiantadas no ponto “1. Carniceiros e mesteres dos couros” do Catálogo de mesteres. In MELO, Arnaldo Rui Azevedo de Sousa – Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média..., Vol. 2, pp. 13-54. 38 144 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL comercializada (post. 74), como se obriga o rendeiro da almotaçaria a colocar os pesos na porta do açougue para que o consumidor “veer se a pesam como devem” (post. 73). Em contrapartida, estipulam-se coimas e penas de prisão para quem entrasse à força nos talhos ou neles tomasse carne violentamente (post. 78). Mas a preparação e transformação da carne, tal como a sua posterior comercialização, não passava unicamente pelos carniceiros e enxerqueiros. Alguns elementos, já sublinhados por Arnaldo Melo, apontam também para a participação de uma mão-de-obra feminina nestes processos39. Eram, por exemplo, as mulheres que vendiam carne já cozida, portanto com um valor acrescentado, a quem era proibido cozer diversos tipos de carne misturadas, bem como vendê-las misturadas, sem dizer de que eram (post. 31). De forma apartada seria ainda comercializada a carne de caça, vendida pelos próprios caçadores (post. 29 e 69). Muito embora a importância que os carniceiros assumiam no mercado abastecedor da cidade, como tem comummente sido posto em relevo, na hierarquia social, precisamente pelas atividades que realizavam, acabam por ocupar um lugar de grande inferioridade, cabendo-lhes abrir os cortejos processionais, sendo os mais afastados do sagrado40. Para além disso, não possuímos qualquer elemento que permita apontar a existência de algum grau de organização socioprofissional entre os profissionais da carne, nem sequer encontrá-los nas reuniões de vereação. Ainda assim, podemos testemunhar a existência, obrigatória pelas posturas, de sociedades profissionais entre os que comercializavam no açougue e nas enxercas (post. 11). O peixe tanto podia ser pescado no termo do concelho, se pensarmos em espécies de água doce, como vir de lugares mais distantes, se falarmos em peixes de mar. Claro que tanto podia ser comercializado fresco como seco, principalmente se se tratasse de peixe oriundo de lugares mais distantes. Contudo, nenhum desses processos de preparação e/ou transformação se realizava na cidade, ou, pelo menos, deixou marcas na sua legislação. Nesse sentido, as posturas pouco mais contêm que referências aos responsáveis pela sua venda na cidade. Elencam-se, neste âmbito, os almocreves que traziam peixe de fora parte e que as posturas obrigam a levar ao açougue, bem como a declarar aos almotacés que quantidade e que género transportam (post. 1). O mesmo acontecia com as pescadeiras que eram também proibidas de esconder peixe (post. 64). Os peixeiros do rio deviam ser responsáveis tanto pela pesca, como pela posterior venda na cidade (post. 60). Todos os vendedores de peixe eram, de resto, obrigados a respeitar a 39 MELO, Arnaldo Rui Azevedo de Sousa – Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média..., Vol. 1, pp. 269-270. 40 Cf. Regimento das Procissões da Cidade de Évora. In DOCUMENTOS Históricos da Cidade de Évora…, p. [371]. O ABASTECIMENTO ALIMENTAR DA CIDADE EM FINAIS DO SÉCULO XIV 145 almotaçaria que lhes fosse posta (post. 3). A referência a talhadeiras (post. 198) e a tripeiras (post. 33) remete para algum grau de transformação, ou pelo menos de amanho do peixe, mas a venda propriamente dita caberia às donas do pescado (post. 3), acompanhadas de pescadeiras (post. 33, 64 e 66) e vendedeiras de pescado (post. 4). A par destas, também as regateiras (post. 2) vendiam peixe pela cidade, muito embora as autoridades camarárias procurassem evitar essa intermediação (post. 198). De facto, o peixe fresco tinha que ser obrigatoriamente levado para o açougue e colocado na divisão destinada à sua comercialização, onde um dos procuradores do concelho devia garantir que os homens-bons o podiam comprar “ssegundo a cada huum merreçe” (post. 66). Só depois as pescadeiras o podiam vender a quem lho pedisse, proibindo-se, tal como acontecia em relação aos talhos de carne, que ali se entrasse à força (post. 66). Não obstante as poucas referências encontradas, as autoridades municipais não deixam de se preocupar com a proteção dos recursos piscícolas, interditando a utilização de verbasco (post. 124 e 137). 2.3 As frutas e os legumes. São também pouquíssimos os elementos avançados pelas posturas acerca dos setores da fruta e dos legumes. Não é de admirar, dado que estes produtos não só não têm a importância crucial dos primeiros, como também não requerem qualquer tipo de atividade transformadora para que possam ser comercializados. Limitar-nos-emos, nesse sentido, a elencar o conjunto de profissionais que aqui registamos. Referimo-nos, fundamentalmente, a uma mão-de-obra feminina incumbida da venda, fosse em locais fixos, fosse pela cidade. São fruteiras ou vendedeiras de fruta, a par das regateiras que assumem a primazia na venda da fruta (post. 15, 30, 55 e 202), somente se individualizando as verceiras, no que aos legumes diz respeito (post. 201)41, e cujos postos de venda, na Praça, as posturas procuram definir (post. 201 e 202). Ainda assim, as posturas proíbem que as regateiras comprem fruta para regatar, antes das 10,00h (post. 30). E, no mesmo sentido, mas ao contrário do que era a regra comum, em que a fruta proveniente das explorações dos vizinhos não necessitava de almotaçaria para ser comercializada, caso fosse vendida a regateiras, precisava de ser almotaçada (post. 16). 41 Mais do que apenas no setor da fruta e dos legumes, mas também na regatia em geral, já Maria Helena da Cruz Coelho chamou a atenção para a importância da atividade feminina (COELHO, Maria Helena da Cruz – “A mulher e o trabalho nas cidades medievais portuguesas.” In COELHO, Maria Helena da Cruz – Espaços, Homens e Poderes: séculos XI-XVI – I: Notas do Viver Social. Lisboa: Livros Horizonte, 1990, pp. 40-43). Da mesma forma, a comunicação apresentada por Mariana Alves Pereira, no âmbito destas IV Jornadas Internacionais, intitulada “quallquer […] rregateira que conprar quaaesquer mantjmentos em quaisquer lugarees: o papel das regateiras no abastecimento alimentar urbano”, permitiu também evidenciar essa importância e relevância da atividade feminina no setor da revenda. 146 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL 2.4 O vinho e o azeite. Tal como acontece no ponto anterior, também em relação ao vinho e ao azeite, não encontramos grande número de referências no conjunto documental em causa, muito embora, ao contrário do precedente, as atividades transformadoras aqui sejam determinantes. Se a proteção da cultura da vinha assume uma particular acuidade entre as autoridades municipais, como facilmente se comprova pelo elevado número de posturas lançadas nesse sentido42, a etapa seguinte do processo de transformação não é referida, uma vez que se processava numa esfera doméstica. Relativamente ao azeite, mesmo não existindo essa vertente doméstica na transformação43, as posturas raramente se preocupam com ela. Ainda assim, encontramos algumas posturas referentes a lagares que, não nos permitindo saber se se tratam de lagares de azeite se de vinho, se referem à atividade dos lagareiros e determinam o preço do aluguer do lagar, bem como a soldada do lagareiro (post. 181). Em vários outros momentos menciona-se a comercialização de vinho e azeite, como nas posturas 26, 34, 35 e 36. 2.5 A água. Devemos ainda deter a nossa atenção na água. Algumas infraestruturas ligadas ao abastecimento de água na cidade encontram-se referidas nas posturas. É o caso do poço da Boa Mulher e do poço Novo (post. 147) que, certamente localizados na chamada vila velha, isto é, no interior da cerca velha, hoje não se conseguem localizar com rigor. Destaca-se ainda uma referência ao célebre chafariz das Bravas (post. 138), ainda hoje existente, que era um dos mais importantes da cidade e se encontrava no extramuros da cerca nova, perto da ermida de S. Sebastião, na atual Avenida Túlio Espanca, no início do caminho de Montemor-o-Novo. Está justamente representado por Duarte d’Armas no frontispício do foral manuelino da cidade. A designação do chafariz, tal como o revelaram alguns autores, como Afonso de Carvalho, deve-se a algumas mulheres da cidade, comummente apelidadas de bravas (cf. post. 193)44. Na 42 Atente-se, como exemplo, nas disposições emanadas nas posturas 85, 86, 89, 90, 91, 94, 95, 98, 99, 101A, 101B, 103, 104B, 105A, 105C, 109, 110, 111, 113, 114, 115, 125, 217, 233, 238, 241, 242, 243, 244, 245, 248, 250, 252, 253 e 254. 43 Para uma síntese sobre a atividade lagareira eborense, veja-se o artigo de REBOLA, Maria da Conceição Rodrigues – “A Travessa dos Lagareiros e o seu enquadramento na actividade lagareira eborense”. A Cidade de Évora, 2.ª série, 7 (2000), pp. 289-323, especialmente, no que toca ao período medieval, pp. 295-299. 44 CARVALHO, Afonso de – Da Toponímia de Évora. Vol. 1: Dos meados do século XII a finais do século XIV. Lisboa: Edições Colibri, 2007, p. 319. Acerca deste e de outros chafarizes e fontes da cidade veja-se também GUERREIRO, Madalena da Palma – Chafarizes e Fontes Públicos da Cidade de Évora. Évora: Câmara O ABASTECIMENTO ALIMENTAR DA CIDADE EM FINAIS DO SÉCULO XIV 147 verdade, mais do que simples pontos de abastecimento de água potável, os poços e chafarizes eram lugares privilegiados para a sociabilidade, sobretudo feminina45. A par destas referências, toma-se um conjunto de medidas tendentes à limpeza de poços e chafarizes, procurando assegurar a salubridade da água ali disponibilizada (post. 62 e 138)46. Existem ainda algumas referências ao transporte. Assim, as posturas determinam que os açacais, a quem cabia a responsabilidade de transportar não somente cargas de água, mas igualmente cargas de telha, deviam dar cada carga de água proveniente do poço novo ou do poço da Boa Mulher a 16 dinheiros, dentro da vila velha, e a 4 dinheiros na cerca nova (post. 147A), naturalmente por razões de proximidade aos referidos poços. Não obstante, na postura 147B, datada de 21 de junho de 1382, prevê-se que a dessem a 6 dinheiros, independentemente do lugar da cidade. Conclusões. Para terminar, como síntese, devemos salientar que o presente estudo nos permitiu por em evidência os principais contributos do Livro das Posturas Antigas de Évora para a caracterização da forma como as autoridades municipais daquela cidade legislavam no âmbito do abastecimento e aprovisionamento alimentar da sua urbe. De facto, a regulamentação e o controlo do abastecimento alimentar da cidade, estão no âmago das preocupações das autoridades municipais, recaindo os maiores cuidados sobre o pão e a carne, sendo bastante numerosas as posturas relativas a carniceiros e, no campo da transformação, a atafoneiros, permitindo-nos, consequentemente, uma caracterização, bastante detalhada, destas atividades, as mais apertadamente regulamentadas, controladas e vigiadas da cidade. Outra grande questão, levantada neste conjunto documental, passa pela regulamentação da atividade comercial, uma das principais funções do espaço urbano. A definição dos locais, horários e condições de venda, o afilamento de pesos e medidas e o tabelamento de preços, salários e impostos ocupa, assim, uma grande percentagem das posturas feitas aprovar na câmara de Évora, permitindonos conhecer, com bastante pormenor, a forma como se organizava o acesso aos principais bens alimentares. Municipal de Évora, 1999. 45 Cf. COELHO, Maria Helena da Cruz – “A rede de comunicações concelhias nos séculos XIV e XV”. In COELHO, Maria Helena da Cruz (coord.) – As Comunicações na Idade Média. [s.l.]: Fundação Portuguesa das Comunicações, 2002, p. 87. 46 Acresce ainda uma outra postura, incompleta, que, igualmente, se referia aos chafarizes do concelho (post. 96). Na postura 241 encontra-se uma referência à realização de obras em determinado chafariz que não conseguimos identificar. 148 PARTE II Gerir Crises e Conflitos no Abastecimento Managing Crises and Conflicts in Supply Defender la ciudad contra el hambre: las políticas anonarias de los gobiernos urbanos en la Europa bajomedieval Denis Menjot1 Resumen Defender la ciudad consiste también en garantizar la seguridad de su abastecimiento en productos alimenticios de buena calidad todo el año y a precios asequibles. Como las crisis frumentarias pueden provocar motines que ponen en peligro el orden cívico, no puede haber una ciudad libre y pacífica sin una política anonaria. Esta exigencia, vinculada a la propia idea de bien público, fue percibida de forma muy precoz por las élites dirigentes, ya que el crecimiento urbano hacía imperiosa una política anonaria. El abastecimiento de la población fue uno de los principales retos a los que se enfrentaron las autoridades municipales en la baja Edad Media. En las ciudades europeas, las autoridades adoptaron toda una panoplia de medidas que tenían cuatro objetivos precisos: movilizar los recursos locales en beneficio exclusivamente de los habitantes de la ciudad, completar eventualmente estos recursos con importaciones, recurriendo a los mercados regionales, interregionales o/y internacionales, organizar y regular los circuitos de transformación y de commercialización, controlando el mercado, luchando contra la especulación y el alza de los precios y hacer respetar estas políticas creando oficios y administraciones anonarias. Este artículo quisiera exponer a muy grandes rasgos las políticas anonarias de los gobiernos urbanos en la Europa medieval. Palabras clave Ciudad; Abastecimiento; Hambre; Edad Media; Mercado; Políticas. 1 Universidad de Lyon/ UMR 5648 CIHAM. 152 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Defending and the city against hunger: the supply policies of urban governments in medieval Europe Abstract Defending the city is also ensuring a secure supply of good quality foodstuffs throughout the year at an affordable price. As frumentary crises crises can lead to riots that could jeopardise civic order, there can be no free and peaceful city without an annonian policy. This requirement, related to the idea of the public good, was perceived very early by the ruling elites, as urban growth made annonary policy imperative. Supplying the population was one of the challenges faced by municipal authorities in the late Middle Ages. In European cities, authorities adopted a series of measures with four main objectives: to harness local resources for the exclusive benefit of the city's inhabitants; to supplement, if necessary, these resources with imports by using regional, interregional and/or international markets; to organise and regulate the processing and marketing channels; to control the market and fight against speculation and price rises and to ensure that these policies are enforced by the creation of jobs and annonaries administrations. This article would like to outline the supply policies of urban governments in medieval Europe. Keywords City; Supply; Hunger; Middle Ages; Mercado; Policies. Introducción. Los poderes urbanos exaltan con insistencia a finales de la Edad Media su voluntad de gobernar para el bien común y su ideal del bien público en textos, discursos, rituales e imágenes y en una forma de gobierno que quiere impartir una justicia equitativa, defender la ciudad, garantizar la paz y la concordia, mantener los equipamientos públicos, promover los servicios sociales que son las instituciones hospitalarias y escolares, y también controlar la imagen que la ciudad da de sí misma2. 2 Respecto al bien común (bonus commune), ver los trece estudios reunidos en LECUPPREDESJARDINS, Elodie; VAN BRUAENE, Laure – De Bono Communi: The Discourse and Practice of the Common Good in the European City (13th-16th c.) Turnhout: Brepols, 2010. DEFENDER LA CIUDAD CONTR A EL HAMBR E [...] 153 Defender la ciudad consiste en que las autoridades públicas garanticen la integridad física y política de la ciudad y de la comunidad urbana que se expresa en primer lugar por la seguridad militar. Pero defender la ciudad es también garantizar el abastecimiento de los ciudadanos en productos alimenticios de buena calidad todo el año y a precios asequibles. La defensa contra el hambre fue uno de los principales retos a los que se enfrentaron las autoridades municipales en los últimos siglos de la Edad Media. Sin embargo su importancia varía mucho de una ciudad a otra y de una época a otra, según la densidad poblacional de la ciudad, ya sea que padezca de hambre, carestía o simples dificultades de abastecimiento, y a la que las autoridades no se enfrentan de la misma manera según su grado de autonomía y las políticas alimenticias de los “estados” para aquellas que están integradas en uno de estos3. Sin embargo como las crisis frumentarias y las carestías4 podrían ocasionar disturbios que podrían poner en peligro el orden cívico, no podría haber una ciudad libre y pacífica sin una política anonaria. Esta exigencia, vinculada a la propia idea del bien público, fue percibida de forma precoz por la élites dirigentes, ya que el crecimiento urbano hacía imperiosa una política voluntarista en materia de alimentación. Esta defensa de la ciudad contra el hambre y la carestía es, por lo tanto una cuestión política. El abastecimiento de la ciudad es un tema que, desde el libro pionero de Louis Stouff en 19725, los historiadores han estudiado mucho, sea en un capítulo de tesis o de una monografía, sea en trabajos especializados, colectivos6 o individuales, que tratan con más o menos detalles de los diferentes aspectos del suministro de uno o más 3 BENITO I MONCLUS, Père – “El rey frente a la carestía. Políticas frumentarais de estado en la Europa medieval”. In PALERMO, Luciano; FARA, Andrea; BENITO, Pere (eds.) – Políticas contra el hambre y la carestía en la Europa medieval. Lleida: Milenio, 2018, p. 41. 4 Recurrentes y no sólo en las grandes ciudades, ver BENITO I MONCLUS, Pere (ed.) – Crisis alimentarias en la Edad Media. Modelos, explicaciones y representaciones. Lleida: Milenio, 2013; OLIVA HERRER, Hipólito Rafael; BENITO I MONCLUS, Pere (eds.) – Crisis de subsistencia y crisis agrarias en la Edad Media. Sevilla: Servicio de Publicaciones de la Universidad, 2007. 5 STOUFF, Louis – Alimentation et ravitaillement en Provence au bas Moyen Âge. Paris, 1972. PULT QUAGLIA, A. M. – “Sistema annonario e commercio dei prodotti agricoli. Riflessoni su alcuni temi di ricerca”. Societa e Storia 15 (1982), pp. 181-198. 6 L’approvisionnement des villes de l’Europe occidentale au Moyen Âge et aux temps modernes. Ves Journées internationales d’histoire, 16-18 septembre 1983. Auch: Comité départemental du tourisme du Gers, Centre culturel de l’Abbaye de Flaran, 1985; MENJOT, Denis (ed.) – Manger et boire au Moyen Âge, Actes du colloque du Centre d’études médiévales de Nice. 2 vols. Paris: Les Belles Lettres, 1984; Alimentació i societat a la Catalunya Medieval, Barcelona: CSIC, 1988; ARIZAGA BOLUMBURU, Beatriz; SOLORZANO TELECHEA, Jésus (ed.) – Alimentar la ciudad en la Edad Media, Nájera. Encuentros Internacionales del Medievo, 2008. Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 2009; Alimentació i societat a la Catalunya Medieval, Barcelona: CSIC, 1988; CAVACIOCCHI, Simonetta (ed.) – Alimentazione e nutrizione, secc XIII-XVIII. Atti della ventottesima Settimana di studi, 22-27 aprile 1996. Firenze: Istituto Internazionale di Storia Economica F. Datini, 1997. 154 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL productos alimenticios (cereales7, carne8, pescado9 y vino10) en una o varias ciudades: zonas, circuitos y organización del abastecimiento, agentes del abastecimiento, infraestructuras económicas (mercados, graneros, molinos, almudies), profesionales de la alimentación y políticas económicas urbanas. Quisiera hacer una mención especial de tres obras recientemente publicadas que renuevan los enfoques. En la primera, José Luis Abad Escribano analiza el mercado de alimentos en las ciudades bajomedievales del antiguo reino de Toledo. De esta manera se abarcan, entre otros aspectos, el análisis pormenorizado de la actuación de los obligados al abasto, los procesos de formación de precios, la política de espacio e infraestructuras de los concejos, la gestión de la crisis por parte de los regimientos y la política de vigilancia del mercado11. En la segunda, Fabien Faugeron intenta entender de manera global la oferta de alimentos en una de las más importantes ciudades de la época, Venezia, teniendo en cuenta todos los sectores, desde el productor hasta el consumidor; la primera parte está dedicada a la oferta y a la política; la segunda considera la distribución y el consumo en la ciudad12. La tercera obra “está dedicado al estudio de las políticas económicas que a lo largo de la edad media fueron activadas para apoyar la alimentación de la población en las coyunturas negativas del ciclo económico, en especial durante las fases de carestía”13. Gracias a esta muy extensa bibliografía, dispersa en múltiples publicaciones, podemos destacar las principales características de las políticas concejiles para defenderse del hambre y de la carestías que encontramos en dos tipos principales de fuentes: legislativas y normativas (estatutos concejiles, estatutos de los oficios, libros de ordenanazas, reglamentos) y contables (libros de cuentas municipales y documentos contables). Estas fuentes son mucho más ricas y tempranas en las ciudades italianas del centro y del norte. 7 Un ejemplo entre muchos otros, RIERA I MELIS, Antoni – “‘Tener siempre bien aprovisionada la población’. Los cereales y el pan en las ciudades catalanas durante la baja Edad Media”. In ARIZAGA BOLUMBURU, Beatriz; SOLÓRZANO TELECHEA, Jésus (ed.) – Alimentar la ciudad en la Edad Media…, pp. 23-57. 8 Dos ejemplos entre muchos otros, STOUFF, Louis – “Ravitaillement et consommation à Carpentras e au XV siècle”. Annales ESC (1969), pp. 1431-1448; BONACHÍA HERNANDO, Juan Antonio – “Abastecimento urbano, mercado local y control municipal. La provisión y comercialización de la carne en Burgos (siglo XV)”. Espacio, Tiempo y forma. Serie III. Historia Medieval V (1992), pp. 85-162. 9 Un ejemplo entre otros, ÁLVAREZ FERNÁNDEZ, María – “Abastecimiento y consumo del pescado en Oviedo a finales de la Edad Media”. In La pesca en la Edad Media 1, Madrid: Monografías de la Sociedad Española de Estudios Medievales, 2009, pp. 71-86. 10 Un ejemplo entre otros, Vignes et vins au Moyen Âge. Pratiques sociales, économie et culture matérielle, L’Atelier du Centre de recherches historiques [En ligne], 12 | 2014, mis en ligne le 25 septembre 2014. URL: http://journals.openedition.org/acrh/5913. 11 ABAD ESCRIBANO, José Luis – Abastecer a la ciudad medieval: política concejil en el reino de Toledo, Alcalá de Henares: Universidad de Alcalá, 2017. 12 FAUGERON, Fabien – Nourrir la ville. Ravitaillement, marchés et métiers de l’alimentation à Venise dans les derniers siècles du Moyen Âge. Rome: Ecole Française de Rome, 2014. 13 PALERMO, Luciano; FARA, Andrea; BENITO, Pere (eds.) – Políticas contra el hambre y la carestía en la Europa medieval. Lleida: Milenio, 2018. DEFENDER LA CIUDAD CONTR A EL HAMBR E [...] 155 Para defender la ciudad contra el hambre, las autoridades urbanas adoptaron toda una panoplia de medidas que tenían cuatro objetivos precisos: movilizar los recursos locales en beneficio exclusivamente de los habitantes de la ciudad, completar eventualmente estos recursos con importaciones, organizar y regular los circuitos de transformación y de commercialización, controlando el mercado y garantizar la seguridad sanitaria. Estas disposiciones tenían como fin suprimir los factores de penuria que suponian el acaparamiento, la especulación y el despilfarro. Tienen une serie de consecuencias sobre las relaciones entre la ciudad y el campo, entre las ciudades vecinas, entre los grupos sociales en el seno de las ciudades. Con motivo de esta Escuela doctoral de otoño quisiera exponer a muy grandes rasgos las principales cuestiones que se plantean y deben abordarse en relación con las políticas anonarias de los gobiernos urbanos en la Europa medieval, en primer lugar, para garantizar el abastecimiento y la seguridad alimentaria, en segundo lugar, para controlar el mercado y la commercialización de los productos, en tercer lugar, para hacer respetar estas políticas y financiarlas. En conclusión, intentaré contestar a la pregunta de la eficacia de las políticas municipales contra el hambre. Por falta de tiempo, me limitaré a los tres productos básicos de la dieta medieval: cereales, carne y pescado, ignorando – pero las políticas no son diferentes – otros alimentos esenciales como la sal, el vino, los productos lácteos consumidos como la leche, la mantequilla y el queso y tampoco las frutas y verduras, estás cultivadas por muchos habitantes en sus huertos y jardines. 1. Las políticas de abastecimiento y de seguridad alimentaria. El suministro de productos de primera necesidad era más apremiante en las capitales de reinos, Paris y Londres, en las grandes ciudades, de los Paises bajos como Gante, Ypres, Brujas, Courtrai14 y en las de Italia del centro y del norte que en otros lugares en Europa, porque de las 79 ciudades occidentales con una población de más de 10.000 habitantes contados en el siglo XIV, 23 se encuentraban en la península italiana, de las cuales 20 se situaban al norte de Roma y 3 de ellas tenían más de 100.000 habitantes, Milán, Florencia, Venecia15. El protagonismo en el abstecimiento de las ciudades correspondía a la iniciativa privada, pero el equilibrio alimenticio era precario en muchas ciudades, a menudo a la merced de un incidente climático, de una invasión de parásitos y de disturbios militares o civiles. La acción combinada del crecimiento de las poblaciones urbanas y del inicio de las dificultades económicas, explica por qué en las ciudades del norte y NICHOLAS, David – Medieval Flanders. London: Longman, 1992. GINATEMPO, Maria; SANDRI, Lucia – L’Italia delle città. Il popolamento urbano tra Medioevo e Rinascimento (secoli XIII-XV). Florencia: Le Lettere, 1990. 14 15 156 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL del centro de Italia “a partir de mediados del siglo XIII, el abastecimiento ya no podía dejarse sólo a la iniciativa privada”16. Estas ciudades fueron pioneras en la adopción de medidas de política frumentaria17, medidas que las otras ciudades de Europa Occidental comenzaron a implementar progresivamente desde finales del siglo XIII. 1.1 La movilización de los recursos locales. Para satisfacer las necesidades de los vecinos en productos alimenticios de primera necesidad cuya demanda se mantenía a pesar de que la elasticidad del consumo varíase en cantidad y calidad, las ciudades disponían de los recursos de sus “hinterlands” (zonas periurbanas, contadi, alfoces), cuya importancia variaba mucho según su superficie y la riqueza de sus tierras18. La fertilidad de algunos de estos territorios periurbanos, como por ejemplo, las huertas de Valencia y Murcia, la Campiña y la Ribera de Sevilla, las “hortillonages” d’Amiens, era suficiente para satisfacer las necesidades de los ciudadanos y aún más19, lo que explica que los dirigentes de ciertas ciudades se preocupaban por el abastecimiento sólo excepcionalmente para responder a una situación excepcional20. Pero numerosos factores contrariaban la producción y el abastecimiento en casi todas las ciudades: los bajos rendimientos, los caprichos del clima, la guerra y la inseguridad, la incapacidad de la producción para seguir el ritmo del crecimiento de la población en los siglos XII y XIII y la llegada de campesinos refugiados mientras que la agricultura estaba escasa de brazos debido a la despoblación en los siglos XIV y XV, sin olvidar las malas condiciones de transporte y almacenamiento. Es por eso que las metrópolis italianas, trataron de ampliar, a veces por la fuerza, sus zonas de suministro. La primera solución para resolver el problema de la subsistencia consistió en que las autoridades movilizaron todos los recursos locales, evitando en primer lugar que una parte de las cosechas se perdiera por llegar tarde a recogerlas. En Murcia, 16 PALERMO, Luciano – “Politiche contro la carestia e ciclo economico in Europa tra XIII e XIV secolo”. In PALERMO, Luciano; FARA, Andrea; BENITO, Pere (eds.) – Políticas contra el hambre …, p. 27. 17 DAMERON, Georges – “Feeding the Medieval Italian City-State: Grain, War and Political Legitimacy in Tuscany, c.1150-c. 1350”. Speculum 92/4 (2017), pp. 976-1019; FAUGERON, Fabien – Nourrir la ville…, pp. 19-89. 18 MENJOT, Denis – “La ville et ses territoires dans l’Occident médiéval: un système spatial. Etat de la question”. In La ciudad medieval y su influencia territorial, Encuentros internacionales del Medievo, Nájera, 2006. Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 2007, pp. 451-492. 19 FOSSIER, Robert – La terre et les hommes en Picardie jusqu’à la fin du XIIIe siècle. Paris-Louvain: Nauwelaerts, 1968, calculó que la ciudad de Amiens, en el siglo XIII, con sus 20.000 habitantes, consumía 8.000 toneladas de cereales al año, lo que correspondía a una zona de abastecimiento con un radio de 20 km alrededor de la ciudad. 20 Como observan, por ejemplo, para Millau, GARNIER, Florent – Un consulat et ses finances: Millau (1187-1461). Paris: CHEFF, 2006, p. 601 y para Tarascon, HÉBERT, Michel – Tarascon au XIVe siècle. Histoire d’une communauté urbaine provençale. Aix-en-Provence: Édisud, 1979, p. 161. DEFENDER LA CIUDAD CONTR A EL HAMBR E [...] 157 por ejemplo, en el momento de la siega, los dirigentes llegaron a obligar todos los jornaleros a trabajar únicamente en recolección de las cosechas bajo la amenaza de confiscar sus herramientas y multarlos. Para intentar encontrar un numero suficiente de pescadores el concejo murciano llevaba a cabo una política activa de incitación y ayudas; les concedió subvenciones anuales sustanciales y privilegiaba a algunos de ellos con indemnizaciones para que renoven su material, barcas y redes incautadas o destrozadas21. La defensa y el desarrollo de su zona de avituallammiento forma parte asimismo de las prerogativas urbanas. Los robos de cosechas estaban castigados con severas penas22. Para evitar una posible penuría y una escasez de determinados productos, las autoridades tomaron una serie de medidas y adoptaron una política de desarrollo en el campo de algunas producciones agrícolas de primera necesidad, cereales y vino en prioridad, y reservaron pastos a los rebaños de los ciudadanos. Las ciudades italianas tenían un hinterland (contado) cuya producción organizaban, guíaban y estimulaban23. Por ejemplo, Verona llevó a cabo un importante trabajo sistemático para secar los pantanos del contado. Los dirigentes de Florencia y otras ciudades toscanas obligaron a los campesions a mejorar las rotaciones y a regular la trashumancia24. Fabien Faugeron ha podido poner de manifiesto que Venecia, aplicó una verdadera política de producción: las autoridades impusieron los cultivos, incluso suministrando las semillas y tomaron une serie de medidas para preservar los recursos y los equilibros naturales, por ejemplo prohibiendo la pesca durante los períodos de reproducción de los peces. Algunos concejos castellanos trataron de garantizar que el cereal no se viera desplazado por cultivos más rentables. Es el caso, por ejemplo, de la villa de Cuéllar, cerca del importante centro de producción textil de Segovia, que estableció limites a la producción de plantas tintóreas. En Toledo, si a comienzos del siglo XV, el concejo obligó a los cultivadores de vid a plantar una cantidad equivalente de cereal25, las políticas dirigidas a la orientación productiva del espacio agrario estaban sujetas a tensiones por la proliferación de dehesas herbáceas para el ganado que incidía en el aprovisionamiento de la ciudad, al esplazar los 21 MENJOT, Denis – Murcia, ciudad fronteriza en la Castilla bajomedieval. Murcia: Real Academia Alfonso X el Sabio, 2008, pp. 261-262. 22 Por ejemplo, el 25 de junio y el 27 de julio de 1334, los jurados de Tortosa sancionaron con pena de muerte los hurtos nocturnos de mies en los campos y las eras, CURTO I HOMEDES, Albert – La intervenció municipal en l’abastement de blat d’una ciutat catalana, Tortosa, segle XIV. Barcelona: Fundació Salvador Vives i Casajuana, 1988, p. 211. 23 PINTO, Giuliano – “‘Ut in civitate copia victualium habeatur’. Le città, i territori, le produzione agricole (Italia, secoli XIII-XV)”. In PALERMO, Luciano; FARA, Andrea; BENITO, Pere (eds.) – Políticas contra el hambre…, pp. 193-207. 24 LA RONCIERE, Charles-Marie de la – “Alimentation et ravitaillement à Florence au XIVe siècle”. Archeologia Medievale 8 (1981), pp. 183-192. 25 IZQUIERDO BENITO, Ricardo – Abastecimiento y alimentación en Toledo en el siglo XV. Toledo: Universidad de Castilla-La Mancha, 2002, p. 35. 158 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL cultivos de cereales, pero que eran extremadamente rentables para sus proprietarios, en mayor parte miembros de la élite locale, quienes los arrendaban como pastos invernales para los ganados trashumantes procedantes del norte26. Así pues, se ha ido creando gradualmente un paisaje agrícola renovado alrededor de las ciudades y adaptado a sus necesidades. Para tomar sólo un ejemplo, este es el caso del territorio de la ciudad catalana de Cervera, con el desarrollo del cultivo de la vid, de los cereales, del azafrán como producto comercial y el de la ganadería ovina para abastecer de lana a este gran centro de la industria textil27. Las autoridades municipales adoptaron una pólitica protectionista, garantizando a los productores un monopolio de venta, prohibiendo las exportaciones mientras que la ciudad no estuviera lo suficientemente avituallada y reservándose la concesión de licencias de exportación. Por ejemplo, los dirigentes de Marsella, cuyo territorio plantado de viñas sólo producía una cantidad ínfima de cereales, en los dos últimos decenios del siglo XIV, prohibieron a cualquier persona de Marsella o de cualquier otro lugar, exportar trigo bajo pena de confiscación del barco, de las bestias de carga y de la mercancía y de una multa considerable; alentaron la denuncia prometiendo al denunciante un tercio o la mitad de la multa28. En el siglo XIV, los ediles de Barcelona instauraron prohibiciones de exportación de grano (vetita bladi) hasta las próximas cosechas y las otras localidades catalanas se apresuraban a adopter una medida similar29. Siena y otras ciudades toscanas, en la primera mitad del siglo XIV practicaban lo que W. Bowsky llama la “política del divieto”30, que consistía en controlar las exportaciones – no sólo de productos de primera necesidad – y permitirlas sólo con una licencia. Las autoridades reforzaron la vigilancia, instalando guardias en las puertas y poternas y en distintos puntos del recorrido que hacían los transportistas. Las ciudades de Flandes obtuvieron de sus príncipes la prohibición de exportar cereales, pero las clases dominantes tendían a favorecer la libre exportación porque vivían de las rentas de la tierra y se beneficiaban de los altos precios y de la libertad del 26 MOLENAT, Jean-Pierre – Campagnes et monts de Tolède du XIIe au XVe siècle. La terre et la ville. Madrid: Casa de Velázquez, 1997, p. 498; Toledo no era un caso especial; esta tensión entre ganaderos y productores de cereales se podía encontrar en muchas otras ciudades de los reinos de Castilla o de Valencia, RUBIO VELA, Agustín – “Valencia y el control de la producción cerealista del reino en la baja Edad Media. Origenes y planteamiento de un conflicto”. Demografía y sociedad en la España bajomedieval. Sesiones de trabajo. Zaragoza: Universidad de Zaragoza, 2002, pp. 33-57. 27 VERDÉS PIJUAN, Père – “Paisatge agrari i abastament a Cervera (1370-1380)”. Miscel-lània Cerverina 9 (1994), pp. 29-67. 28 DROGUET, Alain – “Une ville au miroir de ses comptes: les dépenses de Marseille à la fin du XIVe siècle”, Provence Historique. fascicule 120 (1980), pp. 171-210. 29 RIERA I MELIS, Antoni – “Crisis cerealisticas, políticas públicas de aprovisionamiento, fiscalidad y seguridad alimentaria en las ciudades catalanas durante la Baja Edad Media”. In PALERMO, Luciano; FARA, Andrea; BENITO, Pere (eds.) – Políticas contra el hambre…, 2018, pp. 259-261. 30 BOWSKI, William, M – Un comune italiano nel Medioevo, Siena sotto il regime dei Nove (1287-1355). Trad. Stephen EPSTEIN. Bologna: Il Molino, 1986, pp. 284-285. DEFENDER LA CIUDAD CONTR A EL HAMBR E [...] 159 comercio31. En Castilla, la monarquía estableció una política similar de prohibición de sacar del reino las “cosas vedadas”,32 salvo mediante licencias que los reyes ortorgaron de manera profusa y que muchas veces las Cortes denunciaron, pero sin éxito porque la concesión de estas licencias proporcionaba a la monarquía una fuente de ingresos y también un instrumento importante para retribuir fidelidades políticas. Los monarcas nombraron agentes especiales, los alcaldes de las sacas, para vigilar que las “cosas vedadas” no se exportaran, buscar a los infractores e infligirles las multas correspondientes. Sin embargo, el grano podía circular libremente en el interior de la Corona de Castilla lo que ocasionó enfrentamientos con la comunidades rurales y entre las ciudades y que las Cortes también denunciaron en varias ocasiones33. Sólo durante períodos excepcionales y breves en los que los alimentos básicos eran abundantes, las autoridades municipales castellanas prohibieron las importaciones y pidieron al rey que permitiera a los productores que exportaran su producción. En Portugal, la política frumentaria estuvo activa desde principios del siglo XIV, pero los gobernantes de Lisboa, Oporto, Santarém tuvieron que apelar varias veces a la autoridad del rey para conseguir la prohibición de exportar la producción local y el permiso de requisarla en períodos críticos34. En Inglaterra, la carta mercatoria, publicada en 1303, otorgaba, entre otros privilegios, la libertad de exportar el grano contra el pago de una tasa al rey35. 1.2 La apelación a las importaciones. Aunque los territorios urbanos esten estrictamente controlados, el crecimiento urbano hacía que la producción local a veces fuera insuficiente para alimentar la población. Cuantas más pobladas estaban las ciudades más rápido agotaban las cosechas del 31 VAN UYTVEN, Raymond – “L’approvisionnement des villes des anciens Pays-Bas au Moyen Âge”. In L’approvisionnement des villes…, p. 83; VAN UYTVEN, Raymond – Production and Consumption in the Low Countries. Aldershot: Ashgate 2001. 32 Las líneas principales se esbozaron en las Cortes de Jérez de 1268 y quedaron definido definitivamente en el Ordenamiento de sacas promulgado en las Cortes de Guadalajara de 1390 que estableció la prohibición legal de exportación de pan, trigo, cebada, centeno, carne, ganado entre otros productos (oro, plata, moneda, caballos, legumbres), LADERO QUESADA, Miguel-Ángel – Fiscalidad y poder real en Castilla (1252-1369). Madrid: Editorial Complutense, 1993, pp. 157-164; MENJOT, Denis – “Economie et fiscalité: les douanes du royaume de Murcie au XIVe siècle”. In Les Espagnes médiévales. Aspects économiques et sociaux. Nice: Mélanges Jean Gautier Dalché, 1983, pp. 33-48. 33 Sobre las denuncias en Cortes, ver OLIVA HERRER, Hipólito Rafael – “La política de la carestía en Castilla en el siglo XV”. In PALERMO, Luciano; FARA, Andrea; BENITO, Pere (eds.) – Políticas contra el hambre…, pp. 135-141. 34 GONÇALVES, Iria – “Defesa do consumidor na cidade medieval: os produtos alimentares (Lisboa, séculos XIV-XV)”. Arquipélago, História, I/1 (1995), pp. 35-43; estas medidas a menudo no fueron suficientes para evitar el aumento de los precios de los alimentos. 35 PALERMO, Luciano – ““Politiche contro la carestia…”, p. 20. 160 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL contado36. Las malas cosechas agravaban la situación así como el decrecimiento de las zonas cultivadas después de la Peste Negra, lo que obligaba las grandes ciudades a controlar las áreas de aprovisionamento y las vías de circulación para traer las compras de excedentes de trigo de regiones cercanas y menos urbanizadas37. Se organizaron flujos comerciales regionales más o menos permanentes que impulsaban la demanda constante de las metrópolis y la demanda más irregular de las ciudades secundarias. Por ejemplo, en el siglo XIV, los florentinos compraban la mayor parte de su trigo (58%) en las regiones cercanas de la Toscana, Marsella, en Provenza y Languedoc. Las grandes aglomeraciones urbanas, como Florencia, Venezia, Paris, Londres o Gante, sino también muchas otras villas durante los períodos de escasez, tenian que recurrir a los mercados interregionales o/y internacionales. Las ciudades de Italia central y septentrional dependían del mercado mediterráneo y no sólo por el trigo, ya que también importaban ganado y pescado, principalmente atún. La oferta de trigo venía del sur de Italia y de Sicilia, sobre las que las grandes ciudades del norte ejercían una dominación económica de tipo colonial. El tráfico de trigo siciliano era controlado por los comerciantes toscanos que desde 1420 sufrían una fuerte competencia de los catalanes38. Los gobiernos urbanos de las grandes ciudades procuraban regular los grandes circuitos de intercambio del comercio alimentario. En Florencia, en 1411, los agentes del abastecimiento intercambiaron un centenar de cartas con cuarenta y ocho ciudades susceptibles de proporcionarles trigo, desde Londres hasta Alejandría39. En 1303-1304, al inicio de una carestía, los dirigentes de Barcelona desplegaron también una gran actividad diplomática antes los grandes productores de cereales de Cataluña y el sultán de Marruecos para facilitar a los mercaderes barceloneses las compras de grano40. Murcia se abastecía en Andalucía (Córdoba y Sevilla). Venecia, como es bien sabido, se transformó en un Estado mercader a partir del siglo XIV y 36 Cinco meses bastaban en Florencia antes de la Peste Negra, LA RONCIERE, Charles-Marie de la – “Alimentation et ravitaillement à Florence…”, p. 37; PINTO, Giuliano – “Approvigionamento e mercato dei prodotti alimentari nella Firenze del Trecento”. In ARIZAGA BOLUMBURU, Beatriz; SOLORZANO TELECHEA, Jésus (ed.) – Alimentar la ciudad en la Edad Media. Nájera, Encuentros Internacionales del Medievo, 2008. Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 2009, p. 235 estima que los florentinos necesitaban unas 20 000 toneladas de cereales por año. 37 Cuando la necesidad se hizo urgente, Pisa y Florencia en el siglo XIV enviaban emisarios y agentes primero al mercado regional, MAGNI, Stefano Giuseppe – “Agenti ed emissari nelle politiche per agli approvvigionamenti cerealicoli delle città comunali nel Trecento. I casi di Firenze e Pisa”. In Políticas contra el hambre…, pp. 209-218. 38 BRESC, Henri – Un monde méditerranéen: économie et société en Sicile 1300-1450. Rome: Ecole Française de Rome, Palermo, 1986. 39 LA RONCIERE, Charles-Marie de la – “L’approvisionnement des villes italiennes au Moyen Âge…”, p. 46. 40 SERRA I PUIG, Eva – “Els cerals a la Barcelona del sigle XIV”. In Alimentació i societat a la Catalunya Medieval. Barcelona: CSIC, 1988, p.77; RIERA I MELIS, Antoni – “Crisis cerealisticas, políticas públicas de aprovisionamiento, fiscalidad y seguridad alimentaria en las ciudades catalanas durante la Baja Edad Media”. In PALERMO, Luciano; FARA, Andrea; BENITO, Pere (eds.) – Políticas contra el hambre..., p. 255. DEFENDER LA CIUDAD CONTR A EL HAMBR E [...] 161 utilizó casi todos los mercados del mundo conocido para su alimentación: las tierras firmas, las dos riberas del mar Adriático, el Mediterraneo oriental – en primer lugar su imperio colonial de la Mar negra – y el Mediterraneo occidental, zona secundaria y tardía, que se desarrolló en el XV cuando Venezia perdió una parte de su imperio colonial41. Sevilla podía seguir exportando parte de su grano a Cataluña en la primer mitad del siglo XIV, pero el tráfico estaba muy controlado por los reglamentos de la monarquía42. Cataluña y Mallorca importaban trigo de Cerdeña y de Sicilia desde la conquista de la isla en 1282. En Marsella, en las dos últimas décadas del siglo XIV, las autoridades concluían contratos con capitanes de barco que se comprometían a ir a cargar el trigo en uno o varios puertos que les sean designados. A menudo, la ciudad negociaba directamente con comerciantes extranjeros que hacían grandes entregas de grano a la ciudad43. Estos largos circuitos eran también utilizados para el ganado en esta Europa que Ramón Banegas no duda en llamar “carnívora”44. Es el caso, por ejemplo del comercio de bueyes húngaros, que fueron llevados a Nuremberg, y el de bueyes polacos que los “cowboys” medievales conducían hasta Colonia. En el siglo XV, Frankfurt se abasteció de cerdos de la Baja Sajonia y Moravia vía Nurembergo. El transporte de ganado a larga distancia obligó a las ciudades a crear pastos en sus alrededores para que los animales engordaran45. Si los ríos y los lagos del entorno de cada ciudad proporcionaban la mayoría del pescado para las ciudades no costeras, el pescado de mar se consumía, seco o ahumado, en ciudades muy alejadas de las costas. El mejor ejemplo, bien conocido, es el de los arenques embarrilados de Escania que alimentaban un tráfico de larga distancia que en todos los casos obligaba a los municipios a aplicar uan ambiciosa política de acondicionamiento. El pescado galiciano se consumía en lugares tan alejados de la costa como Burgos, Cuenca, Valladolid e incluso Andalucía46. Para facilitar las importaciones, las autoridades urbanas tomaron medidas coyunturales de incentivación otorgando a los mercaderes extranjeros que importaban cereales, carne o pescado, moratorias para deudas, permisos de vender libremente los cereales en la ciudad, invertir el producto en mercancías y exportarlas sin restricciones, préstamos de sumas proporcionales a la cantidad de grano que FAUGERON, Fabien – Nourrir la ville..., pp. 293-432. GARCIA FERNANDEZ Manuel – El reino de Sevilla en tiempos de Alfonso XI (1312-1350), Sevilla: Diputacion de Sevilla, 1989. 43 DROGUET, Alain – “Une ville au miroir de ses comptes…”, pp. 186-188. 44 BANEGAS LÓPEZ, Ramón – Europa carnívora. Comer carne en el mundo rural bajomedieval. Gijon: Trea, 2012. 45 IRSIGLER, Franz – “L’approvisionnement des villes de l’Allemagne occidentales jusqu’au XVIe siècle”. In L’approvisionnement des villes…, pp. 125-127. 46 GUERRERO NAVARRETE, Yolanda – “Consumo y comercialización de pescado en las ciudades castellanas de la baja Edad Media”. In La pesca en la Edad Media…, pp. 235-262. 41 42 162 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL prometieron traer, precios de venta garantizado, exención del pago de tasas y peajes. Es el caso, por ejemplo, de Murcia cuando en 1375 el concejo eximió de molienda – tasa municipal por moler los cereales – a los mercaderes que importaban cereales. El municipio de Arles abolió la “gabela” de los cereales47. Algunos concejos decidieron otorgar una prima variable según la cantidad, el tipo de cereales y el origen, a todos aquellos que trajeran trigo al mercado, lo que podía crear una competencia entre ciudades vecinas. Es el caso, por ejemplo, en Arles y en Marsella a finales del siglo XIV para los importadores de cereales por mar que recibián un avantagium, a Barcelona o a Lovaina para la importación de pescado en el siglo XV. Bruselas compró al Duque en 1460 el derecho de “louche” que se cobraba en especie sobre las transacciones48. En 1279-1280, los dirigentes de la ciudad de Metz decidieron conceder salvoconductos a todos los que importaban a la ciudad pescado salado o fresco y otros productos alimenticios, incluidos los cereales49. El crecimiento de la población, las dificultades de abastecimiento y la carestía hicieron que, a finales del siglo XIII y principios del XIV, el problema del abastecimiento alcanzara tal grado de gravedad que los municipios italianos, que hasta entonces se habían contentado con comprar en épocas de hambruna, se vieron obligados a organizar un verdadero sistema de compras oficiales. Esta política está dirigida principalmente al trigo y a otros cereales menores como la cebada, pero también a la carne. Todas las ciudades se ocuparon de esto más o menos febrilmente en tiempos de hambruna. Algunas ciudades se encargaron del suministro y de la distribución del cereal, así, Brujas e Ypres lo hicieron 16 y 13 veces respectivamente durante el siglo XV50. Para facilitar el transporte de mercancías, las ciudades trataron de mejorar las carreteras y las vías fluviales para permitir que muchas aldeas, a través de los mercados locales, participaran regularmente en el suministro del centro urbano51. Así, por ejemplo, ya en 1251, Ypres hizo excavar un canal hacia el Yser y Bruselas canalizó el Senne hasta Vilvoorde en la década de 143452. El Arno fue arreglado para la navegación con la creación de puertos y el Po con la excavación de canales. En la Toscana, para que la carretera que bordea el Arno sea accesible en todas las estaciones y en STOUFF, Louis – Ravitaillement et alimentation en Provence…, p. 74. VAN UYTVEN, Raymond – “L’approvisionnement des villes des anciens Pays-Bas…”, p. 88. 49 SCHNEIDER Jean – La ville de Metz aux XIIIe et XIVe siècles. Nancy: imprimerie Thomas, 1950, p. 47 48 213. VAN UYTVEN, Raymond – “L’approvisionnement des villes des anciens Pays-Bas…”, p. 89. Europa también había experimentado una revolución en el transporte terrestre, DERVILLE, Alain – “La première révolution des transports continentaux (c. 1000-c. 1300)”. Annales de Bretagne et des pays de l’Ouest 85/2 (1978), pp. 181-205. 52 VAN UYTVEN, Raymond – “L’approvisionnement des villes des anciens Pays-Bas…”, p. 87. 50 51 DEFENDER LA CIUDAD CONTR A EL HAMBR E [...] 163 todos los tiempos, se pavimentó con grava y se consolidaron sus arcenes53. 1.3 El uso de la fuerza: desvíos e incautaciones. Algunas ciudades mobilizaban de manera autoritaria los recursos de las comarcas vecinas, por ejemplo, con el sistema de las “etapas” en los antiguos Países Bajos, que forzaba a los comerciantes a vender sus productos alimentarios en unas determinadas ciudades54. El derecho de escala se desarrolló gradualmente entre 1337 y 136655. En 1438, la ciudad de Dordrecht decretó que todos los cereales recolectados en el sur de Holanda debían ser presentados en su mercado tres días después de su cosecha. Este sistema que canalizaba el tráfico hacia ciertas ciudades constituía una verdadera ventaja para la economía local y protegía a los habitantes de la ciudadesescalas de la volatilidad del mercado de granos, pero dificultaba el movimiento de las mercancías56. En tiempos de hambruna, se sintió sobre todo como un favor injusto en beneficio de las ciudades-etapas, lo que provocó luchas abiertas entre las ciudades, las grandes favoreciendo sus intereses por encima de las pequeñas. Lo mismo ocurrió con Colonia, que, tras haber obtenido un conjunto de privilegios de “etapa” de comercio por el Rin durante el siglo XIII, se estableció como “gateway market” donde las mercancías que venían por el río de lugares distantes y cercanos se distribuían en varias direcciones57. En el siglo XV, las autoridades de Zaragoza obligaron a todos los que transportaban cereales por el Ebro a descargar un tercio de su carga y a venderla a la ciudad a cambio de lo cual recibían la licencia necesaria para continuar su viaje58. Barcelona y Valencia pudieron obtener una ventaja comparable gracias a los privilegios otorgados por la monarquía que les permitieron ampliar y reforzar su capacidad de intervención en el comercio ceralista en detrimento de los intereses de otras ciudades. Barcelona obtuvo en 1329 de Alfonso el Benigno el privilegio Vi LA RONCIERE, Charles-Marie de la – “L’approvisionnement des villes italiennes au Moyen Âge…”, p. 40; RACINE, Pierre – “Aperçu sur les transports fluviaux sur le Pô au bas Moyen Âge”. In Annales de Bretagne, 85: Les transports en Moyen Âge. Actes des congrès de la Société des historiens médiévistes de l’enseignement supérieur public, 7e congrès, Rennes, 1976 (1978), pp. 181-198. 54 Sobre la historia de las “etapas” de Douai y Gante ver HOWELL, Martha; BOONE, Marc – “Becoming early modern in the late medieval Low Countries”. Urban History 23, 3 (1996), pp. 311-316. 55 TITS-DIEUAIDE, Marie-Jeanne – “Le grain et le pain dans l’administration des villes de Brabant de de Flandre au Moyen Âge”. In L’initiative publique des communes en Belgique, fondements historiques, ancien régime, actes du colloque de Spa de 1982. Bruxelles: Crédit communal de Belgique, 1984, pp. 453-494. 56 VAN UYTVEN, Raymond – “L’approvisionnement des villes des anciens Pays-Bas… ”, p. 81. 57 WESTSTRATE, Job Andries – “Foodstuffs in the late medieval Rhine trade”. In ARIZAGA BOLUMBURU, Beatriz; SOLÓRZANO TELECHEA, Jésus (eds.) – Alimentar la ciudad en la Edad Media, Nájera, Encuentros Internacionales del Medievo, 2008. Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 2009, pp. 276-277. 58 FAlCÓN PÉREZ, Isabel – “Aprovisionamiento y sanidad en Zaragoza en el siglo XV”. Acta Historica et Archaeologica Mediaevalia 19 (1988), pp. 127-144. 53 164 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL vel gratia que le daba el derecho de interceptar y desviar hacia su puerto los navíos cargados de cereales en tránsito por sus aguas territoriales. Este privilegio le garantizó un suministro en tiempos de crisis en detrimento no sólo del abastecimiento de otras ciudades y villas del Principado sino también de los légitimos intereses de los mercaderes y de las regiones productoras y exportadoras de grano de otras zonas de Cataluña y de la Corona. Valencia recibió el mismo privilegio a principios del año 1330. Estas dos ciudades, que habían construido una larga área de abastecimiento, podían controlar la circulación y distribución cerealista en el Principado y el reino, territorios sobre los cuales “reivindican su capitalidad política, una forma de imperialismo cittadino en materia de política alimentaria”59. En caso de hambruna, algunas ciudades costeras recurrían a actos de piratería, abordando los barcos que pasaban frente a la costa y obligándolos a descargar sus cargas de grano; fue el caso, por ejemplo, de Marsella en 1376 y 1385 y de muchas otras ciudades como Génova, Nápoles, Tortosa, Tarragona … 2. Las políticas de distribución y de control del mercado. El control del mercado fue la primera respuesta a las revueltas que se produjeron como consecuencia de las dificultades de abastecimiento y del aumento de los precios en muchas ciudades en desarrollo: Piacenza (1250), Parma (1255), Bolonia (1256), Milán (1258), Siena (1262), Florencia (1266), pero también Douai, Gante, Ruán, Arras, Toulouse entre otras60. La organización de la distribución de los productos alimenticios a manos de las autoridades municipales es un fenómeno generalizado en las ciudades medievales, en las que era permanentemente necesaria para suprimir todos los tráficos61. Los objetivos seguían siendo los mismos: favorecer el comercio local al permitir a cada uno que adquiriera lo necesario para alimentar su casa, proteger a los consumidores, garantizándoles productos de calidad a precios razonables, evitando los cárteles, los monopolios, el acaparamiento y cualquier especulación. Pero si las autoridades municipales tenían los mismos objetivos y si sus intervenciones en el mercado 59 BENITO I MONCLUS, Père – “El rey frente a la carestía …”, p. 39; RIERA I MELIS, Antoni – “Crisis cerealisticas, políticas públicas de aprovisionamiento, fiscalidad y seguridad alimentaria en las ciudades catalanas durante la Baja Edad Media”. In PALERMO, Luciano; FARA, Andrea; BENITO, Pere (eds.) – Políticas contra el hambre …, p. 269. 60 MOLLAT, Michel; WOLFF, Philippe – Ongles bleus, Jacques et Ciompi, Les révolutions populaires en Europe aux XIVe et XVe siècles. Paris: Calmann-Lévy, 1970, los dos primeros capítulos; BOURIN, Monique; CHERUBINI, Giovanni; PINTO, Guliano (dirs.) – Rivolte urbane e rivolte contadine nell’Europa del Trecento: un confronto. Florence: Firenze University Press, 2008. 61 A título de ejemplos, ver CUEVES GRANER, Amparo – “Abastecimientos de la ciudad de Valencia durante la Edad Media, Saitabi 12 (1962), pp. 141-167; PUÑAL FERNÁNDEZ, Tomás – El mercado en Madrid en la Baja Edad Media. Estructura y sistemas de abastecimiento de un concejo medieval castellano (siglo XV). Madrid: Caja de Ahorros y Monte de Piedad de Madrid, 1992. DEFENDER LA CIUDAD CONTR A EL HAMBR E [...] 165 presentaban gran uniformidad y se reiteraron en los distintos núcleos urbanos, los métodos para lograr los objetivos podían diferir porque dependían de si las ciudades pudieran legislar directamente para regular el mercado o con la monarquía o los gremios62. La policía del comercio está contenida en las numerosas ordenanzas municipales, a menudo muy detalladas, y crecientemente completadas para regular los nuevos problemas que se planteaban. 2. 1 La defensa del consumidor: organización y regulación de la distribución. Con el fin de presentar la venta en las mejores condiciones, los estatutos y la legislación complementaria establecieron todo un sistema de protección del consumidor a partir del siglo XIII, en primer lugar en los municipios italianos y luego en las otras ciudades europeas. La venta de los distintos productos tenía que efectuarse obligatoriamente en lugares expresamente asignados por la autoridad ciudadana, localizados en diversos puntos del espacio urbano, por una parte, para evitar los fraudes y para que nadie pudiera librarse de las tasas que se cobraban por los intercambios y, por otra parte, para favorecer el comercio local concentrándolo en lugares, horarios y condiciones determinados. Muchas ciudades penalizaban el comercio fuera de los mercados y restringían la compra de grano a foráneos, estableciendo un plazo de tiempo para facilitar la compra de pan por los habitantes de la ciudad. Las autoridades se preocupaban también por la moralidad de las transacciones, exigíendo que todos los vendedores utilizaran medidas y pesos “leales, reconocidos y justos”63. Les estaba estrictamente prohibido a los molineros y a las panaderas mezclar harinas de cereales distintas y a los pescadores y a los carniceros mezclar en los puestos pescados y carnes de distinto tipo. Los dirigentes emitieron normativas sobre la elaboración del pan y su precio que debía estar en relación con el precio del grano. El comercio de la carne y del pescado era objeto de un trato particular ya que se trataba de mercancías muy perecedoras que tenían que venderse muy rápido para que se pudieran consumir. Con el fin de que los compradores supieran a qué 62 Para la gestión municipal de las crisis frumentarias remito a los trabajos muy completos y detallados de Antoni Riera I Melis sobre las ciudades catalanas, entre muchos otros, RIERA I MELIS, Antoni; PÉREZ-SAMPER, María Ángeles; GRAS, Mercè – “El pan en las ciudades catalanas (siglos XIV-XVIII)”. In CAVACIOCCHI, Simonetta (ed.) – Alimentazione e nutrizione, secc XIII-XVIII. Atti della ventottesima Settimana di studi, 22-27 aprile 1996. Firenze: Le Monnier, Istituto Internazionale di Storia Economica F. Datini, 1997, pp. 378-384; RIERA I MELIS, Antoni – “El mercado de los cereales en la Corona catalanoaragonesa: la gestión de las carestías durante el segundo tercio del siglo XIII”. In BOURIN Monique; DRENDEL John, MENANT François (eds) – Les disettes dans la conjoncture de 1300 en Méditerranée occidentale. Rome: EFR, 2011, pp. 87-143; RIERA I MELIS, Antoni – “Crisis cerealisticas, políticas públicas de aprovisionamiento…”, pp. 254-274. 63 DAVIS, James – Medieval Market Morality: Life, Law and Ethics in the English Marketplace, 12001500. Cambridge: Cambridge University Press, 2012. 166 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL atenerse, los carniceros tenían que exponer por separada la carne del día y la viejay la de los animales ya muertos. Los vendedores tenían que guardar lo máximo posible en las banastas y el pescado que hubiera lllegado hacia más de veinticuatro horas tenía que venderse a parte. En algunas ciudades de la Corona de Castilla como Burgos, Cuenca o Murcia, las autoridades se encargaban de regular cada año la venta de carne estableciendo un acuerdo con un número determinado de carniceros a cada uno de los cuales asignaba un puesto en las carnicerías en el que cortarían, pesarían y venderían la carne64. El sistema de venta era el de “obligados” que consistía a arrendar anualmente cada tabla de la carnicería a un “obligado”, que se comprometiá a abastecer de carne a la ciudad de acuerdo con la calidad y a precios establecidos por los dirigentes. A cambio disfrutaba del monopolio de venta de este producto y de la utilización de las dehesas concejiles cercanas a la ciudad65. La búsqueda de “obligados” fue siempre un problema grave para los concejos porque no siempre hubo personas, carniceros o no, dispuestas a encargarse del abastecimiento urbano a los precios fijados por las autoridades, considerados demasiado bajos. Las autoridades regulaban también la industria alimenticia, el trabajo y la organización de los distintos circuitos de distribución: productores, distribuidores, regatones. Se estaban asegurando de que la ciudad dispusiera de los espacios y del material adecuado para recuperar, almacenar, garantizar las transformaciones indispensables de los productos alimenticios y venderles. Así los paisajes urbanos se modificaron con la aparición de areas de trilla delante la o las puertas con el fin de que esta operación pudiera ser vigilada y, si fuera necesario, protegida, y la construcción de infraestructuras de almacenamiento y conservación: graneros públicos, generalmente situados en el corazón de la ciudad de transformación: mataderos, molinos y hornos, situados generalmente en los márgenes del recinto urbano o más allá. 2.2 La lucha contra la especulación y el control de precios. No bastaba con impedir la venta al extranjero de una parte de los recursos locales: era necesario que la totalidad de los mismos se vendieran para evitar las hambrunas artificiales y la subida de los precios que impedía a la gente modesta procurarse 64 Las condiciones de este convenio están detalladas por BONACHÍA HERNANDO, Juan Antonio – “Abastecimento urbano, mercado local y control municipal. La provisión y comercialización de la carne en Burgos (siglo XV)”. Espacio, Tiempo y forma. Serie III. Historia Medieval VI (1992), pp. 85-162. 65 CABAÑAS GONZÁLEZ, María Dolores – “Ciudad, mercado y municipio en Cuenca durante la Edad Media”. In La ciudad hispánica durante los siglos XIII al XVI, Actas del coloquio de la Rábida y Sevilla, 14-19/IX, 1981. T. II. Madrid: Universidad Complutense, 1985, pp. 1701-1728; AGUADÉ NIETO, Santiago; CABAÑAS GONZÁLEZ, María Dolores – “Comercio y sociedad urbana en la Castilla medieval. La comercialización de la carne en Cuenca (1177-1500)”. Anuario de Estudios Medievales 14 (1984), pp. 487-516 DEFENDER LA CIUDAD CONTR A EL HAMBR E [...] 167 “la comida que les hacía falta”. La política de los dirigentes era luchar contra los acaparadores y el aumento excesivo de los precios. El mantenimiento de precios bajos era una garantía de estabilidad en la ciudad, pero también era la base de su prosperidad, ya que permitía el mantenimiento de una población urbana importante y de salarios bajos, lo que constituía un incentivo fuerte y eficaz para el desarrollo de la industria. Preocupado por evitar el acaparamiento, el “mercado negro”, la especulación y el encarecimiento de los productos, se promociona el abastecimiento directo y se limita estrictamente la reventa de todas las mercancías, el número de regatones y el almacenamiento. En general, los particulares no podían comprar más que las cantidades de productos alimenticios necesarios para satisfacer las necesidades de la familia. Se prohibió comprar productos a los comerciantes que iban a la ciudad en un radio alrededor de la ciudad, normalmente cuatro leguas, pero tres para el pescado en Gante en 135066. Para no dejar que el mercado quedara desnudo en beneficio de unos pocos compradores ricos y para detener la fuerte subida de los precios, se prohibió comprar grandes cantidades de una sola vez. En muchas ciudades, los panaderos sólo podían comprar en el mercado después de los particulares. Cuando empezaban a circular rumores de que el cereal escasearía, los ediles decidían hacer un inventario de las reservas de grano en manos de comerciantes y particulares67. Durante las carestías hicieron obligatorio declarar los stocks y obligaron a los comerciantes a vender durante unos días el cereal al precio de compra. El ejemplo de las ciudades toscanas muestra que la tentación de especular siempre estuvo presente, incluso en tiempos de abundancia, y se acentuó cuando se anunciaba una carestía, sobre todo de grano, muy sensible a las fluctuaciones del mercado y que era el foco de especulación por excelencia. El pan que existía ya no acudía al mercado, los productores esperaban la llegada del pico de precios para beneficiarse de la subida, lo que esta en gran medida relacionado con el fenómeno de las compras anticipadas de cosechas. Pero sólo excepcionalmente se encuentran disposiciones en ordenanzas municipales que prohiben estas compras porque los beneficiarios figuraban entre los miembros de las élites locales y de la Iglesia68. La lucha contra el almacenamiento por parte de los productores era más o menos enérgica, lo que revela el poder de ellos y sólo en algunas ciudades, los dirigentes llegaban a infligir multas y recurrir a la fuerza con los productores que eran receptivos a las VAN UYTVEN, Raymond – “L’approvisionnement des villes des anciens Pays-Bas…”, pp. 84-85. En Barcelona, esta tarea corría a cargo del inspector municipal, RIERA I MELIS, Antoni – “Crisis cerealisticas, políticas públicas de aprovisionamiento…”, p. 258. 68 En Murcia, las autoridades tenían serias dificultades para vencer la resistencia de los hombres poderosos e influyentes que tenian reservas de pan: canónigos y nobles; lo intentaron amenazándolos con incautar lo que tenían almacenado si no los traían en un plazo de veinte días, MENJOT Denis – Murcia, ciudad fronteriza…, pp. 272-281. 66 67 168 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL ofertas de los mercaderes extranjeros y a las sirenas de la especulación y no dudaban a venderles sus productos. La cuestión del almacenaje de las reservas públicas era determinante sobre todo durante las crisis de carestía. Las autoridades municipales procuraban controlar en primer lugar los graneros de los hospitales, conventos e instituciones caritativas, pero también reglamentaban la capacidad de almacenaje privado, por ejemplo, en Lubeck, obligaron a los habitantes a constituir en sus casas reservas de grano proporcionales a sus bienes. Estas políticas ambiciosas culminaban con la construcción en muchas ciudades de un granero – en el cual se instaló una báscula – que se convirtió en uno de los monumentos cívicos que mejor expresaban el ideal urbano, es el caso, por ejemplo, de los Kornhaus de Colonia y Nurembergo, edificados tras la hambruna del 1437 y visitados como unas de las glorias y de la curiosiades de la ciudad69. Después de la carestía de 1329-1330, Florencia se acostumbró a acumular reservas de seguridad cada año, comprando cereales en Toscana y Umbría70. En todas partes, también se sospecha que los profesionales de los suministros, en primer lugar los carniceros, trataban de enriquecerse fraudulentamente agrupándose con el fin de aumentar los precios. En las ciudades de Lombardía, Emilia y Toscana, las autoridades trataron de neutralizarlos manteniéndolos bajo su supervisión directa y prohibiendo que los distintos oficios se convirtieran en arti71. Para evitar cualquier presión que pudiese orientar los precios de los productos al alza, en Inglaterra, los estatutos del reino prohibían la elección de comerciantes de alimentos a cargos urbanos72. La fiscalidad regia – en particular la alcabala – fue denunciada en varias Cortes castellanas del siglo XV como una de las causas del aumento de los precios, pero obviamente sin resultado73. Cuando todas estas medidas de control no bastaban, las autoridades públicas de muchas ciudades, pero sólo en situaciones extremas, como último recurso, tasaban los precios de los cereales, de la carne y del pescado durante el cuaresme y concedían el monopolio de la venta a los pescadores y a los carniceros que aceptaban las tasación. Los contemporáneos eran conscientes de los riesgos que implicaban los máximos, lo que revela, por ejemplo, el texto de un proyecto de tasación de 1482 en Brujas en el cual se especificó que se tendría cuidado de fijar el precio máximo del trigo 69 Cuando el emperador visitaba una de estas grandes ciudades, el programa oficial preveía pasar por el kornhaus IRSIGLER, Franz – “L’approvisionnement des villes de l’Allemagne occidentale…”, pp. 121-122. 70 LA RONCIERE, Charles-Marie de la – “L’approvisionnement des villes italiennes au Moyen Âge ...”, p. 46. 71 PINI, Antonio, Ivan – Città, comuni e corporazioni nel Medioevo italiano. Bologne: CLUEB, 1986. 72 HILTON, Rodney – “Pain et cervoise dans les villes anglaises au Moyen Âge”. In L’approvisionnement des villes de l’Europe occidentale …, p. 221; en su forma escrita son de mediados del siglo XIII, pero se cree que datan de finales del siglo XII. 73 Por ejemplo, en las Cortes de Madrid de 1435, OLIVA HERRER, Hipólito Rafael – “La política de la carestía en Castilla en el siglo XV…”, p.137. DEFENDER LA CIUDAD CONTR A EL HAMBR E [...] 169 no demasiado bajo porque, en caso contrario, las importaciones se detendrían74. En las ciudades inglesas, donde la autonomía estaba limitada por el poder central, esta reglamentación era de origen real: las assizes of bread and ale (1266-1267) imponian un marco legal al precio de la cerveza y al peso del pan que variaba según el curso del cereal75. Durante las crisis de escasez, las autoridades que habían organizado un sistema de compras oficiales y de reservas de seguridad, las revendieron con pérdidas y a precios reducidos. Éste tenia como principal objetivo completar una oferta alimentaria inconsistante, y también ayudaba a contener la subida de precios, ya que obligaba a los especuladores a poner a la venta las reservas disponibles. Como bien señaló Antoni Riera en aquel mundo medieval en el que los clérigos daban una explicación teológica de las crisis frumentarias, no hay que olvidar la organización de procesiones expiatorias que formaba parte de las políticas de lucha contra las carestías76. 2.3 La política de seguridad alimenticia y las requisitos sanitarios. Si el temor a la escacez a menudo atenaza a las poblaciones urbanas, la angustia de comer alimentos dañinos se va extendiendo progresivamente. De ahí la elaboración de una normativa sobre la seguridad alimentaria. Por ejemplo, el temor al contagio de la fiebre porcina justifica un control estricto de la comercialización de la carne, que se explica a la vez por los conocimientos médicos de la época y por unas creencias antropológicas que confirman el temor más profundo a la contaminación por los alimentos impuros. Las autoridades vigilaban la higiene en las carnicerías; éstas debían mantenerse limpias y había que desangrar a los animales en barreños cuyo contenido tenía que vaciarse fuera. De forma general, las investigaciones recientes han puesto de relieve la precocidad de la preocupación “medioambiental” en las ciudades medievales, cuya legislación destinada a garantizar la pureza de las aguas y del aire se basa en una cultura médica bastante desarrollada. Así, por ejemplo, los tratados higienistas de Aldebrandin de Siena sobre la prevención de la epidemia estaban muy difundidos VAN UYTVEN, Raymond – “L’approvisionnement des villes des anciens Pays-Bas ….”, pp. 92 y 91. ZYLBERGELD, Léon – “Les régulations du marché du pain au XIIIe siècle en Occident et l’Assize of bread” de 1266-1267 pour l’Angleterre”. In DUVOSQUEL, Jean-Marie; DIERKENS, Alain (éds.) – Villes et campagnes au Moyen Âge. Mélanges Georges Despy. Liège: éditions du Perron, 1991, pp. 791-814; SHARP, Buchanan – Famine and Scarcity in Late Medieval and Early Modern England. The Regulation of Grain Marketing, 1256-1631. Cambridge: Cambridge University Press, 2016. 76 RIERA I MELIS, Antoni – “Crisis cerealisticas, políticas públicas de aprovisionamiento…”, p. 273. En Murcia, por ejemplo, el concejo decidió organizar procesiones y rezos colectivos, en ocasiones obligatorios, para implorar que lloviera, que cesase una epidemia (1386), o una plaga de langosta echando en el suelo agua de la fuente del santuario de Vera Cruz de Caravaca, a la cual se le atribuían milagros, MENJOT Denis – Murcia, ciudad fronteriza…, pp. 429-430. 74 75 170 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL entre las clases dirigentes de las ciudades europeas77. Esta conciencia sanitaria de las élites, que se basa en parte en la observación de las patologías proprias de los espacios urbanos, tiene unas consecuencias directas en la ordenación de las ciudades y, en particular, en su abastecimiento hídrico (pozos, fuentes) y evacuación de las aguas sucias con la construccion de alcantarillados78. La reglementación de los oficios a partir del siglo XIII contribuyó a limitar la contaminación hídrica y a favorecer la autodepuración de los ríos y canales, distribuyendo de forma racional las actividades artesanales a lo largo de los cursos de agua; asi los mataderos fueron trasladados a la periferia de las ciudades. 3. Las estructuras del control de la defensa contra el hambre: oficios y administraciones anonarias. Para hacer aplicar la legislación y sancionar todas las infracciones, – con multas generalmente – las autoridades urbanas, crearon nuevos organismos y se dotaron de oficios especializados. Los municipios italianos y las ciudades germánicas fueron los primeros en establecerlos gradualmente a partir del siglo XIII, tras el debilitamiento del poder imperial. Los concejos controlaban así el mercado, sea directa, sea indirectamente a través de los gremios. En las ciudades italianas, los estatutos urbanos definieron un marco reglamentario controlado por una administración especializada. En Milán, los statuta visctualium de 1215 crearon agentes cuya competencia abarca los circuitos de abastecimiento y también los lugares de comercialización. A finales del siglo XIII aparecieron oficiales bajo varios nombres, en Genova el officium victualium, en Brescia el giudice dei chiosi para el control de los precios. En Siena, se instituyeron magistrados del divieto ya en 1251 y oficiales de trigo, seis y luego doce hacia 1290. En Verona y en Ragusa se establecieron un massarius blavorum en el siglo XIV y. En Bolonia, se creó un dominus bladi en 1335 y un officio dell’abbondanza, especialmente cargado del grano en 1376; en Florencia, un officio dell’abbondanza en 1330, dotado de competencias muy amplias en cuanto a precio, calidad de venta y suministros. Este mismo officio dell’abbondanza se atestigua en Perugia en 1340, en Orvieto en 1349, en Siena y en Roma a mediados del siglo XV, una Prefettura dell’annona en Nápoles, un officio delle biave en Venise. En Venecia, se creó una administración especializada a partir del siglo XII, l’annona – primera ley anonaria data de 1173 ZUPKO, Ronald; LAURES, Robert – Straws in the wind. Medieval Urban Environnement Law. Oxford-Boulder: Westview Press, 1996. 78 Ejemplos en las ciudades españolas en VAL VALDIVIESO, María Isabel del (ed.) – Usos sociales del agua en las ciudades hispánicas de la Edad Media. Valladolid: Universidad de Valladolid, 2002. Ver también TEYSSOT, Josiane – “L’eau propre, l’eau sale à la fin du Moyen Âge: le cas des égouts de Riom en Auvergne”. Cahiers d’Histoire XXXVII, 2 (1992), pp. 103-120. 77 DEFENDER LA CIUDAD CONTR A EL HAMBR E [...] 171 – que se siguio desarrollando con el desarrollo de la ciudad y cuenta en el siglo XV con la participación de varias decenas de personas que buscaban nuevos mercados y controlaban los intercambios y los intermediarios79. Todas estas organizaciones, intermitentes al principio, terminaron por imponerse de manera permanente y los abbondanze se iran poblando poco a poco de un personal diversificado para prospectar los centros de producción extranjeros, transportar el trigo, almacenarlo y asegurar su distribución; consiguieron un presupuesto anual, adquirieron edificios, especialmente almacenes situados en puntos estratégicos a lo largo de las rutas del trigo. Cada administración, en particular la de los cerales, terminó jugando un papel importante en los estados regionales en el XV80. A partir de mediados del siglo XIII, los magistraturas anonnarias también aparecieron en las ciudades del área germánica. En las ciudades de Alemania occidental: Nurembergo, Colonia, Marburgo, Friburgo de Brisgovia y Duisburgo, los responsables de la política de abastecimiento eran principalmente los órganos municipales autónomos y en las ciudades señoriales pequeñas y medianas, el señor. Las funciones organizativas como la compra y venta de grano municipal, el control de las reservas y la fijación de los precios del pan se confiaban normalmente a uno o más oficiales o notables que solían ser miembros del consejo municipal y por lo tanto, de las familias gobernantes de la ciudad81. La municipalidad se contentaba normalmente con mantener un cuerpo especial de supervisores y controladores del mercado, que se encuentra en Basilea, Lübeck, Berlín y Colonia, esta última ciudad contaba con policías especializados por tipo de transacción: pan, pescado, aves, granos, carne, madera82. En las ciudades de las coronas de Aragón y Castilla, la regulación del mercado era una función que el rey había delegado a los gobiernos municipales y algunos de ellos asignaron esta tarea a un oficial, el mostassaf/almotacén, heredero directo del sahib al suq83. En 1339, el mostassaf se instauró en Barcelona. Ejercía un control estricto sobre el mercado de productos alimenticios, imponiendo los horarios de venta, los productos que se podían vender, los pesos autorizados, los espacios de venta, las medidas de higiene pública obligatorias. A lo largo de los siglos XIV y COLLODO, Silviana – “Il sistema annonario delle città venete: da pubblica utilità a servizio sociale (secoli XIII-XVI)”. In Città e servizi sociali nell’Italia dei secoli XII-XV. Pistoia: Viella, 1990, pp. 383-416; FAUGERON, Fabien – Nourrir la ville…, pp.17-90. 80 LA RONCIERE, Charles-Marie de la – “L’approvisionnement des villes italiennes au Moyen Âge ...”, pp. 46-47. 81 IRSIGLER, Franz – “L’approvisionnement des villes de l’Allemagne occidentale…”, pp. 120-121; ver también ISENMANN, Eberhard – Die deutsche Stadt im Spätmittelalter (1150-1550). Cologne: Böhlau Verlag, réed. 2012. 82 MONNET, Pierre – Villes d’Allemagne au Moyen Âge. Paris: Picard, 2004, p. 98. 83 CHALMETA, Pedro – El señor del zoco en España. Madrid: Instituto Hispano-Árabe de Cultura, 1973, pp. 203-223. 79 172 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL XV la institución del mostassaf se extendió por toda Cataluña y Valencia84. En Barcelona y en las otras grandes ciudades catalanas, existía otra administración, la del granero municipal (l’almodi), con su gestor, el botiguer, que se encargaba de distribuir a la población los cereales adquiridos por el municipio. Desempeñaba un papel de regulación de los precios por el stock de cereales, aseguraba las semillas, distribuyéndolas entre todos los que no tenían nada que sembrar y actuaba como una especie de crédito al consumista concediendo a los más necesitados un préstamo en especie que debían devolver en la siguiente cosecha85. El almotacén existía en algunas ciudades de la corona de Castilla, como Cuenca y Murcia, vigilaba que se respetaran las ordenanzas de policía municipal, la calidad de los productos, la lealtad de las prácticas comerciales y artesanales, la legalidad de los pesos y medidas86. En Murcia, a partir de la segunda mitad del siglo XIV, el concejo subordinó este cargo a los jurados que podían anular sus decisiones, asistidos por los veedores, representantes de los menestrales agrupados en organizaciones profesionales87. En Sevilla, los encargardos de aplicar la normativa eran, por un lado, el almotacen y, por otro, los fieles. En Burgos, el Concejo elegía cuatro oficiales, los “fieles de los cuatro”, para guardar los pesos y medidas reglamentarias que los comerciantes debían confrontar con las suyas y velar por el buen funcionamiento del mercado urbano y en el cumplimento de las ordenanzas emitidas por el concejo88. En las ciudades del norte de Europa, “tanto en Francia como en Inglaterra la normativa fue escasa y la intervención de las autoridades públicas en el mercado muy indirecta, casi siempre a través de los oficiales nombrados por la propia corporación de oficio que ejercían el control más cercano del proceso de abastecimiento y distribución de carne” 89. Esta conclusión del estudio comparada de las políticas de aprovisionamiento de la carne en la península ibérica, norte de Francia e Inglaterra de Ramón Banegas López, podría aplicarse también a las estructuras de control político sobre el abastecimiento de los cerales y del pescado. En estas ciudades integradas 84 BANEGAS LÓPEZ, Ramón – “Competencia, mercado e intervencionismo en el comercio de carne en la Europa bajomedieval. Los ejemplos de Barcelona y Ruán”. Anuario de Estudios Medievales 42/2 (2012), pp. 479-499. 85 MORELLÓ BAGET, Jordi, con la colaboración de GUILLERÉ, Christian – “Approvisionnement et finances municipales …”, pp. 280-282. 86 Ver las ordenanzas que regulaban su función en Murcia, publicadas por TORRES FONTES, Juan – “Las ordenaciones al almotacen murciano en la primera mitad del siglo XIV”. Miscelánea Medieval Murciana 10 (1983), pp. 71-131. 87 MENJOT, Denis – Murcia, ciudad fronteriza…, pp. 609-610. 88 ESTEPA DIEZ, Carlos; RUIZ, Teófilo; BONACHÍA HERNANDO, Juan; CASADO ALONSO, Hilario – Burgos en la Edad Media. Valladolid: Junta de Castilla y León, 1984, p. 399. 89 BANEGAS LÓPEZ, Ramón – “Intervencionismo, autorregulación y crisis de abastecimiento. Un estudio comparativo de las políticas de aprovisionamiento de carne en la península ibérica, el norte de Francia e Inglaterra durante la baja Edad Media”. In Políticas contra el hambre y la carestía en la Europa medieval…, p. 312, da la explicación: “En Francia como en Inglaterra la carne se vendía a ojo y no a peso; por tanto las autoridades no tenían la necesidas de controlar el uso de pesos autorizados o de vigilar el correcto pesado de las carnes…” DEFENDER LA CIUDAD CONTR A EL HAMBR E [...] 173 en estados centralizados, el control del mercado estaba también por delegación en manos de las autoridades municipales que dejaban mucha más autonomía a los artesanos y comerciantes para supervisar su propio negocio a través de los gremios en que se agrupaban al final de la Edad Media. Por ejemplo, en Ruan, nos dice Ramón Banegas López, la primera normativa que regulaba la venta de carne data de 1322 y fue escrita por los propios carniceros de la ciudad, los cuales, agrupados en un gremio, decidieron pedir la aprobación municipal y real de las normas que ellos se habián dado. La inspección del trabajo de los carniceros corria a cargo de los guardas del oficio y sus ayundantes que eran elegidos por el gremio, pero estos no tenián potestad para castigar las infracciones90. En Londres, la autoridad real y municipal era la que dictaba la normativa que regía el mercado de la carne. La inspección corría a cargo de las tres gremios que existían en la capital del reino de Inglaterra, los cuales tenían la potestad de elegir sus wardens (inspectores del mercado)91. Hubo ciudades en donde los gremios de los carniceros no solo tenían la potestad de crear la normativa del mercado de la carne e inspeccionar el trabajo de los carniceros, sino que incluso podían juzgar e imponer penas a los infractores de dicha normativa, es el caso por ejemplo de la “grande boucherie” de Paris y Amiens92. En otras ciudades inglesas, las autoridades nombraron oficiales especializados en un producto como, por ejemplo, en Nottingham para et Assize of bread que controlaba los precios y la calidad de los productos93. 4. El precio de la política contra el hambre. La política de defensa contra el hambre tenía un precio y por lo tanto consecuencias para las finanzas municipales. Jordi Morello ha propuesto una tipología precisa de los gastos que generaría esta política94. La retomo: - gastos de abastecimiento: compras de cereales con, posiblemente, primas pagadas a los importadores y tasas aduaneras. - gastos administrativos y de funcionamiento: sueldos y dietas de las personas enviadas a comprar en el exterior, variables según el lugar y la duración, coste de las actas notariales, sueldos del personal de la anona. 90 BANEGAS LÓPEZ, Ramón – “Intervencionismo, autorregulación y crisis de abastecimiento. Un estudio comparativo de las políticas de aprovisionamiento…”, pp. 310-311. 91 DAVIS, James – Medieval Market Morality: Life, Law and Ethics in the English Marketplace, 12001500. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, pp. 115-146, citado por BANEGAS LÓPEZ, Ramón – “Competencia, mercado e intervencionismo…” 92 BANEGAS LÓPEZ, Ramón – “Intervencionismo, autorregulación…”, p. 312. 93 HILTON, Rodney – “Pain et cervoise dans les villes anglaises…”, p. 224. 94 MORELLO BAGET, Jordi – “Approvisionnement et finances municipales en Méditerranée…”, pp. 284-285. 174 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL - gastos de transporte: variables también según la distancia. A título de ejemplo, según La Roncière, el transporte marítimo no era muy caro, sin embargo, desde Sicilia a Génova, en la década de 1340 representaba un tercio del precio normal de compra. Los transportes terrestres eran más caros, de Ancona a Perugia, el 15% del precio de compra95. - gastos de almacenamiento: salarios del personal (medidores, pesadores …), alquiler de locales (durante mucho tiempo la ciudad alquilaba locales a particulares) que La Roncière evalua en Florencia a no menos del 5%. - gastos en infrastructuras: inversiones en la construcción y mantenimiento de las infraestructuras: alhondigas, graneros, mataderos, molinos… Estos gastos de suministro de grano eran muy variables de una ciudad a otra y de un año a otro. En las comunas italianas, la financiación de las importaciones – que tenían por objeto complementar una oferta muy insuficiente y también detener el alza del mercado libre desalentando a los especuladores – la creación de reservas de seguridad y la reventa con pérdidas que constituían la mayor parte de los gastos del abastecimiento, representaba un importante porcentaje del presupuesto desde el principio, evaluado a un tercio en Siena en 1295. Las comunas soportaron esta carga hasta la segunda mitad del siglo XIV, cuando los gastos militares aumentaron rápidamente. En las ciudades del sur de Francia: Narbona, Tarascon, Cadillac y Millau, el análisis de las cuentas que se conservan, muestra que los gastos para satisfacer las necesidades alimenticias eran modestos y relativamente estables en valores absolutos96, estimados por Florent Garnier en un 0,5% de los gastos de la ciudad y un 0,1% de los gastos económicos, salvo en circunstancias excepcionales de hambruna97. Del mismo modo, en Murcia, Sevilla y otras pequeñas ciudades castellanas como Palencia, Paredes de Nava, Alcaraz, Chinchilla, estos gastos eran muy limitadas en comparación con las cantidades gastadas para la defensa militar98. En la Corona de Aragón, si en Mallorca en 1333 durante la crisis frumentaria, el 63,5% del gasto de la ciudad se dedica al abastecimiento, en las pequeñas ciudades catalanas de Reus y Valls, los porcentajes solían ser bajos, respectivamente el 1% y el 3% en tiempos normales99. Para Jordi Morello, la impresión que resulta de su profundo estudio de la La RONCIÉRE, Charles-Marie – “L’approvisionnement des villes italiennes …”, p. 47. MENJOT, Denis; SÁNCHEZ MARTÍNEZ, Manuel (dirs.) – La fiscalité des villes au Moyen Age (Occident méditerranéen). 3: La redistribution de l’impôt. Toulouse: Privat, 2002, p. 158, Narbonne, p. 172, Tarascon, p. 168, Cadillac, p. 601, Millau, 97 GARNIER, Florent – Un consulat et ses finances…, p. 601. 98 MENJOT, Denis; SÁNCHEZ MARTÍNEZ, Manuel (dirs.) – La fiscalité des villes au Moyen Âge…, pp. 67-80, Murcie, pp. 55-66, Séville. 99 MORELLO BAGET, Jordi – “Approvisionnement et finances municipales en Méditerranée…”, pp. 290-293. 95 96 DEFENDER LA CIUDAD CONTR A EL HAMBR E [...] 175 financiación de las compras de cereales “es la de un gasto soportable, perfectamente asumido por las ciudades de la Corona de Aragon pero mucho menos por los del reino de Francia y especialmente del norte y centro de Italia desde mediados del siglo XIV”100. El abastecimiento era siempre un gasto extraordinario y si bien constituía uno de los servicios comunitarios más importantes, tenía poco impacto en las finanzas municipales, excepto en tiempos de crisis y en algunas ciudades, en comparación con los gastos militares que prevalecían en el siglo XIV y las exigencias de los reyes. En una gran mayoría de ciudades, los ingresos ordinarios solían ser suficientes para cubrir los gastos de abastecimiento, y cuando no era así, los gestores cobraban un impuesto extraordinario, o aumentaban la tasa de los impuestos indirectos sobre los productos de consumo o imponían una tasa adicional, caso de las ciudades de Castilla y del sur de Francia. Sin embargo, cuando las sumas eran demasiado altas o urgentes – pero sobre todo para hacer frente a las demandas reales y a sus propias necesidades defensivas – o cuando las tesorería eran deficitarias, los gobiernos municipales de las grandes ciudades italianas y de muchas villas catalanas, valencianas, flamencas, alemanas, francesas rrecurrieron a préstamos a corto plazo, a veces forzados. A partir de la segunda mitad del siglo XIII, la deuda a corto plazo dejó paso a una deuda pública consolidada que podía revestir dos formas, la de las rentas perpetuas (censals, geldkauf, zinskauf), reembolsables a petición del prestatario y la de las rentas vitalicias (violaris, lybding, leibgeding)101. El medio más utilizado en los países de la Corona de Aragón era la venta de censales para inyectar más capital. “La política cerealista de las grandes urbes catalanas, a pesar de contar con mecanismos compensatorios coactivos, generaba un creciente déficit financiero: de las 204 000 libras que la ciudad de Barcelona adeudaba en 1452 à la Taula de Canvi (banca municipal), 107 000 correspondían a gastos ocasionados por el abastecimiento de trigo”102. En Venecia igualmente para financiar la administración anonaria, la principal fuente provenía de los préstamos públicos pero también de la reventa de los stocks. El uso del crédito se convirtió rápidamente en algo esencial y el papel de los bancos se hizo predominante en el siglo XV103. La deuda pública requería la creación y el establecimiento de un verdadero 100 MORELLO BAGET, Jordi – “Approvisionnement et finances municipales en Méditerranée…”, p. 294. 101 FURIÓ, Antoni – “La dette dans les dépenses municipales”. In La fiscalité des villes au Moyen Âge…, pp. 321-350. 102 RIERA I MELIS, Antoni – “Crisis cerealisticas, políticas públicas de aprovisionamiento…”, p. 268; Por lo tanto, podemos pensar con Pere Verdès que Fiscalidad y abastecimiento son las dos caras de la misma moneda, VERDÉS PIJUAN, Père – “Fiscalidad y abastecimiento: ¿dos caras de la misma moneda?” In Alimentar la ciudad. El abastecimiento de Barcelona del siglo XIII al siglo XX. Barcelona: Ajuntament de Barcelona, 2013, pp. 14-16. 103 FAUGERON, Fabien – Nourrir la ville…, pp. 105-169. 176 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL sistema fiscal que permitiese el pago de intereses y que garantizase la concesión de nuevos créditos. La deuda pública se consolidó con los ingresos de los impuestos indirectos (aides, accises, sisas, imposiciones, gabelles, dazi, comunes) que gravaban el consumo, incluso en aquellas donde los representantes de los artesanos habían logrado conseguir hacerse un espacio en el gobierno urbano, como en las regiones flamencas o italianas. No es exagerado pensar que estos impuestos representaban un promedio del 75 al 80% de los ingresos urbanos. Es el caso en Gante entre 1384 y 1453104. En Barcelona, desde mediados del siglo XIV, la fiscalidad municipal estaba basado casi exclusivamente en las imposiciones que gravaban el consumo de alimentos básicos (pan, vino, carne, prescado) que suponián a finales del siglo XIV, el 20, el 30 o incluso el 50% del precio del producto105. En Cervera, las imposiciones proporcionaban un promedio del 40% de los ingresos de la ciudad en el siglo XIV106. En Murcia, los comunes y el acrecimiento de la carne y del pescado seguían representando más del 80% de los ingresos de la ciudad107. En Valencia, la sisa de la carne era un ingreso esencial108. En Florencia, Génova y Venecia, los intereses de la deuda absorbían en promedio del 20 al 40% de los ingresos ordinarios desde la segunda mitad del siglo XIV. En 1403, representaban el 61% de los gastos de Barcelona, pagados mediante la recaudación de nuevas imposicions o el aumento de las antiguas109. Conclusiones: ¿eficacia de las políticas municipales contra el hambre? Todas las autoridades municipales llevaban a cabo una política alimenticia activa de defensa contra el hambre que diferían por su grado de intervencionismo, lo cual es revelador de la mentalidad y del poder de las elites dirigentes. Los principios de las políticas urbanas eran siempre los mismos: asegurar un suministro suficiente para no provocar disturbios, pero sin perjudicar indebidamente los intereses de los comerciantes y productores; proteger al consumidor contra el fraude en la cantidad 104 BOONE, Marc – Geld en Macht. De Gentse stadsfinanciën en de Bourgondische staatsvorming (13841453), 1990, cité par DERVILLE, Alain, dans son compte-rendu – Revue du Nord (1990), pp. 658-660. 105 ORTÍ GOST, Père – “Les imposicions municipales catalanes au XIVe siècle”. In MENJOT, Denis; SÁNCHEZ MARTÍNEZ, Manuel (dirs.) – La fiscalité des villes au Moyen Age (Occident méditerranéen). 2: Les systèmes fiscaux. Toulouse: Privat, 1999, pp. 399-422. 106 VERDÉS PIJUAN, Père – “Las imposicions a Cervera durant la segona meitat del s.XIV”. In Col.loqui Corona, Municips i Fiscalitat a la Baixa Edat Mitjana. Lleida: Institut d’Estudis Ilerdencs, 1997, pp. 383-422. 107 MENJOT, Denis – Murcia, ciudad fronteriza…, pp. 725-732; VEAS ARTESEROS, María del Carmen – Fiscalidad concejil en la Murcia de fines del Medievo (1423-1482). Murcia: Universidad de Murcia, 1991. 108 GARCÍA MARSILLA, Juan Vicente – “La sisa de la carn’. Ganadería, abastecimiento cárnico y fiscalidad en los municipios bajomedievales”. In VALLEJO POUSADA, Rafael (coord.) – Los tributos de la tierra. Fiscalidad y agricultura en España (siglos XII-XX). Valencia: Publicaciones de la Universitat de València, 2008, pp. 81-102. 109 MOLHO, Anthony – “Tre città-stato e i loro debiti pubblici. Questi e ipotesi sulla storia di Firenze, Genova, Venezia”, cité par BOUCHERON Patrick – “Les enjeux de la fiscalité directe dans les communes italiennes (XIIIe-XVe siècle)”. In MENJOT, Denis; SÁNCHEZ MARTÍNEZ, Manuel (dirs.) – La fiscalité des villes au Moyen Age (Occident méditerranéen). 2: Les systèmes fiscaux…, p. 166. DEFENDER LA CIUDAD CONTR A EL HAMBR E [...] 177 y la calidad de los productos y, al mismo tiempo, proteger a los productores y comerciantes urbanos de la competencia. Para lograr sus objetivos, la ciudad recurría principalmente a medidas legislativas, las intervenciones más activas y directas eran excepcionales, excepto en las grandes ciudades y especialmente en tiempos de crisis. Las políticas anonarias comportían, pues, la elaboración de un sistema global de regulación económica, que ponía de manifiesto una capacidad de proyección y de gestión de las elites urbanas, pero también la coherencia de su ambición política, la cual no dejaba de presentar conflictos de intereses. Los príncipes y las elites se mostraban bastante favorables a la libre circulación de las mercancías, a las que aplicaban sus impuestos, fuentes de ingresos importantes; objetivamente, incluso les interesaba que los precios de los alimentos se mantengan elevados. Pero mantener elevados los precios representaba un riesgo social y político de desordenes y de revueltas. En las ciudades, entre la tentación especulativa y el temor de los motines, las élites dirigentes urbanas pueden estar divididas. La pregunta para ellos era hasta donde debían subir los precios sin poner en peligro la paz social, es decir que “la actitud de las élites locales se movía en este caso en una encrucijada situada entre la lógica del beneficio y la de la reproducción”110 y que sus actuaciones estaban sometidas a tensión dado que entraban en juego importantes intereses contradictorios. ¿Han hecho los gobiernos urbanos un trabajo eficaz en la defensa de sus conciudadanos contra el hambre? Pregunta difícil pero esencial para concluir y cuya respuesta difiere según la ciudad y el período asi como las medidas adoptadas y su aplicación. Lo cierto es que, mientras que algunas ciudades sobrepobladas a finales de la edad media, sufrieron crisis frumentarias y hambrunas, a veces profundas, “ni siquiera en el peor momento de la escasez, nadie muere de hambre” en Florencia, gracias, según Charles de La Roncière a la organización de una amplia red de suministro y a las normas que regulaban la distribución, aunque no todas eran perfectas111. Para Franz Irsigler, Colonia pudo superar todas las crisis de suministro sin muertes por hambre gracias a las cantidades de grano que las instituciones religiosas pusieron a la venta en el mercado112. En Toledo, Abad Escribano concluye que la actuación del concejo fue ineficaz a la hora de regular el mercado, propiciando o agravando situaciones de crisis. 110 OLIVA HERRER, Hipólito Rafael – “La política de la carestía en Castilla en el siglo XV…”, pp. 134-135. 111 112 La RONCIERE, Charles-Marie de – “L’approvisionnement des villes italiennes…”, pp. 47-48. IRSIGLER, Franz – “L’approvisionnement des villes de l’Allemagne occidentale…”, p.122. 178 Uma Pequena Cidade Medieval e o seu Pão na Baixa Idade Média: O Caso de Loulé Iria Gonçalves1 Resumo O pão foi, durante toda a Idade Mádia – e não só – o alimento por excelência, aquele que ninguém podia dispensar, aquele sem o qual todos os outros perdiam, por assim dizer, muito do seu interesse e do seu valor e até, talvez, do seu sabor. Pretende-se aqui explorar a relação de uma pequena cidade com o seu pão através do caso de Loulé. Explorada a capacidade produtiva da região, o artigo concentrar-se-á nas estratégias de abastecimento em tempos de normalidade e de escassez e nos caminhos que o cereal percorria até chegar à vila, sem esquecer os processos de preparação e confeção do pão. Palavras-chave Alimentação; Abastecimento; Cereal; Cidades; Loulé; Pão. A small medieval town and its bread in the Late Middle Ages: the case of Loulé Abstract Bread was, throughout the Middle Ages – and not only – the food par excellence, the one that no one could live without, the one without whom all the others lost much of their interest and value and even, perhaps, its flavor. The goal 1 IEM, NOVA FCSH. 180 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL here is to explore the relationship of a small town with its bread through the case of Loulé. Exploited the productive capacity of the region, we focus on the strategies of provisioning in normal and scarcity times and on the paths that the cereal made until reaching the town, without forgetting preparation and confection of bread processes. Keywords Food; Supply; Grain; Towns; Loulé; Bread. 1. O Primado do Pão. 1.1 O pão, alimento imprescindível. O pão foi, durante toda a Idade Média – e não só – o alimento por excelência, aquele que ninguém podia dispensar2, aquele sem o qual todos os outros perdiam, por assim dizer, muito do seu interesse e do seu valor e até, talvez, do seu sabor. Mesmo a carne, o alimento conotado com os fortes e os poderosos e a quem ele acrescia força e poder e, por isso mesmo, também altamente valorizado3, perdia muito do seu apreço quando, por qualquer motivo, precisava ser ingerido sem pão. E era assim em todos os estratos sociais, desde os mais proeminentes4. A diferença encontrava-se apenas no facto de que entre as camadas populacionais de maior poder económico, os víveres outros eram mais ricos e abundantes. Nesta Idade Média que terminava, os europeus tinham, desde há muito, firmado o seu sistema alimentar sobre o pão, num hábito cultural longamente enraizado e que tradições diferentes, conjugando-se e potenciando-se reciprocamente, tinham tornado de uma enorme solidez. Por um lado o consumo humano dos cereais – 2 Muitos têm sido os investigadores a pronunciarem-se sobre este assunto, entre os quais eu própria. Ao longo das páginas que se seguem irei indicando vários dos trabalhos produzidos no âmbito da Europa meridional em que nos integramos. 3 Pode ver-se, por exemplo, MONTANARI, Massimo − Alimentazione e cultura nel Medioevo. Roma, Bari: Laterza, 1988, sobretudo pp. 35 e seg. 4 Pode ver-se, como exemplo que se me afigura muito significativo, protagonizado por Nuno Álvares Pereira, ocorrido no contexto das lutas travadas com os castelhanos e em que o condestável se viu na inusitada contingência de fazer uma refeição de carne sem pão (LOPES, Fernão − Crónica de D. João I, pref. por António Sérgio, ed. preparada por M. Lopes de Almeida e A. de Magalhães Basto. Vol. II. Porto: Civilização, s. d., cap. XXIII, pp. 52-53) e os comentários que ao caso dedicou CATARINO, Maria Manuela − “A carne e o peixe nos recursos alimentares das populações do Baixo Tejo”. In ALARCÃO, Miguel; KRUS, Luís; MIRANDA, Maria Adelaide (coords.) − Animalia. Presença e representações. Lisboa: Colibri, 2002, p. 49. Como exemplo em tudo semelhante a este, ocorrido desta vez fora de Portugal, na Calábria, pode ver-se o episódio referido por MONTANARI, Massimo − “La cerealicoltura nell’Italia del Sud: vocazione produttive e culturali”. In Uomini, terre, boschi nell’ Occidente medievale. Catânia: CUECM, 1992, p. 156. UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA 181 mesmo dos cereais já domesticados e cultivados – perde-se na lonjura dos tempos5 e as suas técnicas de manipulação foram-se aperfeiçoando e os produtos finais dessas técnicas foram-se diversificando desde antiquíssimas eras. Tanto que chegando aos tempos áureos da Grécia antiga eram já muitas as variedades de pão que se sabiam confeccionar6 e que Roma herdou e continuou aperfeiçoando e diversificando7. E elegeu o pão como um dos mais sólidos pilares do seu sistema alimentar, que, aliás, dava a preferência aos produtos de origem vegetal. Por sua vez no Oriente próximo, o Cristianismo nascente integrava-se também numa cultura que para lá da romana, que ao tempo, aí exercia o domínio político, se centrava igualmente, em termos alimentares, no pão. E assim tinha que ser, já desde bem vetustas eras, uma vez que o pão podia representar, para aquele povo, todo e qualquer alimento. Para bem entendermos isso basta lembrarmo-nos de que na oração que Jesus ensinou aos seus discípulos e em que se pedia ao Pai que não faltasse o alimento, todo esse alimento era representado apenas pelo pão: “o pão nosso de cada dia nos dai hoje”8. Para mais é bem sabido como, desde os primeiros tempos até hoje, o Cristianismo tem firmado sobre os principais produtos mediterrânicos: o pão – embora este sob a forma da fina película que constitui a hóstia distribuída pelos fiéis no decorrer das celebrações eucarísticas – mas também o vinho e mesmo o azeite, o essencial dos seus instrumentos cultuais, carregados de enorme simbolismo9. Não admira que sobre estes alimentos se tivesse construído o modelo cultural de base do sistema alimentar de uma Europa romanizada e cristianizada10. Não 5 Sobre este assunto é de grande interesse o estudo de GUILLAUME, Jean − Ils ont domestiqué plantes et animaux: prélude à la civilisation. [S.l.]: Éditions Quae, 2010, pp. 109 e seg. Os cereais começaram desde muito cedo a ser cultivados, manipulados, consumidos, mas primeiramente em caldos e papas, sendo que nestas preparações são já bem aproveitados pelo organismo humano (PERES, Emílio − “Pão, insubstituível mitigador da fome”. In MADUREIRA, João (coord.) − O pão, o comer e o saber comer para melhor viver. Terena: Confraria do Pão, 2004, p. 62) o que os tornou bem apreciados em todos os lugares onde o seu cultivo se foi incrementando. 6 SARAMAGO, Alfredo − “O pão na cultura mediterrânica”. In A terra, o homem e o pão. Actas do I Congresso português de cultura mediterrânea. Terena: Confraria do Pão, 2002, pp. 256-257. 7 CASTRO, Inês de Ornellas e − “Introdução: evolução do paladar romano”. In O livro de cozinha de Apício: um breviário do gosto imperial romano. Sintra: Colares, 1997, p. 25. 8 Já numa outra ocasião, com maior desenvolvimento, abordei este assunto: “Panem nostrum quotidianum da nobis hodie: sobre uma escassez cerealífera nas terras de Alcobaça (1438-1440)”, no prelo. 9 Veja-se sobretudo MONTANARI, Massimo − El hambre y la abundancia. Historia y cultura de la alimentación en Europa, trad. de Juan VIVANCO. Barcelona: Critica, 1993, p. 26. 10 SIMEÓN RIERA, J. Daniel − “El pa i el blat en l’imaginari col.lectiu occidental”. In El cicle dels cereals. Del gra al pa. Valência: Generalitat Valenciana, 1989, pp. 33-37; COMET, Georges − Le paysan et son outil. Essai d’histoire téchnique des céréales (France, VIIIe-XVe siècle). Roma: École française de Rome, 1992, p. 215; MONTANARI, Massimo − “El papel del Mediterráneo en la definición de los modelos alimentarios de la Edad Media: ¿espacio cultural o mar fronterizo?”. In XAVIER MEDINA, F. (ed.) − La alímentación mediterránea. Historia, cultura, nutrición. Barcelona: Icaria, 1996, pp. 75-76; GONÇALVES, Iria − “Alimentação medieval: conceitos, recursos, práticas”. Actas dos VI Cursos internacionais de Verão de Cascais (5 a 10 de Julho de 1999). Vol. 2: A alimentação. Cascais: Câmara Municipal de Cascais, 2000, pp. 30-31; GONÇALVES, Iria − À mesa nas terras de Alcobaça em finais da Idade Média. Alcobaça: DGPC, Cooperativa Agrícola de Alcobaça, IEM, 2017, pp. 102-103. 182 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL admira que os europeus tenham interiorizado desde cedo que comer pão e beber vinho “consommer ceux deux espèces (o pão e o vinho) que les rites majeurs du Christianisme proposait comme le symbole meme de la nourriture humaine”, como já há tempo sublinhou Georges Duby, fosse um notável símbolo de promoção social11. Por tudo isto o pão ocupou o mais destacado lugar na alimentação dos europeus, não só durante a Idade Média, mas também ao longo dos tempos subsequentes. Com efeito, durante vários séculos todos os demais víveres se consideravam apenas como “acompanhantes” do pão, o alimento principal12. “Acompanhantes” estes que, ao menos entre as famílias mais desmunidas e nomeadamente entre os camponeses, eram bem parcimoniosamente consumidos. Até próximo dos nossos dias13. Acresce a tudo isto que o pão é um alimento adequado às necessidades do organismo humano14. Tudo se conjugava no sentido da sua valorização. 1.2 O Mediterrâneo e a cerealicultura. Estando o pão tão fundamente enraizado na cultura europeia e porque os hábitos alimentares, uma vez estabelecidos e arreigados em qualquer sociedade se impõem de forma incisiva, independentemente de o espaço em que essa sociedade se instalou ser apto, ou não, a produzir os habituais víveres, é preciso envidar todos os esforços no sentido de os obter15. Assim acontecia com diversos produtos em toda a zona mediterrânica16; assim acontecia, de uma maneira especial, com os cereais. De qualquer modo, cultivar cereais na Idade Média, e de uma maneira especial o trigo, o mais exigente de todos eles, não era tarefa fácil, fosse onde fosse que a seara se tivesse implantado. Mercê de circunstâncias várias os rendimentos da semente eram baixos – uma produção na ordem das quatro, cinco sementes era considerada normal, o que desde há muito numerosos investigadores têm verificado um pouco 11 DUBY, Georges − Guerriers et paysans: VIIe-XIIe siècle. Premier essor de l’économie européenne. Paris: Gallimard, 1973, p. 27. 12 Todos os demais alimentos eram, na expressão latina, por toda a parte usada, o “companagium” do pão. Pode ver-se, por todos, STOUFF, Louis − Ravitaillement et alimentation en Provence au XIVe et XVe siècles. Paris, La Haye: Mouton et Cie, 1970, pp. 219-274. 13 Pode ver-se, por exemplo, GONÇALVES, Iria − À mesa nas terras de Alcobaça…, pp. 466-476. 14 PERES, Emílio − “O pão nosso de cada dia”. In MADUREIRA, João (coord.) − O pão, o comer e o saber comer para melhor viver. Terena: Confraria do Pão 2004, pp. 50-52. 15 A propósito desta atitude, desenvolvida por qualquer sociedade humana, são incisivas, as palavras que Georges Duby dedica ao assunto: “elle (a sociedade) est prisonnière d’habitudes que se transmettent de génération en génération et qui se laissent difficilement modifier; elle s’acharne donc à vaincre les résistences du sol et du climat, pour se procurer à toutes forces les aliments que lui imposent de consommer ses coutoumes et ses rites” (DUBY, Georges − Guerriers et paysans…, p. 26). 16 Fernand BRAUDEL (“La terre”. In BRAUDEL, Fernand (dir.) – La Méditerranée: l’espace et la terre. Paris: Flammarion, 1985, p. 26) diz-nos que o clima mediterrânico é estranho e hostil às vidas das plantas. UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA 183 por toda a Europa mediterrânea17 e assim também em Portugal18. Isso obrigava os camponeses a multiplicar as suas searas por onde quer que uma nesga de terra pudesse receber a semente. Já para a Idade Média se podia dizer, como Orlando Ribeiro deixou expresso para o Portugal contemporâneo, que o cereal acompanhava por toda a parte a instalação humana19. E se assim era na generalidade das terras do Sul da Europa, e se assim era, também, em qualquer região de Portugal, assim tinha que ser de um lado ao outro do Algarve, a mais meridional e mediterrânica das terras portuguesas20. Também aqui, como em todos os espaços até onde o grande mar interior espalha a sua influência climática, os solos são pobres, delgados, a terra seca. Com uma pluviosidade que não ultrapassa, em anos normais, o nível hídrico mínimo do trigo21, mas que sofre muitas e acentuadas quebras, não podia, ainda só por tal circunstância, ser esta uma terra propícia à produção do cereal. Mais ainda, a chuva que rega os campos mediterrâneos – que rega os campos algarvios – concentra-se no Inverno, quando as plantas param, em obediência ao seu repouso anual, ausentando-se logo que elas retomam a actividade vegetativa. Assim, só aquelas que desenvolvem raízes profundas, a poderem procurar a humidade necessária ao seu desenvolvimento num longínquo subsolo – apenas algumas árvores e arbustos – vegetam bem em solos mediterrânicos22. O que não é de todo o caso dos cereais. Vale a rega artificial para 17 Podem ver-se como exemplo, entre muitos outros trabalhos: COMET, Georges − Le paysan et son Outil…, pp. 311-315; MONTANARI, Massimo − “Rese cerealicole e rapporti di produzione”. In Campagne medievali: strutture produttive, rapporti di lavoro, sistemi alimentari. Turim: G. Einaudi, 1984, pp. 5571; NEVEUX, Hugues − “Bonnes et mauvaises récoltes du XIVe au XIXe siècle. Jalons pour une enquête sistématique”. Revue d’histoire économique et sociale 53 (1975), pp. 177-192; CHERUBINI, Giovanni − “Risorse, paesaggio ed utilizzazione agricola del territorio della Toscana sud-occidentale nei seccoli XIV-XV”. In Scritti toscani: l’urbanesimo medievale e la mezzadria. Florença: Salimbeni, 1991, p. 231. 18 Também em Portugal há já várias décadas que estes assuntos têm despertado a atenção dos medievalistas. Podem ver-se: MARQUES, A. H. de Oliveira − Introdução à história da agricultura em Portugal. A questão cerealífera durante a Idade Média. 3.ª ed., Lisboa: Edições Cosmos, 1978, pp.48-50; COELHO, Maria Helena da Cruz − O Baixo Mondego nos finais da Idade Média (Estudo de história rural). Vol. I. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1983, Tese de Doutoramento, pp. 142-143; GONÇALVES, Iria − O património do mosteiro de Alcobaça nos séculos XIV e XV. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1989, pp. 340-344; PINA, Isabel Castro − A encosta ocidental da Serra da Estrela um espaço rural na Idade Média. Cascais: Patrimonia, 1998, p. 29; CATARINO, Maria Manuela − Na margem direita do Baixo Tejo: paisagem rural e recursos alimentares (sécs. XIV-XV), Cascais: Patrimonia, 2000, pp. 76-77; OLIVEIRA, José Augusto da Cunha Freitas de − Na península de Setúbal, em finais da Idade Média: organização do espaço, aproveitamento dos recursos e exercício do poder. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pp. 227-228. 19 RIBEIRO, Orlando − Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico: esboço de relações geográficas. 2.ª ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1963, p. 68; RIBEIRO, Orlando – “A vida rural”. In RIBEIRO, Orlando; LAUTENSACH, Hermann (dir.) – Geografia de Portugal. Org., coment. e actualização por Suzanne DAVEAU. Vol. IV: A vida económica e social. Lisboa: Edições Sá da Costa, 1991, p. 998. 20 O que foi sublinhado, entre outros, por BIROT, Pierre − Portugal: estudo de geografia regional. 2ª ed., Lisboa: Livros Horizonte, 2004, p. 121. 21 RIERA I MELIS, Antoni − “Els pròdroms de les crisis agràries de la Baixa Edat Mitjana a la Corona d’Aragó. 1250-1300”. In Miscel.lània en homenatje al P. Agustí Altisent. Tarragona: Diputació de Tarragona, 1991, p. 36. 22 Por isso a fruta foi, desde sempre, a grande riqueza do Algarve e sobretudo os figos, muito nutritivos e podendo, após secagem, ser utilizados ao longo do ano, foram, quantas vezes, o alimento que permitiu a 184 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL colmatar esta grave deficiência, mas a Idade Média apenas a praticava nas culturas mimosas que à época se produziam na horta, bem perto da residência do camponês. Estava muito longe de chegar à seara. Em todo o lado, ao menos na Europa meridional, os camponeses afadigavam-se na cultura dos cereais, em quaisquer terras, aptas ou não para os produzir. Era preciso alimentar o maior número possível de bocas – todas as existentes, de preferência – era preciso, portanto, produzir o indispensável grão. E se assim era em glebas mais promissoras do que estas do extremo sul português, assim tinha que ser em todo o Algarve. Assim era em Loulé, onde o trigo aparecia cultivado sempre que os solos o permitiam, sobretudo nos terrenos bordejantes das encostas do mar, nas margens das ribeiras, nos terrenos aluviais do Barrocal, à sombra espessa dos pomares23. Foi esta uma característica que se manteve até aos nossos dias, com o cereal, e naturalmente outros produtos, a serem cultivados nos mesmos terrenos dos figueirais e restante arvoredo24. É certo que, tanto quanto sei, não existe documentação, para a época que aqui está em análise, capaz de nos informar acerca da composição das searas louletanas e, por extensão, algarvias. Mas é lícito pensar na predominância do trigo, não só porque assim acontecia em todo o Sul do País25, mas sobretudo porque, relativamente a época um pouco posterior, aí, sim, já existe informação precisa sobre o assunto. E essa informação, relativa à aneza de 1539 informa-nos de que os dízimos cerealíferos cobrados em Loulé, a serem correctamente recebidos, mostram que as searas aqui implantadas produziram 75,8% de trigo, 21,4% de cevada e apenas 2,8% de centeio26. sobrevivência das populações mais desabonadas. Até épocas assaz próximas de nós. 23 MAGALHÃES, Joaquim Antero Romero de − Para o estudo do Algarve económico durante o século XVI. Lisboa: Edições Cosmos, 1970; MAGALHÃES, Joaquim Antero Romero de − “Gado e paisagem: o Algarve nos séculos XV a XVIII”. In Livro de homenagem a Orlando Ribeiro. Vol. 2. Lisboa: Centro de Estudos Geográficos, 1988, p. 84; BOTÃO, Maria de Fátima − Silves, a capital de um reino medievo. Silves: Câmara Municipal de Silves, 1992, pp. 65-66; BOTÃO, Maria de Fátima − A construção de uma identidade urbana no Algarve medieval: o caso de Loulé. Lisboa: Edições Caleidoscópio, 2009, p. 223; ALMEIDA, Cristóvão de − Da vila ao termo: o território de Loulé na Baixa Idade Média. Loulé: Arquivo Municipal de Loulé, 2017, p. 65. 24 FONSECA, Teresa − O município de Loulé no final da Época Moderna: economia, sociedade e administração. Loulé: Arquivo Municipal de Loulé, 2017, p. 30; FEIO, Mariano – Le Bas Alentejo et l’Algarve (Livret-guide de l’escursion en) Congrès international de géographie, Lisbonne, 1949. Lisboa: [s.n.], 1949, p. 110; RIBEIRO, Orlando − “A vida rural…”, p. 1015; LAUTENSACH, Hermann − “A utilização do solo”. In RIBEIRO, Orlando; LAUTENSACH, Hermann (dir.) – Geografia de Portugal. Org., coment. e actualização por Suzanne DAVEAU. Vol. IV, A vida económica e social. Lisboa: Edições Sá da Costa, 1991, pp. 948, 979. 25 Vejam-se, como exemplo: FERNANDES, Hermenegildo Nuno Goinhas − Organização do espaço e sistema social no Alentejo medievo: o caso de Beja. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1991, Dissertação de Mestrado, p. 48; CONDE, Manuel Sílvio Alves − Uma paisagem humanizada: o Médio Tejo nos finais da Idade Média. Vol. I. Cascais: Patrimonia, 2000, sobretudo p. 195; CATARINO, Maria Manuela − Na margem direita do Baixo Tejo…, p. 70; OLIVEIRA, José Augusto da Cunha Freitas de − Na península de Setúbal, em finais da Idade Média…, pp. 221-223; OLIVEIRA, José Augusto da Cunha Freitas de − Castelo de Vide na Idade Média. Lisboa: Colibri, 2011, p. 70 e nota 97; GONÇALVES, Iria − À mesa nas terras de Alcobaça…, pp. 113-122. 26 MAGALHÃES, Joaquim Antero Romero de − Para o estudo do Algarve económico…, p. 65. As percentagens foram obtidas por mim, a partir dos valores ali apresentados pelo autor citado em moios e alqueires, e considerando o moio de sessenta e quatro alqueires. UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA 185 Isto é, o trigo, alimento humano, em enorme preponderância; a cevada, de preferência alimento animal, sobretudo de cavalos e muares, e, neste sentido, também um cultivo bastante elitista, com uma percentagem ainda considerável, não muito longe do quarto da safra; o centeio, o outro cereal de Inverno, em princípio destinado à alimentação humana, confinado, por certo, a pequenas searas marginais, em solos onde, de todo, o trigo não medraria, com uma bem magra produção na colheita global; o milho – miúdo ou painço, porque o recém-chegado maís não se encontrava ainda muito divulgado – o quarto cereal que geralmente se cultivava entre nós, de todo ausente. Talvez porque, precisando de mais humidade que os restantes, seria mais difícil de agricultar numa região onde o sequeiro era a regra. Dada a persistência com que, de uma maneira geral, os camponeses sempre tenderam a reproduzir as suas práticas de geração em geração, podemos considerar que já na Idade Média, e sobretudo nos seus tempos finais, o trigo era grandemente maioritário nas searas louletanas, acompanhado apenas, com alguma expressividade, pela cevada. Isto é, em solos e clima pouco propícios, era o trigo, o cereal de todos o mais exigente, que os louletanos e por certo os demais algarvios, teimavam em cultivar. Com fracos resultados, sem dúvida27. Mas era esse o hábito já longamente implantado na região; era com o trigo que se fabricava o pão que todos queriam consumir, porque também já longamente acostumados a que assim fosse. Havia que procurá-lo, não importando os trabalhos, as canseiras, os sacrifícios que a tarefa exigia28. 2. O abastecimento trigueiro. 2.1 Dentro da normalidade possível. Para todos os produtos de primeira necessidade e nomeadamente para os produtos alimentares, as cidades e vilas procuravam, em primeiro lugar, os recursos do seu termo. Assim a vila de Loulé contava abastecer-se de trigo, antes de recorrer a outros lugares, mais próximos ou mais longínquos, com o cereal produzido nas terras sob a sua jurisdição. Todavia, em vista do que atrás ficou dito, as colheitas daí resultantes deixavam muito a desejar e apenas bastariam, se bastassem, para os primeiros meses após as ceifas. Aliás, todas as vilas algarvias se queixavam das suas magras produções29, sendo que mesmo em anos de colheita normal era necessário, e 27 Tanto quanto sei não se conhecem índices de produtividade do trigo, para o Algarve e para a época aqui em análise, mas a avaliar pelas condições em que ele era agricultado nestas terras e pela generalizada baixa produtividade a que já atrás me referi, mesmo tratando-se de solos e climas mais adaptados a este cereal, os resultados algarvios não deviam ser muito prometedores. 28 Veja-se o que atrás ficou dito a este respeito. 29 Para citar apenas alguns exemplos poderei lembrar que Silves se queixa de que a terra é muito minguada de pão (Cortes portuguesas. Reinado de D. Afonso V (Cortes de 1439). Organização e revisão geral por João José Alves Dias e Pedro Pinto. Lisboa: Centro de Estudos Históricos, 2016, p. 418). 186 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL desde cedo, importar grão. Sendo, como já atrás ficou dito, poucos os solos capazes de receber a semente e fazê-la produzir bem, nomeadamente a semente trigueira30, outra coisa não era de esperar. Maria de Fátima Botão chega mesmo a dizer que o deficit cerealífero era uma das marcas de identidade algarvia31. Com condições adversas ou nem tanto assim, os algarvios, e concretamente os louletanos, não descuravam as suas searas. Naturalmente os camponeses não podiam fazê-lo porque estava em causa a sua própria sobrevivência e também porque era isso que todos esperavam deles, e não lhes eram permitidas omissões. Aliás, como tantas vezes e em tantos outros lugares aconteceu, também no Algarve podia ser atribuída a falta de pão aos agricultores que supostamente abandonavam os cultivos para se “lançarem a regatia”32. Mas também os proprietários abonados não podiam descurar as suas lavras, fossem elas trabalhadas por quem fossem, e pelo menos à colheita e à recolha dos produtos eles queriam estar presentes. Com efeito, os mesmos dirigentes de Loulé queriam férias da vereação concelhia para com maior disponibilidade se poderem dedicar a estas tarefas, supervisionando e acautelando os seus interesses. O que não era uma singularidade desta terra. E se em 1394 ainda ficou dito que as necessitavam até S. Miguel de Setembro, isto é, até as “novidades” serem apanhadas33, o que englobava um vasto leque de produções agrícolas, incluindo, em primeiro lugar porque a mais importante, a apanha e secagem dos seus preciosos figos, a riqueza maior da terra, em 1408 elas seriam de trinta dias a partir de 8 de Junho, para a ceifa do pão34. Entre estas famílias, as mais abonadas da terra, algumas havia que semeavam searas ao menos relativamente consideráveis. Em 1455, num capítulo apresentado por Loulé às cortes nesse ano reunidas em Lisboa, pedia-se ao rei que não fossem constrangidos ao serviço militar os lavradores que semeassem anualmente pelo Faro, por seu lado, denuncia a mesma situação (Cortes portuguesas. Reinado de D. Manuel I (Cortes de 1498). Organização e revisão geral por João José Alves DIAS. Lisboa: Centro de Estudos Históricos, 2002, p. 405); Lagos expõe que a vila não se mantém, a não ser com o pão que vem de fora (CORTES portuguesas. Reinado de D. Manuel I (Cortes de 1498)…, p. 419) e reconhece que tem muito pouco trigo de sua colheita (Descobrimentos portugueses. Documentos para a sua história, public. e pref. por João Martins da Silva Marques. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1988, vol. III (1461-1500), doc. 243, p. 363); Tavira explica que sempre tem falta de cereais (BARROS, Henrique da Gama – Historia da administração publica em Portugal nos seculos XII a XV. 2ª ed., org. por Torquato de Sousa SOARES. Vol. IX. Lisboa: Sá da Costa, 1950, p. 74); Loulé, por sua vez diz-se “falida” de pão, carnes, azeites e outros mantimentos, os quais não pode haver salvo se os trouxer de fora, porque está em comarca em que não o há de seu (IRIA, Alberto – O Algarve e os Descobrimentos. Vol. II de Descobrimentos portugueses, t. 1, p. 309). Panorama assaz generalizado e muitas vezes repetido. 30 Veja-se o que atrás ficou dito em relação a toda a zona mediterrânica. 31 BOTÃO, Maria de Fátima − “Os eixos estruturantes de uma história”. In SERRA, Manuel Pedro (coord.) − O foral de Loulé 1504 – D. Manuel. Loulé: Câmara Municipal de Loulé, 2004, p. 26. 32 BARROS, Henrique da Gama – Historia da administração publica em Portugal…, vol. IX, p. 82. 33 Actas de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV, sep. de Al’-Ulyā, n.º 7, Loulé, 1998-2000, p. 59. 34 Ib., p. 197. O que mostra as searas algarvias mais temporãs do que, de uma maneira geral, nas terras mais a Norte, amadurecidas, principalmente, por todo o mês de Julho. UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA 187 menos um moio de pão e criassem os seus gados35, capítulo igualmente apresentado por Tavira36. Sendo este o mínimo exigido para poder ser englobado no pedido de isenção, é certo que várias famílias semeavam bastante mais. Naturalmente não podemos saber se seriam muitas ou poucas essas famílias, nem qual poderia ser o limite das suas sementeiras. No entanto, se considerarmos os níveis de riqueza dos privilegiados de Loulé – aliás, aqueles que com mais probabilidade detinham as maiores fortunas – durante a década de sessenta do século XV, verificamos que as famílias avaliadas em vinte mil reais e daí para cima – sendo que o limite máximo de avaliação se fixara nos trinta mil reais – constituíam a maioria desses privilegiados, englobando 60% das famílias37, no total de oitenta e uma38. Mas outras haveria ainda com algum poder económico entre a população não privilegiada. Talvez seja lícito pensar que existiria aí uma elite, quiçá com algum peso demográfico, capaz de se abastecer a si própria e colocar ainda algum grão no mercado, ao menos em anos de colheita normal39. É sabido que as fortunas louletanas, como de uma maneira geral as algarvias, se faziam sobretudo à base dos frutos secos e dos vinhos, como eles próprios reconheciam40 e tantos investigadores já confirmaram. Mas na Idade Média não havia proprietário de terras, não havia foreiro trabalhando em solo alheio, que não reservasse a maior parte dos seus terrenos agricultados para entregar à seara, rendesse ela muito ou pouco. E fossem esses terrenos exclusivamente ocupados pelo cereal, ou vegetasse este em consociação com outras plantas. Descobrimentos portugueses…, supl. ao vol. I, doc. 1133, p. 562. Descobrimentos portugueses…, supl. ao vol. I, doc. 1167, p. 573. 37 BOTÃO, Maria de Fátima − “A contribuição das fortunas louletanas nas despesas públicas do Portugal medievo”. Al’-Ulyā 8 (2001-2002), gráfico da p. 133. 38 BOTÃO, Maria de Fátima − “A contribuição das fortunas louletanas …”, pp. 140-146. Pode ver-se também, dentro desta perspectiva, para uma época um pouco posterior, o trabalho de DIAS, João José Alves − “Estratificação económico-demográfica do concelho de Loulé em 1505”. In Ensaios de história moderna. Lisboa: Editorial Presença, 1988, pp. 103-112. 39 Monserrat RICHOU J LLIMONA (“Una dècada d’abastament frumentari a Barcelona: la contribució de la iniciativa privada en els anys setenta del segle XIV”. In RIERA I MELIS, Antoni (coord.) − Crisis frumentaries, iniciatives privades i politiques publiques de proveïment a les ciutats catalanes durant la Baixa Edat Mitjana. Barcelona: Institut d’Estudis Catalans, 2013, p. 129) diz mesmo que alguns senhores nobres e eclesiásticos e até alguns mais abonados de entre a gente comum colocavam no mercado barcelonês mais trigo do que se tem pensado. Pode ver-se também sobre o assunto RIERA I MELIS, Antoni − ““Tener siempre bien aprovisionada la población”: los cereales y el pan en las ciudades catalanas durante la Baja Edad Media”. In ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz; SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús Ángel (eds.) − Alimentar la ciudad en la Edad Media, Nájera. Encuentros internacionales del Medievo 2008. Dal 22 al 25 de julio de 2008. Logronho: Instituto de Estudios Riojanos, 2009, p. 31. 40 Basta lembrar os incisivos dizeres de Tavira às cortes de Lisboa de 1446, onde os representantes da vila deixaram bem claro que “esta terra he toda fundada sobre fruita e vinhos que as jentes em ella nam tem outra cousa per que uiuam” (Cortes portuguesas. Reinado de D. Afonso V (Cortes de 1441-1447). Organização e revisão geral por João José Alves Dias e Pedro Pinto. Lisboa: Centro de Estudos Históricos, 2017, p. 479). Este documento foi já várias vezes publicado e referido, como em Descobrimentos portugueses…, vol. I, doc. 354, pp. 451-452; IRIA, Alberto − O Algarve nas cortes medievais portuguesas do século XV (Subsídios para a sua história). Vol. I – 1404-1449. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1990, pp. 231-235. 35 36 188 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Aliás era esse grão, o que os campos vizinhos à vila proporcionavam, o primeiro a ser consumido logo após as ceifas e aquele que em tantos lares de famílias desabonadas vinham matar fomes antigas, aquelas que até perto dos nossos dias, em alguns pontos do País, eram conhecidas por “fomes de Maio” e ainda assustavam muitos. Este grão precisava ser bem acondicionado para durar em boas condições o máximo de tempo possível. Felizmente o Algarve apresentava boas condições para isso. Um clima seco, algumas rochas macias, capazes de nelas se escavarem silos de paredes bem alisadas, impermeabilizadas por um saber herdado da dilatada presença islâmica no local, a permitirem a conservação dos cereais durante largo tempo sem deterioração41. Nem sempre, porém, essas condições se reuniam e não eram poucos os locais, mesmo nestas terras, onde as estruturas de armazenamento deixavam muito a desejar42. Todavia, o cereal produzido no termo era apenas uma pequena aportação, insignificante para o conjunto da vila e seu alfoz, mas sobretudo para aquela. Na verdade, neste final da Idade Média, em que as cidades haviam crescido de forma bem significativa e sobretudo por atracção de populações vindas do exterior, poucas eram as cidades, com algum peso demográfico capazes de se abastecerem apenas com os recursos do seu termo. Principalmente nesta Europa mediterrânica em que nos situamos. A não ser nos casos em que esse termo englobava alguns solos particularmente ricos, capazes de proporcionarem boas produções. Entre nós podiam orgulhar-se disso, por exemplo, Santarém e algumas vilas alentejanas, em especial Beja, Serpa, Mértola. Mas de modo algum isso acontecia no Algarve, vistas as condições atrás expostas. É certo que os camponeses do termo levavam, sempre que podiam, os seus excedentes ao mercado citadino43, onde o trigo tinha colocação garantida e onde os preços eram mais compensadores do que os possíveis de encontrar nas redondezas LUZIA, Isabel; PIRES, Alexandra − “Al’-Ulyā, a cidade islâmica”. In Loulé: territórios, memórias, identidades. Lisboa, Loulé: Museu Nacional de Arqueologia, Museu Municipal de Loulé, Imprensa Nacional -Casa da Moeda, 2017, p. 470. 42 Para Portugal veja-se sobretudo MARQUES, A. H. de Oliveira − Introdução à história da agricultura em Portugal…, pp. 118-119. Para outros espaços: WOLFF, Philippe − “L’approvisionnement des villes françaises au Moyen Âge”. In L’approvisionnement des villes de l’Europe Occidentale au Moyen Âge et aux Temps Modernes. Auch: Diffusion Comité départemental du tourisme du Gers, 1985, p. 20; IRSIGLER, Franz − “L’approvisionnement des villes de l’Alemagne Occidentale jusqu’au XVIe siècle”. In L’approvisionnement des villes de l’Europe Occidentale au Moyen Âge et aux Temps Modernes…. p. 121; COMET, Georges − Le paysan et son Outil…. pp. 366-367; CRUSELLES, Henrique; CRUSELLES, José M.ª; NARBONA, Rafael − “El sistema de abastecimiento frumentario de la ciudad de Valencia en el siglo XV: entre la subvención y el negocio privado”. In La Mediterrània, àrea de convergència de sistemes alimentaris (segles V-XVIII), XIV Jornades d’estudis històrics locals, Palma, del 29 novembre al 2 de desembre de 1995. Palma de Maiorca: Institut d’Estudis Barleàrics, 1996, p. 307. E podia continuar a série. 43 Descobrimentos portugueses…, supl. ao vol. I, doc. 7, p. 13; IRIA, Alberto − O Algarve e os Descobrimentos…, t. I, p. 282. 41 UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA 189 das suas explorações agrícolas. No entanto, quase sempre magros excedentes e que em regra pouco contavam no abastecimento da urbe. Claro que um ou outro grande proprietário podia fazer chegar à cidade uma aportação mais significativa de cereal, mas mesmo assim todas insuficientes no conjunto dos quantitativos que o abastecimento urbano exigia. E mesmo assim, muitas vezes, esse trigo chegava compelido pelos órgãos directivos concelhios, no exercício dos seus direitos jurisdicionais, direitos de que, entre as demais urbes portuguesas e não só, também Loulé soube usar44. Todavia, em tempos de colheita normal, o abastecimento frumentário decorria sem grandes sobressaltos. Os mercadores iam chegando com cereal proveniente sobretudo de Mértola, Beja, Serpa, Campo de Ourique45, que desses locais se podia, em regra, exportar para fora da região. Aliás, quando os louletanos, que em 1384, se preparavam activamente para fazer face a um possível cerco por parte das tropas castelhanas, uma das primeiras preocupações dos seus dirigentes no respeitante ao abastecimento da vila, para além de obrigarem a colocar nas fangas, para venda ao público, todo o cereal disponível na terra e tabelarem os preços a prevenir a inflação, foi enviarem um homem a Beja e ao Campo de Ourique, pedir saca de trigo. Até porque, diziam, talvez para impressionarem os poderes superiores, que estando a vila abastecida se povoaria melhor e “os moradores e naturaiis della estaram mais firmes esforçados contra seus inmigos”46. De uma maneira geral o trigo ia chegando por intermédio de mercadores da terra ou de fora dela, profissionais ou ocasionais, isto é, homens pretendendo realizar algum negócio potencialmente lucrativo. Esses negócios podiam – e talvez devessem, a prevenir perdas, sobretudo quando demandavam quantias importantes – ser contratados, em primeiro lugar, com os poderes locais. Nestes casos os mercadores comprometiam-se a trazer à vila uma determinada quantidade de trigo sob as condições acordadas por ambas as partes, acordo que, para maior firmeza, podia ficar exarado em acta de reunião camarária47. Tratava-se, nestes casos, de quantidades volumosas, a exigirem investimentos consideráveis que necessitavam, por vezes, da formação de sociedades de mercadores48, mas capazes de proporcionarem consideráveis lucros. Porém, em caso de perdas, elas podiam ser igualmente importantes. Havia que proceder com cautela e garantir previamente a colocação do cereal a um preço que compensasse o investimento. Este Actas de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV…, pp. 29-30. MAGALHÃES, Joaquim Antero Romero de − Para o estudo do Algarve económico…, p. 77; FERNANDES, Hermenegildo Nuno Goinhas − Organização do espaço e sistema social no Alentejo medievo…, pp. 47-48, 91-92. 46 Actas de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV…, p. 30. 47 Actas de vereação de Loulé. Século XVI 1522-1527, suplem. de Al’-Ulyā, n.º 14, coord. geral por Luís Miguel DUARTE, Loulé, 2014, pp. 153-155. 48 Foi o caso do contrato referido na nota anterior. 44 45 190 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL trigo era trazido de mais distantes paragens. Na verdade, mesmo em anos de boas colheitas, a endémica situação deficitária do Algarve obrigava sempre a uma procura alargada, a ultrapassar o País. Nestes finais da Idade Média, tratando-se de trigo forâneo49, o Algarve abastecia-se, em primeiro lugar, na Andaluzia50, ao menos quando havia paz entre os dois reinos. Aliás, o próprio monarca dava o exemplo, mantendo aí, a partir da segunda metade do século XV, um feitor que percorria a região a comprar o trigo com que se abasteciam as praças de África51, mas de que algum ia ficando no País. As ilhas eram também um destino a procurar, fossem elas portuguesas ou castelhanas52, ao menos durante os tempos em que as suas produções foram consideradas muito boas, embora, como é sabido, aquela generosidade produtiva tivesse decaído assaz rapidamente. 2.2. Em tempo de escassez cerealífera. Se não era fácil, em anos de colheita normal, fazer chegar o pão a todas as bocas louletanas, muito menos o era em anezas de más colheitas, de “esterilidades”, como tantas vezes a documentação da época refere. Na verdade a Europa, sobretudo devido a perturbações de ordem climática, embora, por vezes, também devido a acções humanas, nomeadamente a tão repetidos conflitos bélicos53, foi sofrendo, ao longo dos séculos, carências alimentares mais ou menos profundas, mais ou menos alargadas, mas sempre altamente perturbadoras e, por vezes, mesmo mortíferas. Aqui, neste espaço em que nós, portugueses, nos situamos, e de um modo especial neste espaço em que se situa o Algarve, em que se situa Loulé, bafejada pelos últimos sopros quentes do Golfo de Cádis, essas perturbações, até pelo que já atrás ficou dito, tinham quase sempre a ver com secas mais prolongadas ou severas. Ora, a Idade Média não tinha ao seu dispor quaisquer 49 Claro que dadas as produções, enormes para a época, de que foram capazes as ilhas atlânticas durante algum tempo (MARQUES, A. H. de Oliveira − Introdução à história da agricultura em Portugal..., sobretudo pp. 247-254), também aí o Algarve se abasteceu. 50 FONSECA, Luís Adão da − “As relações comerciais entre Portugal e os reinos peninsulares nos séculos XIV e XV”. In Actas das II Jornadas luso-espanholas de história medieval. Vol. II. Porto: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1987, p. 553. 51 RAU, Virgínia − “Nota sobre os feitores portugueses na Andaluzia no século XV”. In Estudos de história medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1985, pp. 132-137. Já para inícios do século XVI pode ver-se, mais desenvolvidamente, a acção destes feitores em CORTE-REAL, Manuel Henrique − A feitoria portuguesa na Andaluzia (1500-1532). Lisboa: Centro de Estudos Históricos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1967. 52 Actas de vereação de Loulé. Século XVI 1522-1527…, pp. 153-155. 53 Apesar de tudo as guerras, embora altamente perturbadoras também nos aspectos aqui tratados, porque impediam o normal exercício da actividade agrícola, porque destruíam as colheitas, pelas razias que os exércitos provocavam na sua passagem, eram mais circunscritas e por isso menos devastadoras. As forças da Natureza, mais abrangentes, prolongando-se, por vezes, por vários anos, sobretudo se de ordem climática, eram as que, na verdade, causavam as grandes calamidades alimentares. UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA 191 meios que lhe permitissem enfrentar com sucesso essas adversidades que se iam colocando no seu caminho. Sucediam-se, na circunstância, os pedidos de ajuda a Deus, representados por procissões e por outros tipos de celebrações religiosas, largamente documentadas por toda a parte, mas pouco ou nada mais54. Foram muitos os períodos de escassez, ou mesmo de crise cerealífera aguda que ao longo dos tempos se foram abatendo sobre a Europa e afectando áreas mais ou menos dilatadas, com intensidade mais ou menos profunda, de acordo com a natureza, a força e a abrangência dos fenómenos que haviam estado na sua origem55. E que, naturalmente, Portugal teve também que suportar56. Lisboa e o Algarve com maior violência, porque sempre, entre nós, os dois espaços mais carenciados de cereal57. Ora, se uma das principais preocupações dos governos urbanos, se não a principal, era o correcto abastecimento das suas cidades, sobretudo em produtos essenciais e de uma maneira especial nos que respeitavam ao provimento alimentar58, Já em outras ocasiões tive a oportunidade de me referir a estes assuntos, tendo, em alguma delas, deixado as minhas afirmações apoiadas em larga resenha de estudos, de proveniência vária, a partir da qual ficou claro, penso, a grande abrangência do fenómeno, ao menos no âmbito da Europa mediterrânica. Pode ver-se GONÇALVES, Iria – “Panem nostrum quotidianum da nobis hodie…”, nota 19. 55 Já há muito que a historiografia europeia se tem vindo a preocupar com este assunto, pelo que a bibliografia sobre o mesmo é já muito longa. Limitar-me-ei, aqui, a apontar apenas o clássico trabalho de ABEL, Wilhelm – Crises agraires en Europe (XIIIe-XXe siècles). Paris: Flammarion, 1973, passim, propondo ao investigador interessado, a leitura do trabalho citado na nota anterior, onde se encontra referenciada uma bibliografia relativamente extensa. 56 Também em Portugal o assunto já há muito chamou a atenção dos medievalistas, podendo verse: DUARTE, Maria Teresa Lopes − Para a história dos factores de crise no Portugal medieval. 1348-1438. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1974, Dissertação, pp. 75-78; MARQUES, A. H. de Oliveira – Introdução à história da agricultura em Portugal…, pp. 36-45, 257-282; MARQUES, A. H. de Oliveira – Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV, vol. IV da Nova História de Portugal, SERRÃO, Joel e MARQUES, A. H. de Oliveira (Dirs.). Lisboa: Editorial Presença, 1987, p. 30; MATTOSO, José – “1096-1325”. In MATTOSO, José (dir.) − História de Portugal. Vol. II: A Monarquia Feudal. Lisboa: Círculo de Leitores, 1993, p. 202; FERREIRA, Sérgio Carlos – Preços, salários e níveis de vida em Portugal na Baixa Idade Média. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2014, pp. 82 e seg. Dissertação de Doutoramento. Iria GONÇALVES, ob. cit. nas notas anteriores. 57 Já no início do século XX Henrique da Gama Barros chamou a atenção para o facto em História da administração pública em Portugal, vol. IX, p. 73. Depois dele muitos investigadores o foram repetindo, com aportação de novas informações ou sem ela. 58 Diversos investigadores já comprovaram isso mesmo, como, por exemplo: RIERA MELIS, Antoni − “‘Tener siempre bien aprovisionada la población’…”, pp. 23-57; BOTÃO, Maria de Fátima − A construção de uma identidade urbana…, p. 181; CASTRO MARTÍNEZ, Teresa − El abastecimiento alimentario en el reino de Granada (1482-1510), Granada: Editorial Universidad de Granada, 2004, p. 177; DIAGO HERNANDO, Maximo − “Las políticas comerciales de los reinos en la Europa bajomedieval”. In El comercio en la Edad Media. XVI semana de estudios medievales. Nájera y Tricio del 1 al 5 de Agosto de 2005. Logronho: Instituto de Estudios Riojanos, 2006, p. 399; BENITO I MONCLÚS, Pere − “Las crisis alimenticias en la Edad Media: caracteres generales, distinctiones y paradigmas interpretativos”. In LOPÉZ OJEDA, Esther − Comer, beber, vivir: consumo y niveles de vida en la Edad Media hispánica, XXI semana de Estudios Medievales. Nájera del 2 al 6 de Agosto de 2010, Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 2011, p. 137; IRANZO MUÑIO, Maria Teresa − “Abastecimiento urbano y política frumentaria: el mercado del trigo en Huesca en el siglo XV”. In LALIENA CORBERA, Carlos; AFUENTE GÓMEZ, Maria (coord.) − Una economía integrada. Comércio, instituciones y mercados en Aragón, 1300-1500. Saragoça: Grupo de Investigación Consolidade CEMA, 2012, p. 212. E muitos outros podiam ser acrescentados. 54 192 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL em tempos de escassez de cereal essas preocupações subiam de tom e iam ganhando preponderância à medida que o fenómeno se ia agravando ou prolongando no tempo. E isso não só porque o pão era, como já atrás ficou lembrado e como tantas vezes tem sido repetido, a base de todo o sistema alimentar, como também, e até por essa mesma circunstância, as consequências que daí advinham eram múltiplas e podiam atingir bastante gravidade. Sobretudo porque a escassez do cereal, provocando o seu encarecimento, acarretava consigo a subida de todos os preços, a torná-los, por vezes, incomportáveis, sobretudo para as bolsas mais carenciadas. Sendo o controlo da inflação, como adiante voltarei a referir, um dos problemas básicos que os dirigentes municipais necessitavam resolver para manter a ordem pública59, precisavam lançar mão de todos os meios ao seu alcance para manter a cidade abastecida. Tarefa ingente, todavia, sobretudo durante estes períodos críticos. E a previsão de má uma colheita, ou o simples rumar de um possível desabastecimento, um boato posto a circular nesse sentido60, era quanto bastava para que todo o sistema habitual se descontrolasse, com consequências, por vezes, desastrosas. Perante a iminência de uma crise de desabastecimento frumentário, fosse ela real ou imaginária, como também podia acontecer, a primeira preocupação das edilidades era proibir a saída do trigo para fora dos limites da sua jurisdição. É certo que Loulé – aliás, o Algarve – sempre tão deficitário, tinha todo o cuidado em impedir que o pouco cereal produzido na região dela fosse retirado. Mas isso não deixava de se verificar quando os preços praticados no exterior tentavam quem detinha alguns Concretamente sobre Loulé, veja-se BOTÃO, Maria de Fátima − A construção de uma identidade urbana…, p. 181; BENITO I MONCLÚS, Pere − “Las crisis alimenticias en la Edad Media: caracteres generales, distinctiones y paradigmas interpretativos…”, p. 140; chama ao controlo dos preços o segundo cavalo de batalha dos governantes municipais, sendo o primeiro o abastecimento da cidade. 60 Como verificaram diversos investigadores que estudaram o desenrolar destas crises, num esquema que, com pequenas variantes, era o mesmo em todos os tempos e lugares. Podem ver-se, como exemplos: STOUFF, Louis − Ravitaillement et alimentation en Provence… pp. 73 e seg.; RIERA I MELIS, Antoni − “Els pròdroms de les crisis agràries…”, pp. 35-72; RIERA I MELIS, Antoni − “‘Lo pus greu càrrech i perill que jurats d’aquesta ciutat han és tenir aquella sens fretura de blats’: el aprovisionamiento urbano de cereales en las ciudades de la Corona de Aragón durante la Baja Edad Media”. In SESMA MUÑOZ, Ángel (dir.) − La Corona de Aragón en el centro de su historia. 1208-1458. Aspectos económicos y sociales. Zaragoza y Calatayud, 24 al 26 de noviembre de 2009. Zaragoza: Universidad de Zaragoza, 2010, pp. 233-274; RIERA I MELIS, Antoni − “El mercat de cereals a la Corona Catalanoaragonesa. La gestió de les crisis alimentaris al segle XIII”. In RIERA I MELIS, Antoni (coord.) − Crisis frumentaries, iniciatives privades i politiques publiques de proveïment a les ciutats catalanes durant da Baixa Edat Mitjana. Barcelona: Institut d’Estudis Catalans, 2013, pp. 47-115; RUBIO VELA, Agustín − “Crisis agrarias y carestías en las primeras décadas del siglo XIV: el caso de Valencia”. Saitabi 37 (1987), pp. 131-147; MARTÍNEZ CAMAÑO, Francisco − “Crisis de subsistencias y estructuras de poder: el ejemplo de Barcelona en los años 1339-1341”. In La Mediterrània, àrea de convergència de sistemes alimentaris (segles V-XVIII), XIV Jornades d’estudis històrics locals, Palma, del 29 novembre al 2 de desembre de 1995, [Palma de Maiorca]. Palma de Maiorca: Institut d’Estudis Barleàrics, 1996, pp. 251-262; BENITO I MONCLÚS, Pere − “Fams i caresties a la Mediterrània occidental durant la Baixa Edat Mitjana: el debat sobre “les crisis de la crisi”, Recerques: història, economia, cultura 48 (2004), pp. 179-194; BENITO I MONCLÚS, Pere − “Carestía y hambruna en las ciudades de Occidente durante da Edad Media: algunos rasgos distintivos”. In ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz; SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús Ángel (eds.) − Alimentar la ciudad en la Edad Media, Nájera. Encuentros internacionales del Medievo 2008. Dal 22 al 25 de julio de 2008. Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 2009, p. 299-313. 59 UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA 193 excedentes. E assim podia acontecer em Loulé, onde, segundo os homens bons da terra, faltava trigo à venda nas fangas porque os produtores preferiam vendê-lo para fora61, o que, naturalmente, se procurava evitar por posturas impeditivas da sua saca e outros meios possíveis. Mesmo no respeitante a carregamentos que aportavam a uma vila, aí se procurava ciosamente guardá-los62. Depois era preciso não descurar a procura dos mercados de onde se pudesse canalizar para a vila o máximo de grão possível. Primeiramente demandando os circuitos habituais – Beja, Serpa, Mértola, Campo de Ourique – com o já tão experimentado prolongamento até à Andaluzia, depois alargando o raio de procura até onde fosse possível encontrar algum trigo. Aí, por vezes, os meios necessários à atracção do cereal ultrapassavam as capacidades locais. Era preciso oferecer aos mercadores compensações suplementares e se algumas ainda as edilidades podiam, no âmbito das suas competências, tomar as decisões necessárias, como era o caso de oferecer em troca do pão os produtos locais não defesos63, para outras já era necessária uma autorização régia. E era o caso, por exemplo, da exportação de gado para Castela – novilhos, na circunstância64 – ou como acontecia, sobretudo quando se tratava da isenção de determinados tributos, nomeadamente as dízimas régias, de que só o monarca podia dispor. Todavia, em determinadas circunstâncias, o soberano prescindia delas, para facilitar a vinda de cereal do exterior65. Entretanto o trigo ia faltando nos mercados porque a produção fora mais escassa ainda, a reserva que cada produtor fazia para si próprio era toda a possível e os grandes agricultores abstinham-se de colocar os seus excedentes nas fangas locais; mercadores e outros indivíduos com dinheiro para investir compravam quantidades de cereal disponível para colocar à venda apenas no momento propício, isto é, com os preços já em alta, na prossecução de um esquema especulativo que podia gerar 61 Actas de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., p. 29. Aliás, isso podia acontecer em qualquer parte. Portugal, no conjunto das suas regiões, era muito deficitário em cereais e, no entanto, também chegava a exportar. MARQUES, A. H. de Oliveira − Introdução à história da agricultura em Portugal, pp. 168-173; ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz − “El abastecimiento de las villas vizcaínas medievales: política comercial de las villas respecto al entorno y a su interior”. In La ciudad hispánica durante los siglos XIII al XVI. Actas del Colóquio celebrado en La Rábida y Sevilla del 14 al 19 de septiembre de 1981. Vol. I. Madrid: Universidad Complutense, 1985, p. 294; FAUGERON, Fabien − Nourir la ville: Ravitaillement, marchés et métiers de l’alimentation à Venise dans les derniers siècles du Moyen Âge. Roma: École Française de Rome, 2014, p. 410. 62 Era, por exemplo, o caso de Silves, que não queria dar saca de mantimentos a Faro e a Tavira, que impetravam, para isso, carta régia (IRIA, Alberto − O Algarve nas cortes medievais portuguesas do século XIV (Subsídios para a sua história)…, p. 111; IRIA, Alberto − O Algarve nas cortes medievais portuguesas do século XIV (Subsídios para a sua história). Vol. I, p. 282; CORTES portuguesas. Reinado de D. Afonso V (Cortes de 1441-1447)…, p. 481.). 63 Actas de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., pp. 199-200, 210-211. 64 CORTES portuguesas. Reinado de D. Afonso V (Cortes de 1439)…, p. 418. Publicado também por IRIA, Alberto − O Algarve nas cortes medievais portuguesas do século XV…, vol. I, pp. 200-202. 65 IRIA, Alberto − O Algarve e os Descobrimentos…, t. I, p. 366; DUARTE, Maria Teresa Lopes −Para a história dos factores de crise…, p. 71. O monarca podia também prescindir das mesmas dízimas quando se tratava do trigo produzido localmente: Descobrimentos portugueses, supl. ao vol. I, doc. 7, p. 13. 194 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL fartos dividendos66; o consumidor comum acorria ansiosamente ao mercado e com rapidez esgotava as parcas existências que nele ainda se encontravam67. Com tudo isto os preços iam subindo. É certo que os preços cerealíferos conheciam em regra oscilações sazonais mais ou menos pronunciadas, com quebras por altura das colheitas e subidas graduais à medida que o ano agrícola ia avançando, até chegar às “fomes de Maio”, a que já atrás fiz referência68. No entanto, quando a aneza se mostrava pouco generosa e mais ainda quando corriam os rumores de desabastecimento e o trigo começava a desaparecer dos habituais postos de venda, então nada parava a subida desordenada dos preços, que podiam chegar a atingir proporções dramáticas69. Aliás, o mercado algarvio já era, de uma maneira geral, caro. Sérgio Ferreira, estudando estes assuntos a nível de todo o País, diz mesmo que uma das imagens fortes que os preços transmitem é a da carestia dos mercados algarvios70. Naturalmente, dada a crónica escassez cerealífera da região, a torná-la sempre dependente do exterior, o facto tinha, como é óbvio, Podem ver-se alguns aspectos deste esquema em STOUFF, Louis − Ravitaillement et alimentation en Provence…, p. 56; BARRIO BARRIO, Juan Antonio − “La producción, el consumo y la especulación de los cereales en una ciudad de frontera: Orihuela, siglos XIII-XV”. In ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz; SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús Ángel (eds.) − Alimentar la ciudad en la Edad Media, Nájera. Encuentros internacionales del Medievo 2008. Dal 22 al 25 de julio de 2008. Logronho: Instituto de Estudios Riojanos, 2009, p. 75; DUARTE, Maria Teresa Lopes − Para a história dos factores de crise…, pp. 55-56. Mas quem sobretudo tem trabalhado estes assuntos é Antoni RIERA MELIS. Podem ver-se deste autor: “El mercat de cereals”…, pp. 65-69; “‘Tener siempre bien aprovisionada la población’…”, p. 35; “Pròleg”. In RIERA I MELIS, Antoni (coord.) − Crisis frumentaries, iniciatives privades i politiques publiques de proveïment a les ciutats catalanes durant da Baixa Edat Mitjana. Barcelona: Institut d’Estudis Catalans, 2013, p. 32; “Els cereals als mercarts catalanes de la Baixa Edat Mitjana” – SABATÉ I CURRULL, Flocel; PEDROL, Maite Pedrol (coord.) – El mercat: um món de contacts i intercanvis. Lérida: Pagès editors, 2014, pp. 127-128. 67 Vejam-se por exemplo: RIERA MELIS, Antoni − “Pròleg”…, p. 32; GONÇALVES, Iria − “Panem nostrum quotidianum da nobis hodie…”, no prelo. 68 Estes fenómenos já vêm a ser estudados desde há muito e a mostrar, por um lado, uma grande abrangência e por outro uma igualmente grande similitude de comportamentos. Podem ver-se, entre outros trabalhos: HEERS, Jacques − L’Occident aux XIVe et XVe siècles. Aspects économiques et sociaux. 2.ª ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1966, p. 394; BOIS, Guy − “Comptabilité et histoire des prix: les prix du froment à Rouen au XVe siècle”, Annales Histoire, Sciences Sociales 23/6 (1968) p. 1277; LA RONCIÈRE, Charles-M. de − Prix et salaires à Florence au XIVe siècle (1280-1380). Roma: l’École Française de Rome, 1982, p. 95. Para Portugal existem já disponíveis algumas boas listas de preços de cereais, como as que foram publicadas por MARQUES, A. H. de Oliveira − Introdução à história da agricultura em Portugal…, pp. 220223; VIANA, Mário − “Alguns preços de cereais em Portugal (séculos XIII-XVI)”, Arquipélago. História 2 série, XI-XII (2007-2008), pp. 207-279; FERREIRA, Sérgio Carlos − Preços, salários e níveis de vida em Portugal…, pp. 251-257. Tanto quanto sei, estão ainda pouco trabalhadas. 69 Também estas subidas descontroladas de preços já desde há muito chamaram a atenção dos medievalistas. Para lá das obras citadas na nota anterior, podem ver-se: BAULANT, Micheline − “Les prix des grains à Paris de 1431 à 1788”, Annales Histoire, Sciences Sociales 23/6 (1968), p. 537; TRICARD, Jean − Les campagnes limousines du XIVe au XVIe siècle: originalité et limites d’une reconstruction rurale. Paris: Éditions de la Sorbonne, 1996, p. 38; BENITO I MONCLÚS, Pere − “Carestía y hambruna en las ciudades de Occidente…”, pp. 305-307; BENITO I MONCLÚS, Pere − “Las crisis alimenticias en la Edad Media …”, pp. 127-129; RIERA MELIS, Antoni − “Pròleg…”, p. 32; GONÇALVES, Iria − “A propósito do pão da cidade na Baixa Idade Média portuguesa”. In SILVA, Carlos Guardado da – História da alimentação. Turres Veteras IX. Lisboa – Torres Vedras: Colibri, Instituto Alexandre Herculano e Câmara Municipal de Torres Vedras, 2007, pp. 57-58; GONÇALVES, Iria − “Panem nostrum quotidianum da nobis hodie…”, no prelo. 70 FERREIRA, Sérgio Carlos − Preços, salários e níveis de vida em Portugal…, p. 181. 66 UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA 195 reflexo nos preços do grão posto à venda e arrastando este na sua esteira, como já atrás ficou dito, todos os outros, constituía-se uma cadeia que só podia resultar num sério agravamento do custo de vida. Ora, quando em 1371-1372 D. Fernando, segundo Fernão Lopes, tabelou o preço do alqueire de trigo, fê-lo estabelecendo custos muito diferentes para as diversas comarcas do reino, numa escala que se desenrolava entre cinco libras para o Algarve e vinte soldos para a Beira e para o Entre-Douro-e-Minho71. Isto é, o primeiro valor 400% mais alto do que o segundo72. E se aquele era um preço muito alto e talvez exorbitado pelo cronista ou por quem o informou, na falta de documento fidedigno, outros registos, embora mais comedidos, não deixam de evidenciar uma considerável carestia, inclusive em comparação com algumas das mais importantes cidades portuguesas. Com efeito, puderam compararse preços louletanos e conimbricenses, sendo os primeiros 100% mais elevados, ou com outros, provenientes de Santarém, sendo o trigo em Loulé 150% mais caro. E se entre esta vila e Évora a diferença podia ser apenas de mais 25%73, é porque também o trigo alentejano era caro, uma vez que, voltando à tabela apresentada por Fernão Lopes, este era o segundo mais caro, com o preço de três libras o alqueire74. Partindo de preços já tão elevados, as crises cerealíferas em Loulé como em todo o Algarve, apresentavam, sem dúvida, aspectos bem dramáticos, nomeadamente para as famílias mais carenciadas. Até porque, se as gentes mais abonadas podiam produzir ou receber a título de rendas o cereal que consumiam, e ainda gerar excedentes ou, quando não, podiam abastecer-se em qualquer altura, e assim fazê-lo na época das colheitas, quando o trigo era mais barato, os outros, os que não produziam ou não o suficiente e não tinham a liquidez necessária para um abastecimento por grosso, precisavam comprá-lo à medida que iam dispondo de algum dinheiro para isso e assim iam-no comprando cada vez mais caro. Isto é, quanto mais pobres as famílias fossem, mais caro pagavam o seu pão. Perante situações de alta desordenada de preços, por vezes a atingirem níveis eventualmente incomportáveis para boa parte da população, podia encontrar-se em perigo a ordem pública, situação que os dirigentes locais não podiam permitir, sob pena de consequências graves para a sua cidade e para eles próprios. Havia que tomar medidas no sentido de evitar o pior. De uma maneira geral essas medidas eram de três tipos: procurar o cereal em circuitos tão alargados quanto possível e necessário, usando de todos os meios ao alcance das edilidades e dentro da esfera das suas competências para o atrair aos respectivos mercados; controlar o mais rigorosamente possível todo o grão existente 71 LOPES, Fernão − Crónica do senhor rei Dom Fernando nono rei destes reinos. int. de Salvador Dias Arnaut. Porto: Livraria Civilização, 1966, cap. LVI, p. 150. 72 Valor obtido por FERREIRA, Sérgio Carlos − Preços, salários e níveis de vida em Portugal…, p. 181. 73 FERREIRA, Sérgio Carlos − Preços, salários e níveis de vida em Portugal…, p. 181. 74 LOPES, Fernão − Crónica do senhor rei Dom Fernando nono rei destes reinos..., cap. LVI, p. 150. 196 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL na cidade e respectivo alfoz e obrigar a pôr à venda todos os excedentes; refrear ao máximo a subida dos preços, cuidando que a distribuição do produto fosse equitativa. Embora com inevitáveis diferenças devidas a especificidades locais e temporais e também a maneiras de pensar e executar dos diferentes governos, acabavam sempre por ser muito semelhantes as medidas implementadas em conjunturas de escassez frumentária75. Se em épocas normais Loulé se atarefava a procurar no exterior a maior parte do grão que consumia, embora em circuitos habituais e bem definidos, em situações de carência o raio de procura alargava-se tanto quanto possível76 e quanto mais alargadas fossem as relações dos mercadores que habitualmente a serviam77, ou outros. Portugal, sempre carenciado de grão, tinha já estabelecido, nestes últimos séculos medievais, um muito grande circuito de relações comerciais em que o cereal contava de uma forma muito preponderante. E se dentro desse circuito os lugares preferenciais de abastecimento podiam mudar, de acordo com conjunturas várias, quando decorriam anos de normalidade78, todo ele era percorrido e aliciado a intervir em períodos de carência aguda79. E neste capítulo o Algarve figurava sempre, a par de Lisboa, como sendo os mais necessitados. Conhece-se, para o Algarve, um ou outro desses casos porque Loulé nos fez chegar deles algumas memórias. A década de 80 do século XV foi entre nós tempo de carência frumentária80, com alguns picos de grande penúria. Conservaram-se, para o período correspondente à aneza de 1468 as actas de vereação de Loulé, onde as diligências efectuadas pelos governantes nesse ano em exercício, no sentido de conservar a vila abastecida, se 75 Já em outra ocasião tive oportunidade de tratar este assunto. Veja-se GONÇALVES, Iria − “A propósito do pão da cidade…”, pp. 57-61 e as abonações que aí foram utilizadas. Podem ver-se ainda: BARRIO BARRIO, Juan Antonio − Finanzas municipales y mercado urbano en Orihuela durante el reinado de Alfonso I (1416-1458). Alicante: Diputación Provincial de Alicante e Instituto Alicantino de Cultura Juan Gil-Albert, 1998, pp. 113 e seg.; IRANZO MUÑIO, Maria Teresa − “Abastecimiento urbano y política frumentaria…”, p. 220; RIERA MELIS, Antoni − “El mercat de cereals…”, pp. 165 e seg.; PINTO, Giuliano − “I rapporti economici tra città e campagna”. In GRECI, Roberto (org.) − Economia urbana ed etica economica nell’ Italia medievale. Roma–Bari: Laterza, 2005, p. 51. 76 Também já muitos investigadores verificaram este facto. Podem ver-se: MARQUES, A. H. de Oliveira − Introdução à história da agricultura em Portugal…, p. 164; ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz − “El abastecimiento de las villas vizcaínas…”, p. 294; IRANZO MUÑIO, Maria Teresa − “Abastecimiento urbano y política frumentaria…”, p. 220; STOUFF, Louis − Ravitaillement et alimentation en Provence…, p. 56; FAUGERON, Fabien − Nourir la ville…, pp. 294-295; GONÇALVES, Iria − “A propósito do pão da cidade…”, p. 58. 77 Veja-se PINTO, Giuliano − “Approvvigionamento e mercato dei prodotti alimentari nella Firenze del Trecento”. In ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz; SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús Ángel (eds.) − Alimentar la ciudad en la Edad Media, Nájera. Encuentros internacionales del Medievo 2008. Dal 22 al 25 de julio de 2008. Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 2009, p. 236. 78 MARQUES, A. H. de Oliveira − Introdução à história da agricultura em Portugal…, p. 164. 79 MARQUES, A. H. de Oliveira − Introdução à história da agricultura em Portugal…, pp. 160-163; MARQUES, A. H. de Oliveira − Hansa e Portugal na Idade Média. Lisboa: Presença, 1993, pp. 73-74. 80 MARQUES, A. H. de Oliveira − Introdução à história da agricultura em Portugal…, pp. 277-280. UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA 197 tornam, sob este aspecto, muito significativas. Com colheitas pouco abundantes em 1467, em Março de 1468 sabia-se já que as desse ano iriam ainda ser piores. No Alentejo, normalmente excedentário, como já atrás ficou dito, os governos locais tinham estabelecido posturas no sentido de proibir a saída do grão. Por certo as vilas algarvias se haviam queixado ao rei, uma vez que este, por alvará dirigido aos corregedores, juízes e justiças de Entre-Tejo-e-Guadiana mandava que visto “o grande trabalho em que som” os moradores do Algarve, eles pudessem ir à comarca comprar trigo sem que lhes fosse embargado, desde que para consumo próprio e não para vender. Para maior segurança e para memória futura, Loulé reproduziu esse alvará no seu livro de actas das reuniões camarárias81. Por certo também a cidade – Silves – e as demais vilas fizeram o mesmo, ou algo de semelhante. Porém, sabia-se que aquela diligência não podia ser suficiente. O Algarve tivera notícia de que teria chegado, talvez a Lisboa, um carregamento de trigo, proveniente da Bretanha, então um dos nossos mais importantes fornecedores82 e Loulé escreveu ao monarca a pedir mil moios de trigo. A resposta régia foi desencorajadora: até à data não chegara qualquer cereal. Mas ficava a promessa do envio, se o trigo chegasse, desde que eles lho lembrassem. E mais: ao mesmo tempo, o monarca concedia segurança a todos os que aí aportassem com pão ou quaisquer outros mantimentos83, ainda que isso pudesse constituir perda para alguns algarvios, eventualmente prejudicados por compatriotas daqueles que aí levassem as mercadorias84. Naturalmente, Loulé copiou também esta carta no seu livro de actas da vereação85. Tudo isto, porém, não passava de promessas. Março estava a terminar, vinham aí Abril e Maio. Eram estes os meses sempre mais difíceis, os anteriores à ceifa, porque em Junho já se podiam ir colhendo algumas searas86. Aparentemente, durante aqueles meses não chegou pão a Loulé ou, pelo menos, não sobejaram notícias disso. Em Junho, com searas debilitadas, havia que tomar algumas providências mais ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., p. 205. MARQUES, A. H. de Oliveira − Introdução à história da agricultura em Portugal…, pp. 165-166. 83 Também Maria Helena da Cruz COELHO se referiu a este assunto em “Do rei ausente ao rei presente nas vereações de Loulé”. In Loulé, 630 anos de poder local. Loulé: Câmara Municipal de Loulé, 2014, p. 106. 84 Tratava-se do direito de represália, que permitia, após autorização régia, que os naturais de um País pudessem apoderar-se de pessoas e bens de um outro, cujos compatriotas os houvessem, por sua vez, prejudicado. Não importava quem prejudicara quem, mas apenas a sua nacionalidade. Dado que os ataques marítimos eram tão frequentes na época, as cartas de segurança revestiam-se de um grande valor. 85 ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., p. 205. 86 Um muito antigo provérbio que na memória dos mais velhos chegou até hoje dizia que “em Junho, foice em punho; em Julho, foice em tudo”. Isto é, em Junho já se podia empunhar a foice para a usar aqui e além; em Julho já todas as searas tinham amadurecido e era então o grande mês das ceifas, prolongado a Agosto. Mas talvez no Algarve, terra quente, esse amadurecimento se verificasse mais cedo. Como atrás ficou dito, em determinada altura, os homens do governo municipal de Loulé quiseram as suas férias de vereação durante o mês de Junho e primeira semana de Julho, para a ceifa do seu pão. O que mostra alguma dianteira em relação a outras regiões portuguesas. 81 82 198 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL adequadas. Em casos de grande envergadura, implicando responsabilidades acrescidas, avultados negócios, ou outros quaisquer assuntos a necessitarem de uma voz potente, as pequenas vilas algarvias não funcionavam isoladas, mas concertavam-se umas com as outras, uniam-se, agiam em conjunto para ganhar escala. Uma escala que se queria mais ou menos poderosa, de acordo com os assuntos em cada momento a tratar. Assim podia ser todo um “reino” ou, ao menos, uma parte dele, que se apresentava a negociar, a reclamar, a dividir responsabilidades. Tinha outro peso. Era assim, por exemplo, que muitas vezes se apresentava em cortes, perante o soberano87. Não seriam, estas questões de provimento, assuntos de tal monta que todas as povoações algarvias, em uníssono, concertassem acções de conjunto, não obstante a necessidade partilhada por todas. Ou talvez porque era partilhada por todas e nesse sentido cada uma delas deveria defender, em primeiro lugar, o seu próprio abastecimento, quiçá, por vezes, em competição com algumas das outras. Mas quando se tratava de negócios a realizar com gentes de muito longes terras mas por iniciativa própria, dada a premente necessidade a que haviam chegado, esses negócios, de modo a tornarem-se aliciantes para o vendedor, precisavam ser vultosos e oferecer garantias seguras. Não podiam ser tratados isoladamente por uma só vila. Era com Faro que Loulé entrava em parceria as mais das vezes. Concelhos vizinhos, partilhando ambos as águas do Ludo, precisavam entender-se bem em muitas circunstâncias88. Nomeadamente quando se tratava de importar cereais89. Pois assim aconteceu, nesta conjuntura de 1468. A iniciativa partiu de Faro, que pretendia enviar um troteiro à Bretanha, em busca de trigo. Por isso escreveu a Loulé pedindo que enviasse um seu representante para combinarem todas as condições. Foi enviado o escrivão da câmara que, no regresso contou que ficara assente a ida do troteiro com cartas de segurança para 87 BOTÃO, Maria de Fátima − “Todos juntamente a hua voz”. In Loulé, 630 anos de poder local. Loulé: Câmara Municipal de Loulé, 2014, p. 126. Significativa sob este aspecto é uma questão ocorrida em 1494 e liderada por Silves, relacionada com o arrendamento das alfândegas e a implementação de novas medidas para o pão, o azeite e o vinho que ninguém queria, no Algarve, que fossem mudadas. Nesta altura Silves, como “cabeça” do “reino”, enviou três cartas a Loulé e, naturalmente, também às demais vilas, no sentido de se apresentarem todos perante o rei. Na última dessas cartas, de 16 de Dezembro daquele ano, talvez porque Loulé tivesse mostrado alguma relutância em aderir ao projecto, dizia-se: “vos pedimos por mercee que em toda maneira mandees vosso procurador como fazem todollos outros lugarees deste Alguarue porque senhores avee por muito certo que parecendo la todollos lugarees per seus procuradores em pessoa El-Rei nosso senhor nos tirara esta sogeiçam e nos comprira de justiça”(ACTAS de vereação de Loulé. Século XV..., pp. 180-181, 183, 184.) Era tudo uma questão de ganhar escala. 88 Pode mesmo dizer-se que, de certo modo, Loulé e Faro dependiam mutuamente uma da outra. Se Loulé precisava do porto de Faro porque o seu próprio porto, ou portos – Farrobilhas, Pereira – estavam distantes da vila e muito longe de apresentarem as condições do de Faro, esta vila precisava utilizar parte do alfoz que Loulé possuía na serra, pois que o seu próprio não abrangia espaços serranos e sem a ajuda da vizinha Loulé não teria possibilidade de alimentar os seus gados. 89 ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., p. 113; ACTAS de vereação de Loulé. Século XV..., p. 54-55; IRIA, Alberto − O Algarve e os Descobrimentos…, t. I, pp. 318, 373, 375. UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA 199 notificar que quem quisesse trazer trigo a ambos os concelhos receberia por cada moio uma peça de figos de graça e em terra teriam lojas para armazenar o cereal, tomando a seu cargo, os dois municípios, os custos da descarga. Os vendedores ficariam ainda isentos do pagamento de dízimas e de quaisquer outros direitos devidos ao rei ou aos concelhos. Eram excelentes condições para os mercadores, mas que ficariam caras a louletanos e farenses, na medida em que arcavam com todos os custos, muito avultados, sobretudo se não tinham isenção dos direitos devidos ao rei90. E havia ainda que assegurar as despesas de viagem e estadia de quem fosse à Bretanha, avaliadas, estas, em mil e quinhentos reais. Todas aquelas despesas, que naturalmente, encareceriam o trigo que chegasse, tinham que recair sobre todo o povo, o qual precisava ser consultado. Dois dias mais tarde, tendo sido o “concelho apregoado” e todos reunidos, acordaram que o troteiro fosse à Bretanha pago pelos dinheiros da arca do concelho se nela houvesse o suficiente e caso contrário por todo o povo: os demais custos pelos que adquirissem o trigo91. Isto é, reflectidos no preço final de cada alqueire de trigo. Todavia, continuavam a surgir ofertas de fornecimento. Nesta altura houve uma proposta de cem moios de trigo, a quarenta reais o alqueire. Preço algo exagerado para esta época do ano – inícios de Junho, como atrás ficou dito – mas muito aceitável sabendo-se que a colheita ia ser muito fraca e conhecendo-se a habitual carestia dos mercados algarvios92. No entanto esta proposta não foi, na altura, divulgada ao povo, porque em primeiro lugar, “como bons vizinhos e amigos” que eram93, havia que fazê-lo saber a Faro94. O que bem mostra a cumplicidade existente entre os dois concelhos, aliás manifestada em diversas outras ocasiões95. Mas sempre que havia notícia de carregamentos chegados a quaisquer portos algarvios os louletanos não se descuidavam de mandar um seu representante encarregado de negociar para a 90 As vilas algarvias foram recebendo, em ocasiões várias e por períodos de tempo mais ou menos alargados, isenção de pagamento de direitos régios relativos à importação de cereais e por vezes também de legumes e castanhas, seus sucedâneos em períodos de escassez. Podem ver-se alguns exemplos em: CORTES portuguesas. Reinado de D. Afonso V. Cortes de 1441-1447…, pp. 24-25, 550; CORTES portuguesas. Reinado de D. Manuel I (Cortes de 1498) …, pp. 405, 419, 520; IRIA, Alberto − O Algarve nas cortes medievais portuguesas do século XV…, vol. I, pp. 207-208, 240; IRIA, Alberto − O Algarve e os Descobrimentos…, t. I, pp. 44, 72, 366; IRIA, Alberto − O Algarve e a ilha da Madeira no século XV (Documentos inéditos). Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1974, pp. 67-71; BARROS, Henrique da Gama − História da administração pública em Portugal…, vol. IX, pp. 60-61, 73-76. 91 ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., pp. 210-211. 92 Carestia a que já atrás foi feita referência. 93 Era assim que os farenses se definiam em relação aos louletanos (ACTAS de vereação de Loulé. Século XV..., p. 54). 94 ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., pp. 210-211. 95 ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., pp. 54-55; IRIA, Alberto − O Algarve e os Descobrimentos …, t. I, p. 375. Esta cumplicidade já tinha sido notada. Veja-se FONTES, João Luís Inglês − “A expansão medieval”. In BERNARDES, João Pedro; OLIVEIRA, Luís Filipe (coords.) − A vinha e o vinho no Algarve: o renascer de uma velha tradição. Faro: Edições Afrontamento, 2006, p. 51. 200 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL vila alguma parte desse cereal96.Sobretudo em tempos de magras colheitas havia que cuidar bem de todo o grão, tanto daquele que se produzia no termo ou era espontaneamente trazido por mercadores, como por esse outro que chegava mercê de diligências levadas a cabo pela edilidade e em relação ao qual os governantes locais tinham a maior das responsabilidades. Para este último havia, antes de mais, que procurar um lugar seguro onde ele pudesse ficar bem acondicionado e sob o controlo do município. E, naturalmente, o melhor lugar seria um celeiro público. Tem-se dito entre nós que os celeiros públicos, municipais, com início no Alentejo, só se divulgaram a partir da segunda metade do século XVI97. O de Loulé, no dizer de Joaquim Romero de Magalhães, estaria bem documentado a partir do segundo quartel dessa centúria98, ou talvez um pouco antes, uma vez que em 1522 se sabe que a sua chave estava entregue ao procurador do concelho, que em caso de necessidade era substituído por alguém de confiança, para que “oulhasse pello celeiro e trigo e pam delle e o nom consentisse tirar sem licença da camara”99. Todavia, talvez esse celeiro seja bastante anterior e remonte, no mínimo, a finais do século XV. Com efeito, em sessão camarária realizada a 2 de Julho de 1493 foi dada autorização para dos quarenta moios de trigo do ano anterior que se encontravam no celeiro, ser retirado a metade. Mas deviam ainda ficar lá vinte moios, a serem vendidos “para o Concelho e provisam da terra”100. Tudo isto faz pensar num celeiro público a cargo do município e sob sua vigilância, o qual, no mínimo, já recebera trigo da colheita de 1492. Estava, pois, em funcionamento. E talvez já há alguns anos. Penso que não é descabido considerar esta estrutura anterior ao que se tem julgado, o que faz todo o sentido tendo em atenção as sucessivas dificuldades de abastecimento frumentário aqui sentidas. Chegado o cereal havia, no entanto, outros problemas importantes a resolver e alguns dos mais prementes eram o controlo dos preços e a luta contra a especulação. Proveniente algum do trigo de longe, encarecido por transportes, por encargos fiscais e por várias outras despesas, algumas das quais ficaram acima referenciadas, tudo isso se reflectia no custo final, ao consumidor. Outro trigo, talvez não onerado de igual modo, tendia, no entanto, a equiparar-se-lhe no preço, até porque muitas vezes era isso que pretendia quem o retivera mais tempo antes de o colocar à venda. Ora, sendo muitas as famílias com as suas reservas – quando as tinham – esgotadas, e muitas também as que experimentavam as maiores dificuldades em adquirir o seu sustento a custos elevados, era necessário, para evitar males mais graves, inclusive a ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., p. 113; IRIA, Alberto − O Algarve e os Descobrimentos …, t. I, pp. 318, 319, 373. 97 MARQUES, A. H. de Oliveira − Introdução à história da agricultura em Portugal…, p. 117. 98 MAGALHÃES, Joaquim Antero Romero de − Para o estudo do Algarve económico…, pp. 65-74. 99 ACTAS de vereação de Loulé. Século XVI. 1522-1527..., p. 49. 100 ACTAS de vereação de Loulé. Século XV..., p. 118. 96 UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA 201 possibilidade de quebra da paz vicinal, que se tomassem medidas sérias para evitar a inflação. É claro que as próprias importações de cereal agiam nesse sentido, até porque o produto à venda travava as mais graves carestias. Mas era preciso mais: evitar ganhos exagerados e ilícitos, embora assegurando algum benefício aos agentes comerciais, sem o que era a falência de todo o sistema. Por isso em Loulé se fazia questão de lhes atribuir ganho “aguisado”101; por isso as próprias Ordenações Gerais encarregavam os procuradores das comarcas de terem tal cuidado102. Para isso tabelava-se o trigo103 e em caso de necessidade, quando era de todo impossível suster a subida, estabeleciam-se preços máximos104. Porém, em momentos de mais aguda penúria, em que a oferta de cereal nos mercados era sempre inferior à procura e rapidamente se esgotava, pouco valiam as medidas legais. Porque cada vez mais exacerbada a procura, porque a fome se instalara já em muitas habitações, porque chegara o momento exacto aguardado por grandes e pequenos especuladores, nada travava a espiral que se desencadeara, enquanto uma boa colheita não repusesse a situação105. Todavia, os órgãos concelhios não podiam desistir, porque era demasiado o que estava em jogo. Chegava-se então às medidas mais drásticas que no estado actual da nossa historiografia são conhecidas entre nós. Medidas que, por sinal, foram tomadas por Loulé106: inventariação das existências encontradas nas casas particulares, requisição do cereal considerado excedentário, tendo em atenção o tamanho do agregado doméstico107 e racionamento, com limitação da quantidade a comprar por cada família: que se dê o pão “temperadamente”, ficou dito108. Era o possível nas circunstâncias mais adversas. Por vezes pouco para evitar a ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., pp. 40-41. Ordenações Afonsinas, nota de apresentação por Mário Júlio de Almeida Costa, nota textológica por Eduardo Borges Nunes. Liv. I. Lisboa, 1984, tít. XXIII, § 18, p. 126. 103 ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., pp. 29-30. 104 ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., pp. 29-30. 105 Já em outra ocasião me referi a estes assuntos, utilizando, na altura, bastante informação de proveniência louletana e referindo-me, portanto, a situações ocorridas concretamente em Loulé. Pode ver-se: GONÇALVES, Iria − “A propósito do pão da cidade…”, pp. 57-60. 106 É possível que outras vilas algarvias, igualmente carenciadas, tenham tomado as mesmas medidas ou outras equivalentes. Só que não souberam, como Loulé, guardar até hoje as suas memórias, ficando por isso, a este respeito como a outros, mergulhadas no esquecimento. 107 ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., pp. 29-30. O que, entre nós, aconteceu também pelo menos no Porto (“Vereaçoens”. Anos de 1401-1449, nota prévia de J. A. Pinto Ferreira. Porto: Câmara Municipal do Porto, Gabinete de História da Cidade, 1980, pp. 148-149, 150-151) e no Funchal (Vereações da Câmara Municipal do Funchal. Século XV, ed. por José Pereira da Costa. Funchal: Secretaria Regional de Turismo e Cultura, Centro de Estudos de História do Atlântico, 1995, p. 120). E que aconteceu igualmente em outros lugares. Podem ver-se, por exemplo: BARRIO BARRIO, Juan Antonio − Finanzas municipales y mercado urbano…, p. 113; BENITO I MONCLÚS, Pere − “Las crisis alimenticias en la Edad Media…”, p. 138. 108 ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., p. 29. Veja-se também AÑÍBARRO RODRÍGUEZ, Javier − “Producción, abastecimiento y consumo de las villas medievales de la Costa Cantábrica: el caso de Castro Urdiales”. In ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz; SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús Ángel (eds.) − Alimentar la ciudad en la Edad Media, Nájera. Encuentros internacionales del Medievo 2008. Dal 22 al 25 de julio de 2008. Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 2009, p. 372. 101 102 202 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL fome, mesmo com o acréscimo de consumo que a abundância de figos, felizmente, possibilitava. Até a normalidade reposta por uma boa colheita podia durar pouco. E assim aconteceu, por exemplo nesta década de oitenta do século XV. Aliás, mesmo durante os tempos em que vigorava a normalidade do abastecimento, nem todos tinham quanto necessitavam e o seu organismo requeria para uma vida saudável, porque assim era, em todo o lado, na Idade Média. Mas havia, pelo menos, com que mitigar a fome e assegurar os níveis de subsistência. Porque o pauperismo foi um fenómeno que a medievalidade conheceu muito bem e sobretudo em meios urbanos. Aliás, Michel Mollat, o historiador que até hoje melhor estudou as questões relacionadas com a pobreza durante esta época, deixou dito que ela “est fille de la ville”109. 2.3. Os caminhos do cereal. O trigo que abastecia Loulé podia chegar por três vias. O que provinha do Alentejo podia fazer o percurso por terra, atravessando a Serra do Caldeirão, ou por via fluvial, descendo o Guadiana e bordejando depois a costa; o que vinha dos demais destinos, do estrangeiro ou, por ventura, de outras terras portuguesas – como atrás ficou dito, em determinado momento Loulé esperou receber trigo vindo de Lisboa, embora proveniente da Bretanha – esse viria sempre por via marítima, quer se destinasse prioritariamente ao Algarve, quer não. Naturalmente o trigo de produção local, aquele que cultivavam os louletanos do termo ou da vila e chegava a Loulé para venda ou consumo próprio, era conduzido por caminhos terrestres que, aqui como em qualquer outro lugar, sulcavam todos os recantos do concelho, a ligar as aldeias aos campos de cultivo e mesmo aos terrenos incultos, a ligar cada uma dessas aldeias às demais e todo o conjunto à vila, como centro que era do território110. Porém este, como já ficou dito, era o que menos contava no abastecimento da vila. De entre aquele que provinha do Alentejo, algum, por certo a menor quantidade111 e sem dúvida o que se produzia nos campos de Ourique, também chegava por terra112, atravessando a Serra do Caldeirão por Salir e Tôr, depois 109 MOLLAT, Michel − “Pauvres et assistés au Moyen Âge”. In A pobreza e a assistência aos pobres na Península Ibérica durante a Idade Média. Actas das 1.as Jornadas luso-espanholas de história medieval. Vol. I. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1973, p. 23. 110 Veja-se a rede de caminhos do termo de Loulé em ALMEIDA, Cristóvão de − Da vila ao termo: o território de Loulé na Baixa Idade Média…, pp. 42-48. 111 Joaquim Antero Romero de Magalhães (Para o estudo do Algarve económico, p. 78), também considera este trigo minoritário, como é lógico, mas acrescenta que esta via era muito comum. 112 Maria Teresa Nesbitt Rebelo da Silva Maltez (Os recursos alimentares no Algarve oriental (século XIV). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1993, Dissertação de Mestrado, p. 35.) também se refere à vinda de trigo por via terrestre de Ourique para Loulé e outras vilas. UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA 203 de passar por Almodôvar e Castro Verde113. O facto de se terem construído duas pontes nesse caminho, embora talvez já tardiamente, uma em Tôr e a outra já perto de Almodôvar114, mostra a funcionalidade dessa via e que o seu trânsito devia ter alguma expressão. Aliás, Joaquim Romero de Magalhães considera-a a melhor, se não a única, para uma rápida travessia da “áspera serra do Algarve Central”115. Na verdade os transportes por terra, sobretudo de produtos volumosos e pesados, como era o caso dos cereais, tornavam-se demorados e difíceis, nomeadamente quando atravessavam terrenos tão acidentados com era o caso daquela serra. Para mais, se os caminhos carreteiros não eram numerosos fosse onde fosse, por aquelas brenhas e penhascos seriam certamente inexistentes. Assim, os transportes tinham que realizar-se a dorso de animais, muares as mais das vezes porque os mais resistentes para aquele tipo de caminhos, em longas colunas conduzidas por almocreves116. Quando se tratava de cereais importados de fora da região só fazia sentido o transporte de volumes consideráveis do produto, até porque só desse modo os diversos agentes que intervinham na operação podiam auferir lucros compensatórios do trabalho levado a cabo, do tempo dispendido, do investimento realizado. Por outro lado, as viagens, na Idade Média, estavam longe de ser seguras e isentas de perigo, sobretudo quando se atravessavam caminhos inóspitos e desertos, como era o caso em tantos dos troços a percorrer entre Ourique e Loulé. Por tudo isto convinha que o grupo transportador fosse numeroso, de modo a minimizar os possíveis problemas117. Loulé tinha um número considerável de almocreves ao seu serviço118, mas é natural que nestas circunstâncias eles tivessem a companhia dos que trabalhavam em 113 Já diversos investigadores referenciaram este caminho: MAGALHÃES, Joaquim Antero Romero de − “Uma interpretação da Crónica da Conquista do Algarve”. In Actas das II Jornadas luso-espanholas de história medieval. Vol. I. Porto: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1987, pp. 129-130. BERNARDES João Pedro; OLIVEIRA, Luís Filipe − A “calçadinha” de S. Brás de Alportel e a antiga rede viária do Algarve central. S. Brás de Alportel: Câmara Municipal de S. Brás de Alportel, 2002, pp. 51-54; MACIAS, Santiago − Mértola, último porto do Mediterrâneo…, vol. II, mapa da p. 233; OLIVEIRA, Luís Filipe − “Caminhos da terra e do mar no Algarve medieval”. In Actas das I Jornadas - As vias do Algarve da época romana à actualidade. S. Brás de Alportel: Câmara Municipal de S. Brás de Alportel, 2006, p. 33; ALMEIDA, Cristóvão de − Da vila ao termo…, pp. 44-45. 114 BERNARDES João Pedro; OLIVEIRA, Luís Filipe − A “calçadinha” de S. Brás de Alportel e a antiga rede viária do Algarve central…, pp. 53-54; OLIVEIRA, Luís Filipe − “Caminhos da terra e do mar no Algarve medieval…”, p. 34. 115 MAGALHÃES, Joaquim Antero Romero de − “Uma interpretação da Crónica da Conquista do Algarve…”, pp. 129-130. 116 Também Humberto Baquero Moreno (A acção dos almocreves no desenvolvimento das comunicações inter-regionais portuguesas nos fins da Idade Média. Porto: Brasília Editora, 1979, p. 8) e Josefina Muthé i Vives (“L’abastament de blat a la ciutat de Barcelona en temps d’Alfons el Benigne (1327-1336)”. In Politica, urbanismo y vida ciudadana en la Barcelona del siglo XIV. Barcelona: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2004, p. 225) entre outros autores falam nos transportes por grandes caravanas de animais de carga conduzidos por almocreves, sobretudo em percursos por terrenos acidentados. 117 MARQUES, A. H. de Oliveira − Portugal na crise dos séculos XIV e XV…, p. 148. 118 BOTÃO, Maria de Fátima − “Os eixos estruturantes de uma história…”, p. 47. 204 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL outras vilas algarvias e talvez não só119, até porque, como atrás ficou visto, essas vilas colaboravam entre si quando se tratava do abastecimento frumentário. Também nos circuitos locais e regionais, como no transporte do cereal que chegava por via aquática, entre o navio e o local de armazenamento ou consumo o transporte era tarefa destinada aos almocreves com os seus animais de carga120. Este transporte por terra, além de demorado e difícil era muito mais caro. No século XVIII avaliava-se, talvez com algum exagero, que os transportes terrestres eram, em média, dez vezes mais caros do que os realizados por meio aquático121. Mais comedido e baseado em documentação fiável, Emílio Giralt Raventós calculava que para o século XVI este meio de transporte era entre quatro a seis vezes mais caro do que o aquático122. Mesmo assim, uma diferença considerável a ter em conta. Mais caro, em menor quantidade, era também este trigo algum daquele que o chamado foral manuelino de Silves contemplava, assim como os das vilas algarvias que seguiam o da sua capital, onde os impostos a pagar foram taxados a partir das cargas animais, maior e menor, bem como do costal, isto é, a quantidade que um homem podia transportar às suas costas, considerando-se este como sendo equivalente a quatro alqueires e os dois primeiros como sendo o quádruplo e o dobro deste, respectivamente123, isto é, dezasseis alqueires a carga maior, de cavalo ou muar, de oito a menor, de asno. Tudo quantidades diminutas que podiam chegar isoladamente. A ser assim corresponderiam por certo a pequenos excedentes dos camponeses do termo. A maior parte do trigo proveniente do Alentejo – de Beja, de Serpa, de Mértola – aportava ao seu destino descendo o Guadiana e bordejando depois a costa. No caso de Loulé esse destino era o porto de Farrobilhas de onde, após descarga De uma maneira geral as povoações de alguma importância económica e demográfica tinham ao seu serviço um corpo de almocreves, como também os senhores, tanto laicos como eclesiásticos, incluindo, naturalmente, o rei (MARQUES, A. H. de Oliveira – “A circulação e a troca de produtos”. In SERRÃO, Joel; MARQUES, A. H. de Oliveira (dirs.) − Nova História de Portugal, Vol. III: Portugal em definição de fronteiras. Do Condado portucalense à crise do século XIV. Coord. COELHO, Maria Helena da Cruz Coelho; HOMEM, Armando Luís de Carvalho Homem. Lisboa: Presença, 1996, p. 506). 120 Humberto Baquero Moreno (A acção dos almocreves…, p. 56) acentuou, com toda a propriedade, que graças à sua capacidade de locomoção por caminhos intransitáveis para outros modos de locomoção complementaram com eficácia os transportes fluviais e marítimos. 121 GASPAR, Jorge − “Os portos fluviais do Tejo”. Finisterra. Revista portuguesa de geografia V/10 (1970), p. 154. 122 GIRALT RAVENTÓS, Emilio − “En torno al precio del trigo en Barcelona durante el siglo XVI”. Hispania. Revista española de cultura XVIII/ 70 (1958), p. 45. 123 Forais manuelinos do reino de Portugal e do Algarve conforme o exemplar do Arquivo Nacional da Torre do Tombo de Lisboa, ed. por Luiz Fernando de Carvalho Dias. Vol. 3: Entre Tejo e Odiana. Lisboa: s.n., 1965, p. 8. Pode ver-se ainda em “Foral manuelino: transcrição e artigos”, Forais de Silves: foral afonsino de 1266; foral dos mouros forros de Silves; Tavira, Loulé e Santa Maria de Faro de 1269; foral manuelino de 1504. Silves: Câmara Municipal de Silves, 1993, p. 173. Em especial para Loulé: “Transcrição do foral de Loulé”, por Luís Filipe Oliveira, Maria de Fátima Botão e Teresa Rebelo da Silva, O foral de Loulé 1504 – D. Manuel, coord. por Manuel Pedro SERRA. Loulé: Câmara Municipal de Loulé, 2004, p. 67 e também O foral de Faro de 1504, apresentação e ed. por Luís Filipe OLIVEIRA, Faro: Câmara Municipal de Faro, 2017, p. 30. 119 UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA 205 seguia, também ele, a dorso de animais de carga, até à vila. Uma distância que embora não sendo grande ainda era considerável e por certo encareceria algum tanto o preço. O trigo proveniente de Mértola tinha, assim, uma excelente via de comunicação que o colocava com a facilidade e a rapidez possíveis na época, em qualquer ponto do Algarve. Já não assim tão facilmente o que provinha de Beja, dado o intransponível obstáculo representado pelo Pulo do Lobo, em pleno Guadiana, a montante de Mértola. E assim foi considerado por alguns investigadores. Porém, como documentadamente demonstrou Hermenegildo Fernandes, isso não obstava a que o trigo produzido nos termos de Beja e Serpa fugisse às lonjuras que representavam o seu transporte por terra até ao Algarve, ou mesmo até Mértola, a ser aí embarcado. Refere este investigador um documento de 1288, aliás há muito tempo publicado em obra de referência na historiografia portuguesa124, onde se mostram barcas e baixéis carregando em Serpa para descer o Guadiana. Naturalmente, na passagem do Pulo do Lobo era necessário descarregar as embarcações que até aí levavam os produtos – cereais ou quaisquer outros – a sua carga ultrapassar o escolho a dorso de animais, para voltar a ser carregada em outros barcos e neles seguir viagem125. Havia, é certo, que ultrapassar a Serra de Serpa, mas uma estrada que a cruzava126 mostrava bem que por ali era caminho habitual. E devia ter começado a ser seguido desde cedo para o transporte de cereais porque, dada a escassez cerealífera de que o Algarve sempre padeceu, e esgotadas as fontes, naturalmente muçulmanas, que o abasteciam antes da conquista portuguesa127 e que por esse mesmo facto deixaram de funcionar, desde logo se devem ter começado a organizar outros circuitos de abastecimento a que o Alentejo não podia ter ficado alheio128. Dada a morosidade, a incomodidade e a carestia que representavam os transportes terrestres, valia a pena fazer-se deste modo o trajecto, ainda que a distância a percorrer não fosse demasiado longa. O trigo que chegava ao Algarve provindo de outros lugares, nomeadamente do estrangeiro, era transportado por via marítima. Descobrimentos portugueses, supl. ao vol. I, doc. 103, pp. 273-274. FERNANDES, Hermenegildo Nuno Goinhas − Organização do espaço e sistema social no Alentejo medievo…, p. 92, nota 290. 126 MACIAS, Santiago − Mértola, último porto do Mediterrâneo…, vol. I, p. 97. 127 Seriam, por certo, o reino de Granada e o Magrebe os fornecedores preferenciais do Algarve muçulmano, mas talvez mais ainda o segundo, porque também Barcelona, Valência, Maiorca e outros lugares se abasteciam de cereais magrebinos, mostrando assim como eram estes os mais abundantes. Veja-se LÓPEZ PÉREZ, María Dolores − “La circulación de cereales en el Mediterrâneo Occidental bajomedieval: la producción magrebi”. In La Mediterrània, àrea de convergència de sistemes alimentaris (segles V-XVIII), XIV Jornades d’estudis històrics locals, Palma, del 29 novembre al 2 de desembre de 1995. Palma de Maiorca: Institut d’Estudis Baleàrics , 1996, pp. 170 e seg. 128 Veja-se FERNANDES, Hermenegildo Nuno Goinhas − Organização do espaço e sistema social no Alentejo medievo…, p. 92. Aliás este autor diz mesmo que foi pelo pão que Beja se relacionou com o exterior (FERNANDES, Hermenegildo Nuno Goinhas − Organização do espaço e sistema social no Alentejo medievo…, p. 91). 124 125 206 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL O Algarve apresentava excelentes condições para a navegação. Diz-nos Orlando Ribeiro que nos seus cento e sessenta quilómetros de costa, com nove cidades ou vilas portuárias e mais seis portos menores, o litoral algarvio se apresenta como o mais rico em estruturas portuárias de toda a extensa costa portuguesa129. E se assim é, agora ou na época, tão próxima de nós, a que aquele geógrafo se refere, com algumas das suas reentrâncias mais ou menos assoreadas como foi acontecendo em toda a costa, com barcos de grande calado e necessitando condições de aportagem tão mais exigentes do que as que pedia a navegação dos séculos XIV e XV, então, neste final da Idade Média, os locais a possibilitarem a atracagem de navios e respectivas carga e descarga deviam ser ainda mais numerosos. Além disso, várias das suas ribeiras lagunares tinham capacidade para receber embarcações de grande calado, permitindo assim algum contacto da navegação com o interior130. Era o que acontecia com Loulé. Situada já um pouco para o interior, ao contrario dos demais núcleos urbanos de importância socioeconómica e demográfica semelhante à sua, beneficiava de alguma aproximação de embarcações marítimas que o estuário do Ludo lhe proporcionava131. Aliás a localização de Loulé era excelente: na região central do Algarve, não na costa mas próximo dela e estendendo até lá o seu alfoz, em contacto, por isso mesmo, com as rotas marítimas; cruzavam-se nela duas das mais importantes vias terrestres do Algarve, tanto na direcção Norte, para “Portugal”, como na direcção Leste-Oeste, a percorrer transversalmente a região. Por isso Maria Luísa Pinheiro Blot pôde dizer que Loulé se deve ter transformado, desde cedo, num centro de distribuição de bens132. Ora, não foi por mero acaso nem gratuitamente que D. Dinis criou aí a única feira algarvia133. É que, um centro de distribuição de bens é, antes de mais, um centro de captação de bens. Aquela feira era o reconhecimento de uma situação de facto134. E isso, em questões de abastecimento, tem toda a importância. Para mais, partilhando Loulé as mesmas águas de Faro, 129 RIBEIRO, Orlando − Introduções geográficas à história de Portugal. Estudo crítico. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1977, pp. 108-109. Veja-se também BLOT, Maria Luísa B. H. Pinheiro – Os portos na origem dos centros urbanos. Contributo para a arqueologia das cidades marítimas e flúvio-marítimas em Portugal. Lisboa: Instituto Português de Arqueologia, 2003, pp. 272-298. 130 SILVA, Gonçalo Melo da − “A coroa, as vilas e o mar: a rede urbana portuária do Algarve”. In COSTA, Adelaide Millán da; ANDRADE, Amélia Aguiar; TENTE, Catarina (eds.) − O papel das pequenas cidades na construção da Europa medieval. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais e Câmara Municipal de Castelo de Vide, 2017, p. 555. 131 Já para os nossos dias Orlando Ribeiro (Introduções geográficas à história de Portugal…, mapa IV, p. 99) ainda mostra essa navegabilidade. 132 BLOT, Maria Luísa B. H. Pinheiro − Os portos na origem dos centros urbanos. Contributo para a arqueologia das cidades marítimas…, p. 285. 133 Veja-se RAU, Virgínia − Subsídios para o estudo das feiras medievais portuguesas. Lisboa: Bertrand, 1943, mapa de entre as pp. 38 e 39 e p. 78. 134 Se as feiras medievais portuguesas nunca tiveram grande expressão foi em parte devido à situação periférica de Portugal em relação às rotas comerciais da época. Em cada região, à sua medida, era preciso escolher os lugares com maior centralidade para a implementação de uma feira. UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA 207 esta, um porto natural de importância135 era-lhe fácil aceder aos produtos que aí se descarregavam e talvez também escoar os seus próprios. Todavia não deixava de ter, em terras de sua jurisdição – sobretudo em Farrobilhas – estruturas adequadas às trocas que precisava fazer por via marítima136. Pelo menos em 1460 já existiam naquela povoação armazéns – lojas – para recolha das mercadorias que chegavam ou aguardavam embarque137. Tudo isto contribuía para, de algum modo, facilitar o abastecimento da vila, no caso aqui tratado o abastecimento trigueiro. 3. O Pão De Cada Dia. Se o cereal produzido pela família consumidora ou a ela trazido como pagamento de rendas ou a outro qualquer título podia de imediato ser armazenado em celeiro próprio a aguardar o momento de utilização, o que provinha do exterior, antes de chegar às famílias ou aos profissionais que dele faziam o objecto dos seus negócios, precisava seguir outros trâmites. Descarregado e armazenado devia depois, à medida das necessidades do abastecimento, ser levado às fangas, o lugar próprio para a sua comercialização. Aí encontrar-se-ia com algum outro que os produtores locais quisessem vender. As fangas estavam apensas à praça que Maria de Fátima Botão coloca fora das muralhas e onde às segundas-feiras se realizava o mercado semanal138. A ser assim localizar-se-iam perto da Porta de Portugal139, a Norte, uma vez que era essa a saída para “Portugal”. Aí ou noutro lugar que as fangas se situassem, porque a sua localização não é ainda incontroversa140, o cereal, no acto da transacção devia ser correctamente medido, isto é, por medidas aferidas pelos padrões do concelho e devidamente inspeccionadas141 e sem lesar o comprador142. 135 BLOT, Maria Luísa B. H. Pinheiro − Os portos na origem dos centros urbanos. Contributo para a arqueologia das cidades marítimas…, p. 289. Veja-se também SILVA, Gonçalo Melo da − “A coroa, as vilas e o mar…”, p. 554. 136 Na opinião de João Cordeiro Pereira (“Organização e administração alfandegárias de Portugal no século XVI (1521-1557)”. In Portugal na era de Quinhentos. Estudos vários. Cascais: Patrimonia Historica, 2003, p. 104), não obstante a proximidade de Faro, o porto de Farrobilhas devia ter conhecido uma intensa actividade. Veja-se também FONTES, João Luís Inglês − “A expansão medieval…”, p. 51. 137 PEREIRA, João Cordeiro − “Organização e administração alfandegárias de Portugal no século XVI (1521-1557)…”, p. 103. 138 BOTÃO, Maria de Fátima − A construção de uma identidade urbana…, pp. 56, 253. 139 ALMEIDA, Cristóvão de − Da vila ao termo…, p. 23. Este investigador distingue dois pontos de venda: a praça, cuja localização levanta ainda dúvidas sobre se seria dentro ou fora das muralhas e o local do mercado, este já fora da cerca. 140 Veja-se a planta de Loulé em BOTÃO, Maria de Fátima − A construção de uma identidade urbana…, pp. 453. 141 Ordenações Afonsinas…, liv. I, tít. XXVIII, §§ 4, 11, pp. 181, 184. Mas este era um cuidado que as edilidades não descuravam. 142 No acto de vender era muito fácil introduzir a fraude. Veja-se, sobre este assunto, GONÇALVES, 208 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Para este como para todo o outro trigo, o destino primeiro era o moinho, isto é, a farinação. Em todo o Algarve funcionavam moinhos de água doce e salgada, os primeiros edificados em cursos de água secundários ou terciários e movidos pela corrente; os segundos nos numerosos canais que recortam a costa e accionados pelo movimento das marés. Dada a localização geográfica e mesmo topográfica do Algarve e a secura climática que lhe é própria, boa parte daqueles veios de água secavam parcial ou mesmo totalmente durante o Verão, pelo que as moendas a eles ligadas trabalhavam apenas durante o Inverno, ao passo que as segundas, azenhas movidas pelas marés, funcionavam durante todo o ano. Por isso estas seriam mais numerosas143; por isso o monarca as reservou para si144. Concretamente em Loulé o rei chamou a si as moendas do reguengo da Quarteira e das salinas da vila145. Para lá destes engenhos havia em Loulé muitas mós manuais146 que, como é óbvio, produziriam bastante menos farinha do que os engenhos moageiros e o trabalho resultava mais caro, mas cujo produto final seria de melhor qualidade147. Embora na vila se estabelecesse, tanto para quem trabalhava com engenhos moageiros como para quem funcionava com mós manuais um pagamento em numerário – embora em moeda diferente, talvez a indiciar épocas também diferentes de fixação dos preços – pagamento fixado em vinte soldos e em três reais por alqueire de cereal, respectivamente148, nos forais, também nos manuelinos e como geralmente acontecia na prática, os ganhos do moleiro eram fixados em espécie e correspondiam a um alqueire por cada catorze que fossem moídos149, isto é, a um lucro de pouco mais de 7%, semelhante ao que era praticado em outras cidades portuguesas como, por exemplo, Évora150. Não me foi possível saber se a moedura saída das mós manuais era efectivamente onerada naqueles três reais por alqueire, ou o seria também em Iria − “Defesa do consumidor na cidade medieval: os produtos alimentares (Lisboa – séculos XIV-XV)”. In Um olhar sobre a cidade medieval. Cascais: Patrimonia Historica, 1996, pp. 107-110. 143 SILVA, Teresa Rebelo da − “Azenhas e moinhos no Algarve: segunda metade do século XIII e século XIV”. Arqueologia Medieval 6 (1999), pp. 213-223. 144 Forais manuelinos do reino de Portugal e do Algarve..., Vol. 5: Entre Tejo e Odiana, pp. 19-20; SILVA, Teresa Rebelo da − “Azenhas e moinhos no Algarve: segunda metade do século XIII e século XIV...”, p. 213; SILVA, Teresa Rebelo da − Os recursos alimentares no Algarve Oriental…, p. 37; MAGALHÃES, Joaquim Antero Romero de − Para o estudo do Algarve económico…, p. 61. 145 SILVA, Teresa Rebelo da − “Azenhas e moinhos no Algarve: segunda metade do século XIII e século XIV…”, p. 215. 146 ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV, p. 133. 147 MALTEZ, Maria Teresa Nesbitt Rebelo da Silva − Os recursos alimentares no Algarve oriental…, p. 37. Veja-se também GONÇALVES, Iria − “A propósito do pão da cidade…”, p. 63, onde se citam para esta época os casos de Lisboa e Évora, em tudo condizentes com o de Loulé. Veja-se ainda, neste último texto, a nota 90. 148 ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., p. 133. 149 Forais manuelinos do reino de Portugal e do Algarve…, Vol. 5: Entre Tejo e Odiana, pp. 19-20; “Transcrição do foral de Loulé…”, p. 44. 150 GONÇALVES, Iria − “A propósito do pão da cidade…”, p. 63, UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA 209 espécie e de que modo. Obtida a farinha a fase seguinte era a confecção da massa. Esta podia ser da responsabilidade de padeiras profissionais, e neste final da Idade Média todas as cidades e vilas tinham ao seu serviço um grupo mais ou menos numeroso de mulheres que anualmente se comprometiam, perante os órgãos directivos da localidade, a confeccionar o pão necessário às famílias que o quisessem adquirir por compra. Era este um trabalho muito regulamentado por posturas locais e pela lei geral e muito controlado pelos almotacés151, de modo a garantir que o consumidor não fosse lesado nas suas compras. As padeiras e os demais agentes deste tipo de comércio, após o seu compromisso de trabalho deviam começar a exercer a profissão no início do ano económico, que principiava em diferentes datas, mas que em Loulé tinha início no primeiro dia de Abril152, e a partir daí tornavam-se “obrigadas” ou “cadimas”, como a documentação se lhes refere, até igual dia do ano seguinte153. Aparentemente, em finais do século XV o concelho só teria uma padeira “obrigada” – a documentação refere-se-lho no singular e di-la, ao mesmo tempo, vendedeira de legumes154 – mas outras padeiras, talvez não “obrigadas”, exerciam também a profissão, expondo os seus pães talvez no mesmo alpendre em que aquela primeira trabalhava, talvez pela vila155. Tinham o seu lucro estipulado pela vereação: um real por cada vinte, isto é, 5% do valor das vendas e quando a padeira do concelho começou a cobrar para si um real por cada quinze, quer dizer, 6,66%, a edilidade interveio para repor a antiga prática156. Não sabemos como era este pão que se vendia em Loulé, como, aliás, também pouco sabemos relativamente a outras cidades. No entanto aqui, nesta vila, para lá do pão controlado pelos almotacés e nem todo, por certo, de primeira qualidade, destinado ao comum da população, em inícios do século XV exercia uma padeira, mulher “rica e honrada” que fora, mas perdera os seus bens, e a quem os órgãos locais de gestão deram a incumbência de confeccionar um “pam bramco stremado”, à base de GONÇALVES, Iria − “A propósito do pão da cidade…”, pp. 64-65. GONÇALVES, Iria − “Despesas da câmara municipal de Loulé em meados do século XV”. In Um olhar sobre a cidade medieval. Cascais: Patrimonia Historica, 1996, pp. 192. Loulé não escolhera, para este efeito, a data, ao menos entre nós, a mais habitual: 24 de Junho, dia da festa de S. João Baptista. 153 Como também determinavam as leis gerais do reino: Ordenações del-rei D. Duarte, ed. por Martim de Albuquerque e Eduardo Borges Nunes. Lisboa, 1988, pp. 366-367; Ordenações Afonsinas…, liv. I, tít. XXVIII, § 3, p. 181. 154 ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV, p. 200. Era manifestamente pouco para uma vila como Loulé, não obstante haver aí outras padeiras não comprometidas a apresentar quotidianamente, pão para venda. É certo que em 1538 ainda só trabalhavam em Loulé quatro destas padeiras (MAGALHÃES, Joaquim Antero Romero de − Para o estudo do Algarve económico…, p. 64) mas em inícios do século XV Montemor-oNovo tinha já ao seu serviço um grupo de dez padeiras profissionais (FONSECA, Jorge − Montemor-o-Novo no século XV. Montemor-o-Novo: Câmara Municipal de Montemor-o-Novo, 1998, pp. 43-44). Isto, para não falar em cidades mais importantes. 155 ACTAS de vereação de Loulé. Século XVI.1522-1527, pp. 111, 113. 156 ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV..., p. 200. O mesmo acontecia em outras cidades: GONÇALVES, Iria − “A propósito do pão da cidade…”, p. 71. 151 152 210 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL trigo bem moído157. Esse pão seria amassado com farinha peneirada no mínimo duas vezes, eventualmente três, por peneiras de malha cada vez mais apertada, de modo a que só um pó bem fino e branco quedasse após a última peneiração. A moedura saída do moinho – neste caso, por certo, de mó manual – ficara drasticamente reduzida, mas o pão que com ela se elaborava era branco, fofo, macio158. Em resumo: “bramco stremado”, como ficara estabelecido. Resultava muito caro este pão e só as famílias mais abonadas podiam dar-se ao prazer de o saborear quotidianamente. Neste caso ficou dito que ele se destinava aos estrangeiros e homens “honrados” e a padeira em causa não ficava sujeita aos constrangimentos que pesavam sobre as demais. Podia fixar o seu preço sem qualquer impedimento, a não ser aquele que ditava o jogo da oferta e da procura, que neste caso nem funcionaria tão apertadamente como em circunstâncias normais: por um lado, não havia concorrência, por outro, como o produto se destinava apenas aos mais ricos, talvez o preço não fosse um sério obstáculo à sua aquisição. Para lá destas padeiras, algumas donas de casa, quando coziam a fornada de pão familiar separavam dela algumas unidades que vendiam na vila. Em regra esse pão também não se encontrava sujeito a constrangimentos de ordem legal, tanto no que se refere ao peso como ao preço. Em Loulé acontecia isso mesmo. Podemos ficar a saber, embora a partir de informação proveniente já do século XVI, que uma mulher pobre – mas por certo não seria a única – quando tinha um alqueire de farinha amassava-o e vendia o pão pela vila, mandando também algum ao alpendre – o habitual posto de venda – como, aliás, os governantes queriam159. Não obstante a indispensabilidade desse pão, assim posto quotidianamente à venda para o correcto abastecimento da população urbana, nestes finais da Idade Média, muitas famílias citadinas confeccionavam, elas próprias, o seu pão, e talvez aqui, em Loulé, fosse mesmo a maioria das famílias, se não sempre, pelo menos várias vezes. O que acontecia em todos os núcleos urbanos. Com efeito, sempre que é possível ter acesso ao recheio das casas medievais, raramente faltam pelo menos alguns dos apetrechos necessários ao fabrico do pão160 e o mesmo acontecia nesta vila. É certo que quando conhecemos o mobiliário de algumas casas louletanas, raramente encontramos referenciadas peneiras ou masseiras, mas a existência, Actas citadas na nota anterior, pp. 192-193. Já por diversas vezes me referi a este pão medieval de primeira qualidade. Veja-se sobretudo À mesa nas terras de Alcobaça…, pp. 135-136. 159 ACTAS de vereação de Loulé. Século XVI. 1522-1527, p. 111. 160 VINYOLES I VIDAL, Teresa-Maria − La vida quotidiana a Barcelona vers 1400. Barcelona: R. Dalmau, 1985, p. 48; NADA PATRONE, Anna Maria − Il cibo del ricco ed il cibo del povero. Contributo alla storia qualitativa dell’ alimentazione. L’Arga Pedemontana negli ultimi secoli del Medio Evo. Turim: Centro Studi Piemontesi, 1989, p. 99; STOUFF, Louis − La table provençale. Boire et manger en Provence à la fin du Moyen Âge. Avinhão: Editions A. Barthélemy, 1996, p. 12 e vários outros autores mais. 157 158 UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA 211 em quase todas as moradas, de tábuas ou tabuleiros de levar pão ao forno161, bem documenta a sua confecção caseira. Se outros artefactos indispensáveis para o efeito podiam não ser encontrados na maior parte das casas, seriam, por certo, substituídos por outros: a masseira por um alguidar ou bacia grande, que esses existiam sempre; a peneira por empréstimo junto de uma vizinha. É sabido que as casas medievais da gente comum raramente eram auto-suficientes e que o intercâmbio de artefactos domésticos se tornava bastante frequente. Situação que não se esgotou na Idade Média e se prolongou a épocas bastante posteriores. Se pouco se sabe sobre as massas confeccionadas pelas padeiras profissionais, menos ainda se conhece sobre aquelas que as donas de casa preparavam para a família. No entanto, dentro destas haveria uma grande variedade e elas seriam mais ou menos finas e brancas, mais ou menos bem elaboradas, de acordo, por um lado, com a mestria de quem as amassava, por outro, com as possibilidades económicas das famílias, e do desgaste que elas podiam suportar na moedura trazida do moinho, quer dizer, da taxa de extracção de farinha. Se queriam e podiam consumir um “pão branco”, como todos na altura gostavam de saborear, a peneiração, feita com peneiras de malha mais fina, gerava muitos desperdícios; se, pelo contrário, tinham que contentar-se com um pão mais rústico, menos branco e macio, então usavam peneira de malha mais larga, a farinha daí resultante seria menos branca e fina, mas em maior quantidade. O cereal que a família levara ao moinho rendia, por isso, bastante mais162. Embora confeccionados à base do mesmo trigo, os pães domésticos podiam, assim, apresentar-se muito diferentes. Consoante as possibilidades económicas das famílias, é certo, mas também, para o comum da população, gente pouco ou apenas medianamente abonada, consoante a época do ano que se ia atravessando. Como atrás ficou lembrado, o cereal encarecia nos mercados à medida que o mês das ceifas ia ficando mais distanciado, por um lado, porque o trigo escasseava sempre antes das novas colheitas e, por outro, porque cada vez maior número de famílias ia esgotando as suas reservas e precisava abastecer-se por compra. Então, em muitas casas, era preciso poupar. E foi este mais um dos fenómenos que se prolongou no tempo até quase aos nossos dias. Mas no que se refere à qualidade do pão caseiro, as circunstâncias podiam proporcionar uma diferenciação de sentido oposto, isto é, no sentido de um produto melhorado em função de certos dias diferentes – festa religiosa ou mesmo familiar, por exemplo – em que convinha apresentar um pão Fundo dos órfãos de Loulé. Séculos XV e XVI, ed. org. por Maria de Fátima Machado. Loulé: Câmara Municipal de Loulé, 2016, passim; MACHADO, Maria de Fátima − “Os órfãos de Loulé e a gestão do seu património nos séculos XV e XVI”. Al’-Ulyā 17 (2017), p. 57. 162 Já por mais de uma vez me referi a este assunto. Podem ver-se: GONÇALVES, Iria − “A propósito do pão da cidade…”, pp. 66-67; GONÇALVES, Iria − À mesa nas terras de Alcobaça…, pp. 135-136 e abonações que num caso e noutro foram apresentadas. 161 212 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL mais cuidado. As diferenças podiam ser, na verdade, muito grandes. Mas todo o pão, de qualidade apurada ou muito rústico, precisava passar pelo forno. Se as mãos que amassavam eram, na Idade Média, quase sempre femininas163, também no forno o pão continuava a ser manipulado por mãos femininas: as da forneira. Mulher que trabalhava em forno de propriedade régia, uma vez que o monarca se reservara, tanto em Silves como na generalidade das vilas algarvias, com pequenas excepções, todos estes instrumentos de produção164. Em Loulé assim era, tanto na vila como nas aldeias do termo ninguém podia construir forno nem fornalha para cozer pão, salvo em quintas ou casais isolados onde não houvesse fornos régios e exclusivamente para consumo próprio165. Deste modo todos os louletanos precisavam recorrer à forneira e pagar o respectivo trabalho. Esse trabalho era, como na generalidade dos casos, satisfeito em géneros: um pão por um determinado grupo de unidades que se levara cozer, número variável de lugar para lugar. Era a chamada poia que também em regra devia ser um pouco maior do que os outros pães166, costume que, mais uma vez, chegou quase aos nossos dias em muitas aldeias portuguesas. Em Loulé o pagamento à forneira ficou indicado nos chamados forais manuelinos: um pão por cada grupo de vinte e cinco167. Isto é, 4% da fornada ou apenas ligeiramente mais, caso a poia devesse ser um pouco maior, o que não encontrei expresso168. Se os ganhos atribuídos a todos estes profissionais eram bastante reduzidos – embora, como atrás ficou lembrado tidos como “aguisados” pelos homens bons do concelho que faziam, neste como em tantos outros assuntos, a lei local – os que tocavam às forneiras eram os mais diminutos. É interessante verificar que quando se trata de profissões relacionadas com o trabalho doméstico a documentação emprega sempre, ou quase sempre, os vocábulos no feminino e o caso das padeiras é, a este respeito, paradigmático. E Loulé não era excepção. Basta folhear os livros de vereação e isso fica bem claro. 164 Forais manuelinos do reino de Portugal e do Algarve..., Vol. 5: Entre Tejo e Odiana, p. 19. 165 “Transcrição do foral de Loulé…”, pp. 102-103. 166 GONÇALVES, Iria − “A propósito do pão da cidade…”, p. 89. 167 Forais manuelinos do reino de Portugal e do Algarve…, Vol. 5: Entre Tejo e Odiana, pp. 19-20; “Transcrição do foral de Loulé…”, p. 103. 168 Estes ganhos podiam variar de uma para outra povoação e até numa mesma vila podiam vigorar tabelas diferentes. Em trabalho anteriormente realizado encontrei, para diversas povoações portuguesas, um leque a variar entre os 4% e os 8,3% (GONÇALVES, Iria − “A propósito do pão da cidade…”, p. 70). 163 UMA PEQUENA CIDADE MEDIEVAL E O SEU PÃO NA BAIX A IDADE MÉDIA 213 214 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL “In civitate Minorise et per totam Cathaloniam est magna carestia et penuria bladi” La gestión municipal del aprovisionamiento de trigo en Manresa durante la crisis de 1333-13341 Adrià Mas Craviotto2 Resumen La crisis de trigo de los años 1333-1334 más conocida como “lo mal any primer”, fue una de las más devastadoras del siglo XIV sobre los territorios que integraban la Corona de Aragón y especialmente Cataluña. Durante esta crisis las ciudades tuvieron que asumir políticas públicas de abastecimiento frumentario para evitar el desorden público y el hambre de sus poblaciones. La carestía afectó también a las ciudades y pueblos del interior del país de una forma muy clara, de manera que se ha propuesto estudiar el caso de la ciudad de Manresa (comarca del Bages, Cataluña) y las políticas que llevó a cabo su consejo con el fin de proveer de cereales su población, ya que el trigo era el alimento más estratégico y esencial que no podía faltar nunca en las dietas medievales. Palabras clave Aprovisionamiento; Crisis; Trigo; Cereales; Manresa. Este artículo forma parte del proyecto de investigación: “Mercados y comercialización de vituallas en el Mediterráneo occidental, siglos XI-XV: Factores e indicadores de desarrollo e integración regional y supraregional”, financiado por el Ministerio de Economía y Competitividad del Gobierno de España (HAR2016-80298-P). Abreviaturas utilizadas: AHCM, Arxiu Històric de la Ciutat de Manresa; AHPM, Arxiu Històric de Protocols de Manresa; DCVB, Diccionario catalán, valenciano y balear Alcover Moll. 2 Grup de Recerca Consolidat en Estudis Medievals. Espai, Poder i Cultura. Universitat de Lleida. 1 216 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL “In civitate Minorise et per totam Cathloniam est magna carestia et penuria bladi”: The council policy supply of wheat in Manresa during the crisis of 1333-1334. Abstract The wheat crisis of the years 1333-1334, better known as “lo mal any primer”, was one of the most devastating of the 14th century in the territories that integrated the Crown of Aragon and more specially Catalonia. During this crisis, the cities had to assume public policies of wheat provisioning and avoid public disturbances and famine of its citizens. The famine also affected the cities and villages of the interior of the country very clearly, so the aim of this article is examine the case of Manresa (region of Bages, Catalonia) and the policies that were carried out by its government with the intention of providing its population with cereals, since the bread was the most strategic and essential food that could never be missing on the tables and medieval diets. Keywords Provisioning; Crisis; Wheat; Cereals; Manresa. 1. Introducción. El aprovisionamiento alimentario de las ciudades catalanas en la baja edad media se ha convertido durante los últimos años en una línea de investigación remarcable a la hora de estudiar los factores que incidieron en las crisis alimentarias durante este periodo. Para empezar es necesario diferenciar por un lado las políticas de estado que llevaron a cabo los diferentes soberanos de la Corona de Aragón sobre el control de los distintos mercados alimentarios y los factores que los integraban, y por otro las medidas y políticas municipales que adoptaron los diferentes gobiernos de las ciudades catalanas a la hora de hacer frente a la emergencia de las crisis, a frenar las subidas de precios, a luchar contra el acaparamiento y las actividades especulativas, y sobre todo garantizar el aprovisionamiento de sus habitantes3. 3 BENITO I MONCLÚS, Pere – “El rey frente a la carestía. Políticas frumentarias de estado en la Europa Medieval”. In PALERMO, Luciano; FARA, Andrea; BENITO I MONCLÚS, Pere (eds.) – Políticas contra el hambre en la Europa Medieval. Lleida: Milenio, 2018, pp. 37-38. “IN CIVITATE MINORISE ET PER TOTAM CATHALONIAM EST MAGNA CAR ESTIA [...]” 217 El objetivo de este artículo es poner de manifiesto las diferentes políticas que llevaron a cabo los miembros del poder político municipal de la ciudad de Manresa (comarca del Bages, Cataluña) durante la carestía de 1333-1334, con el fin de garantizar el aprovisionamiento frumentario de sus habitantes, luchar contra el alzamiento de precios así como los posibles fraudes que se pudieran cometer para finalmente, mantener la paz urbana y evitar a toda costa cualquier revuelta o estallido de violencia urbana que se pudiese desencadenar. Nos centraremos especialmente en las diferentes medidas de control y políticas de aprovisionamiento que los consejeros ordenaron durante los meses que duró la carestía de 1333-1334. Esta hambruna, conocida por la historiografía catalana con el nombre de “lo mal any primer” fue consecuencia de un conjunto sucesivo de causas económicas, climáticas y políticas en la zona del Mediterráneo occidental4. Estos años fueron de una excepcionalidad sin precedentes durante las primeras décadas del 1300, y la historiografía moderna la ha definido como la primera de las grandes hambrunas del siglo XIV, solo comparable por la magnitud de sus consecuencias a la hambruna de 1374-1376. Joan Montoro afirma que la mala cosecha de 1333 desencadenó un proceso inflacionista que no se detendría hasta 1336 con un aumento exorbitante de los precios de los cereales y otros alimentos esenciales como la carne, el vino, el aceite y las legumbres5. A esta hambruna también se le relaciona una mortalidad epidémica que agravó definitivamente la situación, especialmente en núcleos urbanos de primer orden como Barcelona. Según el Memorial histórico de Joan Francesc Boscà, en esta ciudad en 1334 “moriren de pestilencia e altras 4 Sobre la hambruna de 1333-1334 en Cataluña, vea: RIERA VIADER, Sebastià – “El mal any primer”. Una crisi de subsistències a la baixa edat mitjana: 1333-1334. Bellaterra: Universitat Autònoma de Barcelona, 1979. Tesis de licenciatura inédita; SERRA I PUIG, Eva – “Els cereals a la Barcelona del segle XIV”. Alimentación i societat a la Catalunya medieval. Barcelona: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1988, pp. 71-77; RUBIÓ I VELA, Agustí – “A propósito del ‘mal any primer’. Dificultades cerealísticas en la Corona de Aragón en los años treinta del siglo XIV”. In Estudios dedicados a Juan Peset Aleixandre, vol. 3. Valencia: Universitat de València, 1982, p. 481; MUTGÉ I VIVES, Josefina – Política, urbanismo y vida cotidiana en la Barcelona del siglo XIV. Barcelona: Institució Milà i Fontanals, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2004, pp. 216-251. CÁCERES NEVOT, Juan José – La participació del Consell Municipal en l’aprovisionament cerealer de la ciutat de Barcelona (1301-1430). Barcelona: Universitat de Barcelona, Tesis doctoral, 2006, pp. 121-131. Acessible en: http://www.tdx.cat/handle/10803/2067; MELONI, G; ALIAS, F. – “Rendes e messions en la illa de Sardenya (1333)”. In DALENA, Pietro; URSO, Carmelina (eds.) – Ut sementem feceris, ita metes: studi in onore di Biagio Saitta. Acireale: Bonanno editore, 2016, pp. 299-346; BENITO I MONCLÚS, Pere; MONTORO I MALTAS, Joan – “Fams immortalitzades. El ‘mal any primer’ (1333-1334) dins l’annalística catalana de la baixa edat mitjana”. In CASTELNUOVO, Guido, SANDRINE, Victor (eds.) – L’Histoire à la source: acter, compter, enregistrer (Catalonie, Savoie, Italie, XIIe - XVe siècle). Mélanges offerts à Christian Guilleré. Chambéry: Université Savoie Mont Blanc, 2017, vol. 1, pp. 503-520; RIERA I MELIS, Antoni – “Crisis cerealistas, políticas públicas de aprovisionamiento, fiscalidad y seguridad alimentaria en las ciudades catalanas durante la Baja Edad Media”. In PALERMO, Luciano; FARA, Andrea; BENITO I MONCLÚS, Pere (eds.) – Políticas contra el hambre en la Europa Medieval. Lleida: Milenio, 2018, pp. 253-254. 5 MONTORO I MALTAS, Joan – “Del cot fet per lo señor infant en Pere en la ciutat de Leyda”. In PALERMO, Luciano; FARA, Andrea; BENITO I MONCLÚS, Pere (eds.) – Políticas contra el hambre en la Europa Medieval. Lleida: Milenio, 2018, p. 85. 218 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL malaltias” muchas personas, llegando a cifras de hasta 10.000 almas6. Por otro lado, Montoro ha estudiado los efectos devastadores de esta crisis a partir de la producción de documentación testamentaria en la misma ciudad de Barcelona, así como en otras poblaciones como Puigcerdà, Vic, algunas parroquias del Camp de Tarragona y Verdú (Lérida). Los resultados a los que llegó revelaron que fue la mortalidad más importante antes de la Peste Negra (1348), ya que pudo ver un aumento de la producción de testamentos entre los meses de abril y junio que concluyó entre setiembre y noviembre, es decir, entre los meses más calurosos del año7. Para terminar con esta breve síntesis sobre la hambruna de 1333-1334 convendría hablar de otro índice de gravedad de la carestía, y son los diferentes estallidos de violencia popular –urbana sobre todo- que se produjeron a causa del incremento de precios del cereal y las grandes dificultades para aprovisionar estos núcleos. Se documentan revueltas en Barcelona y en Puigcerdà como respuesta a la crítica y desesperada situación que se estaba viviendo durante los meses más duros de la crisis8. Actualmente, disponemos de estudios de caso dentro del Principado dedicados al impacto de esta grave carestía en algunas de las ciudades más notables como Barcelona9, Cervera10, Girona11 y Tortosa12 entre otras. En cambio, para el caso de la ciudad de Manresa no disponemos de ningún estudio relacionado con la temática ni el periodo. Si bien es cierto que se han realizado estudios sobre las consecuencias de la crisis bajo medieval en Manresa y varios lugares de la comarca del Bages, la mayoría se han dedicado a la segunda mitad del siglo XIV y de forma mucho más completa al siglo XV. A lo largo de las últimas décadas han aparecido estudios que han tratado esta temática desde ópticas diferentes, donde todas intentan BENITO I MONCLÚS, Pere; MONTORO I MALTAS, Joan – “Fams immortalitzades. El ‘mal any primer’ (1333-1334) dins l’annalística catalana de la baixa edat Mitjana…”, p. 518. 7 MONTORO I MALTAS, Joan – “Del cot fet per lo señor infant en Pere en la ciutat de Leyda…”, p. 85. 8 BENITO I MONCLÚS, Pere; MONTORO I MALTAS, Joan – “Fams immortalitzades. El ‘mal any primer’ (1333-1334) dins l’annalística catalana de la baixa edat Mitjana …”, pp. 516-518. 9 SERRA I PUIG, Eva – Los cereales en la Barcelona del siglo XIV. Barcelona: Universitat de Barcelona, 1967. Tesis de licenciatura. BATLLE, Carme – La crisis social y económica de Barcelona a mediados del siglo XIV. Barcelona: Universitat de Barcelona, 1970, I, p. 50. RIERA VIADER, Sebastià – El ‘Mal Any Primer’: Una crisi de subsistència a la Baixa Edat Mitjana: 1333-1334. Bellaterra: Universitat Autònoma de Barcelona, 1979. Tesis de licenciatura. ORTÍ GOST, Pere – “El forment a la Barcelona baixmedieval: preus, mesures i fiscalitat (1283-1345)”. Anuario de Estudios Medievales 22 (1992), pp. 377-423. LÓPEZ PIZCUETA, Tomás – “El ‘mal any primer’: Alimentación de los pobres asistidos en la Pia Almoina de Barcelona: 1333-1334”, In Actes del Primer Col·loqui d’Història de l’alimentació a la Corona d’Aragó. Lleida: Institut d’Estudis Ilerdencs, 1995, pp. 613-623. CÁCERES NEVOT, Juan José – La participació del Consell Municipal en l’aprovisionament cerealer a la ciutat de Barcelona (1301-1430)...”. 10 TURULL I RUBINAT, Max – “El ‘mal any primer’ a Cervera: trasbals sòcio-polític i crisi de subsistencia (1333)”. Cervera: Miscel·lània cerverina 4 (1986), pp. 23-54. 11 GUILLERÉ, Christian – Girona al segle XIV, t.1. Girona-Barcelona: Ajuntament de GironaPublicacions de l’Abadia de Montserrat, 1994, pp. 289-328. 12 CURTÓ I HOMEDES, Albert – La intervenció municipal en l’abastament de blat d’una ciutat catalana: Tortosa, segle XIV. Barcelona: Fundació Salvador Vives i Casajuana, 1988. 6 “IN CIVITATE MINORISE ET PER TOTAM CATHALONIAM EST MAGNA CAR ESTIA [...]” 219 confluir para entender de forma más precisa y detallada los efectos de esta crisis en la denominada Cataluña Central. Con relación a la temática de las crisis alimentarias, Marc Torras i Serra, historiador local y archivero de l’Arxiu Comarcal del Bages, realizó un estudio notable sobre la hambruna y carestía de trigo que tuvo lugar entre 1374-1376 en Manresa con una base documental muy variada en la que intentó analizar los efectos devastadores de esta crisis, más conocida como “l’any de la fam” o el año de la hambruna. Tal como él mismo afirmó, los resultados fueron bastante decepcionantes, ya que había poca documentación que efectivamente hiciera referencia a los efectos de esta crisis, y las pocas noticias que disponía procedían de fuentes de origen municipal. No obstante, esto le permitió ver cuál fue la actuación del consejo municipal para hacer frente a la hambruna que se presentó durante esos años en la ciudad13. De momento pues, esto es todo lo que disponemos sobre los estudios de las crisis alimentarias y sus efectos en Manresa, cosa que deja un panorama realmente pobre que permanece a la espera de nuevas investigaciones que amplíen o profundicen sobre la temática. Respecto a la carestía que aquí se tratará, la de 1333-1334, desconocemos completamente la existencia a nivel local o comarcal de ningún estudio que haya trabajado sobre ella. Este artículo pues, pretende abrir nuevos horizontes aportando nuevas informaciones sobre los primeros años del siglo XIV, por otra parte poco estudiados en Manresa. Con esta aportación pretendemos también a ampliar las investigaciones que se han hecho en Cataluña y que han puesto el foco de atención en cuestiones relacionadas con la temática que aquí se pretende abordar, siendo este un nuevo estudio de caso sobre “el mal any primer” y sus efectos en una de las ciudades importantes del interior del Principado. 2. Manresa a principios del siglo XIV. Durante el reinado de Alfonso el Casto (1162-1196) se inició la recuperación del control real del territorio que había estado hasta entonces en manos de poderes locales y de una nobleza cada vez más independiente de la monarquía. Este fue un proceso continuado que se intensificó con sus sucesores, especialmente con Jaime I, Pedro el Grande y Alfonso el Liberal. Los diferentes señores feudales se habían otorgado y engrandecido un poder a lo largo de los siglos XI y XII que llevó a un proceso de descentralización feudal. Una de las principales estrategias de la monarquía para combatir estos poderes señoriales fue la de fortalecer las figuras de los funcionarios reales en sus dominios, denominados veguers o vicarios. Durante estos años, y 13 TORRAS I SERRA, Marc – “La carestia de blat de 1374-1376 a Manresa”. In TORRAS I SERRA, Marc (coord.) – La crisi de l’Edat Mitjana a la Cataluña Central. Manresa: Centre d’Estudis del Bages. Miscel·lània d’Estudis Bagencs, 9, 1994, pp. 101-138. 220 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL especialmente durante el reinado de Jaime I los veguers serian designados como los guardianes de la paz y tregua14, ejerciendo el poder ejecutivo en caso de infracción real en un territorio determinado, mientras que el poder de los obispos quedaría relegado únicamente a las penas de excomunión15. Con la figura de los veguers reforzada, la paz y tregua se ampliaría por todo el territorio de la Cataluña interior limitando de forma eficaz el poder de la nobleza local, y fue durante el reinado de Jaime I que se establecerían las bases de las veguerías bajo medievales, territorios sometidos a la jurisdicción del veguer. La historia de la veguería de Manresa, tal como afirma Fynn-Paul, está estrechamente ligada a la concesión que Jaime I hizo al vizconde de Cardona en 1254, según la cual el rey le cedía Manresa, Vilafranca y otras jurisdicciones de manera vitalicia y a cambio el vizconde tenía que poner treinta caballeros al servicio del monarca. El vizconde de Cardona y el rey Jaime I murieron en 1276, y pocos meses después el rey Pedro el Grande (1276-1285) establecía una veguería en el territorio del Bages con capital en Manresa, mientras que sus sucesores Alfonso el Liberal (1285-1291) y Jaime II (12911327) la fortalecerían delimitando su territorio y jurisdicción16. Tanto los veguers como sus homónimos locales, los bailes, tenían unas funciones muy concretas. Los primeros eran funcionarios reales ordinarios que se encargaban de administrar justicia civil y criminal en un distrito o comarca, siendo los principales encargados del mantenimiento del orden público. El baile era por otra parte el representante del rey en una ciudad, villa, lugar o zona de jurisdicción real que estaba subordinado al veguer correspondiente. Administraba los bienes reales en este territorio y a su vez, en tanto que juez ordinario, ejercía la jurisdicción civil y criminal, pero solamente en causas menores e infracciones de poca gravedad17. Este oficial también supervisaba y se encargaba de que se cumpliera el sistema de impuestos, que será cada vez más complejo a medida que avance el siglo XIV, y por último garantizaba las transacciones de bienes inmuebles y aseguraba que los bienes de los habitantes de Manresa fueran divididos según las leyes de herencia y testamentos18. Entre 1280 y 1320 la ciudad experimentó un notable crecimiento demográfico y económico que le permitió adquirir importancia a escala regional. Este nuevo papel 14 La paz y tregua, más conocida como la paz y tregua de Dios, fue una institución impulsada por las altas jerarquías eclesiásticas con el fin de proteger los campesinos y los bienes de la Iglesia de la violencia y las extorsiones que los señores feudales perpetraban. En Cataluña el gran artífice de este movimiento es el abad Oliba (971-1046) quien la proclamó por primera vez en el concilio de Toluges (1027). 15 FYNN-PAUL, Jeff – Auge i declivi d’una burgesia catalana. Manresa a la baixa edat mitjana, 12501500. Manresa: Centre d’Estudis del Bages. Zenobita Edicions, 2017, p. 51. 16 FYNN-PAUL, Jeff – Auge i declivi d’una burgesia catalana. Manresa a la baixa edat mitjana, 12501500…”, p. 51. 17 TORRAS I SERRA, Marc – “L’extensió territorial de la veguería i la batllia de Manresa”. Manresa: Dovella, 1994, p. 16. 18 FYNN-PAUL, Jeff – Auge i declivi d’una burgesia catalana. Manresa a la baixa edat mitjana, 12501500…”, p. 52. “IN CIVITATE MINORISE ET PER TOTAM CATHALONIAM EST MAGNA CAR ESTIA [...]” 221 como centro económico fue potenciado aún más por numerosos privilegios que los diferentes soberanos fueron otorgando a lo largo de estos años. En 1284 Pedro el Grande concedía a la ciudad el derecho de celebrar una feria anual de ocho días que empezaba para la fiesta de la Ascensión19 y Jaime II concedió en 1311 una segunda feria que se celebraba el 30 de noviembre, día de san Andrés, y que duraba diez días20. Al mismo tiempo, la ciudad adquiría importancia a nivel político, y sus dirigentes empezaban a denominarse probi homines en varios documentos. Las nuevas élites manresanas se estaban enriqueciendo con los negocios de la tierra, negocios que por otra parte les permitieron ascender en el escalafón social y político, convirtiéndose en el denominado patriciado urbano de la ciudad. Las instituciones municipales también tendrían en este momento su pistoletazo de salida, siendo la escribanía real la más representativa, que acabaría consolidándose de forma definitiva también bajo el reinado de Jaime II. En este momento se conservaban los registros del veguer y del baile, series documentales hechas por el gobierno de la ciudad, manuales notariales, libros privados donde se registraban los diferentes negocios de los judíos de Manresa, libros comunes, etc. Fynn-Paul afirma que estos registros permitieron a los manresanos establecer nuevas formas de control de su entorno, de sus vidas y de sus interacciones con otros ciudadanos, clérigos, funcionarios reales y nobles. La escribanía también dio a las élites un registro importante del pasado de la ciudad, aportando a sus dirigentes un cierto sentido de perspectiva histórica, y a raíz de eso se puede pensar que se alentaba a sus ciudadanos a pensar en la futura grandeza de su ciudad21. Jaime II fue también el encargado de diseñar una de las bases del crecimiento económico y comercial de la ciudad, ya hemos hablado del privilegio que concedió a la ciudad para celebrar una segunda feria en 1311, y fue ese mismo año en el que también otorgó el primer privilegio sobre la regulación de la venta del vino y la vendimia locales22. Fue la primera de muchas concesiones referentes al sector vitícola que después los sucesivos monarcas de la Corona ratificaran, ampliaran y matizaran a lo largo del siglo XIV. Este documento emanado de la cancillería real se enmarcaba en una política claramente proteccionista hacia el comercio y el mercado local, ya que en él se establecía que solamente podía entrar y vender en la ciudad el vino y la vendimia locales, es decir, que se hubieran producido en las viñas de la parroquia de la ciudad o ese vino o vendimia que, aun cuando no fuera de la parroquia o término de Manresa, procedía de tierras, honores o rentas que sus ACBG. Ajuntament de Manresa, pergamí 355: ACBG. Ajuntament de Manresa, uc 2 (Llibre I de privilegis), f. 66v-67r. 20 ACBG. Ajuntament de Manresa, uc 1 (Llibre Verd), f. 12r. 21 FYNN-PAUL, Jeff – Auge i declivi d’una burgesia catalana. Manresa a la baixa edat Mitjana…”, p. 59. 22 ACBG. Ajuntament de Manresa, pergamí 256 i ACBG. Ajuntament de Manresa, uc 1 (Llibre Verd), f. 7v-8r. 19 222 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL propios ciudadanos tuvieran en otros lugares23. Este documento pone de manifiesto la importancia del vino en el paisaje agrario de principios del siglo XIV y el papel que la ciudad desempeñaba como mercado de intercambio, ya que venía gente de fuera de su parroquia a comerciar con distintos productos. Con este privilegio se pretendía incentivar la comercialización del vino manresano y exportarlo a otros grandes mercados situados en las comarcas del Berguedà, Solsonès y hacia las zonas pirenaicas, a la vez que se protegía también la producción local y se potenciaba el cultivo agrario local con la vid, que según Torras i Serra daba los beneficios necesarios para poder importar trigo y otros muchos productos. Otro privilegio importante concedido a Manresa fue también de 1311, y era el derecho del gobierno municipal de recaudar impuestos a los ciudadanos que eran propietarios de bienes muebles e inmuebles de realengo en la ciudad y en su término. Se establecía que los impuestos no gravarían las personas, sino sus propiedades, tierras y rentas que tenían dentro de la jurisdicción real. Este privilegio sentó las bases sobre la futura administración urbana y la forma como se recaudaría el dinero para pagar los diferentes impuestos reales y municipales, ordinarios y extraordinarios, directos o indirectos, que se iría concretando y perfeccionando a medida que avance el siglo XIV, tanto por el propio municipio como por la monarquía. En 1315 Jaime II promulgó además una serie de innovaciones institucionales, de las cuales la más importante fue la de conceder a Manresa el título de civitas, es decir, de ser ciudad de pleno derecho y formar un gobierno de carácter conciliar. Este privilegió aportó numerosos beneficios, el más importante de los cuales fue la representación que tendría a partir de ahora la ciudad en las Cortes contando con dos procuradores, ya que hasta entonces solo tenía uno por el hecho de ser considerada una villa. Y para terminar, el soberano también otorgó a los ciudadanos el derecho de no ser desposeídos de sus caballos, armas, camas, cajas fuertes y otros objetos importantes por razón de endeudamiento. Por último, nos gustaría hablar brevemente de la estructura del consejo manresano durante estos primeros años del siglo XIV. Dentro de este gobierno conciliar las figuras más importantes y con más poder de decisión fueron los “consellers” o consejeros, que durante el transcurso del siglo pasaron de cuatro a seis dependiendo del momento. Estos eran el máximo cuerpo legislativo y ejecutivo de la ciudad, y por debajo se encontraban los jurados, que normalmente eran un total de treinta, diez por cada una de las manos o clases que había en la ciudad (la mano mayor, la mano mediana y la mano menor). Los jurados se encargaban de asesorar a los consejeros y cuando los dos grupos se reunían formaban lo que se denominaba el consejo especial, tal y como aparece descrito en la documentación. Durante el siglo XIV cualquier asunto municipal era tratado por un cierto quórum de consejeros y 23 Torras Serra, Marc. – “Els privilegis concedits a Manresa durant la cort de 1311”, Dovella 109 (2012), pp. 31-35. “IN CIVITATE MINORISE ET PER TOTAM CATHALONIAM EST MAGNA CAR ESTIA [...]” 223 jurados, con los consejeros como jefes ejecutivos y representativos de la ciudad tanto en asuntos internos como en las relaciones que mantenía la ciudad con los diferentes poderes externos24. Son precisamente esas sesiones del consejo que se conservan en el Arxiu Històric de la Ciutat de Manresa y que han pervivido hasta nuestros días, las que nos permiten ver la actuación y las medidas que adoptó el gobierno municipal para hacer frente a la carestía que se presentó a partir del verano del año 1333 y que no cesaría hasta un año después. 3. El gobierno de Manresa frente la hambruna de 1333-1334. El primer documento municipal que apunta a una situación deficitaria de cereal en Manresa es del 1 de diciembre de 1333. Durante ese día, los consejeros Francesc Ferrer, Pere Mir y Bartomeu de Gamisans25, reunidos en la iglesia de san Miguel, tomaron una decisión para el bien común de la universidad. Se decidió que el impuesto del trigo que se vendió públicamente por el precio de 3.700 sueldos entre los meses de setiembre, octubre, noviembre y diciembre no se recaudase durante el último mes en la ciudad, su término o en su parroquia. El motivo era muy claro, no había ni entraba suficiente trigo para poder recaudar los impuestos que gravaban su compraventa. Los consejeros decidieron que los compradores de esta imposición, llamados Jaume de Prat, Jaume d’Ullastrell y Bernat Beló, no recolectasen el impuesto durante el mes de diciembre y les prometieron pagar la cuarta parte de lo que les costó la compra de la dicha imposición26. El lenguaje que utiliza el poder municipal es muy claro, no había nadie que aportara trigo en la ciudad, su término y su parroquia, y por lo tanto era difícil o no valía la pena recaudar sus impuestos, que por otra parte eran de los que más dinero daban a las arcas municipales. En el preámbulo del documento se señala el motivo por el cual Manresa vivía esta situación, “atendentes quod in civitate Minorise et per totam eciam Cathaloniam est magna carestia et indigencia bladi, propter quod probis hominibus et habitatoribus eiusdem et locis eciam circumvicinis posset magnum periculum et dampnum eminente”. No solamente no se encontraba cereal en la ciudad, sino que en toda Cataluña había carestía y falta de este alimento cosa que ponía seriamente en peligro a todos sus habitantes. La cosecha de 1333 fue muy precaria y no fue hasta diciembre de ese mismo año que el gobierno empezó a adoptar medidas preventivas para paliar los efectos que ya empezaban a notarse entre la población. La siguiente noticia es del 27 de diciembre de 1333, en la cual los mismos 24 FYNN-PAUL, Jeff – Auge i declivi d’una burgesia catalana. Manresa a la baixa edat mitjana, 12501500…”, p. 62. 25 Los consejeros que se ausentaron ese día fueron Francesc Nerell, Ramon Morera y Berenguer Canet. 26 Arxiu Històric de la Ciutat de Manresa (AHCM). AHCM/AM. I-2. Manual del consell (1322-1338), ff. 145v-145r. 224 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL consejeros decidieron empezar a preparar un aprovisionamiento continuado de cereales para alimentar a sus vecinos. Para llevar a cabo esta empresa se asignaron diferentes partidas de mercaderes para comprar trigo en los lugares y a los precios que quisieran, llevarlo hasta la ciudad de forma segura y venderlo públicamente al precio que se pudiera. Había pasado casi un mes desde el primer documento analizado y la situación era grave, no había trigo para la población y se necesitaba buscarlo y comprarlo en otras regiones para llevarlo a Manresa y de esta forma evitar la hambruna o el desorden público. Los encargados de llevar a cabo estas operaciones serian Pere Morera y Guillem Boixó, los cuales los consejeros les dieron potestad para comprar “frumentum, ordeum et alia blada”. En estas empresas mercantiles, los mismos consejeros asumirían los gastos que se pudieran derivar de las diferentes operaciones que se llevarían a cabo27. Pero no solamente fueron los únicos que se designaron para aprovisionar la ciudad, ya que cuatro días después, el día 31 de diciembre, se daba potestad a otra partida formada por Berenguer Amargós y Ramon de Grevalosa para comprar trigo al precio que viesen, llevarlo a la ciudad y una vez allí lo vendiesen públicamente. Tal como había hecho antes, el mismo consejo asumió también los gastos que pudieran ocasionar estas misiones28. En el caso de estos mercaderes es preciso hacer un matiz, y es que una de las cláusulas que aparecen en el acta conciliar es la que dice que tienen que aprovisionar la ciudad durante los meses de enero y febrero del año siguiente, por lo que cobrarían 20 sueldos “pro salario et laboro vostri”. Así pues, es importante ver como el consejo municipal, previendo que la situación podía ir a peor, planificaba el aprovisionamiento a corto y medio plazo asignando partidas de mercaderes encargados de efectuar entrada constante, que no fluida, de trigo, así como de otros tipos de cereales para alimentar sus ciudadanos. En 1334 es cuando encontramos la mayoría de actas que hacen referencia a las medidas preventivas que adoptó el consejo para intentar enmendar de forma puntual la situación. El 15 de enero de este año se asignaron y nombraron procuradores a Berenguer Gaidó y Berengó Oliver, habitantes y vecinos de la ciudad, para comprar trigo, cebada, avena y otros cereales en nombre de la universidad de Manresa. Vemos pues, como la situación empieza a ser crítica y la preocupación del poder no solo está en comprar y traer trigo a la ciudad, sino que este mandamiento se extendía a todo tipo de cereal panificable, incluso la cebada que era propia de las tierras altas y frías, ya que como afirma Antoni Riera era el cereal propio de los campesinos pobres y 27 Arxiu Històric de la Ciutat de Manresa (AHCM). AHCM/AM. I-2. Manual del consell (1322-1338), 28 Arxiu Històric de la Ciutat de Manresa (AHCM). AHCM/AM. I-2. Manual del consell (1322-1338), f. 146v. f. 146r.. “IN CIVITATE MINORISE ET PER TOTAM CATHALONIAM EST MAGNA CAR ESTIA [...]” 225 el grano destinado a los cuadrúpedos29. Por otra parte, es gracias a este documento donde se nos muestra la difícil situación que se vivía en todo el territorio catalán. Una vez asignadas las personas que llevarían a cabo lo que el consejo ha encomendado, los gobernantes requieren que el rey y Guillem de Cervelló, noble, procurador general en Cataluña y lugarteniente del infante Pedro (futuro rey Pedro III), hagan un mandamiento a partir de cartas que serán transmitidas a diferentes bailes, oficiales reales y magistrados pera que permitan que las personas que compren cereal y lo lleven hasta Manresa en nombre de la universidad lo puedan hacer de forma libre “et sine aliquo impedimento”30. Como bien podemos deducir, este requerimiento se decidió hacer seguramente por las quejas que llegaban al consejo sobre las dificultades que ponían los oficiales y otros municipios para comprar trigo y llevarlo hasta su destino. Tal y como ya apuntaba Montoro, la principal dificultad no era encontrar y comprar cereales, sino moverlo por el territorio atravesando diferentes jurisdicciones hasta llegar a la ciudad. En años normales, ciudades y villas permitían la libre circulación de mercancías pudiendo sacar trigo sin dificultades, en cambio, en años de carestía las ciudades y municipios imponían el denominado “vetum bladi”, una prohibición general de extraer trigo de la ciudad o del territorio, impidiendo que el grano fluyese y circulase de forma libre y sin barreras jurisdiccionales por el territorio31. El 14 de febrero de 1334 los consejeros Francesc Ferrer, Pere Mir y Berenguer Canet se volvieron a reunir en la iglesia de san Miguel para asignar nuevamente otra partida de mercaderes. Los elegidos fueron Guillem Artús, Guillem Ferrer, Jaume de Prat y Jaume de Cornet para comprar trigo, cebada, avena y otros granos. Se les encomienda aprovisionar la ciudad durante los meses de marzo y abril siguientes y se les da poder a estos para designar procuradores que se encarguen de llevar a cabo dichas operaciones, a la vez que el consejo promete asumir los gastos que estas ocasionasen, así como pagar el salario correspondiente durante este tiempo a los mercaderes elegidos32. El 21 de febrero de ese mismo año, los consejeros se reunían nuevamente con los mercaderes Berenguer Amargós y Ramon de Grevalosa, que habían sido los encargados de aprovisionar la ciudad durante los meses de enero y febrero. El acta de este día es seguramente de las más interesantes que hemos encontrado, pues detalla algunos de los lugares de aprovisionamiento donde Ramon y Berenguer compraron diferentes tipos y cantidades de cereales, así como el precio al que lo tuvieron que 29 RIERA I MELIS, Antoni – Els cereals i el pa en els paisos de llengua catalana a la baixa edat mitjana. Barcelona: Istitut d’Estudis Catalans, 2017, p. 25. 30 Arxiu Històric de la Ciutat de Manresa (AHCM). Ahcm/am. I-2. Manual del Consell (1322-1338), f. 146r-147v. 31 MONTORO I MALTAS, Joan – “Del cot fet per lo señor infant en Pere en la ciutat de Leyda…”, p. 88. 32 Arxiu Històric de la Ciutat de Manresa (AHCM). AHCM/AM. I-2. Manual del Consell (1322-1338), f. 147r. 226 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL vender en Manresa de acuerdo con las ordenaciones o Cot que el infante Pedro (futuro Pedro III el Ceremonioso) había decretado el 12 de febrero en Lérida33. El mandato del infante iba dirigido a todos los bailes, veguers, oficiales, lugartenientes y súbditos de Cataluña debido a la crítica situación que se estaba viviendo durante esos meses, descrita en la documentación como “magna caristia bladi”34. Este Cot liberalizaba el mercado triguero en todo el territorio y decretaba que las prohibiciones de extraer trigo, el mencionado “vetum bladi”, ordenadas por las autoridades locales y señoriales de diferentes municipios, fueran derogadas. El propio infante alegaba que este tipo de prohibiciones iban en detrimento de la cosa pública y se imponían multas de hasta 1.000 maravedíes a las universidades y 100 a todos aquellos que no cumplieran con dicho mandato. Esta primera medida, tal y como afirma Pere Benito, tenía por objetivo reactivar el comercio y propiciar el flujo de cereal por las rutas habituales de distribución, sobre todo desde los grandes mercados de las zonas productoras hacia los centros de consumo35. Seguidamente, el infante Pedro disponía de un Cot o tasación de precios de los principales cereales que dividía el Principado en diferentes zonas en función de las monedas utilizadas y medidas de capacidad para áridos, ya que no en todos los lugares se utilizaba el mismo sistema. Aparecen descritas cuatro regiones: las veguerías de Lérida y Pallars, la ciudad de Barcelona y las veguerías de Barcelona, Vilafranca y del Vallès, la veguería de Cervera y finalmente, las veguerías de Manresa y subveguerías de Piera e Igualada. Para cada una de estas zonas se estableció una tasación de precios sobre tres cereales básicos: trigo, cebada y avena que estarían en vigor entre el 12 de febrero y el 1 de junio de 1334. Para el caso que nos ocupa, el infante estableció que en la veguería de Manresa la cuartera de trigo se vendiese a un precio máximo tasado en 28 sueldos, la de cebada en 18 sueldos y la de avena en 12 sueldos36. No obstante, este Cot y las medidas liberalizadoras del mercado triguero no se acabaron consolidando, ya que se incumplieron reiteradamente en las ciudades y villas sometidas a jurisdicciones nobiliarias y eclesiásticas que se resistieron en dejar fluir el cereal a los centros de consumo. Fue pues, la fragmentación jurisdiccional del Principado la que limitó su aplicación efectiva en los lugares de realengo37. Volviendo al documento, los consejeros manresanos comunicaron a los mercaderes las disposiciones que el infante había decretado nueve días antes y ordenaban que todo el cereal que habían comprado fuese vendido a los precios tasados para la veguería 33 Arxiu Històric de la Ciutat de Manresa (AHCM). AHCM/AM. 1-2. Manual del Consell (1322-1338), f. 147r-148v. 34 MONTORO I MALTAS, Joan – “Del cot fet per lo señor infant en Pere en la ciutat de Leyda…”, p. 91. 35 BENITO I MONCLÚS, Pere – “El rey frente a la carestía. Políticas frumentarias de estado en la Europa Medieval…”, pp. 66-67. 36 MONTORO I MALTAS, Joan – “Del cot fet per lo señor infant en Pere en la ciutat de Leyda…”, p. 118. 37 BENITO I MONCLÚS, Pere – “El rey frente a la carestía. Políticas frumentarias de estado en la Europa Medieval…”, p. 68. “IN CIVITATE MINORISE ET PER TOTAM CATHALONIAM EST MAGNA CAR ESTIA [...]” 227 de Manresa. Durante los meses pasados se habían importado 160 cuarteras de trigo, 45 cuarteras de cebada y 35 cuarteras de mestura38 des de zonas como la Segarra, l’Urgell y Albi (comarca de les Garrigues). Los consejeros ordenaban que todos estos cereales se vendieran públicamente según los precios tasados y que dentro de estos no entraran aquellos cereales que se habían comprado en villas como Pujalt (comarca de Anoia) y Torrefarrera (comarca del Segrià). Según estos datos pues, podemos dibujar las principales zonas, núcleos y villas que aprovisionaron Manresa durante los primeros meses de 1334. Fig. 1 – Mapa de las zonas y lugares de aprovisionamiento frumentario de Manresa. Nota: En amarillo figuran los territorios y en rojo los lugares documentados donde se compraron cereales de todo tipo para abastecer la ciudad de Manresa El 5 de marzo los consejeros se volvieron a reunir debido a la urgencia de trigo que tenía la ciudad. La carestía seguía haciendo estragos entre la población y sus 38 La mestura o mestall era una mezcla de diferentes especies de cereales, especialmente de trigo y centeno o de trigo y cebada, o de cereal y legumbre, especialmente de trigo y habas (DCVB). 228 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL gobernantes describían la situación de esta manera: “nos, propter maximam penuriam et caristiam frumenti, ordei et avene et aliore bladore que nunc est in dicta civitate Minorise et eius convicino non invenietur in ipsa civitate blada ad vendendum, propter quod est dubitum ne plures personis in ipsa civitate et eius vicinatu fame preant”39. La situación era desesperada y aparece por primera vez la palabra hambruna en el lenguaje del poder, se necesitaba traer urgentemente cualquier tipo de cereal para vender y panificar, ya que el hambre acechaba y podía presentarse de un momento a otro. Debido a esta situación los seis consejeros asignaron nuevos mercaderes para aprovisionar la ciudad para de esta forma “volentes periculis huius modi obviare ad magnam utilitatem civivum et habitatore ipsius civitate”. Los elegidos fueron Guillem Artús, Guillem Ferrer, Jaume de Prat, Jaume Cornet y más tarde se uniría Guillem Folc, para traer cereal durante el presente mes de marzo y abril siguiente. En este caso, aparece un nuevo concepto, y es que el poder les dice que traigan cereal de cualquier lugar, sea por tierra o “ubique voluitis”, es decir, que también se contemplaban otro tipo de rutas, como podían ser las marítimas y fluviales, hecho que no hace más que revelarnos la desesperación del consejo ante la situación que se les venía encima. Esta carestía y especialmente la tendencia inflacionista de los precios del cereal afectaron a los sectores que participaban de un modo u otro en todo el circuito de distribución del grano y consumo de pan. El sector que podemos estudiar de forma más detallada es el que se encargaba de la panificación, sobre todo el relacionado con la cocción del pan, es decir, los hornos. A principios del siglo XIV Manresa disponía de cuatro hornos públicos, el de la plaza o plana de san Miguel, el de la plaza mayor donde se celebraba el mercado, el horno inferior y el horno del camino de Barcelona, este último seguramente situado extramuros junto al camino que iba a la ciudad condal. Estos hornos fueron de propiedad real hasta que en 1326 Jaime II los cedió al cenobio de Santes Creus como compensación de una deuda que la monarquía había contraído con el monasterio y que ascendía en 84.790 sueldos y 5 dineros. A partir de este año pues, sería el monasterio el propietario y señor de los cuatro hornos manresanos, gestionándolos y cobrando las rentas anuales a los distintos particulares que los tenían arrendados40. Es gracias al libro donde se anotaban todas las gestiones en relación con los hornos que hemos podido hacer un seguimiento de la evolución del precio de los arrendamientos des de 1328 hasta 1339, haciendo especial hincapié 39 Arxiu Històric de la Ciutat de Manresa (AHCM). AHCM/AM. I-2. Manual del Consell (1322-1338), f. 148v-148r. 40 SARRET I ARBÓS, Joaquim – Història de la industria, del comerç i dels gremis de Manresa, vol. 3. Manresa: Monumenta Historica, 1923, p. 162. “IN CIVITATE MINORISE ET PER TOTAM CATHALONIAM EST MAGNA CAR ESTIA [...]” 229 en los años 1333-133441. Fig. 2 – Evolución de los precios de los arrendamientos de los hornos públicos de Manresa (1328-1339). Nota: Este gráfico se ha podido elaborar gracias a la los datos del precio de los arrendamientos de los cuatro hornos de Manresa entre 1328-1339 localizados en el Archivo Histórico de la Ciudad de Manresa (AHCM). Antes de 1328 los precios de los arrendamientos subieron a cotas altas, estos años se caracterizaron por la carestía de 1325, año donde encontramos su momento más álgido. A partir de 1326 esta carestía se desinfla y los precios disminuyen en Manresa hasta encontrar una relativa normalidad en 1330. Los estudiosos han atribuido esta carestía a los efectos de la guerra con Cerdeña, conflicto que trastocó por completo la economía mercantil mediterránea, ya que provocó conflictos con otros reinos, especialmente contra Génova. Este conflicto intermitente truncó de forma seria el aprovisionamiento de trigo que llegaba a Cataluña des de sus dominios en el Mediterráneo y muchas ciudades costeras que dependían de ese cereal que llegaba vía marítima tuvieron que buscarlo en zonas del interior, drenando su producción y provocando una inflación de precios como bien se puede apreciar. Es a partir de 1330 cuando se hace notar nuevamente una lenta subida de los precios de los arrendamientos hasta llegar a 1333 donde la volatilidad es enorme, con unos precios como nunca se habían visto hasta entonces. Esta tendencia continuará hasta alcanzar sus cotas máximas en 1334. Especialmente indicativos son los precios de los hornos de la plaza mayor (1.800 sueldos) y de la plaza de san Miguel (2.400 sueldos), aunque también llaman la atención las de el horno inferior (700 sueldos) y el horno 41 Arxiu Històric de la Ciutat de Manresa (AHCM/Ecles. C-103, Santes Creus II). Llibre particular del monestir de Santes Creus – Forns de Manresa (1327-1393). 50 ffsn + 13 papers + 2 bifolis. 230 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL del camino de Barcelona (1.410 sueldos), cifras por lo tanto exorbitantes. Estos índices reflejan pues de forma detallada y bastante precisa los efectos de las malas cosechas, la carestía y la hambruna en Manresa que mantendrán altos los precios de los cereales hasta 1335, año donde ya documentamos un descenso del precio de los arrendamientos que seguirá así hasta alcanzar cotas normales a excepción de un repunte en 1338, año por el cual tenemos documentada sequía y malas cosechas en la ciudad, que por otra parte llevaran en 1339 a impulsar el proyecto de la acequia del río Llobregat. Volviendo a las actas del consejo, la siguiente noticia que tenemos data del 21 de marzo de 1334, día en que los consejeros mandaban a Berenguer Amargós y Ramon de Grevalosa que el trigo que habían comprado fuese vendido por los panaderos de la ciudad. La cantidad de trigo que compraron los mercaderes ascendía a 46 cuarteras y 5 docenos a medida de Manresa. El precio que costó la cuartera manresana en este momento fue de 31 sueldos y 10 dineros, que por otra parte fue también el precio que los dichos panaderos tendrían que venderlo42. Disponemos también de un documento bastante explícito de una de las operaciones de compra de cereal hecha por estos mercaderes en los alrededores de Lérida, anotada con precisión en su libro particular43. El 14 de marzo se compraron en las tierras de poniente mediante tratos que hizo el obispo de la ciudad con diferentes municipios, 58 cahíces de cebada y 3 cahíces y medio de avena en Torrefarrera, y 30 cahíces de cebada y 12 de avena en Vinselló, todo a medida de Lérida44. Por otra parte, no disponemos de ningún documento para el mes de abril y el siguiente ya nos remite al 24 de mayo de 1334, acta en la cual los consejeros asignaban jurados para pagar los gastos de las operaciones de compra de cereal a Ramon de Grevalosa y a Berenguer Amargós45. Y finalmente, el último documento es del 20 de agosto de 1334 en el cual ya se nos describe una situación de normalidad que por otro lado nos permite afirmar que la carestía tuvo su final en estos meses de verano, debido seguramente a que las nuevas cosechas fueron buenas. Este último documento nos habla de la promesa de pago que los consejeros de la ciudad hacían a Guillem Folc por una cantidad de dinero que había prestado al municipio durante el año pasado “ad opus emendi blada ad opus universitatis” cuando no había trigo en ninguna parte. La cantidad que Guillem prestó al consejo fue de 1.000 sueldos y los consejeros se ven obligados a llamar a 42 Arxiu Històric de la Ciutat de Manresa (AHCM). AHCM/AM. I-2. Manual del Consell (1322-1338), f. 148r-149v. 43 Arxiu Històric de la Ciutat de Manresa (AHCM). Libre particular de Jaume i Berenguer Amargós (1299-1335) ff. 223v-223r. 44 Los cahices y las fanegas eran unidades de medida utilizadas para trigos importados de Lérida o de Aragón. Cada cahíz comprendía seis fanegas, y tenía dos cuarteras y media, que eran aproximadamente 243,25 litros. 45 Arxiu Històric de la Ciutat de Manresa (AHCM). AHCM/AM. I-2. Manual del Consell (1322-1338), f. 149r. “IN CIVITATE MINORISE ET PER TOTAM CATHALONIAM EST MAGNA CAR ESTIA [...]” 231 Pere Bernat, consejero, Pere Riera, Jaume Coll, Guillem, mercaderes y a Bernat de Valls, jurado de la ciudad, para que vendan a subasta pública las imposiciones del cuero, de los paños y de la zapatería de la ciudad durante los meses siguientes de octubre, noviembre, diciembre y enero para pagar estos 1.000 sueldos, los intereses y mesiones46. 4. Conclusiones. Una vez analizada la documentación municipal con relación a la crisis de 13331334 nos quedan por hacer algunas consideraciones finales. En primer lugar hay que destacar el importante papel que el municipio y más concretamente el poder municipal ejerció para paliar los efectos de la carestía de trigo de estos años. Lo que el poder quería evitar a toda costa era la hambruna y especialmente las consecuencias que de ella pudieran derivarse, como las revueltas populares y los estallidos de violencia. La preocupación para aprovisionar el municipio y la ciudad fue constante durante los meses que duró esta crisis y el consejo adoptó medidas preventivas a corto y medio plazo para solucionar el problema de forma puntual. Como hemos visto, fueron las diferentes partidas de mercaderes que asignaba el consejo las encargadas de acometer estas empresas, comprando todo tipo de cereales en lugares remotos, hacerlo al precio que pudieran, traerlos a Manresa de forma segura y una vez allí venderlos de forma pública. Lugares como Pujalt, la Segarra, l’Urgell, Les Garrigues y diferentes núcleos de las tierras de poniente como Torrefarrera o Vinselló, se convirtieron en los centros principales de aprovisionamiento de la capital del Bages. Estos mercaderes sufrieron también serias dificultades, ya que el problema no solamente residía en comprar cereal donde fuera y al precio que fuera, sino traerlo al centro de consumo atravesando y recorriendo múltiples jurisdicciones gobernadas por diferentes señoríos que se aprovecharon como aves rapaces de la situación y dificultaban tanto como podían la saca de trigo y que el que llegara lo hiciera de forma libre y segura hasta su destino. Prueba de ello la encontramos en el documento del 15 de enero de 1334 donde se suplicaba al rey y procurador general de Cataluña que hiciesen mandamientos a sus súbditos para permitir a los mercaderes manresanos extraer el cereal y llevarlo por las rutas habituales de distribución. Por otra parte, también hay que destacar el papel que jugó la monarquía, seguramente presionada por los municipios, no solamente para intentar paliar los efectos de la hambruna en el Principado sino también para liberalizar el mercado, tasar unos precios máximos en función de las diferentes veguerías y tipos de cereal y finalmente, permitir un mejor flujo de 46 f. 150r.. Arxiu Històric de la Ciutat de Manresa (AHCM). AHCM/AM. I-2. Manual del Consell (1322-1338), 232 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL todo este grano por el territorio. No obstante, el Cot del infante Pedro no tuvo el resultado deseado, ya que se incumplieron de forma reiterada las medidas tomadas en muchos lugares y municipios, debido principalmente a la resistencia de los señores que no podían permitirse dejar perder una oportunidad de oro para hacer sus negocios privados con los cereales que obtenían. No obstante, lo que más dificultó la aplicación de este Cot fue la fragmentación del Principado en múltiples señorías y jurisdicciones, cosa que hizo que la autoridad real no pudiese controlar de forma efectiva su cumplimiento. Tal y como afirma Montoro, la iniciativa de libre circulación y fijación de los precios que tenían la voluntad de ser de aplicación general puso de manifiesto las contradicciones entre las dinámicas de la actividad mercantil, la política económica del soberano y la fragmentación jurisdiccional del Principado. Los señores, tanto laicos como eclesiásticos, alegaron su condición de privilegiados para no sentirse aludidos por el mandamiento real. La monarquía fue incapaz de controlar una creciente actividad comercial voluble, difícil de controlar y adaptable a las necesidades de cada momento que traspasó sin muchos problemas las fronteras jurisdiccionales de Cataluña47. Las políticas asumidas por el consejo de la ciudad de Manresa no fueron muy diferentes de las medidas adoptadas en otras ciudades y villas de Cataluña. Antoni Riera afirmaba que las políticas frumentarias de los gobiernos municipales catalanes se sostenían en tres pilares: el control de las áreas de aprovisionamiento y de las vías de circulación del grano, los mecanismos de intervención indirecta y los mecanismos de intervención directa48. Sobre el control de las áreas de aprovisionamiento y las vías de circulación del grano vemos como por ejemplo Barcelona durante la hambruna de 1333-1334 envió emisarios al obispo de Lleida, al abad de Poblet y al vizconde de Cardona, a la vez que envió embajadores a diferentes puntos del Mediterráneo solicitando adquirir cereal con destino la ciudad condal. A su vez, Barcelona también advertía a Tortosa que no interceptara ni desviara el cereal aragonés que bajaba por el Ebro con destino a la capital catalana49, tema que por otro lado estudió muy bien Albert Curtó50. La ciudad de Girona constituye otro caso interesante, ya que durante la hambruna de 1333-1334 su consistorio municipal solicitó al baile de Palamós y a los ediles de Barcelona y Tortosa que no interceptaran embarcaciones que llevaban cargamentos de cereales a su ciudad, y solicitaban al soberano que las naves pudieran amarrar en el puerto de Sant Feliu de Guíxols, cuyo señor jurisdiccional se había MALTAS I MONTORO, Joan – “Del cot fet per lo señor infant en Pere en la ciutat de Leyda…”, p. 114. RIERA I MELIS, Antoni – “Crisis cerealistas, políticas públicas de aprovisionamiento, fiscalidad y seguridad alimentaria en las ciudades catalanas durante la baja edad media…”, p. 254. 49 RIERA I MELIS, Antoni – “Crisis cerealistas, políticas públicas de aprovisionamiento, fiscalidad y seguridad alimentaria en las ciudades catalanas durante la baja edad media…”, p. 255. 50 CURTÓ I HOMEDES, Albert – La intervenció municipal en l’abastament de blat d’una ciutat catalana: Tortosa, segle XIV. Barcelona: Fundació Vives Casajuana, 1988. 47 48 “IN CIVITATE MINORISE ET PER TOTAM CATHALONIAM EST MAGNA CAR ESTIA [...]” 233 comprometido a no interceptar el grano. A su vez, el gobierno municipal de la ciudad desplegaba una política diplomática para asegurar la llegada durante el mes de abril de 1334 de un cargamento de trigo siciliano y durante el mes de mayo la situación era tan extrema que obligó a los consejeros hacer gestiones con la ciudad de Tortosa para que no se bloquearan ni desviaran cargamentos de trigo que algunos mercaderes gerundenses habían adquirido. Otra de las medidas adoptadas por algunos consistorios como el de Barcelona y Mallorca fue el de asegurar las vías frumentarias y la circulación de los cargamentos de cereales hasta sus lugares de destino. Barcelona adquiría grano sobre todo por vía marítima, ya que sus principales lugares de importación eran Sicilia y durante esta hambruna fue principalmente Cerdeña, puesto que los puertos sicilianos estaban controlados por genoveses, con los que la Corona estaba en guerra des de 1330. Para asegurar estas rutas marítimas y protegerlas de ataques piratas y corsarios, el consistorio barcelonés armaba naves y galeras para proteger el trigo que navegaba con destino Barcelona y lo mismo hizo Mallorca con el objetivo de proteger y garantizar la llegada del trigo que era exportado de Sicilia51. Las medidas de intervención indirectas que desplegaban los consejos municipales consistían en inventariar todas las existencias de cereales que había en la ciudad, una tarea denominada “serca bladorum”, y una vez hecho esto el gobierno obligaba a sus vecinos, bajo penas y multas, a vender una parte de sus provisiones de grano con el fin de aumentar la oferta de cereales y así frenar la subida de precios. Riera expone que estas medidas no quedaban solamente reducidas al trigo, sino que afectaban a otros cereales, ya que durante la hambruna de 1334 los consejeros de Barcelona obligaron a sus vecinos a vender diariamente sus provisiones, tanto de trigo como de cebada, avena, de arroz o cualquier otro cereal como las legumbres bajo penas de 200 sueldos52. Otra de las medidas adoptadas por los diferentes gobiernos ciudadanos ya la hemos visto y es la prohibición de la saca de trigo o “vetum bladi”, medida que tenía como objetivo sancionar a aquellos infractores que sacaran cereales de la ciudad de cualquier forma y atender las demandas y necesidades locales de sus ciudadanos53. Durante la hambruna de 1333-1334 tenemos documentadas estas medidas en diferentes zonas de Cataluña, principalmente en el Penedès, Bages, 51 RIERA I MELIS, Antoni – “Crisis cerealistas, políticas públicas de aprovisionamiento, fiscalidad y seguridad alimentaria en las ciudades catalanas durante la baja edad media…”, p. 257. 52 RIERA I MELIS, Antoni, – “Crisis cerealistas, políticas públicas de aprovisionamiento, fiscalidad y seguridad alimentaria …, p. 259. 53 Un ejemplo es esta ordenación que fue promulgada por los consejeros de Barcelona durante el mes de diciembre de 1333: “Ordenaren els consellers e·ls prohòmens de la ciutat que neguna persona de qualque condició sia no gos trer de la ciutat, per mar ne per terra, de nits ne de dia, forment ne ordi ne ngun altre blat, de qualque manera sia, ne farina ne bescuyt. E qui contra açò farà, que perdrà tot lo forment, ordi, blat, farina e bescuyt qui trobat s’a, que hi tragués” (cit. MUTGÉ I VIVES, Josefina – “L’abastament de blat a la ciutat de Barcelona en temps d’Alfons el Benigne (1327-1336), Anuario de Estudios Medievales 31, 2, 2001, p. 655). 234 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Vallès, Berguedà y Urgell. Como hemos visto, estas prohibiciones perjudicaban a grandes ciudades consumidoras como Barcelona, Girona y como ya hemos visto Manresa, de ahí que se solicitaran al rey medidas para liberalizar el mercado triguero y desarrollar una fluidez de los circuitos comerciales. Tal como hemos visto, estas suplicas al soberano también se hicieron en la ciudad de Manresa, puesto que era una ciudad deficitaria en la producción de trigo y un centro de consumo importante. A finales de diciembre de 1333 el rey enviaba órdenes a todos los veguers, bailes y otros oficiales reales para que no pusieran obstáculos ni impedimentos a aquellas personas que habían acordado los consejeros de Barcelona para comprar trigo con el objetivo de afrontar la gran carestía que se vivía en la ciudad condal54. Más caras y más efectivas fueron medidas de intervención directas, que eran aquellas cuyo objetivo era incrementar la oferta local en cada ciudad con cargamentos de grano procedentes de los mercados interiores de la Corona. Las medidas más comunes eran aquellas que el gobierno municipal otorgaba especialmente a los mercaderes y comerciantes más poderosos que comerciaban a nivel internacional y que consistían en incentivos para despertar su interés en aprovisionar las ciudades y municipios, quedándose a cambio beneficios importantes. Este tipo de medidas son las que hicieron los consejeros de Manresa durante la mayor parte de la carestía de 1333-1334 y con ellas permitieron que los mercaderes locales se desplazaran hasta lugares lejanos para comprar y todo tipo de cereales y transportarlos hacia la ciudad. Consistían en subvencionar económicamente las importaciones pagando las mesiones o gastos de los desplazamientos, fijar y acordar los contratos de compra en los cuales se prometía al mercader o a la compañía un beneficio cuantioso, el pago de primas y otras clausulas referentes a la seguridad y protección a cargo del propio municipio, tanto si el transporte se efectuaba por ruta marítima o terrestre55. Gracias a este tipo de medidas e incentivos, durante la hambruna de 133-1334 el consistorio barcelonés adquirió grano en el Bajo Llobregat, el Vallès, Penedès, Anoia, Conca de Barberà, Osona, el Bages, Segrià, Urgell, el valle medio del Ebro, la Plana Baixa, Cerdeña, Sicilia y Castilla56. Y por último, hubo otra medida que el municipio de Barcelona efectuó de forma reiterada con la finalidad de obtener grano en tiempo de carestía, el privilegio conocido como “vi vel gratia” (por la fuerza o por gracia), concedido por el rey en MUTGÉ I VIVES, Josefina – “L’abastament de blat a la ciutat de Barcelona en temps d’Alfons el Benigne (1327-1336)…”, p. 656. 55 MUTGÉ I VIVES, Josefina – “L’abastament de blat a la ciutat de Barcelona en temps d’Alfons el Benigne (1327-1336)…”, p. 675. 56 RIERA I MELIS, Antoni – “Crisis cerealistas, políticas públicas de aprovisionamiento, fiscalidad y seguridad alimentaria en las ciudades catalanas durante la baja edad media…”, p. 265. 54 “IN CIVITATE MINORISE ET PER TOTAM CATHALONIAM EST MAGNA CAR ESTIA [...]” 235 132857. Este privilegio consistía en obligar a toda embarcación que llevara cargamentos de cereal y que pasara cerca de la ciudad a desembarcar las mercancías en sus playas, y después se pagaba el dicho cargamento. Este privilegio se usó de forma reiterada, se perfeccionó y se amplió cada vez que una hambruna causaba estragos en la ciudad y era necesario aprovisionar de grano sus ciudadanos. Como podemos ver, muchos consistorios de diferentes ciudades y villas del Principado adoptaron estos tipos de mecanismos para asegurar el aprovisionamiento de sus núcleos urbanos, y especialmente de sus vecinos. Estas medidas las utilizaban en función de muchos factores como su situación política, sus privilegios y ordenaciones, sus condiciones como lugares de realengo, el poder o la capacidad económica, política e institucional que tenían, su situación geográfica o sus múltiples contactos y relaciones comerciales con otros lugares y poderes. Vemos pues, que algunas de las medidas que adoptaron y practicaron los consejeros de Manresa fueron muy semejantes o prácticamente iguales a las que adoptaron los diferentes consejos municipales de otros lugares, pues como ciudad de realengo y especialmente como ciudad consumidora necesitaba jugar su papel de la mejor manera posible para aprovisionar de forma regular y efectiva a sus vecinos. La hambruna de 13331334 terminó en la ciudad seguramente en verano de 1334 con la llegada de la nueva cosecha, ya que las actas municipales nos describen una situación de relativa normalidad y no nos hablan más de “fame, carestia et penuria bladi” como habían hecho meses atrás. El consejo municipal supo gestionar de forma efectiva los efectos que esta crisis produjo en la ciudad, supo hacer frente a los problemas que presentaba el aprovisionamiento continuado de cereales y jugó bien sus cartas para incentivar los mercaderes a emprender estas arriesgadas empresas comerciales. Fue gracias a estas medidas, iniciativas y una cierta visión de anticipación al desastre que los consejeros pudieron paliar los efectos del “mal any primer” en Manresa y lograr que no fueran tan devastadores como en otras zonas, ciudades y villas del Principado. 57 AHCB, Llibre Vermell, I, fol. 65 v.. 236 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL A luta política pelo controlo da repartição da carne e do peixe em Braga nos séculos XIV e XV1 Raquel de Oliveira Martins2 Resumo É objectivo deste trabalho analisar de que forma a luta pelo controlo da repartição da carne e do peixe em Braga, nos séculos XIV e XV, se transformou numa questão política, tributária da conjuntura do seu tempo, protagonizada por actores políticos cujo objectivo era a afirmação e legitimação do seu estatuto de poder, não só perante a cidade, mas também perante o rei. Referimo-nos ao Cabido e ao concelho de Braga, que num tempo muito longo, com avanços e recuos se confrontaram e enfrentaram em torno da questão da carne e do peixe. Tentaremos, à luz de alguns exemplos que traremos aqui, descortinar e compreender o motu por detrás dos graves e violentos conflitos que opuseram estes dois importantes grupos de poder: o cabido da Sé, e o concelho da cidade, e que iam muito para além do saciamento do corpo em matérias alimentares. Palavras-chave Abastecimento alimentar; Açougues; Políticas municipais; Braga medieval. Lab2PT/Universidade do Minho; LaMOP/Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne; raqueldeoliveiramartins@gmail.com; Trabalho realizado na sequência da comunicação apresentada nas Jornadas Internacionais da Idade Média, com o tema Abastecer a cidade medieval, realizada em Castelo de Vide nos dias 8 e 9 Outubro de 2019, e integrada no Painel do Projecto Medcrafts – “Regulamentação dos mesteres em Portugal nos finais da Idade Média: séculos XIV e XV”, financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Ref.ª PTDC/HAR-HIS/31427/2017. 1 2 Doutoranda em História da Idade Média, Departamento de História, ICS/Universidade do Minho em co-tutela com a École Doctorale d’Histoire/Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. 238 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL The political fight for the control of the meat and fish supply in the city of Braga (Portugal) in the 14th and 15th century Abstract The aim of this study is to analyze how the fight for the control of the meat and fish supply in Braga (Portugal) in the 14th and 15th century as become a political matter profoundly related to a more wide political scenario, in a larger scale (kingdom of Portugal). The aim of the protagonists of this political fight was the affirmation and legitimation of their power status, not only in the city, before the elites, but also before the King. These, the Town Chapter, and the Town Council, fought for the control of the process of supply and distribution of the meat and fish, sometimes with great violence, not only in words, but also with actions. In the following pages we are going to try to understand the whys, the motu underlying those actions, and the significance for the city of Braga. Keywords Meat and fish supply; Town council and Cathedral Chapter; Medieval Braga. Introdução. O fornecimento de bens de primeira necessidade, mais concretamente os alimentares, em quantidade suficiente que evitasse por em risco a paz social de uma vila ou cidade, foi sempre uma das grandes preocupações dos governos municipais na Idade Média3. Com efeito, assegurar a fluidez da circulação e distribuição de bens essenciais como o pão, carne e peixe, de forma justa e evitando o açambarcamento, revelou-se, em alguns casos, um enorme desafio para as autoridades concelhias, não sendo de admirar o seu esforço em regular estas matérias4. A este respeito, e apesar de se desconhecer quase por completo como se processava o abastecimento 3 Veja-se BONACHÍA HERNANDO, Juan Antonio – “Abastecimiento urbano, mercado local y control municipal: La provisión y comercialización de la carne en Burgos (siglo XV)”. In Espacio, Tiempo y Forma, Serie III 5 (1992), p. 88. 4 Esta era uma preocupação transversal para os governantes medievais. Em Portugal, como na restante Europa cristã. Veja-se: ABAD ESCRIBANO, José Luis – “La regulación del mercado alimentario: el caso de la Guadalajara bajomedieval”. Espacio, Tiempo y Forma, Serie III 21 (2008), pp. 109-137. Ainda: ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz; SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús Ángel (coords.) – Alimentar la ciudad en la Edad Media: Nájera, Encuentros Internacionales del Medievo 2008, del 22 al 25 de julio de 2008. Rioja: Instituto de Estudios Riojanos, 2009. A LUTA POLÍTICA PELO CONTROLO DA R EPARTIÇÃO DA CARNE E DO PEIXE EM BR AGA 239 alimentar da cidade de Braga, no século XV, pode dizer-se que, também na cidade dos arcebispos, o governo municipal se debateu várias vezes com as dificuldades inerentes à regulamentação de um assunto tão volátil, como era o da distribuição e venda de alimentos5. Nas linhas que se seguem tentaremos descortinar alguns aspectos relacionados com o processo de repartição e venda de bens alimentares essenciais (como a carne e o peixe), em Braga nos séculos XIV e XV, numa tentativa de lançar luz sobre este aspecto importante da vida do quotidiano urbano medieval. Tentaremos mostrar como o abastecimento de carne e peixe da Braga medieval, se transformou numa luta política, travada entre dois grupos de poder, o concelho e o cabido, cujo objetivo era a afirmação e legitimação desses mesmos grupos de poder, não só perante a cidade, mas sobretudo perante o rei. Sobre este ponto, é necessário ter em linha de conta que quem controlasse o processo de fornecimento e distribuição dos bens alimentares de primeira necessidade, controlava um dos mais importantes aspectos da vida da comunidade, da vida da polis. 1. Controlo do abastecimento alimentar e poder político em Braga. De facto, a luta pela repartição da carne e do peixe em Braga durante os séculos XIV e XV, embora nem sempre linear nem constante, parece ter servido, quase sempre, como mais um símbolo do poder de governar a cidade, por parte daqueles que detinham esse mesmo poder. Com efeito, controlar, supervisionar e até regulamentar todo o processo de repartição de carne e peixe, nas cidades medievais, garantia um certo domínio sobre alguns sectores da sociedade urbana e rural, fossem eles produtores ou consumidores, traduzindo-se assim num controlo económico e social, e legitimação do poder político. Numa “societat fortament intervencionista com era la baixmedieval”6, a proximidade inerente à supervisão e fiscalização de todo este processo, levava muitas vezes ao estabelecimento de relações de favor e oportunismo, bem como ao incitamento de alguns sectores, contra um “inimigo comum”, favorecendo assim a coesão do grupo social7. Em Braga também parece ter sido assim. Apesar das fontes documentais para estas matérias serem reduzidas, é através de documentos de outra natureza, como sentenças, cartas régias ou certidões de protesto, produzidas sobretudo num quadro de graves altercações entre o concelho e 5 Veja-se GONÇALVES, Iria – “Defesa do consumidor na cidade medieval: os produtos alimentares (Lisboa – séculos XIV e XV)”. Arquipélago. História, 2ª série, 1, 1: Memoriam Maria Olímpia Rocha Gil (1995), pp. 29-48. 6 Palavras de Ramon Agustí Banegas López ao referir-se ao aprovisionamento de carne à cidade de Barcelona e da sua importância. In BANEGAS LÓPEZ, Ramon Agustí – “L’aprovisionament de carn a Barcelona durant els segles XIV i XV”. Butlletí de la Societat Catalana d’Estudis Històrics XIX (2008), p. 171. 7 Por tudo isto veja-se BOUCHERON, Patrick; GENET, Jean-Philippe (dir.) – Marquer la ville. Signes, traces, empreintes du pouvoir (XIIIe-XVIe siècle). Paris: Publications de la Sorbonne, 2014. 240 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL o cabido de Braga, que temos informações esparsas, mas preciosas relacionadas com o abastecimento, distribuição e repartição da carne e do peixe na cidade. É verdade que, ao contrário de outras cidades, como Lisboa ou Évora, não existem, tanto quanto sabemos, disposições de almotaçaria ou de tabelamentos de preços e salários, para a cidade de Braga nos séculos XIV e XV. O que existe, e que se aproxima destas matérias, reporta-se ao início do século XVI, mais concretamente a 1509, ano em que temos actas de vereação sequenciais. A inexistência de um foral medieval para a cidade dos Arcebispos, torna ainda mais difícil uma antevisão dos processos regulamentadores e fiscalizadores envolvendo a produção, controlo e venda de bens alimentares na Braga medieval. A ausência de Atas de Vereação para os séculos XIV e XV, contribui igualmente para este desconhecimento. Mas, da leitura e análise da tipologia documental existente, e que atrás fizemos menção, percebe-se que, também na cidade dos arcebispos (o que era perfeitamente normal), existiram dificuldades inerentes à regulamentação de um assunto tão volátil, como era o da distribuição e venda de alimentos, que no caso de Braga, se traduziram em alguns confrontos graves e violentos, de difícil resolução. É claro que estamos cientes que são os eventos marcantes, políticos e não só, como é o caso dos conflitos envolvendo a luta pela repartição da carne e do peixe em Braga, nos séculos XIV e XV, que ecoam e preenchem as linhas da esmagadora maioria dos documentos medievais. A banalidade, por assim dizer, do quotidiano medieval raramente figura na documentação, e as notícias que temos acerca de como se desenrolavam os processos políticos, económicos e sociais ao tempo, são-nos fornecidas, na maior parte das vezes, pelos episódios de conflito que, sancionados a escrito tendo em vista a sua resolução pelas instancias competentes, dão-nos um pequeno vislumbre do período em que aconteceram. Vejamos então, nas linhas que se seguem, como em alguns momentos de Trezentos e Quatrocentos, os açougues se tornaram um campo de batalha política onde, em alguns momentos, se confrontaram física e violentamente dois grupos de poder que coabitavam na cidade. 2. A luta política (e não só…) nos açougues. O primeiro momento de desacordo entre os grupos de poder da cidade de Braga, envolvendo a questão da supervisão da repartição da carne e do peixe nos açougues da cidade, remonta a Maio de 1341. Este, inserido num dos conflitos mais conhecidos da história de Braga, e que foi protagonizado por dois senhores poderosos do reino de Portugal, a saber: o rei, D. Afonso IV, e o arcebispo de Braga, D. Gonçalo Pereira, revela-nos como, assuntos da governança quotidiana da cidade medieval, se A LUTA POLÍTICA PELO CONTROLO DA R EPARTIÇÃO DA CARNE E DO PEIXE EM BR AGA 241 transformavam em plataformas de lutas políticas, polarizadoras da sociedade urbana. É bem conhecido da historiografia medieval este desaguisado. Para o que aqui nos interessa tratar, é a brecha na autoridade do arcebispo, causada pelas constantes investidas de D. Afonso IV, que reclamava para si, e para a coroa do reino, o poder, e o senhorio da cidade de Braga, nas matérias da jurisdição secular. Este episódio conflituoso que se segue encaixa-se nesse cenário de limbo senhorial, em que Braga parece ter tido dois senhores em confronto e oposição política. Neste conflito estavam em questão, entre outros, dois aspectos importantes, que para o que aqui tratamos, são relevantes: O primeiro prendia-se com a legitimidade de jurar os almotacés que serviam na cidade – os do concelho, mas principalmente os do cabido. João Martins, tabelião geral e juiz “mandara al almotaçel clerigo do Cabidoo da Eigreia de Bragaa que ffose jurar a el per razom desse ofizio da Almotaçaria”8. O Juiz do concelho defendia que os almotacés do cabido, tal como os almotacés do concelho, teriam de jurar perante ele, como representante que era do rei na cidade, e isto se quisesse continuar a exercer o seu oficio, “Entendendo que se fazia per esto melhor direito e justiça”9. A retórica política aqui envolvida é notória, pois remete para o objectivo último de se preservar o direito e a justiça, que evitavam a arbitrariedade (neste caso da repartição de carne e peixe), e garantiam a paz social, devendo ser preservados a todo custo. E só a coroa do reino, através dos seus funcionários, teriam legitimidade e instrumentos, para se alcançar a concórdia social. Uma vez que o Juiz do concelho não reconhecia a legitimidade dos almotacés do cabido, e por inerência, as suas funções, foram estes homens privados de ir aos açougues repartir a carne e o peixe pois o dito Juiz do concelho, “mandara que nom ouuesse hj tal partiçom de pescado nem dal mais que o desem a cada huum como mereçia dizendo que se direito alguum auija sob elas dictas cousas que o fosem mostrar a el Reij”10. É claro que o cabido respondeu à letra dizendo que “el Reij nom era desto seu juiz nem no podia seer de direito […] dizendo que os seus almotaçes jurauam em Cabido como sempre husarom e custumarom e faziam dereitamente aquilo que ao seu ofizio perteençia E querendose alguma cousa erraua que se corrigia e Enmemdaua pelo Arçebispo E pelos seus ofiziaaes”11. A resolução deste conflito parece ter sido favorável ao cabido, isto se levarmos em linha de conta que outros desaguisados de natureza semelhante ocorrerão ao logo do século XIV, provando que o status quo do cabido e do concelho em matéria de proeminência política e de poder de decisão, não mudou significativamente. Mas este episódio, quando enquadrado no cenário político-social amplo, dos ARQUIVO DISTRITAL DE BRAGA (doravante ADB), Gaveta dos Privilégios, doc. nº 15. ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. nº 15. 10 ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. nº 15. 11 ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. nº 15. 8 9 242 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL finais da década de 30, e da década de 40 do século XIV, onde se vivia em Braga um período extremamente conturbado, no campo político, fornece-nos um quadro mais completo sobre oposições e alianças políticas, que se plasmavam nos assuntos do governo e administração urbana, polarizando os grupos apoiantes de uma e de outra parte. De candeias às avessas andavam o arcebispo D. Gonçalo Pereira e o Rei, D. Afonso IV, mor motivos referentes à usurpação da jurisdição temporal da cidade perpetrada pelo monarca. O concelho de Braga aproveitou o ambiente de contestação e de imposição da autoridade do rei na cidade de Braga, e quis impôr ele mesmo a sua autoridade na cidade. Apoderou-se de alguns símbolos do poder, como o selo do concelho, abrindo um canal de comunicação directo com o rei, o rival directo do senhor da cidade12. E tomou a seu cargo os açougues, e a repartição da carne e do peixe. Sem sombra de dúvida, apoderando-se dos Símbolos do poder de governar, legitimava-se como estrutura de poder! Passando para outro momento de contenda jurisdicional, desta feita no reinado de D. Pedro I, e em que este reclamou para si o senhorio da cidade de Braga, retirando-o ao arcebispo e senhor dela, apenas 20 anos depois do atrás descrito, temos noticias de novas contendas envolvendo a questão da legitimidade dos almotacés do cabido, e a sua presença nos açougues cidade. Novamente o concelho, beneficiando do que parece ser um enfraquecimento da autoridade eclesiástica, em benefício da autoridade e jurisdição régia, afirma-se como força política activa e interveniente na governança da cidade. Como de costume debateram-se, em lados opostos da questão, o concelho e o cabido de Braga, queixando-se este último sobre o seu direito de ter um almotacé seu, escolhido e posto por si, nos açougues da cidade, pois [O cabido] ...“sempre ouueram almotaçarja na dicta vila e as cousas que a ela pertençiam E que se husara sempre per esta gisa que elles pojnham huum almotaçe clerigo em seu nome cada mes E o dicto conçelho outro dantre sj leigo pera almotaçar as viandas e aquilo que compre a almotaçarja E que faziam direito daquelles que nom o faziam o que deuiam nos ofizios em que elles aujam de ueer E todo aquilo que os almotaçes am dauer que aujam o seu almotaçe a meatade e o outro do conçelho a meatade E que Regiam a uilla de todo aquilo que compria ao seu offizio E que assj husaram sempre de tanto tempo que a memorja dos homees nom era em contrairo […]”13. COELHO, Maria Helena Cruz. – “O Arcebispo D. Gonçalo Pereira: um querer, um agir”. In IX Centenário da Dedicação da Sé de Braga. Congresso Internacional. Actas. Vol. II, tomo 1. Braga: Universidade Católica Portuguesa e Cabido Metropolitano e Primacial de Braga, 1990, pp. 389-462. Também Vilar, Hermínia Vasconcelos – “No tempo de Avinhão: Afonso IV e o episcopado em meados de trezentos”. Lusitania Sacra 22 (2010), pp. 149-165. 13 ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. 62. 12 A LUTA POLÍTICA PELO CONTROLO DA R EPARTIÇÃO DA CARNE E DO PEIXE EM BR AGA 243 Naturalmente, e como era hábito em matérias desta natureza, esgrimiramse de ambas as partes os motivos que encaixavam dentro das alegações de cada uma das partes em oposição. Do outro lado, o procurador do concelho alegava que uma vez que a jurisdição da cidade já não era do arcebispo, o cabido não teria quaisquer direitos sobre a almotaçaria da cidade, escudando-se atrás de justificações convenientes, como a de que os almotacés do cabido não exerciam o cargo com justiça, e praticando favorecimentos, prejudicavam a cidade, e punham em perigo a paz social. Queixando-se a D. Pedro I, deram como exemplo o episódio de quando D. Afonso IV tomou a jurisdição de Braga deixaram de existir os almotacés do cabido, pelo menos no curto período de tempo em que a jurisdição da cidade esteve nas mãos do rei, antes de ser devolvida a D. Gonçalo Pereira Lemos: “[…] o conçelho contestou dizendo que a almotaçaria hj juridiçom temporal E que perteençe ao senhor cuia terra he E que ao que deziam e alegauam da parte do dicto cabidoo que estauam em pose de poer almotaçel diziam que no tempo que a jurdiçom estaua por o arçebispo […] per o tempo que a jurdiçam aujam eram sempre mais ffauorauja ao cabidoo que ao conçelho E que por eso lhis soffriam de poer almotaçees por que sempre desa almotaçaria husauom nom agisadamente E que pois ora a juridiçom estaua por mjm que o dicto cabidoo nom auja por que poer almotaçel E outrossj diziam que ordinhaçom do Regno era que nenhum clerigo nom aia tal offizio E diziam que quando o dicto cabidoo poinham tres e quatro almotaçees em hum mes E que faziam o que elles qeriam E que se agrauauam aquelles que aujam de dar as viandas E se os juizes qeriam correger diziam que nom eram seos juizes E que por talo Razam se perdia justiçam[…]”14. Esta argumentação por parte do concelho é extremamente interessante do ponto de vista da ideologia do exercício do poder laico, pois remete para a lei geral do Reino, as Ordenações, que na óptica do concelho de Braga, tem primazia sobre as leis e os costumes que vigoravam em Braga quando o arcebispo era Senhor da cidade. O controlo do processo envolvendo a repartição da carne e do peixe na cidade, deixou de ser um mero assunto mundano e do quotidiano, e passou a ser uma bandeira política do concelho de Braga que, pelo menos momentaneamente, tomou nas suas mãos as rédeas do poder de governar a cidade. O século XIV não haveria de terminar sem outro episódio de usurpação do senhorio de Braga. E foi no reinado de D. Fernando, que à semelhança dos episódios de conflito anteriores, se viveu em Braga e no reino de Portugal, momentos políticos conturbados. Corria o ano de 1380 quando o monarca retirou o senhorio de Braga 14 ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. 62. 244 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL ao arcebispo D. Lourenço Vicente. Novas notícias, na documentação coeva, de que o concelho da cidade aproveitou a oportunidade para se afirmar como grupo governante, e, sem consultar os restantes actores políticos e sociais de Braga, como o cabido e restantes homens bons, lançou uma sisa sobre os bens alimentares, carne e peixe incluídos. Escusado será dizer que este acto foi considerado uma afronta, e causou uma onda de descontentamento na cidade. Todos os potenciais afectados pelo imposto protestaram. O cabido, os mercadores, os carniceiros e tendeiros, isto “porque diziam que o Concelho nunca esto mandara pedir nem dizer ao dicto meirinho e que lhes era em gram prejuizo e que porem contradiziam a ello em seu nome e dos outros tendeiros da dicta çidade” e que por isso “nom consentiam que se a dicta Sisa lançasse […] e contradizia a todas as dictas cousas contehudas na dicta carta do dicto ouvijdor e que nom consentia que se a dicta sisa possese nem em cousa que o dicto juiz hij ffezesse nem mandasse ffazer […]”15. Este acto importante da parte do concelho de Braga revelou, a nosso ver, um aspecto importante acerca da edilidade bracarense, ao tempo: que existia uma consciência de grupo cuja importância política e proeminência social não devia ser substimada, nem dentro da cidade pelo cabido da Sé, nem fora dela pelos concelhos vizinhos. 3. O século XV e a mudança de senhorio. No dealbar do século XV, operaram-se mudanças políticas significativas envolvendo o senhorio da cidade de Braga, as quais se refletiram também, e com grande intensidade, na questão da repartição da carne e do peixe em Braga. Em janeiro de 1402 celebrou-se um contrato de escambo entre D. João I de Portugal e o arcebispo de Braga D. Martinho Afonso Pires da Charneca. que visava a transferência do Senhorio da Cidade de Braga, da Igreja de Braga para a Coroa. Neste contrato foram consignados alguns dos direitos dos prelados e cabido bracarenses e deveres dos moradores da cidade, sendo que o aspecto da distribuição e repartição da carne e do peixe seria uma das cláusulas presentes no dito contrato16. Não é de admirar, à luz do que vimos analisando nas páginas precedentes, que a questão da repartição da carne e do peixe fosse transformada numa clausula consignada a escrito, num contrato jurídico. Muito já se tinha debatido e escrito no século precedente, sem se alcançar verdadeiramente um pleno acordo pelas partes. Processos judiciais custosos que tinham acabado em nim. Era expectável que se tratasse desta questão, para evitar dissabores desnecessários. Por isso no contrato de ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. 16. MARQUES, José – “O senhorio de Braga no século XV – Principais documentos para o seu estudo”. Separata de Bracara Augusta (XLVI). Braga: Câmara Municipal, 1997, pp. 20-22. 15 16 A LUTA POLÍTICA PELO CONTROLO DA R EPARTIÇÃO DA CARNE E DO PEIXE EM BR AGA 245 1402 escreveu-se o seguinte: “Jtem per de carnibus et piscados que in dicta Ciuitate vendentur primo almotacerius dabit Archiepiscopo que pro tempore fuerit per pecunijs suis id per sibi fuerit expediens et de Residuo tercia pars dabitur canonicis et tercanarijs et alijs de capitulo pro pecunijs suis si eam voluerint et Residuum dabitur habitatoribus dicte Ciuitate”17. Isto parecia claro, mas não foi. A prática revelou-se mais complicada e rica, aliás como quase sempre na vida real. Pouco depois de ser assinado o contrato de mudança de senhorio, o concelho da cidade toma providências para chamar a si a administração dos açougues da cidade. E como o faz? Lemos numa carta dirigida a D. João I, enviada pelo concelho de Braga que “Johane afomso nosso serujdor nos enujou dizer que ell entendendo per o nosso serujço mandara tirar os açougues antigos da çidade de bragaa donde ora estavam aa porta da sse para fazer hi a praça […] E Nos ueendo o que nos pedia e entendendoo por nosso serujço e prol e honrra da dicta çidade […] outorgamos o dicto18. Mais uma vez, uma acção política reveladora de uma consciência de poder concreto, dos governantes municipais, que estariam agora escudados por um enquadramento legal de iure, resultante da jurisdição régia na cidade. No entanto, os conflitos envolvendo a carne e o peixe, e sua respectiva repartição e distribuição, continuaram. E mais acesos, e mais violentos, pese embora o facto de que existia uma moldura legal, certamente pensada para evitá-los. Havia pois um documento escrito, mas a sua interpretação causava dúvida e celeuma, e as partes envolvidas interpretavam-na cada uma à sua maneira. Mas a clausula era clara: De toda a carne e de todo o peixe que entrasse na cidade, o arcebispo retirava o que lhe conviesse, mediante pagamento, ou por seus dinheiros. O restante, ou resíduo, seria dividido em três, a saber: uma parte para o cabido, e duas partes para o concelho e povo da cidade. O pomo da discórdia prendia-se com a ordem de precedência ao acesso e repartição da carne e do peixe. Simplificando, quem, cabido ou concelho, acederia primeiro ao resíduo da carne e do peixe depois do arcebispo ter tirado a sua parte. É importante referir que nunca se questionaram os direitos do arcebispo, talvez pela simbologia do seu estado eclesiástico, bem como pelo seu poder político e influência social. As duas partes em conflito eram então – ao tempo, e sempre –, o concelho e o cabido da Sé de Braga. Ideologicamente, talvez os homens da câmara vissem como ADB, Gaveta de Braga, doc. 22. Este documento encontra-se transcrito e inserido num processo judicial datado de 25 de julho de 1406, elaborado com o objectivo de se apurar a legalidade e a validade do contrato de escambo de 1402. Este processo foi transcrito na íntegra por José Marques na já referida obra (nota 4) – Vide pp. 35-54. 18 ADB, Colecção Cronológica, doc. 940. Este documento, datado de 20 de março de 1403 (pouco mais de um ano após a troca de senhorio), dá-nos conta dessa mudança já efetuada nesta data. 17 246 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL uma afronta à própria jurisdição régia e à índole da governação laica, o cabido ser servido de carne e peixe em primeiro lugar, antes do povo da cidade. E logo em 1416, em Sé vacante, notícias de desaguisados sobre a repartição da carne e peixe, dão-nos conta da polarização política causada pelo não entendimento das partes, quanto à clausula do contrato de 1402. Com efeito, queixou-se o cabido de que o concelho incorrera em incumprimento do contrato porque “os almotaçees lhes nom dauom o dicto terço em cheo sseguundo que erom teúdos de dar tirando ante de todo pescado e carne de todo o monte carne e pescado que dauom a goncallo pereira E outros caualleiros e pessoas o que nom deuiam fazer[…]”19. Em 1419, ainda não se tinha resolvido esta questão e apelava-se ao rei para fazer cumprir o contrato, dado que as posições se tinham extremado, e os ânimos escalado violentamente. O concelho queixou-se ao rei que "[…]algumas pesoas grandes e poderosas do dicto cabidoo que pressentes estauom com tençom demjuriar o dicto conçelho diseram que mall que pesase aos do dicto Conçelho elles lhe dariom a carne primeiro que a nemhuum do dicto conçelho e lha pessariom primeiro E que sse lha primeiro dar nom quissessem elles per meatade da força lha hiriom tomar ao açougue E que esses do conçelho lha nom defenderiom nem erom pera lha defender ca os do dicto cabidoo erom mais e melhores e mais poderosos que o dicto conçelho […] se o dicto cabidoo tall obra de fecto quissessem fazer e forçar a dicta carne ao dicto conçelho ssem poder e mandado de justiça e alguuns do dicto conçelho quissessem sua carne em parar e defender sse recreçeriom mortes dhomens ou feridas ou alleigamentos ou outros alguuns grandes malles […]”20. O cabido de Braga com direito ao contraditório, defendeu-se, justificando estas atitudes extremas com o facto de lhe ser reservada a pior carne da cidade. Uma acusação séria, à qual nem os carniceiros da cidade escaparam, reveladora da posição privilegiada que o cabido auferia, decorrente do seu estado eclesiástico. E este acto era uma afronta ao seu estado. Sem rodeios justificou-se ao monarca dizendo que “as melhores carnes fazem escolher e fiquar em casas dos carnyçeiros E a mais magra e peyor fazem viir aa carneçaria e dessa repartem ao dicto cabidoo em guisa que ja primeiro o mais vill dantre elles tem sua carne çerta cozida quando a ao dicto cabidoo e dignydades e coonegoos dell ham repartida a sua E o que peor he depois que asy he repartida os allmotaçees per elles postos nos filham ajnda della o que lhes apraz em guisa que muytos dos dictos coonegoos ficam ssem carne elles e seus seruidores[…]o dicto cabidoo recebem em cada huum 19 ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. 65. Documento datado de 11 de Agosto de 1442, contendo os traslados de cartas régias de 1416 e 1419, onde se dá conta dos desentendimentos entre o cabido e o concelho de Braga sobre a repartição da carne e do peixe, no seguimento do estipulado no contrato de escambo de 1402. 20 ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. nº 65, 67. A LUTA POLÍTICA PELO CONTROLO DA R EPARTIÇÃO DA CARNE E DO PEIXE EM BR AGA 247 dia grandes agrauos e emjurias […]”21. Não havia pois fim à vista para este conflito. Em 1442, em resposta a mais uma acusação que o cabido de Braga fez ao rei, pelo incumprimento da clausula do contrato de 1402, respondeu o concelho que aquilo que reivindicava o cabido era “em prejuízo del Rey nosso Senhor e de sua jurdiçom e desta çidade e çidadaaos della”22. A posição do concelho de Braga era clara, pois adotando um discurso político de afronta, questionava, em última análise, a validade e aplicabilidade da própria cláusula do contrato de escambo de 1402. O procurador do concelho afirmou mesmo “que o dicto escaybo que eles alegam nom diz nem declara tall que a dicta carne aja de seer repartida e cortada primeiro que ao dicto conçelho”, e invocando uma carta do Regente D. Pedro, para justificar as ações do município, continuou, citando as palavras deste último: “se despois do escaybo sempre esteuestes [concelho] em posse de a darem [carne e peixe] primeiro a vos [concelho] que a eles [cabido] se vos boo custume e posse tendes mantende o ca nos nom uos entendemos de quebrar vossos priuiligios hussos e boos custumes”23. 4. O contrato de 1472 – o conflito permanece? A reversão da estatuto jurisdicional de Braga, em 1472, que sancionou de vez o seu estatuto de senhorio eclesiástico, ficou como em 1402 contratualizado, comprometendo-se as partes envolvidas a zelar pela sua aplicabilidade plena. Este novo contrato, não trouxe, contudo, informações novas sobre a questão da repartição da carne e do peixe na cidade de Braga, indicando, ao que parece, que tudo deveria ficar como estipulado no primeiro contrato de 1402. Isto pode ser inferido destas palavras consignadas no contrato de 1472: “elle dicto Arcebispo e seus sobcessores tenham e ajam na dicta cidade e seu termo aquelles dirreitos dos quaaes o dicto Arcebispo agora esta de posse per bem e vertude do primeiro contraucto de permudaçom fecto antre o dicto Rey Dom Joham e o Arcebispo Dom Martinho […]”24. O novo contrato apesar de ter significado uma mudança no estatuto jurídico da cidade, não influenciou nos conflitos e desaguisados envolvendo a repartição da carne e do peixe em Braga. Estes continuaram, persistiram mais ou menos ruidosos, dependendo das conjunturas políticas, sociais e económicas das épocas em que se inseriam. Em alguns momentos do século XV, o ambiente de tensão e de medo vivido nos açougues de Braga era tal, que alguns carniceiros começaram a guardar a carne nas suas casas, ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. nº 65, 67. ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. nº 65. 23 ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. nº 65. 24 ADB, Gaveta de Braga, doc. 23. 21 22 248 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL escondendo-a dos açambarcadores que pela força a iam buscar aos açougues. Por exemplo, em Janeiro de 1474, o cabido de Braga acusou o carniceiro Rui Gonçalves, de guardar na sua casa o melhor boi dos dois que matou, “E llogo [lhe] requereo que lhe trouxesees ho terço do melhor boy ho que uos por alghuum nom boo respeito ffazer nom quisestes e o recusastes ffazer respondendo que primeiro qujriees talhar aquella carne aa cjdade e a sseus moradores e que sse elle quisese tornasse aa tarde e lha darjees[…]”25. Esta acusação do cabido de Braga relativamente à retenção da carne na casa do carniceiro é interessante na medida em que nos mostra o ambiente de desconfiança que existia relativamente ao abastecimento cabal dos açougues e a sua supervisão pelos almotacés da cidade, pois parece ter existido uma área cinzenta, em que era permitido, em alguns casos que a carne ficasse com o carniceiro. Mas esta contestação era mais pelo facto de que ter sido melhor carne, do melhor boi a ser desviada da mesa dos “dictos Senhores por seerem pesoas eclesiasticas e priujlligiadas e os santos canones e leix inpenaaes dom e outorgom grandes prerogatiuas e priujllegios”26. Este é apenas um dos muitos exemplos da seriedade do assunto envolvendo a ordem de precedência da repartição da carne e do peixe em Braga que, em última análise, significava, pelo tipo de carne que conseguiam arrematar, quem era o grupo político-social mais importante. Parece de somenos, mas não o seria ao tempo destes acontecimentos. Ainda em 1501, estando ausente o arcebispo D. Jorge da Costa em Roma, o concelho e o cabido andavam em pleitos, discordando e agravando-se diariamente nos açougues por causa da repartição da carne e do peixe nos açougues27. Apesar da cidade ter voltado ao estatuto de senhorio eclesiástico, o contencioso não tinha fim à vista. As notícias documentais deste desaguisado levam-nos longe, até ao século XVII! 5. Alguns aspectos sobre políticas de regulamentação e fiscalização concelhia. Os episódios de conflito e altercação política evocados nas páginas anteriores, deixam antever porém outros aspectos importantes, que se prendem com o processo de abastecimento da cidade em si. É verdade, como já atrás referimos, a repartição justa dos bens essenciais, como a carne, o peixe, e o pão entre outros, era quase sempre matéria delicada a ser tratada pela almotaçaria das cidades, e não será para nós hoje difícil de imaginar os discursos inflamados em plenos açougues, praças e mercados, ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. nº 76. ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. nº 76. 27 ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. 68. 25 26 A LUTA POLÍTICA PELO CONTROLO DA R EPARTIÇÃO DA CARNE E DO PEIXE EM BR AGA 249 proferidos por autoridades, vendedores e fregueses, cujo fogo das suas palavras era atiçado pelos respetivos séquitos de apoiantes. Para além de actuarem no sentido de garantirem à cidade o suprimento necessário de bens essenciais, os governos municipais medievais (na sua generalidade), e Braga com certeza não seria excepção, agiam também no sentido de salvaguardar os produtores locais (assegurando-lhes o acesso ao mercado diário), adotando, em alguns casos, políticas comerciais protecionistas, ao limitar, por exemplo, a entrada na cidade de bens essenciais importados de outras cidades ou vilas do reino28. Estas ações estariam, na maior parte das vezes, impregnadas de propaganda política, visando demonstrar a capacidade e a competência governativa do município, face aos outros poderes concorrentes na cidade, ou vila. As Ordenações Afonsinas estipulavam que os almotacés tivessem carrego de vigiar o trabalho de todos os mesteres assegurando, com a fluidez possível na época, o provimento dos mercados urbanos. Para além disso, fazia também parte das suas competências, o tabelamento do preço da carne e do peixe quando este chegava aos açougues e a sua posterior divisão entre ricos e pobres, bem como a supervisão dos pesos e das medidas usadas. No caso de Braga, ao longo de todo o século XIV e XV, este carrego não deve ter sido pacífico, especialmente depois do contrato de escambo de 1402, que sancionou, em forma de lei, o processo de repartição da carne e do peixe na cidade, conforme já mencionamos. De facto, como atrás vimos, a almotaçaria em Braga parece ter sido uma moeda com reverso e anverso, sendo que num dos lados estariam os almotacés do Concelho, e no outro, os almotacés do Cabido. Juntos, estes oficiais “faziam djreito daqueles que nom faziam o que deviam nos ofizios em que elles auiam de aueer E (…) Regiam a uilla de todo aquilo que conpria ao seu ofizio E que husaram sempre de tanto tempo que a memoria dos homeens nom era em contrairo”29. Os homens que desempenhavam o cargo de almotacés concelhios tinham fortes ligações ao poder municipal. Os almotacés dos primeiros meses do ano administrativo concelhio, que começava em Março, eram os oficiais do ano cessante: juízes, vereadores e procurador. Com efeito, no primeiro mês seriam almotacés os dois juízes velhos, no segundo mês dois vereadores, e no terceiro mês um vereador e o procurador do concelho. Nos restantes meses os almotacés seriam homens bons da cidade de Braga, escolhidos por pelouros30. Não é de admirar, portanto, 28 JARA-FUENTE, José Antonio – “Élites urbanas: las políticas comerciales y de mercado como formas de prevención de conflictos y de legitimación del poder (La veda del vino en Cuenca en la Baja Edad Media)”. Brocar 21 (1998), pp. 119-133. 29 ADB, Gaveta dos Privilégios, doc. nº 62. 30 MARTINS, Raquel de Oliveira – O Concelho de Braga na segunda metade do século XV: O governo dOs homrrados cidadaaos e Regedores. Braga: Universidade do Minho, 2013, p. 70. Dissertação de Mestrado. Disponível em http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/29298. 250 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL que defendessem os interesses da instituição municipal, opondo-se muitas vezes ao cabido da cidade, instituição que para a edilidade, muitas vezes ameaçava a paz social e o bom funcionamento dos açougues e dos mercados da cidade. Conclusão. Em conclusão podemos dizer que a luta pelo controlo da repartição da carne e do peixe em Braga, nos séculos XIV e Xv, e os confrontes a ela inerentes, tiveram em comum o facto de, como pano de fundo, estarem a ocorrer importantes mudanças políticas, associadas às mudanças de jurisdição, de eclesiástica para régia. E este conflito em torno do abastecimento da carne e peixe era apenas um dos aspetos do quotidiano em que o governo municipal podia exercer e reivindicar maior controlo e poder, associado à ideologia política da centralização do poder régio, da qual os governos municipais de senhorio régio eram representantes de excelência. A luta pelo controlo do governo da cidade, encetada pelo concelho, estava associada a uma consciência de poder e a um sentimento de coesão social do grupo governante municipal, que com frequência se materializou em conflitos abertos contra o cabido da Sé de Braga. Tais conflitos levaram por vezes o concelho a questionar algumas das prerrogativas senhoriais mais antigas usufruídas pelos cónegos. Com efeito, a luta pelo controlo da repartição do peixe e da carne em Braga, durante os séculos XIV e XV, se tributário das conjunturas políticas e sociais da época revelaram-se também como meios de aproveitamento e propaganda política, tanto por parte do concelho de Braga como do Cabido da Sé. A LUTA POLÍTICA PELO CONTROLO DA R EPARTIÇÃO DA CARNE E DO PEIXE EM BR AGA 251 252 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Del mar Cantábrico a la meseta castellana. Las dificultades de los mercaderes de las Cuatro Villas de la Costa en la distribución del pescado en el norte de Castilla a finales de la Edad Media. Javier Añíbarro Rodríguez1 Resumen El fraude, los engaños, y los abusos de poder fueron algunos de los problemas que dificultaron distribución del pescado que llegaba al norte de la Península Ibérica desde el mar Cantábrico. Nuestra propuesta de trabajo parte de la hipótesis de que el pescado que entraba en los puertos del norte del Reino de Castilla (concretamente los de las Cuatro Villas) era rentable, y codiciado por los mercaderes medievales. Como consecuencia, esta mercancía atrajo todo tipo de problemas: la clásica acaparación de producto por unos pocos comerciantes que provocaba desabastecimiento a los vecinos; engaños en los que estaban implicados miembros de las propias autoridades de los concejos; abusos por parte de personas poderosas, etc. El trabajo que proponemos explicará qué políticas aplicaron los diferentes poderes en las villas costeras del norte de Castilla para favorecer una distribución lógica, proporcional y equilibrada del pescado en aquella región. Palabras clave Pescado; Hinterland; Comercio; Conflictos, Puertos. 1 Universidad de Cantabria 254 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL From the Cantabrian Sea to the Castilian plateau. The difficulties of the merchants of Cuatro Villas de la Costa (Spain) in the distribution of fish in northern Castilla at the end of the Middle Ages. Abstract Fraud, deception, and abuse of power were some of the problems that hindered the distribution of fish that reached the north of the Iberian Peninsula from the Cantabrian Sea. Our work proposal is based on the hypothesis that the fish that entered the northern ports of the Kingdom of Castile (specifically those of the Four Villas) was profitable, and coveted by medieval merchants. As a consequence, this merchandise attracted all kinds of problems: the classic product hoarding in a few merchants that caused shortages to the neighbors; hoaxes involving members of the council authorities themselves; abuse by powerful people, etc. The paper we propose will explain what policies the different powers applied in the coastal towns of northern Castilla to favor a logical, proportional and balanced distribution of fish in that región. Keywords Fish; Hinterland; Trade; Conflicts; Ports. Introducción. La pesca fue la actividad económica que mayores ingresos ofrecía a los vecinos de las Cuatro Villas de la Costa de la Mar a finales de la Edad Media; la mayor parte de los vecinos de esos puertos se dedicaban directa o indirectamente a las actividades marítimas, y de entre ellas destacó la pesca o la adquisición del pescado a través del comercio. Se trataba de un producto especialmente codiciado, no sólo por su alto consumo en los días señalados como de abstinencia en el calendario cristiano, sino también por la buena fama y prestigio del que gozaban los productos marítimos del Cantábrico en el resto de la Península Ibérica2. 2 En este sentido, es célebre el episodio del libro del buen Amor de Juan Ruiz, el Arcipreste de Hita, en el que describía la preparación de los ejércitos de don Carnal frente a los de doña Cuaresma, éstos últimos formados por todo tipo de pescados y mariscos procedentes de puertos de toda la Península. Destacaban las DEL MAR CANTÁBRICO A LA MESETA CASTELLANA 255 No es de extrañar que la pesca, y especialmente la fiscalidad y las rentas derivadas de ella en Castilla, haya sido un tema que haya atraído la atención de medievalistas en los últimos años3. En el caso que nos ocupa nos centraremos en las Cuatro Villas de la Costa de la Mar, nombre que alude al corregimiento en el que quedaron englobados los puertos de San Vicente de la Barquera, Santander, Laredo y Castro Urdiales a finales de la Edad Media. El enfoque que pretendemos proyectar se centra en los conflictos y problemas generados en este espacio a partir de la documentación medieval de procesos judiciales, pleitos y ordenanzas. Un parte considerable de los procesos judiciales que hemos estudiado proceden del Archivo General de Simancas, fondo del Registro General del Sello de Corte, y de la Cámara de Castilla. En el caso de los documentos procedentes de la Real Chancillería de Valladolid, hemos prestado especial atención a los testimonios de los testigos registrados en las Reales Ejecutorias. El problema de la información procedente de este tipo de documentación es que, por su propia naturaleza, consiste en la denuncia de fraudes, conflictos por la comercialización o por la propia obtención de los peces. Como consecuencia, el lector podría percibir la idea de que los problemas que presentamos fueron generales, constantes en el tiempo y que el pescado fue un producto especialmente vigilado respecto al resto. El pescado fue, en efecto, el producto “estrella” de las Cuatro Villas, y por tanto existió una preocupación de los concejos urbanos por regular su compra, venta y distribución, pero ello no significa que fuera un producto especialmente conflictivo. El otro tipo de documentación que hemos empleado en nuestro trabajo es el legislativo; concretamente ordenanzas. La problemática radica en su escasa langostas de Santander, los arenques y besugos de Bermeo, el congrio cecial y fresco de Laredo, y los salmones de Castro Urdiales. GARCÍA DE CORTÁZAR, José Ángel – Vizcaya en el siglo XV. Aspectos económicos y sociales. Bilbao: Ediciones de la Caja de Ahorros Vizcaina, 1966, p. 113. 3 Algunos ejemplos los encontramos en RUIZ PILARES, Enrique José – “El paisaje pesquero de Jerez de la Frontera a finales de la Edad Media: caladeros, flota, distribución y consumo,” en Historia. Instituciones. Documentos 45 (2018), pp. 377-405; BELLO LEÓN, Juan Manuel – “Las rentas derivadas de la venta y distribución de pescado en Sevilla y Jerez de la Frontera a finales de la Edad Media. Una aproximación”. In En la España Medieval 40 (2017) pp. 35-65; COLLANTES DE TERÁN SÁNCHEZ, Antonio – “La fiscalidad concejil sobre el pescado en la Sevilla bajomedieval”. In CÓRDOBA DE LA LLAVE, Ricardo; PINO GARCÍA, José Luis del; CABRERA SÁNCHEZ, Margarita (coords.) – Estudios en homenaje al profesor Emilio Cabrera. Cáceres: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Extremadura, 2015, pp. 123-138; VÍTORES CASADO, Imanol – “Compañías vascas en torno al arrendamiento y recaudación de la renta de los diezmos de la mar en Castilla a fines de la Edad Media”. In CARVAJAL DE LA VEGA, David; VÍTORES CASADO, Imanol; AÑÍBARRO RODRÍGUEZ, Javier – Redes comerciales y económicas en el mundo bajomedieval. Valladolid: Castilla Ediciones, 2011, pp. 241-264; GUERRERO NAVARRETE, Yolanda – “Consumo y comercialización de pescado en las ciudades castellanas de la Baja Edad Media”. In La Pesca en la Edad Media. Santiago de Compostela: Sociedad de Estudios Medievales, 2009, pp. 235-259; en el caso del territorio actual de Cantabria la fiscalidad del pescado fue estudiada en SOLINÍS ESTALLO, Miguel Ángel – La alcabala del Rey, 1474-1504. Fiscalidad en el Partido de las Cuatro Villas cántabras y las merindades de Campoo y Campos con Palencia. Santander: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Cantabria, 2003. Para un resumen general, LADERO QUESADA, Miguel Ángel – “Historia institucional y política de la Península Ibérica en la Edad Media”. In En la España Medieval 23 (2000), pp. 441-481. 256 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL precisión cronológica; el hecho de que una ordenanza se registre por escrito en un momento concreto no significa que sea nueva; simplemente refleja la necesidad de la autoridad de reforzar esa práctica haciéndola redactar para que quede escrita. En este sentido, las propias ordenanzas advierten que muchas de ellas son muy antiguas, y que se llevaban aplicando desde hacía generaciones. En el caso concreto de Castro Urdiales, las ordenanzas que nos han llegado fueron redactadas a comienzos de la Edad Moderna, pero una parte muy importante de ellas procede realmente de la Baja Edad Media4. Las ordenanzas adolecen de otra ambigüedad. Al tratarse de un documento que trataba de regular la vida pública de las personas, son muy generales. Su falta de concreción impide conocer detalles referentes a tipo de pescados, formas de distribución o personas que incumplían la ley. 1. La importancia del pescado en las Cuatro Villas. Si el pescado fue el producto que más contribuyó a la economía de la villa fue porque la sociedad tuvo que volcar sus esfuerzos productivos en el mar. La tierra circundante a San Vicente de la Barquera, Santander, Laredo y Castro Urdiales era deficitaria en trigo. Su clima atlántico, lluvioso y frío, unido a las características de un suelo poco fértil para obtener trigo con las técnicas agrarias de los siglos XIV, XV y comienzos del XVI provocaron que los vecinos de estas villas buscaran en el comercio, y sobre todo en el pescado, un producto que poder intercambiar por cereal. En efecto, en 1515 el concejo de San Vicente de la Barquera, pedía a la Corona licencia para obtener de Andalucía y Granada 600 caíces de trigo debido a “que en la dicha villa e su tierra no se syenbra ny coge pan por ser tierra de montaña muy esteril, a cuya causa los vesynos de la dicha villa están en mucha nesçesydad de pan para su probeymiento y de sus naos e navios que van a las pesquerías del Reyno de Yrlanda e a otras partes”5. En otras palabras: gracias al pescado que obtenían de las pesquerías, los vecinos de las Cuatro Villas eran capaces de acumular el capital necesario para importar el trigo que requería la población, si bien, en épocas de carestía, coincidiendo con el alza del precio del cereal, ese equilibrio se rompía y forzaba a los concejos urbanos a pedir licencias a la corona. La importancia del pescado en la economía de estas villas se manifiesta especialmente en dos datos: la percepción subjetiva de los vecinos de sí mismos, y las rentas de la alcabala. BARÓ PAZOS, Juan, GALVÁN RIVERO, Carmen – Libro de ordenanzas de la villa de Castro Urdiales (1519-1572). Santander: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Cantabria, 2006, pp. 15-16. 5 Simancas. Archivo General de Simancas, Cámara de Castilla. Pueblos. Leg. 17, doc. 372. Figura su regesta en BLANCO CAMPOS, Emma; ÁLVAREZ LLOPIS, Elisa; GARCÍA DE CORTÁZAR, José Ángel – Documentación referente a Cantabria en el Archivo General de Simancas. Sección Cámara de Castilla (años 1483-1530). Santander: Fundación Marcelino Botín, 2005, p. 303, doc. 473. 4 DEL MAR CANTÁBRICO A LA MESETA CASTELLANA 257 En cuanto al primer dato, se trata de la imagen que los habitantes de estos puertos proyectaban hacia el exterior. Se percibe en el testimonio de Juan de Oreña, vecino de San Vicente, en un interrogatorio de 1516 dirigido a impedir que se reclutaran a cien hombres de la villa para enviarlos como infantería a la guerra. Juan de Oreña aseguró que “conosçia a la mayor parte e casy a todos los veçinos de la dicha villa e sabe e es muy notorio que asy que todos ellos vyben por el ofiçio de la mar en ella e les tienen otro ofiçio eçebto algunos muy pocos que usan de ofiçios de letrados, escribanos, sastres, varberos, e herreros e otros ofiçios de manera que asy de treynta partes las veynte e nueve viben por el ofiçio e trabto de la mar”6. Por supuesto, somos conscientes de que se trata de un testimonio interesado, y exagerado, pero el hecho de que recurran al mar como elemento identitario no debe interpretarse como algo gratuito: eran y se consideraban a sí mismos como gentes de mar. El segundo dato es más objetivo: las rentas de las Cuatro Villas en concepto de alcabala. Se han conservado la cantidad de dinero recaudado por la compra-venta de pescado, vino, pan, carne, sal, producción artesanal y “otros” en el año 15027. Si se analizan porcentualmente esos datos, se desprende que aquel año, las alcabalas del pescado de San Vicente de la Barquera suponían un 58% del total de las rentas de la alcabala. En Santander las rentas del pescado se situaron en el 43%, y en Castro Urdiales y Laredo un 51 y un 50% respectivamente. Se trata de unos porcentajes muy similares. Es decir, que la actividad económica derivada del pescado era vital para la villa y sus habitantes. 2. Distribución del pescado en la Península Ibérica. Debemos de tener en cuenta que estos puertos del cantábrico no eran grandes centros comerciales y, sin embargo, eran capaces de canalizar hacia Castilla pescado procedente de Terranova, Irlanda, Bretaña o la Berbería8. Una vez llegaba a los puertos de las Cuatro Villas el pescado era distribuido en un alcance igualmente amplio; los mulateros y mercaderes lo llevaban a plazas como Herrera de Pisuerga, Orduña o Vitoria. Incluso en algunos testimonios judiciales queda constancia de que desde mediados del siglo XV algunos vecinos de San Vicente de la Barquera eran propietarios de tiendas y boticas especializadas en venta de sardinas al por menor en villas de la meseta castellana como Dueñas, a 30 km de Valladolid, o que alquilaban Simancas. Archivo general de Simancas. Cámara de Castilla. Memoriales. Leg. 120, doc. 80, fol. 5r SOLINÍS ESTALLO, Miguel Ángel – La Alcabala del Rey, 1474-1505. Santander: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Cantabria, 2003, p. 167. 8 ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz – “Gentes de mar en los puertos medievales del Cantábrico”. In SOLÓRZANO, Jesús Ángel; BOCHACA, Michel; ANDRADE, Amélia Aguiar – Gente de Mar en la Ciudad Atlántica Medieval. Logroño: Instituto de Estudio Riojanos, 2012, pp. 19-44, p. 24, pp. 34-44. Simancas. Archivo General de Simancas, Cámara de Castilla. Memoriales. Leg. 120, doc. 80, fol. 5v. 6 7 258 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL almacenes en Villalón para almacenar y redistribuir sardina al por mayor por el norte de Castilla9. Desde estos centros, el pescado podía ser redistribuido a otras plazas más importantes del interior de Castilla como Burgos, Valladolid, Toledo, Madrid o Guadalajara10. Paradójicamente los mayores problemas para distribución del pescado comenzaban una vez el producto llegaba a los puertos de las Cuatro Villas. En nuestro trabajo nos centraremos en tres tipos de problemas que se detectan a partir de las fuentes: los materiales, causados por las dificultades geográficas; los políticos, relativos a la naturaleza jurisdiccional y la compleja realidad administrativa de finales del siglo XV; y finalmente los económicos, provocados precisamente por el éxito del que gozaban los productos pesqueros en Castilla. 3. Los problemas materiales y geográficos. La zona que estamos estudiando presenta un desnivel muy pronunciado; a unos 50 kilómetros tierra adentro los mercaderes que transportaban el pescado al interior debían superar la Cordillera Cantábrica, una cadena montañosa que les obligaba a discurrir por caminos a más de 1000 metros sobre el nivel del mar. La orografía se volvía tortuosa, y obligaba al viajero a remontar los valles formados por los cauces de los ríos que nacen en las montañas. Dependiendo del puerto marítimo de origen, existían tres diferentes rutas para llegar Castilla. Laredo y Castro Urdiales, los puertos más orientales, compartían la misma ruta. Era la que disponía de las mejores condiciones físicas por hallarse en una zona donde la Cordillera Cantábrica comienza a atenuarse, por ser la que enlazaba más directamente con Burgos. Sin embargo, estos caminos atravesaban casas fuertes o zonas como Soba o Medina de Pomar que pertenecían a la Casa de Velasco, cuyos intereses no siempre coincidían con los de las Cuatro Villas11. Atravesar aquellos caminos implicaba tener que pagar a los Velasco derechos como portazgos si no se tenían privilegios, y ello incrementaba el precio del producto en su destino. Además, 9 AÑÍBARRO RODRÍGUEZ, Javier – “Pescadores, mulateros y mercaderes de los puertos cantábricos: distribución del pescado irlandés en el norte de Castilla a finales de la Edad Media”. In COSTA, Adelaide Millán da; ANDRADE, Amélia Aguiar; TENTE, Catarina (eds.) – O papel das pequenas cidades na construção da Europa Medieval. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, 2017, pp. 341-356, p. 352; SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús Ángel; VÁZQUEZ ÁLVAREZ, Roberto; ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz – San Vicente de la Barquera en la Edad Media: una villa en conflicto. Archivo de la Real Audiencia y Chancillería de Valladolid. Documentación Medieval (1241-1500). Santander: Consejería de Cultura del Gobierno de Cantabria, 2004, doc. 20, p. 128; Simancas. Archivo General de Simancas, Registro del Sello de Corte, junio 1485, doc. 50. 10 SANCHEZ QUIÑONES, Julián – “Los precios del pescado en Guadalajara en el siglo XV: Problemas y factores de influencia”. In La Pesca en la Edad Media. Santiago de Compostela: Sociedad de Estudios Medievales, 2009, pp. 181-191, pp. 185-186. GUERRERO NAVARRETE, Yolanda – “Consumo y comercialización…”, p. 239, pp. 243-244. 11 MORENO OLLERO, Antonio – Los dominios señoriales de la Casa de Velasco en la Baja Edad Media. Cádiz: Industrias gráficas Santa Teresa, 2014, pp. 177-180. DEL MAR CANTÁBRICO A LA MESETA CASTELLANA 259 en tiempos en los que las relaciones entre el Condestable de Castilla (miembro de los Velasco) y las Cuatro Villas eran tensas, surgieron conflictos, como veremos cuando tratemos los problemas políticos. Otro problema añadido de estas rutas era el estado de sus infraestructuras a comienzos del siglo XVI; según algunos testimonios de vecinos de Santander, existían tramos en los que difícilmente podían discurrir carros por ellas, y era necesario recurrir a las acémilas: “Los caminos de Santander son abiertos y mejores en forma que permiten el tránsito de carros, lo que no sucede desde Bilbao o Laredo, cuyos caminos no permiten más que el peso de caballerías por pie de mulo”12. Esta circunstancia limitaba enormemente la cantidad de pescado que se podía transportar. Con todo, la ruta de Laredo-Burgos fue considerada la más importante que enlazaba con Castilla13. Se trata también de la ruta mejor conocida y documentada de las tres14. Santander se encontraba en un lugar estratégico porque su conexión con Palencia y Valladolid era casi igual de directa que la que le unía con Burgos. Por esa razón era un puerto a tener en cuenta por cualquier mercader que requiriera de cierta flexibilidad en cuanto a trayecto. Las condiciones de las infraestructuras de esta ruta parecen mejores que las de las villas orientales; sin embargo, discurrían a una altitud en la que las nieves de invierno podían hacer impracticable el tránsito, especialmente cerca del puerto del Escudo. Otro problema añadido era el bandidaje de los valles aledaños que flanqueaban esta ruta. Uno de los problemas de este itinerario radicaba en la ausencia de poblaciones cercanas en los valles lindantes. Ello hacía el viaje más peligroso, puesto que aumentaba el riesgo de que el mercader fuera atacado por malhechores o bandidos. Así, el Valle de Carriedo que conectaba con la zona de la Vega de Pas, se hallaba despoblado y sin tabernas, lo cual era visto con preocupación por las autoridades del Corregimiento en 1505 porque favorecía el bandidaje; como solución se planteó construir una venta en el camino en la que los mercaderes pudieran descansar y protegerse15. 12 SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús Ángel – Patrimonio Documental de Santander en los Archivos de Cantabria. Documentación Medieval (1253-1515). Santander: Consejería de Cultura y Deporte. Gobierno de Cantabria. 1998, doc. 225, p. 284. Somos conscientes de que desde Santander interesaba ofrecer una imagen de esta ruta como problemática para canalizar las rutas hacia su villa, pero resulta relevante que en las Ordenanzas de Castro Urdiales se hable de recueros y mulateros, y no de carros o carretas, y en Laredo, debido a que las barcas se ubicaban en la plaza y causaban molestias a los viandantes, se dice que “algunas veces abido palabras e platycas con algunos duennos de los dichos barcos por que los ponen tan juntos de las casas que no pueden pasar azemylas algunas de las que vienen a la villa con provysyones”. Resulta llamativo que tampoco se mencionen vehículos con ruedas. Simancas. Archivo General de Simancas. Cámara de Castilla. Pueblos. Leg. 10, doc. 34, 1494, interrogatorio a Juan García de Andrés, séptima pregunta. 13 MOLÉNAT, Jean Pierre – “Chemins et Ponts du Nord de la Castille au temps des Rois Catholiques”. In Mélanges de la Casa de Velázquez 7 (1971), pp. 115-162. 14 ÁLVAREZ LLOPIS, Elisa; BLANCO CAMPOS, Emma – “Las vías de comunicación de Cantabria en la Edad Media”. In I Encuentro de Historia de Cantabria. Santander: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Cantabria, 1999, pp. 491-521, p. 496; Madrid. Archivo Histórico Nacional. Sección Nobleza, Frías, caja 235, doc. 55, año 1499. 15 ÁLVAREZ LLOPIS, Elisa; BLANCO CAMPOS, Emma – “Las vías de comunicación…”, p. 506 260 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL La tercera vía, que partía de San Vicente de la Barquera, era la que se encontraba en peores condiciones, la más impracticable y la que mayores problemas presentaba a la hora de transitarla. Al igual que en el caso de Santander, atravesaba zonas que en invierno eran en parte impracticables por la nieve. No obstante, los mercaderes ocasionalmente podían atravesar los puertos nevados, aunque ilegalmente, porque algunos los poderes locales de las tierras de montaña se prestaban a abrir caminos nuevos en la nieve cobrando una tasa de seis maravedís por bestia al mercader por transitar por el paso recién abierto. Tal práctica era ilegal y fue denunciada en el año 1494 cuando el alcaide del castillo de Argüeso, Hernando de Mira, la llevó a cabo16. Otro problema fue el penoso estado de las calzadas y vías de comunicación; entre otoño y primavera en esta región eran frecuentes las riadas y que los cauces de los ríos se desbordaran; como consecuencia se hacía necesario reparar los puentes y caminos que quedaban anegados, gastos a los que debían contribuir las poblaciones de los alrededores mediante un reparto. Un ejemplo lo tenemos en 1502, cuando los concejos de Bárcena Mayor, Val de Cabezón y Ucieda apelaron por el repartimiento efectuado por el Corregidor de las Cuatro Villas de la Costa tras unas riadas que causaron destrozos en las vías de comunicación17. En términos generales, desde el Corregimiento de las Cuatro Villas se trató de solucionar este problema mediante la inversión en infraestructuras en las vías de comunicación; es decir, mantener la red viaria antigua y ampliarla o mejorarla con la construcción de nuevos puentes o calzadas. Sin embargo, esta política exigía enormes esfuerzos económicos, por lo que los concejos urbanos de estas villas solicitaron a los diferentes monarcas licencias para establecer sisas a través de las cuales poder obtener el capital necesario18. También las aldeas cercanas y los mercaderes que desarrollaban su actividad en las cercanías del trayecto (incluso aunque no coincidieran exactamente por su recorrido) debían colaborar, si bien éstos ponían objeciones: en 1487 los mulateros caminantes de Castilla Vieja se quejaban de que algunas de las calzadas y puentes de la Henestosa y la Junta de Parayas eran innecesarias y se les obligaba a pagar todo tipo de tasas19. 16 Por ejemplo, así lo denunciaron los concejos de Alfoz de Lloredo, Valdáliga, Cabezón y Cabuérniga, porque Hernando de Mira, alcaide del Castillo de Argüeso, “han puesto los suso dichos cierto dinero e ynpusiçion en el puerto de Palomera que es en esta dicha merindad, que es seis maravedís cada bestia que por el dicho puerto pasa se cobra e disiendo aver abierto un camino que por el dicho puerto pasa que asy esta çerrado con nyeve en tiempo de invierno”. Simancas. Archivo General de Simancas. Registro del Sello de Corte, 1494, junio, doc. 91. 17 Simancas, Archivo General de Simancas, Cámara de Castilla. Pueblos. Leg 4, doc. 279, regesta en BLANCO CAMPOS, Emma; ÁLVAREZ LLOPIS, Elisa; GARCÍA DE CORTÁZAR, José Ángel –Documentación referente a Cantabria…, doc. 134, p. 108. 18 Por ejemplo, Laredo pidió en julio de 1494 licencia para repartir 200.000 maravedís a través de la sisa de los mantenimientos. Simancas, Archivo General de Simancas, Cámara de Castilla. Pueblos. Leg 10, doc. 34; San Vicente solicitaba otra de 300.000 maravedís para el reparo de una calzada y unos puentes de madera. Simancas, Archivo General de Simancas, Cámara de Castilla. Pueblos. Leg 17, doc. 348. 19 BLANCO CAMPOS, Emma; ÁLVAREZ LLOPIS, Elisa; GARCÍA DE CORTÁZAR, José Ángel – DEL MAR CANTÁBRICO A LA MESETA CASTELLANA 261 La peculiar geografía de la cornisa cantábrica obligaba a los mercaderes a ascensos y descensos de pendientes tortuosas, y ello se traducía en un incremento del tiempo de transporte. Esta situación era especialmente preocupante durante el verano, cuando las temperaturas se incrementan y pueden afectar negativamente a la calidad de un producto perecedero como era el pescado, máxime cuando se ha calculado que las acémilas que lo transportaban recorrían unos 30 kilómetros diarios20. Para evitar el deterioro se procedía a la transformación del pescado a través de tres procesos: el pescado salado, empleando sal que deshidrata el pescado; el cecial, que se obtenía secando el pescado al aire, a poder ser en un lugar expuesto al sol y el viento; el escabechado, en el que se sumerge la carne del pez en vinagre; y el ahumado, proceso en el cual un pescado parcialmente salado era expuesto al calor y humo procedente de una madera que se quemaba de manera controlada. De estos cuatro métodos de procesado, en las Cuatro Villas solamente hemos encontrado testimonios de salado y cecial. El proceso del cecial está documentado en Castro Urdiales. En sus ordenanzas se especifica que se secaba en zonas de corriente, como las propias ventanas de las casas, probablemente en la fachada sur si era posible, por ser la más expuesta al sol, y que quedaba en ese lugar durante la noche21. El problema para los vecinos que ejercían esa práctica era que, a juzgar por la documentación, existían robos nocturnos, razón por la que se dictó esa ordenanza. Una vez seco, el producto estaba listo para exportarse a la Meseta. Existía una jerarquía en la consideración del pescado cecial que se percibía en aspectos como la fiscalidad; así, cuando en 1494 desde Laredo se propuso establecer una sisa para construir un muelle de madera, se diferenciaba el “pescado cecial”, que pretendía gravarse con 5 maravedís por quintal, del “congrio seco”, cuyo gravamen se duplicaba: 10 maravedís por quintal22. El pescado salado, está mejor documentado. Puertos como Santander o Laredo disfrutaron del derecho a contar con un alfolí de la sal en el que almacenar y disponer de este producto que obtenían por vía marítima de País Vasco y Galicia, que procedía a su vez de Portugal (Aveiro y Setúbal) o Francia (Bourgneuf, La Rochelle). También está documentado que esa sal la transportaban los pescadores de San Vicente de la Documentación referente a Cantabria…, doc. 14, pp. 31-32. 20 GARCÍA DE CORTÁZAR, José Ángel – “La alimentación: de la subsistencia a la gastronomía”. In GARCÍA DE CORTÁZAR, José Ángel – La época del gótico en la cultura española (c.1220-c.1480). Historia de España de Menéndez Pidal, XVI. Madrid: Espasa Calpe, 1994, pp. 17-18. 21 BARÓ PAZOS, Juan; GALVÁN RIVERO, Carmen – Libro de ordenanzas…, p. 108, “hordenanca (sic.) sobre los que velan de noches los enfermos (…) ningunas personas sean osadas de salir de las tales casas do tuvieren a velar, para salir afuera a robar (…) ni pescado de las ventanas”. 22 Simancas, Archivo General de Simancas. Cámara de Castilla. Pueblos, leg. 10, doc. 34, 19ª pregunta, “(…) yten sy saben que el mas syn dapto para se repartir dozientas myll maravedís en cada año en la dicha villa de Laredo es echándose por sysas (…) a cinco maravedís por quintal de pescado ceçial, e a diez maravedís por quintal de congrio seco, e a dos maravedís por myllar de sardyna salada e a ocho maravedís por quyntal de sebo (…)”. 262 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Barquera hasta Irlanda para salar in situ las especies capturadas23. Probablemente los marineros de las Cuatro Villas aprendieron de los holandeses y flamencos técnicas de salado en el mar en el suroeste de Inglaterra o Irlanda y las aplicaron en sus capturas24. Posteriormente el pescado pequeño, como las sardinas, era almacenado y envasado en pipas o pequeños barriles en los que el producto era dispuesto dentro del recipiente formando capas circulares25. No hemos hallado constancia directa de escabeche en las Cuatro Villas, si bien algunos investigadores han encontrado indicios de este tipo de conserva en Oviedo. Concretamente se percibe a través del precio del vinagre, que figura como un producto alta demanda en la ciudad que iría más allá del consumo privado al por menor y estaría relacionada con su uso como conservante del pescado26. En cuanto al ahumado, tampoco hemos hallado en la documentación consultada evidencias directas de este tipo de actividad en las Cuatro Villas como ahumaderos o humeros, aunque sí existieron en otras partes del cantábrico, concretamente en Galicia27. Una vez el pescado era procesado, podía transportarse con ciertas garantías hasta el interior de Castilla. En algunos casos, como Santander y Castro Urdiales, se obligaba a los mercaderes que fueran a estas villas a comprar pescado con sus acémilas a que éstas llegaran con trigo para proveer a los vecinos. En Castro Urdiales se pedía que los mulateros trajeran consigo al menos 2 fanegas de trigo o cebada28. En Santander se requería que trajeran al menos una carga de trigo, sin embargo, se obligaba a los mercaderes a vender el trigo a un precio muy inferior al precio habitual en otras villas (300 maravedís por carga cuando lo normal eran unos 400), lo que se tradujo en que los mercaderes dejaran de visitar Santander. La Cofradía de San Martín de la Mar denunció en 1497 que por esta política los pescadores no encontraban quien les comprara sus productos en esta villa y solicitaba al concejo de 23 RUIZ DE LA PEÑA, Juan Ignacio – Las “polas” asturianas en la Edad Media: Estudio y diplomatario. Oviedo: Universidad de Oviedo, 1981, p. 233; URÍA RÍU, Juan – Estudios sobre la Baja Edad Media asturiana (Asturias de los siglos XIII al XVI). Oviedo: Biblioteca Popular Asturiana, 1979, pp. 326-332. 24 AÑÍBARRO RODRÍGUEZ, Javier – “Pesca y comercio entre Castilla e Irlanda a finales de la Baja Edad Media. El caso de los marineros de San Vicente de la Barquera en Irlanda (1498-1517)”. In SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús Ángel; ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz; BOCHACA, Michel (eds.) – Las sociedades portuarias de la Europa Atlántica en la Edad Media. Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 2016, pp. 137-162, p. 145; KOWALESKI, Maryanne – “The expansion of the south-western fisheries in late medieval England”. The Economic History Review. New Series 53/3 (2000), pp. 429-454, p. 449. 25 Valladolid. Archivo de la Real Chancillería de Valladolid. Reales Ejecutorias, caja 292/63, 1514. Se dice que Pedro Álvarez, vecino de San Vicente de la Barquera, vendía unas sardinas en pipas. Sobre la disposición de la sardina, GUERRERO NAVARRETE, Yolanda – “Consumo y comercialización de pescado…”, pp. 244-245. 26 ÁLVAREZ FERNÁNDEZ, María – “Abastecimiento y consumo de pescado en Oviedo a finales de la Edad Media”. In La Pesca en la Edad Media. Santiago de Compostela: Sociedad de Estudios Medievales, 2009, pp. 71-86, p. 82. 27 HERNÁNDEZ ÍÑIGO, Pilar – “La pesca fluvial y el consumo de pescado en Córdoba (1450-1525)”. Anuario de Estudios Medievales 27/2 (1997), pp. 1045-1116, p. 1087. 28 BARÓ PAZOS, Juan; GALVÁN RIVERO, Carmen – Libro de ordenanzas…, p. 129. “Yten que no dexaran sacar ninguna carga a ninguna azemila que no ubiere traído a esta villa a lo menos dos fanegas de trigo o cebada para vender en el dicho açoque”. DEL MAR CANTÁBRICO A LA MESETA CASTELLANA 263 la villa que eximiera de pagar esa tasa a los mercaderes29. El hecho de que los centros de consumo de la meseta estuvieran a una distancia considerable de los puertos del cantábrico podía hacer bascular el precio del pescado. Así entre octubre y abril, cuando las vías podían ser impracticables, y se acercaba la cuaresma, la alta demanda y poco género podía provocar que el precio del pescado se disparase, mientras que, en verano, coincidiendo con la llegada del grueso de especies capturadas durante la campaña, los precios podían hundirse. Para evitarlo y controlar el precio de los productos algunos vecinos de San Vicente levantaron tiendas o alquilaron los almacenes de pescado que ya se mencionaron anteriormente30; es decir, invirtieron capital en bienes inmuebles con el objetivo de almacenar stock que pudiera venderse de manera progresiva y a un precio estable. 4. Problemas políticos en la distribución del pescado. Cada una de las Cuatro Villas de la Costa eran villas de realengo que se situaban en un espacio rodeado de señoríos laicos por tierra. Sin embargo, en su vertiente marítima, conformaban una jurisdicción en la que solamente estas villas tenían derecho a la carga y descarga de mercancías por el mar. Los señores de los alrededores aspiraban a romper esa jurisdicción y construir un puerto que les permitiera participar en el comercio atlántico sin las limitaciones que les imponían desde San Vicente de la Barquera, Santander, Laredo o Castro Urdiales. Las tensiones y los conflictos entre estas villas y sus vecinos se sucedieron durante los siglos XIV, XV y XVI, y algunas de las consecuencias de estos episodios políticos las pagaron los mercaderes31. En 1502, San Vicente de la Barquera logró defender con éxito sus derechos jurisdiccionales marítimos frente al Marqués de Santillana en los tribunales, e impidió que los vecinos de Ruiseñada, Novales, Ruiloba y Cóbreces, aldeas dependientes del marqués, se erigieran en centros competidores suyos en la actividad pesquera Simancas. Archivo General de Simancas. Registro del Sello de Corte, 1497, agosto, doc. 343. “que en esa dicha villa ay una ordenança en que se contiene que ningund mulatero pueda sacar pescado alguno de ella, sy no llevare una carga de trigo para vender en la dicha villa (…) e diz que vos el dicho conçejo e regidores de la dicha villa poneys tasa a los tales mulateros en el vender del dicho pan, e les mandays que vendan cada carga de trigo a trexientos maravedís e a menos, valiendo como diz que vale comúnmente cada carga de trigo puesto en esta dicha villa quatroçientos maravedís, a causa de lo qual diz que vienen muy pocos mulateros a vender trigo a la dicha villa e se recresçe la dicha comunidad e pescadores de ella con mucho dapno”. 30 AÑÍBARRO RODRÍGUEZ, Javier – “Pescadores, mulateros y…”, p. 352. 31 CUENA BOY, Francisco; SERNA VALLEJO, Margarita – “El consilium de Rodrigo Suárez sobre el uso del mar en el contexto del pleito histórico por el puerto de San Martín de la Arena”. Initium. Revista catalana d’Historia del Dret 24 (2019), pp. 195-258; AÑÍBARRO RODRÍGUEZ, Javier – “Conflictos comerciales y pesqueros en el Cantábrico Central a finales de la Edad Media”. In DUO, Gonzalo (coord.) – Cultura Marítima del Cantábrico. Baja Edad Media. Bilbao: Museo Plasentia de Butron Museoa, 2019, pp. 32-46; AÑÍBARRO RODRÍGUEZ, Javier – “Conflictos jurisdiccionales y económicos en una villa de la costa cantábrica durante la Baja Edad Media. San Vicente de la Barquera (1460-1522)”. In Economia e Instituições na Idade Média. Novas Abordagens. Ponta Delgada: Centro de Estudos Gaspar Frutuoso, 2013, pp. 183-197. 29 264 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL al llevar sus capturas a Comillas (otra aldea del Marqués) y no a San Vicente de la Barquera, como era lo legal32. Sin embargo, las consecuencias pasaron factura a la villa: diez años más tarde las autoridades de San Vicente se quejaban ante la reina Juana porque el gobernador del marquesado y otras autoridades del marqués comenzaron a imponer castigos a sus propios vecinos si colaboraban con los de San Vicente de la Barquera en las pesquerías de Irlanda y Cantoviejo33. Los mercaderes que se internaban por jurisdicciones con las que estaban poco familiarizados para distribuir el pescado se arriesgaban a sufrir todo tipo de abusos de la nobleza laica. A comienzos del siglo XVI, Gonzalo Sordo, un vecino de San Vicente de la Barquera y sus compañeros que habían estado faenando en aguas de Irlanda y regresaban a Castilla con 80 quintales de pescado fueron sorprendidos por un temporal que les obligó a descargar en Bilbao34. Decidieron desembarcar el pescado en la villa vizcaína y comercializar el pescado por Castilla, pero al llegar a Orduña los hombres del Condestable de Castilla, Bernardino Fernández de Velasco, tomaron el pescado aduciendo que aquella mercancía no había pagado los diezmos de la mar (que percibía el propio condestable desde 1467) y lo daban por descaminado. Ciertamente, los vecinos de San Vicente estaban exentos de pagar tasas como aquella desde 1241, pero tuvieron que pagar hasta 8.000 maravedís para no perder la carga35. Aunque más tarde llevaron el caso a la justicia y ganaron el pleito, los problemas por la distribución del pescado continuaron dos años después. En 1504 los problemas entre los mercaderes de San Vicente de la Barquera y el Condestable volvieron a repetirse, pero esta vez en Herrera del Río Pisuerga, otra villa de los Velasco. Aún no había finalizado el proceso anterior, cuando al pasar por aquella plaza se les volvió a requisar el pescado. Pese a que el condestable ordenó por escrito que se les devolviera lo tomado, los mercaderes tuvieron que llevar de nuevo a la justicia el caso y tardaron 7 años en recuperar lo que se les había tomado36. 32 Simancas. Archivo General de Simancas. Cámara de Castilla. Pueblos. Leg. 17, doc. 340. “que todos los que dentro de los dichos limytes [dos leguas desde San Vicente hasta hacia Arena de Portillo y Peña de Rioseco por el este, y hasta Llanes por el oeste] pescasen o fuesen obligados a traer e descargar sus pescados a la dicha villa [de San Vicente de la Barquera] e que sy lo hubiesen de vender alli heran obligados a lo vender y que asy los moradores de los conçejos de Ruylova, e Cobrezes, e Novales, e Ryoseñada como los vesinos de otras partes quales quier (…)”. 33 Simancas, Archivo General de Simancas. Cámara de Castilla. Pueblos. Leg. 17, doc. 383, la regesta aparece en BLANCO CAMPOS, Emma; ÁLVAREZ LLOPIS, Elisa; GARCÍA DE CORTÁZAR, José Ángel – Documentación referente a Cantabria…, doc. 375, p. 250. 34 Simancas, Archivo General de Simancas. Cámara de Castilla. Pueblos. Leg. 17, doc. 344; “çiertos compañeros suyos vecinos de la dicha villa en un navío suyo aportaron al puerto de Bilbao con fortuna de tiempo con cierto pescado que trayan de sus pesquerias del dicho Reyno de Yrlanda e que de ello enbio el dicho Gonzalo Sordo fasta ochenta quintales del dicho pescado”. 35 SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús Ángel; VÁZQUEZ ÁLVAREZ, Roberto; ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz – San Vicente de la Barquera en la Edad Media: una villa en conflicto. Archivo de la Real Audiencia y Chancillería de Valladolid. Documentación medieval (1241-1500). Santander: Consejería de Cultura del Gobierno de Cantabria, 2003, doc. 1, pp. 49-57. 36 AÑÍBARRO RODRÍGUEZ, Javier – Las Cuatro Villas de la Costa de la Mar en la Edad Media. DEL MAR CANTÁBRICO A LA MESETA CASTELLANA 265 Otro problema de índole político fue el incremento del coste del pescado conforme se distribuía por Castilla. El aumento del precio se producía, además de como consecuencia de los costes inherentes a la distancia recorrida (días de trayecto, alimentación y mantenimiento de bestias, etc.), a las tasas y derechos de paso que el mercader debía de pagar al discurrir por ciertos lugares: pontazgos al pasar por un puente, barcaje si era necesario atravesar un río en barca; portazgo por atravesar una plaza o un centro urbano, etc… El paso de este tipo de gravámenes impedía que un producto que podía ser rentable de producir en una zona incrementara progresivamente su precio hasta ser improductivo en otra. Esta circunstancia podía ser especialmente preocupante en zonas como las Cuatro Villas en las que no se podía cultivar cereal y que, sin embargo, resultaban estratégicas para articular el comercio atlántico. Por ello diversos monarcas otorgaron exenciones fiscales a las poblaciones de las Cuatro Villas. Laredo, en tan sólo 21 años tras la obtención de su fuero, logró del monarca la exención de impuestos en Medina de Pomar, una plaza clave para abastecer de trigo a la villa costera, y poco después, en 1255 Alfonso X hizo este privilegio aplicable no sólo a la villa burgalesa, sino a todos los reinos y señoríos, salvo Sevilla y Murcia37. San Vicente de la Barquera, apenas 30 años después de conseguir su carta foral, en 1241 logró de Fernando III el derecho de no tener que pagar portazgo en ningún lugar del reino: “(…) sepades que yo mando que los onbres de Sant Vyçente que agora son o serán de aquí adelante non den portadgo en ningund lugar de todos mys reynos por qualquier mercadería que lieven o traygan, ny por otra cosas ninguna que lieven para sy.”, si bien este privilegio tenía como excepción las ciudades de Sevilla y Murcia38. Santander logrará un privilegio similar en 1255 y Castro Urdiales, en 1285. 5. Problemas de índole económico. Los navíos en la Baja Edad Media no eran baratos. En 1492 se hundió en la Berbería una pinaza con velas, aparejos y pescado (235 docenas de pescado) cuyo valor estimaba su propietario en hasta 40.000 maravedís39. Para que el lector se haga una idea, 50.000 maravedíes era el equivalente al salario anual de todos los oficiales en Conflictos jurisdiccionales y comerciales. Santander: Universidad de Cantabria, 2013. Tesis Doctoral inédita, p. 110. 37 RUIZ DE LA PEÑA, Juan Ignacio – “El nacimiento de las villas costeras cántabro-atlánticas y su instrumentación jurídica (siglos XII-XIII)”. In BARÓ PAZOS, Juan; SERNA VALLEJO, Margarita – El fuero de Laredo en el Octavo Centenario de su concesión. Santander: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Cantabria, 2001, pp. 151-167 e p. 163. 38 SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús Ángel; VÁZQUEZ ÁLVAREZ, Roberto; ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz – San Vicente de la Barquera…, doc. 1, p. 49. 39 SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús Ángel; VÁZQUEZ ÁLVAREZ, Roberto; ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz – San Vicente de la Barquera…, doc. 40, pp. 310-311. 266 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL San Vicente de la Barquera en el año 1507 y 27.000 maravedís era lo que ganaba el corregidor en concepto de su sueldo por un año40. Juan Martínez de Recalde y Juan Martínez de Iruxta, dos vecinos de Bilbao, vendieron a Toribio de Manjón, un vecino de Santander una nave completa con tonelaje de 120 toneles por 250 ducados de oro en 151541; si realizamos el cambio de ducados a maravedís, cuyo cambio oficial hacia 1510 era de 375 por ducado, arrojaría una cantidad de 93.750 maravedís42. La cantidad es aún mayor en el caso de Juan Martínez de Mori en 1495: este mercader, vecino de Laredo, vendió a Juan de Arbolancha y Martin de Gorgoyo, vecinos de Bilbao, media embarcación en dos plazos, cada uno por un valor de 450 ducados43. En total el valor de la nave ascendía a 337.000 maravedís, una cantidad al alcance de muy pocas personas, hasta el punto de que obligaba a un importante miembro de los Arbolancha (una de las familias más importantes del Bilbao), a adquirirla a plazos. En otras palabras: embarcarse en una aventura comercial para conseguir pescado requería una inversión inicial que solamente podían permitirse las familias más pudientes. Una vez realizada esa importante inversión, los riesgos eran altos: el barco podía ser apresado por atacantes o hundirse en una tormenta. Pero los beneficios eran suculentos; cada pescado obtenido en zonas como Irlanda podía venderse al doble de su valor en los mercados interiores de Castilla44. Hubo varios mecanismos para salvar estos problemas económicos. El primero de ellos fue el préstamo. Los mercaderes de las Cuatro Villas recurrían a prestamistas en las mismas 40 Simancas. Archivo General de Simancas. Cámara de Castilla. Pueblos. Leg. 17, doc. 288, fol. 2r-2v. “(...) esta dicha villa [de San Vicente de la Barquera] pagava cada un año de salario al corregidor veynte e syete myll maravedís e a los otros ofiçiales del conçejo e montalgueros e otras personas, otros çinquenta myll maravedíes”. 41 Valladolid. Archivo de las Real Chancillería de Valladolid. Reales Ejecutorias, caja 304, 44. Año 1515. “que el dicho Toribio de Manjon quedo e se obligo de dar e pagar a los dichos Juan Martynes de Recalde e Juan Martynes de Yruxta o a quyen su poder ovieren dosyentos e çinquenta ducados de buen oro e de justo peso por rason de una nao”. 42 FRANCISCO DE OLMOS, José María de – “La moneda castellana de los Reyes Católicos. Un documento económico y político”. Revista General de Infromación y Documentación 9/1 (1999), pp. 85-115, p. 107, nota 38. 43 Valladolid. Archivo de las Real Chancillería de Valladolid. Reales Ejecutorias, caja 149-19: “como nos, Juan Gomes de Arbolancha e Martyn de Gorgollo su yerno vesinos de la dicha villa de Bilbao, anbos e dos de mancomún (…) debemos dar e pagar a vos Johan Martynes de Mory, maestre de la nao nombrada Santa María que Dyos la salve e guarde de mal que presente e estades vecino de la villa de Laredo o al que esta carta mostrare que vuestra boz es a saber quatroçientos e çinquenta ducados de buen oro e justo preçio por rason que oy dya de la fecha de esta carta vos el dicho Juan Martynes de Mori nos vendistes la mytad de la dicha nao por preçio e quantya de nuebe çientos ducados e la mytad de los aparejos e artilleria de la dicha nao segund que mas largamente se contyene en presençia de Juan Martynes de Gueldo escribano de cuya mano es sygnada de los quales dichos nuebe çientos ducados de coronas fincan e remançen de vos dar e pagar los dichos quatro çientos ducados [sic.] de oro e por nos faser amor e buena obra vos el dicho Juan Martynes de Mory, maestre, nos aveys fecho e fasyl plaso a que vos paguemos los dichos quatroçientos e çinquenta ducados de oro restantes al cumplimyento de los dichos nueve çientos ducados de oro para el plaso que adelante sea declarado”. 44 Simancas. Archivo General de Simancas. Cámara de Castilla. Pueblos. Leg. 17, doc. 360, año 1515. “Pedro Gutierrez enpleara dicha moneda que asy le tomaron en el dicho Reyno de Yrlanda, lo truxiera enpleado a estos Reynos de España, que lo doblara la dicha enplea segund que en el dicho Reyno de Yrlanda cuesta el pescado y otras cosas que ally enplean los semejantes mercaderes...”. DEL MAR CANTÁBRICO A LA MESETA CASTELLANA 267 plazas castellanas en las que vendían el pescado, lo cual les permitía pagar en especie si se estimaba oportuno. La “tasa de interés” de los mismos era elevada: en torno a un 25 y un 40% en el año 148645. Por ejemplo, el Conde de Buendía, Juan de Acuña, prestó en 1495 una cantidad de 130.000 maravedís a un depositario que a su vez los prestaba a los vecinos de San Vicente de la Barquera, si bien los de San Vicente no siempre devolvieron lo prestado46. Otras veces el préstamo se empleaba para pagar el alquiler de los almacenes del pescado que guardaban en Villalón; por ejemplo, un judío llamado Rabisanto estaba dispuesto a realizar a unos mercaderes de San Vicente de la Barquera préstamos en especie, concretamente en trigo y en cebada, para pagar 4.400 maravedíes del alquiler47. El problema de este tipo de prácticas es que las condiciones eran duras, y si no se devolvía lo estipulado a tiempo, la deuda se disparaba y los mercaderes se arriesgaban a ser hechos presos hasta liquidar la deuda. Otro método para sortear parcialmente la fuerte inversión inicial fue recurrir a compañías formadas por diferentes socios que podían ser desde una pareja hasta más de cuatro. De esta manera los inversores compartían gastos y riesgos. Por ejemplo, en 1515 Pedro Remon el Viejo, vecino de Laredo, y Juan de Oreña, vecino de San Vicente de la Barquera, formaron una compañía con el fin de conseguir pescado en Irlanda. Juntos se comprometieron a repartirse los beneficios, pero también en participar en los gastos si la empresa fracasaba48. Otro problema recurrente en las Cuatro Villas fue la escasez de pescado. El hecho de que el pescado de las Cuatro Villas fuese tan apreciado en Castilla, unido a que las poblaciones de estos puertos y sus alrededores fueran pobres, hacía peligrar el abastecimiento de pescado de los moradores de la comarca, que no podían competir con los altos precios que estaban dispuestos a pagar los mercaderes. Precisamente de ese problema se quejaron ante los Reyes Católicos Pero Tristan, vecino de Meruelo, y Juan Pérez de Sobremazas, de Cudeyo, porque “a dos puertos de mar [refiriéndose a Santander y Laredo] en que continuamente se cuidan a pescar con pinaças pescadas e besugos e otros pescados e que los pescados que van a lo pescar, diz que tienen fechos contratos con algunos vezinos de la dicha yuntamente que ayan pescado los dichos pescados de se los dar para los tornar a rebender e salen a otras partes de 45 SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús Ángel; ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz – “San Vicente de la Barquera en la Edad Media. Un puerto de vocación Atlántica”, San Vicente de la Barquera. 800 años de Historia. Santander: Publican, 2010, pp. 104-179, p. 160. 46 Valladolid. Archivo de la Real audiencia y Chancillería de Valladolid. Reales Ejecutorias. Caja 293, 27, 8 fols.. 47 SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús Ángel; VÁZQUEZ ÁLVAREZ, Roberto; ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz – San Vicente de la Barquera…, doc. 20, p. 129. 48 PORRAS ARBOLEDAS, Pedro Andrés – “La práctica mercantil en el Cantábrico Oriental (siglos XV-XIX)”. Cuadernos de Historia del derecho 7 (2000), doc. 9, pp. 188-190. “… e para lo asy tener e guardar e conplir e pagar, se obligaron por sus personas e bien, muebles e rayzes, avidos e por aver…”. 268 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL manera que los otros vecinos e moradores de la dicha yunta e de la dicha merindad e los otras comarcanos no pueden aver provysyon para sus mantenymyentos”49. La solución que pedían estos vecinos era que que se impidiera la venta del pescado a los mercaderes, para lo cual proponían que el pescado fuera traído a la ribera y allí se les permitiera comprar a quienes querían adquirir el pescado al por menor. Por último, también hemos detectado otro problema relevante, y es el fraude que se cometía en la distribución del pescado. Hemos constatado al menos dos tipos de fraude: el primero consistía en engañar al comprador presentándole una muestra falsa del pescado que no se correspondía con la calidad real del producto. Ocurrió en 1514 con Pedro Álvarez, un mercader de San Vicente de la Barquera que vendió quinientos millares de sardinas a unos vecinos de Bilbao que resultaron estar podridas50. El otro tipo de fraude se generó desde las propias instituciones, y consistió en emplear pesos alterados para tasar el pescado. Esta práctica queda constatada también en San Vicente de la Barquera, pues en 1495 los vecinos de la villa sabían que existía un peso empleado para el pescado cecial que pesaba seis libras menos de cada cien51. Eso permitía al mercader llevarse más pescado del estipulado, por lo que algunos comerciantes sobornaron a los fieles para que el pescado que se llevaban fuera pesado en esa balanza específica, lo cual fue denunciado por la cofradía de pescadores ante las autoridades. Conclusiones. En primer lugar, a lo largo de nuestro trabajo se ha demostrado la importancia que tuvo el pescado en las villas analizadas y sus alrededores. El amplio espectro del alcance de este producto, que llegaba hasta importantes villas y ciudades del centro peninsular, demuestra que era un producto codiciado, rentable y que generaba riqueza hasta el punto de que supuso el auténtico motor económico de los puertos de las Cuatro Villas. En segundo lugar, aunque la mayoría de los vecinos se beneficiaron de la riqueza que proporcionaba la pesca, ese beneficio fue desigual, muy limitado para unos y desproporcionado para otros: mientras unos arriesgaban su vida en el mar realizando peligrosos trayectos por el Atlántico, otros permanecían en tierra esperando los beneficios. Dado que la adquisición y distribución del pescado Simancas. Archivo General de Simancas, Registro del Sello de Corte, 1495, julio, doc. 334. Valladolid. Archivo de la Real Chancillería de Valladolid. Reales Ejecutorias, caja 292/63, 1514. 51 Simancas. Archivo General de Simancas, Registro del Sello de Corte, 1495, julio, doc. 219. “(…) que en la dicha villa ay un peso de pescado çeçial en que se vienen e pesan por uno çiento e seys myll quintales de pescado, que dis que ay çient libras de a ochenta pieças e que los mercaderes de la villa dan dineros a los que toman el pescado por el dicho peso e menos preçio e dis que ponen el quyntal alto e lo hallan ser un palmo arredrado del fiel en tal manera que por çient libras lievan çiento e dyes de que la dicha villa e vesinos de ella han reçibido e reçiben grand frabde e engaño”. 49 50 DEL MAR CANTÁBRICO A LA MESETA CASTELLANA 269 requería de una importante inversión inicial, los beneficios reales del pescado quedaban en manos de los inversores que podían, en especial prestamistas que adelantaban capital a una tasa de interés que acaparaba buena parte de los beneficios o incluso endeudaba a los mercaderes. Ello explica que la mayor parte de los vecinos de las Cuatro Villas que participaban en la adquisición y distribución del pescado por Castilla fuesen de condición humilde; incluso los más pudientes no realizaban estas empresas en solitario, sino que se asociaban formando compañías para repartir riesgos y beneficios. En este sentido, coincidimos con las observaciones realizadas por Ferreira Priegue en las que advertía que los pescadores no eran los principales beneficiarios del negocio pesquero52. La demanda del pescado que entraba por los puertos de las Cuatro Villas fue alta en Castilla, y las autoridades eran conscientes de ello. Algunas, como en Santander y Castro Urdiales, aprovecharon esta circunstancia para obligar a los mulateros que querían adquirir ese pescado a buen precio a entrar con sus recuas llenas de trigo. Paradójicamente el éxito de este producto generó episodios de desabastecimiento de pescado en las comarcas cercanas a los puertos, como fue en el caso de Trasmiera, de ahí que se solicitara a los concejos urbanos que aplicasen medidas para garantizar la provisión de este alimento a los moradores de la región. Por último, a lo largo de nuestro trabajo hemos detectado multitud de problemas en las distribución del pescado, pero por cada uno de ellos los vecinos de las Cuatro Villas lograron encontrar soluciones, aunque fuera parciales: ante las limitaciones geográficas se recurrió a la mejora y mantenimiento de calzadas; ante el deterioro de los peces durante el transporte, a tecnología de procesado de pescado para lograr un mayor alcance del producto; los problemas políticos trataron de solucionarlos en los tribunales invirtiendo dinero en pleitos y procesos judiciales; y ante malas prácticas como el acaparamiento o los fraudes, los concejos urbanos intervinieron con ordenanzas encaminadas a eliminarlas. 52 FERREIRA PRIEGUE, Elisa – “Pesca y economía regional en Galicia”. In La Pesca en la Edad Media. Santiago de Compostela: Sociedad de Estudios Medievales, 2009, pp. 11-34, p. 16. 270 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Los Problemas en el Abastecimiento de Pescado en la Meseta Meridional Castellana a Finales de la Edad Media (1450-1515) Julián Sánchez Quiñones1 Resumen En el presente trabajo se analizan los problemas tenían los concejos de la submeseta sur castellana para abastecerse de pescado. Estas dificultades se debían a dos tipos de factores: exógenos, como el deterioro de las pesquerías del interior peninsular o las dificultades para traer el pescado desde las costas y endógenos, provocados por la propia estructura del sistema de obligados, responsable del abasto municipal. Aquí, cabe citar causas como el sistema de precios o la reventa, que influyeron negativamente en el correcto desarrollo del abasto de alimentos. Ambos tipos de problemas provocaron conflictos y dificultaron la llegada de este producto a los mercados locales. Palabras clave Pescado; Obligados; Escasez; Transporte; Precios; Abusos; Ligas; Reventa. 1 Comunidad Autónoma De Madrid. 272 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL The problems in the supply of fish in the Castilian Southern Plateau at the end of Middle Ages (1450-1515) Summary This paper analyzes the problems that the councils of the southern Castilian sub-plateau had to supply fish. These difficulties were owed to two types of factors: exogenous, such as the decline of the inland fisheries or the difficulties to bring this good from the coasts. The endogenous factors were caused by the structure of the local market system. Some of these causes were prices system or resale, which affected negatively to the development of food supply. Both types of issues caused conflicts and hindered this product to reach local markets. Keywords Fish; Providers; Scarcity; Transport; Prices; Abuses; Union; Resale. 1. Un acalorado debate en el concejo. El 24 de enero de 1497, en la iglesia de Santo Domingo de Guadalajara, se produjo un acalorado debate entre los regidores por la obligación del pescado. Los detractores de este sistema proponían no nombrar obligados, puesto “(…) [que] la ciudad sería mal servida (…)” y como alternativa planteaban permitir la libre venta a todos aquellos que lo deseasen2. Años más tarde, el 1 de febrero de 1503, el concejo de Ciudad Real afrontó un debate similar ya que la ciudad carecía de obligados y había falta de pescado. La búsqueda de proveedores por los pueblos de la comarca no había tenido una respuesta positiva y se solicitó el parecer de los regidores. Uno de ellos, García Jufre de Loaysa, afirmó que los obligados “(…) nunca cumplían bien, ni se bastecía la ciudad (…)”, y añadió que había muchos mercaderes que daban pescado, apuntando así a que el problema radicaba en los encargados del abasto y no en la carencia del producto3. Y aunque finalmente se aceptó la obligación, al año siguiente volvió a faltar pescado en la ciudad4. AHN-Secc. Nobleza-Osuna-C. 1876-Doc- 109, fol. 64v. AMCR-Actas del Concejo 1503, p. 67. 4 AMCR-Actas del Concejo 1504, pp. 144-145. 2 3 LOS PROBLEMAS EN EL ABASTECIMIENTO DE PESCADO EN LA MESETA MERIDIONAL [...] 273 1.2 El abasto urbano: funcionamiento, problemas y soluciones ensayadas por el concejo. ¿Por qué se produjeron dos crisis similares en ciudades de la misma área y en un plazo de tiempo tan corto? ¿Qué fallaba para que hubiese escasez de pescado? Para los dirigentes municipales los culpables eran los obligados, cuya mala gestión era la causa de la falta de pescado. No obstante, esto supone simplificar en exceso, ya que este problema era fruto de una serie de factores externos, ajenos al sistema e internos, propios del mismo. Para entender esto mejor es necesario exponer, brevemente, en qué consistía el sistema de obligados5. El concejo subastaba el abasto de los productos (pescado), con ciertas condiciones y los interesados pujaban por estas rentas. Todo se resolvía con el remate que otorgaba el contrato a un proveedor que debía cumplir con lo pactado: tiempo del contrato, los productos a ofertar, los lugares de venta, el modo de ofrecer la mercancía y los precios. Para garantizar el cumplimiento del acuerdo, el concejo solicitaba a los obligados una fianza sobre sus bienes6. Así se aseguraban, en teoría, alimentos baratos y de buena calidad para los consumidores y, por otro lado, se procuraba el “bien común” de los vecinos7. Sin embargo, los proveedores urbanos 5 En algunas como Toledo no se implantó. IZQUIERDO BENITO, Ricardo – Abastecimiento y alimentación en Toledo en el siglo XV. Cuenca: Universidad de Castilla la Mancha, 2002. 6 La bibliografía sobre el sistema de obligados es muy amplia, por lo que citamos sólo lo que empleamos: PUÑAL FERNÁNDEZ, Tomás – El mercado en Madrid en la Baja Edad Media. Madrid: Caja de Madrid, 1992; DE CASTRO MARTÍNEZ, Teresa – El abastecimiento alimentario en el reino de Granada (1482-1510). Granada: Universidad de Granada, 2004; SÁNCHEZ QUIÑONES, Julián – Pesca y comercio en el reino de Castilla durante la Edad Media. Madrid: La Ergástula, 2014; OLIVA HERRER, Hipólito Rafael – Abastecimiento local y comercio cotidiano en Medina del Campo a fines de la Edad Media. Las ordenanzas del peso. Valladolid: Fundación Museo de las Ferias/ Diputación de Valladolid, 2005; LOZANO CASTELLANOS, Alicia – Mercado y fiscalidad en Talavera de la Reina a mediados del siglo XV. Murcia: Sociedad de Estudios Medievales, 2015; De la misma autora: Comercio y finanzas. Hombres de negocios en Talavera durante la Baja Edad Media. Cuenca: Universidad de Castilla La Mancha, 2017; GUERRERO NAVARRETE, Yolanda; SÁNCHEZ BENITO, José María – Cuenca en la Baja Edad Media. Un sistema de poder urbano. Cuenca: Diputación Provincial de Cuenca, 1994; ESCRIBANO ABAD, José Luis – Abastecer a la ciudad medieval. Política concejil en el reino de Toledo (ss. XIV-XV). Madrid: Universidad de Alcalá de Henares, 2017; BARBADILLO ALONSO, Javier; GUTIÉRREZ DUBLA, Natividad – “El debate del abasto del pescado en Guadalajara en 1500”. In IV Encuentro de Historiadores del valle del Henares. Libro de Actas. Madrid, 1994, pp. 93-103. 7 BLICKLE, Peter – “El principio del bien común como norma para la actividad política. La aportación de campesinos y burgueses al desarrollo del Estado moderno temprano en la Europa central”. Edad Media 1 (1998), pp. 29-46; LUCHÍA, Corina – “La noción de “bien común” en una sociedad de privilegio: acción política e intereses estamentales en los concejos castellanos (siglos XV-XVI)”. Edad Media 17 (2016), pp. 329-346. 274 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL no eran todo lo eficaces que debían y el sistema adolecía de importantes carencias 8. El origen de estos problemas podía hallarse en factores externos (exógenos), como la carencia de caminos adecuados o la inseguridad en el territorio9 o eran el resultado de las dificultades internas del sistema (causas endógenas), como la reventa o la política de precios10. Las medidas tomadas para afrontar estos problemas solían ser parecidas en la mayoría de los productos. En el caso del pescado, estaba prohibido vender pescado fluvial fuera de la ciudad o de su término11. Asimismo, se procuraba favorecer la llegada de pescado marítimo, facilitando su arribada y venta en el mercado local12. No obstante, las autoridades se centraron en dos aspectos esenciales: prestar ayuda a los obligados para que no pasasen dificultades durante el desempeño de su función y, por otro lado, les vigilaron estrechamente para prevenir la carencia de este bien. Para ayudar a los obligados los concejos podían actuar de dos formas. Ya que los precios eran bajos, a veces se les concedía una cantidad de dinero para auxiliarles13. Sin embargo, si la situación era grave, se podía incrementar el precio para eludir su ruina, aunque las alzas solían ser moderadas14. Con todo, esta segunda medida solía ser excepcional y lo más común era justo lo contrario, es decir, que los regidores revisasen los precios a la baja si consideraban que eran altos, lo que provocaba las encendidas protestas de los vendedores ante el concejo15. El segundo punto, la vigilancia a los obligados se concretó, en primer lugar, mediante advertencias verbales, donde se exhortaba a los obligados a cumplir su cometido y se recordaba a los regidores que debían estar 8 Sólo incluimos aquellos títulos que empleamos. OLIVA HERRER, Hipólito Rafael – “La crisis del siglo XIV en nuevos contextos: una reflexión sobre la crisis y sus interpretaciones historiográficas”. In GARCÍA FERNÁNDEZ, Manuel (coord.) – El rey Don Pedro y su tiempo (1350-1369). Sevilla: Universidad de Sevilla, 2016, pp. 35-65; BENITO I MONCLÚS, Pere – “Las crisis alimenticias en la Edad Media: caracteres generales, distinciones y paradigmas interpretativos”. In LÓPEZ OJEDA, Esther (coord.) – Comer, beber, vivir: consumo y niveles de vida en la Edad Media hispánica. XXI Semana de Estudios Medievales, Nájera, del 2 al 6 de agosto de 2010. Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 2011, pp. 123-159; OLIVA HERRER, Hipólito Rafael; BENITO I MONCLÚS, Pere – Crisis de subsistencia y crisis agraria en la Edad Media. Sevilla: Universidad de Sevilla, 2007, pp. 17-61. La Revista Edad Media (2007) le dedicó un número completo a la crisis del siglo XIV en los reinos hispánicos. 9 DE CASTRO MARTÍNEZ, Teresa – El abastecimiento alimentario…, pp. 139-140. 10 ESCRIBANO ABAD, José Luis – Abastecer a la ciudad…, pp. 215-258. 11 AMCU-Legajo 193-Expediente 2 (Ordenanzas de 1455), fol. 39v. RUBIO PARDOS, Carmen, et alii – Libros de Acuerdos del Concejo Madrileño. Vol. III: (1493-1497). Madrid: Artes Gráficas Municipales, 1979, p. 24. 12 En 1513 el corregidor de Madrid solicitó a unos mercaderes que dejasen una carga de congrio fresco en la villa. SÁNCHEZ GONZÁLEZ, Rosario; CAYETANO MARTÍN, María del Carmen - Libros de Acuerdos del Concejo Madrileño (1502-1515). Vol. V. Madrid: Artes Gráficas Municipales, 1987, p. 222. 13 En 1480 se les concedieron 3000 maravedís. PUÑAL FERNÁNDEZ, Tomás – El mercado en Madrid en la Baja Edad Media. Madrid: Caja de Madrid, 1992, pp. 181-182. 14 En Madrid lograron una blanca más sobre el precio inicial. RUBIO PARDOS, Carmen, et alii – Libros de Acuerdos del Concejo Madrileño…, Vol. IV: (1498-1501), pp. 99-100. 15 AMCU –Legajo 199–Expediente 2 (Actas del Concejo de 1472-1473), fols. 102r-105v y 112r. LÓPEZ VILLALBA, José Miguel – Las Actas de Sesiones del Concejo medieval de Guadalajara. Madrid: UNED, 1997, pp. 212-213, 257-258, 277-278. LOS PROBLEMAS EN EL ABASTECIMIENTO DE PESCADO EN LA MESETA MERIDIONAL [...] 275 vigilantes. No obstante, si el proveedor no cumplía con su tarea, se podían tomar medidas más contundentes. En Madrid, cuando no había pescado en las tablas, los regidores iban a casa del obligado y podían requisar el producto que tuviese allí. Y en caso de no tener pescado, el obligado era encarcelado y se empleaban sus bienes para adquirirlo16. Asimismo, se estrechó la vigilancia en el pago de la sisa y la alcabala. Los cogedores de la sisa debían dar cuenta, cada cierto tiempo, de lo recaudado. Como tal medida no dio resultado, en Cuenca, en 1473, se ordenó que el pescado, el aceite y el vino entrasen en la villa por las puertas del Postigo y de Huete. Asimismo, se realizó un registro de las cantidades de pescado existentes en la ciudad para tasarlas y cuantificar las reservas de pescado disponibles17. 2. Problemas en el abasto del pescado: los factores exógenos. 2.1 El pescado fluvial: ¿deterioro de las pesquerías del interior peninsular? Durante la Edad Media diversos factores provocaron importantes cambios en las pesquerías de los ríos europeos. La colonización de las tierras, el uso de la fuerza motriz del agua y el aumento de la población aumentaron la presión sobre los recursos fluviales. Algunos peces, como el esturión, experimentaron una importante reducción en sus poblaciones18, lo que motivó que nuevas especies las sustituyesen como alimento del hombre (anguila, carpa)19. Otros factores que influyeron en la pérdida de la fauna fluvial fueron la contaminación de las aguas, debida a la industria textil o la edificación de presas que impedían a los peces remontar la corriente para el desove20. Este deterioro no afectó por igual a todas las especies y algunas, como el salmón en Escocia, mantuvieron su pujanza gracias a la protección dispensada por los poderes públicos21. Para el caso peninsular, el análisis de esta cuestión es complicado. La mayoría de los restos ictiológicos pertenecen a yacimientos de época musulmana, donde 16 RUBIO PARDOS, Carmen, et alii – Libros de Acuerdos del Concejo Madrileño…, Vol. III: (1493-1497), pp. 239, 267. 17 AMCU-Legajo199-Expediente 2 (Actas del Concejo 1472-1473), fols. 130r-32r y 135r. 18 HOFFMANN, Richard C. – “A brief history of aquatic resource use in Medieval England”. Helgoland Marine Research 59, (2005), pp. 22-30. Sobre esta cuestión en la Península Ibérica, véase: LUDWIG, Arne; MORALES MUÑIZ, Arturo; ROSELLÓ IZQUIERDO, Eufrasia – “Sturgeon in Iberia from past to present”. In WILLI, P. et alii (eds.) – Biology and Conservation of the European Sturgeon Acipenser sturio L. 1758, BerlínHeidelberg: Springer, 2011, pp. 131-146. 19 HOFFMANN, Richard C. – “Remains and verbal evidence of carp (Cyprinus carpio) in Medieval Europe”. In VAN NEER, Wim (ed.) – Fish explotaition in the past. Proceedings of the 7th Meeting of the ICAZ Fish remains working group. Tervuren: Musee Royale de L´Afrique Centrale, 1994, pp. 139-149. 20 HOFFMANN, Richard C. – “Economic Development and Aquatic Ecosystems in Medieval Europe”. American Historical Review 101, nº3, (1996), pp. 631-669. 21 HOFFMANN, Richard C. – “Salmo salar in late Medieval Scotland: competition and conservation for a riverine source”. Aquatic Sciences 77 (2015), pp. 355-366. 276 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL predominan las especies marítimas, con escasa presencia de las especies fluviales22. Estas últimas corresponden, sobre todo, al barbo y la boga y en conjunto son muy reducidas como para sacar una conclusión clara al respecto23. Son por tanto, las fuentes escritas las que sugieren una creciente presión sobre los peces de agua dulce, causada por la sobrepesca, el uso de artes pesqueras perjudiciales, la edificación de presas en los ríos, la contaminación causada por la industria textil o los desperdicios arrojados a las aguas. En Castilla, en las Cortes de 1253, Alfonso X prohibió la pesca de los gorgones o salmones pequeños y en 1268 se vedó el uso de cal viva y sustancias ponzoñosas. En 1435 se volvieron a prohibir estas sustancias alegando el riesgo que suponían para la salud pública y el daño que hacían a la pesca durante la época de cría. Ya en la Edad Moderna, Carlos I y Felipe II, aumentaron el número de especies con períodos de veda reglados y la cantidad de artes pesqueras vetadas24. Este problema también se hizo sentir en el Tajo portugués, donde las quejas por estos motivos se incrementaron en el siglo XV25. A nivel local, las fuentes no reflejaron esta cuestión hasta el siglo XV y lo asociaban al uso de ciertas artes pesqueras como los corrales, prohibidos en Toledo desde 147026, la manga o el trasmallo en Cuenca27 o la barredera en Molina de Aragón28. En estos casos se informaba de la reducción de la fauna piscícola, a veces hasta extremos muy graves, como el documentado en Talavera, donde en 1476 se prohibió exportar pescado fluvial ante su escasez para abastecer la villa29. Este fenómeno parece haber sido más tardío en la cuenca del Guadiana, donde los datos sobre el mismo son de mediados del siglo XVI, cuando en Albacete se estableció un prolongado parón biológico en las acequias de la ciudad30. No obstante, en otras regiones como Extremadura, dicho deterioro ya era evidente a 22 MORALES MUÑIZ, Arturo, et alii – “711 AD: ¿El origen de una disyunción alimentaria?”. In Zona arqueológica, 711, arqueología e historia entre dos mundos. Vol. 2. Madrid: Museo Arqueológico Nacional, 2011, pp. 303‐322. 23 MORALES MUÑIZ, Dolores Carmen; ROSELLÓ IZQUIERDO, Eufrasia; MORALES MUÑIZ, Arturo – “Pesquerías medievales hispanas: las evidencias arqueofaunísticas”. In La pesca en la Edad Media, Vol. I. Murcia: Sociedad Española de Estudios Medievales, 2009, pp. 145-167. 24 SÁNCHEZ QUIÑONES, Julián – Pesca y comercio…, pp. 112-119. 25 BATISTA, C, et alii – “Aproximação ao estudo diacrónico da ictiofauna dulçaquícola no vale do Tejo: os casos de Abrantes e Santarém”. In 7º Simpósio sobre a Margem Ibérica Atlântica – MIA 2012, 16-20 de Dezembro de 2012, Lisboa, pp. 145-150. 26 IZQUIERDO BENITO, Ricardo – Abastecimiento…, pp. 82-83. En 1527 se volvió a aludir a este problema. MARTÍN GAMERO, Antonio – Ordenanzas para el buen régimen y gobierno de la muy noble, muy leal e imperial ciudad de Toledo. Toledo: Imprenta de José de Cea, 1858, pp. 166-167. 27 AMCU-Legajo 125-Expediente 5, fol. 33r. 28 CORTÉS RUIZ, María Elena – Articulación jurisdiccional y estructura socioeconómica en la comarca de Molina de Aragón a lo largo de la baja Edad Media. 3 vols. Madrid: Universidad Complutense, 2003, pp. 902-913. Tesis doctoral. 29 LOZANO CASTELLANOS, Alicia – Mercado y fiscalidad…, p. 38. 30 Es posible que haya referencias anteriores. SÁNCHEZ QUIÑONES, Julián – Pesca y comercio…, p. 118, nota 370. LOS PROBLEMAS EN EL ABASTECIMIENTO DE PESCADO EN LA MESETA MERIDIONAL [...] 277 finales de la Edad Media31. Esta situación se mantuvo hasta bien entrado el siglo XVI, en el cual, a pesar de los esfuerzos de la Corona, las pragmáticas emitidas contra la pesca ilegal seguían incumpliéndose, a veces, con total impunidad32. 2.2 El pescado marítimo: el difícil tránsito hacia el interior peninsular. El consumo y comercio de pescado marítimo experimentó un gran desarrollo en la Edad Media. La enorme demanda de algunas especies como el arenque o la sardina fue paralela, además, a la aparición de una importante industria pesquera en algunas zonas europeas (Países Bajos)33. Las aguas peninsulares conocieron una explotación más tardía, si bien de su riqueza dan cuenta los yacimientos arqueológicos y las fuentes documentales34. El comercio del pescado fue muy importante en el siglo XV castellano. De sus costas partían buques y recueros35 hacia otros reinos, como Aragón36, o al interior peninsular donde el pescado se cambiaba por cereales37. Era un producto que se movía con cierta fluidez38, lo que no quiere decir que su transporte hacia las tierras del interior fuese fácil. Estas áreas se proveían de pescado procedente 31 CLEMENTE RAMOS, Julián – “La evolución del medio natural en Extremadura (c. 1142-c. 1525). In CLEMENTE RAMOS, Julián (coord.) – El medio natural en la España medieval: actas del I Congreso sobre ecohistoria e historia medieval. Cáceres: Universidad de Extremadura, 2001, pp. 47-48. Del mismo autor: “El medio natural en la vertiente meridional del Tajo extremeño en la Baja Edad Media”. Anuario de Estudios Medievales (En adelante AEM) 30/1 (2000), pp. 383-384; CLEMENTE RAMOS, Julián; RODRÍGUEZ GRAJERA, Alfonso – “Plasencia y su tierra en el tránsito de la Edad Media a la Moderna. Un estudio de sus ordenanzas (1469-1493)”. Revista de estudios extremeños 63, 2 (2007), pp. 740-741 y 748-750. 32 Los clérigos fueron habituales infractores de estas disposiciones. Actas de las Cortes de Castilla publicadas por acuerdo del Congreso de los Diputados a propuesta de su comisión de gobierno interior. Contiene las celebradas el año de 1570, ed. Manuel Danvila y Collado, Vol. III. Madrid: Est. tip. Sucesores de Rivadeneyra, 1863, pp. 370-371. 33 El llamado Fish Horizont se data a partir del año 1000 y su desarrollo fue desigual en la Baja Edad Media, con zonas muy pujantes (Escania) y otras en decadencia (este de Inglaterra). BARRETT, James H. – “Medieval Sea fishing AD 500-1550: Chronology, causes and consequences”. In BARRET, James H.; ORTON, David C. (eds.) – Cod and Herring. The archaeology and history of medieval sea fishing. Oxford: Oxbow Books, 2016, pp. 250-272. 34 MORALES MUÑIZ, Dolores Carmen; ROSELLÓ IZQUIERDO, Eufrasia; MORALES MUÑIZ, Arturo – “Pesquerías medievales hispanas”. In La pesca en la Edad Media…, pp. 145-167; GONZÁLEZ GÓMEZ DE AGÜERO, Eduardo – La ictiofauna de los yacimientos arqueológicos del noroeste de la Península Ibérica, León: Universidad de León, 2013. Tesis doctoral. 35 FERREIRA PRIEGUE, Elisa – Galicia en el comercio marítimo medieval. Santiago de Compostela: Universidad de Santiago de Compostela, 1988; OTTE, Enrique – Sevilla y sus mercaderes a finales de la Edad Media. Sevilla: Universidad de Sevilla / Fundación el Monte, 1996; MEDRANO FERNÁNDEZ, Violeta – Un mercado entre fronteras. Las relaciones comerciales entre Castilla y Portugal al final de la Edad Media. Valladolid: Universidad de Valladolid, 2010. 36 SALICRÚ, Roser – El trafic de mercaderies a Barcelona segon els comptes de la lleuda de Mediona (febrero de 1434). Barcelona: CSIC, 1995. DIAGO HERNANDO, Máximo – “El comercio de productos alimentarios entre las Coronas de Castilla y Aragón entre los siglos XIV y XV”. AEM 31/2 (2001), pp. 603-648. 37 AÑÍBARRO RODRÍGUEZ, Javier – “La actividad pesquera en las Cuatro villas de la costa durante la Edad Media”. Anales de Historia Medieval de la Europa Atlántica 2 (2014), pp. 44-46. 38 Tampoco estaba afectado por las sacas vedadas. SÁNCHEZ BENITO, José María – La Corona de Castilla y el comercio exterior: estudio del intervencionismo monárquico sobre los tráficos mercantiles en la Baja Edad Media. Madrid: Ciencia 3, 1993. 278 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL de las costas de Castilla (Galicia o Andalucía) o de Portugal. En la mayoría de los casos la llegada de ese producto no era directa, sino que se empleaban intermediarios, que llevaban el pescado desde la costa hacia localidades del interior, donde tenían almacenes y boticas y allí vendían sus productos a los encargados del abasto urbano39. Un ejemplo de este proceder se halla en los pescadores de las Cuatro villas cántabras, los cuales transportaban sus capturas por diversas rutas, hasta tierras de Palencia y Valladolid40. Allí, en localidades como Villalón o Dueñas, se encontraban con los obligados de las ciudades y les vendían pescado por quintales o arrobas41. Para el pescado procedente del sur, era Sevilla el gran centro de distribución, mientras que en la zona mediterránea, este papel era ejercido por los puertos de Murcia (Cartagena) o de Alicante42. El transporte del pescado de la costa a la meseta no era fácil. Por un lado, la orografía no ayudaba. Tanto la Cordillera Cantábrica como el Sistema Central eran dos obstáculos difíciles de atravesar, sobre todo en invierno. A ello había que sumar otras dificultades, como el cruce de los ríos o la carencia de infraestructuras adecuadas43. Por otro lado, las vías terrestres presentaban importantes deficiencias ya que la Corona no construyó una red viaria adecuada y la iniciativa quedó en manos de los municipios44. A pesar de sus esfuerzos, la conservación de los caminos era muy dispar, con tramos en buen estado y otros carentes de cualquier arreglo. El concejo de Madrid, por ejemplo, puso gran énfasis en adecentar las principales vías que comunicaban la villa y su tierra con otras ciudades. En 1512 se repararon los caminos que conducían a Burgos, Segovia y Toledo, localidades todas ellas que se hallaban en el camino real. De igual modo, fueron frecuentes las reparaciones de 39 Acerca de estos almacenes, ver: RGS, LEG,148506,50; Archivo de la Real Chancillería de Valladolid, Reales Ejecutorias, caja 21/14. Mis agradecimientos a Javier Añíbarro por facilitarme las referencias y texto de ambos documentos. 40 OLIVA HERRER, Hipólito Rafael – “Principales itinerarios y flujos de intercambio en la tierra de Campos palentina a fines del Medievo”. In CRIADO DE VAL, Manuel (dir.) – Caminería Hispánica. Actas del V Congreso Internacional. Caminería Histórica y Turística, Vol. II. Valencia: Ministerio de Fomento, 2000, pp. 923-940; AÑÍBARRO RODRÍGUEZ, Javier – “Pescadores, mulateros y mercaderes de los puertos cantábricos: la distribución del pescado irlandés en el norte de Castilla en la Edad Media”. In COSTA, Adelaide Millán da; ANDRADE, Amélia Aguiar; TENTE, Catarina (eds.) – O papel das pequenas cidades na construção da Europa Medieval. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, 2017, pp. 341-357. 41 LÓPEZ VILLALBA, José Miguel – “Política local y abastecimiento urbano: el pescado en Guadalajara en la Edad Media”. Espacio, Tiempo y Forma. Serie Historia Medieval (en adelante ETF) 25 (2007), pp. 233-234. 42 SÁNCHEZ QUIÑONES, Julián – Pesca y comercio…, pp. 281-283. 43 AÑÍBARRO RODRÍGUEZ, Javier – Las cuatro villas de la costa de la mar en la Edad Media. Conflictos jurisdiccionales y comerciales. Cantabria: Universidad de Cantabria, 2013, pp. 263-275. Sobre el Sistema Central, puede consultarse: GARCÍA GARCIAMARTÍN, Hugo Joaquín – Articulación jurisdiccional y dinámica socioeconómica de un espacio natural: la cuenca del Alberche (siglos XII-XV). Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 2002. Tesis doctoral, pp. 253-270. Consultada online el 20-11-2019 a las 19:23. Disponible en: https://eprints.ucm.es/4606/1/T26469.pdf. 44 RUIZ PILARES, Enrique José – “La política viaria municipal a finales de la Edad Media (1430-1530): el caso de Jerez de la Frontera”. Norba 25-26, (2012-2013), pp. 207-226. CÓRDOBA DE LA LLAVE, Ricardo – “Comunicaciones, transportes y albergues en el reino de Córdoba a finales de la Edad Media”. Historia. Instituciones. Documentos 22 (1995), pp. 87-118. LOS PROBLEMAS EN EL ABASTECIMIENTO DE PESCADO EN LA MESETA MERIDIONAL [...] 279 puentes en la villa45. No obstante, la mayoría de los caminos eran de tierra y no eran aptos para los carros, lo que obligaba al uso de mulas y otras bestias cuya capacidad de carga era mucho más limitada46. Las principales rutas se articulaban entorno al eje Valladolid-Toledo47. Por ejemplo, de Toledo se podía ir al norte, hacia Segovia y Valladolid, hacia el sur, camino de Andalucía o a Valencia. Madrid, por su parte, se hallaba en el eje Burgos-Toledo, pero además permitía la conexión con Alcalá de Henares y Guadalajara, en dirección a Aragón y hacia Cuenca y Valencia48. Los mercaderes de pescado debían hacer frente a otros riesgos en sus viajes. Con frecuencia, los merchantes eran asaltados por los vecinos de las villas o incluso por funcionarios reales o locales, que confiscaban sus mercancías49. Asimismo, las ciudades podían retenerles al pasar por su término y obligarles a vender allí el pescado que transportaban50. Además, existía el riesgo de que la mercancía se pudriese, acabando así con el negocio51. Por otro lado, los obligados debían hacer frente a los impuestos de cada zona, tales como sisas o alcabalas, lo que suponía un gasto añadido a su gestión. En Guadalajara en 1497 ya se aludió a este problema y por ello el concejo para compensarles, aumentó en una blanca el precio de sus productos52. Con todo, el riesgo más importante era que se redujese el flujo de pescado procedente de la costa. Esto se producía cuando el abasto de las localidades costeras se veía amenazado por el desequilibrio existente entre el pescado exportado y el destinado al consumo interno. Para evitarlo, villas como Castro Urdiales, trataban de garantizar la existencia de reservas de pescado suficientes en épocas de gran demanda, 45 PUÑAL FERNÁNDEZ, Tomás – “Los caminos medievales del Concejo de Madrid en la Edad Media”. In CRIADO DE VAL, Manuel (dir.) – Caminería Hispánica. Vol. I. Madrid: Aache, 1993, pp. 217-239. Acerca de los arreglos de estos caminos ver: MONTURIOL GONZALEZ, Ángeles – “Vías de comunicación y hacienda local en Madrid en el último tercio del siglo XV”. In SEGURA GRAÍÑO, Cristina (ed.) – Caminos y caminantes por las tierras del Madrid Medieval. Madrid: Ministerio de Obras Públicas, Transporte y Medio Ambiente, 1994, pp. 141-164. 46 El carro podía cargar hasta 1500 kilogramos. Una bestia 115-120 kilogramos. DOMINGO MENA, Salvador – Caminos burgaleses. Los caminos del norte (siglos XV y XVI). Vol. I. Burgos: Universidad de Burgos, 2015. Tesis Doctoral, pp. 691-745. CÓRDOBA DE LA LLAVE, Ricardo; HERNÁNDEZ ÍÑIGO, Pilar – “El utillaje de los transportes en la Andalucía del Descubrimiento”. HID 30, (2003), pp. 159-179. 47 Según los datos ya tardíos de Juan de Villuga. DIAGO HERNANDO, Máximo; LADERO QUESADA, Miguel Ángel – “Caminos y ciudades en España de la Edad Media al siglo XVIII”. EEM 32, (2009), pp. 347-382. 48 PUÑAL FERNÁNDEZ, Tomás – “El comercio madrileño en el entorno comercial y urbano de la Baja Edad Media”. Edad Media 15, (2014), pp. 115-133. 49 Estos actos podían afectar incluso a los proveedores de la casa real. SÁNCHEZ QUIÑONES, Julián, “El oficio de gallinero en la corte de los Reyes Católicos (1480-1504)”, Vínculos de Historia, 2, (2013), p. 241. 50 Así les ocurría a los merchantes cordobeses a su paso por el reino de Sevilla. MARTÍNEZ RELAÑO, Mª del Rosario – “El comercio de pescado en Córdoba durante la segunda mitad del siglo XV”. In PRADELLS NADAL Jesús; HINOJOSA MONTALVO, José (coords.) – 1490. En el umbral de la modernidad. El Mediterráneo europeo y las ciudades en el tránsito de los siglos XV-XVI. Vol. 2. Valencia: Generalidad Valenciana, 1994, pp. 567-577. 51 DOMINGO MENA, Salvador – Caminos burgaleses… pp. 683-689. 52 El coste de traer pescado desde Villalón a su tierra, era muy elevado: unos 12 maravedís por libra y lo vendían a 8 en Guadalajara. AHN-Secc. Nobleza-OSUNA-CAJA 1876, Doc. 109, fol. 67v. 280 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL separando una parte de las capturas para los vecinos. Además, se limitaba la venta de ciertas especies para evitar el peligro del desabastecimiento53. Sin embargo, creemos que no siempre se evitaba este problema, el cual podía afectar a la llegada de pescado marítimo al interior peninsular. La escasez de pescado documentada en Ciudad Real en 1503 o en Cuenca en 1506, podría tener su origen en las restricciones de estos concejos a la exportación de esta mercancía. Este problema se acentuaría en épocas de crisis (1502-1506), ya que el pescado marítimo se empleaba para obtener cereales. Al destinarse a este cometido, se agudizaría la escasez en las zonas del interior y provocaría una escasez parcial o total de este producto e importantes alzas en los precios54. 3. Los factores endógenos: El sistema de obligados y sus dificultades para el abasto del pescado. a) Los precios. Los precios eran establecidos por el concejo, cuyo objetivo era proveer a los vecinos de buenos productos a un importe asequible. Dichos importes, eran, en general, poco elásticos y sólo variaban en épocas concretas (Cuaresma), lo que favorecía la especulación y el acaparamiento55. Se insistía mucho en la calidad: “(…) [el pescado] que sea de calidad y sino que no se venda (…)”56 y en el precio que debía ser económico. Los regidores procuraron evitar las alzas desmesuradas poniendo un tope al precio del pescado, por bueno que éste fuese. En Guadalajara, en 1492, se limitó el precio de la sardina, de la mejor categoría, a 8 maravedís por libra57. Esta política rara vez se modificaba, aun cuando mediasen circunstancias de gravedad, lo que motivaba la protesta de los obligados por el bajo valor otorgado a sus productos. En 1506, Juan de Estrada pidió al concejo de Ciudad Real una solución ante las pérdidas sufridas por los bajos precios del pescado. Los responsables locales tras escuchar su queja, encargaron la búsqueda de otro proveedor al menor precio que 53 AÑÍBARRO RODRÍGUEZ, Javier – “Producción, abastecimiento y consumo en las villas medievales de la costa cantábrica: el caso de Castro Urdiales”. In ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz; SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús A (eds.) – Alimentar la ciudad en la Edad Media…, p. 376. 54 Sobre sus consecuencias en el mercado urbano véase: SÁNCHEZ BENITO, José María – “Coyuntura económica y política mercantil urbana (Cuenca, siglo XV)”. Edad Media 9 (2008), pp. 343-377; del mismo autor “Crisis de abastecimientos y administración concejil. Cuenca 1499-1509”. En la España Medieval (EEM) 14, (1991), pp. 275-306. CABAÑAS GONZÁLEZ, María Dolores – “Ciudad, mercado y municipio en Cuenca durante la Edad Media (siglo XV). EEM 7 (1985), pp. 1701-1728. 55 DE CASTRO MARTÍNEZ, Teresa – El abastecimiento alimentario…, p. 144. SÁNCHEZ BENITO, José María – “Coyuntura económica...”, p. 370. 56 AMCU, Legajo 214, Expediente 2, fol. 142v. 57 AHN-Secc. Nobleza-OSUNA-CAJA 1876, Doc. 109, fol. 22v. LOS PROBLEMAS EN EL ABASTECIMIENTO DE PESCADO EN LA MESETA MERIDIONAL [...] 281 se pudiese58. El bienestar del obligado era un asunto secundario comparado con el abastecimiento de la ciudad y evitar desórdenes por la falta de alimentos59. Con todo, el descontento por los precios existía y este fue un motivo de tensión entre los comerciantes y las ciudades60. Los precios del pescado se fijaban según unos factores concretos: 1) Tamaño y peso 2) Calidad y estimación 3) Procedencia 4) Época en la que se vende 5) Tasas aplicadas sobre la mercancía 6) Abundancia o escasez 7) Datos relativos a otras localidades 8) Presencia de la Corte en la ciudad61. Algunos de ellos eran claves para determinar los precios, como el tamaño o la calidad, pero también tenían su importancia otros aspectos de tipo temporal, como la presencia de la Corte en la ciudad o la Cuaresma. Fijar el importe adecuado no era fácil. Había pescados que llegaban con poca frecuencia y no se sabía cómo tasarlos, por lo que era necesario averiguar su precio en otra localidad y tomarlo como referencia62. Asimismo, era poco frecuente que los regidores pidiesen consejo a los pescadores u obligados para que aconsejaran en esta materia. En Cuenca no se solicitó su parecer hasta 1482 para poner precio al pescado de río63. Además, al predominar las consideraciones políticas sobre las comerciales, no se tenían en cuenta los intereses de los mercaderes que debían contentarse con precios bajos y a veces casi fijos. En Madrid, se mantenían los precios de un año para otro, desincentivando a los posibles proveedores64. Las reacciones ante esta política eran inmediatas: el abandono de la puja por los mercaderes, con lo que el concejo tenía que volver a rematar la renta y se retrasaba la llegada del pescado a la ciudad65. Otras veces, el obligado se negaba a vender pescado, aun cuando la renta ya estuviese contratada. En ese caso, el concejo respondía con la requisa de sus bienes o lo encarcelaba por no cumplir lo pactado66. Todo ello no evitaba la carestía temporal de pescado, que podía ser general o que afectaba a unas pocas especies. En Cuenca, en 1499, la falta de pescado fue generalizada, mientras que en Ciudad Real, en 1503, se aludía tan sólo a la falta de pescado cecial y galiziano. En estos casos, cabe destacar que ante la escasez, el concejo no ofreció mejores condiciones ni mejores precios a los obligados, sino que en Cuenca se mantuvieron AMCR-Actas del Concejo de 1506, pp. 380 y 382. ESCRIBANO ABAD, José Luis – “La regulación del mercado alimentario: el caso de la Guadalajara bajomedieval”. Espacio, Tiempo y Forma. Serie Historia Medieval (en adelante ETF) 21 (2008), p. 114. 60 El 74% de las pujas posteriores al primer remate tenían como objetivo conseguir una mejora de los precios. ESCRIBANO ABAD, José Luis – Abastecer a la ciudad…, p. 41. 61 SÁNCHEZ QUIÑONES, Julián – Pesca y comercio…, pp. 296-306. GUERRERO NAVARRETE, Yolanda; SÁNCHEZ BENITO, José María – Cuenca en la Baja Edad Media…, pp. 199-200. 62 El atún en Guadalajara. ESCRIBANO ABAD, José Luis – Abastecer a la ciudad…, pp. 149-151. 63 AMCU-Legajo 203-Expediente 1 (Actas del Concejo de 1481-1482), fols. 158v-159v. 64 Es el caso del pulpo y el tollo en 1490. 65 En Albacete en 1512, Juan Cortés se retiró de la puja porque no le respetaron los precios iniciales. AHPA- Secc. Municipios-Caja 92 (Libro de Actas de Albacete 1512-1514), fols. 2r-2v. 66 SÁNCHEZ QUIÑONES, Julián – Pesca y comercio…, p. 295. 58 59 282 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL los precios iniciales67 y en Ciudad Real los regidores reclamaron una bajada de los mismos porque los consideraban caros68. Todo ello prolongaba el problema, hasta que se lograba un acuerdo con el futuro obligado. El incremento de los precios en estas situaciones era raro y sólo se documenta cuando la carestía es generalizada en todo el reino. Durante la crisis de 1502-1506, que afectó a toda Castilla, en Cuenca se registraron elevadas alzas en el importe del congrio (28 maravedís), pero también en el del pescado remojado, un producto consumido por las clases populares69. Es posible que dicha localidad se viera afectada al reducirse el flujo de pescado marítimo hacia el interior, lo que incrementó los precios y agravó su situación70. El análisis de los precios del pescado en la región es muy interesante. Aunque en algunas ciudades (Ciudad Real) los datos son escasos y hay un bajo índice de coincidencia entre las especies vendidas en las localidades analizadas, es posible esbozar una hipótesis sobre la evolución de los precios del pescado desde la segunda mitad del siglo XV. En las tablas al final de este trabajo, ofrecemos un muestrario de las especies más representativas con sus importes. En primer lugar, en algunas especies como el pescado cecial (Tab. 1), los precios eran más bajos en el área de Madrid y Guadalajara, (7-9 maravedís), mientras que en Ciudad Real, Albacete y Cuenca, estos eran más elevados (11-14 maravedís). Igual ocurría con otros productos como el pulpo (Tab. 4). No siempre se registraron diferencias tan marcadas, si bien los precios seguían siendo más altos en la cuenca del Guadiana o en Cuenca (Tab. 2, pescado remojado). En esta ciudad, algunos productos como el congrio (Tab. 3) se dispararon en su cotización. Las disparidades en los precios fueron menores en los peces fluviales. Aunque las referencias para estos son muy escasas y casi centradas en Cuenca, los datos disponibles indican valores muy parecidos. En la década de los 80-90 del siglo XV, los peces tienen casi el mismo valor en Cuenca, Guadalajara y Madrid (Tab. 5). Caso idéntico es el de los barbos (Tab. 6). Hubo especies (sardinas, Tab. 7; peces pequeños, Tab. 9) que apenas incrementaron su importe o que incluso perdieron valor (pulpo, Tab. 4). Sin embargo, los pescados más apreciados (congrio, truchas) crecieron notablemente en el período estudiado (Tab. 3 y 8). Por otro lado, estos importes solían ser rígidos, y sólo variaban en épocas de gran demanda (Cuaresma) o en ocasiones excepcionales (crisis generalizada). Si se compara con otras regiones, como la meseta septentrional o el área riojana, suelen coincidir las especies más valoradas (trucha), pero la evolución de un mismo pez difería según los lugares. En Burgos las truchas vieron crecer su precio, pero en Haro su importe se mantuvo estable. E incluso dentro de una ciudad, la misma especie podía sufrir AMCU–Legajo 214 –Expediente 1 (Actas del Concejo 1499), fols. 25v, 26v, 27r, 48r AMCR-Actas del Concejo 1503, pp. 66-67. 69 AMCU-Legajo 221-Expediente 1 (Actas del Concejo 1505-1506), fols. 25v, 26r, 30r, 62r, 137r, 139r. 70 SÁNCHEZ BENITO, José María – “Crisis de abastecimientos”. EEM 14 (1991), pp. 275-306. Agradecemos al profesor Sánchez Benito sus indicaciones sobre el impacto de la crisis en Cuenca. 67 68 LOS PROBLEMAS EN EL ABASTECIMIENTO DE PESCADO EN LA MESETA MERIDIONAL [...] 283 sucesivos vaivenes en su tasación71. El pescado por tanto tenía su propio ritmo, estaba sujeto a escasas oscilaciones y sus precios oscilaron a la baja durante el período analizado72. b) Ligas entre comerciantes. El cargo de obligado era un puesto al alcance de muy pocos. Ya se indicó que debían cumplir con las rígidas obligaciones del contrato en cuestión de fechas o de las elevadas fianzas. A esto había que añadir, el coste de traer el pescado desde la costa, disponer de un sistema de transporte eficaz, pagar al personal a su servicio (los cortadores, recueros) y vigilar a sus empleados para que no cometiesen infracciones73. Se necesitaba, por tanto, infraestructura, personal y contactos en el exterior que sobrepasaban las posibilidades de los pequeños comerciantes locales. La imagen del obligado modelo sería la de Fernando de Torrijos, que desempeñó el cargo en Talavera de la Reina: era rico, tenía 10 acémilas, iba a los puertos a comprar y además entendía en las carnicerías74. En consecuencia, el número de obligados en las villas era muy reducido y se limitaba a unas cuantas personas o familias que dominaban el cargo. Alonso de Torres en Madrid, los Ximones en Talavera o Pedro Logroño en Guadalajara son ejemplos bien ilustrativos. Además, no sólo controlaban el puesto de obligado, sino que copaban otros cargos ligados a esta (fiador). Por ejemplo, los Franco en Madrid, al pujar por el pescado solían ubicar en dichos puestos a sus parientes y socios. Igualmente, cuando sus socios pujaban a esta renta, no era raro hallar a un miembro de esta familia a su servicio. Así se tejía una tela de intereses y favores que permitía a un reducido grupo de personas controlar esta y otras rentas (carnicería). Su control se extendía, no sólo al remate de la renta, sino también a las pujas previas. La manera de actuar era la siguiente: se presentaba una puja por un personaje cercano al interesado y si obtenía la renta, en cuanto podía, se la traspasaba. A veces, los socios del futuro obligado realizaban pujas simultáneas para presionar al concejo y mejorar las condiciones del remate final. Tal extremo fue denunciado por el concejo madrileño en 1497, donde se indicó la existencia de ligas entre los proveedores, que pujaban no para sí, sino para otros75. De ese modo, se reducía la posible competencia 71 IZQUIERDO BENITO, Ricardo – Precios y salarios en Toledo durante el siglo XV (1400-1475). Toledo: Caja de Ahorro Provincial, 1983, pp. 127-129. 72 GUERRERO NAVARRETE, Yolanda – “Consumo y comercialización de pescado en las ciudades castellanas de la Baja Edad Media”. In La pesca en la Edad Media…, Vol. I, pp. 250-251. 73 Sobre los obligados en Madrid y Guadalajara: SÁNCHEZ QUIÑONES, Julián – Pesca y comercio…, pp. 266-272. 74 LOZANO CASTELLANOS, Alicia – Comercio y finanzas…, pp. 129-130. 75 Se citan culpables como a la familia Franco, Alonso de Torres o Pedro de Heredia. SÁNCHEZ QUIÑONES, Julián – Pesca y comercio…, pp. 234-238 y 266-270. 284 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL y permitía presionar al concejo. Ese mismo año, estos mercaderes se negaron a proveer de pescado a la villa y hubo que buscar gente que se hiciera cargo de él. Dichas estrategias eran idénticas en otros municipios. En Talavera de la Reina, las rentas de la carne y del pescado estaban controladas por los Ximones y la familia Toledano. En 1511 se escogió como obligado del pescado a Fernando de Torrijos porque era rico, pero también porque era forastero y no formaba parte de los mercaderes locales76. c) La relación entre el poder municipal y el comercio local. La posición de los obligados se veía reforzada por sus vínculos con los regidores locales. Esta relación se asentaba en base a los derechos cobrados por los funcionarios locales sobre los alimentos vendidos en el mercado y por la participación de los regidores en los negocios del abasto municipal. Respecto al cobro de los derechos, estos eran percibidos por vigilar el funcionamiento del mercado. En Madrid eran los fieles quienes ejercían esta labor y entre otras tareas, controlaban las pesas y medidas o vigilaban a los regatones. Cobraban sus derechos una vez al año de cada mercader foráneo que venía a la villa y de cada regatón. Sin embargo, los abusos eran frecuentes. En 1491, al rehacer el arancel de los fieles, quedaron registradas las tropelías que cometían: percepción de mayores derechos de los establecidos, avenencias con los vecinos al comprobar sus pesas, cobrar derechos a los criados de los mercaderes o gravar a los vecinos en tiempos de feria. Estos desmanes eran graves porque controlaban el tráfico de numerosos productos77. No obstante, estas tasas eran impopulares. En Guadalajara, se abrió un debate sobre estos derechos y los abusos cometidos, que eran frecuentes. La discusión es interesantísima al ser los propios regidores quienes cuestionaron la existencia de estos derechos. El regidor Diego Guzmán afirmó que no cobraría estos derechos, para “(…) mayor abundamiento de la ciudad (…)” y porque de ese modo se vería la limpieza de los regidores y que no usaban del cargo por mero interés. Otro regidor, Francisco, indicó que las posturas se llevaban injustamente y decidió no aceptarlas nunca más. Esta decisión fue común al resto de regidores, con la amenaza de fuertes penas para quien lo incumpliese78. La participación en el abasto urbano fue, sobre todo, un negocio de los regidores. En Cuenca los dirigentes urbanos hacían pagos a los regatones o pescaderos79. Dichos “pagos” eran recíprocos y en Madrid, en 1488, se denunció que los regidores recibían LOZANO CASTELLANOS, Alicia – Comercio y finanzas…, pp. 126-130. SÁNCHEZ QUIÑONES, Julián – Pesca y comercio…, pp. 419-420. 78 SÁNCHEZ QUIÑONES, Julián – Pesca y comercio…, pp. 300-301. 79 SÁNCHEZ BENITO, José María – “Coyuntura económica...”, p. 364. Sobre esta cuestión véase: JARA FUENTE, José Antonio – Concejo, poder y élites. La clase dominante de Cuenca en el siglo XV. Madrid: CSIC, 2000, pp. 341-345. 76 77 LOS PROBLEMAS EN EL ABASTECIMIENTO DE PESCADO EN LA MESETA MERIDIONAL [...] 285 dádivas de los carniceros y pescadores, además de tener parte en el negocio80. Esto podía ocasionar situaciones embarazosas, donde los oscuros manejos por hacerse con la pescadería del concejo quedaban al descubierto. En 1511, durante la subasta de la pescadería de Buitrago, territorio del duque del Infantado, uno de los candidatos pujó por la noche y denunció que otros mercaderes presentaban su puja directamente al duque en Guadalajara. Y en 1514, dos de los postores recurrieron a un regidor local para que fuese su fiador81. Estas maniobras no eran infrecuentes y causaban todo tipo de problemas, desde protestas por la ejecución del remate, hasta dilaciones en la confirmación del arrendamiento, caso de Guadalajara en 150082. Incluso los proveedores podían abandonar al entender que el proceso no era todo lo limpio que debería, causando así interrupciones en el abasto de esta mercancía83. d) La reventa. La reventa en sí fue un fenómeno que existió durante toda la Edad Media y que, frente a la visión, generalmente negativa que se tenía de ella, ayudaba también al intercambio de alimentos por lo que los regidores intentaron canalizar sus actividades84. Sólo así se entiende que en ocasiones se tuviese en cuenta a los regatones para poner el precio del pescado85. No obstante, su mala fama pervivía, de ahí que los concejos procurasen limitar al máximo su impacto en el comercio local. Dicho objetivo era complejo, puesto que la venta a regate podía ser ejercida por cualquier individuo. El amplio beneficio que se podía conseguir compensaba de sobra el riesgo de ser capturado por las autoridades y ser sometido a una fuerte multa y castigo. En el caso del pescado, ciertos productos de gran valor añadido (salmón), eran empleados por los revendedores para obtener un beneficio fácil y rápido. En Guadalajara, este tráfico fue especialmente intenso y en él se vieron implicados incluso funcionarios locales. En 1492, el mayordomo de la ciudad, García y su cómplice, un tal Francisco, fueron arrestados por adquirir salmones para venderlos a regate. Y en 1498, se prohibió vender besugos a regate, porque los despenseros de la nobleza o sus criados robaban este manjar de las despensas y lo revendían en el mercado86. El perjuicio de dicha actividad era mayor en épocas como la Cuaresma o Pascua, ya que productos AVM–SECRETARÍA 2- 412 -42 En Medina del Campo también se documentan pagos a los regidores. OLIVA HERRER, Hipólito Rafael – Abastecimiento local… pp. 26-28. 81 Sobre estos sistemas ver: SÁNCHEZ QUIÑONES, Julián – Pesca y comercio…, pp. 336-338. 82 BARBADILLO ALONSO, Javier; GUTIÉRREZ DUBLA, Natividad – “El debate del abasto”. In IV Encuentro de Historiadores…, pp. 93-103. 83 Juan Cortés abandonó la postura del pescado por esta causa. AHP-Albacete-Secc. Municipios Caja 92 (Libro de actas de Albacete, 1512 -1514), fol. 2v. 84 SÁNCHEZ BENITO, José María – “Coyuntura económica...”, pp. 363-366. 85 En Cuenca en 1485. AMCU-Expediente 207-Expediente 2 (Actas del Concejo de 1485-1486), fols. 69v-70r. 86 AHN-Secc. Nobleza-OSUNA-C. 1876-Doc. 109, fols. 30 r y 159v. 80 286 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL básicos como la sardina, también fueron objeto de este tráfico y un alza excesiva en su precio podía hacer peligrar el abasto a las clases sociales más bajas. De ahí que los concejos prohibiesen la compra a los revendedores hasta que los vecinos se hubieren abastecido o elevar los precios de ciertos productos por encima de su tasación inicial87. Sin embargo, estas medidas fueron poco eficaces y al final de la Edad Media el problema seguía en todo su vigor. 5. Conclusiones. La provisión de pescado no era una tarea fácil para los habitantes de las ciudades, ya que en ello influían los factores exógenos (decadencia de las pesquerías) y endógenos (reventa), propios del sistema. Respecto a los primeros, cabe señalar que el pescado fluvial sólo cubría una parte de la demanda y a finales del período medieval parece evidente el creciente deterioro de las pesquerías fluviales, lo que hacía indispensable importar pescado marítimo. No obstante, el acarreo desde la costa se enfrentaba a diversos problemas (asaltos) y además este producto era un bien cotizado ya que las villas costeras lo usaban para intercambiarlo por trigo. ¿Es posible que esto produjera una reducción en las exportaciones hacia el interior peninsular? Es una pregunta que hay que responder. Por su parte, el sistema de obligados contribuía a dificultar esta tarea. La política de precios era rígida y casi estática, poco atractiva para los comerciantes. Estos, en general, apenas crecieron y tan sólo algunos artículos (congrio) conocieron un significativo aumento en su importe. En el caso de los pescados de consumo más popular, se mantuvo su coste para hacerlos accesibles al común de la población. Asimismo, la conexión de los precios con las carestías es muy interesante. Causa o un elemento más de las mismas, tan sólo en situaciones de crisis general en el reino (1502-1506), los precios se disparaban conforme a la gravedad de la misma. Las ligas entre comerciantes eran una consecuencia del sistema. Los requisitos para ser obligado eran inalcanzables para muchos y las alianzas entre los comerciantes les permitían el control de las rentas y forzar al concejo a aceptar sus demandas. Este “chantaje”, se veía facilitado por la alianza entre los obligados y el poder local que participaba en el abasto urbano y aceptaba sobornos de los mercaderes provocando serios problemas en el funcionamiento del mercado. Finalmente, la reventa suponía otro quebradero de cabeza. La venta de ciertos productos de gran valor era un desafío a las normas concejiles. Pero si se trataba de productos básicos, el daño podía ser grave ya que comprometía el abasto de las clases más humildes, sobre todo en épocas como la Cuaresma y podía provocar alzas de los precios y escasez de estos productos. 87 AMCR-Actas del Concejo de 1506, p. 372. AMCU-Legajo 193-Expediente 3 (Actas del Concejo 14551456), fols. 54v-57v. LOS PROBLEMAS EN EL ABASTECIMIENTO DE PESCADO EN LA MESETA MERIDIONAL [...] 287 ANEXO I Precios del pescado en la Meseta Meridional Castellana en maravedís (1450-1515) *Indica el precio mayor y menor alcanzado por ese producto durante el período indicado Pescado cecial Madrid Cuenca 1450-1460 Guadalajara C. Real Albacete 6 mrs 1460-1470 4 mrs y 4 cornados 1470-1480 8 mrs 14 mrs 1480-1490 7-8 mrs* 11-12 mrs* 1490-1500 7 mrs y medio-8 mrs* 10-11 mrs* 7-8 mrs* 1500-1510 7 mrs y medio 13-14 mrs* 8-9 mrs* 11 mrs y medio 1510-1515 12 mrs Tabla 1 – Pescado cecial. Pescado remojado Cuenca 1450-1460 4 mrs Guadalajara C. Real Albacete 1460-1470 1470-1480 7-8 mrs* 9 mrs 1480-1490 8-9 mrs 8 mrs 1490-1500 7-8 mrs* 7 mrs y medio-8 mrs y medio* 1500-1510 8-10 mrs* 7 mrs y medio-8 mrs* 7 mrs y medio-8 mrs y medio* 1510-1515 9 mrs Tabla 2 – Pescado remojado. 288 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Madrid Congrio Cuenca 1450-1460 8-9 mrs* 1460-1470 13 mrs 1470-1480 20 mrs Guadalajara 1480-1490 17 maravedís 18-19 mrs* 1490-1500 20 maravedís 19-20 mrs* 1500-1510 18 mrs y medio 23-28 mrs* Tabla 3 – Congrio. Pulpo Madrid Guadalajara 1480-1490 5 -6 mrs* 7 mrs 1490-1500 6 mrs* 6 mrs y medio-7 mrs* 1500-1510 5 mrs y medio 6 mrs Tabla 4 – Pulpo. Peces Madrid Cuenca 1450-1460 4 -5 mrs* 1460-1470 6 mrs 1470-1480 7 mrs 1480-1490 8 mrs 8-9 mrs* 1490-1500 7 mrs Tabla 5 – Peces. Guadalajara 7 -8 mrs* LOS PROBLEMAS EN EL ABASTECIMIENTO DE PESCADO EN LA MESETA MERIDIONAL [...] Barbos Cuenca 1450-1460 4 mrs 289 Guadalajara 1460-1470 1470-1480 1480-1490 10 mrs 1490-1500 9-12 mrs* 9-10 mrs* Tabla 6 – Barbos. Sardinas Madrid 1460-1470 Cuenca Guadalajara Chinchilla 7 -8 mrs y medio* 6 mrs Albacete 5-6 mrs* 1470-1480 1480-1490 1490-1500 6 mrs y medio-7 mrs* 8 mrs 1500-1510 6 mrs y medio 1510-1515 Tabla 7 – Sardinas. Truchas grandes Cuenca 1450-1460 8 mrs 1460-1470 12 mrs 1470-1480 15 mrs 1480-1490 17 mrs 1490-1500 20 mrs Tabla 8 – Truchas grandes. 290 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Peces menores Cuenca 1460-1470 4 mrs 1470-1480 6 mrs 1480-1490 6-7 mrs 1490-1500 7 mrs 1490-1500 20 mrs Tabla 9 – Peces menores. LOS PROBLEMAS EN EL ABASTECIMIENTO DE PESCADO EN LA MESETA MERIDIONAL [...] 291 292 PARTE III Ao Gosto da Cidade: Matérias-primas e Produtos To the Taste of the City: Raw Materials and Products Provision in Medieval Rome: about building activities. Nicoletta Giannini1 Abstract In the history of Italian cities the topic of provision is quite traditional especially in regards to food and water provision - and is largely studied, mostly by historians. On the other hand, the urban provision of building materials is a less considered research topic. Despite the fact that many archaeology projects have examined in the last years the urban setting through the methods of vertical archaeology, it is right to stress that there have been very few reflections on the production of building material and the effects of this production on the economic, political and social dynamics tied to the provision of raw materials to meet the needs of an urban community. The present paper offers therefore some reflections on this aspect of the city of Rome, object in the last years of extensive investigations in vertical archaeology and the archaeology of production. By highlighting certain features of building activities and looking at archaeological data related to building activities, I will suggest their potential as socioeconomic markers in studying the history of the city. Keywords Architecture; Medieval Rome; Archaeology; Production activities; Building archaeology. 1 Università di Roma Tor Vergata. gnnnlt01@uniroma2.it. This work was partially) supported by the project Petrifying Wealth: “The Southern European Shift to Masonry as Collective Investment in Identity, c.1050-1300”. This project has received funding from the European Research Council (ERC) under the European Union’s Horizon 2020 research and innovation programme (grant agreement n° 695515”). 296 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL L’approvvigionamento della città di Roma nel Medioevo. Il punto di vista dell’edilizia. Abstract Nella storia delle città italiane la questione dell’approvvigionamento è un tema piuttosto classico, specialmente dal punto di vista alimentare e idrico, e ampiamente indagato, soprattutto da parte degli storici. Meno battuto è invece come argomento di ricerca l’approvvigionamento urbano visto dal punto di vista dell’edilizia. Benché infatti molti in archeologia siano negli ultimi anni i progetti che hanno affrontato l’assetto edilizio della città secondo i metodi propri dell’archeologia dell’architettura, si ritiene che poche siano state le riflessioni in merito alla produzione del materiale edilizio e al significato che tale produzione ha nelle dinamiche economiche, politiche sociali legate al rifornimento di materie prime volte a soddisfare le esigenze di una comunità urbana. Con questo contributo si vuole quindi proporre alcune riflessioni in merito a questo aspetto per la città di Roma, oggetto negli ultimi anni di approfondite indagine di archeologia della produzione e dell’architettura. Ponendo quindi in evidenza alcuni aspetti della produzione architettonica, si cercherà alla luce dei dati archeologici legati all’edilizia, di porre in attenzione il potenziale di indicatori socio-economici che tali informazioni assumono nella storia della città, Parole chiave Architettura; Roma Medievale; Archeologia; Attività produttive; Archeologia dell’Architettura. Foreword. In the history of Italian cities the topic of provision is quite traditional – especially in regards to food and water provision2 – and is largely studied, mostly by historians. On the other hand, the urban provision of building materials is a less considered research topic. Despite the fact that many archaeology projects have examined in the last years the urban setting through the methods of vertical archaeology, it is right to 2 See for example MAGNI, Stefano – “Politica degli approvvigionamenti e controllo del commercio dei cereali nell’italia dei comuni nel XIII e XIV secolo: alcune questioni preliminari”. Mélanges de l’Ecole française de Rome. Moyen Âge 127 (2015). Available in http://journals.openedition.org/mefrm/2473; DE FRANCESCO, Daniela – Il Papato e l’approvvigionamento idrico e alimentare di Roma tra la tarda antichità e l’alto medioevo, Roma: Quasar, 2018. PROVISION IN MEDIEVAL ROME: ABOUT BUILDING ACTIVITIES 297 stress that there have been very few reflections on the production of building material and the effects of this production on the economic, political and social dynamics tied to the provision of raw materials to meet the needs of an urban community. The present paper offers therefore some reflections on this aspect of the city of Rome, object in the last years of extensive investigations in vertical archaeology and the archaeology of production. By highlighting certain features of building activities and looking at archaeological data related to building activities, I will suggest their potential as socioeconomic markers in studying the history of the city. An important role for these considerations is played by the architecture and therefore the urban setting. The former constitutes an important marker of economic development, being the result of a series of production processes but also of an investment. About the latter – the urban setting – buildings often become a relevant point of urban reference – think for instance of churches, palaces and houses of rulers – and this urban setting is also frequently the result of projects modifying and redesigning the city. In addition, by considering under a topographic point of view the places of building activity, these show relevant patterns in the urban development and in the choices made during the growth of the city. One more extremely interesting factor consists in all the information found on buildings “in negative”, if one may say so, that is all the organized or not activities of demolition and recycling of building material, characterizing several parts of the city between the fifth and fifteenth centuries, that must necessarily be connected to the systematic reuse of ancient building material and can be actually seen in all the techniques adopted in Rome in the chronological period considered3. Introduction. In the debate on the opposition between parasite and productive cities, it is known 3 For Roman building techniques reusing ancient building material there is a wide bibliography available and only some major studies will be referenced: AVAGNINA, Maria Elisa; GARIBALDI, Vittoria; SALTERINI, Claudia – “Le strutture murarie degli edifici religiosi di Roma nel XII secolo”. Rivista dell’istituto Nazionale d’Archeologia e Storia dell’arte 23/24 (1976), pp. 173-255; BARCLAY LLOYD, joan – “Masonry Techniques in Medieval Rome, c.1080-c.1300”. PBSR LIII (1985), pp. 225-277; ESPOSITO, Daniela – Tecniche costruttive murarie medievali. Murature a Tufelli in area romana. Roma: L’Erma di Bretschneider, 1997; CECCHELLI, Margherita – Materiali e tecniche dell’edilizia paleocristiana a Roma. Roma: De Luca Editori d’Arte, 2001; MENEGHINI, Roberto; SANTANGELI VALENZANI, Riccardo – Roma nell’alto medioevo. Topografia e urbanistica della città dal V al X secolo. Roma: Istituto Poligrafico e Zecca dello Stato, 2004; BARELLI, Lia et alii (eds.) – “Lettura storico-critica di una muratura altomedievale: l’opus quadratum a Roma nei secoli VIII e IX”. In FIORANI, Donatella; ESPOSITO, Daniela – Tecniche costruttive e dell’edilizia storica. Conoscere per conservare. Roma: Viella, 2005, pp. 59-77. 298 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL that Rome has been used for long as an example of a parasite city4. This vision has been completely overturned for the Middle Ages after the “extraordinary research conducted also thanks to a systematic collection of data5” in Archeologia della produzione a Roma (secoli V-XV)6. Without going too much into details that are available in specific bibliography7,this analysis allowed for the first time to include Rome within that complex debate on the archaeology of production activities and the different aspects of research that are connected to it. In order to obtain this goal, a thorough survey was conducted on all old and new archaeological data, often rich of information on production activities. This type of data had never been read under the point of view of a city system. The systematic collection of all this data was therefore started throughout bibliographic research and the consequent classification of all data found. The information was then inserted into the database and in a GIS system of the city of Rome and its closest suburban area, containing about 600 markers of production activities. This survey has allowed then, as it will be seen through this paper, and still allows to analyze phenomena of production activities with better accuracy, to quantify them in the long-term and to study them in their context. The opportunity to also look at the topographic connotation, both in the short and long term, allows to consider the complexity, distribution and quantity of the different phenomena, all within the growing and development dynamics of the city between fifth and fifteenth centuries8. 4 The bibliography on these aspects of ancient economy is quite extensive, for example see FINLEY, Moses Israel – “The ancient city: From Fustel de Coulanges to Max Weber and Beyond”. In Comparative Studies in Society and History 19,3 (1977), pp. 305-327; SOMBART, Werner – Der moderne Kapitalismus. Historisch – systematische Darstellung des gesateuropaischen Wirtschafslebens von seinen Anfangen bis zue Gegenwart. Munich: Duncker & Humblot, 1916; WEBER, Max – Economia e Società. La città. In L’economia, gli ordinamenti e i poteri sociali. Tubingen: Donzelli, 2003; TOYNBEE, Arnold – La città aggressiva. Roma, 1972; Leveau, Philippe – La ville antique, “ville de consommation”? Parasitisme social et economie antique. Etudes rurale, LXXXIX-XCI, pp. 275-283; GOUDINEAU, Christian – “Les villes de la paix romaine”. In DUBY, Georges – Historie de la France urbaine, t.1. Paris: Seuil, 1980, pp. 365-381; PETRILLO, Agostino – Max Weber e la sociologia della città. Milano: Franco Angeli, 2011. 5 Volpe, Giuliano – “La città che produce: alcuni spunti di riflessione”. In CAMINNECI, Valentina; PARELLO, Maria Concetta; RIZZO, Maria Serena – La città che produce. Archeologia della produzione negli Spazi Urbani, Atti delle Giornate Gregoriane, X edizione (10-16 dicembre 2016). Bari: Edipuglia, p. 7. 6 MOLINARI, Alessandra; SANTANGELI VALENZANI, Riccardo; SPERA, Lucrezia – L’archeologia della produzione a Roma (secoli V-XV). Atti del Convegno Internazionale di Studi. Roma 27-29 Marzo 2014. Roma: École Française de Rome, 2015. 7 On the project structure see SPERA, Lucrezia; PALOMBI, Cinzia – “La banca dati e il Gis degli indicatori di produzione. Note topografiche e prime riflessioni di sintesi”. In MOLINARI, Alessandra; SANTANGELI VALENZANI, Riccardo; SPERA, Lucrezia – L’archeologia della produzione a Roma…, pp. 9-72; GIANNINI, Nicoletta – Il Gis e le Attività produttive a Roma in età medievale. Una questione di metodo tra tendenze e fatti. In MOLINARI, Alessandra; SANTANGELI VALENZANI, Riccardo; SPERA, Lucrezia – L’archeologia della produzione a Roma…, pp.73-95. 8 The choice of analyzing on the long term the economy of Rome throughout its production activities allowed to better identify the phases of change and the transitions, the importance of social and institutional transformations for the evolution of economy itself. After all, the final goal of the research was the historical long-term reconstruction of the production processes of the city and of its miles IV-V suburbs, in order to better understand the interactions between urban and suburban areas. PROVISION IN MEDIEVAL ROME: ABOUT BUILDING ACTIVITIES 299 The availability of such an amount of data on production activities for an urban context as Rome also allows to read them in relation to the urban development. Looking at the information on building activities in the time range between the fifth and the fifteenth centuries not only gives the opportunity to study the “geography of production”, but also the growing and development phases of the city, especially because about 50% of the information contained in the database regards markers of building activities (Fig. 1). This evidence ranges from the identification of quarry sites, to spoliation pits for the recovery and reuse of building materials, to lime kilns, to heaps of materials always tied to calcination activities, to evidence on site connected to larger or smaller worksite activities of both building and dismantling; all extremely interesting data in detail, even more if we try to interpret them in a diachronic way or in relation of what has survived of Roman medieval buildings. If on one hand it is interesting to trace a diachronic summary highlighting how the building data available defined significantly some important growth goals for the city – a topic already discussed in previous available studies9 –, on the other hand it is just as interesting to pay attention and reflect again on some aspects of building activity particularly tied to provision, where reuse plays a relevant role. To reuse and recycle. Rome is a city that was characterized for the entire medieval period by continuous architectural reuse, intending not only the use of spolia in the construction of buildings, but also as an integral part of all building manners from Late Antiquity to the Middle Ages10. In all identifiable building techniques, it is possible in fact to recognize the continuous seek for the reuse of ancient building material: bricks, blocks, columns, beams and also the production of lime, an actual recycling activity of building materials with a chemical-physical transformation of raw materials. This is an extremely interesting feature since the recycling processes require high technical expertise not only for the production of new material (creation of fixed installations, competences on combustibles and the different phases of the production cycle)11, but also for the ways to salvage material, often systematic, through actual dismantling worksites. One can easily understand how these sites constitute real treasures of information on provision activities. In many cases the salvage of building materials 9 GIANNINI, Nicoletta – “Building in medieval Rome. New information on brick building techniques in Rome between the 8th and 15th centuries”. Rodis, Journal of Medieval and Post Medieval Archaeology (2019), b.p. 10 See for example among the large bibliography the work by BERNARD, Jean-François, et alii (eds.) – Il reimpiego in architettura: recupero, trasformazione, uso. Roma: École Française de Rome, 2008. 11 On the distinction between reuse and recycling see MUNRO, Beth – “Recycling, demand for materials and landownership at villas in Italy and the western provinces in Late Antiquity”. Journal of Roman Archaeology 25, 1 (2012), pp. 351-370. 300 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL should be seen in relation to the installation of actual systematic dismantling sites, often characterized by a certain degree of technology12. Think for instance of the worksite for the salvage of bricks from the Caracalla baths, or the one for the dismantling of the Mausoleum of Marco Nonio Macrino, where even a system for the lifting of blocks was found13. Both cases underline a certain degree of organization and expertise in construction site activities, bringing us to a reflection on the type of control and management that authorities could have on this kind of activities. Many of the archaeological markers collected in Rome14 indicate how it is possible to recognize an always greater and more documented reuse of material, tied in many cases to reworking activities. This increase is obviously connected to the abandonment of many buildings and to the considerable changes of use that modified the urban setting and that often prove their conversion into small or medium size worksites. The changes in use often document the reuse of especially public buildings. On one side this highlights a certain privatization of public areas, on the other side they recall since Late Antiquity the presence of a patron with a promotional function and controlling activities. One other element that emerged was the fact that sporadic structures are sided by actual dismantling worksites, implying a considerable organization and programming of the same worksites. A large part of data is in fact related to the recycling of the main building materials, as seen from the several tracks of dismantling and recover both in the urban and suburban contexts. These activities are perfectly in line with what was found both in secular and religious buildings, where the systematic reuse of selected or not building material occurs during the entire time period considered (5th-15th centuries)15. So if on the one hand buildings show the presence of reused material, on the other many archaeological markers document dismantling and demolition activities which allowed the reuse of building materials. The preserved buildings show a systematic reuse operated in many cases by an expert workforce. Looking for example at the brick sections dating between the 11th and 13th centuries, they all underline in different ways a good building ability and choice of materials that cannot possibly correspond to a sporadic and occasional salvage, but rather to a dismantling organization that should not be underestimated. This is especially SANTANGELI VALENZANI, Riccardo – “Calcare ed Altre Tracce di Cantiere, cave e smontaggi sistematici degli Edifici Antichi”. In MOLINARI, Alessandra; SANTANGELI VALENZANI, Riccardo; SPERA, Lucrezia – L’Archeologia della produzione a Roma…, pp. 335-344. 13 SANTANGELI VALENZANI, Riccardo, Calcare ed Altre Tracce di Cantiere…, pp. 335-344; Rossi, Daniela – Sulla via Flaminia. Il mausoleo di Marco Nonio Macrino. Milano: Mondadori Electa, 2012. 14 See the summary pictures in GIANNINI, Nicoletta – “L’edilizia di Roma medievale. Nuove acquisizioni sui modi di costruire in laterizio a roma tra VIII e XIII secolo”. In Laterizio III, Terzo Convegno internazionale. Roma, 6-8 Marzo 2019, in c.s. 15 MENEGHINI, Roberto; SANTANGELI VALENZANI, Riccardo – Roma nell’alto medioevo. Topografia e urbanistica della città dal V al X secolo. Roma: Ist. Poligrafico E Zecca Dello Stato, 2004; ESPOSITO, Daniela – Tecniche costruttive murarie medievali…, pp. 121-134. 12 PROVISION IN MEDIEVAL ROME: ABOUT BUILDING ACTIVITIES 301 evident when examining the walls of religious buildings, an important cross section of the provision of raw materials and in a certain way of their quality16. An important amount of information, as previously mentioned, comes from all the markers tied to the production of lime. The information in the database17 highlights how the majority of structures is concentrated in that monumental area of ancient Rome, underlining the close relationship between their presence and the consequent presence of material to calcinate18. If the impact of these activities on the conservation of ancient monuments was certainly remarkable, impressive was also their economic cost; in addition, especially the greatest dismantling, such as the one of the pavement of the Forum of Caesar removed in a single phase during the half of the eighth century, one can suggest an intervention tied to precise and important building operations, connected to a high level patronage (papal or of the ruling classes), since they took place in areas that were at least to that moment public. The situation in the following centuries appears different, because some data suggests a change in the managing of monuments, since the spoliation practice still documented seems to be more tied to private patrons than the past, in part in connection to the privatization of public areas in many sections of the city since the ninth century19. Later in time the restart of spoliation activities on a large scale between the thirteenth and fifteenth centuries, think of the dismantling of part of the cavea of the Flavian amphitheater or of the dismantling of almost all of the border walls of the imperial forums, underlines how also in this case we can see vast operations, requiring a large technical commitment, specialized skills, a complex worksite organization, but also important investments, an aspect that once again recalls aristocratic or religious 16 For an examination of brick curtains see GIANNINI, Nicoletta – L’edilizia di Roma medievale…, in press. This is the data collected for the database created for the project Archeologia della Produzione contained in the CD attached to the published conference proceedings. On the analysis of this data and their topographic distribution see also SPERA, Lucrezia; PALOMBI, Cinzia – La banca dati e il Gis degli indicatori di produzione …, pp. 9-72; for the analysis of building markers see SANTANGELI VALENZANI, Riccardo – Calcare ed Altre Tracce di Cantiere…, pp. 335-344; GIANNINI, Nicoletta – Il Gis e le Attività produttive a Roma in età medievale…,pp. 73-95; GIANNINI, Nicoletta – Building in medieval Rome…,b.p. For some general reflections in relation to the social and economic history see MOLINARI, Alessandra – “La produzione artigianale a Roma tra V e XV secolo. Riflessioni sui risultati di uno studio archeologico sistematico e comparativo”. In MOLINARI Alessandra; SANTANGELI VALENZANI, Riccardo; SPERA Lucrezia – L’archeologia della produzione a Roma…, pp. 613-635; MOLINARI, Alessandra – “Topografia della Produzione e organizzazione del lavoro artigianale: il caso di Roma V-XV secolo”. In CAMINNECI, Valentina; PARELLO, Concetta Maria; RIZZO Maria Serena – La città che produce…, pp. 23- 34. 18 SANTANGELI VALENZANI, Riccardo – Calcare ed Altre Tracce di Cantiere…, p. 336. 19 As shown by the surveys in the area of the Imperial Forums, in many closeby public spaces orchards, vines and houses were installed. Cf. MENEGHINI, Roberto; SANTANGELI VALENZANI, Riccardo – Roma nell’alto medioevo. Topografia e urbanistica della città dal V al X secolo..., 2004. As already underlined by R. Santangeli Valenzani, the houses made in these sections were completely built in reused material and it is hard to hypothesize if they were granted to each owner to obtain the demolition of a monument, or part of it, to recover building material out of it. It is instead more plausible that these demolitions would happen because of the simple property right on the monuments or part of them, because they were inside the owned piece of land. Cfr. SANTANGELI VALENZANI, Riccardo – Calcare ed Altre Tracce di Cantiere…,, p. 341. 17 302 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL patronage (Fig. 2). If the archaeological markers found do not provide detailed information on the forms of this reuse and on the person managing it, other interesting data can be perhaps recovered from the study of the materials used in the medieval buildings still visible across the city. The recording of the structures still existing and the stratigraphic analysis of the facades still present allowed to focus on the relocation of the ancient materials, analyzing in each case the numerous variables tied to the complexity of the worksite and reasoning in particular for the reuse of building materials on the level of selection and rework, the regularity of the structure, the quality of the binding agent. An evident example is in the opus quadratum technique called “carolingian” made with reused blocks that were reworked and often reduced in size (Fig. 3). This is a well-studied example, also considered by R. Santangeli Valenzani, which allows a clear reflection on the kind of access allowed to these dismantling worksites, given the kind of buildings where this technique is found; whoever had access could manage the worksite and most of all display of amounts of money to invest in these sites. In light of this, the important role played by the church cannot be underestimated, which certainly acquired more managing and organizing independence between Late Antiquity and the early medieval period for the provision of building material, their manufacturing, the same management of worksites, the summoning of specialized workforces20. It is possible to add to these activities also the management of monuments in the city, which determined in a certain way the consolidation of the pope’s political authority21. It is true that the typical masonry of the 8th and 9th centuries suggest for their peculiarity the presence of a poorly specialized workforce, even if it highlights an intense building activity requiring an organized provision of materials. There are exceptions though proving not only a high level of expertise, but also a certain ability in the selection of the materials to salvage. This happens for instance in S. Salvatore de Marmorata, standing out from the Roman panorama for its walls built in mixed masonry of blocks and reused bricks, preserved for the height of more than 5 meters22 (Fig. 4). What appears of great interest is the building technique adopted, characterized by a completely different concept of masonry. In S. Salvatore de Marmorata the two building materials, blocks and reused bricks, form a monolithic wall. The bricks are not used here to fill in spaces between 20 Think for instance of the mortar mixers in S. Paolo f.l.m. or of the one found close to Via Trionfale, elements that suggest the use of specialized building workforces showing the same knowledge of techniques. 21 SANTANGELI VALENZANI, Riccardo – Calcare ed Altre Tracce di Cantiere…, p. 341. 22 DE MINICIS, Elisabetta – “Gli Spolia. Esempi di riutilizzo nelle tecniche costruttive (Roma e Lazio)”. In Metodologia, insediamenti urbani e produzioni. Il contributo di Gabriella Maetzke e le attuali prospettive delle ricerche, Convegno Internazionale di studi sull’archeologia medievale in memoria di G. Maetzke. Viterbo: Università degli studi della Tuscia, 2008, pp. 57-74. PROVISION IN MEDIEVAL ROME: ABOUT BUILDING ACTIVITIES 303 large blocks, but they alternate with the blocks themselves. The stone parts are in fact aligned or staggered with lines of overlapping bricks. This allows to recreate every time an even horizontal base guaranteeing a certain regularity in the wall texture. All these elements put in light a certain confidence in the construction of walls in large stone blocks for great heights, as also evident from the accurate laying of the single elements. The workforces employed here show in addition familiarity with the so called “chessboard techniques”, as recalled already by E. De Minicis in her work, or with the techniques often indicated as “cloisonnage”23. This is a topic that is still being studied and needs further in-depth analyses. It definitely appears to be a building technique outside of the Roman tradition, bringing to the consideration of a workforce that, besides showing a fair technical level, adopted non-local skills closer to the Greek-Byzantine world. For a long time this building remained a unique example in the Roman panorama, but in light of recent discoveries, it showed different similarities with some of the structures emerged during the excavation of the Orto dei Monaci di San Paolo24. If this hypothesis will be verified in the future, it will be possible to better define the chronology25 for S. Salvatore and to examine the presence of these structures also under a technical and technological point of view. The analysis of building techniques also underlined important chronological trends thanks to their seriation, allowing to highlight the transition in the 12th century towards a standardization of materials and material laying, more and more regular in correspondence to the housing boom in the city between the 12th and 13th centuries. It is from the transition between these same centuries and also during the entire 13th century that buildings will no longer be characterized by architectural reuse of ancient materials, except for a minimal part26, and will instead present the so called “tufelli” technique, consisting in the laying of standard materials most likely preshaped in the quarry. This change leads to tie economic considerations on the provision of raw materials to other aspects such as the location of quarries, the transport of materials, the management of the activities connected to this kind of production. The small 23 E. De Minicis suggests in her study an identification with the “chessboard” technique and the opus africanum technique; the present study suggests instead a more fitting association to the cloisonnage. 24 SPERA, Lucrezia; ESPOSITO, Daniela; GIORGI, Elisabetta – “Costruire a Roma nel Medioevo:evidenze di cantiere a S. Paolo f.i.m.” aarchit XVI (2011), pp. 19-33; SPERA, Lucrezia – “Il Papato e Roma nell’VIII secolo. Rileggere la ‘svolta’ istituzionale attraverso la documentazione archeologica”. Rivista di Archeologia cristiana 92 (2016), pp. 393-430; SPERA, Lucrezia – “Disiecta membra della porticus Sancti Pauli”. Rendiconti della Pontificia Accademia Romana di Archeologia 89 (2016-2017), pp. 215-276. 25 The structures in the excavation site of S. Paolo f.l.m. Have been precisely dated to the pontificate of pope Hadrian I. 26 When the “tufelli” technique appeared a decrease in the use of all the other building materials can be noticed reused for the construction of curtains. Also the use of brick went down and it was actually possible to identify a form of reuse in the 13th century implying the entire rework of bricks, cut and treated in the same manner as the tufa blocks. Cfr. GIANNINI , Nicoletta – L’edilizia di Roma medievale…, in press. 304 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL block technique does not in fact replace gradually the masonry used until the previous century. As already said, its peculiarity was the standardization of the stone building material, corresponding to a more rational organization of labor in the worksite, as visible also in other geographic contexts such as northern Lazio, northern France and the kingdom of Naples. In Rome this technique spread inside the city and in the area corresponding to the Roman Campagna. Its adoption, as already stressed by others27, is in close connection to the evolution of worksites after the beginning of chain-production of building materials, requiring a skilled workforce and also a more defined hierarchy in the organization of work. The standardization also brought to a control of costs, something to consider also for the transport of materials. Not by chance the main tufa quarries are located close to the city or along the rivers Tiber and Aniene, certainly used for transport on water, or along the main roads. All these features should be considered in line with the sociopolitical dynamics of the city between the 13th and beginning of the 15th centuries, the time period corresponding to the appearance and use of this building technique. In conclusion of these brief considerations, it is evident that there are still many unanswered questions on medieval building activities in the city and that archaeological data and stratigraphic analyses show a great informative potential for the reconstruction of the history of the city. The study in-depth of construction activities, as in this context, constitutes a way to enrich the history of economy under different points of view, especially the making of building materials, that offers a different perspective in the case of reuse when looking at the historical-economic value of the entire working organization, as suggested with the present paper. At the same time, examining the control of provision and moreover the production of building materials in a city where production is intended as the group of activities all tied to reuse and recycling (dismantling, rework, calcination, etc.) is a fundamental part in the study of the organization of labor in large worksites and in other certain cases, in order to reflect on commissioners and contractors but also on water and road infrastructures. This is a research topic closely connected to the study of building activities in two directions, both when looking at all the activities for the creation of roads and bridges, canals for example, and also when reflecting on the transport of materials, requiring necessarily an efficient network in relation also to the weight and size of products. This is an important discussion topic for a complete study on the provision tied to the tufelli technique described previously. To understand its real informative role, just think of the model construction of the Milan cathedral, impossible without the previous creation of the Naviglio Grande. It was the presence of this fundamental water way that allowed 27 ESPOSITO, Daniela – Tecniche costruttive murarie medievali…, pp. 147-196. PROVISION IN MEDIEVAL ROME: ABOUT BUILDING ACTIVITIES 305 in fact the transport with reasonable costs of the marbles necessary for the factory, coming from the quarries of Candoglia on the Maggiore lake and 100 kilometers far from Milan. Fig. 1 – Markers of building activities. Above is the GIS location, below is the chronological diagram (elaboration by N. Giannini). 306 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Fig. 2 – Details of the excavations in the Flavian amphiteatre. From the data collected for the creation of the database published in Molinari, Santangeli Valenzani, Spera 2015. Fig. 3 – Martino ai Monti, detail of the early medieval opus quadratum (after De Minicis 2008). PROVISION IN MEDIEVAL ROME: ABOUT BUILDING ACTIVITIES Fig. 4 – San Salvatore de Marmorata. (After N. Giannini, in press) 307 308 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Materiais para o Paço da Alcáçova: A intervenção régia num Paço lisboeta (1507-1513) Diana Martins1 Resumo O Paço régio da Alcáçova de Lisboa foi uma das principais habitações régias medievais da cidade cabeça do reino. Tendo por base o caderno onde se registam as despesas com obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, quando se altera a estrutura e dinâmica do edifício, procuramos, atendendo às informações que o documento nos fornece, demonstrar as origens dos materiais que foram utilizados, e cuja proveniência é, antes de mais, um testemunho da importância que as vias fluviais tinham para o acesso e abastecimento da cidade de Lisboa. O presente estudo irá incidir nos resultados de uma dissertação de mestrado, apoiada financeiramente pela bolsa de mérito IEM/EGEAC. Palavras-chave Lisboa; Abastecimento; Obras régias; Paço da Alcáçova de Lisboa; Materiais de construção. 1 Diana Martins é Doutoranda em Estudos Medievais na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVA FCSH) e Universidade Aberta (UAb). Durante o seu mestrado, financeiramente apoiado pela bolsa de mérito IEM/EGEAC, dedicou-se ao estudo da história da construção e da cidade de Lisboa. Foi bolseira de Investigação do projecto MEDCRAFTS: Crafts Regulation in Portugal in the Late Middle Ages (14th-15th centuries) [PTDC/HAR-HIS/031427/2017]. IEM/ NOVA FCSH. 310 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Construction Supplies for the Historical Palace of Alcáçova: Royal Intervention in a Lisbon Residence (1507-1513) Abstract The Royal Palace of Alcáçova in Lisbon was one of the main medieval royal houses of the head of the kingdom. Based on a notebook where were written all the expenses with construction works carried out in the Palace between the years 1507-1513, when the structure and dynamics of the building were modified, we seek, in light of the information provided by the document, to demonstrate the origins of the materials used, without neglecting the fact that their provenance is, above all, a testimony of the importance of the waterways to supply the city of Lisbon. The present study will focus on the results of a master’s dissertation supported financially by the IEM / EGEAC Merit Scholarship. Keywords Lisbon; Provisions; Royal construction works; Royal Palace of Alcáçova; Construction materials. Introdução. A cidade medieval de Lisboa, herdeira da tradição mediterrânica e islâmica, dispunha de condições naturais ímpares, favoráveis à navegação e contactos comerciais. O porto natural de que fruía, abrigado e de grande amplitude, fazia com que a cidade vivesse numa estreita relação com o rio Tejo. Tal geografia facilitava os contactos com o hinterland, rico de capacidade agrícola e de matérias-primas necessárias às actividades artesanais da urbe. Viabilizava ainda uma ligação próxima com a margem sul do rio Tejo, de onde provinham as madeiras de pinheiro e carvalho, cal e telhas. Por outro lado, as condições de navegabilidade do Tejo facilitavam os contactos com o estrangeiro, o que permitia suprir certas necessidades de materiais como madeiras, chumbos, entre outras.2. É atendendo a este panorama que, partindo do registo de despesas com obras 2 ANDRADE, Amélia Aguiar – “La dimensión urbana de un espacio atlántico: Lisboa”. In LADERO QUESADA, Miguel Ángel (coord.) – Mercado inmobiliario y paisajes urbanos en el occidente europeo (siglos XI-XV). Actas de la XXXIII Semana de Estudios Medievales, Estella, 17 a 21 de julio de 2006. Navarra: Gobierno de Navarra, 2007, pp. 347-376. MATERIAIS PAR A O PAÇO DA ALCÁÇOVA: A INTERVENÇÃO R ÉGIA NUM PAÇO LISBOETA 311 régias efectuadas durante o reinado de D. Manuel I (1495-1521), procuraremos desenvolver e perceber como se processava o abastecimento de materiais para as empreitadas régias e, por consequência, como se fazia o aprovisionamento de bens na cidade de Lisboa nos finais da Idade Média. 1. Obras num Paço. A praxis dos monarcas se deslocarem dentro do reino de Portugal ditou a necessidade de se construírem e adaptarem espaços habitacionais com capacidade de acolher o rei e o seu séquito. Inserido numa rede de paços régios que percorria todo o reino3, o Paço da Alcáçova de Lisboa foi uma dessas residências régias. Habitado provavelmente desde o reinado de D. Afonso III (1248-1279), manteve funções como paço régio pelo menos até ao reinado de D. Manuel I, quando, a partir de 1507, o monarca dá preferência ao Paço da Ribeira, que mandara construir na zona ribeirinha da cidade como afirmação do seu poder marítimo. Tendo servido de forma continuada de residência régia preferencial na cidade, o Paço da Alcáçova foi alvo de intervenções periódicas com as quais se procurava conservar o espaço e incrementar o luxo e comodidade dos aposentos. A documentação e crónicas são um precioso testemunho dessas preocupações4. Para o reinado de D. Manuel conseguimos identificar, pelo menos, quatro períodos de intervenção distintos, nomeadamente entre 1499-1502, em 1504, entre 1507-1513 e por fim entre 1513-1520. As duas últimas intervenções tiveram lugar quando o soberano já tinha passado a habitar na Ribeira de Lisboa, pelo que assumiam a finalidade de adaptar e recuperar o edifício para albergar residentes que o Paço régio da Ribeira não tinha capacidade de acomodar5. Destas intervenções, as empreitadas de 1507-1513 são as mais bem documentadas, em virtude de um códice manuscrito que se conservou no Arquivo da Torre do Tombo, onde se fez o assento das despesas com obras realizadas no Paço da Alcáçova, sob supervisão do almoxarife das obras Gonçalo Carvalho6. O registo, materialmente da responsabilidade do escrivão das obras, João do Porto, dividese em três partes distintas: em primeiro lugar fez-se o assento da contratação dos GOMES, Rita Costa – “Monarquias e território: residências reais portuguesas, séculos XIV a XVI”. In SABATIER, Gerárd; GOMES, Rita Costa (coords.) – Lugares do poder. Lisboa: FCG/Acarte, 1998, pp. 84-105. 4 MARTINS, Diana – O Paço da Alcáçova de Lisboa: uma intervenção Manuelina. Vol. I. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2017. Dissertação de Mestrado, pp. 30-37. 5 Partindo das conclusões de Nuno Senos, foi também demonstrado que o Paço da Alcáçova, a partir do ano de 1507, servia de dependência complementar aos Paços ribeirinhos. Vide SENOS, Nuno – O Paço da Ribeira: 1501-1581, Lisboa: Editorial Notícias, 2002, p. 82; MARTINS, Diana – O Paço da Alcáçova de Lisboa: uma intervenção ... pp. 39-41. 6 Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513. Pode igualmente consultar-se a sua transcrição em: Diana MARTINS, O Paço da Alcáçova de Lisboa: uma intervenção..., vol. II. 3 312 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL artífices7, seguido do registo das despesas materiais8 e, por fim, o fecho de contas e da informação da distribuição das sobras por outras empreitadas9. 15% 4% 33% Madeira Telha e Tijolo Ferramentas Cal Ferragens 31% Pedra de Alvenaria 15% 2% Gráfico A – Percentagem de gastos com materiais. Vide MARTINS, Diana – O Paço da Alcáçova de Lisboa: uma intervenção manuelina, vol. 1, p. 124, Gráfico D. Pelo que se pode observar no Gráfico A: Percentagem de gastos com materiais, nestas obras houve um grande investimento em madeiras (33%) e cal (31%), produtos de maior encargo financeiro, que serviram tanto para construção de novas dependências, como a Casa das Estrebarias, como para manutenção e melhoramento dos espaços já existentes10. Podemos ainda observar grandes aquisições de telha (15%) e de pedra de alvenaria (15%), utilizados na preservação dos alicerces e melhoria do isolamento do complexo edificado. Além destas finalidades, pelo registo de obras observamos que alguns dos gastos 7 Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 7-39v. 8 Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 90-194. 9 Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl.194v-199v. 10 De modo a ter percepção da real envergadura da obra consulte-se: MARTINS, Diana – O Paço da Alcáçova de Lisboa: uma intervenção..., vol. I, em especial o Anexo 4: Distribuição espacial das intervenções realizadas no Paço da Alcáçova (1507-1513). MATERIAIS PAR A O PAÇO DA ALCÁÇOVA: A INTERVENÇÃO R ÉGIA NUM PAÇO LISBOETA 313 operados resultavam da necessidade de desenvolver e construir ferramentas (2%) que permitissem o trabalho dos artífices. Entre o registo observa-se, por exemplo, a compra de materiais para fabricar andaimes (cordas de esparto e madeira11), necessários na realização das paredes da Sala Grande da Estrebaria. Pelo livro de despesas verifica-se igualmente que alguns destes materiais eram transformados na obra, como se observa pela compra de um fogareiro e de carvão, usados no estaleiro de obras para derreter, e posteriormente, transformar o chumbo12, ou ainda, pela aquisição de utensílios para a transformação da cal, como cirandas13, potes de barro, água, tinteiro e pincel, os quais permitiam a mistura e aplicação da cal na parede ou outra zona que se pretendesse caiar14. Sem embargo das informações serem, em certos casos, sumárias, este assento de despesa confere-nos dados bastante interessantes relativamente à origem dos materiais utilizados nestas obras régias e, consequentemente, importantes indicações sobre a forma como se processava o abastecimento da cidade de Lisboa. 2. Formas de aquisição de materiais para a obra. Quanto ao abastecimento propriamente dito, o documento permite-nos perceber que existiram três formas de aquisição: a saber, comprados quando necessário, resultantes de excedentes de outras obras em que não tinham sido aplicados, ou por reaproveitamento. Considerando a informação presente no livro de despesas, os materiais eram preferencialmente comprados quando necessários nas obras, uma medida que permitia um melhor controlo dos gastos operados. Porém, há excepções. Contemplam-se compras sucessivas do mesmo material, que parecem justificar-se pela oportunidade de aquisições a melhores preços, denotando não apenas uma atenção aos gastos operados no decurso da obra, mas também uma preocupação a longo prazo. Tal se observa em compras sucessivas de pontões de marca grande, a que mais tarde aludiremos com maior detalhe15. Uma outra situação, mais rara mas que também se regista no caderno, é a utilização de excedentes de outras obras, contemporâneas destas. Esta atitude permitia a redução dos gastos e dos desperdícios, rentabilizando as sobras de peças 11 Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl.92v e 183v. 12 Serviu para fabricar os gatos e grades de ferro para a Torre de São Pedro. MARTINS, Diana – O Paço da Alcáçova de Lisboa: uma intervenção..., vol. I, p. 76. 13 A ciranda é uma peneira grossa usada para crivar areia destinada a entrar na composição da argamassa. 14 Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl.182-184v. 15 MARTINS, Diana – O Paço da Alcáçova de Lisboa: uma intervenção..., vol. I, p. 59. 314 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL que tinham sido compradas para outras empreitadas régias. É o caso do excedente de tabuado castanho16 e da cal terçada17, proveniente das obras da Casa da Pólvora18 (1505-1507), das quais apenas se preservou uma carta de quitação19. Por fim, conserva-se ainda informação sobre a reciclagem de materiais em obra, nomeadamente pelo reaproveitamento de matérias-primas resultantes da destruição ou ruína de um edifício20. No documento contempla-se apenas um destes casos, quando, em 1512, após o desabar de casas próximas da Costa do Castelo, a pedra de alvenaria destas fora recolhida e reutilizada para a construção das mesmas casas21. Pelos exemplos acima mencionados conseguimos perceber uma continuada preocupação com os gastos, um aspecto evidenciado pelo levantamento que inicialmente se fez de todo o material que se encontrava no armazém ao início da obra, possivelmente sobras de empreitadas anteriormente realizadas no Paço e que estavam disponíveis para ser utilizadas (como madeiras e azulejos)22. Apreendem-se assim os cuidados de planeamento, gestão de materiais e de controlo de gastos que estiveram subjacentes a esta empreitada régia. 3. Proveniência e abastecimento da cidade. Diferenciados os vários tipos de aquisição, passamos a distinguir, quando possível, a proveniência dos materiais, estabelecendo os que eram de produção local, os que eram importados do termo ou de outras partes do reino e os que eram, possivelmente, Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 90v. 17 Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 155v. 18 Tal como evidenciado por Hélder Carita e Paulo Pereira, durante o reinado de D. Manuel, pelo crescimento da zona ribeirinha e a “progressiva terciarização” da cidade, tornou-se necessário que, a par da construção de estruturas de apoio ao dinamismo económico e controlo financeiro, se erguessem outras infra-estruturas de apoio, como a Casa da Pólvora, que pudessem dar resposta às preocupações de segurança e proteção das embarcações que transportavam os bens comerciais. Vide CARITA, Hélder – “Da “Ribeira” ao Terreiro do Paço: génese e formação de um modelo urbano”. In FARIA, Miguel Figueira de (coord.) – Do Terreiro do Paço à Praça do Comércio: História de um espaço urbano. Lisboa: Universidade Autónoma de Lisboa/ Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2012, pp. 13-32; cf. PEREIRA, Paulo – “Lisboa Manuelina: Problemas de Conceito”. Revista de História da Arte 2 (2006), pp. 43-55. 19 Vide “Cartas de Quitação del Rei Dom Manuel”, Ed. Anselmo Braamcamp Freire, In Archivo Histórico Portuguez V (1904-11), pp. 472-473, nº 572. Segundo Vieira da Silva, pouco se sabe sobre como era originalmente esta dependência de produção da pólvora: “Apenas consta que alguns dos armazéns ou oficinas eram abobadadas e outras cobertas com telhado ordinário”. SILVA, Augusto Vieira da – A cerca fernandina de Lisboa. 2ª edição, vol. II, Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 1987, p. 93. 20 Esta situação era recorrente, como tem vindo a ser demonstrado pela historiografia internacional. Vide BERNARDI, Philippe; ESPOSITO, Daniela – “For an History of Deconstruction”. In CARVAIS, Robert (coord.) – Nuts and Bolts of Construction History. Culture, Technology and Society. Vol. II. Paris: Picard, 2012, p. 454. 21 Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 116. 22 Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 90 e 191v. 16 MATERIAIS PAR A O PAÇO DA ALCÁÇOVA: A INTERVENÇÃO R ÉGIA NUM PAÇO LISBOETA 315 oriundos de outras geografias e chegavam a Lisboa pela navegação do Atlântico. 3.1 Produção local. Embora certas matérias-primas tivessem que ser importadas do termo ou de fora do reino, as actividades artesanais na cidade de Lisboa estavam bastante desenvolvidas, como aliás nos dão conta as posturas municipais. Por meio destas é, por exemplo, possível ter conhecimento de regulamentos, legislação e práticas do trabalho artesanal, ao mesmo tempo que se obtém informações precisas sobre os locais onde se realizavam essas actividades23. É o que acontece no caso da cal. Através de uma postura de 1499 sabemos que existiam dois fornos de cal na cidade de Lisboa, um junto da porta de Cata-que-Farás e outro junto da Porta da Cruz24, sendo que era deste último que provinha a cal de pedra que foi empregue nas obras do Paço. Utilizadas para reboco e caiação de paredes de dependências de prestígio25, no manuscrito aponta-se a aquisição de 4 cargas directamente ao caieiro, João Peres, pelo custo de 100 reais cada26. Estas cargas eram posteriormente transportadas para o Paço, com recurso a ribeirinhos (moços cuja função usual era efectuarem transportes desde e para a Ribeira) que se encarregavam do seu transporte até ao estaleiro27. Antes de avançarmos importa perceber que os ribeirinhos assumiam um papel bastante relevante no abastecimento da cidade. Eram um garante da distribuição dos produtos que chegavam pela via marítima à Ribeira de Lisboa, ou que estavam depositados nos armazéns ribeirinhos da cidade, até ao seu local de destino28. Além disso, consoante a necessidade, também podiam assumir outras funções. Sabemos que durante as obras realizadas no Paço da Alcáçova, entre 1507-1513, também tinham acautelado o transporte terrestre de telha e tijolo do termo até ao estaleiro de obras, como mencionaremos adiante, ou ainda para retirar, com o auxílio de bestas, 23 Este trabalho de levantamento exaustivo, bem como de estudo das práticas e técnicas vigentes no reino durante a Idade Média, é um dos objectivos do projecto MEDCRAFTS: Crafts regulation in Portugal in the Late Middle Ages (14th-15th centuries) [PTDC/HAR-HIS/031427/2017]. 24 Livro das Posturas Antigas. Ed. Maria Teresa Campos Rodrigues, Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 1974, p. 233. 25 Regista-se a utilização para caiar as paredes da capela, provavelmente a de São Miguel e os Aposentos da Excelente Senhora, localizados no Castelo de S. Jorge. MARTINS, Diana – O Paço da Alcáçova de Lisboa: uma intervenção..., vol. I, p. 71. 26 O registo desta compra data de 25 de agosto de 1511. Vide Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 - Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 185. 27 Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl.185. 28 Ao longo do presente artigo, e recorrendo a diversos exemplos, ficaram demonstradas várias situações em que o seu papel se revelou determinante para o abastecimento da cidade e particularmente destas empreitadas. 316 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL um monte de caliça do terreiro em frente às cozinhas do Paço29. Um outro material de produção local eram as ferragens. Embora a matériaprima com que era produzido fosse, possivelmente, resultado da importação do exterior30, a sua transformação e finalização era feita directamente pelos artífices lisboetas nas suas respectivas oficinas. Os produtos importados também podiam estar semiacabados, ou seja, em folha, como se observa em produtos originários da Biscaia, Flandres e Inglaterra31. Isto justificava a variação de preçários que podia tanto estar dependente da origem do material como do trabalho aplicado aos materiais férreos. No documento faz-se menção a uma grande diversidade de ferragens. A informação disponível permite garantir a utilização de dois tipos: as ferragens de segurança (como fechaduras, cadeados, chaves, armelas, aros, etc.) e as ferragens de fixação, como os pregos. No primeiro caso, registou-se a compra de sistemas de tranque (como cadeados, aldrabas, ferrolhos com fechaduras e chaves) fornecidos tanto por ferreiros como por serralheiros residentes na cidade, geralmente nas proximidades da zona ribeirinha, como foi o caso do serralheiro Antão Fernandes, morador na Rua Nova d’el Rei, a quem foram compradas chaves para a Torre do Tombo32. Como acima assinalamos, os preços destas ferragens podiam variar consoante os materiais, o trabalho e a origem dos mesmos. Assim se evidencia em duas compras ao Mestre Garcia, um serralheiro, morador na Rua das Esteiras. A primeira delas é respeitante a 4 ferrolhos pretos com fechaduras e chaves, com um valor de 100 reais por unidade33. A segunda é referente à compra de 4 ferrolhos com fechaduras e chaves estanhadas, cujo valor unitário era de 125 reais34. Observa-se que os produtos estanhados eram 25% mais caro do que as fechaduras sem esse revestimento, também designado de folha da Flandres, que conferia maior resistência aos materiais férreos35. Um outro grupo de ferragens corresponde às ferragens de fixação, de entre as quais se destacam, claramente, os pregos. O registo em análise alude Cf. MARTINS, Diana – O Paço da Alcáçova de Lisboa: uma intervenção..., vol. I, p. 54. Segundo dados recolhidos por António dos Santos Pereira, só entre os anos de 1509 e 1514, foram importadas 21 toneladas de ferro. Vide PEREIRA, António dos Santos – “A metalurgia em finais de Quatrocentos e primórdios de quinhentos”. In Actas do Congresso Internacional Bartolomeu Dias e a sua Época, Vol. III: Economia e Comércio Marítimo. Porto: Universidade do Porto, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1989, pp. 231-239. 31 PEREIRA, António dos Santos – “A metalurgia em finais de Quatrocentos ...”, pp. 235-236. 32 Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 171. 33 Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 172. 34 Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 172v. 35 O revestimento em estanho poderá ser um revestimento com folha da Flandres. PEREIRA, António dos Santos – “A metalurgia em finais de Quatrocentos ...”, pp. 236-237. 29 30 MATERIAIS PAR A O PAÇO DA ALCÁÇOVA: A INTERVENÇÃO R ÉGIA NUM PAÇO LISBOETA 317 também à utilização de três tipos distintos, a saber: os pregos contares36 (medidas desconhecidas), os de telhado (118 mm de comprimento e 4,0 mm de espessura) e os de galiota / galeota 37 (85 mm de comprimento e 3,5 mm de espessura)38. Embora nesta empreitada se tenha utilizado um elevado número de pregos, apenas dispomos do registo da compra dos pregos contares e de telhado, adquiridos a Catarina Fernandes, moradora na sugestiva rua dos Pregos. 3.2. Importação do termo ou de outros territórios do reino. O Tejo tinha um papel determinante no abastecimento da cidade de Lisboa, entre outras razões por facilitar os contactos com o termo e com localidades mais interiores do reino. Através deste era possível a comunicação fluvial com Vila Velha de Ródão (localizada a 212 km da cidade) e inclusive chegar até Castela, passando por portos de relevo como Santarém, Punhete/Constância e Abrantes. Além disso, através dos seus afluentes, particularmente pelo rio Trancão (c. 29 km) era possível chegar a Mafra, passando por localidades como Unhos e São João da Talha39. Estas características do rio garantiam uma maior oferta de matérias-primas e materiais, permitindo obter bens de melhor qualidade, com origens diversificadas e a preços mais aliciantes. No documento esse parece ter sido um critério de grande importância para a obtenção de alguns destes materiais de construção que chegaram ao estaleiro de obra aproveitando, na sua maioria, a rede fluvial. Era o caso da pedra de alvenaria, ou pedra sem facetamento, que era utilizada na construção de vãos, escadas e paredes, como as da Sala Grande das Estrebarias40. Extremamente rico em informação relativamente a este ponto, no caderno de despesas foi efectuado um registo detalhado da proveniência e transporte deste material até ao estaleiro de obras do paço. A pedra de alvenaria utilizada no Paço, como se pode observar pelo Mapa 1: Origem da Pedra de Alvenaria, era proveniente de Almada41 (140 reais a 36 Eram utilizados para a fixação de traves e vigas, mas poderiam ter outras finalidades que não conseguimos aflorar. Vide MARTINS, Diana – O Paço da Alcáçova de Lisboa: uma intervenção..., vol. I, p. 75. 37 Serviam para a fixação do soalho. 38 FIGUEIRA, Luís Manuel Mota dos Santos – Técnicas de construção na arquitectura manuelina. Vol. II. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2001, pp. 500-501. 39 MARQUES, A. H de Oliveira – “A circulação e distribuição de produtos”. In SERRÃO, Joel; MARQUES, A. H de Oliveira, Nova História de Portugal. Vol. IV. Portugal na crise dos séculos XIV e XV. Coord. A. H de Oliveira Marques. Lisboa: Presença, 1987, pp. 128-130. 40 Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 150v. 41 A margem sul do Tejo, nomeadamente as zonas de Almada e da Caparica, respondiam às necessidades de materiais pétreos em Lisboa. Vide CONDE, Manuel Silvio Alves – “Sobre a casa urbana do Centro e Sul de Portugal nos fins da Idade Média”. In CONDE, Manuel Sílvio – Horizontes do Portugal Medieval: Estudos Históricos. Cascais: Patrimónia, 1999, p. 283. A sua importância para obras de vulto na cidade já se registara no século XIV quando tiveram lugar as obras no claustro da Sé. Vide OLIVEIRA, José Augusto – “Um Estaleiro 318 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL barcada42), dos Olivais (70 reais a barcada), de Unhos (65 reais por barcada) e de Vale dos Cavalinhos, em Santarém (140 reais cada barcada)43. Através da informação apresentada no documento é possível identificar os vendedores da pedra em cada uma das localidades. Assim, o barqueiro Pedro Negro, vendera a pedra originária de Almada, o cabouqueiro João Gonçalves, morador abaixo de Santa Maria da Graça (Santarém), a proveniente Vale dos Cavalinhos, o cabouqueiro Diogo Afonso, morador em Santa Maria dos Olivais, a pedra originária da localidade com o mesmo nome e, por fim, o pedreiro Lanzarote Dias, morador em Unhos, comerciara a pedra, provavelmente da sua pedreira44. Mapa 1 – Origem da Pedra de Alvenaria. MARTINS, Diana – O Paço da Alcáçova de Lisboa: uma intervenção manuelina, vol. 1, Anexo 5: Origens da pedra de alvenaria. Medieval: As Obras no Claustro da Sé de Lisboa”. In FONTES, João Luís Inglês; OLIVEIRA, Luís Filipe; TENTE, Catarina; FARELO, Mário (eds.) Lisboa Medieval: Gentes, Espaços e Poderes. Lisboa: IEM, 2016, pp. 181-183. 42 Segundo Joaquim de Santa Rosa de Viterbo, a barcada ou barcadiga correspondia à “carga que huma barca póde levar de huma vez”. Vide VITERBO, Joaquim de Santa Rosa de, ELUCIDÁRIO das palavras: termos e frases que em Portugal antigamente se usaram e que hoje regularmente se ignoram. Obra indispensável para entender sem erro os documentos mais raros e preciosos que entre nós se conservam. vol. I (A-F). Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1798, p. 180. 43 Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 138-140. 44 Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 138-140. MATERIAIS PAR A O PAÇO DA ALCÁÇOVA: A INTERVENÇÃO R ÉGIA NUM PAÇO LISBOETA 319 Neste caso específico, o transporte dos materiais para as obras do Paço obedeceu sempre a uma mesma lógica, ou seja, o aproveitamento das redes fluviais de comunicação, sendo a maior parte do transporte feito por água e o restante por terra. Assim se garantia um transporte mais rápido e menos dispendioso. Sabemos que a pedra de Almada (80 barcadas) foi transportada por Pedro Negro, barqueiro e morador nessa vila, até à Ribeira de Lisboa, pelo custo de 11.200 reais, incluindo o preço do material e transporte. Deste valor, segundo o estipulado no foral de Lisboa datado de 1500, 60 reais correspondiam ao custo do transporte de cada barcada, neste caso correspondente a um total de 4.800 reais45. Por sua vez, o material proveniente do Vale dos Cavalinhos, em Santarém, correspondente a 29 barcadas, parece ter seguido o curso do rio Tejo até à Ribeira, pelo custo total de 80 reais, ou seja, de 2,75 reais por barcada. Era um valor anomalamente baixo em relação ao que era aplicado à restante pedra de alvenaria, como acontecia no caso da originária de Santa Maria dos Olivais (10 barcadas), levada do porto de Beirolas (Moscavide) até à Ribeira pelo barqueiro Antão Gomes, morador no Tojal, por 600 reais (60 reais por barcada). Por fim, o transporte da pedra de alvenaria originária de Unhos, no termo de Lisboa, actualmente em Loures, foi assegurado pelo pedreiro Lanzarote Dias que a levou até à margem do rio de Sacavém, provavelmente através do rio Trancão. Daí, mais uma vez, seguindo o curso do Tejo foi levada até à Ribeira de Lisboa pelo barqueiro Antão Gomes, morador no Tojal, pela tarifa de 60 reais por barcada. O mesmo tipo de percurso parece ter seguido a cal de pedra lioz. Utilizada como argamassa para as pedras e tijolos, assim como para fazer reboco, caiar paredes46 e produzir bons acabamentos, era um material que estava sujeito a uma estrita regulação de modo a garantir a qualidade do produto47. Contrariamente à cal em pedra, que acima mencionamos, a cal de pedra lioz utilizada nestas empreitadas provinha do termo da cidade, num aproveitamento das jazidas de calcário existentes em Alcântara, local de origem da cal de pedra lioz comprada a Afonso Lopes, caieiro, morador no Casal da Junqueira, então freguesia de Santo António, e posteriormente 45 Foral Manuelino de Lisboa: estudos, edição fac-similada, transcrição, Ed. Inês Morais Viegas, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 2000, pp. 165-166. 46 Nas empreitadas realizadas na preparação dos aposentos de D. Joana, a Beltraneja, a cal de pedra lioz serviu tanto para guarnecer paredes, telhados, como de argamassa para a colocação de portais, janelas ou de ladrilho. Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 168. 47 Conservaram-se duas posturas municipais de Lisboa (1468 e 1499) que regulam sobre a sua produção. Livro das Posturas Antigas ..., pp. 40-41 e 232-233; CONDE, Manuel Sílvio – “Sobre a casa urbana do Centro ..., p. 287. O preparado correspondia normalmente a uma parte de cal para duas ou três de areia. Existiam duas variantes de cal: uma usada nos limites exteriores dos paramentos para “maior solidez e prestígio de construção” e uma outra, mais comum, chamada formigão, utilizada em tapumes de madeira “de uma massa de terra áspera e pedra traçada com cal.” FIGUEIRA, Luís Manuel Mota dos Santos – Aspectos tecnológicos da decoração da arquitectura manuelina. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1994. Tese de Mestrado, p.104. 320 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL ao pedreiro João Dias, morador à Ponte de Alcântara48. A primeira compra, num total de 150 moios de cal, teve um custo de 130 reais por moio, e foi “posta no embarcadeyro”, nesta caso, na barca de João da Erva, barqueiro. Este, por sua vez, transportou os moios do Porto da Sodorninha (não identificado) até à Ribeira de Lisboa pela tarifa de 20 reais por moio. A segunda aquisição, correspondente a 200 moios de cal de pedra lioz, originária da Ponte de Alcântara, teve um custo de 130 reais por moio, tendo sido adquirida à boca do forno, como expresso no documento49. O seu transporte foi posteriormente efectuado na barca de Pedro Afonso, aí morador, o qual cobrou 20 reais por cada moio transportado50. Também relativamente ao abastecimento de telha o documento confere informações bastante detalhadas. Produzida no termo de Lisboa, veja-se Mapa 2: Origens da telha e tijolo, a telha utilizada provinha de Santo Antão do Tojal, onde se localizavam os fornos do telheiro Diogo Luís (onde também foi produzido tijolo de portal), de São Jordão (Arroios), onde se situava o forno de Francisco do Couto, de São João da Talha, localização do forno de António Rego e, por fim, o forno de Gonçalo do Vale, sito em Alhandra51. Cada telha tinha um valor fixo de aproximadamente 0,70 reais a peça (700 reais o milheiro). Mapa 2 – Origens da telha e tijolo. MARTINS, Diana – O Paço da Alcáçova de Lisboa: uma intervenção manuelina, vol. 1, Anexo 7: Origens da telha e tijolo. 48 Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 154 e 155. 49 Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 155. 50 Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 155. 51 Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 122-123. MATERIAIS PAR A O PAÇO DA ALCÁÇOVA: A INTERVENÇÃO R ÉGIA NUM PAÇO LISBOETA 321 Relativamente aos processos de transporte deste material, tal como nos casos anteriores analisados, o documento confere informações detalhadas sobre o itinerário seguido até ao estaleiro de obra. Sabemos que foi seguida tanto a via terrestre, como a fluvial. O primeiro caso contemplou o transporte das telhas originárias de Santo Antão do Tojal e do Areeiro, ou seja, provenientes de pontos mais interiores do território, mais afastados de zonas portuárias, que implicavam um aumento dos custos e tempos necessários para que fossem transportados até os ditos portos e posteriormente levados para Lisboa. O documento não apresenta qualquer razão que justifique a opção de compra a estes telheiros em específico. Contudo, podemos propor que, por se tratarem de obras régias, esta opção podia ser explanada pela qualidade do material adquirido52. Como tal, para o carrego da telha e do tijolo de portal oriundos do forno de Diogo Luís, em Santo Antão do Tojal, foram contratados dois ribeirinhos, João Sardinha e Fernão Lourenço, para fazerem o transporte do local de produção até às obras53. A falta de indicação sobre a contratação de um barqueiro sustenta a ideia de que o transporte terá sido feito por terra, por estes ribeirinhos, auxiliados por bestas. Por tal trabalho cada um recebeu um total de 600 reais54. Já a telha que provinha do forno de Francisco do Couto, em São Jordão, foi levada às custas do oleiro até ao chafariz de Arroios, a partir de onde o ribeirinho Pedro Fernandes foi contratado para a transportar até às obras do Paço. Recebeu pelo trabalho um total de 240 reais. Neste caso, o transporte de cada uma das telhas custava cerca de 0,12 reais, ou seja, 120 reais por milheiro, totais muito diferentes dos previamente indicados como tendo sido os recebidos por cada um dos ribeirinhos que tinham transportado a telha do Tojal55. No transporte da telha originária de São João da Talha (10 milheiros) e de Alhandra (total de 9 milheiros), que fora levada às custas dos telheiros até à Ribeira de Lisboa, ou seja, para o cais da Pedra, utilizou-se a via fluvial56. Nestas circunstâncias, os ribeirinhos encarregaram-se apenas do transporte da Ribeira até ao estaleiro de obras do Paço. 52 Uma vez que a telha era vendida ao preço fixo de 0,70 reais por telha e 700 reais por milheiro, o preço não pode servir de justificativo. 53 Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 122. 54 Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 122. 55 Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 122v. 56 Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 123-123v. 322 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL 3.3 Materiais possivelmente comprados fora do reino (?) Por fim, importa referir matérias cuja proveniência não é claramente identificada, mas que podiam tanto ser produção local ou do termo como produto de importação. É o caso dos materiais lenhosos empregues nas obras do Paço. Embora tenhamos informações bastante relevantes sobre os vários tipos de madeiras utilizadas e disponhamos de um cuidadoso registo das aquisições, gastos e distribuição das sobras destes materiais no decurso da obra, não nos são fornecidas informações concretas sobre a sua origem. Lisboa não contava com elevadas quantidades de recursos autóctones deste material. Embora no termo da cidade e na margem sul do Tejo se pudesse adquirir madeira de pinheiro57 e castanheiro, esta era insuficiente para colmatar as necessidades de madeira na cidade, uma situação que tenderia a agravar-se em finais do século XV, pelo incremento da construção naval e civil58. Assim, desde cedo se regulamentou o fornecimento de material arbóreo, assegurado pelo mercado externo, nomeadamente pelo Norte da Europa59. A madeira devia ser descarregada em determinados locais, conforme explicitava o Regimento do Paço da Madeira. Nesta medida, os navios estrangeiros só podiam descarregar no espaço entre a porta do Paço da Madeira e a Porta do Mar ou diante do Açougue até à Porta do Ferro, junto ao Armazém do reino60. Conforme se pode observar pelo Quadro 1: Madeiras adquiridas e sobras, embora não tenhamos conhecimento da origem precisa destes materiais, comprovamos que foram por diversas vezes adquiridas a mercadores que operavam na cidade, particularmente na Ribeira. Estes eram tanto de origem portuguesa como galega, sendo de destacar as diversas aquisições feitas a mercadores como Lanzarote do Lago, que comerciava junto da Porta do Mar, e a Lopo Morillo, também instalado na Ribeira, ambos de origem galega, ou aos portugueses Gonçalo Mendes e Pedro Gonçalves que vendiam nas proximidades do Armazém do Reino, ou seja, junto dos locais onde se fazia a descarga destes materiais lenhosos. Daí eram transportadas até ao Paço com recurso aos ribeirinhos, a que acima aludimos, ou a negros de mariola, isto é, escravos que ganhavam a vida como estivadores, mas que ocasionalmente faziam o transporte dos materiais para as obras. 57 Até finais do século XV havia uma hegemonia do pinheiro na zona sul do Tejo (Arrentela, Seixal, Coina, Bugio e Cocena), sendo o grosso da produção absorvido por Lisboa. Vide OLIVEIRA, José Augusto da Cunha Freitas de – “Exploração das matas nos finais do século XV: aspectos da desflorestação na Outra Banda”, Media AEtas: Revista de Estudos Medievais 2ª série, 2 (2005-2006), p. 59. 58 Nos finais do século XV a documentação relatava o depauperar das matas a sul do Tejo, inclusive da que estava sob alçada do rei e cujas madeiras eram usadas para a construção naval e empreitadas régias. Vide OLIVEIRA, José Augusto da Cunha Freitas de – “Exploração das matas nos finais do século..., p. 62. 59 MARQUES, A. H. de Oliveira – Hansa e Portugal na Idade média, Lisboa: s.n., 1959, pp. 111-112. 60 TT, Chancelarias régias, Chancelaria de D. Fernando, lv. 2, fl. 77v. 323 MATERIAIS PAR A O PAÇO DA ALCÁÇOVA: A INTERVENÇÃO R ÉGIA NUM PAÇO LISBOETA Quadro 1 – Madeiras adquiridas e sobras. Madeira (tipo) A Unidades Dimensão compradas (metros)A entre 15071513 Mercador/es Lopo Morilo (galego) Sobras (unids.) Vigas 7,04 m 2B Viga terçada 5,06 m 15 Lanzarote do Lago (galego), morador à Porta do Mar 10 Pontões de marca grande 6,6 m 132 Gonçalo Mendes (português) e Pedro Gonçalves, moradores na Porta da Oura; 28 Pontões de quatro em carro 5,06 m 88 C Lanzarote do Lago (galego), morador à Porta do Mar 122 Meios pontões 3,08 m 52 D Lopo Morilo (galego) e Lanzarote do Lago (galego), morador à Porta do Mar 0 Aguieiros 3,52 m 276 Álvaro Lopez (galego) e Lanzarote do Lago (galego), morador à Porta do Mar 162 Tabuado de pinho 2,2 m E Tabuado de castanho 2,2 m 572 F Bordos Indeterminado H Couceiras Indeterminado 84 G Mastro Indeterminado I 0 - 108 Gerales (galego), Lanzarote do Lago (galego), morador na Porta do Mar, Vasco Peres (português?), Gil Pérez (galego) e Lopo Morillo (galego) 306 Lopo Morilo (galego) e Lanzarote do Lago (galego), morador à Porta do Mar 65 Tomamos como referências as dimensões sugeridas por Manuel Silvio Conde. Vide CONDE, Manuel Silvio – “Morfologia e materialidade da casa comum urbana medieval: subsídios para o estudo das tipologias, materiais e técnicas constructivas correntes nas cidades portuguesas do Vale do Tejo, em finais da Idade Média”. In SOLÓRZANO TELECHEA, José Ángel; ARÍZAGA BOLUMBURU, Beatriz (coords.) – Construir la ciudad en la Edad Media: Encuentros Internacionales del Medievo (6. 2009. Nájera). La Rioja: Instituto de Estudios Riojanos, 2010, pp. 289-318. B Já se encontravam 13 vigas em armazém, as quais foram adquiridas no início de 1507 e não estão contempladas no livro de despesa. C Fora as aquisições, ao início da obra, segundo o registo, já se encontravam 86 pontões de quatro em carro armazenados. D Ao início da obra, segundo o registo, já se encontravam outros 48 meios pontões em armazém. - E 1 No início do registo dos materiais pode verificarse que existiam 444 peças de tabuado de pinho disponíveis, provavelmente sobras de empreitadas anteriores. F Fora as compras utilizaram-se igualmente 228 unidades de tabuado castanho, sobras da empreitada da Casa da Pólvora que terminara em 1507. G Ao início da obra já se encontravam 23 couceiras em armazém. H De acordo com o registo 600 bordos eram sobras que vieram das empreitadas na Casa da Mina e outros tantos, em número indeterminado, foram resultantes do corte do tabuado de castanho. Vide, Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 - Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 30v. I O mastro que se conservou em armazém fora adquirido durante as empreitadas de 1504. 324 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL O preço do carreto variava conforme o peso, a distância e o tipo de mercadoria. Embora, no geral, como acima observamos, fossem adquiridas consoante a sua necessidade no decurso da obra, em certos casos a aquisição a preços mais apetecíveis, ainda que pudesse gerar sobras/excedentes, justificava compras por atacado. É o caso de duas aquisições de pontões de marca grande (6,60 m) efectuadas em Setembro de 1508, em que devido a um diferencial de 20 reais por cada peça foram compradas a um segundo vendedor, dez dias depois, um maior número de peças61. Pelos dados até agora apresentados, importa perceber que embora certas madeiras chegassem à obra já trabalhadas para outras foi necessária a contratação de serradores que, no estaleiro de obras, tratavam de afeiçoar as peças às necessidades específicas62. Foi o caso da contratação dos serradores André Eanes e Lopo Fernandes incumbidos de cortar certo tabuado de castanho em bordos, os quais posteriormente serviram para elaborar portas63. É curioso observar, pelo Quadro 1, que em muitos casos houve sobra de materiais lenhosos. Contudo, embora estes não fossem utilizados durante este período de intervenção, constatamos que serviam de reserva e matéria-prima para outras obras régias em que fosse necessário um tipo específico de madeira. Neste sentido importa mencionar a listagem que se faz, junto do fecho de contas, do encaminhamento das sobras para outras obras que destas tivessem necessidade, como se pode observar pelo Quadro 2: Destinatários das sobras de madeira. Desta forma garantiam-se e rentabilizavam-se matérias-primas tão preciosas e dispendiosas como a madeira, as quais eram, quando findas as obras, conduzidas para outras empreitadas que à data estivessem em curso64. Por fim, outro material utilizado nas obras mas do qual não conhecemos a origem eram os azulejos65. Ainda que, durante muito tempo se tenha proposto que 61 Segundo o registo, no dia 6 de setembro de 1508, foram compradas 36 unidades ao mercador Gonçalo Mendes, morador à Porta da Oura, por 90 reais a peça, enquanto as restantes 96 foram vendidas, dez dias depois, pelo mercador Pedro Gonçalves, também morador à Porta da Oura, mas por 70 reais a peça. Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 90 e 91. 62 Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 16. É o caso das portas e janelas que ficaram a cargo do mestre de carpintaria Nuno Vasques. 63 Lisboa, Torre do Tombo, Núcleo Antigo, n. 580 – Livro de despesas nas obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513, fl. 30v. 64 Vários são os testemunhos documentais e arqueológicos que demonstram estas práticas. Como evidenciado por Arnaldo Sousa Melo e Maria do Carmo Ribeiro, a reciclagem e reaproveitamento de materiais de construção era relativamente recorrente: “De facto, uma parte muito significativa dos diferentes tipos de materiais resultava de sucessivas reutilizações, que decorria, por um lado, da longa duração a que estas construcções estavam sujeitas e, por outro, das vantagens inerentes ao reaproveitamento (mantendo a forma, mudando uso) e à reciclagem (mudando o uso e a forma)”. Vide MELO, Arnaldo Sousa; RIBEIRO, Maria do Carmo – “Os materiais empregues nas construções urbanas medievais: contributo preliminar para o estudo da região do Entre Douro e Minho”. In MELO, Arnaldo Sousa; RIBEIRO, Maria do Carmo (coords.) –História da construção: os materiais. Braga: CITCEM / LAMOP, 2012, p. 161. 65 Os azulejos foram adquiridos em 1504, como se torna evidente numa carta de quitação passada a MATERIAIS PAR A O PAÇO DA ALCÁÇOVA: A INTERVENÇÃO R ÉGIA NUM PAÇO LISBOETA 325 estes eram maioritariamente um produto de importação, provavelmente provenientes de Málaga ou Valência, os estudos de Rui Trindade demonstraram que nos finais da Idade Média, embora se recorresse à importação, esta estava a par da produção nacional, sendo a cabeça do reino um dos principais centros produtores de azulejo66. Quadro 2 – Destinatário das sobras de madeira. Instituição de destino Tipo de madeira Quantidade Data Hospital do Santo Espírito da Alcáçova Bordos 12 unidades 22 de Fevereiro de 1512 Casa Real Bordos 100 unidades 21 de Maio de 1512 Casa de Nossa Senhora da Serra Bordos 60 unidades 3 de Julho de 1512 Mosteiro do Mato de Alenquer Bordos 60 unidades 15 de Julho de 1512 Santo António (?) Bordos 40 unidades 16 de Julho de 1512 Casa de Ceuta Bordos 25 unidades 22 de Julho de 1512 Paço da Ribeira de Muge Bordos 40 unidades 23 de Julho de 1512 Livraria da Torre do Tombo Bordos 12 unidades 26 de Julho de 1512 Mosteiro de Nossa Senhora da Anunciada Bordos 100 unidades 8 de Janeiro de 1512 Conclusão. Os dados aqui apontados demonstram a riqueza desta fonte para o estudo da construção, bem como para a análise da proveniência dos materiais utilizados numa Gonçalo Carvalho, almoxarife das obras do Paço, no ano de 1509. Porém, só foram utilizados nas empreitadas de 1507-1513 para forrar o Eirado da Rainha. Vide “Cartas de Quitação del Rei Dom Manuel...”, vol. II, Lisboa, 1904, p. 435, nº 282. 66 Rui Trindade sustenta a sua argumentação no foral de Lisboa de 1500, no qual se estabelece que “louça de Malega e de Valença e de louça outra de barro que aqui fazem que levarem para fora do termo per mar ou per terra asii come os vizinhos come os que no som vizinho pagam dizima”. Foral Manuelino de Lisboa ..., pp. 171-172. Ou seja, a atribuição do nome podia não ditar uma origem do material, mas antes a origem da técnica. Assim, a atribuição de nomes de outras cidades a louças viria já de tempos recuados, sendo usada para identificar um fabrico secundário ou em ascensão, como as já referidas louças de Málaga, Valência mas também de Talavera. Estes nomes e a migração de técnicas puderam também ter estado ligados às migrações muçulmanas, nomeadamente de oleiros, para vários territórios, entre os quais o reino português. TRINDADE, Rui – Revestimentos Cerâmicos Medievais. Meados do século XIV à Primeira metade do século XVI. Lisboa: Colibri, 2007, pp. 50 - 70. 326 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL estrutura de prestígio como era o Paço da Alcáçova. Através dos mesmos é possível recolher informações relevantes, que contribuem para perceber como se processava o abastecimento de materiais de construção em Lisboa. Observou-se que esse abastecimento estava tanto dependente da produção local quanto da externa (seja termo, reino ou exterior), a qual era bastante facilitada pela navegabilidade do rio Tejo e de outras vias fluviais que facilitavam o transporte de matérias-primas para a cabeça do reino. O transporte entre localidades era feito tanto por terra como por via aquática, embora se denote uma preferência pelas vias fluviais. No caso do transporte terrestre pelos ribeirinhos, além da deslocação de mercadorias dentro da cidade, neste caso específico, entre a Ribeira e o estaleiro de obras do Paço, podiam também ser responsáveis pelo carregamento de mercadorias do termo para a cidade. Este é apenas um dos muitos estudos que podem ser realizados através da análise do livro contas referente às obras realizadas no Paço da Alcáçova de Lisboa entre 1507-1513 – sobre o qual se debruçou a minha dissertação de mestrado, mas que não simbolizou um qualquer esgotamento da importância e interesse de uma fonte extraordinária que, espero, possa contribuir para a realização de muitos outros trabalhos que permitam não apenas incrementar os nossos conhecimentos sobre a história da construção, mas também da cidade de Lisboa e o seu abastecimento. MATERIAIS PAR A O PAÇO DA ALCÁÇOVA: A INTERVENÇÃO R ÉGIA NUM PAÇO LISBOETA 327 328 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Provisioning the building sites of the mendicant convents in Auvergne (realm of France), early 13th–early 16th centuries: first results of an ongoing study Claire Bourguignon1 Abstract The recent renewal of research on the materials, manpower and operation of medieval construction sites in Auvergne has cast new light on civil and religious urban buildings. But few observations have been made concerning mendicant buildings. Despite the destruction of some convents and incomplete textual documentation, it is nevertheless possible to put forward various proposals relating to the supply of raw materials, management of the workforce and stages of construction of these buildings. This paper concentrates on the Dominican and the Franciscan orders (male and female branches) established in the former dioceses of Clermont and Saint-Flour from the early 13th century to the early 16th century. The conventual complexes of these orders are indeed relatively well preserved in elevation, allowing a detailed analysis of the buildings. Their architectural study can also be supplemented by various archaeological, textual, iconographic and geological data. The aim is to present some of the first results of a PhD study based on the cross-referencing of medieval and early modern textual and iconographic sources, the archaeological survey of buildings and the analysis of lapidary remains. The aim is also to complement and discuss the results developed in recent works on Auvergne and to compare the phenomena observed with others identified in the cities of the region and in those of the realm. Keywords Building sites; Mendicant orders; Auvergne; Realm of France; Middle Ages. 1 PhD candidate ; Université Clermont Auvergne ; Centre d’Histoire « Espaces et Cultures » - EA 1001. 330 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL L’approvisionnement des chantiers des couvents mendiants en Auvergne (royaume de France), début du XIIIe siècle–début du XVIe siècle: premiers résultats d’une étude en cours Résumé Le renouvellement récent de la recherche sur les matériaux, la main d’œuvre et le déroulement des chantiers de construction médiévaux en Auvergne a apporté un nouvel éclairage sur les édifices urbains civils et religieux.Mais peu d’observations ont été faites sur les constructions mendiantes. Malgré la destruction de certains couvents et une documentation textuelle lacunaire, il est néanmoins possible d’émettredifférentes hypothèses sur l’approvisionnement des matières premières, la gestion de la main d’œuvre et les étapes de construction de ces édifices.Cette étude se concentre sur les Dominicains et les Franciscains (branches masculine et féminine) établis dans les anciens diocèses de Clermont et de Saint-Flour du début du XIIIe siècle au début du XVIe siècle. Les complexes conventuels de ces ordres sont en effet relativement bien conservés en élévation, rendant possible une analyse fine du bâti. Leur étude architecturale peut en outre être complétée par des données archéologiques, textuelles, iconographiques et géologiques. Le propos vise à présenter quelquesuns des premiers résultats d’une thèse de doctorat fondée sur le croisement des sources textuelles et iconographiques médiévales et modernes, l’étude archéologique du bâti et l’analyse des vestiges lapidaires. Le but est également de compléter et de discuter les résultats développés dans les travaux récents en Auvergne et de comparer les phénomènes observés avec d’autres identifiés dans les villes de la région et dans celles du royaume. Mots-clés Chantier de construction; Ordres mendiants; Auvergne; Royaume de France; Moyen Âge. Introduction The recent renewal of research on the raw materials, manpower and the operation of medieval construction sites in Auvergne, in the centre of the kingdom of France, has given a different perspective on civil and religious urban buildings. Such works, PROVISIONING THE BUILDING SITES OF THE MENDICANT CONVENTS IN AUVERGNE [...] 331 notably those of Anne Courtillé2, Bruno Phalip3, Josiane Teyssot4 and David Morel5, have focused on the cathedrals of Clermont6 and Saint-Flour, the collegiate and parish churches, and the ducal palace of Riom7. But few observations have been made relative to mendicant buildings. Despite the destruction of some convents and incomplete textual documentation, it is nevertheless possible to put forward various propositions concerning the supply of raw materials (stone, construction wood, lime, sand, gravel, metal, clay bricks, etc.), the actors (friars and sisters, architects) management of the workforce (masons, stonemasons, carpenters, sculptors...) and the stages of construction of these buildings8. Indeed, from the early 13th century to the early 16th century, mendicant friars and sisters had their convents and churches built, maintained and restored at different periods of the expansion of the cities in 2 COURTILLÉ, Anne − Auvergne et Bourbonnais gothiques. t. I. Nonette: Créer, 1991; Auvergne, Bourbonnais, Velay gothiques, les édifices religieux. Paris: Picard, 2002. 3 PHALIP, Bruno − Des terres médiévales en friche. Pour une étude des techniques de construction et des productions artistiques montagnardes. L’exemple de l’ancien diocèse de Clermont. Face aux élites, une approche des «simples» et de leurs œuvres. Clermont-Ferrand: Université Blaise Pascal II, 2001. Research supervisor’s dissertation; Charpentiers et couvreurs. L’Auvergne médiévale et ses marges, Lyon: Association lyonnaise pour la promotion de l’archéologie en Rhône-Alpes, 2004; “Les matériaux de la cité épiscopale, adoption, apprentissages et pratiques; Clermont, IIIe-XIIIe”. In LORENZ, Jacqueline, BLARY, François, GÉLY Jean-Pierre (éd.) − Construire la ville: Histoire urbaine de la pierre à bâtir. Proceedings of the 137th Congress of the Historical and Scientific Societies “Urban Compositions”. Paris: CTHS, 2014, pp. 155-161. 4 TEYSSOT, Josiane − “Un grand chantier de construction à la fin du XIVe siècle en Auvergne: le palais ducal de Riom”. Bulletin historique et scientifique de l’Auvergne XCVI (1992), pp. 151-166; “Le château de Jean de Berry, fin du XIVe siècle”. In Riom, capitale et bonne ville d’Auvergne (1212-1557). Nonette: Créer, 1999, pp. 356-360. 5 MOREL, David − Tailleurs de pierre, sculpteurs et maîtres d’œuvre dans le Massif central. Le monument et le chantier médiéval dans l’ancien diocèse de Clermont et les diocèses limitrophes (XIe-XVe siècles). ClermontFerrand: Université Blaise Pascal II, 2009. PhD Thesis; “L’archéologie antique et médiévale au département d’histoire de l’art et d’archéologie de l’université Blaise Pascal. Point de vue et pratiques croisées: La pierre à bâtir dans l’Auvergne médiévale du XIe au XIIIe siècle. Territoires, architectures et matériaux”. Revue d’Auvergne 617 (2015), pp. 179-206; with PICOT, Johan – “La couleur de la ville médiévale. Matériaux et identité urbaine des centres politiques d’Auvergne (XIIe-XVe siècle)”. In LORENZ, Jacqueline; BLARY, François, GÉLY Jean-Pierre (éds.) – Construire la ville…, pp. 141-153. 6 DAVIS, Michael − The Cathedral of Clermont-Ferrand. History of its construction, 1248–1512. Ann Arbor: University of Michigan, 1979. PhD Thesis; SIMON, Hippolyte (éd.) − Clermont, l’âme de l’Auvergne. Strasbourg: La Nuée bleue, 2014. 7 WHITELEY, Mary − “Riom: le palais ducal de Jean, duc de Berry”. In Monuments en Basse Auvergne, Grande Limagne. Proceedings of the 158th Archaeological Congress of France. Paris: Société Française d’Archéologie, 2003, pp. 333-338; RAPIN, Thomas − Les chantiers de Jean de France, duc de Berry. Maîtrise d’ouvrage et architecture à la fin du XIVe siècle. Poitiers: Université de Poitiers, 2010. PhD Thesis. 8 This study is based on the following works: MARTIN, Hervé − Les Ordres Mendiants en Bretagne vers 1230-1530: pauvreté volontaire et prédication à la fin du Moyen Âge. Paris: C. Klincksieck, 1975; BERNARDI, Philippe − Métiers du bâtiment et techniques de construction à Aix-en-Provence à la fin de l’époque gothique (1400-1550). Aix-en-Provence: Publications de l’Université de Provence, 1995; RÜTHER, Andreas − Bettelorden in Stadt und Land. Die Straβburger Mendikantenkonvente und das Alsaβ imSpätmittelalter. Berlin: Duncker & Humblot, 1997; SCHENKLUHN, Wolfgang − Architektur des Bettelorden. Die Baukunst des Dominikaner und Franziskaner in Europa. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2000; VOLTI, Panayota − Les couvents des ordres mendiants et leur environnement à la fin du Moyen Âge : le nord de la France et les anciens Pays-Bas méridionaux. Paris: Éditions du CNRS, 2003; RÖHRKASTEN, Jens − The Mendicant Houses of Medieval London (1221-1539). Münster: Lit Verlag, 2004; BRUZELIUS, Caroline − Preaching, Building and Burying: Friars and the medieval City. Yale: Yale University Press, 2014. 332 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL which they had established themselves. This implied an evolution in the choice of materials and supply networks and had consequences for the appearance of the buildings9. This paper concentrates on the Dominican and the Franciscan orders (male and female branches) established in the former dioceses of Clermont and Saint-Flour during the late Middle Ages. The conventual complexes of these orders are substantially well preserved in elevation, allowing a detailed analysis of the buildings. Here, architectural study can be supplemented by various archaeological, textual, iconographic and geological data (Fig. 1). The aim is to present some of the first results of a PhD study based on the cross-referencing of medieval and early modern textual and iconographic sources, the archaeological survey of buildings and the analysis of lapidary remains. The aim is also to complement and discuss the results developed in recent works on Auvergne and to compare the phenomena observedwith others identified in the cities of the region and in those of the kingdom. The elements of response will focus on three topics: the origins of materials, their transport and the managementof manpower on mendicant building sites and a comparison with the construction sites in the cities of Auvergne and the kingdom of France. 1. Origin of materials used on mendicant building sites in Auvergne. Analysis of the provenance of materials necessitates questioning the kinds of materials used, assessing whether they are of local or distant origin and identifying cases of re-use. In the geographical area studied, the principal materials are stone (volcanic breccias, tufa stone, sandstone), wood, lime, sand, gravel, metal, clay bricks and glass. Results of archaeological surveys and research in medieval and early modern archives tend to show that materials came from the local surroundings of building sites. For instance, in the episcopal city of Saint-Flour, the volcanic breccias used in the building of the cathedral and the Dominican church in the 15th century were from the quarries of Bouzentès, Liozargues, Montaigu, Ribeyrevielle and Védernat located in the vicinity of Saint-Flour. Montaigu was the main quarry and it was 9 On the settlement of mendicant orders in the city, see in particular: LE GOFF, Jacques − “Apostolat mendiant et fait urbain dans la France médiévale: géographie et sociologie des ordres mendiants (XIIIe-XVe siècles). Programme-questionnaire pour une enquête”. Annales ESC 23/1 (1968), pp. 335-348; BERTRAND, Paul − “La fondation des Ordres mendiants : une révolution?” In CEVINS, Marie-Madeleine; MATZ, Jean-Michel (éds.) − Structures et dynamiques religieuses dans les sociétés de l’Occident latin (1179-1449). Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2010, pp. 195-204; CABY, Cécile (ed.) − “Espaces monastiques et espaces urbains de l’Antiquité tardive à la fin du Moyen Âge”. Mélanges de l’École Française de Rome 124/1 (2012); VIALLET, Ludovic − “Les ordres mendiants dans la ville médiévale (vers 1230-vers 1350): réflexions introductives”. In CARRAZ, Damien (ed.) − Les ordres militaires dans la ville médiévale (1100-1350). Conference proceedings. Clermont-Ferrand: Presses Universitaires Blaise Pascal, 2013, pp. 57-75. PROVISIONING THE BUILDING SITES OF THE MENDICANT CONVENTS IN AUVERGNE [...] 333 Fig. 1 − Dominican and Franciscan settlement in the dioceses of Clermont and Saint-Flour (13th15th centuries). The examples cited in the article are in green (CAD: C. Bourguignon, UCA, 2020). 334 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL exploited from 143610. Another example concerns the tufa stone, visible in regional monuments since the Romanesque period. It was probably quarried around Mons, a village located 6 km north of Saint-Flour as the geological map shows (shaded in pink). The map also suggests that the clay from which the tiles were made came from Grizols, located 6 km to the south (shaded in yellow) (Fig. 2)11. Further, the lime used as mortar for binding the stones was made around Murat, 20 km from Saint-Flour and also from Saint-Alban-sur-Limagnole located 50 km south of Saint-Flour. As for sand, one of the components of lime, it could be collected from the banks of the rivers Ander and Vendèze flowing out at the foot of the city and in the surroundings of Andelat. The Saint-Flour town deliberation register for 1395 mentions that sand was also exploited in Montaigu (Fig. 3)12. In Aigueperse, in the diocese of Clermont, the convent of the Colettine Poor Clares was probably built with limestone because the collegiate church of Notre-Dame (1180-1250), the Holy Chapel (late 15th century) and the contemporary domestic houses of Aigueperse, Vensat and Denone were built of this stone. It may have been quarried in Chaptuzat, located 3 km to the northwest13. An archeological survey conducted in Aigueperse in 2015 revealed a large limestone quarry presenting several major fronts with polylobed pits dating to the 13th and 14th centuries. The quarried stone could have been used to build monuments in the town or to make lime (Fig. 4)14. The local origin of materials was certainly preferred owing to reduced costs of quarrying and transport implying a shorter construction period, knowledge of the technical and mechanical characteristics of the stone (lightness of alveolar volcanic materials, low water damage, cutting ease, etc.) and the rights concerning materials granted by seigniorial authorities to the friars and sisters. This wasthe case with the Observant Franciscan community of La Cellette, founded in the western borderlands of the diocese of Clermont. When the Franciscans signed the act of settlement on November, 9th, 1448, abbot Louis Ist of Banson authorized them to cut wood in the closest forests for the building and the heating of the convent. In July 1476, a decision of the Official of Clermont confirmed this right to the friars. At that time, this right may have concerned building maintenance and firewood15. 10 RIGAUDIÈRE, Albert − Saint-Flour, ville d’Auvergne au Bas Moyen Âge: étude d’histoire administrative et financière. T. I, Paris: Presses universitaires de France, 1982, p. 545; TODESCATO, Hugo − Saint-Flour dans les derniers siècles du Moyen Âge. Étude sur la promotion d’une ville néo-épiscopale. T. II. Clermont-Ferrand: Université Blaise Pascal II, 2015. Master’s thesis. 11 Printed geological map 1/50000e [Online]. Geological and Mining Research Bureau (BRGM) [Accessed 13 January 2020]. Available at infoterre.brgm.fr 12 TODESCATO, Hugo − Saint-Flour dans les derniers siècles du Moyen Âge…, t. II, p. 22-23. 13 RIGODON, René − “Aigueperse, son histoire, ses oeuvres d’art”. Revue d’Auvergne 67 (1953), p. 95; PHALIP, Bruno − Des terres médiévales en friche…, vol. 2, p. 22. 14 LAUTIER, Laurence (ed.) − Aigueperse (Puy-de-Dôme), La Croix Première. Rapport de diagnostic. Clermont-Ferrand/Bron: Regional archaeological service/Inrap, 2015; with VERNET, Gérard − “Découverte d’occupations anciennes en sortie sud d’Aigueperse – zone de la Croix Première”. Sparsae 80 (2017), pp. 63-71. 15 “Concedimus ut de cetero domum de Celeta cum officinus usu nemoris”. Cantonal department archives of Puy-de-Dôme, 28 H 1, f°15v°. PROVISIONING THE BUILDING SITES OF THE MENDICANT CONVENTS IN AUVERGNE [...] 335 Nonetheless,for specific uses, architects and sculptors could resort to materials coming from remote regions. The 15th-century bas-relief decorating the tympanum of the Observant Franciscan church in Châteldon, located south-east of the diocese of Clermont, was carved in Apremont limestone. This village was situated in the Allier valley, in the duchy of Berry, about 130 km from Châteldon16. It was a quality material, easy to cut and renowned in the region because it was frequently used in the statuary of the duchy of Bourbon during the period17. This tympanum sculpture might have been ordered by the Franciscans themselves, or equally the friars could have been advised by the sculptor and/or the aristocratic family of Vienne who founded the convent (and indeed possessed a castle in the town)18. However, the supply of materials was subject to many constraints including delays, increased costs and weather events making paths impassable, to name but a few hazards. These had an impact on the progress of the construction sites. This is whythe re-use of materials, especially stone, would have been frequent. In Riom for instance, a town established about 15 km north of the episcopal city of Clermont, the Franciscan conven twas built inside the city walls during the last quarter of the 14th century using the stones from their first establishment located outside the fortifications, a few meters to the north19. This building method was certainly preferred in order to quickly rebuild the friars’ places of living and worship, to reduce the cost of construction of the convent, or even so as not to leave this manna for the canons of Saint-Amable who took possession of the first Franciscan enclosure after the friars left it. Furthermore, in Saint-Flour in the 1360s, the Dominicans built their convent on properties composed of domestic houses20. In order to reduce the 16 CARADEC, Marie-Anne − Monographie du village de Châteldon (Puy-de-Dôme) à l’époque médiévale. Clermont-Ferrand: Université Blaise Pascal, 1980, Master’s thesis, p. 210. 17 For instance, this stone is used to make the funeral monument of Goussaut of Thory († 1391), butler and forest master of the duke of Bourbon Louis II (1356-1410), which rested in the conventual church of the Carmelites of Moulins. On this example, refer to the author’s article: “Les ordres mendiants à Moulins (milieu du XIVe siècle-début du XVIe siècle): implantation, architecture et décor”. Bulletin de la Société d’Émulation du Bourbonnais, forthcoming in 2020. See also: GOUTAUDIER, Françoise − La sculpture de pierre en Bourbonnais, du milieu du XVe siècle au début du XVIe siècle. Clermont-Ferrand: Université Blaise Pascal II, 1993. Master’sthesis; LEYOUDEC, Maud, RIVOLETTI, Daniele − La sculpture bourbonnaise entre Moyen Âge et Renaissance. Exhibition catalogue. Moulins: Musée Anne de Beaujeu, 2019. 18 On the involvement of the bourgeoisie and the secular aristocracy in Franciscan construction, see for example: BOURDUA, Louise − The Franciscans and Art Patronage in Late Medieval Italy. Cambridge: Cambridge University Press, 2004; CLAUDE, Sandrine − “L’église des Observantins d’Aix-en-Provence: le chantier d’une construction entre prédication mendiante et dévotions privées (XVe-XVIe siècle)”. In CARVAIS, Robert; GUILLERME, André; NÈGRE, Valérie; SAKAROVITCH, Joël (éds.) − Édifice et artifice: histoires constructives: recueil de textes issus du premier congrès francophone d’histoire de la construction. Paris: Picard, 2010, pp. 907-916. 19 FODÉRÉ Jacques, Narration historique et topographique des convens de l’ordre Sainct François et monasteres Saincte Claire, érigez en la province anciennement appellée de Bourgogne, a present Sainct Bonaventure. Lyon: Pierre Rigaud, 1619, p. 586. 20 Municipal Archives of Saint-Flour, chapter VIII, article 2, n°3. Document transcribed in: TODESCATO, Hugo − Saint-Flour dans les derniers siècles du Moyen Âge…, t. II, p. 48, annex n°51. 336 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Fig. 2 − Printed geological map 1/50000e [Online]. Geological and Mining Research Bureau (BRGM) [Accessed 4 May 2020]. Available at infoterre.brgm.fr. PROVISIONING THE BUILDING SITES OF THE MENDICANT CONVENTS IN AUVERGNE [...] 337 Fig. 3 − Geographical origin of the materials used to erect the cathedral of Notre-Dame and the Dominican convent in Saint-Flour in the late Middle Ages (CAD: C. Bourguignon, UCA, 2020. Fig. 4 − Use of limestone in the religious and civil buildings in Aigueperse and in the neighbouring villages in the central and in the late Middle Ages (CAD: C. Bourguignon, UCA, 2020). 338 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL number of stones or wood planks needed, the friars probably re-used the foundations of houses. This process is documented for contemporary urban building programs such as the cathedral for which the workers took building stones from ruined houses of the city21. To sum up, in Auvergne, the mendicant friars preferred local materials but they could resort to others for specific creations such as sculpture. The costs and constraints involved in the purchase and supply of materials probably made it necessary to re-use materials available in the vicinity of building sites. 2. Transport of materials and management of the labour force on the mendicant building sites in Auvergne. Supplying materials means dispatching from the quarry to the building site. In the dioceses of Clermont and Saint-Flour, transport was facilitated by a developed road network and navigable rivers (Fig. 5)22. Indeed, the road leading from Île-de-France (north of the kingdom) to Languedoc (south of the kingdom) ran through the main cities where the mendicants were settled in both dioceses. In addition, the diocese of Clermont was crossed by the rivers Allier and Dore, navigable from Pont-du-Château and Pont-de-Dore, which provided another way to transport heavy freight. Thus, the Apremont limestone used in the 15th century to sculpt a bas-relief on the tympanum of the Observant Franciscan church of Châteldon might have been transported from the duchy of Berry, located north of the duchy of Clermont, to the town thanks to the river Allier. Châteldon is 4 km away from Ris, a harbour dug at the confluence of the rivers Allier and Dore in 1413 and exempted from tolls from 144823. In Souvigny, in the diocese of Clermont, the Franciscan convent was built from limestone and sandstone in the second half of the 13th century and early 14th century. This was also the case with the parish church of Saint-Marc, founded before the mid-12th century, with the Cluniac church of Saint-Pierre-et-Saint-Paul, restored in the 15th century, and with the Bourbon dukes’ residence, enlarged in 1378 and in 1431. The stone could have been transported to the city from the calcareous plateau locatedin the northwest of the city, from the sandstone forest of Messarges and from the surroundings RIGAUDIÈRE, Albert − Saint-Flour, ville d’Auvergne au Bas Moyen Âge…, t. I, pp. 544-545. On these lines of communication and their impact on the development of urban spaces, see: FRAY, Jean-Luc − “Les localités centrales de l’Auvergne, du Velay et du Bourbonnais au Moyen Âge. Problèmes et perspectives”. In ESCHER, Monika; HAVERKAMP, Alfred; HIRSCHMANN, Frank (éds.) – Städtelandschaft, Städtenetz, zentralörtliches Gefüge. Ansätze und Befunde zur Geschichte der Städte im hohen und späten Mittelalter. Mayence: Kliomedia, 2000, pp. 173, 178 [also published in: “Réseau urbain et « localités centrales » en Auvergne, Bourbonnais et Velay au Bas Moyen Âge”. In MARTIN, Daniel (ed.) – L’identité de l’Auvergne (Auvergne, Bourbonnais, Velay): mythe ou réalité historique? Essai sur une histoire de l’Auvergne des origines à nos jours. Nonette: Créer, 2002, pp. 253-262. 23 MONDANEL, Pierre − L’ancienne batellerie de l’Allier et de la Dore: de Langeac à Nevers. 2e ed. Clermont-Ferrand: De Borée, 2000, pp. 153, 327. 21 22 PROVISIONING THE BUILDING SITES OF THE MENDICANT CONVENTS IN AUVERGNE [...] 339 of Coulandon thanks to the river Queune24. Likewise, one can speculated as to whether the mendicant building sites benefited from existing supply networks since they were frequently contemporaneous with other urban civil or religious building projects. The number of stone quarries and the forests exploited being necessarily limited, the architects supervising the mendicant construction sites, or the friars and the sisters at the head of their communities, might have concluded agreements with local quarrymen or woodcutters. Such could have been the case with Murat, in the diocese of Saint-Flour. Since 1320, the city had enjoyed the privilege of an exclusive exploitation concession of the volcanic breccias quarries in Albepierre, located 7 km away from Murat25. The existence of three religious building sites in Murat duringthe first half of the 15th century (the collegiate church of Notre-Dame, the church of Saint-Martin and the convent of the Observant Franciscans) suggests that stone came from the same and closest quarries allowing forquick transport and reduced costs. Few documents evoke the manpower working on the mendicant building sites, as regards the architects or the skilled labour force26. The supervision of the building site was frequently provided by mendicants, in accordance with the provincial minister of the order. In Clermont, a document dated January 17th 1385, indicates that the workers employed to restore the church of the Poor Clares (masons, stonemasons and carpenters) were hired by abbess Géral de Pomeyrol (Geralda Pomeyrola). They lived in Clermont in the parishes of Saint-Pierre, Saint-Laurent and Saint-Cassi27. As a consequence, for this building site the workforce was exclusively local. The parishes mentioned were located in the northern part of the city, two of them (Saint-Pierre to the west, Saint-Laurent to the east) inside the city walls, the third one (SaintCassi) outside to the north. These parishes were close to the convent of the Poor Clares established north of the city, about 125 m from the fortifications, in the parish of Saint-Étienne. These parishes could accommodate the houses of the workforce but the nuns could also have recruited labourers they already knew or who had already carried out other works near the convent. We can draw a comparison with the building site of the ducal palace and the Holy Chapel built by Jean Ist, duke of Berry and Auvergne (1360-1416), in the neighbouring city of Riom during the last two decades of the 14th century. The labour force was composed of local craftsmen 24 FIOCCHI, Laurent; LIÉGARD, Sophie; MOREL, David − “Du monde des morts au monde des vivants: le bois et la pierre au Moyen Âge à Souvigny”. Revue d’Auvergne 124 (2011), pp. 136, 146, fig. 6. 25 PHILIPPART, Jean-Louis − “Les carrières de pierre de taille d’Albepierre”. In Albepierre-Bredons et Murat: à la recherche de l’histoire et du patrimoine. Marsat: La Source d’Or, 2006, p. 71; “La transaction du 7 mai 1528 entre les habitants d’Albepierre et ceux de Murat”. Patrimoine en Haute-Auvergne 17 (2009), pp. 35-37. 26 On the labor force employed on other building sites of the dioceses from the 11th century to the 15th century, see: MOREL, David − Tailleurs de pierre, sculpteurs et maîtres d’œuvre dans le Massif central…, t. I, pp. 486-508. 27 Cantonal department archives of Puy-de-Dôme, 66 H 2, bundle 10, n°37, f° 8v° and f° 9v°. 340 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Fig. 5 − Dominican and Franciscan settlement in the road network of the dioceses of Clermont and Saint-Flour (early 14th century) (CAD: C. Bourguignon, UCA, 2019 according to Fray, 2000, p. 174 and 2002, p. 256) PROVISIONING THE BUILDING SITES OF THE MENDICANT CONVENTS IN AUVERGNE [...] 341 and of skilled labourers coming from outside the duchy of Auvergne. For instance, architect Guy de Dammartin († 1398) lived in Bourges, the capital city of the duchy of Berry. Most of the stonemasons were outsiders. Out of the thirty-one stonemasons mentioned in the archives, only two were local28. It is interesting to notice that the abbess, unlike the duke, did not resort to foreign architects or skilled craftsmen. This can be explained by the fact that these construction sites came under different religious and civil authorities (the abbess of the Poor Clares and the duke of Berry and Auvergne) and did not involve the same types of building (a conventual church and a palace and a Holy Chapel). In both cases however, the materials were quarried locally, especially volcanic breccias, which came from the quarries of Volvic located about 8 km northwest of Riom and 15 km from Clermont. The most remote places of supply seemed to concern scaffolding, carpentry and framing woods, which were cut in the oak and fir forests of Livradois (from Montpeyroux to Puy-Guillaume) and Forez, about 40 km east of Riom or in the plain of Limagne (Randan)29.In Châteldon, the 17th-century Franciscan chronicler Jacques Fodéré reports that Friar Guillaume Vasseur supervised the building site of the Observant Franciscan convent. He had been sent by the prior of Montluçon, another observant convent located about 100 km to the northwest. As for skilled manpower, it was hired by the mendicants or by the lord involved in the establishment of the community. In Châteldon, in the 1460s, the masons and carpenters were recruited by Philippe de Vienne, the nobleman contributing to the establishment of the Observant community. The man employed to carve the bas-relief surmounting the main portal of their church appears to have been chosen by the friars. It was probably Jacques Rodier, a mason and sculptor working stone and wood from Châteldon. He sculpted a Christ ornamenting the jube of the church of Saint-Pierre in Montluçon. The tragic aspect of this work of art may have been influenced by the Observant Franciscans living close to the church30. Since the prior in Montluçon contributed to the foundation of the convent of Châteldonand also sent a friar to supervise the building site, he could conceivably have employed the sculptor for the Franciscan church. In a word, the Dominican and the Franciscan building sites in Auvergne couldtake advantage of a privileged geographical situation. Their convents, founded in the most important cities of the dioceses, were nearly always located close to main roads and navigable waterwayssuch as the rivers Allier and Dore allowing ease of transportation of materials. This is why we can speculated as to whether 28 TEYSSOT, Josiane − “Un grand chantier de construction à la fin du XIVe siècle en Auvergne…”, pp. 151-166. 29 TEYSSOT, Josiane − “Un grand chantier de construction à la fin du XIVe siècle en Auvergne…”, p. 164. 30 BAUDOIN, Jacques − La sculpture flamboyante: Auvergne, Bourbonnais, Forez. Nonette: Créer, 1998, pp. 298-299. 342 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL they integrated the existing supply networks when theirc onstruction sites were contemporaneous with other civil or religious building programs. 3. The supply of mendicant building sites in the process of urban building in Auvergne and in the kingdom of France. The study of mendicant construction sites must be considered in a comparative dimension not only to fill the lacunae of extant remains or textual documentation, or to stimulate consideration of locations of supplies of materials, but also because the Dominican and Franciscan communities integrated into the monumental landscape and the ecclesiastical hierarchy of cities. Enumeration and dating of religious building sites in cities where the mendicant orders were established demonstrates that mendicant construction sites were long-term and therefore often contemporary with each other. In the episcopal city of Clermont for example, the Dominican and Franciscan houses were erected in the second third of the 13th century. The Carmelites were established when the Poor Clares started building their convent in the last decade of the 13th century. In the third quarter of the 15th century, bishop Jacques de Comborn (1444-1474) financed the reconstruction of the Dominican cloister and one of their conventual wings, also the building of the Franciscan convent entrance gate and their refectory, and further the completion of the building of the Carmelitecloister. A similar observation can be made in Aix-en-Provence where the mendicant communities undertook major restoration and enlargement campaigns in the second half of the 15th century. The Augustinians expanded their church to the north from the 1460s to 1469. The Franciscans added a sacristy and vaulted their church. The church of the Observant Franciscans was erected in the 1470s31.Likewise, in Aurillac, in the diocese of Clermont, a tilery (tegularia) established between the Hôpital abbatial Saint-Géraud and one of the gates of the city (Porte du Buis) is mentioned in 1254. The tiles produced in the moulds which were not stamped by the Benedictine abbot of Saint-Géraud, at the head of the oldest monastery established in the town (late 9th century), were given to convents, churches and hospitals32. Therebuilding of the Franciscan church and convent in the first third of the 14th century may have been concomitant with a church or a hospital restoration campaign. If this was in fact the case, the Franciscans could also have benefitted from this donation. Comparison of materials used in mendicant building sites in Auvergne with those employed in other conventsin the kingdom tends to showthat local supply of 31 BERNARDI, Philippe − Métiers du bâtiment et techniques de construction à Aix-en-Provence…, pp. 108-109; CLAUDE, Sandrine − “L’église des Observantins d’Aix-en-Provence...”, p. 908. 32 GRAND, Roger − Les «Paix» d’Aurillac. Études et documents sur l’histoire d’une ville à consulat (XIIeXVe siècles). Paris: Librairie du recueil Sirey, 1945, pp. CLXXXV-CLXXXVI. PROVISIONING THE BUILDING SITES OF THE MENDICANT CONVENTS IN AUVERGNE [...] 343 materials frequently occurred. In Châlons, the roof of the Franciscan cloister was made up of hollow tiles which were the most common used in the building sites of Champagne in the late Middle Ages33. Works led by the archaeologist Cedric Roms in Troyes, a city located south of Champagne in the Seine valley, suggest that all the urban churches were built with local stones.For example, chalk was used in the 13th century to erectthe churches of Saint-Jean-au-Marché and Sainte-Madeleineand also in the 16th century in the churches of Saint-Nizier and Saint-Rémy. In more prestigious sanctuaries, chalk was used in specific parts of the buildings (foundations) as was the case with the church Saint-Jacques-aux-Nonnains. Chalk was a cheap and abundant material and it could be quarried in the vicinity of the construction sites, in the suburbs of Troyes (the quarry of Pont-Hubert for example). This stone was also well-known for its lightness, the reason for its use in the vaults of the Notre-Dame Chapel in the church of Saint-Jean-au-Marché in 1523-152434. In Auvergne, the question of the recruitment of lay or foreign architectsstill remains open, whereas the names and status of several architects are known for different mendicant convents in the rest of the kingdom during the late Middle Ages. In Metz, for instance, the Carmelites chose P. Perrat, a lay architect, to oversee the restoration of their church in the late 14th century35. In his will dated November 22nd 1316, Jehande Mantes, master of the king’s works in the sénéchaussée of Toulouse and Albigeois, funded the building of four chapels in the apse of the Augustinian church of Toulouse. He specified these chapels had to be erected by two master masons from the city. One of them was Jehan de Lobres, master of works of the church of SaintÉtienne in Toulouse36. Nonetheless, some of the architects or part of the workforce could come from remote places. In Aix-en-Provence, Philippe Bernardihighlighted that from 1401 to 1550, out of 1,115 people learning a building trade, 530 did not come from the city. They were from the duchy of Savoy, the Dauphinéregion,and the Italian peninsula37. The recruitment of artists seemed to vary according to the friars’ relationships and needs. Asin Châteldon in the second half of the 15th century, the 33 VOLTI, Panayota − L’implantation et l’architecture des ordres mendiants dans le nord de la France et les anciens Pays-Bas méridionaux (XIIIe-XVIe siècles). Paris: Université Paris X-Nanterre, 2000. PhD Thesis, t. II-1, p. 148. 34 ROMS, Cédric − “Extraire de la pierre pour les églises troyennes au Moyen Âge et à l’époque moderne: apport des données textuelles et archéologiques” [Online] Medieval Europe Paris, 4th International Congress of Medieval and Early Modern Archaeology [Accessed May, 3rd, 2019]. Available at https://hal.archivesouvertes.fr/hal-01610156. See also: ROMS, Cédric − “La pierre dans la construction monumentale troyenne au XVIe siècle : choix des matériaux et stratégies d’approvisionnement”, Livraisons de l’histoire de l’architecture [Online] 16 (2008) [Accessed June, 5th, 2020]. Available at https://journals.openedition.org/lha/177. 35 VOLTI, Panayota − L’implantation et l’architecture des ordres mendiants dans le nord de la France…, t. II-1, p. 258. 36 SALIES, Pierre − Les Augustins: origine, construction et vie du grand couvent toulousain au Moyen Âge (XIIIe-XVIe siècle). Toulouse: Archistra, 1980, pp. 43-47. 37 BERNARDI, Philippe − Métiers du bâtiment et techniques de construction à Aix-en-Provence…, pp. 43, 46. 344 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Franciscansof Troyes worked with a local artist called Jubertto achieve the decoration of the conventual library situated on the first floor of the Chapel of Passionduring the last decades of the 15th century38. But the mendicant friaries of Arras, locatedin the north of the kingdom, developedcloserelationships with artists from Tournai, in the southern Low-Countries. For instance, Willaume de Blarville’s funerary slabwas made in Tournai before being sent to the kingdom to be laidin the Franciscan cemetery of Arras in the 13th century39. To conclude, it is important to highlight that the Dominican and Franciscan building sites in the dioceses of Clermont and Saint-Flour preferred local materials but they could resort to otherscoming from remote quarries for specific needs (sculpture, statuary, funerary monuments).The re-use of materials available in the vicinity of construction sites is highly probable. Furthermore, their convents took advantage of nearbymain roads and navigable waterways facilitating the transport of materials and the movement of manpower. Comparisons can be drawn with other building sites in Auvergne (the ducal palace of Riom) and in other parts of the kingdom (the mendicant convents in Arras, Châlons, Troyes, Aix-en-Provence and Toulouse). These parallels show that local supply of materialsis not specific to the dioceses studied. Nonetheless, differences can be observed in Auvergne concerning the variety of materials employed (volcanic breccias, tufa stone, sandstone, limestone) and the recruitment of local labour. But the scattered information for mendicant building sites does not allow generalisation of the hypotheses raised for the period under consideration. The first results of this study complement the data provided in the works of Anne Courtillé, Bruno Phalip, Josiane Teyssot and David Morel by bridging the gap concerning mendicant convents built in the central dioceses of the kingdom during the late Middle Ages. A possible future research avenue would comprise an evaluation of the symbolic dimension of materials in mendicant buildings. An article published by David Morel and Johan Picot in 2014 has suggested that the use of volcanic breccias in civil and religious buildings in the three main cities of the diocese of Clermont (the episcopal city, Montferrand and Riom) in the 13th and 14th centuries is linked to the development of an urban identity associated with the assertion of royal power after the conquest of Auvergne in 12111213. Analysis of the use of this stone and the friars’ relationships with urban powers and local aristocracy could raise new questions in this area. 38 VOLTI, Panayota − L’implantation et l’architecture des ordres mendiants dans le nord de la France…, t. II-2, p. 187. 39 VOLTI, Panayota − Les couvents des ordres mendiants et leur environnement à la fin du Moyen Âge…, p. 58. PROVISIONING THE BUILDING SITES OF THE MENDICANT CONVENTS IN AUVERGNE [...] 345 346 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Abastecer um estaleiro construtivo: o exemplo do Colégio da Graça (1543-1548)1 João Paulo Graça Pontes2 Resumo O aprovisionamento de material construtivo constitui um aspeto importante do abastecimento das cidades com vista à construção de edifícios. Dada a necessidade – ou excentricidade – de determinados tipos de materiais para a construção, importa ter em conta a sua aquisição, transporte e alocação, assim como os moldes em que decorreram, tendo em conta as condicionantes e adversidades da época. O presente artigo procura dar a conhecer o processo de compra e transporte de material, por parte do estaleiro do Colégio da Graça de Coimbra, tendo como espectro cronológico os finais da Idade Média e os princípios da Idade Moderna. Este exemplo, cuja construção decorre de 1543 a 1555, será posto em evidência como ponto de comparação com outros estaleiros construtivos, estes já inseridos no âmbito temporal da Época Medieval. Partindo do seu livro de obras (1543-1548) – num esplêndido estado de conservação, atualmente parte integrante do espólio documental do Arquivo Distrital de Braga - procuramos dar a conhecer de que modo é que o estaleiro do colégio da Graça adquiria o seu material construtivo, sobretudo a madeira e pedra, bem como os seus preços e a sua proveniência – e condicionantes adjacentes, nomeadamente ao nível dos custos do transporte. Palavras-chave História da construção; Universidade de Coimbra; Rua da Sofia; Livro de contabilidade. 1 Trabalho realizado ao abrigo do financiamento público por parte da Fundação para a Ciência e Tecnologia. Referência de bolsa: SFRH/BD/145325/2019 e no âmbito do projeto MedCrafts – “Regulamentação dos mesteres em Portugal nos finais da Idade Média: séculos XIV e XV”, Ref.ª PTDC/HAR-HIS/31427/2017.. 2 Universidade do Minho/ Lab2PT. 348 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Supplying a worksite: the case of Colégio da Graça (1543-1548) Abstract The supply system of construction materials constitutes an important aspect in matters of provisioning cities towards the construction of buildings. Given the need – or the eccentricity – of certain types of materials for construction, it is important to take into account their acquisition, transportation and distribution, as well as the configuration of the construction in a given timeframe, in regards to its constraints and adversities. This paper seeks to understand how Colégio da Graça de Coimbra’s worksite bought and transported construction materials, between the late medieval age and the early modern age. This example, which was constructed between 1543 and 1555, will be highlighted and used as a point of comparison with other worksites chronologically situated in the medieval ages. Its accounting book (1543-1548), which is splendidly conserved and currently a part of the documental collection of the District Archive of Braga, will serve as our starting point to figure out in which way the Colégio da Graça’s worksite purchased its materials for the construction, mainly the stones and the wood, as well as its prices and provenance, and the inherent difficulties associated with the process, namely those related to the transportation costs. Keywords Construction History; University of Coimbra; Rua da Sofia; Accounting book. Introdução. No projeto cultural de D. João III encontramos uma hipótese de estudo que se revela interessante para a historiografia que se ocupa da cultura em Portugal. Momento de relevo, por um lado, pela ideologia que se consubstanciou no processo de transição das estruturas académicas de Lisboa para Coimbra e, por outro – o que nos diz respeito – pelo grande empreendimento urbanístico que teve lugar na cidade do Mondego. Sobre o trabalho que aqui pretendemos desenvolver, advertimos que se desviará ligeiramente da cronologia proposta por estas Jornadas. Tendo presente os convencionalismos cronológicos que pautam o término da Idade Média no final ABASTECER UM ESTALEIRO CONSTRUTIVO: O EXEMPLO DO COLÉGIO DA GR AÇA [...] 349 do reinado de D. Manuel (1521), justificamos o nosso desvio com a importância desta fonte para a historiografia que se ocupa da temática da construção e, ainda, com o facto de não considerarmos de tal modo significativa a distância temporal que separa o nosso caso de estudo das balizas cronológicas aqui propostas. Neste sentido, a pertinência da documentação leva-nos a procurar compará-la com outros exemplos de cronologias mais recuadas, uma vez que se trata de um tipo documental bastante raro na historiografia portuguesa, sobretudo com registos sequencialmente completos. As mais das vezes, a documentação que encontramos apenas contém registos relativos a uma ínfima parte do todo que seria o processo construtivo de um qualquer edifício. É verificável que, de uns anos a esta parte, tem sido feito um esforço na produção historiográfica e respetiva publicação desta tipologia de fontes. Das que conseguiram ultrapassar as vicissitudes do tempo, em número bastante reduzido, apenas uma pequena parte se apresenta nestas condições. Através de algumas transcrições de grande qualidade conseguimos ter acesso a uma parte das contabilidades relativas às construções do Paço da Alcáçova de Lisboa3, do Mosteiro de Santa Maria da Vitória4, do Claustro da Sé de Lisboa5, do Paço de Sintra6 e da Alfândega do Funchal7. De toda a maneira, o estudo de um estaleiro e das suas dinâmicas, partindo do seu livro de contabilidade, permite-nos uma multiplicidade de análises que extravasam, inclusive, questões financeiras. Importando ter presente que este tipo documental teria um propósito informativo e descritivo do processo construtivo, raramente dissociado de interesses institucionais e pessoais. Entre diversos tipos de informação, um livro de contabilidade permite-nos apurar, ao nível artístico, algumas diretrizes arquitetónicas que partem da vontade do encomendador, caracterizar o corpo laboral que integrava os trabalhos in loco, conhecer a dinâmica comercial associada à aquisição dos recursos materiais, apurar as preferências associadas à obtenção de determinado tipo desses recursos, bem como realçar o impacto socioeconómico que a construção teve nas imediações do lugar onde se implantou8. 3 MARTINS, Diana Neves – O Paço da Alcáçova de Lisboa: uma intervenção manuelina. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa/ IEM, 2017. Dissertação de Mestrado. 4 GOMES, Saúl António – O Mosteiro de Santa Maria da Vitória no Século XV. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra/ Instituto de História de Arte, 1990. Dissertação de Mestrado. 5 OLIVEIRA, José Augusto – “Um estaleiro medieval: as obras no claustro da Sé de Lisboa”. In FONTES, João Luís et. alii (coord.) – Nova Lisboa Medieval. Gentes, Espaços e Poderes. Lisboa: IEM – Instituto de Estudos Medievais, 2016, pp. 177-204. 6 SABUGOSA, Conde de – O Paço de Cintra. Lisboa: Imprensa Nacional, 1903. pp. 221-243. 7 COSTA, José Pereira da – A construção da Alfândega nova do Funchal. Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar; Centro de Estudos de Cartografia Antiga, 1978. 8 Em larga medida já empreendemos esta abordagem mais generalista no âmbito da nossa tese de Mestrado. PONTES, João – Construção do Colégio da Graça de Coimbra no Século XVI: Estudo da Organização do Processo Construtivo e Gosto Arquitectónico. Braga: Universidade do Minho, 2017. Dissertação de Mestrado. 350 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Deste modo, propomo-nos dar a conhecer, sob o ponto de vista de um estaleiro dos inícios da Idade Moderna, as dinâmicas comerciais adotadas na obtenção dos recursos materiais necessários à construção do edifício em questão e a forma como foi realizado o seu abastecimento, ao nível da compra e transporte. Tomamos por exemplo a construção do Colégio da Graça de Coimbra, parte integrante do espólio documental do Arquivo Distrital de Braga, que conhecemos por intermédio do seu livro de contabilidade, ainda num ótimo estado de conservação9. O nosso estudo vai, assim, alicerçar-se na compreensão da dinâmica comercial operada pela administração da obra do colégio, assim como destacar as estratégias adotadas pelo estaleiro no acesso ao material construtivo. Porém, primeiramente, contextualizaremos toda a questão, de modo a que seja possível compreender o processo que envolve a transferência da Universidade e a construção do Colégio da Graça. 1. Enquadramento histórico. O nosso objeto de estudo tem como pano de fundo o ímpeto renovador que D. João III conferiu à cultural em Portugal, sobretudo nos inícios do seu reinado. Sendo um projeto que já vinha a ser desenvolvido desde o reinado de D. Manuel, ainda que a uma escala bem mais modesta, conhece o seu apogeu no projeto reformista do Piedoso, através de uma aproximação à cultura do humanismo10. A proposta cultural do monarca tinha por primordial objetivo fundar uma instituição académica que fosse capaz de ombrear com as suas homónimas europeias11. Neste processo, foi necessário fazer transitar os estudos gerais da cidade de Lisboa que, enquanto instituição, assumiu um papel bastante conservador e pouco disponível para uma abertura cultural e pedagógica12. Para tal, foram criadas condições estruturais e administrativas, importantes para o bom desenvolvimento do ensino, dentro de um 9 O livro de obras encontra-se num estado de conservação bastante razoável, encadernado a pergaminho e cartão. Compõe-se por 8 cadernos em papel com cerca de 190 fólios numerados de forma contínua, dos quais 66 estão em branco e 44 foram parcial ou totalmente rasgados. Escrita quase no seu todo em língua castelhana, num gótico cursivo, ainda que com alguns registos em português coevo, com caligrafia diferente. Divide-se em dois grandes grupos: receitas e despesas. Cada folha apresenta a informação dividida por três colunas, sendo a da esquerda reservada às notas do tabelião, a do centro apresentava um resumo da informação que se pretendia registar e a da direita seria utilizada para registar valores em reais. Braga, Arquivo Distrital, Ms. 1019. 10 BUESCU, Ana Isabel – D. João III (1502-1557). Lisboa: Círculo de Leitores, 2005, p. 247. 11 BUESCU, Ana Isabel – D. João III (1502-1557)…, p. 248. 12 Sobre as motivações de D. João III para a transferência da Universidade, ver: DIAS, Sebastião da Silva – A Política Cultural da Época de D. João III, vol. I, Tomo I e II. Coimbra: Instituto de Estudos Filosóficos/ Universidade de Coimbra, 1969; CRAVEIRO, Maria de Lurdes – “A Reforma Joanina e a Arquitectura dos Colégios”. Monumentos 8 (março 1998). pp. 20-25; BUESCU, Ana Isabel – D. João III (1502-1557)…, pp. 245-259. ABASTECER UM ESTALEIRO CONSTRUTIVO: O EXEMPLO DO COLÉGIO DA GR AÇA [...] 351 meio urbano que se revelava mais propício à implementação do ideário humanista13. A cidade de Coimbra iria ser, assim, o lugar eleito para o empreendimento deste projeto reformista. Viria a beneficiar em larga medida, ao nível económico e social, de toda esta conjuntura. Surgiram oportunidades de trabalho para os mesteirais da construção – especializados e não-especializados – que lá habitavam ou que deambulavam pelos concelhos do reino em busca dessas oportunidades14. Paralelamente, a construção dos colégios permitiu potenciar os recursos materiais da região, como adiante veremos. Neste contexto são fundados vários colégios universitários, dentro de um amplo projeto urbanístico que se materializou na abertura da Rua da Sofia, com intento de a tornar uma via de concentração do saber; topónimo claramente condicente com essa intenção15. O seu destino passaria por servirem de apoio ao funcionamento da Universidade, suprindo-a de salas de aula e albergando o corpo docente e discente nos seus dormitórios16. A transferência da Universidade dá-se num ambiente económico-financeiro instável. Aliás, como aponta Ana Isabel Buescu, todo o reinado de D. João III se revela instável nesta matéria17. Para tal contribuíram diversos fatores que passaram pela criação de um aparelho burocrático progressivamente mais extenso e volumoso, o sustento de uma corte régia que albergava cerca de 5000 moradores a quem se pagava morada18, o casamento e dotação da Infanta D. Isabel em 1526, a compra de Maluco... No fundo, uma panóplia de despesas que consumiam uma vasta parcela do orçamento do reino, justificadas por uma tentativa do monarca em estabelecer 13 Entre várias questões, destaque-se o envio de bolseiros para as universidades de Bordéus e Santa Bárbara, a chamada de renomados mestres escolásticos como André de Gouveia, Damião de Góis e André de Resende, assim como, a criação de um ensino preparatório, que se materializa no Colégio das Artes, construído em 1542. BUESCU, Ana Isabel – D. João III (1502-1557)…, pp. 245-259. 14 Seria de certo modo comum que, ao nível europeu, diversas equipas de trabalhadores viajassem entre territórios em busca de oportunidades de trabalho. BERNARDI, Philippe – Bâtir au Moyen Âge (XIIIe-milieu XVIe siècle). Paris: CNRS Éditions, 2011, p. 34 15 Para melhor compreender a evolução urbana da cidade de Coimbra com a abertura da Rua da Sofia, veja-se: CRAVEIRO, Maria de Lurdes – O Renascimento em Coimbra. Modelos e Programas Arquitectónicos, Vol. I. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2002. Tese de Doutoramento. LOBO, Rui – Santa Cruz e a Rua da Sofia. Arquitectura e Urbanismo no Século XVI. Coimbra: EdArq, 2006. LOBO, Rui – “Um Campus Universitário em Linha.” Monumentos 25 (2006), pp. 24-31. LOBO, Rui – “Os Colégios Universitários de Coimbra: Enquadramento na Arquitectura Universitária Europeia e Seriação Tipológica”. Monumentos 25 (2006), pp. 32-45. ROSSA, Walter – DiverCidade. Urbanografia do espaço de Coimbra até ao estabelecimento definitivo da Universidade. Coimbra: Ed. do Autor, 2001; ROSSA, Walter – “A Sofia: primeiro episódio da reinstalação moderna da Universidade portuguesa”. Monumentos 25 (2006), pp. 16-23. TRINDADE, Luísa, A Casa Urbana em Coimbra. Dos Finais da Idade Média Aos Inícios Da Época Moderna. Coimbra: Câmara Municipal de Coimbra, 2002; TRINDADE, Luísa – Urbanismo na composição de Portugal. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013. 16 MARQUES, A.H. de Oliveira – “As Instituições de Cultura”, Capítulo X – "As Realidades Culturais". In MARQUES, A.H. de Oliveira e SERRÃO, Joel (dirs.) – Nova História de Portugal, Vol. V: Do Renascimento à Crise Dinástica, coord. João José Alves Dias. Lisboa: Editorial Presença, 1999. p. 470. 17 BUESCU, Ana Isabel – D. João III (1502-1557)…, p. 186. 18 PEREIRA, João Cordeiro – Portugal na Era de Quinhentos: Estudos Vários. Cascais: Patrimonia, 2003. p. 192. 352 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL um aparelho burocrático que cada vez mais lhe fosse favorável19. Aliás, toda a bibliografia que sobre esta questão se debruça aponta para uma total escassez de recursos financeiros, um endividamento externo que, com o passar do tempo, registava agravamentos constantes que rapidamente sorviam os valores lucrados com as expedições ultramarinas. Nas finanças régias do reinado do Piedoso, entre as despesas extraordinárias de carácter público praticadas entre 1522 e 1543 estavam incluídos cerca de 30 000 cruzados reservados aos estudos de Coimbra, muito provavelmente destinados aos gastos com a fundação da Universidade20 e a construção dos colégios21. No entanto, no estado atual das investigações, não é possível ter uma perceção do impacto financeiro que a construção dos colégios comportou para as finanças da coroa, uma vez que são raros os estudos que abordam esta temática, e ainda mais raras as fontes documentais especificas sobre esta questão. Em acréscimo às avultadas quantias despendidas em gastos ordinários – inerentes ao funcionamento do aparelho burocrático, sobretudo de carácter público – e extraordinários – que João Cordeiro Pereira apelidou de “extravagantes” – tenhamos em conta as constantes letras de câmbio a que se recorreram nas praças de Antuérpia ou Medina del Campo e que elevaram as dívidas da coroa ao valor de 808 600 000 reais em 153422. 2. O Colégio da Graça de Coimbra. O contexto anteriormente esboçado aponta-nos para a iniciativa régia como principal motor do desenvolvimento cultural e urbano da cidade de Coimbra. Porém, note-se que para o surgimento das estruturas colegiais foi necessário que as ordens religiosas se interessassem por as fundar e lhes conferir corpos administrativos. O Colégio da Graça parte da iniciativa fundacional da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, também conhecidos, na província portuguesa, por Agostinhos. A ordem construiu as suas primeiras casas em Lisboa de onde, de resto, partem diversas remessas monetárias para construção do Colégio da Graça. À época encontravase num processo de reforma espiritual e estrutural, com a vinda de reformadores BUESCU, Ana Isabel – D. João III (1502-1557)…, p. 187. Questão que merece melhor desenvolvimento – impossível nas linhas que aqui se escrevem – que se encontra plasmado em: ALARCÃO, Rui de et. alli (orsg.) – História da Universidade em Portugal. 2 vols. Coimbra: Universidade de Coimbra, [D.L.] 1997 21 Que ocorreram, sobretudo, após 1537, data da transferência dos Estudos-Gerais de Lisboa para Coimbra. São contemporâneas da construção do Colégio da Graça as construções do Colégio do Carmo (iniciada em 1540), do Colégio de S. Pedro (fundado em 1540), do Colégio de São Tomás (fundado em 1543) e o Colégio de São Boaventura (fundado em 1543). DICIONÁRIO da História de Portugal, vol. III: “Fiança – Lisboa”. Dir. Joel Serrão. Porto: Figueirinhas, 2000. p. 36. 22 PEREIRA, João Cordeiro – Portugal na Era de Quinhentos..., p. 190. 19 20 ABASTECER UM ESTALEIRO CONSTRUTIVO: O EXEMPLO DO COLÉGIO DA GR AÇA [...] 353 espanhóis para Portugal ante solicitação de D. João III, após um episódio tumultuoso que envolveu as eleições para o cargo de provincial da ordem nesta província. Pela estreita ligação que nutria junto do prior-geral da ordem, Jerónimo Seripando, o monarca disponibiliza-se a apoiar a referida reforma, e a patrocinar a construção da casa que os Agostinhos, então, queriam construir em Coimbra23. De resto, será uma constante a participação ativa do monarca no aprovisionamento financeiro do estaleiro. Sendo D. João III o principal impulsionador do empreendimento cultural na cidade de Coimbra, seria expectável que assumisse um papel mecenático de relevo, sobretudo com o intuito de conferir certa celeridade ao processo construtivo, conquanto que este nunca embargasse por escassez de fundos. Percentagem dos valores recebidos segundo proveniência: 4 140 000 reais 340 000; 8% 683 000; 17% 3 117 000; 75% Rei Vila Franca Bispo de Coimbra Gráfico 1 – Distribuição em percentagem das receitas atribuídas para a construção do Colégio da Graça de Coimbra (1543-1547). A construção do Colégio da Graça de Coimbra insere-se, assim, neste espectro reformista. Assim como atestado pelo registo de abertura do Libro das obras del Collegio de Nuestra Señora de Gracia, a construção teve início a 3 de março de 1543, sob direção técnica e artística de Diogo de Castilho. Neste registo é indicada a primeira receção de uma remessa monetária, de patrocínio régio, precisamente para 23 ALONSO, Carlos – “Las Visitas de Tres Priores Generales del Siglo XVI a la Provincia Agustina de Portugal”. In CRUZ, Maria do Rosário Temudo Barata et alii (eds.) – Amar, Sentir e Viver a História: Estudos de Homenagem a Joaquim Veríssimo Serrão, Vol. I. Lisboa: Edições Colibri, 1995. pp. 275-289. 354 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL que se comprassem os chãos e se principiasse à construção24. Desse momento em diante, pelo menos até 1547, são registados cerca de 4.140.000 reais (cerca de 10 350 cruzados25) dos quais, como é possível atestar através do gráfico 1, 75% foram providos pelo rei, perfazendo 3.117.000 reais (7800 cruzados)26. Viria a durar até 1548, apesar da igreja apenas ter sido consagrada e terminada em 155527. Infelizmente, o livro de obras, apenas dispõe dos registos referentes à construção do colégio, pelo que ficou por se registar a despesa da construção da igreja. Ainda assim, à luz do que referimos no início deste nosso trabalho, o testemunho constante de 5 anos de construção é importantíssimo para a compreensão da dinâmica do estaleiro aqui em estudo. A construção conheceu ritmos diversos que conseguimos acompanhar através do número de registos dos contratos celebrados com os trabalhadores, tendo em vista obras de pedraria, carpintaria e, em menor escala, de ferraria. A julgar pelos prazos estabelecidos nos diversos contratos de empreitada, foi necessário conferir uma certa celeridade ao processo construtivo, muito provavelmente pela vontade do monarca em tornar efetiva a reforma do ensino, conquanto que as estruturas de apoio tivessem construídas em tempo útil28. Esse ritmo construtivo, inicialmente acelerado, vai-se esbatendo nos finais de 1547 com o aproximar do fim da construção da estrutura reservada ao colégio. Vejamos, então, em que moldes se processou a aquisição de material e todas as condicionantes que a envolveram. 2.1. Aquisição de material. O abastecimento material de um estaleiro suscita na cidade onde se insere um processo de potencialização dos seus recursos materiais. Usualmente, os estaleiros medievais e modernos recorriam a estratégias de aquisição/extração de matériaprima para a construção que poderiam passar pelo abastecimento de material construtivo nas zonas que os circundavam ou pela construção do edifício junto a regiões ricas nesses recursos29. Prática que, pelo menos no caso português, não Braga, Arquivo Distrital, Ms. 1019. fl. 2. Optamos por apresentar os valores na unidade monetária cruzado em virtude de termos feito referência às finanças régias nessa mesma moeda. De qualquer modo, a unidade monetária mais utilizada no livro de obras era o real. A conversão é-nos dada pelo próprio livro de obras, presente em cada página na coluna da direita. Assim, 1 cruzado equivalia a 400 reais. 26 Confrontando este valor com o que acima mencionamos acerca das finanças régias no reinado de D. João III, questionamo-nos sobre a sua proveniência. Muito provavelmente seriam valores que fariam parte dos 30000 cruzados reservados aos estudos ainda que, ao nível cronológico, não se enquadrem nas balizas apresentadas. DICIONÁRIO da História de Portugal, vol. III: “Fiança – Lisboa” …, p. 36. 27 CRAVEIRO, Maria de Lurdes – Diogo de Castilho e a Arquitectura da Renascença em Coimbra. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1990. Dissertação de Mestrado. p. 120. 28 A 3 de Outubro de 1547, Pero Luís, João Luís e Jerónimo Afonso contrataram terminar a obra de pedraria do claustro e colocar os alcaduçes necessários dali a 8 meses, em junho de 1548. Braga, Arquivo Distrital, Ms. 1019. fl. 37v. 29 BERNARDI, Philippe – Bâtir au Moyen Âge…, p. 50. 24 25 ABASTECER UM ESTALEIRO CONSTRUTIVO: O EXEMPLO DO COLÉGIO DA GR AÇA [...] 355 parece ter sido usual, sobretudo na construção de edifícios de caráter religioso, que tenderia a eleger regiões consagradas ou pré-determinadas. De toda a maneira, era desejável que o acesso à matéria-prima fosse o menos custoso possível; o transporte dos recursos materiais era, regra geral, bastante moroso e dispendioso, variando consoante a qualidade dos materiais, a distância e caminho a percorrer até que estes fossem entregues no estaleiro. Porém, em situações onde o orçamento se revestia de um certo desafogo financeiro e acompanhava a magnanimidade que se pretendia conferir ao edifício, recorria-se, não raras vezes, a uma “importação” desse material construtivo de outras zonas do reino ou, até, de outras regiões do globo30. Matérias-primas de excelência traziam ao edifício o prestígio desejado, a par de uma resistência sobremodo importante para a sua longevidade. Do mesmo modo, a preferência por matéria-prima homogénea, proveniente de uma região especifica – como a pedra de Ançã – potenciavam uma desejável continuidade ao nível da estética do edifício e, sobretudo, ao nível da resistência que esses materiais lhe conferiam. No decorrer da nossa investigação pudemos constatar que a construção do Colégio da Graça se fez dentro destes moldes. A recorrência a material construtivo das proximidades do estaleiro, assim como, a obtenção de terrenos onde se pudesse tirar proveito dos seus recursos – como no caso da pedreira localizada nos terrenos adquiridos para a construção do colégio31 – fizeram bandeira da estratégia financeira adotada pela administração do estaleiro, tendo em vista uma efetiva contenção desses custos. O processo de aquisição de matéria-prima era simples e análogo ao modelo de contratação de trabalhadores32: contratava-se com o produtor o fornecimento de uma determinada quantidade de matéria-prima – transformada ou por transformar –, com especificidades ao nível do seu tipo, qualidade e dimensões33. Incluíam-se também determinadas clausulas relativas aos valores a serem pagos, em que moldes 30 MELO, Arnaldo Sousa; RIBEIRO, Maria do Carmo – “Os Materiais Empregues nas Construções Urbanas Medievais. Contributo Preliminar Para o Estudo da Região do Entre Douro e Minho”. In MELO, Arnaldo Sousa; RIBEIRO, Maria do Carmo (coords.) – História da Construção: os Materiais. Braga: CITCEM, 2012, pp. 127-166. 31 A 7 de Março de 1544 paga-se a um carreiro que transportou a pedra proveniente do Monte Olivete, topónimo associado aos terrenos que foram comprados para a construção do edifício. Braga, Arquivo Distrital, Ms. 1019. fl. 118. 32 Processo que se verifica com frequência noutras construções dos finais da Idade Média, ver: MARTINS, Diana – O Paço da Alcáçova de Lisboa… e SABUGOSA, Conde de – O Paço de Cintra…, pp. 221 -243. 33 A existência de mercados de venda de materiais de construção era uma realidade ao nível europeu. Porém, o seu estudo é de difícil execução, pela carência de fontes que os comprovem, e pelo caráter volátil que lhes era inerente. BERNARDI, Philippe – Bâtir au Moyen Âge…, pp. 91-92. 356 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL e com que condicionantes34. Definiam-se as medidas exatas, em varas ou côvados e, em determinados casos, indicava-se a bitola pretendida através de um desenho que acompanhava o registo de encomenda do material. É interessante constatar o nível de especialização dos trabalhadores da construção que encontra expressão neste estaleiro, patente na distinção entre carpinteiros/serradores, oleiros/telheiros e pedreiros/cabouqueiros35, permitindonos destrinçar entre aqueles que executavam e empreendiam os materiais e aqueles que os produziam e forneciam. Número de registos no livro de contabilidade* Valores finais (Reais)** Pedra 25 19229 Madeira 161 650725 Cal 55 120375 Telha 40 60562 Tijolo 35 37538 Metal 175 128400 Total 491 1016829 Tabela 1 – Registo das despesas realizadas com a compra de material ao longo de toda a construção do edifício referente ao colégio (1543-1548). * A coluna "Número de registos no livro de contabilidade" faz referência ao número de registos existentes no livro de obras, relativamente à compra dos distintos materiais. ** A coluna "Valores finais (Reais)" contempla um somatório de todas as despesas que surgem nas restantes tabelas, divididas a nível tipológico. Os valores apresentados na tabela 1 contemplam a compra de material construtivo, dividido entre os diversos recursos utilizados. Num universo de 4.140.000 de reais despendidos na construção do colégio, cerca de 1.016.869 reais foram gastos na aquisição de material, correspondendo a um quarto do orçamento Veja-se o caso do contrato celebrado com Fernão Jorge e o seu filho Francisco Peres, moradores em Trouxemil, no dia 1 de junho de um ano que não surge indicado, para que produzissem 2 milheiros de telha pelo valor de 480 reais por milheiro. No entanto, se o material fosse entregue na sua totalidade antes do dia de Santiago (25 de julho), passaria a ser pago a 500 reais por milheiro. Arquivo Distrital de Braga, Ms. 1019. fl. 50v. 35 Note-se que, em construções de orçamentos mais modestos, seria comum que os trabalhadores se vissem obrigados a desempenhar duas funções dentro do seu mester, dado que não seria possível recorrer à contratação de mão-de-obra específica para determinada tarefa. Por outro lado, já no século XV existia nas obras do Mosteiro da Batalha o cargo de capitalador e, inclusive, um mestre vidreiro. GOMES, Saúl António – “Um estaleiro medieval de Excelência: O Mosteiro da Batalha”. In MATEUS, João Mascarenhas (ed.) – A História da Construção em Portugal: Alinhamentos e Fundações. Coimbra: Almedina, 2011. pp. 49-78. 34 ABASTECER UM ESTALEIRO CONSTRUTIVO: O EXEMPLO DO COLÉGIO DA GR AÇA [...] 357 disponível. Sabemos que estes não são valores absolutos. Para além do caráter incompleto de certos registos – uma vez que na maior parte dos casos estes dependiam de pagamentos em prestações, sobre as quais não nos é apresentado um balanço final – acresceriam igualmente os associados ao transporte dos materiais – poucas vezes referidos neste livro de obras – que, tanto quanto sabemos, poderiam ser imputados a quem vendia, ou a quem comprava. Atendendo aos valores referentes à aquisição de pedra, podemos constatar que, no panorama geral da aquisição dos restantes materiais, estes se revelaram irrisórios, constituindo um contrassenso se os considerarmos como absolutos. Porém, relacionavam-se apenas com o pagamento da extração e desbaste da matéria-prima ao pedreiro ou cabouqueiro que a executava, geralmente a rondar os 10 reais por carrada, ao invés do preço da pedra em concreto36. A pedra foi adquirida em regiões relativamente próximas do estaleiro, como parte da estratégia delineada tendo em vista a redução de custos no seu transporte. Assim, pela toponímia das pedreiras referidas nos registos de compra de material, duas seriam relativamente próximas ao estaleiro: a do Monte Olivete, à qual já fizemos menção anteriormente; e de São Lázaro, possivelmente localizada junto ao atual hospital da Universidade de Coimbra, propriedade de Diogo de Castilho37. Constata-se, então, que o estaleiro se abasteceu de pedra, quase exclusivamente, na região de Coimbra. A exceção, neste caso, vai para a compra de pedra da região de Ançã. Esta matéria-prima é categorizada dentro dos recursos materiais de prestígio, a que anteriormente aludimos, nomeadamente por tipicamente compor construções onde o investimento financeiro era deveras superior. A sua resistência, beleza e facilidade no manuseamento tornavam-na uma matéria-prima pouco acessível e de maior pendor escultórico. No entanto, na cidade de Coimbra era possível obtê-la por valores mais reduzidos, uma vez que Ançã se localiza geograficamente nas suas imediações. O que, por sua vez, pode justificar que este recurso material tivesse sido empregue com alguma frequência nesta construção. A madeira, por seu turno, chegava ao estaleiro de zonas geográficas bem mais distantes de Coimbra. Pelos registos de compra e venda de material, pudemos apurar que o estaleiro comprou madeira a serradores e/ou madeireiros que eram moradores em Miranda do Corvo, Cantanhede, Penacova, Carapinheira, Tentúgal, Santa Comba 36 Existem vários exemplos nos contratos e/ou pagamentos avulsos realizados junto dos pedreiros e cabouqueiros. Vejam-se os anexos à nossa tese de mestrado onde incluímos tabelas que permitem ter uma melhor visão de conjunto sobre esta questão. PONTES, João – Construção do Colégio da Graça..., pp. 89-96; 187-190. A título de exemplo, veja-se o pagamento feito a António Eanes, cabouqueiro, no dia 26 de abril de 1544, pela extração de 55 carradas de pedra, sendo pago com 550 reais, perfazendo os já mencionados 10 reais por carrada. Braga, Arquivo Distrital, Ms. 1019. fl. 113v. 37 Ainda que exista um valor associado pela sua aquisição, 8,5 reais por carrada, é demasiado irrisório para que se possa considerar que tenha sido pago pela pedra em si. Braga, Arquivo Distrital, Ms. 1019. fl.106. 358 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Dão, Lousã e Vila Nova e, fora do termo, em Coja, no atual concelho de Arganil38. Também na aquisição desta matéria-prima vemos que Diogo de Castilho assume um papel de relevo, ao vender ao estaleiro um tipo específico de madeira, o tabuado de portu, muito provavelmente também ela proveniente de uma das suas propriedades39. Neste sentido, a compra de madeira já nos permite ter uma noção mais clara quer da sua forma de obtenção, quer dos tipos e formatos obtidos. O estaleiro assumiu preferência pela aquisição de madeira proveniente do castanheiro, pinheiro e carvalho, sendo de notar que apenas o castanheiro não se configurava como uma das espécies autóctones da região40. Através de diversos contratos ou de compras diretas, denota-se uma procura de madeira já transformada por parte do estaleiro, dividindo-se em formatos e dimensões variadas, nomeadamente: xemezes41, traves de diversas medidas sendo as mais comuns de 10 e 12 côvados, barrotes, tabuado, paus, ripe e formatos indefinidos que comodamente se designavam por “madeira”. Regressando à tabela 1, podemos constatar que o valor associado à compra de madeira foi aquele que maior expressão teve no orçamento destinado à compra de material. Usualmente, em edifícios de prestígio, recorria-se à madeira enquanto material construtivo por motivos de apoio à construção – fabrico de utensílios, andaimes, cimbres –, assim como, para a construção dos solos, divisórias das celas, janelas, portas, entre outras estruturas necessárias, mas não essenciais. A estrutura base do edifício seria a pedra que, por seu turno, seria complementada com o uso da madeira, do ferro, da cal e de diversos materiais de olaria42. Para a compra de madeira dispomos de diversos valores que poderiam variar consoante a sua qualidade, quantidade e dimensão. Conforme pudemos constatar, os valores para o tabuado proveniente do castanheiro oscilaram entre os 120 e os 170 reais a dúzia. Existiram casos onde os valores de compra variaram das balizas apresentadas, mas onde variavam, também, as dimensões: 300 reais a dúzia pela compra de barrotes deste tipo de madeira. Do tabuado proveniente do carvalho, os valores pela dúzia oscilaram entre os 90 e os 100 reais, para tábuas de 10 ou 12 côvados, 38 Orlando Ribeiro e Hermann Lautensach num esforço de divisão do território português em secções com características comuns ao nível da flora, enquadram a região de Coimbra entre a secção Norte e a da Estremadura. Apresenta um coberto vegetal onde predomina o carvalho alvarinho, carvalho negral, pinheiro bravo, muitas espécies de urze e tojo e o feto comum (secção Norte) assim como o carvalho português – na variedade de Quercus de folha caduca e perene – carrasco, a oliveira – na variedade de zambujeiro e na variedade de cultivo –, o pinheiro bravo e o carvalho anão (secção Estremadura). RIBEIRO, Orlando e LAUTENSACH, Hermann – Geografia de Portugal, Vol. II. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1988, p. 551. 39 A denominação deste tipo de tabuado deixa algumas dúvidas. Poderia ser um tabuado proveniente da região do Porto, onde Diogo de Castilho era proprietário de alguns terrenos. Braga, Arquivo Distrital, Ms. 1019. fl. 89. 40 Sobre esta questão, remetemos para uma das mais conceituadas e completas obras que existem para o estudo da flora e da paisagem natural de Portugal ao longo de vários períodos históricos: RIBEIRO, Orlando; LAUTENSACH, Hermann – Geografia de Portugal, vol. I e II. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1987 e 1988. 41 Paus de pequena dimensão. 42 MELO, Arnaldo Sousa; RIBEIRO, Maria do Carmo – “Os Materiais Empregues...”. pp. 127-166. ABASTECER UM ESTALEIRO CONSTRUTIVO: O EXEMPLO DO COLÉGIO DA GR AÇA [...] 359 respetivamente. Finalmente, do tabuado extraído do pinheiro, os valores variaram entre os 60 e os 130 reais, mediante as dimensões e, cremos, a sua proveniência. Para além disso, o tabuado proveniente de Coja e de Tentúgal foi comprado a valores próximos dos referidos. Para o caso de Coja, contratou-se o aprovisionamento de tabuado de palmo e meio por 90 reais a dúzia e de 2 palmos por 130 reais a dúzia. Já para a madeira que chegou ao estaleiro vinda de Tentúgal, foi comprada em duas instâncias por 140 e 145 reais a dúzia43. Dos restantes materiais em uso na construção deste edifício destaque-se o uso da cal, do barro e argila – em diversos formatos – e das ferragens e diversos objetos em ferro. Importa aqui termos presente que, entre os diversos recursos materiais utilizados na construção, aqueles que mais intimamente se relacionam com o meio urbano são a cal e os materiais de olaria. Isto porque a sua produção depende da préexistência de um forno, grosso modo parte integrante do “mobiliário” urbano. Estas estruturas podiam pertencer a privados ou, como em alguns casos, à coroa, a qual cedia a sua utilização aos habitantes de uma determinada região44. Em ambos os casos o produto final era obtido através da cozedura de um determinado material: pedra calcária para o caso da cal e argila e barro para o caso do tijolo e telha45. A cal era utilizada como material ligante na produção de argamassas e, paralelamente, como tinta para pintar os muros e paredes dos edifícios46. Pela quantidade de registos de compra presentes no livro de obras, cremos que se tenha recorrido a esta matéria-prima com diversos intuitos. Porém, é curioso constatar que apenas conseguimos apurar a identidade de um vendedor deste material: Tristão Dias, caieiro e morador na cidade de Coimbra. O contrato que firmou com o estaleiro para o fornecimento de cal, seguindo uma lógica de imobilidade inerente aos fornos de cal, aponta para que tenha sido precisamente dessa cidade que este caieiro forneceu o material. De um modo parcial são referidos outros dois caieiros que, apesar de não termos menção concreta acerca da sua proveniência, podemos intuí-la através dos seus nomes: Pedro Eanes da Póvoa e Fernando Eanes de Bordalo47. 43 Para um melhor esclarecimento desta questão, veja-se: PONTES, João – Construção do Colégio da Graça..., pp. 96-105. 44 Veja-se um caso proveniente da Chancelaria de D. Manuel I, onde este doa ao Mosteiro da Batalha os fornos de cal e telha, adquiridos para auxílio da construção do dito mosteiro. GOMES, Saúl António – “Materiais de Construção na Região de Leiria em Tempos Medievais”. In MELO, Arnaldo Sousa; RIBEIRO, Maria do Carmo (coords.) – História da Construção: Os Materiais. Braga: CITCEM, 2012. p. 175. 45 GOMES, Saúl António – “Materiais de Construção na Região de Leiria em Tempos Medievais”. In MELO, Arnaldo Sousa; RIBEIRO, Maria do Carmo (coords.) – História da Construção: Os Materiais. Braga: CITCEM/LAMOP, 2013. pp. 127-166. 46 A 13 de Outubro de 1547 comprou-se cal para que fosse empregue nos alicerces do claustro do Colégio da Graça. Braga, Arquivo Distrital, Ms. 1019. fl. 113v 47 No tempo presente, podemos encontrar analogias entre as nomenclaturas dos municípios próximos de Coimbra e os sobrenomes destes mesteirais ainda que, à falta de referências concretas, optemos por nos remeter ao silêncio. 360 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Regressando aos valores envolvidos, constatamos que a cal foi comprada pelo estaleiro, maioritariamente por valores que oscilaram entre os 90 e 100 reais por cada moio, apesar de existirem casos onde os valores praticados foram inferiores. Contudo, foram notadas algumas flutuações nos preços que podem ter sido motivadas pela tipologia e qualidade da cal, registando-se a compra de cal branca, de meirinho, velha, grossa e delgada. A qualidade pode ter sido o fator decisivo na definição do valor a ser pago pelo material48. Ao nível da olaria, sabemos que esta chegava ao estaleiro em diversos formatos: tijolos, telhas, cântaros, alguidares, entre outros. Sendo de uso mais diversificado, variando consoante o formato que conheceria, estes recursos materiais poderiam ser aplicados por todo o colégio: desde a cobertura dos edifícios aos utensílios de cozinha. Grosso modo, os formatos mais requeridos seriam a telha e o tijolo, este último, sobretudo, com o propósito de construir as abóbadas que cobrem as galerias do claustro ou as capelas laterais da igreja. Ainda que existam poucas referências à proveniência deste material, sabemos que foram celebrados contratos com um oleiro de Coimbra e outro da zona do Botão, assim como foram compradas telhas na Marmeleira e em Trouxemil. Para além destes dois casos, registou-se um curioso empréstimo de 2000 telhas que foi concedido pelos padres do Colégio de Nossa Senhora do Carmo. Por seu turno, o tijolo foi sobretudo comprado a 3 oleiros, dos quais não conhecemos naturalidade: João Peres, Dom João de Alcinha e Francisco Eanes, o velho. De toda a maneira, o estaleiro comprou telha por valores que rondaram os 480 e os 530 reais por cada milheiro. Já no que toca ao tijolo, os parcos registos de que dispomos apresentam-nos uma tipologia variada: de alvenaria, mazaril e de forcado. Sendo poucas vezes referidos os valores associados à compra de tijolos, apenas conseguimos apurar, partindo de registos singulares, que o preço do milheiro de tijolo de alvenaria custava 500 reais49; o milheiro de tijolo mazaril, 1200 reais e, por fim, meio milheiro de tijolo de forcado valia 350 reais50. Finalmente, a compra de ferro foi feita quase que em exclusivo a Gabriel de Rosa. À exceção da compra de uma ampla lista de diversos tipos de pregos, a quase totalidade de aquisições de material construtivo em ferro foi feita junto deste ferreiro, o qual, assim cremos, também seria responsável pelas empreitadas de ferraria que lá tiveram lugar. Aliás, quando por vezes se comprou ferro em bruto, este foi dado a Gabriel de Rosa para que com este criasse os objetos pretendidos. Seguindo as grandes linhas de investigação relativas à indústria metalúrgica na Idade Média, seria PONTES, João – Construção do Colégio da Graça..., pp. 106-109. A título de curiosidade, o tijolo de alvenaria que foi comprado para as obras do Paço de Sintra, registadas no livro truncado de receita e despesa (1507-1510) publicado pelo Conde de Sabugosa, rondaria os 650 reais por milheiro. SABUGOSA, Conde de – O Paço de Cintra…, p. 228. 50 PONTES, João – Construção do Colégio da Graça..., pp. 109-113. 48 49 ABASTECER UM ESTALEIRO CONSTRUTIVO: O EXEMPLO DO COLÉGIO DA GR AÇA [...] 361 comum que as ferrarias se localizassem próximas das jazidas de extração de ferro, o que facilitava o acesso à matéria-prima e reduzia substancialmente as despesas no transporte51. Ainda assim, não nos é indicada a naturalidade deste mesteiral nem, quanto muito, a proveniência do ferro que chegava em bruto à sua oficina. De resto, o uso do ferro na construção em muito se relacionava com as estruturas de madeira que se haveriam utilizado na construção do edifício, nomeadamente por ser a estas que se acoplavam os ferrolhos, aldrabas e fechaduras e se produziam as indispensáveis ferramentas de trabalho dos diversos ofícios da construção. A compra de ferro fez-se em diversos objetos necessários, sobretudo, à segurança do edificado. Para tal, logo no início dos trabalhos foi comprado um rol de objetos em ferro que surge registado no livro de obras. Destaque-se a compra de uma variedade de tipos de pregos – pontais, mitares, palmares, caibrais e tabuares52 –, ferrolhos, aldrabas, fechaduras, entre outros. Relativamente aos pregos, os preços variavam conforme as suas tipologias: 420 reais por cada milheiro de pregos indiscriminados; 300 a 400 reais pelo milheiro de pregos tabuares; 400 reais pelo milheiro de pregos caibrais; 6 reais por 25 pregos palmares e 900 a 1250 reais pelo milheiro dos pregos mitares. No que toca aos ferrolhos, o valor pago pelos de pequena dimensão foi de 80 reais por unidade e, os de grande dimensão, entre 120 e 140 reais por cada um. Já os fechos e fechaduras mouriscos custavam 500 reais, os fechos corrediços valiam 160 reais a unidade e os fechos de golpe variaram entre 30 reais por cada unidade, numa encomenda de 4 unidades, e 250 reais por uma unidade apenas – disparidade possivelmente relacionada com dimensão do objeto. Por fim, as aldrabas grandes – indicadas num registo como sendo de palmo e meio53 – seriam pagas a 30 reais a unidade e, as de menor dimensão, entre 10 e 15 reais a unidade. 2.2. Transporte. O transporte de material constituiu uma das maiores problemáticas de resolução por parte do estaleiro. Em regra, o preço do transporte terrestre era elevadíssimo, moroso e inseguro. Transportar grandes quantidades de pedra por longas distâncias podia significar a perda de uma parte desse material, quer pelos roubos que ocorriam ao longo das estradas do reino, quer pelo que representava a difícil tarefa de o fazer ao longo de vários dias, tanto para os animais como para os próprios carreiros. Tendo certamente presente esta questão, o estaleiro optou por criar condições 51 GIMPEL, Jean – A Revolução Industrial da Idade Média, 2ª ed. Mem Martins: Europa-América, D.L. 1986. 52 Cremos que muitas destas denominações se relacionavam com a medida do prego; os pregos palmares mediriam um palmo. 53 Braga, Arquivo Distrital, Ms. 1019. fl. 181v. 362 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL que lhe permitissem poupar tempo e dinheiro no transporte de material. Logo nos primeiros registos é indicada a compra de um carro54 e de alguns bois55, os futuros responsáveis pelo transporte do material – sobremodo da pedra – dos locais de extração e/ou compra até ao estaleiro. À luz desta questão, é importantíssimo o papel de Álvaro Gonçalves, o boieiro da obra, responsável pelos transportes terrestres de que a obra necessitava. Importância essa que o colocou no “quadro” laboral permanente da obra, tendo em conta que seria pago mensalmente pelo seu trabalho – indício dessa sua efetividade no estaleiro. Paralelamente, os almocreves parecem ter sido mobilizados de modo a que realizassem alguns transportes para as obras do colégio, uma vez que surgem diversas indicações da sua envolvência em transportes que teriam como destino empreitadas concretas56. Um dos métodos utilizados pelos estaleiros para contornar os gastos ligados ao transporte terrestre, assim como a falta de estruturas viárias satisfatórias, passaria por os executar por via marítima ou fluvial. É interessante constatar que esta foi uma prática bastante recorrente na dinâmica comercial do estaleiro, destacando-se diversos registos onde se referencia o pagamento do frete de uma ou duas barcas ou do trabalho de uns almadieiros57 – assumimos ser um ofício semelhante ao dos barqueiros – naturais de Coja e responsáveis pelo transporte de madeira58. Outros exemplos mais específicos reforçam a ideia de que o estaleiro recorreu ao transporte fluvial como forma de ter acesso ao material a custos inferiores. Em abril de 1545, João Dias foi pago pelo transporte de 10 carradas de pedra do rio até ao estaleiro e, num outro registo relativo à madeira comprada em Cantanhede, foi necessário pagar aos barqueiros cerca de 11 000 reais por a terem transportado até à Ribeira59. De resto, é curioso constatar que, em alguns casos, os trabalhadores seriam obrigados a garantir o transporte do material do local de extração até ao estaleiro ou algum local de encontro pré-definido, o que demonstra o quão elevados poderiam ser os preços associados ao transporte. A título de exemplo, a 25 de novembro de 1544 foi firmado contrato de fornecimento de madeira de castanheiro com Brás António, morador em Santa Comba, a qual deveria ser entregue na Ribeira, pagando ele as despesas de transporte que fossem necessárias60. Braga, Arquivo Distrital, Ms. 1019. fl. 9v. Compra de uns bois grandes para buir nas obras. Braga, Arquivo Distrital, Ms. 1019. fl. 9v. 56 Existe, inclusive, a referência a um Fernando Eanes, almocreve de ofício, que transportou cal até ao estaleiro. Braga, Arquivo Distrital, Ms. 1019. fl. 114. 57 Existem algumas dúvidas em torno do método de transporte a que recorriam estes trabalhadores. Cremos que se serviam de almadias, uma espécie de canoa construída a partir de um tronco de árvore inteiro. “Almadia”. In BLUTEAU, Rafael; SILVA, Antônio de Moraes – Diccionario da Lingua Portugueza Composto pelo Padre D. Rafael Bluteau, Reformado, e Accrescentado por Antonio de Moraes Silva Natural do Rio de Janeiro, Vol. I (A-K), Lisboa: Na Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789. p. 62. 58 Braga, Arquivo Distrital, Ms. 1019. fl. 105v. 59 Braga, Arquivo Distrital, Ms. 1019. fl. 85. 60 Braga, Arquivo Distrital, Ms. 1019. fl. 89. 54 55 ABASTECER UM ESTALEIRO CONSTRUTIVO: O EXEMPLO DO COLÉGIO DA GR AÇA [...] 363 Conclusões. Ao longo da nossa exposição procuramos dar a conhecer a dinâmica laboral que imperou no estaleiro do Colégio da Graça. Mais do que isso, procuramos dar a conhecer um exemplo de dinâmica que teve por base um livro de contabilidade, dos poucos que atingiram os nossos dias com registos sequencialmente completos e tão ricos ao nível da informação disponibilizada. Assim como nos foi possível entrever, a dinâmica comercial do estaleiro passou por uma estratégia de acesso à matériaprima proveniente de regiões circunvizinhas, possivelmente motivada pelos custos associados aos transportes. Do mesmo modo, pela sua localização geográfica, teve oportunidade de ter acesso a material de requinte como a pedra de Ançã. Esta dinâmica interligou-se com a contratação de trabalhadores, uma vez que os próprios seriam responsáveis não só pela execução de determinadas empreitadas, mas, também, pela transformação e/ou extração de determinados recursos materiais, tendo em vista a sua ulterior aplicação na obra. O processo de compra de material decalcou os métodos utilizados para a contratação de trabalhadores, através dos quais se adquiria material para a construção por intermédio de contratos de empreitada, com clausulas e especificidades ao nível da entrega e pagamento. A análise que empreendemos aos custos das matérias-primas leva-nos a crer que existiam diversos fatores que afetavam os valores associados ao material. Fosse pelo requinte e qualidade das matérias-primas, ou pelas dimensões e formatos comprados, certo é que em inúmeros casos assistimos a valores diferentes para uma mesma tipologia material. Contudo, os registos do livro de obras são pouco claros e, a certo ponto, omissos no que toca às variações dos valores do material construtivo. À falta de informações concretas, podemos apenas lançar o debate sobre a possível existência de um mercado de venda de matérias-primas, organizado ao nível local ou nacional, ao qual os estaleiros recorriam de modo a obter os recursos materiais de que necessitavam. Como já aqui referimos, essa era uma realidade ao nível europeu, sendo possível que também em território nacional pudesse ter expressão. Mercado esse onde os custos dos materiais poderiam sofrer flutuações relacionadas com a oferta e a procura, com as estações do ano e o mais fácil ou difícil acesso a determinado produto. Porém serão apenas hipóteses as que aqui lançamos, uma vez que, como Philippe Bernardi aponta, as fontes para empreender tal estudo são poucas e dispersas61. 61 BERNARDI, Philippe – Bâtir au Moyen Âge…, pp. 91-92. 364 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Louça quotidiana e identidade em Santarém na Idade Média (séculos XI-XIV) Tânia Manuel Casimiro1 Carlos Boavida2 Telmo Silva3 Resumo Escavações arqueológicas desenvolvidas em Santarém permitiram a descoberta de diversos recipientes que reflectem os quotidianos dos habitantes daquela cidade durante a Idade Média (séculos XI e XIV). Este é um período de grandes mudanças políticas e, consequentemente, sociais e culturais, que se vão traduzir em alterações ao nível da produção e consumo de recipientes destinados às mais diversas actividades quotidianas. O objectivo deste trabalho é mostrar como evoluiu a morfologia e a estética destes recipientes domésticos utilizados nas mais diversas actividades desde a confecção de alimentos, armazenamento e consumo e como reflectem as identidades e alterações culturais e sociais daquela população durante a Idade Média. Palavras-chave Santarém; Cerâmica; Consumo; Identidade. 1 Instituto de Arqueologia e Paleociências FCSH/UNL; Instituto de História Contemporânea FCSH/ UNL; Associação dos Arqueólogos Portugueses. 2 Instituto de Arqueologia e Paleociências FCSH/UNL; Associação dos Arqueólogos Portugueses. 3 Instituto de Arqueologia e Paleociências FCSH/UNL. 366 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Identity and everyday pottery in Santarém during the Middle Ages (11th-14th centuries) Abstract Archaeological excavations made in Santarém led to the discovery of a high number of ceramic vessels reflecting the daily lives of the inhabitants of that city during the Middle Ages (11th-14tth century). This is a period of political, social and cultural changes reflected in the production and consumption of ceramic objects. This paper aims to discuss the morphological and aesthetical evolution of ceramic pots used in diverse activities such as cooking, eating and drinking and how these reflect regional identities, and social and cultural modifications during that time. Keywords Santarém; Pottery; Consumption; Identity. Introdução. Santarém é uma cidade localizada num planalto sobranceiro ao Tejo cujas evidências arqueológicas de ocupação medieval podem ser localizadas entre os séculos VIII e XIV identificadas por diversos arqueólogos nas últimas décadas4. Elas correspondem 4 Ver VIEGAS, Catarina; ARRUDA, Ana Margarida – “Cerâmicas islâmicas da Alcáçova de Santarém”. Revista Portuguesa de Arqueologia 2,2 (1999), pp. 105-186; BATATA, Carlos; BARRADAS, Elisabete; SOUSA, Vanessa – “Novos vestígios da presença islâmica em Santarém”. In AMADO, Carlos; MATA, Luís (coords.) – Santarém e o Magreb: encontro secular (970-1578). Santarém: Câmara Municipal, 2004, pp. 68-77; LIBERATO, Marco – A cerâmica pintada a branco na Santarém Medieval: uma abordagem diacrónica: séculos XI a XVI. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2011. Tese de Mestrado em Arqueologia (policopiado); LIBERATO, Marco – “A pintura a banco na Santarém Medieval. Séculos XI a XVI”. In GONÇALVES, Maria José; GÓMEZMARTÍNEZ, Susana (coord.) Actas do X Congresso Internacional de Cerâmica no Mediterrâneo Ocidental. Silves: Câmara Municipal, Campo Arqueológico de Mértola, 2015, pp. 777-791; LIBERATO, Marco; SANTOS, Helena – “Circulação de materiais setentrionais na Santarém medieval”. In GONÇALVES, Maria José; GÓMEZ-MARTÍNEZ, Susana (coord.) Actas do X Congresso Internacional de Cerâmica no Mediterrâneo Ocidental. Silves: Câmara Municipal, Campo Arqueológico de Mértola, 2015, pp. 461-465; SANTOS, Helena; LIBERATO, Marco – “Em torno da cerâmica pintada a branco. Uma proposta de diacronia pós-islâmica na Santarém medieval”. Arqueologia Medieval 12 (2012) pp. 59-70; SANTOS, Helena; LIBERATO, Marco – “A reafirmação da centralidade regional: séculos X-XII”. In MATIAS, António (coord.) Santarém. Carta Arqueológica Municipal. Santarém: Câmara Municipal, 2018, pp. 138-147; SILVA, Marta Cristina de São Marcos Inácio da – A Cerâmica Islâmica da Alcáçova de Santarém, das unidades estratigráficas 17, 18, 27, 28, LOUÇA QUOTIDIANA E IDENTIDADE EM SANTAR ÉM NA IDADE MÉDIA 367 a sistemas defensivos, ambientes domésticos, edifícios religiosos, necrópoles e áreas de produção. Entre 2010 e 2015 os autores foram responsáveis pela execução de diversas obras de acompanhamento arqueológico em variadas áreas da cidade5, permitindo o reconhecimento de diversos contextos arqueológicos, tanto em ambiente rural como urbano, possíveis de datar entre os séculos XI e XIV (Fig. 1). Não foram identificados vestígios posteriores, nomeadamente dos séculos XV e XVI, época de transição entre a Idade Média a Modernidade. A ausência de testemunhos arqueológicos destas cronologias parece ser comum a outras intervenções arqueológicas visto nenhum local daquelas constar na recente carta arqueológica6. As intervenções arqueológicas efectuadas pelos autores foram feitas no âmbito de obras de acompanhamento aquando necessidade de substituir infraestruturas e consequente manutenção das redes eléctrica, telefónica, de abastecimento de águas e de saneamento. Ainda que contextos identificados aquando destes acompanhamentos correspondam a diversas tipologias aqui iremos focar-nos apenas na cultura material associada a lixeiras oriundas de contextos domésticos. Esta longa cronologia corresponde a momentos de alterações fundamentais, sobretudo a nível político naquela cidade, decorrentes essencialmente da Reconquista Cristã e da instabilidade política daí resultante. Apesar de terem surgido evidências de ocupação medieval em vários locais, o presente trabalho contempla objectos recuperados na Travessa das Capuchas, Largo Pedro Álvares Cabral, Largo Pedro António Monteiro e Alfange. Nestes locais não foram apenas recuperadas cerâmicas mas igualmente objectos metálicos e vítreos, assim como um grande número de restos faunísticos, resultantes das actividades diárias dos habitantes da cidade. Estes locais foram datados com base na sua cultura material, a qual inclui numismas, de entre meados do século XI e finais do século XIV. A maior parte dos contextos medievais onde podemos reconhecer materiais arqueológicos medievais em Santarém dizem respeito a silos, que foram transformados 30, 37, 39, 41, 193, 195, 196, 197 e 210. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2011. Tese de Mestrado em Arqueologia (texto policopiado). 5 Ver BOAVIDA, Carlos; CASIMIRO, Tânia Manuel; SILVA, Telmo – “Travessa das Capuchas, Santarém. Silos e espólios trecentistas numa necrópole islâmica: primeira notícia”. Almadan 18,1 (2013a), pp. 132-134; BOAVIDA, Carlos; CASIMIRO, Tânia Manuel; SILVA, Telmo – “Os silos medievais da Travessa das Capuchas”. In ARNAUD, José Morais; MARTINS, Andrea; NEVES, César (ed.) – Arqueologia em Portugal – 150 anos. Lisboa: Associação dos Arqueólogos, 2013b, pp. 937-945; BOAVIDA, Carlos; CASIMIRO, Tânia Manuel; SILVA, Telmo – “Do Romano ao Contemporâneo: 2000 anos de Arqueologia nas Ruas de Santarém”. Arqueologia e História 66-67 (2014/2015), pp. 63-84; CASIMIRO, Tânia Manuel; BOAVIDA, Carlos; SILVA, Telmo; NEVES, Dário – “Ceramics and Cultural Change in Medieval (14th-15th century) Portugal: The case of post-Reconquista Santarém”. Medieval Ceramics 37 (2018), pp. 21-35; CASIMIRO, Tânia Manuel; FERREIRA, Ana Filipa; SILVA, Telmo – “Alfange: núcleo habitacional nos arrabaldes de Santarém em época islâmica”. Arqueologia e História 66-67 (2014/2015), pp. 85-96. 6 MATIAS, António (coord.) – Santarém. Carta Arqueológica Municipal. Santarém: Câmara Municipal, 2018. 368 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Fig. 1 – Intervenções Arqueológicas da ARPA no Centro Histórico de Santarém: 1. Rua Jaime Figueiredo 27 (2009); 2. Rua 31 de Janeiro 36 (2010); 3. Avenida do Brasil 59 (2009); 4. Praça Sá da Bandeira/Rua Serpa Pinto (2010); 5. Rua Luís de Camões (2013); 6. Rua Capelo e Ivens 98 e 100 (2009); 7. Rua Guilherme de Azevedo (2011); 8. Rua Dr. Teixeira Guedes (2009); 9. Santa Casa da Misericórdia de Santarém (2009/10); 10. Rua do Arco de Manços (2010); 11. Travessa dos Pasteleiros 9 (2012); 12. Rua Miguel Bombarda (2011); 13. Travessa das Frigideiras (2010); 14. Praça Visconde da Serra do Pilar (2009); 15. Travessa da Lameira 1 e 18 (2011); 16. Escadinhas do Carmo (2012); 17. Calçada de Mem Ramires (2012); 18. Rua 15 de Março (2012); 19. Rua de São Martinho (2012); 20. Largo do Terreirinho das Flores (2012); 21. Rua Vila de Belmonte (2013); 22. Largo Pedro Álvares Cabral (2011; 2013); 23. Rua Braamcamp Freire (2012); 24. Largo Pedro António Monteiro (2013); 25. Travessa das Capuchas (2012/13); 26. Avenida António dos Santos (2012/13); 27. Travessa Padre António Fernandes (2010); 28. Avenida António dos Santos (2013); 29. Largo de Santiago (2010); 30. Alfange (2010). LOUÇA QUOTIDIANA E IDENTIDADE EM SANTAR ÉM NA IDADE MÉDIA 369 em lixeiras aquando do seu abandono. Várias dezenas destas estruturas negativas foram reconhecidas. As razões para o abandono destas estruturas de armazenamento são rebatíveis visto que surgem transformadas em lixeiras ao longo de toda a Idade Média, notando-se uma maior incidência desta reutilização durante o século XVI. O objectivo deste texto não é uma contabilização e apresentação exaustiva de todas as cerâmicas identificadas nos contextos arqueológicos aqui indicados. Esse exercício já foi realizado noutras publicações7 onde foram apresentados os objectos identificados atendendo à sua funcionalidade e quantidade em ambiente doméstico. Concluiu-se então que as cerâmicas mais numerosas correspondiam às peças de uso comum, aquelas com as quais as relações e interacções diárias eram mais constantes, tais como panelas, caçoilas, cântaros, púcaros e taças, e que se fragmentariam com maior facilidade, aumentando o número de fragmentos identificados no contexto arqueológico. A repetição de tal informação não é pertinente neste trabalho onde procuramos explorar de que forma os objectos cerâmicos reflectem uma identidade cultural característica de determinados grupos numa perspectiva local e regional. Por identidade referimo-nos a como estes objectos reflectem a cultura de grupo de um determinado conjunto de pessoas8. Não reincidindo sobre a quantificação, a presente análise terá em conta a morfologia e decoração destes objectos de uso quotidiano ao longo de cerca de 400 anos, bem como a sua continuidade ou desaparecimento e alterações estéticas e formais ao longo deste período, entre meados do século XI e finais do século XIV. Os objectos cerâmicos. O estado de conservação destes objectos quando encontrados nestas lixeiras variava entre as peças inteiras, completas, ainda que fragmentadas e fragmentos de peças. O próprio estado de fragmentação leva-nos a ponderar as razões do seu descarte, visto que muitas destas peças encontrava-se ainda em perfeito estado de utilização, fragmentando-se no momento em que foram descartadas. As peças correspondem na sua maioria a objectos de uso quotidiano, produzidas com pastas vermelhas, de origem local, sem qualquer tratamento da superfície ou, apenas alisadas ou brunidas. As peças vidradas são raras correspondendo apenas à louça de mesa, tais como taças ou garrafas. Aqui a data de descarte é fundamental visto que, se até ao século XIII a maior parte das peças vidradas corresponde a taças, sendo as garrafas uma ínfima parte, a partir do século XIV os jarros ou picheis passam a corresponder à 7 Cf. CASIMIRO, Tânia Manuel et al. – “Ceramics and Cultural Change in Medieval …”; CASIMIRO, et al. – “Alfange ... 8 DÍAZ-ANDREU, Margarita; LUCY, Sam.; BABIC, Stasa; EDWARDS, David. N. – Archaeologies of Identity. Approaches to gender, Age, Status, Ethnicity and Religion. London: Routledge, 2005. 370 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL totalidade dos objectos vidrados. Em plena ocupação muçulmana as peças vidradas parecem ser oriundas de produções regionais, muito possivelmente produzidas em Lisboa. Estas importações regionais diminuem após a segunda metade do século XII, muito embora não se assista ao seu total desaparecimento. Objectos vidrados recuperados em Santarém mostramnos que, apesar da Reconquista Cristã, o consumo de peças ditas de influência islâmica continuou com peças caracteristicamente almóadas, nomeadamente as taças de cordões verticais, recuperadas na cidade, mantendo os contactos comerciais que possivelmente abasteciam a população muçulmana que lá continuou a viver9. Já no século XIV, os contactos com os mercados de influência islâmica tendem a desaparecer sendo os novos consumos mais orientados para um mercado norteEuropeu. Isto não significou certamente o fim da presença muçulmana na cidade onde se encontra registada, pelo menos, até a segunda metade do século XV10. As coleções contêm todo o tipo de objectos cuja função seria auxiliar nas tarefas tais como cozinhar, armazenar, beber e comer. A maior parte corresponde a cerâmica não vidrada sem qualquer tipo de decoração, enquanto noutras essa decoração daria alguma dimensão estética aos hábitos quotidianos. Passaremos, de forma muito breve, a apresentar os objectos que constituiriam os serviços domésticos e cuja descrição morfológica se torna fundamental em função dos objectivos que procuramos alcançar neste trabalho. A primeira questão a ter em conta é que, independentemente das alterações políticas que ocorreram neste período em Santarém e no Vale do Tejo, as formas cerâmicas não reflectem imediatamente essas alterações. Teremos de esperar cerca de um século, até meados do século XIII para começarmos a assistir a ténues alterações, mais a nível estético do que formal. A designação que atribuímos às formas dificilmente corresponde à designação que teriam na altura. A documentação medieval para a zona do Tejo não é profícua em nomes de objectos durante a Idade Média, generalizando o termo olla, que acreditamos corresponder a objectos destinados à confecção de alimentos11. Surgem algumas excepções, sobretudo quando encontramos designações em forais ou em taxas municipais. Contudo, deixámos essa opção de fora e decidimos designar os objectos de acordo com a terminologia já utilizada por outros arqueológos que se 9 Ver BARROS, Maria Filomena – “Poder e poderes nas comunas muçulmanas”. Arqueologia Medieval 6 (1999). pp. 73-78; LOPES, Gonçalo; SANTOS, Helena – “Um fragmento de maqabriyya mudéjar de Santarém”. In ARNAUD, José Morais; MARTINS, Andrea; NEVES, César (eds.) Arqueologia em Portugal – 150 Anos. Lisboa: Associação dos Arqueólogos Portugueses, 2013, pp. 955-960. 10 Cf. BARROS, Maria Filomena – A comuna muçulmana de Lisboa. Porto: Hugin, 1998, p. 93. 11 Cf. CASIMIRO, Tânia Manuel; BARROS, Luís – “De quem são estas ollas. Comer, beber e armazenar em Almada no século XIII”. In GONÇALVES, Maria José; GÓMEZ-MARTÍNEZ, Susana (coord.) – Actas do X Congresso Internacional de Cerâmica no Mediterrâneo Ocidental. Silves: Câmara Municipal, Campo Arqueológico de Mértola, 2015, pp. 392-397. LOUÇA QUOTIDIANA E IDENTIDADE EM SANTAR ÉM NA IDADE MÉDIA 371 dedicam a estes períodos, deixando claro que esta discussão terminológica será tão fundamental para a Idade Média como já ocorre para a Idade Moderna12. As formas mais recorrentes são aquelas que seriam destinadas à confecção de alimentos, as sobreditas ollas, todas apresentando sinais externos de terem sido expostas ao fogo. A diversidade formal e variação de tamanhos é extensa, mas exemplares semelhantes ocorrem tanto nos contextos mais antigos, claramente de cariz muçulmano, bem como nos mais recentes, centenas de anos após a Reconquista Cristã onde os muçulmanos, apesar de permaneceram já não constituíam a maioria da população. As panelas apresentam as tradicionais formas bojudas, com colos baixos e bordos extrovertidos, assentes em fundos planos ou ligeiramente côncavos com duas asas equidistantes verticais (Fig. 2 C, D, E, F, G). Eram cobertas por testos ou tampas com forma troncocónica com uma pega central, variando o seu tamanho de acordo com o recipiente que tapariam (Fig. 2 A, B). Teriam como funcionalidade a produção de ensopados e cozidos. Também destinadas à confecção de alimentos surgem as caçoilas cuja função deveria ser a de frigir. São recipientes hemisféricos, de base plana e paredes direitas sem evidência de terem possuído asas (Fig. 2 I, J, K, L, M). A ausência de marcas de fogo de alguns destes recipientes leva-nos a debater se foram efectivamente utilizadas como peças para a confecção de alimentos ou se a sua utilização foi feita apenas como objectos para consumir alimentos comumente designadas como taças e das quais encontrámos diversos exemplares. Em contextos mais antigos estas peças apresentam decoração sobre o bordo (Fig. 2 N, O). Já com uma única pega longa surgem as frigideiras, destinadas a fritar alimentos (Fig. 2 H). As taças são objectos hemisféricos ou carenados, com superfícies alisadas, assentes em fundo plano ou em pé anelar. Nos contextos mais recuados, datados do século XI, ainda de cariz essencialmente almorávida surgem alguns destes objectos vidrados a verde ou amarelo com raros exemplos de corda seca parcial13. O século XII é ainda marcado por esta existência de peças vidradas, cuja produção local/regional começa a desaparecer no século XIII, quando são substituídas exclusivamente por importações do sul de Espanha. É por esta altura que surgem os primeiros objectos comumente designados Ver BUGALHÃO, Jacinta; COELHO, Inês Pinto – “Cerâmica Moderna de Lisboa: uma proposta tipológica”. In CAESSA, Ana; NOZES, Cristina; CAMEIRA, Isabel; SILVA, Rodrigo Banha da (coords.) – I Encontro de Arqueologia de Lisboa: Uma Cidade em Escavação. Lisboa: CAL/DPC/DMC/CML, 2017, pp. 107145; FERNANDES, Isabel Maria – “Do uso das pecas: diversa utilização da louca de barro”. In CLETO, Joel; VARELA, Manuel (coords.) – Actas do IV Encontro de Olaria Tradicional de Matosinhos. Matosinhos: Câmara Municipal, 1999, pp. 12-39; FERNANDES, Isabel Maria – A loiça preta em Portugal: Estudo histórico, modos de fazer e de usar. Braga: Universidade do Minho, 2012. Tese de Doutoramento em História, Especialidade em História Contemporânea (policopiado); CASIMIRO, Tânia Manuel; GOMES, João Pedro – “Formas e sabores: alimentação e cerâmica nos séculos XVII e XVIII”. In Da mesa dos Sentidos aos Sentidos da Mesa. Actas do 4.º Colóquio Luso-Brasileiro de História e Culturas da Alimentação. Coimbra: Projecto DIATA (no prelo). 13 Cf. CASIMIRO, Tânia Manuel et al. – “Alfange …” 12 372 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL de prato/tampa, ainda que esta funcionalidade seja discutível. Estes irão perdurar, sem alterações na forma, pelo menos até inícios do século XVI, quando começam tendencialmente a desaparecer dos contextos arqueológicos14. Fig. 2 – Cerâmicas medievais de Santarém. A segunda categoria mais comum de objectos será o que temos vindo a designar de louça de água, ainda que o termo só apareça na documentação já nos inícios do século XVI15. A sua abundância relaciona-se novamente com o seu constante 14 Ver TEIXEIRA, André; PAREDES, Fernando Villada; SILVA, Rodrigo Banha da (eds.) – Lisboa 1415 Ceuta. História de Duas Cidades. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa/Ciudad Autonoma de Ceuta, 2015. 15 Cf. CASIMIRO, Tânia Manuel – “Material Culture from the Al Hallaniyah Isle early 16th century LOUÇA QUOTIDIANA E IDENTIDADE EM SANTAR ÉM NA IDADE MÉDIA 373 manuseamento que levaria a uma quebra frequente destes objectos. Correspondem sobretudo a jarros e a púcaros. Ainda que não possamos ignorar a possibilidade de que alguns deles pudessem guardar vinho, é provável que essa funcionalidade estivesse sobretudo reservada para os jarros e pichéis vidrados que foram recuperados. São objectos bojudos apenas com uma asa e colo alto, com ou sem bico (Fig. 3 A, B, C, D, E). A decoração corresponde a pinceladas brancas ou a caneluras ao longo do corpo. São raros os objectos brunidos, ainda que pelo menos um exemplar tenha sido recuperado (Fig. 4). O nosso conhecimento de louça revestida a vidrado de chumbo para os séculos XIII e XIV é ainda muito escasso e, na maior parte das vezes, quando encontrados, são classificados como provenientes do Norte da Europa, sobretudo da França e da zona da actual Bélgica, com alguns objectos semelhantes a produções inglesas16. Contudo, não podemos ignorar o recente trabalho arqueométrico efectuado em alguns objectos vidrados recuperados em Torres Novas, datados do século XIV, que indicam a possibilidade de produção destas cerâmicas no Vale do Tejo17. A produção de objectos vidrados na zona do Vale do Tejo encontra-se confirmada arqueologicamente desde meados do século XV18. Anteriormente, ainda durante o século XI e XII, seriam produzidos em Lisboa19, pelo que o hiato produtivo entre o século XIII e XV deverá ser reconsiderado. Os púcaros seriam usados sobretudo no consumo de água. Por serem peças de uso pessoal e quotidiano são muito frequentes e apresentam uma interessante evolução entre os séculos XI e XIV. Surgem ainda em período islâmico com uma asa, assentes em bases planas, decorados nas paredes externas com pintura a branco ou vermelho (Fig. 3 G). Durante o século XIII, quanto mais nos aproximamos do século XIV, estes objectos começam a surgir com duas asas e assentes em pé alto, uma forma Portuguese Indiaman wreck site”. International Journal Nautical Archaeology 47 (2018), pp. 1-22. 16 Cf. SILVA, Rodrigo Banha da; BARGÃO, André; FERREIRA, Sara; OLIVEIRA, Filipe – “O comércio medieval de cerâmicas importadas em Lisboa: o caso da Rua das Pedras Negras n.os 21-28”. In ARNAUD, José Morais; MARTINS, Andrea (edit.) Arqueologia em Portugal – Estado da Questão. Lisboa: Associação dos Arqueólogos Portugueses, 2017, pp. 1523-1538. 17 Cf. FERREIRA, L. F. Vieira; GOMES, M. Varela; PEREIRA, M. F. C.; SANTOS, L. F.; MACHADO, I. Ferreira – “A multi-technique study for the spectroscopic characterization of the ceramics from Santa Maria do Castelo church (Torres Novas, Portugal)”. Journal of Archaeological Science: reports 6 (2016), pp. 182-189. 18 CF. BARROS, Luís; BATALHA, Luísa; CARDOSO, Guilherme; GONZALEZ, António – “A Olaria Renascentista de Santo António da Charneca – Barreiro”. In TEIXEIRA, André; BETTENCOURT, José António (eds.) – Velhos e Novos Mundos: Estudos de Arqueologia Moderna. Lisboa: Centro de História de Além-Mar, Universidade Nova de Lisboa e Universidade dos Açores, 2012, pp. 699-710. 19 Cf. GASPAR, Alexandra; AMARO, Clementino – “Cerâmicas dos seculos XIII-XV da cidade de Lisboa”. In ARCHIMBAUD, Danielle G. (dir.) – La Céramique Médiévale en Méditerranée: Actes du 6e congrès. Aix-en-Provence: Narration Editions, 1997, pp. 337-345; BUGALHÃO, Jacinta; GOMES, Sofia; SOUSA, M.ª João – “Consumo e utilização de recipientes cerâmicos no arrabalde ocidental de Lisboa islâmica (Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros e Mandarim Chinês)”. Revista Portuguesa de Arqueologia 10,1 (2007), pp. 317-343. 374 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Fig. 3 – Cerâmicas medievais de Santarém. LOUÇA QUOTIDIANA E IDENTIDADE EM SANTAR ÉM NA IDADE MÉDIA Fig. 4 – Cerâmicas medievais de Santarém. Fig. 5 – Cerâmicas medievais de Santarém. 375 376 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL que se torna característica dos contextos medievais no Vale do Tejo20 (Figs. 3 K, L, M). Os mais antigos têm o corpo pintado enquanto os mais recentes não apesentam qualquer tipo de decoração (Fig. 5). Estes objectos recuperam a sua forma mais antiga a partir de meados do século XIV (Fig. 3 H). Os objectos que convencionámos chamar de canecas (Figs. 3I, J), mas cuja nomenclatura reconhecemos não ser a mais objectiva, têm apenas uma asa que acreditamos terem como funcionalidade também o consumo de água. Seriam provavelmente apenas mais um estilo de púcaro. O armazenamento era feito em potes de grandes dimensões por norma designados de talhas. Ainda que surjam muitos fragmentos não foi recuperado nenhum objecto completo. Recuperaram-se sobretudo bordos e colos, alguns apresentando decoração, revelando que seriam recipientes que poderiam ocupar lugar de destaque no interior das casas. Potes de menores dimensões poderiam igualmente cumprir esta função. As candeias que queimariam azeite eram utilizadas na iluminação. Estes pequenos objectos tendem a substituir os candis caracteristicamente islâmicos, com os seus longos bicos, e irão perdurar nos contextos arqueológicos até, pelo menos inícios do século XVIII. Por esta altura o número de candelabros aumenta pelo que acreditamos que as velas passam a ocupar um lugar de destaque na iluminação doméstica, ou então as candeias passam a ser efectuadas noutros materiais. Os fogareiros cumpririam a função de auxiliar na produção de alimentos ou no aquecimento. Esta é uma forma que irá perdurar, sem grandes alterações até ao século XX. A grande distinção entre os quatro séculos que aqui apresentamos regista-se essencialmente não ao nível das formas, mas da decoração, onde a identidade cultural dos seus produtores e consumidores pode ser assinalada. Nos contextos possíveis de datar de uma ocupação dita islâmica a maior parte da louça é decorada com pintura a branco. Consiste sobretudo em pinceladas verticais brancas, em grupos de três ou cinco, ou linhas horizontais, também brancas. Nas caçoilas e taças essas pinceladas surgem no bordo e nos púcaros e jarros sobre o bojo ou junto ao bordo (Fig. 5). Esse tipo de decoração não termina imediatamente com a nova instalação política, continuando pelo menos até finais do século XIII21. Será mais ou menos por esta altura e os inícios do século XIV, que a dinâmica de contactos culturais conhece novos parceiros no norte da Europa e diminuí a interacção com o Mediterrâneo, onde se começa a assistir ao fim deste tipo de decorações para apostar nas superfícies simples e apenas com algumas caneluras. Cf. CASIMIRO, Tânia Manuel; BARROS, Luís – “De quem são estas ollas…” Cf. LIBERATO, Marco – “A pintura a branco na Santarém Medieval…”; LIBERATO, Marco – A cerâmica pintada a branco na Santarém Medieval… 20 21 LOUÇA QUOTIDIANA E IDENTIDADE EM SANTAR ÉM NA IDADE MÉDIA 377 Conclusão. Debater identidade através da utilização de objectos cerâmicos é um exercício que tem sido feito comummente através de evidências arqueológicas22. Os objectos podem ser utilizados por grupos específicos ou comuns a uma determinada região. Este é o caso que acreditamos acontecer em Santarém. As identidades culturais que existem e partilham a cidade entre os séculos XI e XIV, talvez ainda interiormente, deixam marcas inegáveis na produção cerâmica. As peças destinadas ao consumo doméstico mantêm a sua forma durante estes quatro séculos com mínimas variações formais. É curioso assinalar que muitas das formas que eram utilizadas nesta altura vão continuar a sê-lo, por vários séculos, e que formas afins vão ser encontradas ainda em contextos dos séculos XIX, demonstrando uma continuidade cultural. Todas as peças que aqui referimos correspondem a produções locais. A sua tipologia e decoração mostram que, apesar das alterações políticas, militares e sociais, a cidade de Santarém experienciou, a par de diversas outras no vale do Tejo, aquelas não se reflectem simultaneamente na cultura material, demonstrando que nesse aspecto a mudança não é tão rápida, sendo necessário mais tempo para que seja possível notá-la nos quotidianos domésticos. As peças que identificámos em contextos mais recuados, que podemos datar do século XI, em locais como Alfange, mostram que estamos perante cerâmica islâmica. Peças semelhantes são recuperadas frequentemente em todo o Vale do Tejo, em zonas como Lisboa23, Almada24, Sintra25 ou Vila Franca26. Seria expectável que após a Reconquista Cristã estes objectos mudassem a sua forma. No entanto, como já foi notado por vários historiadores a saída das elites políticas não corresponde à saída das populações que compõem a cidade. Nesse sentido, em Santarém, apesar de o domínio cristão ter substituído o domínio islâmico, a matriz cultural das suas populações mantém-se, bem como os seus hábitos quotidianos. Os oleiros continuaram a fazer e decorar os objectos como sempre o tinham feito. Não se abandona o conhecimento adquirido, ele vai mudando ao longo de gerações. DÍAZ-ANDREU et al. – Archaeologies of Identity… Cf. BUGALHÃO, Jacinta; SOUSA, Maria João; GOMES, Ana Sofia – “Vestígios da produção oleira islâmica do Mandarim Chinês, Lisboa”. Revista Portuguesa de Arqueologia 7.1 (2004), pp. 573-643; CALADO, Marco; LEITÃO, Vasco – “A ocupação islâmica na Encosta de Santa (Lisboa)”. Revista Portuguesa de Arqueologia 8,2 (2005), pp. 459-470. 24 Cf. BARROS, Luís; HENRIQUES, Fernando – “Rua da Judiaria: um Celeiro nos arrabaldes da vila”. In ABRAÇOS, Hélder Childra; DIOGO, João Manuel (coords.) – Actas das 3.as Jornadas de Cerâmica Medieval e Pós-Medieval: métodos e resultados para o seu estudo. Tondela: Câmara Municipal, 2003, p. 135-144. 25 Cf. COELHO, Catarina – “A cerâmica verde e manganés do castelo de Sintra”. Arqueologia Medieval 12 (2012), pp. 91-108. 26 Cf. BANHA, Carlos – “As cerâmicas do Alto do Senhor da Boa Morte (Povos): estudo preliminar”. Boletim Municipal Cira 7 (1997), pp. 75-109. 22 23 378 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL As alterações demoram muitos anos a serem reconhecidas. Ocorrem sobretudo ao nível decorativo. A louça dos séculos XI e XII e mesmo XIII apresentam decoração pintada nas paredes exteriores, maioritariamente a branco. A partir do século XIII as formas mantêm-se, mas a decoração pintada desaparece. Só nos inícios do século XIV, várias gerações após a Reconquista Cristã, é que a pintura desaparece por completo na cerâmica de Santarém. A identidade cultural islâmica que marcava a decoração cerâmica mantém-se com os seus oleiros que continuam a dar à população aquilo que eles sempre consumiram. Os novos moradores que ali chegam com a alteração das elites políticas e militares certamente que consumiram o que produzia. A sua cultura vai sendo lentamente assimilada pelos oleiros. A decoração desaparece, mas as formas mantêm-se. Apesar de o assunto não se encontrar ainda estudado na zona do Vale do Tejo, este parece ter sido um comportamento comum noutras zonas, revelando uma identidade regional na produção de cerâmica, parece-nos que de matriz islâmica. Em locais como Lisboa e Almada e possivelmente noutros sítios, os oleiros islâmicos certamente que se mantiveram nos seus postos de trabalho não tendo sido forçados a alterar o seu modus faciendi, que perdurou durante séculos. As formas cerâmicas não são sujeitas a alterações de grande monta durante algumas gerações e perdem paulatinamente as suas decorações revelando que as alterações culturais a nível do quotidiano não ocorrem repentinamente. LOUÇA QUOTIDIANA E IDENTIDADE EM SANTAR ÉM NA IDADE MÉDIA 379 380 PARTE IV Espaços, Equipamentos e Rostos do Abastecimento Spaces, Infrastructure, and Faces of Supply Espaços e arquiteturas de abastecimento na cidade medieval1 Maria do Carmo Ribeiro2 Resumo O objetivo deste trabalho, centrado no estudo do provimento das cidades medievais, é analisar os espaços e as arquiteturas necessários ao abastecimento de diferentes bens e produtos. Para além das distintas atividades de produção que se desenrolam no seio da cidade, os aglomerados urbanos são igualmente centros de consumo e distribuição que necessitam de infraestruturas de suporte, como aquelas que se relacionam com o aprovisionamento de bens essenciais como a água – poços, cisternas, aquedutos, fontes e chafarizes –, assim como daquelas que permitem a sua distribuição/comercialização – açougues, fangas, adegas, fornos – algumas das quais acumulam a dupla função de produção e comercialização, como as oficinas para os mais variados mesteres (sapateiros, ferreiros, ourives, oleiros). A toponímia permite verificar que, com frequência, se evidência uma certa concentração destas atividades sob a forma de arruamento, possibilitando igualmente analisar os locais no espaço urbano que ocupavam. Em alguns casos, denotam-se similitudes espaciais e arquitetónicas entre os diferentes núcleos medievais portugueses. Deste modo, através de uma metodologia que cruza diferentes fontes (escritas, materiais e iconográficas) pretende-se analisar e comparar os diferentes espaços e arquiteturas de abastecimento de algumas cidades medievais portuguesas, em termos funcionais e tipológicos, mas também em termos de localização no espaço urbano. Palavras-chave Cidade medieval; Abastecimento; Espaços e arquiteturas. 1 Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto MedCrafts – “Regulamentação dos mesteres em Portugal nos finais da Idade Média: séculos XIV e XV”, Ref.ª PTDC/HAR-HIS/31427/2017. 2 Departamento de História/ Lab2PT/Universidade do Minho. 384 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Spaces and supply architectures of the medieval city Abstract The objective of this work, centered on the study of the supply of medieval cities, is to analyze the necessary spaces and architectures to supply different goods and products. In addition to the different production activities taking place in the city, urban agglomerations are also centers of consumption and distribution that need support infrastructures, such as those related to the provision of essential goods such as water – wells, cisterns, aqueducts, water sources and fountains – as well as those that allow their distribution / marketing – butchers, farms, cellars, ovens – some of which accumulate the dual function of production and commercialization, such as workshops for the most varied masters (shoemakers, blacksmiths, goldsmiths, potters). The toponymy allows us to verify that, frequently, a certain concentration of these activities is evidenced in the form of street layout, also making it possible to analyze the places in the urban space they occupied. In some cases, seem to exist spatial and architectural similarities between different Portuguese medieval cities. Thus, through a methodology that crosses different sources (written, material and iconographic) it is intended to analyze and compare the different spaces and supply architectures of some medieval Portuguese cities, in functional and typological terms, but also in terms of location in the urban space. Keywords Medieval city; Supply; Spaces and architectures. Introdução. A paisagem urbana medieval era composta por variados espaços e arquiteturas relacionados com o abastecimento. Dependendo da dimensão dos centros urbanos, mas também das suas principais atividades económicas, o número e a variedade de locais e construções que permitem assegurar o seu provimento, intra e extramuros, podiam ser muito significativos. Apesar do conhecimento generalizado acerca da sua existência, o local que ESPAÇOS E ARQUITETUR AS DE ABASTECIMENTO NA CIDADE MEDIEVAL 385 ocupavam no espaço urbano, a sua tipologia arquitetónica, assim como quantidade, não são necessariamente os mesmos, registando igualmente alterações ao longo da Idade Média, circunstâncias que nos permitem avaliar também determinados padrões de transformação e evolução dos espaços urbanos medievais. Nesta diversidade, importa igualmente considerar a génese do aglomerado, nomeadamente se se trata de uma criação nova ou se evolui a partir de um núcleo pré-existente, nomeadamente romano ou islâmico. Também os recursos naturais disponíveis e as características topográficas do local contribuem para esta heterogeneidade. Não menos importante é a própria trajetória histórica do aglomerado e a sua maior ou menor permeabilidade às oscilações conjunturais que ocorreram ao longo da Idade Média. De modo geral, todas as cidades medievais se constituíram, simultaneamente, como centros de produção, consumo e distribuição de bens possuindo um conjunto variado de lugares e estruturas comuns que permitiam assegurar e dar resposta à tríade básica da economia3. Nesse sentido, a análise dos espaços e das arquiteturas permite analisar simultaneamente os diferentes bens ou produtos necessários ao seu abastecimento, mas também o seu impacto na evolução morfológica e topográfica da paisagem urbana medieval. Importa, deste modo, dar resposta à questão, do que precisavam as cidades medievais e os homens que nela habitavam. Analisaremos aqueles que são mais prementes e que na generalidade são comuns a todos os aglomerados urbanos: água, cereais, carne e peixe, produtos hortícolas e produtos manufaturas (calçado, roupa, utensílios domésticos), cuja produção e distribuição se realizava mediante formas mais ou menos consensuais. Apesar de na sua esmagadora maioria estes espaços e infraestruturas não terem sobrevivido até aos nossos dias, as fontes documentais, iconográficas e materiais permitem traçar um quadro geral acerca da sua inserção no espaço urbano. Comecemos, por analisar um dos bens essenciais à vida humana, e, por conseguinte, à vida urbana, a água. 1. Abastecimento de água. A importância da água como bem essencial à vida fez da sua presença nos núcleos urbanos, nomeadamente naqueles onde se registam níveis demográficos significativos, uma presença contante e diária, circunstâncias que originam usos bastantes diversificados, mas sobretudo formas de abastecimento e gestão bastante dispares, algumas das quais contribuem fortemente para a configuração da paisagem urbana medieval4. Referimo-nos concretamente aos poços, tanques, fontes e chafarizes, que HEERS, Jacques – La Ville au Moyen Âge en Occident. Paris: A. Fayard, 1990. LEGUAY, Jean-Pierre – L’eau dans la ville au Moyen Âge. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, « Histoire », 2002. 3 4 386 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL integram os espaços urbanos medievais e que permitiam o seu abastecimento. O fornecimento de água à cidade medieval podia ser realizado de várias formas, desde logo, a partir daquela que era possível captar dentro do próprio núcleo, através nomeadamente de poços. A importância destas estruturas, ainda que arquitetonicamente pouco elaboradas, pode ser mensurável pela quantidade de referências conservadas na documentação medieval5. Na generalidade, tratavam-se de poços particulares, distribuídos por todo o espaço urbano, localizados em espaços domésticos, nomeadamente nos quintais das casas. Contudo, alguns seriam de uso coletivo, como acontecia em Évora, onde se conhecem pelo menos quatro poços do concelho6, ou em Braga, como o existente nas “casas do poço” e que a partir do século XV dará inclusivamente o nome à rua7. A importância destas estruturas de abastecimento de água estará certamente relacionada com a toponímia viária dos núcleos medievais onde se regista a existência de uma rua do poço como acontecia em Viana do Castelo8. Casos houve em que a importância destes poços foi condicionadora do local de estabelecimento da própria cidade, como foi o caso do núcleo urbano da Bemposta, tendo, em 1315, D. Dinis ordenado que “hum poço que hy esta” fosse incluído no perímetro amuralhado9. Mas a água utilizada nos núcleos urbanos podia ser pluvial, armazenada por via de tanques e cisternas. No caso das cisternas, refira-se a existente no castelo de Chaves, que ocupava todo o primeiro piso, recebendo as águas pluviais conduzidas desde o telhado por conduta de pedra, adossada à parede. Também em Bragança existia uma cisterna idêntica no castelo, e uma outra, sobre a estrutura lajeada da qual o município construiu a casa da câmara nos inícios do século XVI10. A água podia igualmente ser captada no exterior, em poços, ou ser conduzida por meio de canos de água até à cidade. No caso dos aquedutos, a toponímia permitiu imortalizar alguns dos seus trajetos dentro das muralhas através nomeadamente 5 A título exemplificativo veja-se MARQUES, A H. Oliveira; GONÇALVES, Iria; ANDRADE, Amélia Aguiar – Atlas das Cidades Medievais Portuguesas. Vol. I. Lisboa: Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova, 1990. 6 BEIRANTE, Ângela – O ar da cidade: ensaios de história medieval e moderna. Lisboa: Edições colibri, 2008, p. 185. 7 RIBEIRO, Maria do Carmo – Braga entre a época romana e a Idade Moderna. Uma metodologia de análise para a leitura da evolução do espaço urbano. Braga: Universidade do Minho, 2 volumes, 2008, Tese de Doutoramento, pp. 445-449. 8 TEIXEIRA, Manuel C. e VALLA, Margarida – O Urbanismo Português séculos XII-XVIII. Lisboa: Livros Horizonte, 1999, pp. 25-46. 9 TRINDADE, Luísa – Urbanismo e composição de Portugal. Coimbra: Imprensa da Universidade. 2013, p. 127. 10 AMARAL, Paulo e NOÉ, Paula – Câmara Municipal de Bragança / Domus Municipalis. In SIPA - Sistema de Informação para o Património Arquitetónico, 1996/2012 [consultado em janeiro de 2019]: disponível em http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=2418. ESPAÇOS E ARQUITETUR AS DE ABASTECIMENTO NA CIDADE MEDIEVAL 387 da rua dos Canos, como se verifica por exemplo em Guimarães11. Não faltam exemplo na toponímia medieval de ruas/praças/chafarizes do Cano, por, ou para onde, a água corria encanada, proveniente de nascentes localizadas, por vezes, a longas distâncias. A este propósito refira-se o caso de Braga, onde no século XV, a água era captada em nascentes localizadas a mais de 5 Km e conduzida para a cidade por meio de canos de pedra encobertos, alguns dos quais reutilizados desde os tempos romanos12. Algumas destas águas corriam em valas a céu aberto pelas ruas, como parece ter sido o caso da Rua das Águas, em Coimbra13, Leiria14 ou em Braga15, assistindo-se ao longo do século XVI a um maior cuidado e visibilidade das estruturas de abastecimento de água, dando origem ao surgimento de arquiteturas mais marcantes, nomeadamente no caso dos aquedutos aéreos, mas também de fontes e chafarizes. No caso dos aquedutos destacam-se a construção dos grandes aquedutos ainda hoje visíveis em grande parte do seu trajeto, como o de Torres Vedras, ou da Água da Prata de Évora (1530), erigido sobre a estrutura do velho aqueduto romano pelo arquiteto Francisco de Arruda, assim como uma caixa de água construída na Rua Nova, por Miguel de Arruda16, para receção e posterior distribuição por diferentes pontos da cidade, nomeadamente fontes e chafarizes públicos. No caso das fontes de água, a sua tipologia era geralmente simples, referida na documentação por vezes como cobertas ou arcadas, chamadas de mergulho ou de chafurdo, por serem compostas por um tanque, coberto por uma estrutura de pedra que podia ser abobadada, para proteger a água. O acesso ao tanque onde se mergulha o balde era feito descendo vários degraus, como seria o caso da Fonte de S. Geraldo, em Braga, situada por baixo do pátio da Igreja da Misericórdia. Neste caso, tratava-se de uma fonte subterrânea “metida num arco de cantaria muito bem feito … e as suas águas eram excelentes, tidas por milagrosas”17. Outra tipologia de estrutura simples era a fonte de espaldar, que, de acordo com FERREIRA, Maria da Conceição Falcão – Guimarães: ‘duas vilas, um só povo’: estudo de história urbana: 1250-1389. Braga: CITCEM/ICS Universidade do Minho, 2010, pp. 367-370. 12 RIBEIRO, Maria do Carmo; MARTINS, Manuela – “Contributo para o estudo do abastecimento de água à cidade de Braga na Idade Moderna. O Livro da Cidade de Braga (1737)”. In MARTINS, Manuela; FREITAS, Isabel; VALDIVIESO, Isabel (coords.) – Caminhos da Água. Braga: CITCEM, 2012, pp. 179-222. 13 CAMPOS, Maria Amélia Álvaro de – “Marcos de referência e topónimos da cidade medieval portuguesa: o exemplo de Coimbra nos séculos XIV e XV”. Revista de História da Sociedade e da Cultura 13 (2013), pp. 157-176. 14 GOMES, Saul – “A Organização do Espaço Urbano numa Cidade Estremenha: Leiria Medieval”. In A Cidade. Jornadas Inter e Pluridisciplinares, Actas. Vol. II, Lisboa: Universidade Aberta, 1993, pp. 81-112. 15 RIBEIRO, Maria do Carmo – Braga entre a época romana e a Idade Moderna…, pp. 540-42. 16 BRANCO, Manuel Branco; NUNES, Castro; BANDEIRA, Filomena – “Aqueduto da Prata / Cano da Água da Prata”. In SIPA – Sistema de Informação para o Património Arquitetónico. 1993/1994/1996 [consultado em janeiro de 2019]: http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=2755. 17 RIBEIRO, Maria do Carmo; MARTINS, Manuela – “Contributo para o estudo do abastecimento de água à cidade de Braga …”, pp. 179-222. 11 388 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Mário Barroca18 seria a mais difundida em finais da Idade Média. Apesar de se poderem tratar de simples tanques adossados a um muro, de onde pendia a bica da água, era frequente incluírem pedras de armas e epígrafes, como por exemplo se verifica em Alandroal ou Évora, de acordo com a representação de Duarte de Armas, mas também no Chafariz d’El Rei, em Lisboa, ou ainda como aquelas que são construídas em Braga nos inícios do século XVI. Na verdade, com o advento do Renascimento ao urbanismo, muitas praças foram ornamentadas com fontes e chafarizes, alguns dos quais monumentais. Em Braga, nos inícios de quinhentos, o arcebispo D. Diogo de Sousa mandou abrir várias novas praças onde são erigidas fontes com as suas armas, nomeadamente a fonte de Sousa, com seu “chafariz, calçada e terreiro, peitoril e ameias”19. Paralelemente às preocupações e regulamentações sobre o abastecimento de água às populações, o reinado de D. Manuel I regista várias reformulações nos sistemas hidráulicos, nomeadamente em fontes e chafarizes, mas também de construção de novos, como o Chafariz d’El Rei, em Évora20. Apesar da variabilidade do número de fontes de água nos núcleos urbanos, regra geral tratam-se de estruturas simples e localizadas em pontos de fácil acesso, junto às portas das muralhas, vias ou largos, assistindo-se a um tendencial aumento e monumentalização na Baixa Idade Média. Igualmente, para além da sua principal função, importa destacar o papel exercido pelas fontes e chafarizes como local de reunião e sociabilização da população urbana, particularmente feminina, e na conformação do cenário urbano medieval21 Infelizmente, muitas delas não chegaram aos nossos dias, no entanto, por exemplo, o Chafariz dos Canos, em Torres Vedras, de grande aparato e estrutura pentagonal, cuja construção remonta à década de 132022, encontra-se preservado, muito embora provavelmente alterado, assim como a fonte de S. Tiago, mandada construir por D. Diogo de Sousa, em 153123 (Figs. 1 e 2). 18 BARROCA, Mário Jorge – “A construção de fontes na epigrafia medieval Portuguesa, séc. XIV e XV”. In BARATA, Maria do Rosário Themudo; KRUS, Luís (dirs.) – Olhares sobre a História: Estudos ferecidos a Iria Gonçalves. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2009, pp.89-96. 19 RIBEIRO, Maria do Carmo; MARTINS, Manuela – “Contributo para o estudo do abastecimento de água à cidade de Braga…”, pp. 179-222. 20 AMENDOEIRA, Paula – “Chafariz Del-Rei”. In SIPA - Sistema de Informação para o Património Arquitetónico.1999. [consultado em dezembro de 2019]: http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/ SIPA.aspx?id=8854 21 TRINDADE, Luísa – “A água nas cidades portuguesas entre os séculos XIV e XVI: a mudança de paradigma”. In LOZANO BARTOLOZZI, Mª del Mar; MÉNDEZ HERNÁN, Vicente, (coords.) – Patrimonio cultural vinculado con el agua. Paisaje, urbanismo, arte, ingeniería y turismo. Mérida: Editora Regional de Extremadura, 2014, p. 367-380. 22 NOÉ, Paula; ROSA, Ana Rosa – “Chafariz dos Canos”. In SIPA – Sistema de Informação para o Património Arquitetónico. 1991/2002 [consultado em dezembro de 2019]: http://www.monumentos.gov.pt/ Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=6347 23 RIBEIRO, Maria do Carmo; MARTINS, Manuela – “Contributo para o estudo do abastecimento de água à cidade de Braga …”, pp. 179-222. ESPAÇOS E ARQUITETUR AS DE ABASTECIMENTO NA CIDADE MEDIEVAL 389 Fig. 1 – Fontes e chafarizes de Braga: Fonte de S. Tiago – D. Diogo de Sousa, séc. XVI. Fig. 2 – Fontes e chafarizes de Braga: tanque da Fonte de Sousa – D. Diogo de Sousa, séc. XVI. 390 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Fig. 3 – Fontes e chafarizes de Braga: chafariz dos Castelos, postal ilustrado do séc. XIX. Para além do uso doméstico, lavar roupa, dar de beber aos animais, a água era igualmente fundamental para algumas atividades económicas necessárias ao abastecimento da cidade, nomeadamente de transformação e produção, como as que se relacionam com o abastecimento de carne e peixe, realizado nos açougues, as peles, nos pelames ou couros, assim como para os mesteres relacionados com a atividade marítima e fluvial. Na realidade, a água regista a sua maior presença nos núcleos urbanos medievais através dos cursos de água. Regra geral, aos rios vamos ver associadas uma série de atividades relacionadas com a prática da pesca e da navegação, assim como a sua exploração como força hidráulica para, por exemplo, mover moinhos. Todavia, um dos aspetos mais assinaláveis da presença quase constante dos cursos de água nos núcleos medievais relaciona-se com o desenvolvimento urbano por eles potenciado, assim como com o estabelecimento de dinâmicas sócio ambientais resultantes da sua exploração e usufruto. A este respeito, as cidades de Lisboa e do Porto são bastante representativos. Paralelamente aos rios, Tejo e Douro, respetivamente, estes núcleos urbanos beneficiavam da proximidade com o mar. Tanto em Lisboa como no Porto, a zona ribeirinha junto aos respetivos rios terá assumido desde a ocupação humana destes locais um papel preponderante para o seu desenvolvimento, potenciando a afirmação e consolidação de ambas as cidades ESPAÇOS E ARQUITETUR AS DE ABASTECIMENTO NA CIDADE MEDIEVAL 391 no período medieval. Apesar da existência de um núcleo alto amuralhado, localizado no cimo de morros, no caso de Lisboa, correspondente ao atual morro de S. Jorge, e no do Porto, ao morro da Pena Ventosa, as características naturais destas zonas ribeirinhas terão constituído um forte atrativo para a realização de atividades comerciais, produtivas e portuárias relacionadas com a prática da navegação fluvial e marítima, e consequentemente à construção de infraestruturas de suporte, passando paulatinamente a constituir-se como importantes zonas de crescimento extramuros, ou cidade baixa, cuja importância terá continuidade até aos dias de hoje. No caso de Lisboa, o fervilhar da zona ribeirinha, localizada a poente do núcleo amuralhado alto medieval, encontra-se atestado desde o século XIII, nela se encontrando vários equipamentos navais, como as Tercenas (estaleiros navais), a Casas das Galés, algumas indústrias como as Ferrarias Régias, o paço dos tabeliões, a alfândega ou a casa dos pesos, assim como outros equipamentos relevantes para a urbe, relacionados com várias atividades comerciais, tais como o mercado do peixe e da carne, realizado nos açougues24. À semelhança de Lisboa, também no Porto, o rio Douro e as proximidades com o oceano atlântico irão potenciar o desenvolvimento urbano da zona Ribeirinha, onde, pelo menos a partir de finais do século XIII, se regista a concentração de atividades mercantis, produtivas e portuárias, que terão repercussões na urbanização da parte baixa da cidade, que será incluída no perímetro amuralhado do século XIV que bordeja o rio25. Falamos, todavia, de cidades cujas necessidades de abastecimento e consequentemente a importância enquanto centro de consumo, produção e distribuição se confundem com as do próprio reino. Na maioria das demais cidades o abastecimento era realizado numa escala muito inferior e os cursos de água potenciavam a realização de atividades económicas mais circunscritas. Referimo-nos, por exemplo, aos trabalhos de produção de peles, mas também em muitos casos ao abate e venda de animais. 2. Abastecimento de carne, peixe, cereais e produtos hortícolas. O abastecimento de carne, peixe, cereais e produtos hortícolas às cidades medievais 24 CAETANO, Carlos – A Ribeira de Lisboa na época da expansão portuguesa: séculos XV a XVIII. Lisboa: Pandora, 2004; SILVA, Carlos G. – Lisboa Medieval. A organização e a estruturação do espaço urbano. 2ª edição, Lisboa: Colibri, 2010; SILVA, Manuel Fialho – Mutação urbana na Lisboa medieval. Das Taifas a D. Dinis. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2017. Tese de doutoramento, pp. 291-391. 25 RIBEIRO, Maria do Carmo; MELO, Arnaldo Sousa – “O papel dos sistemas defensivos na formação dos tecidos urbanos (Séculos XIII-XVII)”. In RIBEIRO, Maria do Carmo; MELO, Arnaldo Sousa (coords.) – Evolução da paisagem urbana: transformação morfológica dos tecidos históricos. Braga: CITCEM/IEM, 2013, pp. 183-222. 392 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL era, regra geral, realizado em locais próprios. Entre estes, os açougues constituem um lugar de referência. Tratavam-se de edifícios que serviam para a matança de animais, preparação e venda das carnes, atividades que produziam muita sujidade e requeriam água. Em muitos casos, os açougues, tendo em conta a sua própria origem e funcionalidade no mundo islâmico, de mercado, serviam também para venda de vários outros produtos alimentares, para além de carnes e peixes. Por exemplo, nos açougues novos de Évora de 1470 vendiam-se a retalho, pão (padeiras), fruta (fruteiras), fruta seca, figos verdes e secos, limões, hortaliças (verceiras), peixe fresco e seco (pescadeiras de pescado), tripas e debulhos de bois e vacas e outras carnes cozidas, cabritos, entre outros26. Assim, os açougues constituíam um mercado de abastecimento diário, coberto e amplo, onde existia espaço para bancas, permanentes ou amovíveis, onde desde padeiras a pescadores podiam expor e vender os seus produtos, no seu interior ou nas imediações. A prática de vender nas proximidades dos açougues, terá levado D. Afonso IV, nas cortes de 1331, a proibir a colocação de tendas e bancas à porta dos açougues, justificando a medida porque embargavam as ruas27. Todavia, o aumento do consumo, nomeadamente de carne que se regista na Baixa Idade Média, em variedade e quantidade, irá potenciar o crescimento do número de profissionais que se dedicam a este oficio, particularmente carniceiros, bem como de edifícios para a sua comercialização. Não menos importante foi o estabelecimento de sistemas de distribuição pública altamente regulamentados para a carne, mas também para o peixe28. Por exemplo, no Porto os carniceiros eram obrigados a exercer o seu mester nos açougues, por imposição legal, e regra geral moravam nas suas proximidades29. Também em Évora, no século XV, a câmara determina que todo o peixe que vier para a cidade tem de ser vendido na casa construída para o efeito30 . Todas estas circunstâncias acabaram por interferir na localização e número de açougues nos espaços urbanos, assim como no seu carácter especializado e dimensão. A importância dos açougues, e consequentemente do abastecimento à cidade 26 PEREIRA, Gabriel – “Posturas antigas da Câmara de Évora”. In Documentos Históricos da Cidade de Évora. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1998 (Reimpressão da edição de 1885), p. 129. 27 BARROS, Henrique da Gama – História da administração pública em Portugal nos séculos XII a XV. Vol. II, Lisboa: Sá da Costa, 1954, pp. 162. 28 PETROWISTE, Judicaël – “En passant par le mazel. Acheter sa viande au quotidien en France méridionale à la fin du Moyen Âge”. In PETROWISTE, Judicaël; LAFUENTE GÓMEZ, Mario (dir.) – Faire son Marché au Moyen Âge. Mediterranée occidentale, XIII-XIVe siècle. Madrid: Casa de Velázquez, 2018, pp. 181-207. 29 MELO, Arnaldo Sousa – Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média: O Porto, c. 1320 – c. 1415, vol. I, Braga: Universidade do Minho, 2009. Tese de Doutoramento, pp. 239-242 [consultado em janeiro de 2020], disponível em http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/9896 30 “Posturas antigas da Câmara de Évora – as “Pescadeiras”. In PEREIRA, Gabriel – Documentos Históricos da Cidade de Évora. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1998, p. 129. ESPAÇOS E ARQUITETUR AS DE ABASTECIMENTO NA CIDADE MEDIEVAL 393 medieval de produtos como a carne, o peixe ou produtos hortícolas encontra reflexo, entre outros, na toponímia das zonas urbanas, fossem ruas, pequenas praças ou espaços junto às portas, assim como pelo lugar que ocupam, quase sempre de grande centralidade, junto dos principais edifícios urbanos, mormente o tipo de atividade que neles se realizava, pois, mais importante seria o controle do que lá se transacionava. Em larga medida, nas cidades portuguesas de média e grande dimensão existiu um primeiro açougue, localizado dentro das muralhas, nas proximidades de edifícios do poder urbano, apesar da sua atividade poluente, que depois foi remodelado ou substituído por outro, situado noutro local mais amplo do espaço urbano. Por exemplo, em Évora o açougue mais antigo localizava-se junto da igreja de S. Pedro, nas proximidades da Sé, junto a uma fonte de água, sendo no século XIV transferido para o templo romano, por razões de espaço31. Situação semelhante ocorre em Santarém32, Ponte de Lima33 ou em Braga, cidade onde o açougue velho localizado junto à Sé e aos Paços do Concelho, será transferido no século XVI para fora de muros, onde aliás permanecerá até ao século XVIII34 (Fig. 4). A justificar a enorme centralidade urbana dos primeiros açougues, encontramos nomeadamente o controlo e fiscalidade subjacente à atividade, mas também o relativo espaço necessário e ocupado inicialmente por estes edifícios, tendo em conta o consumo de carne e peixe, produtos que não seriam acessíveis a toda a população, de alguma raridade e consumo elitista. O abastecimento de vários produtos alimentares à cidade, carnes, peixes, vegetais ou pão era, deste modo, realizado de forma diária nos açougues, ou nas suas proximidades, onde aliás com frequência se localizava o mercado especializado de cereais e legumes secos, ou fangas, como em Santarém e Évora35, Viana do Castelo ou em Ponte de Lima, a partir dos inícios do século XV36. No caso de Pinhel, os açougues e as fangas funcionavam inclusivamente no mesmo edifício, descritos em 1395 como uma construção de 25 metros de comprido37. Em algumas cidades, o aumento do consumo e comercialização de carne, peixe e cereais fica atestado pela renovação e aumento do número deste tipo de edifícios, como em Lisboa, cidade onde se registam vários açougues e fangas, como as novas BEIRANTE, Ângela – O ar da cidade: ensaios de história medieval e moderna…, p. 185. BEIRANTE, Ângela – O ar da cidade: ensaios de história medieval e moderna…, p. 185. 33 ANDRADE, Amélia Aguiar – Um espaço urbano medieval: Ponte de Lima. Lisboa: Livros Horizonte, 1990, pp. 15-19. 34 RIBEIRO, Maria do Carmo; MELO, Arnaldo Sousa – “A influência das actividades económicas na organização da cidade medieval portuguesa”. In RIBEIRO, Maria do Carmo; MELO, Arnaldo Sousa (coords.) – Evolução da paisagem urbana: sociedade e economia. Braga: CITCEM, 2012, pp. 145-171. 35 BEIRANTE, Ângela – O ar da cidade: ensaios de história medieval e moderna…, pp. 185. 36 ANDRADE, Amélia Aguiar – Um espaço urbano medieval: Ponte de Lima…, pp. 15-19. 37 TRINDADE, Luísa – Urbanismo e composição de Portugal…, pp. 696. 31 32 394 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL e grandes Fangas da Farinha, localizadas junto às Carniceiras, mandados fazer por Afonso III, na Ribeira, muito provavelmente no âmbito de uma remodelação urbanística da zona, nas décadas de 50 e 60 do século XIII38. Neste caso, tratar-seiam de estruturas propriedade da Coroa, que ocupavam dimensões significativas e semelhantes, aproximadamente 7,7 metros por 17,6 metros cada uma39. De facto, o abastecimento de alguns cereais específicos, como o trigo, realizado em celeiros e paços específicos denota igualmente a grande importância que os cereais assumem no quadro económico de algumas cidades ao longo da Idade Média, como Lisboa, Porto ou Évora, requerendo a construção de estruturas de armazenamento de grandes dimensões, permitindo atestar a sua existência, assim como o seu elevado consumo40. De modo geral, nos inícios de quinhentos, regista-se uma maior espacialização dos açougues nas cidades, bem como um maior investimento na sua construção. Por exemplo, na cidade de Coimbra, a edificação do novo açougue foi obra do arquiteto Diogo de Boitaca, a mando de D. Manuel, e o de Elvas, de Francisco de Arruda41. A arquitetura da generalidade dos primeiros edifícios dos açougues seria simples, correspondendo a edifícios térreos com arcos42 ou alpendres para a rua como os açougues da carne de Braga sustentados por colunas de pedra, onde existiam ainda duas casas pequenas para os que tinham o encargo de os limpar e aos seus alpendres43. Internamente poderia estar dividido em naves, como o antigo açougue de Elvas, em 1498, “de três naves muito grandes todos de cantaria”44. Podia tratar-se de um edifício único ou estar inserido noutro, nomeadamente no paço do concelho, ocupando o rés-do-chão, como se verificava em Coimbra45. Em algumas cidades, a espacialização dos açougues para acolherem apenas a venda de carne e ou de peixe parece acolher algum significado em finais da Idade SILVA, Manuel Fialho – Mutação urbana na Lisboa medieval…, pp. 296-340. SILVA, Manuel Fialho – Mutação urbana na Lisboa medieval…, p. 339. 40 MARQUES, A. H. de Oliveira - Introdução à História da Agricultura em Portugal. A questão cerealífera durante a Idade Média. 3ª edição. Lisboa: Edições Cosmos, 1978, pp. 255-57; GONÇALVES, Iria – “Defesa do consumidor na cidade medieval: os produtos alimentares (Lisboa-séculos XIV-XV)”. In Um Olhar sobre a Cidade Medieval. Cascais: Patrimonia, 1996, pp. 29-48. 41 TRINDADE, Luísa – Urbanismo e composição de Portugal. Coimbra: Imprensa da Universidade. 2013, p. 127. 42 O açougue de Coimbra, localizado no rés-do-chão do Paço dos Tabeliães, possuía arcos de pedraria na fachada onde se encontravam a vender as peixeiras, as enxarqueiras e as tripeiras (TRINDADE, Luísa – “A Praça e a Rua da Calçada segundo o Tombo Antigo da Câmara de Coimbra, 1532”. Media Aetas, Paisagens Medievais I (2004), pp. 121-157.) 43 “Memorial das Obras que D. Diogo de Sousa mandou fazer (1532-1565)”, realizado pelo cónego Tristão Luís, pertencente ao Arquivo Distrital de Braga, Registo Geral, livro 330, fls. 329-334v, publicado por MAURÍCIO, Rui – O mecenato de D. Diogo de Sousa, Arcebispo de Braga (1505 1532), Vol. II. Lisboa: Magno Edições, 2000. 44 Cortes de Lisboa de 1498, Capítulo 26.º dos Capítulos especiais de Elvas (29-1-1498). João José Alves Dias (Org.) – Cortes Portuguesas: Reinado de D. Manuel I (Cortes de 1498). Lisboa: Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, 2002, pp. 391-392. 45 TRINDADE, Luísa – “A Praça e a Rua da Calçada…”, pp. 121-157. 38 39 ESPAÇOS E ARQUITETUR AS DE ABASTECIMENTO NA CIDADE MEDIEVAL 395 Média, muito embora em Lisboa, os Açougues da Carne e os Açougues do Peixe já existam desde meados do século XIII, cidade onde o número de mercados e postos de venda é bastante elevado. Em Braga, nos inícios do século XVI, ao açougue da carne vem juntar-se um açougue para pescado, mandado construir pelo arcebispo D. Diogo de Sousa e acerca do qual temos uma discrição muito precisa: “Mandou fazer na praça que está à porta de Sousa uns açougues para pescado de (ao) longo da rua, muito compridos e anchos (largos) e anda-se todos de arredor, são madeirados sobre 12 colunas com suas vazas e capiteis, tem dentro 4 mesas grandes de pedra postas cada uma sobre dois pilares, toda esta obra de pedraria muito bem lavrada e sobre cada mesa um tirante com dois ferros para terem a balança de pesar do pescado, todo este alpendre muito bem calçado e com degraus de pedraria”46. Estes açougues sobrevivem até ao século XVIII, momento em que são representados no Mappa da Cidade de Braga Primas (1756-57) (Fig. 4) e descritos no Livro da Cidade (1737)47 como uma estrutura retangular com aproximadamente 11 metros de comprimento por 6,5 metros de largura, sustentados, tal como no século XVI, por colunas (quatro cunhais de pedra nos quatro cantos e seis colunas também de pedra, é uma do nascente, outra do poente, duas do norte e duas do sul. Apesar das naturais remodelações que sofreram, destinando-se no século XVIII à venda de pão branco e broa, frutos verdes e secos, conservam ainda muito da sua estrutura original. Também os novos açougues da carne de Braga, construídos no século XVI, construídos fora de muros e que substituem os velhos açougues sobrevivem até ao século XVIII. De acordo com as mesmas fontes iconográficas (Fig. 4) e escritas48 atrás referidas, trata-se de um edifício isolado, retangular, com aproximadamente 34 metros de comprido por 11 metros de largura, coberto por um telhado de 4 águas. A fachada nascente era formada por grades de madeira, assentes numa parede com cerca de 1,30 metros de altura. A meio, encontrava-se uma porta de serventia, com friso em cima e as armas da cidade. Na fachada sul, também formada por grades de madeira, encontra-se a casa do peso, com acesso direto a partir da rua. Dos restantes lados, nascente, poente e norte o acesso aos açougues fazia-se por escadas que acompanhavam o declive do terreno. As restantes fachadas eram todas abertas em forma de alpendre. Internamente, encontravam-se os vários talhos. Apesar de se tratar de uma discrição do século XVIII, podemos assumir com alguma probabilidade que estruturalmente seria muito semelhante aos açougues construídos “Memorial das Obras que D. Diogo de Sousa mandou fazer (1532-1565)…”, fls. 329. Arquivo Municipal de Braga – Livro da Cidade, Vol. I: fls. 89V-90. 48 Arquivo Municipal de Braga – Livro da Cidade, Vol. I: fls. 89V-90. 46 47 396 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL no século XVI, tendo em conta o local e as características topográficas do terreno onde se mantêm, mas também o uso de alpendres para acolher este tipo de atividade e toda a amplitude e organização do espaço interno. Fig. 4 – Açougues de Braga, construídos no século XVI (Mappa da Cidade de Braga Primas). Uma das formas igualmente comum de abastecer a cidade era através de mercados e feiras que decorriam de forma periódica nos mais diversos locais do espaço periurbano e urbano, permitindo prover a cidade com os produtos das regiões limítrofes, que não podiam ser produzidos nas cidades e, simultaneamente, escoar a produção artesanal. A quantidade de feiras e mercados realizadas nas cidades medievais era pois muito variável, com Lisboa e Porto à cabeça. O local onde eram realizados dependia do espaço necessário à sua realização, bem como das facilidades de acesso ou proximidade às vias de comunicação terrestres ou fluvial49. Assim, este tipo de trocas, podiam ser realizadas em qualquer lugar vago – chão, campo, rossio ou terreio – onde era possível erguer tendas móveis, expor as mercadorias em bancas e cestos ou simplesmente no chão, preferencialmente junto aos largos existentes junto às portas das muralhas ou aos edifícios de maior centralidade, à semelhança do que se verificava no Porto, cidade onde a feira semanal se realizava no Rossio junto à Sé50. 49 RAU, Virgínia – Feiras Medievais portuguesas. Subsídios para o seu estudo. Lisboa: Presença, 1982, pp. 35-45. 50 Atualmente na fachada principal da Sé, ainda se conservam as medidas padrão do Porto (vara e a meia vara), essenciais ao comércio (MELO, Arnaldo Sousa – Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média…, vol. I, pp. 218-220.) ESPAÇOS E ARQUITETUR AS DE ABASTECIMENTO NA CIDADE MEDIEVAL 397 Paralelamente, o abastecimento à cidade de uma gama variada de produtos alimentares, como a manteiga de azeite, o mel, ovos, alhos ou cebolas podia ser realizado de forma dispersa pela cidade, à porta de casas, pelas regateiras ou por aqueles que os produziam, como se verificava em Coimbra51. Parece consensual que a realização das feiras nas cidades vá sendo paulatinamente substituída por mercados e que os locais onde estes se realizavam passem a ser designados de Praça, termo que passa igualmente a ser utilizado para designar um espaço urbano mais ordenado, delimitado pela construção de novos edifícios, mas também adornado com fontes e chafarizes. Paralelemente aos múltiplos exemplos, refira-se o caso de Braga, onde nos inícios do século XVI D. Diogo de Sousa mandou fazer inúmeras praças, nomeadamente a praça do Pão, onde mandou construir uma nova câmara da cidade de cantaria e em baixo um alpendre com dois grandes assentos de pedraria para vender o pão52. Com o tempo assiste-se à construção de algumas estruturas de apoio à realização da venda de produtos nas cidades, nomeadamente de estrebarias e alpendres. Para Braga, D. Diogo de Sousa, nos inícios do século XVI, mandou construir à porta do Souto uma casa, estrebarias e alpendres com suas colunas para pousarem de graça os almocreves que trazem mantimentos para a cidade, assim como à porta de Sousa uma estrebaria com suas manjedouras calçada e leitos para os almocreves se instalarem de graça53. 3. Abastecimento de produtos manufaturados (calçado, roupa, utensílios domésticos). O abastecimento de produtos manufaturados foi muito variável de cidade para cidade, dependendo em larga medida do desenvolvimento dos ofícios /mesteres. Num grande número de cidades foi possível a sua concentração em espaços específicos, nomeadamente em ruas, onde se situavam edifícios destinados à produção e, simultaneamente, ao comércio dos mais diversos produtos, recebendo muitas vezes os topónimos de rua das Tendas ou Tendeiras, rua dos Mercadores, rua da Sapataria, da Ferraria e de toda uma gama diversificada de mesteres. No entanto, o abastecimento diário destes bens fazia-se igualmente através de formas dispersas por todo o núcleo, nomeadamente em tendas e oficinas, numa prática bastante comum de destinar o rés-do-chão das habitações à produção e venda de produtos. Em Guimarães, por exemplo, cidade onde os mestres do calçar e do vestir parecem prevalecer, as Ferrarias ou rua Ferreira, seriam uma zona privilegiada de RAU, Virgínia – Feiras Medievais portuguesas…, pp. 175-185. “Memorial das Obras que D. Diogo de Sousa mandou fazer (1532-1565)…”, fls. 329v. 53 “Memorial das Obras que D. Diogo de Sousa mandou fazer (1532-1565)…”, fls. 329. 51 52 398 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL concentração de alfaiates54. Também em Braga, no século XIV, o setor do vestuário apresenta o maior volume de profissionais, sendo os alfaiates que dominam. No século XV, o setor dos couros parece ganhar preponderância pelo aumento do número de sapateiros, ganham igualmente maior expressão os ferreiros. A sua concentração far-se-ia preferencialmente na rua da Sapataria, muito embora nela também encontremos tecelões, mercadores, advogados, entre outros habitantes que desconhecemos a profissão55. No Porto, nos séculos XIV e XV os dois mais numerosos mesteres da cidade seriam os sapateiros e os ferreiros, concentrados preferencialmente na zona ribeirinha, já referida, onde se concertariam igualmente ourives, moedeiros, tanoeiros, entre muitos outros56. Todavia, à medida que avançamos na Idade Média, o aumento da especialização do sistema produtivo, associado a um aumento da qualidade dos produtos, faz com que se registe um maior e mais diversificado número de profissionais nas cidades. Mesmo assim, a prática do comércio de rua, associada à produção, parece constituirse num elemento altamente característico da paisagem urbana medieval, que terá continuidade nos séculos seguintes. Refira-se, a título de exemplo um conjunto de habitações na medieval rua da Sapataria de Braga, onde curiosamente até há bem pouco tempo se vendia artesanato na loja do rés-do-chão, numa prática continuada pelo menos desde o século XVI57 (Fig. 5). No Porto, por exemplo, cidade onde se registam-se vários mesteres tal como em Lisboa, os sectores dos couros e dos metais encontravam-se muito especializados, com profissionais como bainheiros, correeiros, seleiros, cutileiros, esteireiros, entre outros. No caso do Porto, paralelemente à importância do Douro e da zona ribeirinha para o desenvolvimento urbano da cidade, continuada e aumentada ao longo do século XV para poente em direção ao arrabalde de Miragaia, onde se concentram agora as atividades de construção naval, destaca-se igualmente um outro curso de água, conhecido como rio de Vila, que corria a ocidente do núcleo amuralhado alto medieval e onde se desenvolverá uma importante zona de curtição de peles, pelo menos desde os inícios do século XIV, que a partir de meados do século XV passam a ser cavados na rocha, originando mesmo os topónimos de Rua dos Pelames e Morro dos Pelames58. FERREIRA, Maria da Conceição Falcão – Guimarães: ‘duas vilas, um só povo’…, pp. 532-536. RIBEIRO, Maria do Carmo – Braga entre a época romana e a Idade Moderna…, pp. 467-472; RIBEIRO, Maria do Carmo; MELO, Arnaldo Sousa – “A influência das actividades económicas…”, pp. 183-222. 56 MELO, Arnaldo Sousa – Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média…, vol. I, pp. 242-244. 57 RIBEIRO, Maria do Carmo – Braga entre a época romana e a Idade Moderna…, pp. 467-472; RIBEIRO, Maria do Carmo; MELO, Arnaldo Sousa - “A influência das actividades económicas …”, pp. 183-222. 58 MELO, Arnaldo Sousa – Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média…, vol. I, pp. 242-244. 54 55 ESPAÇOS E ARQUITETUR AS DE ABASTECIMENTO NA CIDADE MEDIEVAL 399 Fig. 5 – Casas de origem medieval na rua da Sapataria, em Braga. À esquerda: em 2008; à direita, em 1750, segundo o Mappa das Ruas de Braga. Na realidade, esta atividade, localizada em locais próprios (pelames, couros ou tenarias) necessitava de água corrente proporcionada por rios e de preferência afastados dos núcleos urbanos, em virtude da poluição que geravam, como aconteceu nomeadamente em Guimarães, onde nas proximidades do rio de Couros, no sopé da Vila, se assiste à emergência de um arrabalde periurbano denominado de arrabalde de Couros, local estão documentados numerosos pelames de curtição durante a Idade Média, e cujos vestígios persistem até à atualidade, bem como de outro tipo de imóveis, propriedade de diversas instituições, nomeadamente confrarias de sapateiros59. No caso de Braga, também a produção de couros se estabelece, pelo menos desde o século XIV junto ao rio Este, localizada extramuros, no fim da Rua dos Pelames, junto à ponte com o mesmo nome, que atravessava o rio Este e permitia a ligação para o Porto. A antever pela existência de 37 pelames de sapateiros, mencionada no 59 FERREIRA, Maria da Conceição Falcão – Guimarães: ‘duas vilas, um só povo’…, pp. 294-298. 400 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL 4º Tombo do Cabido de meados do século XV, esta seria uma atividade económica de grande importância para a cidade60. Todavia, como referido, no Porto, os pelames irão desenvolver-se dentro de muros, numa área extramente central, contrariamente ao que se verifica em outros aglomerados, numa situação atípica, mas justificável pela sua importância para a economia do Porto, assim como a proximidade com os açougues, com os quais mantinham uma natural dependência61. Desta forma, podemos afirmar que as necessidades de abastecimento dos núcleos urbanos medievais foram geradoras de diferentes espaços e arquiteturas, reflexo das diversas formas de interação entre as características do meio ambiente em que se desenvolvem e da natureza que os rodeia, mas também da economia, da sociedade e das gentes que os habitaram. As distintas formas de aprovisionamento e gestão de bens essenciais como a água desempenharam, para além da sua função primária, um importante contributo para a sociabilidade dos habitantes nas cidades, mas também para configuração de novos cenários urbanos. Conjuntamente com os edifícios de poder, os açougues, mormente o tipo de atividade que neles se desenvolvia, ocuparam um papel de grande centralidade, constituindo um marcador arquitetónico de referência económica e urbana em quase todas as cidades. O desenvolvimento económico registado na Baixa Idade Média, decorrente do aumento da produção e da sua especialização foi acompanhado pelo surgimento de novos espaços e arquiteturas para dar resposta às crescentes necessidades de abastecimento, mas também a novas lógicas de pensar o espaço urbano. 60 RIBEIRO, Maria do Carmo; MELO, Arnaldo Sousa – “A influência das actividades económicas …”, pp. 183-222. 61 MELO, Arnaldo Sousa – Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média…, vol. I, pp. 239-244. ESPAÇOS E ARQUITETUR AS DE ABASTECIMENTO NA CIDADE MEDIEVAL 401 402 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Las Alhóndigas, una nueva arquitectura civil en la Castilla del siglo XVI. Análisis de su implantación en las ciudades Medievales José Miguel Remolina Seivane1 Resumen Las alhóndigas o pósitos del grano son una nueva tipología arquitectónica civil, que hace su aparición en las ciudades de Castilla y León en las últimas décadas del s XV y primeras del XVI. Son grandes construcciones orientadas al almacenamiento del trigo, que aunque basadas en precedentes bajo medievales, poseen unas características que las convierte en arquitecturas de gran interés, con grandes dimensiones y volumetría rotunda, y, sobre todo, contemplando ingeniosas soluciones funcionales que facilitan la carga y descarga del grano. La necesidad de agilizar la llegada del trigo aconsejó su ubicación en áreas inmediatas a las puertas de la ciudad, casi siempre ocupando áreas marginales de la ciudad medieval que así se incorporan a una nueva funcionalidad urbana. El artículo presenta las alhóndigas de Segovia y Burgos, realizando un más breve acercamiento a las de Zamora y Ávila, analizando cuáles son sus características arquitectónicas comunes y estudiando el modo en que se insertan en la ciudad medieval preexistente. Palabras clave Alhóndigas; Arquitectura medieval; Ciudad medieval; Segovia; Burgos. 1 Arquitecto. Associazione Storia della Città: jmiguelremolina@gmail.com. 404 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL The “Alhóndigas”, a new civil architecture in Castile in the 16th century. Analysis of its implantation in the Medieval cities Abstract The “alhóndigas” or grain warehouses are a new civil architectural typology, which appeared in the towns of Castile and Leon in the last decades of the 15th and first decades of the 16th century. They are large buildings oriented to the storage of wheat, which although based on medieval precedents, have characteristics that make them very interesting architectures, with large dimensions and volume, and above all, contemplating ingenious functional solutions that facilitate the loading and unloading of the grain. The need to speed up the arrival of the wheat made it advisable to locate them in areas right at the city’s gates, almost always occupying marginal areas of the medieval city that are thus incorporated into a new urban functionality. The article presents the alhóndigas of Segovia and Burgos, making a brief approach to those of Zamora and Ávila, analyzing which are their common architectural characteristics and studying the way in which they are inserted in the pre-existing medieval city. Keywords Alhóndigas, medieval architecture, medieval town, Segovia, Burgos. 1. La Introducción de una nueva tipología arquitectónica en una ciudad medieval en proceso de cambio. En las primeras décadas del siglo XVI hacen su aparición en las ciudades de Castilla y León las alhóndigas o pósitos del grano, una nueva tipología arquitectónica civil, orientada al almacenamiento del trigo durante todo el año, que posibilite el abastecimiento de harina en la ciudad incluso en épocas de escasez, ya sea debido a sequias y crisis agrícolas ya sea a conflictos y desórdenes civiles. El fomento de la construcción de alhóndigas forma parte de las políticas de potenciación del poder municipal llevadas a cabo por los Reyes Católicos en las últimas décadas del siglo XV, de las que las más conocidas son las emanadas de las cortes de Toledo de 1480; estas medidas supusieron un impulso a la construcción de casas consistoriales en las ciudades del reino, así como otras instalaciones LAS ALHÓNDIGAS, UNA NUEVA ARQUITECTUR A CIVIL EN LA CASTILLA DEL SIGLO XVI 405 concejiles, como carnicerías y alhóndigas, que fueron creándose en todos los núcleos principales2. Las edificaciones que albergarán las alhóndigas suponen por sus dimensiones y características arquitectónicas, así como por su ubicación, un interesante episodio de introducción de una nueva tipología en el interior de unas ciudades de morfología medieval, en que lentamente comienzan a aparecer iniciativas de transformación de la trama urbana que serán más amplias desde mediados del siglo XVI. Eran edificios muy determinados en su forma por la función a desempeñar, contenedores de volumetría muy sencilla, con una o dos plantas. La planta baja casi siempre aparece ciega, y los huecos de ventilación se sitúan en las partes superiores; uno o dos puertas de entrada posibilitan los dos recorridos fundamentales, la entrada de grano, traído en verano en grandes volúmenes desde los alrededores de la ciudad en carros o a lomo de cabalgaduras, y la salida en sacos o artesas de pequeñas cargas, a lo largo del año, orientados a las familias o panaderos de la ciudad. Si la primera puerta ha de ser ancha y permitir el trasiego de carruajes y cabalgaduras, la segunda puede ser más pequeña pero suele presentar una rica decoración alusiva al concejo o la corona, con la frecuente aparición de escudos e inscripciones. La primera se orienta hacia el exterior del recinto amurallado, por donde llegarán los campesinos de los alrededores, la segunda se abre a la ciudad, a ser posible hacia su corazón comercial y los lugares de mercado. En este artículo se van a estudiar en detalle las primeras edificaciones específicamente construidas para este fin en las primeras décadas del siglo XVI en las ciudades de Segovia y Burgos, poniéndolas en relación con otros ejemplos, de entre los que destacan las alhóndigas de Zamora y Ávila. Si el ámbito cronológico escapa de los límites establecidos para la Edad Media, se considera oportuno incluir el tema en un marco de estudio de la ciudad medieval por cuanto la arquitectura de dichas edificaciones aún hace uso de soluciones constructivas y arquitectónicas más propias de periodos anteriores, y en todo caso se inserta en una trama urbana aun netamente medieval. En las décadas inmediatamente posteriores y en los siglos XVII y XVIII, adquirirá un nuevo auge la construcción de este tipo de arquitecturas concejiles, fundamentalmente en las ciudades de la meseta sur y en Andalucía, con soluciones formales netamente renacentistas, pero basadas en las experimentaciones formales de las primeras edificaciones de inicios del siglo XVI3. 2 GORDO PELÁEZ, Luis J. – “Pósitos alhóndigas y alholíes. Edificios municipales de abastecimiento en Castilla durante el siglo XVI”. In ARANDA BERNAL, Ana María (coord.) – Arquitectura vernácula en el mundo ibérico: actas del congreso internacional sobre arquitectura vernácula. Sevilla: Universidad Pablo de Olavide, 2007, pp. 102-114. LOZANO BARTOLOZZI, María del Mar – Historia del urbanismo en España, t. II: siglos XVI XVII, XVIII. Madrid: Cátedra, 2011, p. 261. 3 SERRA RUIZ, Rafael – “La Alhóndiga en el siglo XVIII”. Anuario de historia del derecho español 41 (1971), pp. 784-808. 406 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL 2. Precedentes de pósitos y alhóndigas en la ciudad medieval. En las ciudades medievales de Castilla existieron alhóndigas y depósitos municipales de almacenamiento de grano, de los que poseemos noticias aisladas en los casos de Segovia o Toledo4. Estos pósitos del pan o alhóndigas, fueron de dos tipos, de iniciativa pública, ya sea concejil o real, y de iniciativa particular, fundados por monasterios o fruto de donaciones particulares, fundamentalmente obras pías de sacerdotes, con fines de piedad o beneficencia. Los creados por las órdenes religiosas se llenaban sobre todo con el llamado “diezmo”, impuesto por el que cada agricultor entregaba a la iglesia la décima parte de su producción. En todos los casos fueron instalaciones de reducidas dimensiones, que aparecían adosadas a otras construcciones, carentes del carácter y monumentalidad que adquirirán las edificaciones posteriores. Las alhóndigas construidas a inicios del siglo XVI extraen las soluciones arquitectónicas y funcionales de la tradición de pósitos y almacenes de la época medieval, pudiéndose establecer fundamentalmente dos modelos tipológicos, el proveniente de las alhóndigas de la ciudad hispano musulmana y el proveniente de los monasterios de los siglos XIII-XV. En las ciudades hispano musulmanas las denominadas alhóndigas poseían un carácter funcionalmente más complejo, pues además de la función de almacén de grano y mercancía funcionaban como alojamiento de comerciantes foráneos y centros de intercambio. Tras la conquista cristiana se mantuvieron algunas de estas instalaciones ya transformadas y habiendo perdido la función de albergue para los comerciantes foráneos, conservándose referencias de su ubicación y morfología en los casos de Toledo y Granada. Siempre se organizan a partir de un patio central, que permite la existencia de distintas estancias alrededor5. A esta tradición constructiva pertenecen dos de los edificios más importantes de este tipo conservados en la península, el Almudín de Valencia y el Almodí de Játiva. Esta tipología organizada a partir de un patio será retomada en el siglo XVI en ocasiones, como más adelante se estudiará en la ciudad de Zamora. Un segundo modelo proviene de las construcciones auxiliares medievales de los grandes monasterios de los siglos XIII y XIV; estos poseyeron entre sus dependencias amplios depósitos de grano y otros víveres, grandes naves diáfanas que permitían el almacenaje de la producción cereal de los campesinos del entorno. Ejemplos regionales significativos son las cillas o almacenes que existen en los monasterios de Las Huelgas de Burgos o de Santa María de Huerta en Soria, ambos aún hoy 4 En diciembre de 1499, en Valladolid se encarga a dos regidores que estudien donde hacer la alhóndiga nueva. PORRES MARTÍN-CLETO, Julio – “La alhóndiga de Toledo”. Anales Toledanos 7 (1973), pp. 131-146. 5 TORRES BALBÁS, Leopoldo – “Las alhóndigas hispano-musulmanas y el Corral del Carbón de Granada” Al Andaluz 11 (1946), pp. 446-480. LAS ALHÓNDIGAS, UNA NUEVA ARQUITECTUR A CIVIL EN LA CASTILLA DEL SIGLO XVI 407 perfectamente conservados. En algunos casos la cilla posee una sola nave con arcos fajones transversales, como sucede en el monasterio de Rueda o en Santa María de Huerta; en los más grandes la nave más ancha precisa de apoyos intermedios, que entonces desarrollan una arcada paralela al lado mayor, tal y como sucede en el monasterio de la Veruela. En el monasterio de Las Huelgas la cilla-bodega se sitúa al oeste del claustro, posee unos 15 metros de anchura, por una longitud de 40 metros, contando con una arcada central de seis columnas y arcos apuntados paralelos al lado mayor. En los monasterios cistercienses la cilla siempre se situó al oeste del claustro, ocupando todo un lateral, posibilitando una doble ventilación oeste-este; poseían un piso bajo o un sótano sin huecos con grandes arcadas, que asegurara una planta superior libre de humedad. Esta que es la orientación modelo, y como tal aparece con esa ubicación en el célebre plano ideal del monasterio de Sankt Gallen, será la que presente la cilla en Las Huelgas. Los monasterios urbanos un poco posteriores introdujeron este tipo de edificios en la ciudad. Un ejemplo destacado, aún hoy existente, es el de las grandes paneras del antiguo monasterio de la Merced en Toro (Zamora) conservándose una amplia nave con contrafuertes donde se almacenó el grano. Dada la conveniencia de que los graneros se sitúen aislados del terreno siempre que es posible se intenta aprovechar la existencia de desniveles y pendientes para crear sótanos, que permitirán evitar la humedad del suelo. En busca de esta solución en ocasiones el espacio de almacén se alejará de la disposición tipo señalada, para colocarse casi siempre en paralelo a la iglesia, como podemos observar en el monasterio de El Parral de Segovia. Este ejemplo del monasterio de Santa María del Parral pudo ser uno de los que influyeron en el diseño de la alhóndiga de Segovia, como luego se verá. La cilla – almacén se situaba en el claustro de la Enfermería, dispuesto al sur del conjunto conventual, en un volumen organizado en dos pisos; es preciso añadir como en este caso la abundancia de corrientes de agua en el subsuelo obligaría a buscar las soluciones de aislamiento de esta humedad, colocando el almacén en el nivel alto. Aunque hoy presenta un estado de ruina es posible deducir sus características constructivas originales; aprovechando el fuerte desnivel se dispone una planta baja con arcos transversales, manifestados al exterior en la aparición de seis grandes contrafuertes en su fachada sur6. 6 Cuerpo actualmente en ruina, sólo se conserva uno de los contrafuertes. LÓPEZ DÍEZ, María – Los Trastamara en Segovia. Juan Guas maestro de obras reales. Segovia: Caja-Segovia, 2006, pp. 196 y ss. Plan Director Monasterio del Parral, pp. 123, 251, 296. http://www.culturaydeporte.gob.es/planes-nacionales/dam/ jcr:289151de-083e-4ff0-938b-d0597cc3424a/plan-director-monasterio-el-parral.pdf, consultado 29/12/2019. 408 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL 3. Características de una nueva arquitectura funcional. Las alhóndigas que se van a construir en los primeros años del siglo XVI poseen características propias, principalmente debido a su carácter exento y sus dimensiones, mucho mayores que las de los edificios medievales antes comentados. Es interesante destacar las condiciones funcionales singulares que suponen los nuevos edificios; a diferencia de las arquitecturas religiosas o palaciegas de la época, en que la búsqueda de representatividad urbana empuja a priorizar soluciones compositivas y decorativas de prestigio, en estas nuevas edificaciones se priorizará la búsqueda de soluciones funcionales que permitan el adecuado funcionamiento de las alhóndigas, en lo que supone una introducción de modernidad en el significado de las arquitecturas menores de la ciudad. Primeramente es importante disponer de grandes naves de almacenamiento, que aparecerán compartimentadas en varias paneras o trojes más pequeñas, que en lo posibles estarán elevados y separados del suelo, para evitar las humedades. Será importante orientarlos adecuadamente, como más adelante se verá la orientación sur parece no ser conveniente, procurando buscar las oeste y norte. En todo caso es preciso prever numerosos huecos de ventilación en la parte superior, que sólo se abrirán en determinadas situaciones, de acuerdo con los vientos dominantes. Aspecto fundamental es facilitar la descarga del grano en la panera, realizando esta desde un piso superior cuando es posible; así es que la disposición de la Alhóndiga de Burgos aprovechará su disposición en ladera para realizar la carga por la parte posterior, a favor de pendiente, mientras en la Alhóndiga de Segovia se realiza la extraordinaria solución arquitectónica de introducir la rampa en el interior de la edificación facilitando la carga desde arriba de las paneras. Cuando estas soluciones no son posibles se debieron utilizar sistemas de poleas para alzar los sacos, sin que nos hayan quedado restos de este tipo de estructuras complementarias. Las paneras debían estar lo más aisladas posible para evitar humedades y roedores, los dos principales enemigos de los pósitos, por ello siempre se busca la realización de un sótano que los separe de la humedad del suelo, o un foso que evite el encuentro con el terreno pendiente. Un aspecto muy importante es la necesidad de contar con gruesos muros capaces de aguantar los enormes empujes del material almacenado; una solución que se hará frecuente es situar los edificios apoyados en la muralla, como veremos sucede en Zamora y Segovia. 4. Inserción de las nuevas edificaciones en los tejidos urbanos medievales. La primera decisión para asegurar el correcto funcionamiento de los nuevos edificios LAS ALHÓNDIGAS, UNA NUEVA ARQUITECTUR A CIVIL EN LA CASTILLA DEL SIGLO XVI 409 pasa por la elección de su lugar de ubicación. En la ciudad medieval las pequeñas instalaciones de carnicerías y panaderías solían asentarse en la proximidad de los lugares de mercado; tal sucede en Segovia donde pescadería y carnicerías se situaron junto al Azogue Mayor, en el entorno de la actual Plaza Mayor7. Las nuevas alhóndigas, sin embargo, buscan lugares cercanos a las murallas, en que debían existir espacios de poca densidad. Es conveniente que se sitúen muy cerca de alguna de las puertas, para así evitar las molestias que supone el paso de los carros. Prefieren buscarse áreas en que ya exista una cierta tradición de mercados o actividades artesanales, tal y como sucede en Zamora y Segovia; es sin embargo importante situarlos dentro del recinto amurallado, evitando los problemas que en caso de conflicto pudiera suponer su ubicación extramuros. En Burgos y Zamora la implantación se realiza en lugares que están atravesando procesos de abandono, en Burgos aprovechando el lugar de la antigua judería que sufrió con gran virulencia los combates en torno al castillo de 1476 y que debía presentar un avanzado estado de abandono, en Zamora el entorno septentrional del barrio de la Lana, en que se situaba la judería nueva, y que tras la expulsión de 1492 debía presentar amplias áreas libres8. 5. La Alhóndiga de Segovia. Sin duda se trata del edificio de alhóndiga más importante que se construyó en Castilla y León en las primeras décadas del siglo XVI. La construcción se llevó a cabo en 1511, ocupando unos solares de casas situados entre la calle Real y la muralla, junto al palacio de los Aguilar; tal vez se aprovecharon los muros maestros de estas viviendas, lo que justificaría la falta de ortogonalidad de los muros con respecto a la muralla trasera (Fig. 1). El inmueble posee dos accesos; la llegada de las cabalgaduras con mercancía se realizaba por el lateral, desde el postigo de la Luna, acceso luego cegado. La recogida del grano por los ciudadanos se realizaba a través de una portada monumental orientada hacia el norte. En esta fachada principal septentrional destaca el gran arco de medio punto con alfiz y los dos escudos de la ciudad a cada lado9. En planta el edificio se compone de cuatro crujías paralelas, que aparecen inclinadas, formando un ángulo no recto con el gran posterior muro de la muralla. 7 RUIZ HERNANDO, José Antonio – Historia del Urbanismo en la ciudad de Segovia del siglo XII al XIX. Segovia: Diputación Provincial de Segovia, 1982, I, p. 85. 8 REPRESA, Amando – “Génesis y evolución urbana de la Zamora medieval”. Hispania: Revista Española de Historia 122 (1972), p. 537. GARCIA CASAR, Fuencisla – La Aljama judía de Zamora (siglos XIII-XV). Salamanca: Universidad Pontificia de Salamanca, 1989, pp. 69 – 74. Tesis Doctoral. Acceso abierto en: https://summa.upsa.es/details.vm?q=id:0000008053&view=main&lang=es 9 CHAVES MARTÍN, Miguel Ángel – Segovia Guía de Arquitectura. Segovia: Coacyle, 2006, p. 107. RUIZ HERNANDO, José Antonio – Historia del Urbanismo en la ciudad de Segovia…, tomo I, p. 128. 410 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Fig. 1 – Alhóndiga de Segovia. Vista aérea con inserción urbana y fachada septentrional. El inmueble conserva aún hoy su estructura original, con tres espacios en los que se en distribuían sendas paneras para guardar el trigo; se ha conservado la tradición de la denominación de cada una de las tres paneras, llamadas de la gloria, del purgatorio y del infierno, sin que se haya aclarado el origen de tal denominación. Elemento de gran interés es el cuerpo transversal trasero, apoyado en la muralla, que alberga una rampa de acceso al piso superior. La función de la rampa es facilitar la descarga del grano desde el piso superior, permitiendo el acceso de cabalgaduras, y tal vez pequeños carros (Fig. 3). Bajo las paneras existe un gran sótano, con arcos de piedra de sujeción del gran peso del grano almacenado. Los arcos se disponen transversales a la dirección de los LAS ALHÓNDIGAS, UNA NUEVA ARQUITECTUR A CIVIL EN LA CASTILLA DEL SIGLO XVI Fig. 2 – Alhóndiga de Segovia. Ubicación urbana. Interpretación de la planta del nivel superior con las distintas paneras. Dibujos del autor. 411 412 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Fig. 3 – Alhóndiga de Segovia. Interpretación de la sección transversal en sentido oeste-este , mostrando la rampa de acceso posterior y las dos paneras este y oeste. Dibujo del autor muros maestros superiores, la mayoría de ellos realizados en ladrillo, habiéndose dispuesto además otros en ladrillo de refuerzo en época indeterminada. El alzado oriental del edificio presenta seis grandes contrafuertes, justificados para aguantar los esfuerzos transmitidos por los arcos del sótano. Indudablemente este era el lateral más comprometido pues posee más altura al estar situado contra pendiente. Esta solución de arcos y contrafuertes exteriores parece tomada de las cillas de los monasterios, de las que el cercano ejemplo del Monasterio del Parral que se situó aprovechando la pendiente junto al claustro de Enfermería es un buen ejemplo. En el sótano se conserva un gran muro de carga de gran grosor, sin duda reutilizado de una construcción anterior En la parte superior se abren numerosos huecos que posibilitan la ventilación, cinco ventanas con arcos de medio punto en la fachada este, cuatro con adintelados en el lateral sur, y tres en la fachada principal norte. En un documento referido a la alhóndiga de Zamora, que más adelante se estudia, se especifica cuáles son los vientos adecuados para el adecuado mantenimiento del grano, señalando la conveniencia de los vientos norte (cierzo) y del noroeste (gallego) así como el perjuicio que suponía el viento sur. Llama la atención la asimetría de la fachada principal, hecho tal vez debido al aprovechamiento de la estructura de antiguas construcciones; al aparecer esta fachada actualmente recubierta con esgrafiado es imposible apreciar huellas del proceso constructivo y posibles alteraciones o ampliaciones. Con motivo de la construcción de la alhóndiga se debió proceder a abrir o ensanchar la pequeña calle que comunica desde la calle Real, principal eje viario LAS ALHÓNDIGAS, UNA NUEVA ARQUITECTUR A CIVIL EN LA CASTILLA DEL SIGLO XVI 413 de la ciudad medieval, de tal modo que desde esta se percibe la portada, elemento representativo de la nueva edificación. El acceso a la puerta de carga se realizaba desde un pequeño callejón paralelo a la muralla, accediendo desde el sur por la denominada Puerta de la Luna, un acceso de menor importancia, que relacionaba la ciudad con el sector del Rastro y los arrabales situados en bajo junto al arroyo Clamores En 1585 aparecen documentadas obras en la cubierta de la Alhóndiga, cuyo alcance se desconoce, tal vez es entonces cuando se eleva ligeramente la altura de la cornisa10. A partir del siglo XVII el edificio albergará diversos usos, produciéndose alteraciones y modificaciones tanto en las fachadas como en el interior. En la primera mitad del siglo XX albergó dependencias y almacenes municipales y la Casa de Socorro, y así aparece rotulada en el plano de la ciudad de Odriozola de 1901. El edificio ha experimentado tres importantes intervenciones modernas; en 1947 se realiza la eliminación de los volúmenes que aparecían ampliando el cuerpo original hacia el norte, ocultando la gran portada. El proyecto se conserva en el archivo municipal y aparece firmado por el arquitecto municipal Francisco Fernández-Vega y del Río. Se conserva una imagen del edificio anterior a la intervención; el expediente del proyecto incluye la situación previa del alzado septentrional, pero no así los otros, que desconocemos si presentaban un aspecto distinto del luego resultante. En el plano de estado previo se representa el muro que cerraba la plaza por la derecha cerrando el primitivo callejón de acceso11. La segunda fue intervención de reestructuración fue llevada a cabo entre 197072 por el arquitecto Alberto García Gil. En ella se realizó una importante reforma adaptando el interior para salas de exposiciones y archivo municipal. La última fue realizada entre 1982 y 1990 por el arquitecto Federico Coullaul, si bien el proyecto no se llevó a cabo en su totalidad12. Aspecto de gran interés es el de la implantación urbana de la nueva edificación, aunque es difícil establecer con certeza el aspecto de este sector en época medieval, antes de las obras de la alhóndiga a inicios del siglo XVI. El borde meridional del recinto segoviano poseía un carácter singular; inmediatamente al norte, en el entorno de la calle Real se situaban algunos de los más destacados palacios urbanos, algunos construidos en el siglo XV; al oeste comenzaba el amplio barrio de la Judería, muy transformado a partir del siglo XVI por la construcción de la nueva catedral. Extramuros se situaba el Rastro, un amplio espacio vacío inmediatamente al exterior de la muralla, en que se sacrificaban ovejas. Este carácter de actividad RUIZ HERNANDO, José Antonio – Historia del Urbanismo en la ciudad de Segovia…, tomo II, p. 308. Expediente XXI 558-4, Archivo Municipal de Segovia. 12 Expediente nº28/90 3692-1, Archivo Municipal de Segovia. 10 11 414 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL ganadera-industrial del área pudo contribuir a la elección de este sector como el más adecuado para la nueva alhóndiga13. El área aparece reflejada en el dibujo de Anton van den Wyngaerde, realizado en 1562; es difícil determinar si alguno de los edificios que se adivinan inmediatamente a la derecha de la puerta de la Luna es la nueva alhóndiga, aunque la siempre fiel representación de Wyngaerde recoge con acierto el quiebro del muro y los dos cubos de la muralla situados en la zona. El dibujo recoge un poco más al oeste la actividad de sacrificio de corderos en el área del Rastro, junto a lo que parece ser la puerta del Sol, si bien la inclusión de un cubo poligonal dificulta la interpretación14. Es de gran interés la representación que Wyngaerde recoge del camino de entrada a la ciudad desde el sur, que atraviesa el puente de Sancti Spiritus, que aparece con gran actividad de caminantes y cabalgaduras que van a hacer su entrada a la ciudad a través de la puerta de la Luna. Todo este sector extramuros aparece hoy irreconocible, pues en el último cuarto del siglo XIX se lleva a cabo su transformación mediante la creación del Paseo del Salón o Isabel II, adquiriendo un destacado papel en la ciudad burguesa, Alrededor de 1880 se derriba el postigo de la Luna, que debió de verse acompañada de una ampliación y rectificación de la calle. Debe ser por entonces cuando se cierra definitivamente el callejón de acceso a la alhóndiga, que ya aparece desaparecido en el plano de la ciudad de Odriozola de 1901 y en el del Plano de Población de 1911 del Instituto Geográfico y Estadístico15. 6. La Alhóndiga de Burgos. Construida en 1512, en aplicación de las disposiciones de los Reyes Católicos es una arquitectura de gran interés, aunque el edificio que en la actualidad aparece con grandes modificaciones de diversas épocas, careciendo de un estudio particularizado que permita establecer con exactitud su evolución histórica16. Se sitúa intramuros, cercano al arco de San Martín, en un sector urbano que había quedado muy destruido tras los combates en torno al castillo de Burgos en 1476, que tuvieron con motivo de la denominada guerra de sucesión castellana, finalizados cuando se produjo la rendición de los ocupantes portugueses y la entrega del castillo a Isabel I. Se ha señalado la situación en este barrio de la denominada judería baja, 13 RUIZ HERNANDO, José Antonio – Historia del Urbanismo en la ciudad de Segovia…, pp. 128 y 146, nota 45bis. 14 Vista sur de Segovia, Oxford Large 4- 100, en KAGAN, Richard – Ciudades del siglo de Oro Las vistas españolas de Anton van den Wyngaerde. Madrid: El Viso, 2008, pp. 123 y ss. 15 CHAVES MARTÍN, Miguel Ángel – Arquitectura y Urbanismo en la ciudad de Segovia (1750-1950). Segovia: Cámara de la Propiedad Urbana de Segovia, 1998, p. 202. 16 IBÁÑEZ, PÉREZ, Alberto C. – Arquitectura Civil del siglo XVI en Burgos. Burgos: Caja de Ahorros Municipal, 1977. pp. 224-228. LAS ALHÓNDIGAS, UNA NUEVA ARQUITECTUR A CIVIL EN LA CASTILLA DEL SIGLO XVI 415 por lo que la expulsión de 1492 pudo igualmente colaborar en el abandono del sector. La alhóndiga presenta un volumen compacto de planta rectangular, de medidas aproximadas 42 x 18 metros, aunque la reconstrucción del último cuarto del siglo XX supuso el añadido de un importante volumen lateral que no existió en el original del s XVI, como luego se comentará. Fig. 4 – Alhóndiga de Burgos. Vista aérea con inserción urbana. Interpretación de la planta original (IBÁÑEZ, PÉREZ, Alberto C – Arquitectura Civil del siglo XVI en Burgos. Burgos: Caja de Ahorros Municipal, 1977. pp. 224-228 Se sitúa en la ladera, paralelo a las curvas de nivel, disposición que permite el acceso de los carros y la carga del trigo por la parte posterior. Separando el edificio del terreno en pendiente, se sitúa en todo el alzado posterior un pasadizo a modo de foso, buscando el aislamiento de las humedades del terreno. El acceso del grano precisó así de la construcción de un pequeño puente, de apenas un metro de ancho, 416 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL con dovelas de piedra, de cuya características conservamos testimonio a través de imágenes fotográficas (Fig. 5). Fig. 5 – Alhóndiga de Burgos. Interpretación de la sección transversal, en sentido sur-norte, mostrando el acceso posterior a través de un arco sobre el foso y las paneras. Dibujo del autor Aún hoy se conservan los restos del sencillo arco apuntado de acceso del grano en esta fachada posterior norte, aunque cualquier resto del puente de entrada desapareció tras la reforma del edificio en 1978. Una mención documental de 1568 nos confirma el uso frecuente de esta puerta trasera17. La ubicación de la alhóndiga debió producir problemas para la conservación del grano, pues en 1569 ya se plantea construir una nueva alhóndiga, alegando que el antiguo edificio: “estaba edificado al ábrego que era el que dañaba el pan y no al cierzo que lo conservaba”18. En siglos posteriores la alhóndiga experimentó importantes reformas. El edificio fue dedicado a Cárcel Municipal en el siglo XIX, realizándose entonces importantes reformas en su estructura y alzados. Es entonces cuando se abren los numerosos huecos de la fachada sur, pues en origen la alhóndiga solo debía poseer huecos en la parte más alta. Sin conocer el alcance de la importante reforma del siglo XIX es imposible determinar con exactitud cuál era la estructura primitiva de la alhóndiga en el siglo XVI; es posible sin embargo realizar hipótesis de la interpretación de la forma “En la puerta trasera de la Alhóndiga, 3 o 4 pedazos, y se necesita un poco de azur en la subida de la puerta.” (A. M. B./ Histórica, C-1-7-16/5// Burgos, 25 abril 1568). En DOMINGO MENA, Salvador – Caminos Burgaleses: los caminos del Norte (siglos XV y XVI). Burgos: Universidad de Burgos, 2015, Tesis Doctoral, p. 141, nota 342. 18 IBÁÑEZ, PÉREZ, Alberto C – Arquitectura Civil del siglo XVI en Burgos. Burgos: Caja de Ahorros Municipal, 1977, p. 228 17 LAS ALHÓNDIGAS, UNA NUEVA ARQUITECTUR A CIVIL EN LA CASTILLA DEL SIGLO XVI 417 primitiva. El edificio en origen estaría compuesto de dos partes, la situada hacia el oeste albergaría la entrada con la portada monumental, la situada hacia el este sería mucho más larga, albergando la gran nave de paneras a la derecha. Es difícil justificar la existencia de un contrafuerte en la fachada sur del ala de paneras, que habría de estar justificado sólo por la existencia de arcos interiores; sin embargo las primeras representaciones gráficas de que se dispone de mediados del siglo XIX señalan la existencia de cuatro hileras de pilares formado cuatro pórticos en sentido paralelo a la fachada en sentido longitudinal, tipo de estructura que no precisaría tales contrafuertes en fachada. Es posible que el contrafuerte cumpliera la función de sujeción a los empujes del grano acumulado, por lo que bastaría un número reducido de elementos, con un mínimo de dos, debiendo aparecer otro cercano a la esquina derecha del edificio19. En el último cuarto del siglo XX el Ayuntamiento de Burgos abordó la reconstrucción del edificio, que para entonces debía presentar un estado ruinoso. En Marzo de 1978 el arquitecto Rafael Fernández Rojas presenta el proyecto de reutilización del edificio que supone una reconstrucción de todo el interior, manteniendo únicamente las fachadas, con una nueva estructura y una nueva distribución interior, adecuadas a los nuevos usos públicos culturales previstos20. En la parte izquierda, donde había existido un patio cercado por una tapia alta, cuyo origen seguramente deba relacionarse con la función carcelaria, el proyecto de 1978 planteó la construcción un nuevo volumen que alberga una sala de teatro, solucionada con grandes contrafuertes en imitación a soluciones medievales, planteando una grave confusión en la lectura del edificio, pues se sugiere la existencia de un volumen antiguo que nunca existió dotando a toda la antigua alhóndiga de una simetría que tampoco poseyó. Es posible profundizar en el aspecto de la dimensión original de la primitiva alhóndiga a partir de la información de su capacidad en el siglo XVI, que se señala es de 5.000 fanegas.21. Un cálculo del volumen de almacenamiento necesario para esas fanegas que supone lo hace equivaler a un volumen 277,500 m3, que poco más o menos supone una planta de la zona de paneras del edificio no mucho mayor de 8 por 15 metros22. 19 Proyecto de reordenación del espacio carcelario, que debe datar de 1875. Archivo Municipal de Burgos. Expediente 18_966 20 Archivo Municipal de Burgos. Expediente AD 561_1 21 En la peste de 1565 se consideró insuficiente por lo que se planteó la construcción de otra alhóndiga para 15.000 o 30.000. IBÁÑEZ, PÉREZ, Alberto C – Arquitectura Civil del siglo XVI en Burgos. Burgos: Caja de Ahorros Municipal, 1977, p. 227. 22 El cálculo se ha realizado a partir de la equivalencia de la fanega castellana a 55,5 litros de capacidad. 418 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL 7. Alhóndiga De Zamora. A diferencia de las alhóndigas de Segovia y Burgos, que carecen de estudios específicos, la Alhóndiga de Zamora ha recibido recientemente la atención del historiador Luis Vasallo Toranzo; esta circunstancia y lo tardío de la fecha de su edificación justifica que su inclusión en este artículo quede limitada a aspectos funcionales puntuales, encontrando justificación en el interés de contraponer sus características morfológicas a las de las otras alhóndigas castellanas23. La primera alhóndiga de Zamora debió edificarse en torno a 1484 y se situaba en el entorno de la plaza Mayor, cercana al lugar donde se situaba el mercado; a partir de 1570 se inicia el proceso para la construcción de un nuevo edificio, que cumpla adecuadamente la función de almacenaje, llevándose a cabo la construcción de una nueva alhóndiga junto a la muralla y la puerta de Santa Ana, en el extremo noroeste de la ciudad24. El edificio se sitúa muy próximo a la calle larga, eje principal de la Puebla de la Lana, uno de los barrios con más personalidad de la Zamora medieval, organizado en torno a la iglesia de San Antolín, y con una importante dedicación de sus habitantes a la actividad textil y de paños. En este sector se había situado igualmente la que fue segunda judería de la ciudad, que con motivo de la expulsión judía decretada en 1492, seguramente se había quedado sin habitantes. Los Reyes Católicos permitieron entonces la edificación de la iglesia de San Sebastián sobre la antigua Sinagoga Mayor25. Como en los casos de Segovia y Burgos, su ubicación junto a la puerta de la muralla sin duda facilitaba la llegada de los carruajes sin adentrarse en las calles de la ciudad; el acceso se realizaba a través de la puerta de Santa Ana, muy cercana al nuevo edificio. El edificio se adosa a la parte interior de la muralla, aprovechando la pared de la cerca para fortalecer el edificio; el gran empuje sobre las paredes de cierre obligaba a grandes grosores y aprovechar el gran muro abarató los costes de la edificación. Poseyó tres paneras, aunque su organización interior se alejaba mucho de los modelos antes estudiados. Al no existir desniveles no se puede utilizar la solución de carga desde el piso superior que hemos visto en Segovia y Burgos.La panera principal se adosó al muro norte apoyado en la muralla, las otras dos eran más pequeñas, y a 23 VASALLO TORANZO, Luis – “La Alhóndiga Mayor de Zamora. Estudio documental de su construcción”. Stvdia Zamorensia XI (2012), pp. 205 - 234. 24 VASALLO TORANZO, Luis – “Origen y desarrollo de la Plaza mayor de Zamora y de su Casa Consistorial. Siglos XV y XVI”. In HERNÁNDEZ LUIS, José Luis (ed.) – Sic Vos Non Vobis. Zamora: Institución Florián de Campo, 2015, pp. 375-406. 25 REPRESA, Amando – “Génesis y evolución urbana de la Zamora medieval”. Hispania: Revista española de Historia 122 (1972), p. 537. LAS ALHÓNDIGAS, UNA NUEVA ARQUITECTUR A CIVIL EN LA CASTILLA DEL SIGLO XVI 419 todas se accedía a través de un patio abierto, situado al oeste. Conservamos noticia de la previsión de una habitación para albergar al cuidador del almacén, entre cuyos cometidos estaba el de abrir unos u otros de los huecos existentes, para facilitar la ventilación del grano26. En el siglo XVIII se le añadió una ampliación que luego fue hecha desaparecer. El edificio atravesó diversas épocas de abandono, hasta que en los años 70 del siglo XX fue rehabilitado como centro cultural; los muros exteriores se conservaron, pero el edificio se vació por completo; el patio situado a oeste se cubrió, planteando una estructura y distribución interior sin relación con su uso histórico. 8. Alhóndiga de Ávila. Desgraciadamente desaparecida, la antigua alhóndiga de Ávila, un magnífico edificio construido en torno a 1528 poseía la singular característica de compartir el uso de almacén de grano con otras funciones concejiles27. Como en otros casos no se ha realizado un estudio especifico de su arquitectura, a pesar del interés que poseían sus soluciones compositivas y ornamentales; es sin embargo posible realizar un acercamiento a su forma y organización funcional interna a partir de la escasa documentación gráfica conservada28. La alhóndiga se construyó adosada al parapeto exterior de la muralla medieval de Ávila, por el lado exterior de esta. Se planteó un edificio de planta rectangular alargada, con una profundidad de apenas una decena de metros; la composición de la fachada larga, abierta a la plaza era muy singular, con tres cuerpos de carácter muy distinto, así concebido para servir a varios cometidos. El pabellón central poseía una fachada palaciega, con tres grandes escudos. Sobre el dintel de la puerta central aparecía la inscripción “alhóndiga de esta ciudad”; a la derecha el cuerpo lateral norte poseía un nivel bajo cerrado, con dos grandes vanos adintelados y un primer piso abierto en galería, con cuatro columnas a modo de loggia; en los dinteles de los huecos inferiores aparecía la inscripción “Carnicerías públicas”. El cuerpo lateral izquierdo variaba esta solución, pues presentaba la planta baja abierta con tres grandes arcos rebajados y un piso alto más cerrado, con cuatro huecos; la ausencia de imágenes impide identificar si este sector izquierdo albergaba la Cárcel, tal y como puede deducirse de las escasas descripciones publicadas sobre el edificio. Por lo que parece deducirse de la documentación gráfica conservada el cuerpo VASALLO TORANZO, Luis – “La Alhóndiga Mayor de Zamora…” , p. 213. BELMONTE DÍAZ, José – La ciudad de Ávila, estudio histórico. Ávila: Caja de Ahorros, 1987, p. 285. 28 SANCHIDRIÁN GALLEGO, Jesús María – Álbum del Grande Imagen y fotografía de la Plaza de Ávila. Ávila: Piedra Caballera, 2006, pp. 45-49. 26 27 420 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL derecho debió albergar fundamentalmente la función de panera, que se cargaría bien a través de los huecos del pabellón central, bien por el corto lateral norte, donde existía un gran portón29. La ausencia de documentación al respecto no permite conocer la distribución y dimensiones de las paneras del interior; parece deducirse que la panera ocupara los espacios longitudinales posteriores, tal vez solo el centro o también el del cuerpo de la derecha. Los restantes sectores del edificio alojaron diversos usos, en 1848 albergó el cuartel de la guardia Civil, en 1861 una escuela pública. El conjunto del edificio fue derribado en 1882. A partir de las fotografías conservadas cabe deducir como el edificio no se adosaba a la muralla, sino a un gran muro que, a modo de barbacana se situaba paralelo a los lienzos. Su situación no era la más propicia para la carga del grano, pues el único acceso se produciría desde el área de la plaza del Alcázar, lugar habitual de mercado, en que el movimiento de los carros produciría grandes molestias. Por otra parte la escasa capacidad de las paneras impediría su correcto funcionamiento; significativamente en la segunda mitad del siglo XIX Pascual Madoz en su diccionario hace mención a ello, calificándola de pequeña e insignificante30. Conclusión. Las alhóndigas construidas en las grandes ciudades castellanas en los primeros años del siglo XVI suponen un interesante episodio de experimentación arquitectónica, en que el carácter semi-industrial de las edificaciones conduce a soluciones funcionalmente complejas muy diferentes de las edificaciones religiosas y palaciegas de la época. Como otros edificios de la denominada arquitectura preindustrial menor de época medieval y moderna, como los molinos, los hornos, los batanes o las instalaciones de pañería, las alhóndigas carecen hasta el momento de un estudio específico que permita establecer con rigor cronologías, características comunes y posibles influencias. Su inclusión en los tejidos medievales de ciudades de compleja morfología viaria supuso sin duda una alteración de los espacios periféricos en que se insertaron, provocando una gran actividad, puntual pero intensa durante la época veraniega de la carga, más débil pero continuada a lo largo del año con motivo de la recogida de grano por los habitantes de la ciudad. Significativamente el carácter de contenedor que desde su construcción poseyeron ha permitido que en buen número de casos hayan llegado al siglo XXI SANCHIDRIÁN GALLEGO, Jesús María – Álbum del Grande…, p. 49. MADOZ, Pascual – Diccionario Geográfico-Estadístico-Histórico de España, Tomo III. Madrid: s.n., 1850, p. 166. 29 30 LAS ALHÓNDIGAS, UNA NUEVA ARQUITECTUR A CIVIL EN LA CASTILLA DEL SIGLO XVI 421 convertidos en equipamientos culturales, que sin embargo apenas conservan de la primitiva edificación más que los muros exteriores o la volumetría. La consideración de Segovia Burgos y otras pequeñas ciudades castellanoleonesas, analizadas en unos decenios en que todas ellas se encuentran inmersas en procesos de renovación y evolución entre la densa y compleja ciudad medieval y la ciudad moderna que apunta en actuaciones puntuales, ha permitido un acercamiento a un aspecto básico de la historia de la ciudad a veces un tanto olvidado, la imprescindible relación entre la forma y la función en las arquitecturas y en los tejidos viarios que determinan el carácter de la forma urbana. 422 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Moleiros, moinhos e azenhas no Porto nos séculos XIV e XV: um setor-chave do abastecimento cerealífero urbano1 Arnaldo Sousa Melo2 Resumo Partindo de documentação concelhia do Porto pretende-se caracterizar o modelo de organização económica, ou modelo de negócio da atividade de moagem de cereal pelos moleiros no século XIV e XV. Pretende-se focar a análise na distribuição espacial e quantitativa dos moleiros e azenhas da cidade do Porto entre 1350 e inícios do século XV, a maioria dos quais localizados fora da cidade e no seu entorno periurbano e rural próximo, ao longo dos cursos de água mais favoráveis. Como ponto de partida, analisamos duas contendas entre os moleiros e o concelho do Porto em 1356 e em 1403. A principal dimensão de análise será a caraterização do modelo de negócio, ou seja, como se organizava essa atividade, incluindo a estrutura produtiva e a organização do trabalho, bem como as formas de transporte do cereal entre a cidade e as estruturas hidráulicas de moagem. No centro de toda esta atividade destaca-se a figura do moleiro. Caracterização dos atores envolvidos, nomeadamente os donos do cereal, moleiros e seus dependentes, proprietários daas estruturas moageiras, bem como o papel das autoridades públicas, sobretudo concelhias, na regulamentação e controlo de toda esta atividade. Evidencia-se a existência de regulamentação e fiscalização sobre a atividade de moagem de cereais, e também da capacidade de mobilização e de ação coletiva dos moleiros, que surgem assim como interlocutores dos poderes municipais. 1 Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto MedCrafts – “Regulamentação dos mesteres em Portugal nos finais da Idade Média: séculos XIV e XV”, Ref.ª PTDC/HAR-HIS/31427/2017. 2 Departamento de História e Lab2Pt-ICS – Universidade do Minho. 424 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Trata-se duma atividade essencial dentro da fileira do cereal e do respetivo abastecimento urbano, mas que em geral tem sido objeto de menor atenção pela historiografia, embora corresponda a uma atividade fundamental deste setor. Palavras-chave Moinhos; Azenhas e moleiros medievais; Porto nos séculos XIV e XV; Cereais e abastecimento urbano em Portugal na Idade Média. Millers and watermills in Oporto in the 14th and 15th centuries: a key sector of urban cereal supply Abstract This paper aims to characterize the economic organization model, or business model of cereal milling activity in the 14th and 15th centuries Oporto. Analysing municipal documentation from Oporto, the intention is to focus the analysis on the spatial and quantitative distribution of water mills – of two types: moinhos and azenhas, which means, respectively, horizontal wheel mills and vertical wheel mills – in the city of Porto between 1350 and the beginning of the 15th century. Most of them were located outside the city and in its suburban and rural surroundings and outskirts, along suitable water courses. As a starting point for this paper, stands two disputes between the millers and the municipality of Porto in 1356 and 1403. The main dimension of analysis will be the characterization of the business model, namely how this activity was organized, including its productive structure and work organization, as well as the ways of transporting the cereal between the city centre and the hydraulic milling structures in its outskirts. At the centre of all this activity the miller stands out. The focus is also on the characterization of the actors involved, namely the owners of the cereal, the millers and their dependents, the owners of the milling structures, as well as the role of public authorities, especially municipalities, in the regulation and control of all this milling activity. There is evidence of the existence of regulation and inspection on the activity of milling cereals, as well as of the ability to mobilize and make collective action by the millers, who appear as the interlocutors with the municipal powers. Milling MOLEIROS, MOINHOS E AZENHAS NO PORTO NOS SÉCULOS XIV E XV 425 cereals was an essential activity within the grain sector and its urban supply, but in general it has been less studied and regarded by historiography. Keywords Medieval mills; Watermills and millers; Oporto in the 14th and 15th centuries; Cereals and urban supply in Portugal in the Middle Ages. 1. Introdução. Nos séculos XIV e XV verificava-se uma forte disseminação de moinhos e azenhas de moagem de cereal em meio rural, periurbano e até urbano sempre que as condições naturais e humanas o permitissem. Moinhos e azenhas, engenhos hidráulicos que permitem utilizar a força hídrica, neste caso ao serviço da moagem de cereais, correspondiam a dois grandes tipos de soluções técnicas: as azenhas de roda exterior vertical e os moinhos, de roda interior horizontal. Esta distinção terminologia específica era já utilizada de forma corrente na Idade Média e atesta a forte disseminação dos dois modelos, como se comprova documentalmente com muita frequência3. Curiosamente, não obstante a sua importância, os estudos sobre moinhos e moleiros em contexto periurbano e na sua relação com a cidade têm sido relativamente pouco estudados em Portugal para o período aqui em análise. Razão pela qual procurei, com este artigo, chamar a atenção para o tema e as suas problemáticas. Verificava-se uma grande concentração desses dois tipos de engenhos hidráulicos na zona norte e centro litoral de Portugal, consequência das boas condições naturais para o aproveitamento dessa foça motriz, aliada à necessidade de uma regular capacidade de moagem instalada de certa dimensão nesta região, consequência da difusão da produção de cereais e da concentração de importantes centros de consumo, em torno dos principais núcleos urbanos. Por esses motivos na proximidade de cidades e aglomerados populacionais importantes como o Porto localizavam-se várias dessas estruturas nas suas 3 OLIVEIRA, Ernesto Veiga de; GALHANO, Fernando; PEREIRA, Benjamim Enes − Tecnologia Tradicional Portuguesa. Sistemas de Moagem. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, Centro de Estudos de Etnologia, 1983, pp. 76-78, 80-81, 101-102, 116-117, 181-188; MARQUES. A. H. de Oliveira − Introdução à História da Agricultura em Portugal. A questão cerealífera durante a Idade Média. 3ª edição. Lisboa: Cosmos, 1978; MARQUES. A. H. de Oliveira − Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV. Lisboa: Presença, 1986; MELO, Arnaldo Sousa − O Couto de Santo Tirso (1432-1516). Espaço e Economia, 2 vols. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1995 (dissertação de mestrado em História Medieval, policopiado), vol.1, pp. 197-207. 426 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL periferias, mais ou menos próximas, e por vezes dentro da própria cidade, como alguns topónimos deixam entrever. Mas era sobretudo nessas periferias urbanas que se localizava a maior parte dos moinhos e azenhas, que por utilizarem a força hidráulica obedeciam a determinados constrangimentos para a sua localização, em particular o aproveitamento dos cursos de água existentes, mesmo que pequenos e de reduzido caudal, mas com acentuados desníveis topográficos. Se existissem tais desníveis naturais, aproveitava-se o melhor possível a pendente natural e melhoravase artificialmente essas condições com sistemas de canais, represas e açudes, técnicas que, de igual modo, se podiam utilizar em zonas planas e em rios de maior caudal. Além de cursos de rios médios, também se utilizava os pequenos riachos que podiam ser aproveitados de forma eficiente para inserir vários moinhos, em função dos condicionalismos referidos, em particular nesta zona norte litoral com uma rede hidrográfica riquíssima, onde pequenos riachos circulavam “por toda a parte”. Por seu turno, o tamanho dos moinhos e a sua capacidade de moagem eram também variáveis definidas em função dos condicionalismos ecológicos e das necessidades diversas em cada momento. Dessa forma, um pequeno curso de água, mas com fortes declives e caudal suficiente conseguia albergar vários pequenos moinhos e azenhas ao longo do seu curso, que podiam representar uma capacidade de moagem instalada igual ou superior ao de um grande moinho junto de um rio de maiores caudais4. Por outro lado, os rios demasiado fortes e instáveis, com forte variação sazonal e galgamento habitual de margens, não seriam o local ideal para construir moinhos, a não ser com recurso a obras mais complexas e dispendiosas de canais e açudes, nem sempre exequíveis. Tal seria o caso do rio Douro na zona envolvente do Porto e próxima da sua Foz. No entanto este rio, simultaneamente, apresentava uma densa rede hidrográfica de pequenos rios seus afluentes, que corriam para o Douro nessas margens de forte declive e, como tal, com boas condições para albergar a concentração de moinhos e azenhas em vários locais, como se pode ainda hoje observar na paisagem. Efetivamente, tal era a situação na zona envolvente do Porto nos séculos XIV e início do XV, que irei tratar neste artigo. Verificava-se a ausência ou raridade de moinhos e azenhas no rio Douro, e simultaneamente a sua concentração nos seus afluentes, em geral estreitos, mas inseridos em locais de forte pendor, como veremos ao longo deste artigo. Acresce um outro tipo de condicionalismos que justificam a abundância desses engenhos hidráulicos. Uma cidade como o Porto, com um nível considerável de concentração populacional e sobretudo de atividades comerciais, industriais e 4 OLIVEIRA, Ernesto Veiga de et alii − Tecnologia Tradicional Portuguesa…, pp. 76-78, 80-81, 101-102, 116-117, 181-188; MELO Arnaldo Sousa − O Couto de Santo Tirso…, vol.1, pp. 197-207. MOLEIROS, MOINHOS E AZENHAS NO PORTO NOS SÉCULOS XIV E XV 427 portuárias, teria necessidade de dispor de uma adequada capacidade de moagem de cereais nas suas proximidades, para o abastecimento da sua população e aprovisionamento dos navios, como é referido explicitamente na documentação5. O abastecimento de cereal às cidades e em particular em períodos de expansão urbana, como seria o período aqui estudado, em associação com incremento de comércio e atividades marítimas (que também necessitavam de cereal para os navios) implicaria o aumento da procura de moagem de cereal numa área próxima da cidade, fosse ela de características predominantemente urbanas, periurbanas, ou até rurais, uma vez que dentro da urbe essa capacidade de moagem seria reduzida, como veremos de seguida. E daí a necessidade e pressão para a concentração de moinhos e azenhas nas zonas envolventes. Atendendo às características naturais e aos condicionalismos tecnológicos anteriormente referidos, essa necessidade implicaria a existência de vários engenhos hidráulicos, que na sua maioria seriam, provavelmente, de pequena dimensão, tendo em conta as características do espaço e da rede hidrográfica disponível. Estas seriam as caraterísticas e condicionantes gerais da localização dos moinhos e azenhas hidráulicos na zona do Porto nos séculos XIV e inícios do XV, e que provavelmente se manteriam, no essencial, até ao século XIX e inícios do XX e o incremento da industrialização. A distinção entre moinhos e azenhas - ambas hidráulicas, os primeiros apresentam roda horizontal e as segundas roda vertical - era normalmente feita de forma cuidadosa na documentação, como já foi dito. A azenhas, geralmente mais produtivas que os moinhos de roda horizontal, eram também tecnicamente mais complicadas, e como tal mais caras. Por outro lado, para cursos de água de caudal pouco volumoso, mas rápido, são os moinhos de rodízio os mais aptos, embora permitam uma produtividade muito menor. Mas por serem mais simples, eram também muito mais fáceis e baratos de construir. Por seu turno, as azenhas são o modelo mais indicado para os rios de maior caudal, mas também se encontram bem disseminadas em cursos de água mais pequenos, desde que as características do espaço o permitissem, uma vez que tinham a vantagem da produtividade acrescida. Uns e outros, mas sobretudo as azenhas, podiam ter dimensões variáveis e, como tal, capacidade de moagem igualmente diversa e adaptável às condições naturais6. Por exemplo, numa carta régia de 1368, de 28 de dezembro (Arquivo Histórico Municipal do Porto - A.H.M.P., Livro 2º de Pergaminhos, doc. 30; publicado em Corpus Codicum Latinorum et Portugalensium Eorum qui in Archivo Municipali Portucalensi asservantur antiquissimorum – Dipolomata, Chartae et Inquisitiones, 6 vols., Porto: 1891-1978, vol. VI-IV, pp. 48-49). 6 OLIVEIRA, Ernesto Veiga de et alii − Tecnologia Tradicional Portuguesa, op.cit., pp. 76-78, 80-81, 101-102, 116-117, 181-188; MELO, Arnaldo Sousa −O Couto de Santo Tirso…, vol.1, pp. 197-207. 5 428 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Fig. 1 – Azenhas representadas no Livro de Horas de D. Manuel I – Calendário do mês de Abril; Fólio 9v. (séc. XVI). Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga. Nota: Observam-se duas azenhas junto a um riacho, com os canais de água, desnivelados, em pendente. Dois homens dirigem-se à azenha à esquerda onde irão moer o grão que transportam em sacas, um fá-lo às costas, enquanto que o outro as transporta num burro. MOLEIROS, MOINHOS E AZENHAS NO PORTO NOS SÉCULOS XIV E XV 429 Convém ainda acrescentar que tanto quanto sabemos os moinhos e azenhas hidráulicos seriam a forma largamente maioritária ou única de moer cereais na zona do Porto e no norte litoral em geral, o que se justifica pela abundância de recursos hídricos e das caraterísticas ecológicas e técnicas que favoreciam a capacidade de aproveitamento da energia hidráulica, de forma eficaz e relativamente barata e que devia ser suficiente para fazer face às necessidades de moagem existentes neste período. Moinhos de vento seriam raros. E as atafonas, muito utilizadas nas regiões mais secas do sul do Reino, como se atesta pela importância dos atafoneiros em Évora7, por exemplo, não parecem ter tido existência significativa na zona do Porto e do norte litoral em geral. A forte capacidade hidráulica instalada e com potencialidades de expansão, tornaria decerto pouco atrativo, do ponto de vista económico, a utilização significativa de outras formas de moagem que não a hidráulica, nesta região do reino. É importante destacar esta questão, pois as atafonas podiam existir no interior das cidades e nas áreas mais próximas, uma vez que não implicam condições de localização específicas, ao contrário dos engenhos hidráulicos. Pelo contrário, os engenhos hidráulicos tendiam a concentrar-se fora do centro urbano, com uma ou outra possível exceção. No caso do Porto a existência de moinhos e azenhas dentro da cidade era meramente esporádica, o único curso de água disponível seria o Rio de Vila, mas com o processo de urbanização ao longo da maior parte do seu curso intraurbano, já muito poucos engenhos hidráulicos restariam em finais do século XIV. E nos arrabaldes mais próximos da cidade, não abundavam esses recursos hídricos, ou os que existiam encontravam-se igualmente no meio de zonas fortemente urbanizadas, como seria o caso do Rio Frio em Miragaia (ver Figura 2). Por esse motivo, no caso do Porto, a maior parte dos moinhos e azenhas parece concentrar-se nos locais indicados na Figura 2, decerto por serem aqueles com melhores condições naturais e humanas, mais próximos do Porto8. 2. Os acontecimentos. Vamos iniciar a exposição pela apresentação de dois acontecimentos concretos, localizados num tempo - ou melhor, em dois momentos - e num espaço específicos: O Porto em 1356 e em 1403. Depois de procedermos à apresentação desses casos, passaremos a uma análise interpretativa mais lata. Um pouco inspirado num modelo 7 Cf. por todos, BEIRANTE M.ª Ângela − Évora na Idade Média, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995. 8 Arnaldo Melo − Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média: O Porto, c. 1320–c. 1415, 2 vols., Braga e Paris: Universidade do Minho e E.H.E.S.S., 2009. Tese de Doutoramento, vol. 1, p. 265. Disponível em: http://hdl.handle.net/1822/9896. 430 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL usual em história política e social9, mas neste caso tendo como acontecimento de partida, não uma batalha, mas duas contendas ou litígios entre os “moleiros da cidade” e as autoridades concelhias do Porto, ocorridas naquelas datas e que se prolongaram por algum tempo. O ponto de partida é constituído por duas sentenças régias, datadas respetivamente de maio e outubro de 1356, que nos informam: - Da existência dum “costume antigo” da cidade do Porto, segundo o qual os moleiros de Campanhã, Quebrantões, Lordelo e Massarelos eram obrigados a ir buscar o grão de cereal à cidade, junto dos respetivos proprietários, na Praça da Ribeira, para a transportar para os seus moinhos, e posteriormente trazer de volta a respetiva farinha, já moída, aos seus donos no mesmo local. Os moleiros faziam esse transporte, nos dois sentidos, em “barcos e bestas” onde levavam o trigo, milho e centeio dos moradores da cidade para moer nos seus moinhos. Este serviço de transporte e moagem era realizado “por certa maquia que auiam de auer por cada huum buzeo[10] do dito pam nom lhis auendo de pagar outra cousa...”11. Ninguém contesta a existência desse costume antigo e prática habitual. - O concelho queixou-se ao rei dizendo que “agora” esses moleiros já não vinham com os ditos barcos e bestas à dita cidade “para leuarem as ditas moendas como sempre fora hussado”. E acrescenta dizendo que o concelho e moradores recebiam grandes perdas e danos e “nom podiam auer mantymento de pam pela guissa que o deuiam dauer por mingua desses moleiros”12. - Em sequência disso, o concelho do Porto pedia ao rei, Afonso IV, que obrigasse os moleiros a cumprir esse “costume antigo” de irem buscar e levar o cereal à cidade. - Os “moleiros da cidade” de Campanhã, Quebrantões, Lordelo e Massarelos foram então convocados pelo rei a comparecer perante si, em maio de 1356, estando o rei na cidade do Porto. Nessa audiência, os moleiros confirmaram ser verdade que era esse o costume e prática tradicional, mas acrescentando que agora “nom mays que lhis prazia de uyrem por as ditas moendas nos barcos e bestas […] segundo era costume”13. 9 Entre muitos exemplos possíveis, DUBY G. − Le Dimanche de Bouvines, 27 juillet 1214, Paris: Gallimard, 1985. 10 Medida de capacidade equivalente a 4 alqueires, ou seja uma teiga; em “tempos “mais antigos” corresponderia a 2,5 alqueires: cf. “Búzio” in Viterbo, Fr. Joaquim de Santa Rosa de − Elucidário das Palavras, Termos e Frases que em Portugal antigamente se usaram e que hoje regularmente se ignoram: obra indispensável para entender sem erro os documentos mais raros e preciosos que entre nós se conservam, 2 vols., edição crítica baseada nos manuscritos originais de Viterbo por Mário Fiúza, Porto-Lisboa, 1993. 11 A.H.M.P., Livro 1º de Pergaminhos, doc. 36; publicado em Corpus Codicum…, vol. VI-II, pp. 53-54. 12 A.H.M.P., Livro 1º de Pergaminhos, doc. 36; publicado em Corpus Codicum…, vol. VI-II, pp. 53-54. 13 A.H.M.P., Livro 1º de Pergaminhos, doc. 36; publicado em Corpus Codicum…, vol. VI-II, pp. 53-54. MOLEIROS, MOINHOS E AZENHAS NO PORTO NOS SÉCULOS XIV E XV 431 - E porquê? Alegavam que havia “gram mingua dauga e que por isso nom podiam moer tanto pam quanto o dito concelho queria que moessem”14. - Afonso IV determina então que os moleiros “daqui em deante venham com os ditos barcos e bestas aa ribeira da dita cidade do Porto e lhis leuem as moendas e as moam em essas azenhas e moinhos por sua maquia aquelas que moer poderem segundo o tempo e como ouuerem a augua para as moer e que se daqui em deante feserem o contrairo que o alcayde do Porto os possa prender hu quer que os achar e os leve para serem julgados pelos juízes da cidade”. Esta decisão ficou registada na carta régia de 30 de maio de 1356, dada no Porto, que o monarca enviou ao concelho, em resposta à queixa inicial15. - Seguidamente, em Outubro desse mesmo ano, os “moleiros moradores nas azenhas de Campanhã” são citados pelo procurador do concelho para irem à vereação, presente o Ouvidor do Rei “em substituição do juiz da cidade”, a fim de serem confrontados com o teor dessa carta régia, justificarem por que não estão a cumprir o estipulado e para serem constrangidos a obedecerem a essas determinações régias “e que o Ouvidor constrangese os ditos moleiros que ueesem aa dita cidade com os barcos e com as bestas pelo graaom e o leuasem e metessem por sua maquia tam solamente e que nom tomassem per as ditas moendas outras doas nem presentes de pam nem de vinho nem de carne nem de pescado nem outra nenhuma cousa pola dita razom”. A maior parte dos moleiros compareceu e comprometeu-se a obedecer, afirmando que a partir daquele momento todos os presentes “viriam com os barcos e bestas e moeriam o grão o mais que pudessem segundo o tempo e como pudessem auer a augoa para as moer. Pois diziam que auia mui pouco augua.” E foi encarregue Bartolomeu Dinis, moleiro e jurado, de avisar desta decisão os dois moleiros que não compareceram e que as penas previstas para quem não cumprisse também se aplicavam a eles. Os moleiros presentes alegaram ainda que não tinham ainda cumprido o determinado pelo rei, porque fora apenas nesse momento que eles tiveram conhecimento dessa carta régia16. - No entanto, os moleiros presentes aproveitaram para se queixar ao Ouvidor do rei de que “os moradores e vizinhos da dita cidade” os “forçavam e agravavam enuyando lhes pelos seus mancebos e mancebas e bestas tanto graaom aas dita zenhas que o nom podiam moer nem lhis cabia nas ditas zenhas e pediam ao ouvidor que lhis proibisse de o fazer”17. - Em resposta, o Ouvidor do rei, tendo em conta a sentença régia, e também os argumentos e queixas mútuas, do procurador concelhio e dos moleiros, determinou A.H.M.P., Livro 1º de Pergaminhos, doc. 36; publicado em Corpus Codicum…, vol. VI-II, pp. 53-54. A.H.M.P., Livro 1º de Pergaminhos, doc. 36; publicado em Corpus Codicum…, vol. VI-II, pp. 53-54. 16 A.H.M.P., Livro 1º de Pergaminhos, doc. 36; publicado em Corpus Codicum…, vol. VI-II, pp. 53-54. 17 A.H.M.P., Livro 1º de Pergaminhos, doc. 36; publicado em Corpus Codicum…, vol. VI-II, pp. 53-54. 14 15 432 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL que de futuro os moleiros cumpram o determinado pelo rei e que “nom moessem nem recebessem nem colhessem nas sas zenhas nenhuum pam de vezinhos e moradores na dita cidade que lhis ala emuyassem para moer por seus mancebos e mancebas e sas bestas nem por outras pessoas mas apenas o que os moleiros fosse buscar aa cidade como costume” e que que “por esto nom tomasem nemhuma doas nem presentes de pam nem de vinho nem de pescado nem de nenhuma outra cousa e que este pam que asy leuassem para moer que o nom leuasem especialmente mais a huns que aos outros se nom comunalmete a todolos moradores e vizinhos da dicta cidade que o mester ouuessem e que “que qualquer deles que o contrairo desto fezesse ou todos que ouuessem porem pena de justiça qual em tal feyto coubesse”. E determinou ainda o Ouvidor que “que outrossy leuassem o dito pam por pesso ou por medida qual auer quissessem seus donos do dito pam asy como sempre fora husado e costumado de se fazer na dicta cidade so a dita pena”18. Não se conhecem mais ecos documentais desta contenda de 1356. Teriam estas sentenças régias resolvido o problema? Talvez. Em todo o caso, 47 anos mais tarde, numa carta régia de D. João I, datada de 21 de agosto de 1403, diz-se que: - Os “moleiros do termo da cidade” do Porto apresentaram uma queixa ao juiz do rei na cidade contra o concelho, devido a novas posturas municipais relativas aos moleiros, que eles consideravam lesivas dos seus interesses. Os moleiros apresentaram a queixa nos seguintes termos: - Afirmavam que o concelho do Porto decidiu que “daqui en deante elles dictos molleiros tomasem e moessem o pam per pesso e dessem a ffarinha per pesso; e que a elles dictos molleiros prazia dello contanto que seus donos ffossem leuar o pam ao pesso e alla ffossem pera tomar a farinha per pesso e que elles ditos molleiros nom fossem theudos de leuar o dicto pam ao pesso nem leuar a ffarinha despois que pesada fosse a casa de sseu dono”19; - Deste modo, os moleiros “pediam que os nom costrangesem nem penhorasem por elles nom leuarem todo o pam que na dicta cidade ouuese pera leuar aos moynhos quando hii ueessem por ello por que nom podiam em huma uez todo levar o mantiimento que aí esteuese”20. - Em resposta, o juiz del Rei na cidade confirma a nova ordenação concelhia, que obrigava os moleiros a levarem o cereal a peso, e que os moleiros continuassem a ir buscar à cidade o grão e levar “às casas dos senhores do pão” a farinha, como era costume. A.H.M.P., Livro 1º de Pergaminhos, doc. 36; publicado em Corpus Codicum…, vol. VI-II, p. 53-54. A.H.M.P., Livro 3º de Pergaminhos, doc. 17 (cópia em pública-forma de 1427) e doc. 55 (original de 1403); reprodução fotográfica em Corpus Codicum…, vol. VI-VI, doc. 17 e doc. 55. 20 A.H.M.P., Livro 3º de Pergaminhos, doc. 17 (cópia em pública-forma de 1427) e doc. 55 (original de 1403); reprodução fotográfica em Corpus Codicum…, vol. VI-VI, doc. 17 e doc. 55. 18 19 MOLEIROS, MOINHOS E AZENHAS NO PORTO NOS SÉCULOS XIV E XV 433 - Não concordando com a decisão, que era favorável ao concelho, os moleiros recorrem para o rei, que manda a D. Frei Álvaro Gonçalves, prior e Meirinho-Mor de Entre-Douro-e-Minho, que fosse à cidade inquirir sobre a questão e que decida por sentença “em proll da cidade e moradores della e que seja ssem dapno dos dictos molleiros e que hussem como sempre husarom”.21 Deste modo, D. Frei Álvaro Gonçalves, Meirinho-Mor de Entre-Douro-eMinho, em carta de sentença de 1 de novembro de 1403, com acordo dos homens bons e concelho do Porto, bem como dos moleiros aí presentes, determina: - “que daqui endeante [os moleiros] moessem o pam per esta guisa que se segue que de cada alqueire de trigo que moessem dessem a seu dono do trigo huum alqueire de ffarinha calcado huma uez com anballas maaons e mais nom. […] E que [os moleiros] levem o grão e tragam a ffarinha a sseus donos do pam como sempre custumarom”22. Desta forma, nesta sentença ficou decidido que se deve manter o tradicional sistema da maquia, ou seja, o pagamento ao moleiro corresponderia a uma percentagem do volume, baseada em medida de capacidade (alqueire, teigas) e não de peso. E que de igual modo se mantinha a obrigação dos moleiros assegurarem o transporte do grão e da farinha, respetivamente, entre a casa dos donos do cereal e o moinho, e vice-versa. Aparentemente, a sentença revertia a nova postura concelhia e mantinha o sistema tradicional, sem alterações, como já se utilizava em 1353 e cuja origem seria bem anterior. Note-se ainda que em 1427 (19 de julho) o concelho afirma que o tabelião conservava guardado este documento de sentença “que era dos moleiros”, do qual o concelho pedia ao notário o respetivo treslado em pública forma23, decerto por não existir um exemplar no arquivo concelhio, supõe-se. Uma vez que a sentença era favorável aos moleiros, essa situação de preservação documental seria normal, na época. No entanto deve destacar-se o facto dos “moleiros da cidade” serem coletivamente donos do exemplar documental à guarda do tabelião, que provavelmente devem ter pago. O que se deve destacar é a capacidade de ação coletiva e reconhecimento duma posse coletiva do documento, por parte de um grupo, os “moleiros da cidade”, que tanto quanto é possível saber não tinham existência legal, ou institucional, reconhecida. Mas, ainda assim, viam a sua existência informal ser reconhecida pelo menos tacitamente, pelo tabelião que conserva os documentos, mas também pelo concelho e até pelos juízes régios que os aceitam como autores da A.H.M.P., Livro 3º de Pergaminhos, doc. 17 (cópia em pública-forma de 1427) e doc. 55 (original de 1403); reprodução fotográfica em Corpus Codicum…, vol. VI-VI, doc. 17 e doc. 55. 22 A.H.M.P., Livro 3º de Pergaminhos, doc. 17 (cópia em pública-forma de 1427) e doc. 55 (original de 1403); reprodução fotográfica em Corpus Codicum…, vol. VI-VI, doc. 17 e doc. 55. 23 A.H.M.P., Livro 3º de Pergaminhos, doc. 17 (cópia em pública-forma de 1427); reprodução fotográfica em Corpus Codicum…, vol. VI-VI, doc. 17. 21 434 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL queixa e os reconhecem, portanto, como um interlocutor coletivo. 3. Contexto e significado. Apresentados estes episódios de 1356 e de 1403 nas suas linhas essenciais, podemos agora passar a uma análise mais aprofundada do seu significado e inserção no contexto histórico a que pertencem. Ou, dito de outro modo, procurar perceber qual o significado destes acontecimentos? E quais as realidades e os processos históricos que revelam? 3.1. Os intervenientes. Comecemos pelos sujeitos da ação, os intervenientes principais. São eles os moleiros; as autoridades concelhias; os “moradores e vizinhos da cidade”; o poder régio, nas pessoas do próprio rei e dos seus juízes e oficiais. Comecemos pelos primeiros e pelo vocabulário e expressões utilizados para os identificar. Trata-se dum interveniente coletivo, os moleiros, e encontramo-los referidos com as seguintes designações mais usuais e respetivas datas: - “moleiros da cidade” (1356)24; - “moleiros que moem e dão a farinha aa dita cidade” (1356); - “os moleiros que de forma continuada moem farinha para mantimento da cidade e dos navios que aí aportam” (1356); - “os molleyros que continuadamente mooem e dam farinha para mantymento da dita cidade e das naues e bayxees e nauios que a ella veem e dos que a ella chegam” (1368)25; - “moleiros do termo da cidade” (1403)26. Outras formas de os designar reportam-se aos locais onde vivem os moleiros e se localizam os moinhos e azenhas: - “estando hi os moleiros [com os nomes identificados] todos moradores nas azenhas de Campanhã” (1356); - “os moleiros dos moinhos e azenhas de maçarelos e os de C[ampanham] e os de Loordelo e os de quebrantoens” (1356); - “os molleiros de loordello e de canpanhaa e de gaya” (1403). A.H.M.P., Livro 1º de Pergaminhos, doc. 36; publicado em Corpus Codicum…, vol. VI-II, pp. 53-54. A.H.M.P., Livro 2º de Pergaminhos, doc. 30; publicado em Corpus Codicum…, vol. VI-IV, pp. 48-49. 26 A.H.M.P., Livro 3º de Pergaminhos, doc. 17 (cópia em pública-forma de 1427) e doc. 55 (original de 1403); reprodução fotográfica em Corpus Codicum…, vol. VI-VI, doc. 17 e doc. 55. 24 25 MOLEIROS, MOINHOS E AZENHAS NO PORTO NOS SÉCULOS XIV E XV 435 Como se pode observar no Quadro 1 e na Figura 2, esses moleiros e respetivos moinhos e azenhas localizavam-se sobretudo em Campanhã, Lordelo e Quebrantões (Gaia), onde se encontra a maior parte e nas duas datas em estudo. E em menor grau, ou apenas em uma das datas, Massarelos, apenas em 1356 e Santo Antão (Gaia) unicamente em 1403. Este reforço do lado de Gaia na segunda data em observação poderá indiciar uma tendência de reforço da importância do lado de Gaia, que pode não ser estranho à sua incorporação no termo do Porto desde 138427. Quanto a Massarelos, entre as duas datas perde importância no contributo moageiro da cidade, por motivos que não conhecemos na totalidade. O certo é que já em 1356 eram poucos moleiros. Podem, entretanto, ter-se reduzido ainda mais. A tendência geral parece ser aumento da capacidade moageira, com mais 7 moleiros no total na segunda data, mas não podemos conhecer o significado exato desses valores, pois desconhecemos a capacidade de moagem de cada moinho ou azenha. Nº de moleiros 1356 1403 Moleiros de Massarelos 4 - Moleiros de Campanhã 9 13 Moleiros de Lordelo 7 9 Moleiros de Quebrantões (Gaia) 6 5 Santo Antão (Gaia) Total – 6 26 33 Quadro 1 – distribuição geográfica do número de moleiros28. Como se pode observar na Figura 2, em 1356 todos estes locais não faziam parte do termo da cidade do Porto, no entanto esses moleiros já eram designados como moleiros da cidade e sujeitos a uma serie de direitos e obrigações definidos pelo concelho do Porto, com o aval do rei. Ou seja, as autoridades concelhias detinham autoridade sobre eles enquanto “moleiros da cidade”, no que diz respeito aos direitos e deveres inerentes a esse estatuto. Em 1403, pelo contrário já essas áreas estavam inseridas no termo do Porto, que conhece uma enorme expansão em 1369 na margem norte do Douro, embora Gaia e Vila Nova apenas em 1384 tivessem sido incorporadas num segundo alargamento do termo, respetivamente nos tempos dos 27 MELO, Arnaldo Sousa − Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média…, vol. I, pp. 186-191; e vol. II, pp. 306-311. 28 MELO, Arnaldo Sousa − Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média…, vol. II, pp. 306-311. 436 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL reis D. Fernando e D. João I, como Armindo de Sousa mostrou com argumentos convincentes29. O rigor terminológico dos documentos deve ser destacado, por isso apenas no documento de 1403 se designam como “moleiros do termo do Porto”, o que, por outro lado, também confirma aquela interpretação da evolução do termo do Porto. Mas o que se deve também salientar é que os deveres e direitos desses moleiros são os mesmos nas duas datas. Ou seja, mesmo quando não pertenciam ao termo do Porto esses moleiros, referidos então como moleiros da cidade ou outro epíteto semelhante – que parece ser um estatuto - tinham uma série de direitos e obrigações associados, que eram definidos e controlados pelas autoridades concelhias, remetendo para o costume ou para regulamentos municipais, mas que eram obrigatórias para quem exercia esse mester / cargo. Parece ser um caso de estatuto profissional, ou de controlo de acesso ao exercício desse mester pelas autoridades concelhias. Note-se ainda que as obrigações incluíam os moleiros terem de assegurar o transporte entre a cidade e os engenhos hidráulicos, e que se proibia os moleiros de aceitarem o cereal que os moradores do Porto levassem diretamente aos moinhos, que era proibido apesar de alguns o fazerem. Destaca-se mais uma vez a capacidade do concelho impor e fazer respeitar este princípio com o apoio régio, mesmo quando esses territórios não se incluíam no termo e na sua jurisdição, como sucedia em 1356. Além disso deduz-se que o costume da cidade obrigava esses moleiros dessas zonas a virem à cidade fazer esse transporte do cereal sempre que era necessário e de forma regular e não apenas quando queriam. Assim todo os moleiros dessas zonas seriam obrigados e nesse caso seria a totalidade que estava nestas listas? Ou estes moleiros eram apenas uma parte do total de moleiros dessa zona? Para já, não temos dados para responder a essa questão. Quanto aos restantes intervenientes nestes processos, algumas observações breves. As autoridades concelhias, como já foi referido, representam a autoridade pública que define e fiscaliza a regulamentação sobre a atividade dos moleiros da cidade, com o aval do rei. Exerce essa autoridade sobre os moradores do concelho, mas também sobre os moleiros, mesmo que os moleiros vivam e os engenhos se localizem fora do concelho em 1356. Tendo o estatuto de moleiros da cidade, naturalmente que no exercício desse mester estavam sob a jurisdição das autoridades concelhias, mesmo estando os equipamentos localizados e a atividade desenvolvida fora do concelho. São as autoridades concelhias que concedem as autorizações aos moleiros que entendem para exercer o mester como “moleiros da cidade” e assim se explica que tenham autoridade para regulamentar e fiscalizar essa atividade, mesmo sendo realizada fora do concelho, uma vez que se trata de moer cereal que é propriedade 29 SOUSA Armindo de − “Tempos Medievais”. In História do Porto, dir. de Luís A. de Oliveira RAMOS, Porto: Porto Editora, 1994, pp. 166-173 e ss.; MELO Arnaldo − Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média…, vol. I, pp. 175; e pp. 186-191. 437 MOLEIROS, MOINHOS E AZENHAS NO PORTO NOS SÉCULOS XIV E XV Legenda: L – Lordelo do Ouro; M – Massarelos; C – Campanhã; St. A – Santo Antão (Gaia); Q – Quebrantões (Gaia); PO – Porto. Fig. 2 – Locais de concentração de moinhos e azenhas na área periurbana do Porto: 1356 e 1420. Fonte: Arnaldo Melo, Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média…, vol. II, p. 307. 438 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL dos moradores e vizinhos do município. Ou seja, como é óbvio, este controlo não se aplica ao cereal de outra proveniência que os moleiros moessem, pelo menos antes da anexação desses territórios no termo do Porto. Depois dessa data não sabemos se o controlo concelhio sobre as atividades dos moleiros aumentou. Os documentos aqui em causa tratam apenas do cereal dos moradores e vizinhos da cidade. O concelho representa, em princípio o bem comum, e em particular dos seus vizinhos. Os moradores e vizinhos das cidades surgem como outro interveniente destes processos, ainda que a sua participação nestas questões seja indireta, eles são referidos recorrentemente, é em seu nome e dos seus interesses comuns que supostamente o concelho atua, embora as suas ações concretas, ou de parte deles, sejam também parte do problema e objeto de regulamentação. De facto, os “moradores e vizinhos da cidade” são intervenientes indiretos, não atuam diretamente na contenda, mas as suas ações são frequentemente referidas como parte do problema ou das divergências30. Compreende-se que numa altura de escassez de capacidade de moagem face à procura, alguns moradores da cidade procurassem ir diretamente aos moinhos e azenhas e dessa forma garantir a moagem de cereais que necessitavam, eventualmente prejudicando os outros moradores que não o faziam, respeitando o costume. Conforme foi dito atrás, as autoridades judiciais e régias, em geral, parecem tentar garantir a equidade entre os moradores e vizinhos da cidade no acesso às moagens, assumindo-se aqui como garantes do bem comum, conforme seria a sua obrigação. Finalmente os juízes e oficiais régios. Devemos destacar dois grupos distintos. Os juízes del rei na cidade e os oficias régios superiores ou o próprio rei. Os primeiros julgam em nome do rei mas são um cargo municipal e fazem parte da oligarquia concelhia. Por isso em 1403 se verifica que o juiz da cidade deu sentenças favoráveis à posição do município e lesivas da posição dos moleiros. Por isso estes recorreram para o rei, que mandou o Meirinho-mor de Entre Douro e Minho apreciar esta questão. Apreciados os factos tomou uma posição mais equidistante e conciliadora dos interesses dos dois grupos, concelho e moleiros, remetendo para o costume e anulando as novas posturas consideradas lesivas pelos moleiros. De facto, os juízes e funcionários superiores, bem como o próprio rei quando intervém diretamente, parecem apresentar um distanciamento maior relativamente aos interesses em conflito, até porque não são oficiais da cidade nem fazem parte da oligarquia municipal31; em geral parecem procurar uma decisão equilibrada entre esses interesses, procurando manter os equilíbrios existentes, remetendo para a tradição, ou costumes já antigos da cidade. 30 31 Cf. supra. Cf. por todos, SOUSA Armindo de − “Tempos Medievais”. In História do Porto..., pp. 119-253. MOLEIROS, MOINHOS E AZENHAS NO PORTO NOS SÉCULOS XIV E XV 439 3.2. O regime de prestação dos serviços dos moleiros da cidade do Porto: Direitos e deveres dos “moleiros da cidade”, ou modelo de funcionamento da atividade dos moleiros da cidade do Porto: O designativo “moleiros da cidade” correspondia a um estatuto profissional que permitia exercer esse mester – que se pode definir como moer o cereal dos vizinhos e moradores da cidade do Porto e garantir o seu transporte de e para a cidade -, ao que tudo indica mediante autorização e controlo das autoridades concelhias. Essa condição profissional implicava obedecer a uma série de regras, que significavam um conjunto de direitos e deveres dos moleiros, que passo a apresentar, por ordem arbitrária. 1. Moagem do cereal dos moradores da cidade 2. Transporte do cereal da cidade aos moinhos e azenhas (grão) e o regresso à cidade já moído (farinha), as bestas e barcos à sua custa. 3. Proibição de receber o cereal enviado diretamente pelos moradores da cidade para os moinhos e azenhas. 4. O pagamento do trabalho dos moleiros era a maquia, ou seja, uma percentagem do cereal moído era para o moleiro. 5. Equidade no tratamento ao cereal de todos os moradores. 6. Os moleiros da cidade beneficiavam de alguns privilégios régios, requeridos ao rei pelo concelho do Porto, por ser do interesse da cidade garantir o abastecimento de cereal moído. Passamos de seguida a explicar cada um deles. - Moagem do cereal dos moradores da cidade. São os “moleiros de cidade” que fazem esse serviço, que seria simultaneamente uma obrigação e um direito. Penso tratar-se de uma forma de licenciamento concelhio, ou seja, são os moleiros que têm autorização e obrigação para fazer esse serviço que são assim designados, “moleiros da cidade”, ou expressão semelhante. Deve entender-se como um estatuto profissional com direitos e obrigações. O principal direito seria a autorização para exercer este mester – transportar o cereal da cidade ao moinho, moer, e levar de novo a farinha à origem -, que lhes devia permitir um conjunto de rendimentos garantidos e decerto nada negligenciáveis. O que não invalida que contestem e se manifestem sempre que o concelho toma medidas que, na perspetiva dos moleiros, fariam reduzir as suas margens de lucro (que desconhecemos quais eram, mas como óbvio existiam, caso contrário eles não trabalhariam). Ao mesmo tempo moer o cereal dos moradores da cidade e garantir o seu transporte era uma obrigação a que não se podiam eximir, 440 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL como vimos supra. - O serviço a que os moleiros estavam obrigados incluía, portanto, a moagem do cereal nos seus moinhos e azenhas, mas também o transporte da cidade ao moinho (grão) e o regresso do moinho à cidade (farinha), realizado com os meios dos moleiros e à sua custa, por terra e/ou rio (embarcações e bestas, seus ou que alugavam), em função da localização dos respetivos moinhos. Em 1356 era na Praça da Ribeira que os moleiros recebiam e entregavam o cereal aos respetivos proprietários. Em 1403 diz-se que os moleiros o vão buscar e entregar a casa dos seus donos, aparentemente antes e depois de serem controlados pelas autoridades num local específico quanto ao seu peso (ir ao peso). Esta última condição parece ter sido eliminada com a sentença de 1403, mas continuam a levar a casa dos proprietários, pois diz-se ser esse o costume nesta data. Esta alteração parece relacionar-se com o facto de o concelho querer passar de um sistema de medir o cereal por volume (alqueires) para um sistema de peso, o que foi eliminado nessa sentença. Difícil explicar o porquê desta mudança. Existir um local único e público de recolha e entrega, a Praça da Ribeira, seria decerto mais prático para os moleiros e simultaneamente permitia às autoridades controlar melhor o processo e em particular a equidade de tratamento entre os diferentes moradores e os vários moleiros. Ir a casa de cada “cliente” / dono dos cereais, podia ser mais prático para os moradores, mas implicava um trabalho e dispêndio de tempo acrescido para os moleiros, além de dificultar o controlo por parte das autoridades, em particular da equidade de tratamento. Mesmo se admitirmos que passava pelo controlo das autoridades, o que não é certo. A dispersão no espaço da recolha e entrega do cereal podia favorecer, por exemplo, eventuais favores ou exceções, ou seja, tratamentos diferenciados entre clientes e moleiros. E em 1403 os moleiros tentam eximir-se dessa obrigação de fazerem o transporte de e para a cidade, mas tal pretensão é recusada, conforme foi atrás explicado. E essa posição dos moleiros deve entender-se como uma retaliação pela tentativa de imposição pelo concelho de novas regras que os moleiros rejeitavam, e que também acabou por ser abandonada. Em ambas as datas parece que os moleiros se tentam eximir a este serviço de transporte, na totalidade ou em parte. Em 1356 não querem fazer o transporte da cidade para os engenhos. Em 1403 não querem levar e buscar o cereal a casa dos proprietários. Em ambos os casos essa recusa foi claramente uma arma, ou uma consequência por situações que o concelhio queria impor e a que os moleiros se opunham por considerarem prejudiciais. Em ambos os casos os diferendos resolveram-se, mas as respetivas obrigações de transporte mantiveram-se por decisão das autoridades concelhias e régias e com acordo dos moleiros. - Os moleiros não podiam aceitar cereal enviado diretamente pelos moradores MOLEIROS, MOINHOS E AZENHAS NO PORTO NOS SÉCULOS XIV E XV 441 da cidade aos moinhos e Azenhas. Tal prática era expressamente proibida, aos moradores do Porto de o fazerem aos moleiros de aceitarem. A esta prática associavase a possibilidade de pagamentos acrescidos, além das maquias, o que era igualmente interdito, pois existia a proibição dos moradores pagarem aos moleiros outros valores, além das maquias acostumadas. No entanto, em ambas as datas encontrámos denúncias dos moleiros relativamente a alguns moradores do Porto que o tentam fazer, por si ou por seus criados. - O pagamento do trabalho dos moleiros era a maquia, ou seja, uma certa parte por cada alqueire (ou outra medida de capacidade) que encontramos muito difundida na época em estudo em várias regiões do reino. Ainda nos séculos XIX e XX era essa a forma de pagamento tradicional dos moleiros32. Em 1356 especifica-se que a maquia devida ao moleiro é assim determinada: por cada búzio (que correspondia a 1 teiga, ou seja, 4 alqueires) de cereal é cobrada pelo moleiro uma certa maquia, não se cobrando mais nada. Em 1403 fixa-se desta forma: por cada alqueire de grão levado o moleiro deve entregar um alqueire de farinha moída e mais não, aplicandose esta regra ao trigo, à segunda (ou seja mistura de milho e centeio) e ao milho33. Como o volume do grão é maior que o da farinha, um alqueire de grão daria uma quantidade superior, em volume, de farinha. O ganho do moleiro, a maquia, estava nessa diferença. Mas nesse documento de 1403 especifica-se que a farinha deve ser medida “calcando com ambas as mãos uma única vez”. O que se compreende, pois no caso de a farinha ser compactada várias vezes consegue-se que caiba maior volume no mesmo espaço, o que seria nocivo para o moleiro, pois ganharia menos farinha para si. Mas se não fosse calcada nenhuma vez, também o proprietário se poderia sentir lesado, pois poderia haver ainda algum espaço vazio no mesmo alqueire. Assim, a definição de “comprimir a farinha com ambas as mãos uma só vez”, parece resultar de uma preocupação de encontrar uma solução que fosse considerada justa ou aceitável por ambas as partes, pelo moleiro que recebia, e pelo proprietário que pagava a maquia. Trata-se dum tipo de problema típico duma forma de pagamento em percentagem e baseado numa unidade de volume, em que a quantidade a pagar corresponde à diferença de volume entre as duas formas físicas do mesmo produto, grão e farinha, receptivamente antes e depois da transformação mecânica que sofre nos moinhos ou azenhas. O pagamento significava a remuneração por essa mesma operação de transformação, mas incluindo ainda o serviço de transporte. 32 OLIVEIRA, Ernesto Veiga de et alii. − Tecnologia Tradicional Portuguesa… op. cit., pp. 76-78, 80-81, 101-102, 116-117, 181-188; MARQUES. A.H. de Oliveira − Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV…; MELO Arnaldo Sousa − O Couto de Santo Tirso …, vol.1, pp. 197-207. 33 A.H.M.P., Livro 3º de Pergaminhos, doc. 17 (cópia em pública-forma de 1427) e doc. 55 (original de 1403); reprodução fotográfica em Corpus Codicum…, vol. VI-VI, doc. 17 e doc. 55. 442 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL - Equidade no tratamento ao cereal de todos os moradores, sem descriminar e beneficiar uns e prejudicando outros. Todos os moradores e vizinhos da cidade que tivessem grão para moer deviam ser atendidos em igualdade de circunstâncias pelos moleiros: no mesmo local de recolha e entrega na cidade (fosse na Praça da Ribeira, fosse em casa consoante as datas), proibição dos moradores irem diretamente aos moinhos e azenhas levar o seu cereal, serviço prestado por um preço fixo igual para todos; e controlo de pesos e medidas. Tudo isto sob fiscalização de almotacés e outros oficiais concelhios que deviam assegurar que estas regras eram cumpridas. Todas estas regras impostas pelo concelho tinham como objetivo garantir o acesso dos vizinhos e moradores da cidade a certos bens, serviços ou atividades em igualdade de circunstâncias, o que corresponde a um modelo geral do governo concelhio do Porto, que encontramos em vários outros setores de atividade34. Por exemplo na existência dos repartidores de matérias primas para mesteres como os tanoeiros35; ou os fretadores das cargas dos navios, incumbidos de repartir o espaço disponível nos navios e garantir quem todos os interessados enviar produtos teriam acesso a pelo menos uma parte desse espaço , impedindo o monopólio de apenas alguns mais ricos e poderosos36; ou ainda no caso dos carniceiros obrigados a garantir todas as semanas o acesso à carne a todos aqueles que quisessem e pudessem comprar, mesmo que pequenas quantidades; ou seja proibindo-se que alguns poucos pudessem comprar a carne toda, desde que houvesse outros interessados, o que era fiscalizado pelos almotacés37. O caso dos moleiros é mais um exemplo claro que se insere neste modelo e por isso a legislação municipal e as autoridades concelhias e régias insistiam muito nesse princípio e procuravam impedir quaisquer alterações ou novas práticas que o pudessem por em causa. - A importância dos moleiros para a cidade era tal, que encontramos por vezes o concelho a pedir ao rei certos privilégios a favor desses moleiros, por ser do interesse vital da cidade. Dois exemplos, entre outros: Em 1368 a cidade intercede junto do rei, para o monarca isentar das vintenas das galés “os moleiros que de modo continuado moem para a cidade”, tendo em vista os interesses da urbe. A argumentação utilizada pelo concelho era a de que 34 MELO Arnaldo Sousa − Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média…, vol. I, pp. 281-312, 429-434. 35 MELO Arnaldo Sousa − Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média…, vol. I, pp. 301 e 430-431. 36 MELO Arnaldo Sousa − Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média…, vol. I, pp. 201-203; MARQUES, A. H. de Oliveira − Portugal na Crise..., pp. 171-176; BARROS, Amândio Jorge Morais − Porto: a construção de um espaço marítimo nos alvores dos tempos Modernos, Lisboa: Academia da Marinha, 2016, . 84-86. 37 MELO Arnaldo Sousa − Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média…, vol. pp. 308-311; 429-434. MOLEIROS, MOINHOS E AZENHAS NO PORTO NOS SÉCULOS XIV E XV 443 a convocação dos moleiros da cidade para esses serviços militares navais “provoca mingua de moleiros para as necessidades da cidade e dos navios que a ela aportam”, pois os moleiros ou vão nas galés, ou fogem da cidade e arredores: 1368, Dezembro, 28, Évora. D. Fernando, querendo fazer graça mercê, manda aos seus oficiais que doravante “nom costrangades os molleyros que continuadamente mooem e dam farinha para mantymento da dita cidade e das naues e bayxees e nauios que a ella veem e dos que a ella chegam que vam nas minhas galees” e que os tirem “das vintenas em que ora som postos para os dessa cidade nom receberem agravo e o meu serviço ser em ello guardado como deue” 38. De igual modo, em 1359, numa carta régia de 26 de novembro, o rei D. Pedro acolhe a queixa e pedido do concelho do Porto, contra a prática de alguns poderosos requisitarem as bestas de “vizinhos e moleiros da cidade do Porto nas quais se transportavam viandas para a cidade”, para as utilizar em seus serviços noutros lugares do reino, gerando grande prejuízo à cidade, pela falta de mantimentos que provocava, bem como provocando dano aos donos dos animais.39 Este episódio mostra a importância dos moleiros no abastecimento da cidade, uma vez que são individualizados na pedido do concelho. Os moleiros, embora não fossem vizinhos da cidade, como temos visto e como a própria expressão documental parece implicar, são os únicos a ser destacados além dos referidos vizinhos, o que mostra a sua importância para o abastecimento da urbe. 4. Análise do contexto e significado das contendas descritas. Depois de procedermos à tentativa de caracterizar o modelo de funcionamento da atividade dos “moleiros do Porto”, estamos em melhores condições de voltar às duas contendas atrás descritas, de 1356 e de 1403, e procurar agora compreender melhor o seu significado. 1. A contenda de 1356 tem a ver com a introdução de alterações ao sistema costumeiro por parte dos moleiros. Estes diziam não ter capacidade para moer o cereal que o Porto tinha para moer e por isso deixaram de ir buscá-lo à cidade, com era a sua obrigação acostumada. Os moleiros queriam alterar o sistema alegando não poder responder às solicitações de moagem da cidade, ou seja, afirmando não ter 38 39 A.H.M.P., Livro 2º de Pergaminhos, doc. 30; publicado em Corpus Codicum…, vol. VI-IV, pp. 48-49. A.H.M.P., Livro 1º de Pergaminhos, doc. 52; publicado em Corpus Codicum…, vol. VI-II, pp. 68-69. 444 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL capacidade de resposta face à procura40. Usam o argumento de falta de água, como o factor principal de problema, mas talvez que a dificuldade fosse consequência de desequilíbrios mais profundos entre as necessidades da cidade ao nível da moagem de cereais e a capacidade de resposta dos moleiros, nessas zonas à volta da cidade. Terse-ia verificado um aumento das necessidades de moagem dos moradores da cidade nos últimos tempos? E lembremos que é expressamente referido que as necessidades de moagem se destinavam não só às necessidades dos habitantes da cidade, mas também ao abastecimento dos navios que aí aportavam. Mas não temos dados concretos que nos elucidem sobre essas questões nesta conjuntura em particular. No entanto, no documento de 1403 os moleiros pedem para não serem obrigados a levar para os moinhos todo o cereal que estivesse na cidade para ser moído, de cada vez que vão à cidade, pois não o poderiam levar todo de uma só vez41. E em 1356 os moleiros, numa altura em que deixaram de assegurar o transporte do cereal da cidade, diziam que os moradores da cidade enviavam diretamente para os engenhos hidráulicos uma tal quantidade de grão que não cabia nas azenhas e moinhos42. Ou seja, em ambas as afirmações os moleiros afirmam não dispor da capacidade de moagem suficiente, nem de transporte, para dar resposta à procura. Significará um aumento do cereal para moer, ou pelo contrário traduz uma dificuldade na oferta da capacidade de moagem provocada pela falta de água que os moleiros alegam? Ou provocada por uma redução do número de moleiros em atividade, por razões que desconhecemos, mas que poderíamos supor relacionadas com a Peste Negra de 1348, por exemplo? Mas não temos dados que nos elucidem sobre estas questões. Em todo o caso, a única razão expressamente referida é a falta de água, e mesmo que as causas fossem mais complexas e múltiplas, a escassez de água era a única referida expressamente e isso deve ser tido em conta. E refira-se que as sentenças régias obrigaram a manter o costume, mas com a ressalva de ter em consideração o limite da capacidade de cada moleiro, incluindo a questão de abundância ou falta de água para a moagem. Resumindo, podem ter-se verificado uma das seguintes condições, ou várias em simultâneo: 40 “que auia gram mingua dauga e que porem nom podiam moer tanto pam quanto o dito concelho queria que moessem” (A.H.M.P., Livro 1º de Pergaminhos, doc. 36; publicado em Corpus Codicum…, vol. VI-II, pp. 53-54). 41 Os moleiros pedem que não fossem obrigados a “leuar aos moynhos quando hii ueessem por ello por que nom podiam em huma uez todo levar o mantiimento que aí esteuese” (A.H.M.P., Livro 3º de Pergaminhos, doc. 17 (cópia em pública-forma de 1427) e doc. 55 (original de 1403); reprodução fotográfica em Corpus Codicum …, vol. VI-VI, doc. 17 e doc. 55). 42 “Ca diziam que auiam mui pouco augua e outrossy diziam que os moradores e vezinhos da dita cidade os forçavam e agrauauom enuyando lhes pelos seus mancebos e mancebas e bestas tanto graaom aas dita zenhas que o nom podiam moer nem lhis cabia nas ditas zenhas e pediam ao ouvidor que lhis defendessem que lhis nom enuiassem ala o dito graaom pelos ditos seus mancebos e mancebas e bestas como lho enuyauam” (A.H.M.P., Livro 1º de Pergaminhos, doc. 36; publicado em Corpus Codicum…, vol. VI-II, pp. 53-54). MOLEIROS, MOINHOS E AZENHAS NO PORTO NOS SÉCULOS XIV E XV 445 - Aumento da procura de moagem pela cidade; e nesse caso porquê? - Eventual redução da capacidade de moagem pela redução do número de moleiros; - Falta de água, que reduziria a capacidade de moagem dos engenhos hidráulicos, se fosse uma situação recorrente e que se prolongasse há algum tempo. E nesse caso, haveria falta de água excecionalmente nesse ano, ou era um problema sistemático e que vinha já de anos anteriores? Este argumento corresponderia à realidade, ou era exagerado e mera argumentação retórica? Nesse caso, os moleiros quereriam receber mais e ter mais privilégios, talvez devido ao aumento da procura dos seus serviços, e o concelho resistia e não admitia tais aumentos. A ser assim, estaríamos em presença de formas de pressão dos moleiros sobre o concelho, uma espécie de greve dos moleiros para pressionar a aceitação das suas reivindicações, nomeadamente o aumento dos pagamentos devidos aos moleiros, ou até liberalizar o mercado (preço livre)? Num contexto de valorização do valor do trabalho e serviço feito pelos moleiros – em época de forte procura dos seus serviços e oferta limitada – os moleiros ficaram impossibilitados, pelo concelho, de usufruir de tal contexto aumentando os preços que praticavam. O concelho proíbe tal evolução ao impor a manutenção da remuneração que sempre ganharam, a maquia acostumada, ou seja, uma determinada parte por cada búzio ou alqueire de cereal tradicionalmente cobrada. Como o concelho sempre impôs a maquia como única forma de pagamento e, ao que nos parece, sem aumentos (uma percentagem do total em farinha). Talvez por isso, como forma de protesto e de pressão, os moleiros deixassem de ir à cidade transportar o cereal. 2. Em 1403 o concelho parece querer alterar a forma de medição do cereal, passando das tradicionais medidas de capacidade (alqueire, teigas, búzios) para um sistema de peso, o que os moleiros consideram mais gravoso. Os moleiros reclamam só aceitar esse novo sistema, com a condição de deixar de levar o cereal à cidade. Além disso, penso que dessa forma os moleiros poderiam ganhar mais com outros tipos de pagamentos, alem da maquia, pois não ir à cidade significaria um menor controlo das autoridades concelhias e até a possibilidade de poderem negociar preços diferentes diretamente com cada cliente. Se fossem os moradores do Porto aos moinhos e azenhas com o cereal, os moleiros reduziriam os seus custos, ficando libertados do transporte que ficaria a cargo dos donos dos grãos. Simultaneamente tal afastamento do espaço da cidade poderia permitir aos moleiros cobrar maiores maquias ou outras contrapartidas pela moagem, ou beneficiar os vizinhos da cidade que pagassem mais, longe do olhar 446 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL fiscalizador das autoridades concelhias, ao contrário que se passaria na Praça da Ribeira com vários moleiros e moradores presentes, sob o olhar atento dos almotacés e outros agentes municipais. O concelho, ao querer impor o pagamento em função do peso e não do volume (capacidade), estaria a limitar o ganho dos moleiros, ou pelo menos foi essa a perceção dos moleiros, por isso como contrapartida queriam deixar fazer o transporte. A solução encontrada em 1403 foi manter tudo como estava antes, e dessa forma resolver os problemas de ambas as partes. O concelho desistia das alterações que os moleiros contestavam (continua a maquia relacionada com o cereal calculado em volume e não a peso) e em troca também não se cedia aos pedidos dos moleiros, que pretendiam deixar de garantir o transporte de e até as casas dos proprietários do cereal. Neste caso, manter tudo como estava antes, parece ter sido a solução para conseguir um acordo entre as partes sancionado pelas sentenças e cartas régias. Estas são algumas das hipóteses interpretativas que se afiguram mais prováveis, entre outras possibilidades. 5. Considerações finais. “Os moleiros da cidade”, ou “aqueles que de forma continuada moem para a cidade” estavam sujeitos a certas obrigações ou regras, mas também a certos direitos ou regalias. Seria um estatuto formal, que lhes garantia a autorização para exercer esse mester para a cidade, com direitos e deveres inerentes, tipificadas e aceites pelo costume e por vezes reforçadas, e noutros casos alteradas, pelos ordenamentos ou posturas municipais, e por vezes até incluía privilégios régios, requeridos pela cidade para os moleiros. Em todo este processo e em ambas as datas os moleiros que moem para a cidade, provenientes e moradores em todas estas zonas com alguma distância entre si e que em 1305 nem sequer estão inseridos no termo da cidade, nem eram, portanto, moradores no concelho. Não obstante tudo isto, esses moleiros mostraram capacidade de organização e de executar ações coletivas, falando a uma só voz com as autoridades régias e concelhias, que os reconhece como um interlocutor. Em 1356 é o rei que os convoca perante si ou perante a justiça. E em 1403 a iniciativa judicial é dos moleiros, que em conjunto fazem queixa e põem ação junto do juiz do rei na cidade e depois recorrem da sua sentença, em apelação, para o próprio rei. A unilos apenas o facto de serem moleiros da cidade do Porto, ou quem moem para a cidade de forma continuada, o que significava um estatuto e lhes conferia unidade e interesses comuns. Note-se que nestas contendas entre os moleiros e o concelho, o rei e os seus agentes superiores foram sempre necessários para resolver as questões. A solução MOLEIROS, MOINHOS E AZENHAS NO PORTO NOS SÉCULOS XIV E XV 447 das autoridades passa por tentar manter o costume, as inovações quando geradores de conflitos são proibidas ou dificultadas, isto quer quando eram por iniciativa dos moleiros, quer do concelho. As sentenças das autoridades judiciais régias foram sempre desenvolvidas apresentando a justificação de zelar pelos interesses da cidade e seus moradores, mas também considerando os interesses dos moleiros, ouvidas sempre as duas partes e tentando impor consensos ou algumas cedências de parte a parte. No fundo, relaciona-se com a procura do bem comum que se traduz, também, na definição de preços justos e de condições justas, que resultam da interceção da parte comum dos interesses em conflito. 448 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL O armazenamento e a gestão dos recursos nas cidades do Gharb al-Andalus: o exemplo de Alcácer do Sal Marta Isabel Caetano Leitão1 Resumo A cidade de Alcácer do Sal encontrava-se, ao longo da permanência muçulmana, dotada de uma série de infraestruturas de armazenamento, como cisternas, poços e silos, que permitiam uma adequada conservação dos bens alimentares, bem como o abastecimento da cidade em caso de cerco prolongado. A construção daquelas estruturas obedecia a um conjunto de critérios que eram fundamentais para uma apropriada gestão e conservação dos produtos armazenados. Através dos tratados de agronomia islâmicos, assim como das infraestruturas descobertas no núcleo urbano durante intervenções arqueológicas ocorridas no castelo entre 1993 e 1997, pretende-se dar a conhecer como se geriam e conservavam os recursos em Alcácer do Sal no Período Muçulmano. Palavras-chave Período medieval islâmico; Alcáçova; Núcleo urbano; Recursos; Estruturas de armazenamento. 1 Bolseira de Doutoramento na Fundação para a Ciência e a Tecnologia (SFRH/BD/117606/2016). Instituto de Arqueologia e Paleociências da Universidade Nova de Lisboa (IAP). E-mail: martaleitao11@gmail. com. Um enorme agradecimento ao António Rei pela ajuda na transcrição em português das palavras árabes transcritas em castelhano. Agradeço, igualmente, à minha orientadora Rosa Varela Gomes que, desde 2013 até ao presente, tem-me apoiado, ajudado e aconselhado na metodologia a adoptar em cada um dos passos da minha investigação. Deixo também o meu profundo agradecimento ao Gabinete de Arqueologia da Câmara Municipal de Alcácer do Sal, bem como à Direcção Regional de Cultura do Alentejo, pela cedência das fotos, desenhos e plantas das intervenções arqueológicas realizadas no castelo. 450 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL The storage and management of resources in the cities of Gharb al-Andalus: the example of Alcácer do Sal Abstract The city of Alcácer do Sal was, throughout the Muslim period, equipped with a series of storage infrastructures, such as cisterns, wells and silos, which allowed an adequate conservation of the food, as well as the supply of the city in case of prolonged enclosure. The construction of these structures obeyed a set of criteria that were fundamental for an appropriate management and conservation of the stored products. Through the Islamic agronomy treaties, as well as the infrastructures discovered in the urban nucleus during archaeological interventions in the castle between 1993 and 1997, it is intended to make known how the resources were managed and conserved in Alcácer do Sal in the Muslim period. Keywords Islamic Medieval period; Alcáçova; Urban nucleus; Resources; Storage structures. Introdução. Intervenções arqueológicas ocorridas, entre 1993 e 1997, no interior do perímetro amuralhado do castelo de Alcácer do Sal, tal como temos vindo a referir noutras publicações2, colocaram a descoberto um conjunto de estruturas, datadas do Período Muçulmano, que permitiram conhecer a organização urbanística e os quotidianos dos habitantes daquela cidade na época citada. Entre as estruturas referidas, as quais foram alvo de estudo neste trabalho, cabe destacar a identificação de 60 silos, bem como de um poço e uma cisterna para o armazenamento de água. Dos silos descobertos foram escavados 13 na integralidade, tendo sido os restantes parcialmente escavados e outros somente referenciados no registo gráfico e fotográfico. LEITÃO, Marta Isabel Caetano − A Presença Islâmica em al-Qasr (Alcácer do Sal): urbanismo, quotidianos e cultural material. Mauritius: Novas Edições Acadêmicas, 2017, pp. 5-12; LEITÃO, Marta Isabel Caetano − “O Castelo de Alcácer do Sal. Da fortificação islâmica às transformações ocorridas durante o domínio cristão”. In ANDRADE, Amélia Aguiar; TENTE, Catarina; SILVA, Gonçalo Melo da; PRATA, Sara (eds.) − Espaços e Poderes na Europa Urbana Medieval. Lisboa: IEM-Instituto de Estudos Medievais/Câmara Municipal de Castelo de Vide, 2018, pp. 623-630. 2 O AR MAZENAMENTO E A GESTÃO DOS R ECURSOS NAS CIDADES DO GHARB AL-ANDALUS 451 Aquelas estruturas foram utilizadas, numa primeira fase, para o acondicionamento de cereais e outros bens alimentares, sendo, alguns deles, posteriormente, desactivados da sua função primária para serem reutilizados como lixeiras/fossas onde eram depositados os desperdícios urbanos e domésticos. Cabe mencionar que alguns destes silos se achavam associados a habitações, quer datadas do Período Islâmico, quer do Período Romano, tendo sido estas últimas reaproveitadas pelos muçulmanos, enquanto outros não se encontravam associados a qualquer estrutura. 1. Estruturas de armazenamento. 1.1 Poços e cisterna. No que respeita aos inícios da presença islâmica a intervenção arqueológica permitiu identificar, no canto sul da alcáçova, um poço de abertura e secção circular, construído em silharia de pedra bem aparelhada, disposta de forma regular e intercalada por fiadas de tijolo e argamassa, com 0,56 m de diâmetro de boca, 1,28 m de diâmetro máximo e 5 m de profundidade3. Ao mesmo nível arqueológico daquele foram identificados fragmentos de cerâmicas islâmicas, datados dos séculos IX e X, com destaque para a descoberta de um cântaro intacto, decorado com pintura branca, permitindo datar a sua construção do Período Omíada4. As suas dimensões indicam uma capacidade de armazenamento de 6400 litros de água, permitindo fornecer 6 pessoas durante um ano, no caso de considerarmos que cada uma delas necessita em média, pelo menos, 3 litros por dia5. Trata-se de um pequeno poço particular de carácter doméstico, uma vez que o mesmo se achava associado a parede que definia espaço habitacional com lareira6, que se destinava ao abastecimento quotidiano de um reduzido número de pessoas que viviam na alcáçova (Fig. 1). Durante o Período Almóada construiu-se uma estrutura de maior envergadura, com superior capacidade de armazenamento, para fazer face às necessidades diárias de um maior número de habitantes, tendo sido nesse contexto que se edificou, no canto sul da alcáçova, uma cisterna. Trata-se de uma estrutura escavada no substrato rochoso de planta rectangular com 2,96 m de comprimento, 2,20 m de largura e 2,32 m de profundidade, achando-se revestida, exteriormente, por uma argamassa constituída por areia e fragmentos de pedras que teria como finalidade torná-la 3 LEITÃO, Marta Isabel Caetano − “Alcácer do Sal Durante o Período Muçulmano (IX-XIII)”. Debates de Arqueología Medieval 6 (2016), p. 225. 4 LEITÃO, Marta Isabel Caetano − A Presença Islâmica em al-Qasr (Alcácer do Sal): urbanismo…, pp 7-9. 5 Seguimos os mesmos critérios aplicados por Rosa Varela Gomes no estudo dos sistemas de abastecimento de água na alcáçova de Silves: GOMES, Rosa Varela − Silves (Xelb) uma cidade do Gharb AlAndalus: a Alcáçova. Lisboa: Instituto Português de Arqueologia, 2003, p. 28. 6 LEITÃO, Marta Isabel Caetano − A Presença Islâmica em al-Qasr (Alcácer do Sal): urbanismo…, p. 9. 452 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL impermeável. Aquela possuía uma capacidade de armazenamento de 16 000 litros permitindo o fornecimento de água a cerca de 15 pessoas durante um ano. Fig. 1 – À esquerda: poço, de cronologia Emiral/Califal, descoberto no interior da alcáçova (cedida pelo Gabinete de Arqueologia da Câmara Municipal de Alcácer do Sal); à direita: boca e alçado do poço (desenhos de Saudade Correia/conversão digital da autora). No decorrer da intervenção arqueológica encontraram-se troços de canalizações que transportavam a água das chuvas para o interior da cisterna, assim como para o pequeno tanque que se encontra no pátio da alcáçova7. Acedia-se ao interior daquela através de abertura rectangular que, para além de facultar o acesso àquele bem essencial, permitia também a entrada para realização da sua limpeza periódica, sendo a mesma depois selada para impedir a saída da água (Fig. 2). Esta estrutura encontra paralelos formais com a cisterna 2 muçulmana identificada no interior da Alcáçova de Silves. Há semelhança daquilo que se verifica em Alcácer, também aquela foi escavada no substrato rochoso, possuindo planta rectangular, acedendo-se ao seu interior por meio de duas aberturas, uma de planta circular, situada a nascente, e outra sub-quadrangular, situada a poente8. Após a Reconquista Cristã da cidade, a cisterna continuou a abastecer o Paço da Ordem de Santiago, tendo-se realizado algumas remodelações na mesma através do acrescento de novo revestimento exterior, primeiramente, em pedra e tijolo, e, posteriormente, em taipa civil. Durante a Idade Moderna a estrutura foi desactivada passando a servir de lixeira. No espaço correspondente à medina islâmica identificou-se, em 2003, no decorrer de trabalhos de limpeza e consolidação efectuados no sector norte do recinto amuralhado, vestígios de uma couraça, edificada em taipa militar e datada do Período Almóada, que arrancava directamente da barbacã existente naquela 7 FARIA, João Carlos Lázaro; PAIXÃO, António Cavaleiro − Relatório das escavações arqueológicas no convento de Nossa Senhora de Aracaeli. Alcácer do Sal, 1996, p. 13. 8 GOMES, Rosa Varela − Silves (Xelb) uma cidade do Gharb Al-Andalus…, pp. 31-32. O AR MAZENAMENTO E A GESTÃO DOS R ECURSOS NAS CIDADES DO GHARB AL-ANDALUS 453 Fig. 2 – Estratigrafia e aparelho construtivo da cisterna (desenhos de Saudade Correia/conversão digital da autora). zona em direcção ao fosso e a uma nascente de água que ali se encontra9. A mesma teria como função principal a defesa e acesso à água em caso de cerco prolongado, 9 CARVALHO, António Rafael; FARIA, João Carlos; FERREIRA, Marisol Aires − Al-Qasr: Arqueologia e História de uma Madina do Garb al-Andalus, sécs. VIII-XIII. Alcácer do Sal: Câmara Municipal de Alcácer do Sal, 2008, pp. 79-80. 454 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL sendo bastante comum a presença daquele tipo de estruturas, sobretudo a partir de Época Almóada, em outras cidades do al-Andalus como Sevilha e Badajoz10. Após a Reconquista Cristã de 1217, a couraça foi desactivada entrando em ruína (Fig. 3). Fig. 3 – Troços da couraça identificados durante trabalhos de limpeza e consolidação efectuados, em 2003, na encosta Norte do Castelo (cedidas pelo Gabinete de Arqueologia da Câmara Municipal de Alcácer do Sal). No núcleo urbano de matriz islâmica encontra-se, igualmente, um poço, o qual não foi alvo de intervenção arqueológica, onde no fundo se recolheu, durante uma limpeza ocorrida na década de 1960 no seu interior, espólio datado do Período Almóada11. Aquela estrutura possui profundidade de 26 m e diâmetro de 4,80 m, detendo uma capacidade de armazenamento de 471000 litros de água, o que possibilitava o fornecimento daquele bem a cerca de 430 pessoas durante um ano. 1.2 Silos. Durante a intervenção arqueológica colocou-se a descoberto, quer no espaço da anterior alcáçova, quer no núcleo urbano, grande quantidade de silos que se achavam associados, na sua maioria, a compartimentos que definiam habitações e que detinham, por isso, uso familiar. Contudo, no sector sul da área que correspondia à medina islâmica foram encontrados conjunto de silos que não estavam associados a qualquer estrutura de âmbito residencial, o que parece sugerir a utilização daquele espaço exclusivamente para armazenamento dos bens alimentares da cidade (Fig. 4). TORRES BALBÁS, Leopoldo − Ciudades Hispanomusulmanas. Madrid: Instituto Hispano-Árabe de Cultura, 1985, p. 537. MÁRQUEZ BUENO, Samuel; GURRIARÁN DAZA, Pedro – “Tras la huella de los almohades. Reflexiones sobre las últimas fortificaciones del Badajoz andalusí”. Cuadernos de arquitectura y fortificación 0 (2012), p. 56. 11 CHAGAS, José António Amaral Trindade – O castelo de Alcácer do Sal e a utilização da taipa militar durante o domínio almóada. Évora: Universidade Évora, 1995. Dissertação de Mestrado, p. 35. 10 O AR MAZENAMENTO E A GESTÃO DOS R ECURSOS NAS CIDADES DO GHARB AL-ANDALUS 455 Fig. 4 – Planta geral das estruturas identificadas, entre 1993 e 1997, no interior da alcáçova e medina islâmica. Tipologicamente as estruturas negativas identificadas foram escavadas no substrato rochoso, rompendo, por vezes, pisos e muros de períodos precedentes, e possuem formato oval e periforme com fundos de perfil oval e ligeiramente fusiforme. Algumas daquelas estruturas apresentavam a boca estruturada com elementos pétreos de pequena e média dimensão, sendo seladas igualmente com pedras ou, simplesmente, com terra, achando-se as paredes nos seus interiores revestidas com 456 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL argila, tornando-os, desse modo, impermeáveis para uma adequada conservação dos cereais. Em termos de dimensões os silos apresentam diâmetros máximos que oscilam entre 1,68 m a 2,55 m e profundidades de 2,94 m a 3,16 m, o que permitia uma capacidade de armazenamento entre 7 m3 a 15m3, podendo aqueles conter entre 4620 kg até 9900 kg de cereais, considerando que cada m3 de trigo pesa 660 kg12. Se tivermos em conta que cada indivíduo poderia sobreviver com 230 kg de trigo por ano13, verificamos que a capacidade daquelas estruturas respondia às necessidades alimentares de 20 pessoas, para o caso dos de menor capacidade, a 43 pessoas durante um ano, no que respeita aos de maiores proporções de armazenamento (Fig. 5). Fig. 5 – Em cima: silos, de planta oval e rectangular, descobertos em 1995 durante intervenções arqueológicas ocorridas no interior do castelo; em baixo: cortes dos silos (desenhos de Saudade Correia/conversão digital da autora). A nível cronológico algumas daquelas estruturas negativas foram edificadas, entre os séculos VIII e XI, para armazenamento de bens alimentares, tendo sido, posteriormente, desactivadas a partir da segunda metade do século XII, já em pleno Período Almóada, passando a servir de lixeiras, conforme denunciam as GOMES, Rosa Varela − Silves (Xelb) uma cidade do Gharb Al-Andalus…, p. 33. Segundo Rosa Varela Gomes, cada indivíduo poderia sobreviver com 230 kg de trigo durante um ano. Ver: GOMES, Rosa Varela − Silves (Xelb) uma cidade do Gharb Al-Andalus…, p. 33. 12 13 O AR MAZENAMENTO E A GESTÃO DOS R ECURSOS NAS CIDADES DO GHARB AL-ANDALUS 457 cerâmicas e restos faunísticos descobertos durante a intervenção arqueológica14. Já outros perduraram mesmo durante esta fase, edificando-se igualmente outros novos para fazer face às necessidades alimentares da população, sobretudo em épocas de escassez, e a um eventual cerco prolongado que pudesse assolar a cidade, uma vez que, tratando-se Alcácer de um território de fronteira com inimigo cristão, eram constantes os saques e as pilhagens efectuados naquele15. Alguns destes silos continuaram a cumprir a sua função primária durante a Idade Média16. No que concerne ao conjunto cerâmico recolhido do interior daquelas estruturas salienta-se a presença de cerâmicas comuns e vidradas, abrangendo uma cronologia entre os séculos VIII e XIII, onde estão presentes a loiça de mesa: taças, jarros e jarras; loiça de cozinha: panelas, frigideiras, caçoilas e alguidares; loiça de armazenamento: talhas e cântaros; contentores de fogo: candis e lamparinas e, ainda, outras peças de uso complementar como testos e outros objectos de uso quotidiano, os quais já foram estudados e publicados em outros trabalhos17. Os silos descobertos em Alcácer do Sal apresentam semelhanças tipológicas com os silos muçulmanos identificados no interior do Solar da Casa de Santo Isidro em Madrid18. Aqueles apresentam formas em saco, possuindo medidas de profundidade e diâmetros que se aproximam dos silos encontrados em Alcácer. Ali foram recolhidos fragmentos de cerâmicas datáveis entre os séculos X e XIII19. Quanto ao espólio ecofactual exumado do interior dos silos intervencionados em Alcácer permite-nos conhecer, ainda que de forma parcial, uma vez que parte daquele repertório ainda se encontra por analisar, como era a dieta alimentar das comunidades muçulmanas que habitaram aquela cidade. A maioria dos restos osteológicos recolhidos pertence a ovicaprinos (Capra hircus e Ovis aries), seguido dos relativos a coelhos e alguma avifauna, especialmente de galinhas (Gallus 14 MORENO GARCÍA, Marta; DAVIS, Simon − “Estudio de las asociaciones faunísticas recuperadas en Alcácer do Sal, Convento de São Francisco, Santarém y Sé de Lisboa”. Garb: Sítios islâmicos do Sul Peninsular. Lisboa/Mérida: IPPAR/Junta da Extremadura, 2001, p. 233. FARIA, João Carlos Lázaro − Alcácer do Sal ao Tempo dos Romanos. Lisboa: Colibri, 2002, p. 103. 15 VARANDAS, José – “O assédio a Alcácer: alguns problemas de história militar”. In FERNANDES, Isabel Cristina; BRANCO, Maria João (coords.) – Da Conquista de Lisboa à Conquista de Alcácer, 1147-1217: definição e dinâmicas de um território de fronteira. Lisboa: Colibri, 2019, p. 376. 16 Faz-se referência, em 1385, às covas do Paço no castelo onde era armazenado o trigo. Ver: COSTA, Paula Pinto; MATA, Joel; PIMENTA, Maria Cristina; SILVA, Isabel Morgado S. – Coleção Militarium Ordinum Analecta. Fontes para o estudo das Ordens Religiosas-Militares. Livro dos Copos. N.º 7, Vol. I. Direcção de Luís Adão da Fonseca. Porto: Fundação Eng.º António de Almeida, 2006, p. 397. 17 CARVALHO, António Rafael; PAIXÃO, António Manuel Cavaleiro; FARIA, João Carlos Lázaro − “Contributo para o estudo da ocupação muçulmana no Castelo de Alcácer do Sal: O Convento de Aracoelli”. Arqueologia Medieval 7 (2001), pp.197-209. LEITÃO, Marta Isabel Caetano − A Presença Islâmica em al-Qasr (Alcácer do Sal): urbanismo…, pp. 46-53. 18 VALLESPÍN GÓMEZ, Olga; SERRANO HERRERO, Elena; LÓPEZ MARTÍN, Miguel; MARÍN PERELLÓN, Francisco – “Excavaciones en el solar ‘Casa de San Isidro’”. In Madrid del siglo IX al XI. Madrid: Comunidad de Madrid, 1990, pp. 293-296. 19 VALLESPÍN GÓMEZ, Olga et alii − “Excavaciones en el solar ‘Casa de San Isidro’...”, pp. 294-296. 458 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL domesticus), bem como espécies ligadas à actividade venatória, designadamente perdizes (Perdix rubra), corvos e abutres fulvo20. Salienta-se também a presença de vestígios osteológicos de espécies como a vaca, vitela, veado e lebres, os quais eram, igualmente, bastantes consumidos durante o Período Muçulmano, quer em Alcácer, quer em outras cidades muçulmanas do al-Andalus21. Em menor número encontram-se espécies como o cavalo e o javali. Apesar das proibições corânicas relativas ao consumo de carne de porco, a sua ingestão ocasional está atestada no seio das comunidades islâmicas22. Recolheu-se, igualmente, abundante fauna ictiológica, o que é natural, dada a localização geográfica da cidade, reconhecendo-se duas espécies pescadas localmente no rio Sado, como o opérculo e cleithrum de galope (Liza aurata)23. Para além da tipologia de silos em fossa referidos colocou-se também a descoberto, durante a intervenção arqueológica no interior da alcáçova, um outro silo islâmico associado a compartimento, datado do Período Almóada, com paredes erguidas em pedra não aparelhada, intercalada por fiadas de tijolo e terra, cujas características diferem dos restantes identificados. Trata-se de um silo, designado nas fontes islâmicas como ḥufra (pl. ḥufar), de formato rectangular ou em forma de “sepultura”, mais alargado e muito menos profundo do que os habituais maṭmūra (pl. maṭāmír) destinados ao acondicionamento de cereais, medindo 0,76 m de largura, 0,80 m de comprimento e 0,16 m de profundidade, que se destinava ao armazenamento de frutos secos24. 2. Armazenar e conservar segundo os tratados de agronomia islâmicos e o exemplo de Alcácer do Sal. O armazenamento e a conservação de bens naturais, de que é exemplo a água, tal como de bens alimentícios, obedecia a um conjunto de normas e critérios, descritos nas fontes islâmicas, que eram fundamentais para uma adequada gestão dos mesmos no abastecimento das cidades durante as quatro estações do ano mas, também, nas épocas de crise em que havia escassez de alimentos devido a secas prolongadas, chuvas torrenciais, incêndios, acidentes, ou, até mesmo, por destruições provocadas MORENO GARCÍA, Marta; DAVIS, Simon − “Estudio de las asociaciones faunísticas…”, p. 233. MORENO GARCÍA, Marta; PIMENTA; Carlos − “Ossos no lixo: o contributo arqueozoológico para o estudo da alimentação na Mértola Islâmica”. In GÓMEZ MARTÍNEZ, Susana (coord.) − Memória dos Sabores do Mediterrâneo. Campo Arqueológico de Mértola/Centro de Estudos Arqueológicos das Universidades de Coimbra e Porto, 2012, p.171. 22 RIQUELME CANTAL, José Antonio – “Estudio Faunístico del yacimiento medieval de Plaza España, Motril (Granada)”. Arqueologia Medieval 2 (1993), p. 259. 23 MORENO GARCÍA, Marta; DAVIS, Simon − “Estudio de las asociaciones faunísticas…”, p. 234. 24 GARCÍA SÁNCHEZ, Expiración − “La conservación de los productos vegetales en las fuentes agronómicas andalusíes”. In MARÍN, Manuela; WAINES, David (eds.) − La alimentación en las culturas islâmicas. Madrid: Agencia Española de Cooperación Internacional, 1994, p. 280. 20 21 O AR MAZENAMENTO E A GESTÃO DOS R ECURSOS NAS CIDADES DO GHARB AL-ANDALUS 459 por conflitos entre muçulmanos, no contexto de disputas pelo poder, ou das guerras da reconquista. De acordo com o Corão a água era o elemento mais importante do Universo, uma vez que, no momento da criação do mundo, o trono de Deus estaria em contacto com aquele bem essencial25. Além disso, era também símbolo de vida, dado que todos os seres vivos nasciam a partir dela, tal como do Paraíso onde aquela existia em abundância alimentando jardins, plantas e árvores de fruto26. Em termos práticos a água era fundamental para o abastecimento das populações urbanas e rurais, bem como para os animais e irrigação dos campos agrícolas, exigindo algumas culturas maior abundância daquele elemento do que outras, sendo necessário, para esse efeito, a construção de sistemas para captação e condução de água até aos respectivos locais de cultivo. Segundo Ibn Luyūn, baseando-se em Ibn Bassāl, a água de melhor qualidade seria a da chuva, seguida da proveniente dos rios, uma vez que tratando-se de água corrente, nas estações mais frias, eliminava as larvas da terra, sendo por isso muito proveitosa. Em terceiro lugar refere as águas oriundas das fontes e dos poços que, segundo aquele, eram as melhores para regar plantas comestíveis, visto que produziam efeitos contrários nas estações do ano, ou seja, eram mornas no Inverno e frescas no Verão27. Quando existia perda de culturas devido a alguma calamidade, como secas prolongadas, chuvas intensas, roubo, passagem de exército, entre outros, era declarado o estado de Jā`iha`28. Citado pela primeira vez, no século VIII, pelo jurista Mālik b. Anas, era um termo jurídico aplicado ao meio rural quando aquele era atingido por uma catástrofe natural afectando um terço do total dos cultivos objecto de um contrato29. Este último poderia ser de carácter comercial, onde existia um comprador e um vendedor, ou entre um arrendatário de uma terra cultivada e do seu arrendador, sendo aquele imediatamente cessado e os envolvidos indemnizados pelas perdas sofridas30. A distribuição da água pelas várias alcarias obedecia a determinados critérios. 25 “Foi Ele quem criou os Céus e a Terra em seis dias, estando o seu trono sobre água (…)” [Capitulo XI, 7]. Ver: Alcorão, Parte 1 – “Não há outra divindade senão Deus e Muhammad é o seu Profeta”. Introdução e notas do Dr. Suleiman Valy Mamede, presidente do concelho directivo do Centro Português de Estudos Islâmicos. Sintra: Europa-América, p. 178. 26 “Não vêem, aqueles que não crêem, que os Céus e a Terra formavam um todo maciço? A ambos os fendemos e da água tiramos todas as coisas viventes. Não crerão?” [Capitulo XXI, 30]. Ver: Alcorão, Parte 1…, p. 256. VIDAL CASTRO, Francisco – “Paisajes del agua en al-Andalus”. In ROLDÁN CASTRO, Fátima (coord.) – Paisaje y Naturaleza en Al-Andalus. Granada: Fundación El Legado Andalusí, 2004, pp. 139-140. 27 IBN LUYŪN – Tratado de Agricultura. Tradução de Joaquina Eguarás Ibáñez. Granada: Patronato de la Alhambra y Generalife, 1988, pp. 202-203. 28 CAMARERO CASTELLANO, Inmaculada – Sobre el ´Estado de Yā`iha` - Teoría y práctica jurídica de la calamidade rural y urbana en Al-Andalus (ss. VIII-XV). Sevilha: Editorial Universidad de Sevilla, 2015, p. 15. 29 CAMARERO CASTELLANO, Inmaculada – Sobre el ´Estado de Yā`iha`…, pp. 63-64. 30 CAMARERO CASTELLANO, Inmaculada – Sobre el ´Estado de Yā`iha`…, p. 15. 460 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Era o assentamento mais antigo que tinha prioridade, seguido do mais elevado no curso do rio, sendo a gestão daquela feita pela própria comunidade que habitava o povoado através da oralidade e sob supervisão de um conselho de anciões31. Um exemplo que ilustra a gestão daquele bem essencial pelas comunidades campesinas surge num documento tardio, datado de 1226, relativo à alcaria de Falix, no distrito de Marchena, em Alpujarras, no qual são citadas uma série de personalidades possuidoras de parcelas irrigadas pelo rio Nascimento, onde é estipulado que a cada parcela, mediante rotação fixa, a água era distribuída por um estipulado período de tempo, permanecendo vinculada à mesma durante essa fase32. A água era movida por meio de sistemas hidráulicos como noras que elevavam aquela desde um rio até a um canal de rego, movidas pela força da corrente ou por tração animal. Por sua vez, a água elevada era vertida directamente em acéquias que regavam os campos, ou armazenada numa cisterna e açude para posterior utilização33. A água era ainda utilizada nos banhos públicos das cidades, nos pátios das mesquitas onde se realizavam as abluções, estando presente, igualmente, nos pequenos tanques existentes nos pátios dos palácios e habitações. Estes sistemas de aproveitamento e captação de água desenvolvidos pelos muçulmanos são patentes em Alcácer do Sal durante aquele período através do tanque existente no centro do pátio do palácio da alcáçova, bem como da cisterna, cujas águas das chuvas recolhidas nos telhados eram conduzidas até aos mesmos através de canalizações subterrâneas construídas para esse efeito. Já a captação de água no núcleo urbano era realizada através de um grande poço onde se retirava água, com o auxílio de um alcatruz, quer para consumo próprio, quer para as mais diversificadas tarefas quotidianas dos habitantes da cidade, tendo-se igualmente acesso àquele bem natural através da couraça situada a norte do castelo. No que respeita aos produtos alimentares os agrónomos muçulmanos referem uma série de medidas que seriam importantes para uma adequada conservação dos mesmos. Algumas dessas normas implicavam o cultivo de certas culturas em determinadas estações do ano, tal como a melhor altura para as colher e conservar34. No caso dos legumes e frutas, como por exemplo as pêras e uvas, eram apanhados não muito maduros para que pudessem ser conservados durante um maior período de tempo35. Depois de colhidos, alguns passavam pelo processo de secagem ao sol, 31 TRILLO SAN JOSÉ, Carmen − Agua, Tierra y Hombres en Al-Andalus: La dimensión agrícola del mundo nazarí. Granada: Ajbar, 2004, pp. 275-282. 32 GLICK, Thomas − Paisajes de Conquista: Cambio cultural y geográfico en la España medieval. Valencia: Universidade de Valencia, 2007, pp. 124-127. 33 GLICK, Thomas − Paisajes de Conquista..., pp. 122-123. 34 GARCÍA SÁNCHEZ, Expiración − “La conservación de los productos vegetales…”, pp. 258-259. 35 ABŪ I-JAYR AL-IŠBILĪ − Kitāb al-filāha. Tratado de Agricultura. Introducción, edición, traducción y índices por Julia Carabaza Bravo. Madrid: Instituto de Cooperación com el Mundo Árabe, 1991, pp. 311-317. IBN AL-´AWWĀM − Kitāb al-filāha. Edición y traducción de J. A. Banqueri, 2 vols. Madrid, 1802 (reimpressão O AR MAZENAMENTO E A GESTÃO DOS R ECURSOS NAS CIDADES DO GHARB AL-ANDALUS 461 sendo depois guardados em recipientes cerâmicos, como talhas e potes, onde era adicionado alguns ingredientes naturais para melhor conservação dos mesmos como o vinho, mel ou salmoura e, em seguida, selados e enterrados em terra ou areia36. Já os frutos secos, depois da secagem ao sol, eram colocados nos silos em formato de sepultura e com pouca profundidade (ḥufar), à semelhança do silo encontrado em Alcácer do Sal, sobre fundos cobertos com areia ou palha. As leguminosas e os cereais eram armazenados em silos escavados no substrato rochoso, cujas paredes interiores eram alisadas e revestidas, com fundos largos e bocas mais estreitas, cujas tipologias se caracterizam por possuir perfis ovais, fusiformes ou em forma de saco37. O armazenamento e a conservação daqueles durante um longo período de tempo requeria condições térmicas adequadas, o que implicava um perfeito isolamento do ar, dado que o deficiente controlo daquele elemento no interior do silo levaria ao aparecimento de microorganismos38. Além disso, os grãos armazenados consumiam oxigénio e se aquele processo ocorresse muito rápido geraria vapor de água causando uma deterioração rápida dos produtos armazenados. Para evitar a ocorrência deste fenómeno as fontes referem a necessidade de haver espaçamento entre os grãos, o que corresponderia a 40% de volume de espaço livre no interior do silo, para que aqueles pudessem respirar livremente39. Na conservação dos alimentos eram utilizados diversos ingredientes naturais de origem mineral, vegetal ou animal. Entre os elementos minerais a areia era bastante usada no fundo dos silos, em alguns casos misturada com os grãos para ocupar os espaços entre aqueles possibilitando, como já vimos, uma renovação natural do oxigénio e humidade, ou até mesmo para selar as bocas daquelas estruturas isolandoas da temperatura ambiente40. Em alguns casos eram utilizadas cinzas na conservação, uma vez que aquelas produziam uma acção dessecante41. Relativamente aos elementos vegetais, colocavam-se cinzas vegetais misturadas nos grãos produzindo os resultados já enunciados, tal como o azeite, cujos efeitos antioxidantes retardava a rancificação, cobrindo, ainda, os grãos com uma capa, fazendo com que os insectos deslizassem, não permitindo a colocação de ovos de larvas, assim como o desarolho das recém-nascidas42. Para repelir os 1988), pp. 89; 660. 36 ABŪ I-JAYR AL-IŠBILĪ − Kitāb al-filāha. Tratado de Agricultura…, pp. 181; 314. PALADIO − Tratado de Agricultura. Medicina veterinaria. Poema de los injertos. Traducción, introducción y notas de Ana Moure Casas. Madrid, 1990, p. 215. 37 AL-TIGNARĪ − Kitāb Zuhrat al-bustān. Ms. nº IV del Archivo Municipal de Córdoba y ms. 1674 de la Biblioteca General y Archivos de Rabat, p. 81. IBN BASSĀL, Kitāb al-Qasd wa-l-bayān. Libro de Agricultura. Edición, traducción y notas de Josep Millás Vallicrosa y Mohamed Aziman. Tetuán, 1955, pp. 179; 229. 38 IBN LUYŪN − Tratado de Agricultura…, p. 253. 39 GARCÍA SÁNCHEZ, Expiración − “La conservación de los productos vegetales…”, p. 261. 40 IBN LUYŪN − Tratado de Agricultura…, p. 247. 41 IBN AL-´AWWĀM − Kitāb al-filāha…, pp. 89, 660. 42 ABŪ I-JAYR AL-IŠBILĪ − Kitāb al-filāha. Tratado de Agricultura…, p. 176-185; IBN AL-´AWWĀM 462 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL microorganismos utilizava-se também o incenso e ervas aromáticas como o tomilho, cujas propriedades antioxidantes criavam igualmente uma acção desinfectante sobre os alimentos armazenados43. De origem animal usava-se o estrume, juntamente com cinzas de madeira, para depositar o trigo duro ou, até mesmo, para conservação de algumas frutas como as uvas que deviam ser colocadas em água fervida misturada com estrume e cinzas vegetais44. Muitas das técnicas de conservação empreendidas pelos muçulmanos possuem similaridades com os métodos utilizados pelos romanos45. Contudo, existe uma maior riqueza e grau de perfeição nos procedimentos seguidos pelos agrónomos muçulmanos que se deve, em grande parte, ao maior número de espécies e variedades que eram conservadas e armazenadas. O aperfeiçoamento destas técnicas permitia que alguns cereais, de que é exemplo o milho, pudessem permanecer armazenados, em perfeitas condições, até 100 anos46. Por outro lado, as frutas e legumes eram uma necessidade básica para uma população cuja alimentação era essencialmente vegetal, sobretudo em meio rural, onde o consumo de carne, à excepção do porco, não era abundante e onde os produtos agrários, particularmente os cereais, estavam reservados, fundamentalmente, ao comércio47. O armazenamento dos cereais e leguminosas tratava-se, deste modo, de uma medida de tipo económico. Em primeiro lugar, de auto-abastecimento das comunidades rurais e para poder fazer face a períodos de escassez, não demasiados infrequentes, e, em segundo, para responder às necessidades da população urbana. Os numerosos silos descobertos em Alcácer do Sal, quer no espaço da alcáçova, quer na medina, são o testemunho da riqueza agrícola do seu território, aspecto enfatizado pelo geógrafo al-Idrisi nos inícios do século XII48, cujo cultivo de cereais seria abundante, mantendo-se essa tradição nas Idades Média e Moderna, achandose patente nos distintos moinhos hidráulicos destinados à moagem dos cereais existentes junto às margens do Sado49, mas também pelos largos campos de cultivo onde aqueles eram semeados e pela existência de um espaço na cidade, situado a sul, destinado, somente, ao armazenamento daqueles alimentos. Aquelas estruturas, segundo as fontes islâmicas, deviam situar-se em locais com excepcionais condições de secura e arejamento, sendo privilegiados os locais orientados a este ou sul, em vez − Kitāb al-filāha…, pp. 89; 660. 43 MILLÁS VALLICROSA, Josep María – La traducción castellana del ‘Tratado de Agricultura’ de Ibn Wāfid”. Al-Andalus VIII (1993), pp. 281-332. 44 IBN AL-´AWWĀM − Kitāb al-filāha…, pp. 89; 660. 45 GARCÍA SÁNCHEZ, Expiración − “La conservación de los productos vegetales…”, pp. 275-276. 46 BN AL-´AWWĀM − Kitāb al-filāha…, pp. 89; 660. 47 GARCÍA SÁNCHEZ, Expiración − “La conservación de los productos vegetales…”, pp. 281-282. 48 REI, António − O Gharb Al-Andalus Al-Aqsâ Na Geografia Árabe (séculos III h./IX d.C.–XI h./XVII d.C.) Lisboa: IEM – Instituto de Estudos Medievais, 2012, p. 130. 49 PEREIRA, Maria Teresa Lopes − Alcácer do Sal na Idade Média. Lisboa: Colibri, 2000, pp. 153-155. O AR MAZENAMENTO E A GESTÃO DOS R ECURSOS NAS CIDADES DO GHARB AL-ANDALUS 463 dos situados a poente e norte, dado que estariam mais expostos às chuvas e névoas50. O armazenamento de produtos alimentícios era importante, não só, para manter a qualidade íntegra dos alimentos durante um determinado período de tempo, mas também para responder às necessidades da população em períodos de escassez alimentar, bem como em situações de cercos prolongados. Em 1217, data da Reconquista Cristã definitiva, Alcácer conseguiu resistir durante dois meses ao cerco cristão. A razão da sua tomada deveu-se, não à escassez de comida e água, mas devido à construção de torres de assalto e aos vários projécteis lançados sobre as muralhas51, o que demonstra que aquela possuía boas reservas alimentares que lhe possibilitaram resistir durante muito tempo. 3. Considerações finais. As intervenções arqueológicas ocorridas no interior do castelo permitiram dar a conhecer um conjunto de estruturas de cronologia islâmica que evidenciam as técnicas, bem como as capacidades de armazenagem e conservação empreendidas pelos muçulmanos que habitaram Alcácer do Sal entre séculos VIII e XIII. Os distintos sistemas de captação e condução de água, assim como os diversos silos encontrados para armazenamento de bens alimentares, abasteciam a cidade e satisfaziam as necessidades diárias da população que residia no interior do perímetro amuralhado. Tal como podemos constatar a construção daquelas estruturas obedecia a um conjunto de critérios que eram essenciais para uma adequada reserva e conservação dos elementos que neles eram guardados. Deste modo, a água das chuvas era conduzida à cisterna existente no interior da alcáçova através de canalizações subterrâneas, possibilitando, assim, que durante as estações mais secas as populações se encontrassem providas de água. Para além daquela, a cidade achava-se dotada igualmente de poços, assim como de uma couraça que permitia o acesso seguro àquele bem essencial. Relativamente às estruturas subterrâneas para armazenamento de produtos alimentares deveriam situar-se em locais com boas condições de ventilação e arejamento, sendo, ainda, necessário um controlo da temperatura no seu interior para evitar uma degradação rápida dos alimentos. Para esse efeito, alisavam-se as paredes dos silos e, por vezes, aquelas eram revestidas com argila ou argamassa, tendo em vista torná-las impermeáveis, mantendo-se, assim, uma temperatura térmica favorável à conservação dos bens armazenados. Todos estes factores conjugados criavam as condições propícias a um adequado abastecimento da cidade, sobretudo em períodos de escassez alimentar, ou em caso 50 51 IBN LUYŪN − Tratado de Agricultura…, p. 253. VARANDAS, José – “O assédio a Alcácer”…, p. 389. 464 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL de cercos prolongados ocorridos durante a Reconquista Cristã, mas também dos mercados onde aqueles produtos eram comercializados, quer no seio do núcleo urbano, quer exportados para outras regiões, gerando dinamismo e riqueza à urbe alcacerense, tal como aos seus habitantes. O AR MAZENAMENTO E A GESTÃO DOS R ECURSOS NAS CIDADES DO GHARB AL-ANDALUS 465 466 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL As estruturas de produção e armazenamento da vila medieval de Sesimbra Rafael Santiago1 Rui Filipe Gil2 Resumo O Castelo de Sesimbra localiza-se no mais alto monte sobranceiro à vila de Santiago. As diversas intervenções arqueológicas no castelo levadas a cabo pela DGEMN, Eduardo da Cunha Serrão, Rafael Monteiro, Octávio da Veiga Ferreira, Gustavo Marques, Carlos Jorge e Luís Filipe Ferreira, vieram a contribui com dados pertinentes para este estudo, com foco nas estruturas medievais de produção e armazenamento. Conhecem-se, de momento, duas estruturas de produção localizadas perto da porta da Azóia, sendo estas um lagar e uma estrutura de moagem. Relativamente às estruturas de armazenamento existem testemunhos de três cisternas e vinte e oito silos, encontrando-se estes últimos, tanto agrupados, como dispersos pela vila. Com recurso aos testemunhos arqueológicos e historiográficos, pretende-se a elaboração de um estudo síntese com o intuito de expor estas estruturas medievais e a sua importância para a vila de medieval de Sesimbra. Palavras-chave Arqueologia; Idade Média; Sesimbra; Estruturas de produção; Estruturas de armazenamento. 1 Mestrando de Arqueologia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. 2 Mestrando no curso de Arqueologia na Faculdade de Filosofía y Letras de la Universidad de Granada. 468 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL The production and storage structures in the medieval town of Sesimbra Abstract The Castle of Sesimbra is located in the highest hill over the village of Santiago. The various archaeological interventions in the castle, carried out by DGEMN, Eduardo da Cunha Serrão, Rafael Monteiro, Octavio da Veiga Ferreira, Gustavo Marques, Carlos Jorge and Luís Filipe Ferreira, have contributed with relevant data to the study of medieval production and storage structures. There are two production structures in the castle, one of them is a press and the other is a wind mill, both situated near the Azóia Door. Regarding the storage structures, there are tree cisterns and a total of twenty-eight silos, either grouped or scattered throughout the village. As a resource for this investigation, historical and archaeological evidences will be used to produce an expositive study with special focus on the medieval ages productive and storage structures in the village of Sesimbra. Keywords Archaeology; Middle Ages; Sesimbra; Production structures; Storage structures. Introdução. O Castelo de Sesimbra é um sítio arqueológico de relevância devido à sua localização e enquadramento para o controle da foz do Tejo e Sado, a par da dimensão do seu aparelho defensivo. Foi, deste modo, classificado pelo decreto de lei nº136, de 23 de junho de 1910, como Monumento Nacional. Durante o Estado Novo, a Direção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), levou a cabo grandes obras de restauro e reestruturação de diversos Monumentos Nacionais, entre os quais o Castelo de Sesimbra em 19433. Muito embora tenha contribuído com uma vasta coleção fotográfica do castelo, pecou no sentido em que esta dá apenas relevância ao contraste entre o antes e o depois, omitindo muitas vezes os procedimentos da intervenção. 3 “O Castelo de Sesimbra”. In Boletim da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais 36 (Dez. 1943). Lisboa: Ministério das Obras Públicas e Comunicações. AS ESTRUTUR AS DE PRODUÇÃO E AR MAZENAMENTO DA VILA MEDIEVAL DE SESIMBR A 469 No final da década de 50 iniciaram-se os primeiros trabalhos arqueológicos por Eduardo da Cunha Serrão, juntando-se mais tarde o arquiteto Gustavo Marques e Rafael Monteiro, que realizaram diversas escavações arqueológicas a título pessoal no castelo. Das escavações realizadas, por estes, acerca das estruturas de produção e armazenamento do Castelo de Sesimbra, resultaram apenas duas publicações, onde se verifica a ausência de estudo de materiais. Dado que os autores destas intervenções já faleceram, deixaram muita informação inédita em notas, apontamentos, cadernos de campo e mapas, estando algumas destas fontes na Associação dos Arqueólogos Portugueses e outras no Arquivo Municipal de Sesimbra. Surge, neste sentido, a necessidade de compilar a informação produzida por todos os investigadores, mencionando a bibliografia que a contem. Um dos problemas levantados pelo facto dos estudos terem sido produzidos por diferentes investigadores é a discordância entre as análises por estes elaboradas, desconhecendo ou não recorrendo a trabalhos anteriores. Consequentemente o presente trabalho procura a sistematização dos dados históricos e arqueológicos, com foco nas estruturas de produção e armazenamento da vila medieval de Sesimbra. 1. A vila medieval de Sesimbra. O Castelo de Sesimbra localiza-se na freguesia do Castelo, concelho de Sesimbra e distrito de Setúbal. O monumento nacional situa-se no monte com cerca de 250 m de altitude, sobranceiro à Vila Marítima de Santiago, sendo parte integrante do conjunto geológico do maciço calcário da Serra da Arrábida. Durante a Idade Média o território de Sesimbra foi um importante ponto de comunicação e controlo do território, estando este fator fortemente relacionado com a sua inserção na cadeia montanhosa da Arrábida, que se estende desde Setúbal até ao Cabo Espichel. O Castelo de Sesimbra como hoje o conhecemos encontra-se edificado no cerro mais alto da região permitindo um preponderante domínio visual do meio envolvente, tanto marítimo como terrestre4. Aquando do reinado de D. Sancho I, em 1199, deu-se uma tentativa de povoamento da região de Sesimbra com recurso a cruzados francos, mas foi apenas com a atribuição da carta de foral, em 1201, que Sesimbra foi confirmada como vila. O foral outorgado a Sesimbra seguia o modelo de Évora, atribuindo largos benefícios fiscais, através dos quais o rei procurava potenciar o crescimento económico e populacional desta região, o que por sua vez poderá indiciar uma dificuldade de 4 FERREIRA, Luís; GONÇALVES, Luís (eds.) – “O Castelo de Sesimbra: um castelo de fronteira marítima”. In FERNANDES, Isabel Cristina Ferreira (ed.) – Mil Anos de Fortificações na Península Ibérica e no Magreb (500-1500). Actas do Simpósio Internacional sobre Castelos. Lisboa: Colibri / Câmara Municipal de Palmela, 2001, pp. 385-388. 470 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL manutenção de populações nesta zona. Em 1218 D. Afonso II confirmou o foral outorgado por seu pai à vila de Sesimbra5. Por sua vez, no reinado de D. Sancho II é realizada a doação tardia à Ordem de Santiago6, tal doação poderá evidenciar problemas de povoamento e falta de recursos para garantir a proteção e vigilância da costa. Sesimbra é alvo de um crescimento notável com o reinado de D. Dinis valendolhe o estatuto de vila sede de concelho7. A formalização do domínio autónomo português da Ordem de Santiago evidencia os esforços políticos do monarca na afirmação do Reino no contexto peninsular8, dos quais resultaram intervenções de construção e alteração em vários dos castelos da ordem, onde se insere o Castelo de Sesimbra que terá sido edificado no século XIV. A escavação realizada no interior da alcáçova, coordenada por Susana Oliveira Jorge, Vítor Oliveira Jorge e Eduardo da Cunha Serrão, permitiu a recuperação de diversos materiais arqueológicos cuja datação mais recuada corresponde ao século XIV e a mais recente ao século XVII9. Com esta informação é possível corroborar a ideia que se pretende propor com este trabalho, apontando para que a edificação do castelo e cerca muralhada se tenha dado em inícios do século XIV. As características arquitetónicas tipicamente góticas na alcáçova e sua torre de menagem, juntamente com os vestígios arqueológicos exumados do mesmo local, levam a crer que as restantes estruturas abordadas no trabalho localizadas no interior da cerca muralhada deveriam também ter sido edificadas a partir de inícios do século XIV. 2. As estruturas de armazenamento Tomando como ponto de partida os testemunhos históricos e arqueológicos acerca da vila medieval de Sesimbra, é possível identificar a existência de 28 silos, alguns agrupados enquanto outros se encontram dispersos pela cerca amuralhada. Do mesmo modo, verifica-se a existência de três cisternas que, em conjunto com os silos, abasteciam a população do Castelo de Sesimbra. FERREIRA, Luís; GONÇALVES, Luís (eds.) – “O Castelo de Sesimbra: um castelo de fronteira marítima…”, pp. 385-388. 6 FERREIRA, Luís; GONÇALVES, Luís (eds.) – “O Castelo de Sesimbra: um castelo de fronteira marítima…”, pp. 385-388. 7 CRÓNICAS de Rui de Pina. Introd. e rev. Maria Lopes de Almeida. Porto: Lello & irmão, 1977. 8 SOUSA, Bernardo de Vasconcelos e – “O Reino de Portugal (séculos XIII–XIV)”. In RAMOS, Rui; SOUSA, Bernardo de Vasconcelos e; MONTEIRO, Nuno Gonçalo (eds.) – História de Portugal. 15ª ed. Lisboa: Esfera dos Livros, 2009, pp. 103-131. 9 OLIVEIRA, Susana; JORGE, Vítor Oliveira e; SERRÃO, Eduardo da Cunha – “Castelo de Sesimbra: relatório de uma sondagem preliminar realizada na área da antiga casa de habitação do alcaide-mor (Princípios do séc. XVI)”. Setúbal Arqueológic I. (1975), pp. 181-225. 5 AS ESTRUTUR AS DE PRODUÇÃO E AR MAZENAMENTO DA VILA MEDIEVAL DE SESIMBR A 471 2.1 Silos. Os trabalhos arqueológicos desenvolvidos pela DGEMN, Eduardo da Cunha Serrão e Rafael Monteiro apontam para a existência de cinco núcleos de estruturas negativas de armazenamento. Esta informação consta na cartografia que o arqueólogo Eduardo da Cunha Serrão produziu na década de 1950, na qual identifica alguns dos núcleos de silos com ícones numerados e uma legenda associada (Fig. 1). Infelizmente, destes cinco conjuntos, apenas dois se preservaram até à data. É importante referir que dentro da informação compilada não é possível individualizar o conteúdo de cada silo sendo os achados referidos atribuídos a cada conjunto. O primeiro núcleo (S1), localiza-se perto da Porta da Azóia e é composto por 12 silos que se preservaram até à atualidade (Fig. 2). Estas estruturas negativas encontram-se dispersas e desalinhadas não parecendo ter havido especial cuidado com a métrica durante sua abertura e implantação, podendo este fator apontar para um possível aproveitamento da morfologia do afloramento rochoso. Levanta-se então a hipótese de que estas estruturas tenham surgido progressivamente, acomodandose conforme a necessidade de uma maior capacidade de armazenamento que ia surgindo. Esta condição pode indiciar o crescimento de que a vila de Sesimbra sofreu no período baixo-medieval. Tal hipótese pode relacionar-se também com um aumento da importação com o objetivo de se acumularem excedentes suficientes para manter o castelo e cerca muralhada abastecidos em caso de cercos prolongados. Quanto à sua morfologia não se verifica qualquer coesão entre os silos, o que pode corroborar a hipótese de que estes não tenham sido abertos num único momento, mas estando em funcionamento entre os séculos XIV e XV consoante surgia necessidade. Da escavação realizada nestas estruturas resultaram materiais diversos: vasta quantidade de cerâmica, nomeadamente cerâmica de cozinha e de mesa, pesos de pesca, etc.; numismas e espólio faunístico. Alguns destes materiais integraram o acervo do antigo Museu Arqueológico de Sesimbra e foi-lhes atribuída uma cronologia medieval, apesar da heterogeneidade do espólio10. Segundo os autores da intervenção arqueológica, os numismas seriam maioritariamente da 1ª Dinastia, enquanto que apenas um dos exemplares pertenceria à 2ª Dinastia, nomeadamente ao reinado de D. Duarte. Eduardo da Cunha Serrão determinou, na altura, que estes silos estariam associados a estruturas habitacionais11. Não obstante, a hipótese que se pretende evidenciar com este estudo, é a de que estas estruturas estivessem possivelmente associadas a um moinho adjacente, tratando-se por isso de um 10 MONTEIRO, Rafael; FERREIRA, Octávio da Veiga – “Necrópole Púnica? em Sesimbra”. Arquivo de Beja, Boletim – Estudos – Arquivo XXV-XXVII (1968-70), pp. 3-15. 11 “Exposição – O Castelo de Sesimbra”. In Clube Sesimbrense (06 Out. 1989). Sesimbra: Câmara Municipal de Sesimbra / DGEMN / IPPC. 472 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Fig. 1 – Mapa do Castelo de Sesimbra (detalhe), desenhado pelo arqueólogo Eduardo da Cunha Serrão e produzido na década de 1950, presente no seu Acervo Pessoal no Arquivo da Associação dos Arqueólogos Portugueses. Fig. 2 – Mapa do Castelo de Sesimbra medieval com indicação da localização dos silos, cisternas, lagar e moinho, com a respetiva legenda. AS ESTRUTUR AS DE PRODUÇÃO E AR MAZENAMENTO DA VILA MEDIEVAL DE SESIMBR A 473 armazém que se inseria numa cadeia de produção. A proximidade dos silos com uma estrutura de produção leva a que se questione qual seria a entidade proprietária e encarregue da sua gestão. Sendo que o castelo estava sob o domínio da Ordem de Santiago é possível que estas estruturas estivessem unicamente sob o seu domínio. No entanto, é também possível supor-se que a gestão dos silos pudesse estar sob a alçada dos Homens Bons do Concelho, encarregando-se estes da sua gestão e utilização. Tratando-se de doze silos, tão próximos entre si e da estrutura de moagem, leva a crer que poderiam ser parte integrante de uma cadeia de produção, ao invés de se associarem a estruturas habitacionais. O segundo núcleo de silos (S2) situava-se se entre as traseiras da Igreja de Santa Maria do Castelo e as “casernas”, sendo composto por um total de 10 estruturas negativas (Fig. 2). Estas estruturas encontravam-se alinhadas entre si e paralelas à cerca muralhada, na vertente Sul. Denote-se, no entanto, que havia um espaço com cerca de 5 metros entre o conjunto de silos, estando sete destes separados dos restantes três12. Estas estruturas foram identificadas na década de 1940 durante a abertura de uma pedreira nesse preciso local, aquando das obras de restauro no castelo pela DGEMN.13. Não se preservam quaisquer dos materiais extraídos da escavação e infelizmente as estruturas acabaram por se degradar totalmente. Os únicos testemunhos originais que se preservam foram as fotografias disponíveis nos boletins da DGEMN. Surge a menção de alguns dos materiais exumados num texto publicado por Rafael Monteiro, em 1970 na revista do Arquivo de Beja, assim como a identificação das estruturas e do espólio recolhido, em apontamentos no caderno de campo de Eduardo da Cunha Serrão, que registou textual e graficamente toda a informação resultante da intervenção14. Deve-se ter em consideração que estes últimos dois registos foram efetuados a partir de testemunhos orais. A intervenção no castelo, realizada pela DGEMN nos anos 40, identificou estas estruturas negativas como silos, hipótese esta partilhada pelo arqueólogo Eduardo da Cunha Serrão. Durante os seus estudos, na década posterior à sua descoberta, o investigador registou e identificou o espólio que compunha o conteúdo destes silos. Contudo, outros investigadores, como Rafael Monteiro e Octávio da Veiga Ferreira, consideraram que estas estruturas fossem na verdade uma necrópole púnica, com base nas tipologias dos materiais encontrados, tal como pela presença de enterramentos dispostos em “posição fetal”15. Eduardo da Cunha Serrão deixou em 1952 registadas textual e 12 Lisboa, Acervo Pessoal de Eduardo da Cunha Serrão no Arquivo da Associação dos Arqueólogos Portugueses, OFM, Castelo de Sesimbra, Apontamentos Manuscritos de Eduardo da Cunha Serrão, Campanha de Setembro 1955. 13 Lisboa, Acervo Pessoal de Eduardo da Cunha Serrão no Arquivo da Associação dos Arqueólogos Portugueses... 14 Lisboa, Acervo Pessoal de Eduardo da Cunha Serrão no Arquivo da Associação dos Arqueólogos Portugueses... 15 MONTEIRO, Rafael; FERREIRA, Octávio da Veiga – “Necrópole Púnica? em Sesimbra…”, pp. 3-15. 474 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL graficamente, informações que obteve acerca das estruturas e espólio encontrado, acreditando e defendendo a tese de que seriam certamente silos e não sepulturas16. A dimensão, diversidade morfológica e o espólio cronologicamente amplo recuperado das estruturas indica que, de facto, se tratem de silos medievais/modernos e não de sepulturas pertencentes a uma necrópole púnica, como chegou a ser defendido por Rafael Monteiro e outros investigadores. Entre o espólio recuperado estão: moedas; um estoque de ferro; um punhal de ferro; dedais em cobre; anzois de ferro; uma imensa quantidade de materiais cerâmicos, entre os quais uma lucerna de dois bicos, fundos de mealheiro, taças e peças de jogo. Este espólio seria diversificado tanto na tipologia como na cronologia, chegando ao período moderno17, pela presença e tipologia de pratos e mealheiros. Consta que todos os objetos cerâmicos terão sido arremessados para o exterior das muralhas, restando apenas a lucerna, que integrou a coleção do Museu de Arqueologia do Castelo. As moedas ficaram sob a custódia de particulares e não se voltaram a reaver. O punhal e o estoque de ferro integraram também a coleção do Museu, contudo, o estoque foi roubado e o punhal degradou-se devido às condições de conservação. Quanto ao espólio osteológico consta que terá sido mandado enterrar no cemitério do castelo18. O terceiro núcleo de silos (S3) localiza-se próximo da Porta do Sol e é composto por 4 estruturas negativas preservadas até hoje (Fig. 2). Estes silos são possivelmente contemporâneos entre si, dado o seu alinhamento e a morfologia idêntica. Os silos foram escavados pela DGEMN não sendo documentada a sua abertura, sendo antes do final das obras novamente cobertos. Foram reescavados no início da década de 80 por Carlos Jorge e João Pinhal, que documentaram um enchimento pobre sem materiais arqueológicos. Os silos estariam possivelmente relacionados com uma loja ou um armazém comunitário, devido à proximidade com a via principal e com a Porta do Sol, bem como ao facto de estarem implantados num local económica e comercialmente ativo, devido à presença do açougue e das casernas. A hipótese surge também devido à proximidade destes com a cisterna (C1), que poderia estar associada aos silos. Por se tratarem, possivelmente, de estruturas de cariz comunitário, poderá fazer sentido que estas estejam sob a gestão dos Homens Bons do Concelho. Contudo, esta leitura é apenas especulativa. O quarto silo (S4) localizava-se à esquerda da Igreja de Santa Maria do Castelo (Fig. 2). Infelizmente hoje não há quaisquer vestígios desta estrutura a não ser duas fotografias presentes nos arquivos fotográfico da DGEMN, que acabam por não 16 Lisboa, Acervo Pessoal de Eduardo da Cunha Serrão no Arquivo da Associação dos Arqueólogos Portugueses... 17 Lisboa, Acervo Pessoal de Eduardo da Cunha Serrão no Arquivo da Associação dos Arqueólogos Portugueses... 18 MONTEIRO, Rafael; FERREIRA, Octávio da Veiga – “Necrópole Púnica? em Sesimbra…”, pp. 3-15. AS ESTRUTUR AS DE PRODUÇÃO E AR MAZENAMENTO DA VILA MEDIEVAL DE SESIMBR A 475 fornecer nenhum contributo para a sua interpretação. Pela legenda das imagens é possível determinar que o silo terá sido encontrado, escavado e restaurado durante os trabalhos efetuados pela DGEMN entre 1943 e 1944, porém, não havendo qualquer menção acerca do seu conteúdo. Durante esta intervenção o silo foi identificado como uma estrutura medieval, tendo este sido o motivo que levou ao seu restauro. Contudo, tratar-se de um silo medieval é uma hipótese por comprovar, dado que não é possível apontar para uma cronologia sem que se analise a estrutura e o espólio associado, que já hoje não existem. O quinto silo (S5) localiza-se nas traseiras da Igreja de Santa Maria do Castelo (Fig. 2). Segundo consta este silo terá sido alvo de escavação, da qual se recuperou um numisma de D. Fernando que foi datado de 1370 a 1372, sendo o principal elemento para atribuição cronológica a esta estrutura. Não há referência a qualquer outro espólio nem à localização exata deste silo, impossibilitando o seu estudo e interpretação. Diz-se que estaria associado a uma estrutura habitacional19, algo que poderá fazer sentido por se tratar de um silo isolado e pela sua proximidade a muros de estruturas ainda hoje identificáveis. 2.2. Cisternas. No interior da cerca muralhada não há vestígios de fontes ou poços, sendo a fonte de água potável mais próxima a “fonte esquerda”20 localizada a cerca de 1 Km do castelo. Neste cenário urge a necessidade da coleta de água no interior da cerca muralhada, tendo sido por isso construídas cisternas com sistemas de recolha de águas pluviais. Esta recolha far-se-ia por sistemas implementados nos telhados dos edifícios, à semelhança do exemplo da cisterna (S3) que funcionou até meados do século XX. De acordo com os testemunhos arqueológicos existem 3 cisternas no Castelo de Sesimbra. Os textos publicados por outros investigadores indicam que todas as cisternas são medievais. Com o presente estudo pretende-se propor a tese de que apenas 2 destas sejam de facto medievais, enquanto a terceira seria uma construção moderna. A primeira cisterna (C1) do conjunto encontra-se no interior da “Casa da Vereação” mais corretamente denominada “Casa da Cisterna”, situada perto da Porta do Sol no lado Nascente do castelo (Fig. 2). Esta estrutura foi aberta durante os trabalhos desenvolvidos pela DGEMN na década de 40, embora não haja testemunhos desta intervenção21. Foi novamente intervencionada por Luís Pinhal “Exposição – O Castelo de Sesimbra…” Lisboa, Arquivo do Museu Nacional de Arqueologia. OFM, Apontamentos manuscritos do Acervo Pessoal de Gustavo Marques, [s. d.]. 21 “O Castelo de Sesimbra”. Boletim da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais 36..., p. 22. 19 20 476 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Ferreira no início do século XXI. O facto de a cisterna não conter água no seu interior possibilitou a sua limpeza e posterior estudo, resultando desta intervenção fotografias do seu interior, desenhos do seu corte de perfil (Fig.3) e o registo das dimensões da estrutura, bem como medidas e capacidade22. A intervenção permitiu a datação relativa da cisterna, que foi identificada como uma estrutura do período medieval, construída entre os séculos XIII e XIV23. A hipótese de que tivesse um sistema de recolha de águas pluviais implementado possivelmente no telhado do edifício que a cobre parece favorável, devido à inexistência de água no interior da cisterna, quando aberta por Luís Ferreira. Fig. 3 – Corte de perfil da cisterna da “Casa da Cisterna”, da autoria de Sílvia Louro, do Núcleo de Espeleologia da Costa Azul, presente no Relatório dos Trabalhos Arqueológicos de 1999 no Castelo de Sesimbra, no Arquivo da Biblioteca de Arqueologia da Ajuda. FERREIRA, Luís – Da Pedra ao Acorde: o castelo de Sesimbra. Lisboa: Sextante Editora, 2009, p.58. FERREIRA, Luís; GONÇALVES, Luís (ed.) – “O Castelo de Sesimbra: Um castelo de fronteira marítima…”, pp. 385-388. 22 23 AS ESTRUTUR AS DE PRODUÇÃO E AR MAZENAMENTO DA VILA MEDIEVAL DE SESIMBR A 477 Tendo esta cisterna sido construída, tal como o grupo (S3) de silos, no seio de um espaço económica e socialmente ativo, torna plausível a hipótese de que esta se trate de uma estrutura pública, gerida pelos Homens Bons do Concelho. Serviria possivelmente para abastecimento para a população, para açougue24 e para as restantes estruturas de comércio e transformação que lhe estariam próximas. Devido aos elementos identificados na sua envolvente, acreditamos que a data de construção da cisterna seja datada entre o século XIV a XV, contrariando a tese anterior. Propomos que a cisterna (C1) se trate do único reservatório de água comunitário no interior da vila de Sesimbra em período medieval, dado que a cisterna (C2) se encontra no interior da alcáçova e a partilha de água com a população seria condicionada pela vontade do alcaide. A segunda cisterna (C2), tal como a anterior, foi identificada como uma estrutura baixo-medieval25 (Fig. 2). Tratando-se de uma estrutura construída no interior da alcáçova, parece fazer todo o sentido que seja contemporânea à sua edificação, no século XIV. Esta ideia é corroborada pelo facto de vários castelos terem sido alvo de obras para a construção de estruturas de armazenamento na Baixa Idade Média, de modo a que a população pudesse subsistir em caso de cercos prolongados26. Outro dos motivos, que apoia a hipótese, é a incapacidade de se obter água em qualquer ponto do castelo, a não ser por via de um sistema de recolha de águas pluviais. Assim, com a construção da alcáçova no século XIV e a sua consequente ocupação, surge a necessidade de criar um reservatório para o abastecimento da elite que aí se viria a estabelecer. Por ter sido construída no castelo a cisterna estaria sob o controlo direto do alcaide, ou seja, pertencia ao poder nobiliárquico que faria gestão do seu consumo. A cisterna foi redescoberta durante as obras de nivelamento do terreno da alcáçova, pela DGEMN, sendo consequentemente escavada, limpa e selada27. Desta intervenção resultaram registos gráficos, nomeadamente plantas e cortes de perfil, não havendo, no entanto, qualquer registo relativo aos materiais que estariam no seu interior. Os perfis e planta da estrutura permitiram a comparação com a que existe na “Casa da Cisterna” (Fig. 3), aparentando uma arquitetura semelhante. A terceira cisterna (C3) localiza-se perto da Torre Poente (Fig. 2) e foi também considerada, pelos anteriores investigadores, como uma estrutura medieval28. No entanto, o presente estudo propõe a hipótese desta cisterna se tratar de uma construção 24 FERREIRA, Luís – “Castelo de Sesimbra: fenómeno de fronteira e povoamento do Portugal medieval”. In Patrimonia: identidade, ciências sociais e fruição cultural. Cascais: Patrimonia Associação de Projectos culturais e Formação Turística, 2001, pp. 42-48. 25 “Exposição – O Castelo de Sesimbra” ... 26 SOUSA, Bernardo de Vasconcelos e – “A monarquia entre a guerra civil e a consolidação (século XIII)”. In RAMOS, Rui; SOUSA, Bernardo de Vasconcelos e; MONTEIRO, Nuno Gonçalo (eds.) – História de Portugal.15ª ed. Lisboa: Esfera dos Livros, 2009, pp. 49-71. 27 “O Castelo de Sesimbra”. Boletim da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais 36..., p. 22. 28 “Exposição – O Castelo de Sesimbra…” 478 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL moderna, dado o sistema de captação de água pluviais da mesma se localizar no telhado da igreja. ”(...)Na base da cruz que remata a empenha (...)” encontra-se a data 169829, que corresponde às obras de remodelação da Igreja. Sugere-se, neste sentido, a proposta que esta intervenção tenha servido também para a construção da cisterna e do sistema de captação de água para usufruto do pároco e suas clientelas, que seriam os últimos residentes do castelo no final da Idade Moderna, num momento em que as restantes cisternas já estariam provavelmente desativadas. Sabe-se por registo oral que esta estrutura terá estado em funcionamento até meados do século XX, havendo inclusive um pequeno tanque que utilizava água da cisterna para lavagem de roupa. Contudo a estrutura foi perdendo utilidade a partir do momento em que deixou de haver população no interior da cerca. Foi através da análise do funcionamento desta cisterna que se percebeu o sistema de captação de águas pluviais das restantes. 3. As estruturas de produção. O lagar é a única estrutura de produção arqueologicamente verificada, registada e documentada, através dos trabalhos de Eduardo da Cunha Serrão30. Não obstante, é possível que existisse também um moinho no interior da cerca muralhada. Esta estrutura foi registada graficamente em dois documentos históricos. 3.1 Lagar. A intervenção arqueológica realizada em 1955 junto ao troço Noroeste da cerca muralhada, junto da Porta da Azóia, realizada por Eduardo da Cunha Serrão, deixou a descoberto o lagar (L) (Fig. 2). Adjacentes ao engenho, identificaram-se também algumas estruturas, possivelmente relacionadas com a cadeia produtiva do mesmo. O lagar e as estruturas que lhe estavam associadas foram considerados medievais tal como os materiais recuperados do seu interior e na área envolvente31. Entre o espólio resultante da escavação estava um conjunto de numismas portugueses com grande dispersão cronológica, embora a sua grande maioria tenha sido atribuída ao período medieval. A moeda mais antiga data do século XII enquanto a mais recente nos remete para o século XVI32. “Exposição – O Castelo de Sesimbra…” SERRÃO, Eduardo da Cunha; VICENTE, Prescott – Escavações em Sesimbra, Parede e Olelas: métodos empregados, Vol. I. Lisboa: Congresso Nacional de Arqueologia, 1958. 31 SERRÃO, Eduardo da Cunha; VICENTE, Prescott – Escavações em Sesimbra, Parede e Olelas: métodos empregados... 32 SERRÃO, Eduardo da Cunha; VICENTE, Prescott – Escavações em Sesimbra, Parede e Olelas: métodos empregados... 29 30 AS ESTRUTUR AS DE PRODUÇÃO E AR MAZENAMENTO DA VILA MEDIEVAL DE SESIMBR A 479 3.2. Moinho. O moinho (M), ao contrário das restantes estruturas abordadas neste estudo, tem como únicos testemunhos duas gravuras onde está representado. Uma destas é o mapa de um levantamento de estruturas de moagem realizado em 1881, que pertence à coleção da “Direcção Geral de Trabalhos Geodésicos do Reino” (Fig.4). Segundo este documento a estrutura de moagem estaria situada a Sul da entrada principal da Igreja de Santa Maria do Castelo, próximo da porta da Azóia e do núcleo (S1) de silos (Fig. 2). O outro testemunho que aponta para a existência de um moinho no interior do Castelo de Sesimbra é uma gravura do século XVII (Fig. 5) onde está visivelmente representada uma estrutura de moagem à esquerda da Torre Sineira da Igreja no interior da cerca muralhada. Esta estrutura seria idêntica a outros moinhos que se encontram em montes circundantes, também representados na mesma gravura33. O local apontado para a implementação do moinho é relativamente elevado estando num ponto favorável para receber a ação do vento. Atualmente ainda se verificam alguns vestígios de alicerces de estruturas nesse local, bem como uma possível soleira de porta adjacente ao espaço onde se encontram os silos do núcleo (S1). Por se tratar de um conjunto considerável de silos e pela proximidade com a estrutura de produção, propõe-se uma possível correlação destes dois elementos. Assim, seria possível que se tratasse de um moinho e seu respetivo armazém, composto por 12 silos. Para tornar proveitosa a existência da estrutura de moagem no interior da cerca muralhada, talvez faça sentido ter existido um forno, centro produtor, que utilizasse o cereal transformado no moinho. Infelizmente não há outros vestígios materiais para que seja possível aprofundar esta hipótese. Considerações finais. Em suma, o presente trabalho compilou todas as informações historiográficas e arqueológicas referentes às estruturas de armazenamento e produção do Castelo de Sesimbra, tentando completar, clarificar e divulgar a informação sobre as estruturas existentes, inéditas e/ou desaparecidas. Os trabalhos realizados pela DGEMN, Eduardo da Cunha Serrão, Rafael Monteiro, Octávio da Veiga Ferreira, Gustavo Marques, Carlos Jorge e Luís Filipe Ferreira são as principais fontes de informação sobre a temática. Na análise e correlação dos documentos recolhidos, embora se tenham verificado contradições e falhas entre 33 DESENHOS e plantas de todas as praças do Reyno de Portugal, Pello Tenente General Nicolao de Langrez Francez em 1661 que serviu na guerra da Acclamação. Dir. Cristóvão Aires Sepúlveda. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1941. 480 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Fig. 4 – Gravura de Sesimbra, pertencente à coleção da “Direcção Geral de Trabalhos Geodésicos do Reino”, em 1881, cedido pela Divisão da Cultura do Arquivo Municipal de Sesimbra. Fig. 5 – Gravura da “enseada de Sesimbra” presente na obra Desenhos e plantas de todas as praças do Reyno de Portugal, desenhada pelo Tenente General Nicolao de Langrez Francez em 1661. AS ESTRUTUR AS DE PRODUÇÃO E AR MAZENAMENTO DA VILA MEDIEVAL DE SESIMBR A 481 as interpretações propostas pelos diferentes autores, permitiu a construção de uma visão detalhada acerca das estruturas de produção e armazenamento da vila medieval de Sesimbra. Os silos são estruturas elementares de armazenamento durante a Idade Média que permitiam preservar os cereais e frutos secos durante o ano após a sua colheita. Quanto às cisternas, visto a inexistência de fontes de água potável no Castelo, o aproveitamento de água pluvial apresenta-se como uma resposta às necessidades básicas da população. As estruturas de armazenamento tornam-se assim elementos essenciais para a subsistência dos habitantes do castelo, especialmente em caso de cerco. As estruturas como o lagar e o moinho, localizadas no interior da cerca muralhada, por um lado torna a vila autossuficiente, em termos produtivos, não dependendo das imediações para obtenção de farinha ou azeite, e por outro lado facilita o controlo das elites sobre a produção destes produtos essenciais (claro estando dependente do acesso à matéria prima, a azeitona e o cereal). Referente às estruturas de armazenamento, os 28 silos e 3 cisternas, datadas do século XIV até ao século XVII, apesar de não se encontrarem em funcionamento ao mesmo tempo, não deixam de ser um reflexo da capacidade económica e do efetivo populacional que a vila medieval alcançou antes da outorga da carta de foral à Povoa da Ribeira de Sesimbra, (que por sua vez, tomou o papel como vila predominante na região a partir do século XVI). A presença de estruturas de produção como o lagar e moinho dentro do recinto amuralhado são de especial interesse mostrando uma proximidade da vila medieval com o mundo rural circundante. Por sua vez, a cidade adquire uma dualidade como centro de produção e de consumo. É interessante verificar que ambos os pólos se encontram em zonas opostas da vila muralhada, um espaço de produção junto à porta da Azoia e um espaço de comércio junto à Porta do Sol. O primeiro evidencia um contacto direto com o mundo rural e o segundo espaço de consumo e comércio com contacto direto com os mercados de internos do concelho e a póvoa da Ribeira de Sesimbra, meio de ligação a outros pontos do Reino por via marítima. As hipóteses de trabalho apresentadas neste estudo só poderão ser validadas no momento em que surjam novos dados arqueológicos ou historiográficos. 482 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Os mercadores e os mesteres na paisagem urbana do século XV: o contributo da documentação notarial vimaranense André Moutinho Rodrigues1 Resumo Os processos logísticos e comerciais dos bens que alimentavam as cidades e vilas portuguesas durante a Idade Média assumiam uma importância fundamental – eram o garante da sobrevivência, bem-estar e tranquilidade social das populações urbanas. O bom funcionamento e a eficácia das estruturas que asseguravam o aprovisionamento dos centros populacionais era garantido por um conjunto multifacetado de homens, técnicas e espaços que se confundiam entre a paisagem urbana. Este estudo de caso procura demonstrar o potencial da documentação notarial, enquanto fonte para recolha e interpretação de testemunhos referentes aos espaços e aos agentes do abastecimento urbano. Uma análise desta documentação, proveniente da Colegiada de Santa Maria de Guimarães de meados do século XV, permitiu, por um lado, identificar e relacionar os homens (mesteirais e mercadores) e os espaços (praças e ruas) e, por outro, obter indícios sobre a organização dos mesteres e o património dos mesteirais, protagonistas do abastecimento deste burgo medieval. Palavras-chave Mesteres; Mercadores; Guimarães; Paisagem urbana; documentação notarial; 1 Faculdade de Letras da Universidade do Porto. 484 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Merchants and craftsmen in the urban landscape of the 15th century: the contribution of notary documentation from Guimarães Abstract The logistical and commercial processes of the goods that fed Portuguese cities and towns during the Middle Ages were of fundamental importance – they guaranteed the survival, well-being and social stability of urban populations. The proper functioning and effectiveness of the structures that secured the provision of population centers was ensured by a multifaceted set of men, techniques and spaces that blended into the urban landscape. This case study seeks to demonstrate the potential of notary documentation as a source for collecting and interpreting evidences concerning spaces and urban supply agents. An analysis of this documentation from the Colegiada de Santa Maria de Guimarães, from the mid-15th century, allowed, on the one hand, to identify and relate men (craftsmen and merchants) and spaces (squares and streets) and on the other, to obtain clues on the organization of the crafts and the patrimony of the craftsmen, protagonists of the supply of this medieval borough. Keywords Crafts; Merchants; Guimarães; Urban landscape; Notarized documents. 1. Introdução. Os vestígios deixados pelas mulheres e homens responsáveis pelos processos de produção, distribuição e comercialização que compunham o abastecimento das vilas e cidades medievais são escassos ou ainda mal conhecidos. Para a realidade medieval portuguesa, quase não dispomos de fontes directas que permitam o estudo de mesteirais e de mercadores2. Perderam-se os documentos ligados à realidade dos mesteres, como livros de fiscalidade, listas de artesãos e contratos, de encomenda ou de aprendizagem. De igual modo, para o estudo dos protagonistas do comércio, os mercadores, são reduzidas as informações de que dispomos, sendo poucos os contratos ou os livros de contas existentes3. 2 MELO, Arnaldo Sousa – Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média: o Porto, c.1320-c.1415. Braga: Universidade do Minho, 2009. Dissertação de doutoramento. Vol.1, p. 48. 3 SEQUEIRA, Joana; MELO, Arnaldo Sousa – “A mulher na produção têxtil portuguesa tardomedieval”. Medievalista 11 (2012), p. 4. OS MERCADOR ES E OS MESTER ES NA PAISAGEM URBANA DO SÉCULO XV 485 As fontes que permitiriam o estudo das estruturas profissionais e da organização do trabalho também não chegaram até nós. Documentos normativos ou estatutários acerca das actividades económicas desenvolvidas por artesãos e comerciantes, bem como documentos acerca das confrarias em que se associavam, são raros ou inexistentes, sobretudo para o período anterior a meados do século XV4. Os estudos dedicados aos vários indivíduos e actividades que asseguravam a vitalidade económica de um centro urbano, na Idade Média portuguesa, recorrem, frequentemente, dadas as lacunas documentais assinaladas, a fontes indirectas. A sua presença na documentação e as informações que ela nos transmite são assim, quase sempre, vestigiais e filtradas, talvez inconscientemente, pelos agentes produtores da escrita. Apesar destas limitações, ultimamente têm sido desenvolvidos em Portugal estudos sobre os mesteres5 e o impacto da sua actividade no espaço urbano6, a par de outros acerca de mercadores7, feiras8, produção artesanal9. Paralelamente, é possível 4 MELO, Arnaldo Sousa – Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média: o Porto, c.1320-c.1415..., p. 48. 5 COELHO, Maria Helena da Cruz – “O Trabalho no Portugal Medievo”. In Actas dos V Cursos internacionais de verão de Cascais, Vol.1. Cascais: Câmara Municipal de Cascais, 1999, pp. 75-91; MELO, Arnaldo Sousa – “A organização dos mesteres no Porto em tempos manuelinos: entre mudanças e permanências”. In III Congresso Histórico de Guimarães, D. Manuel e a sua Época, Vol. III. Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães, 2004, pp. 79-100; MELO, Arnaldo Sousa – Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média: o Porto, c.1320-c.1415...; MELO, Arnaldo Sousa – “Salaire et salariat au Portugal au Moyen Âge”. In BECK, Patrice; BERNARDI, Philippe; FELLER, Laurent (dirs.) – Rémunérer le travail au Moyen Âge. Pour une histoire sociale du salariat. Paris: Ed. Picard, 2014, pp. 62-77. 6 RIBEIRO, Maria do Carmo; MELO, Arnaldo Sousa – “A influência das atividades económicas na organização da cidade medieval portuguesa”. In Evolução da paisagem urbana: sociedade e economia. Braga: CITCEM, 2012, pp. 145-172. 7 FREITAS, Isabel Vaz de – Mercadores entre Portugal e Castela na Idade Média. Gijón: Ediciones Trea, 2006; DOMINGUEZ, Rodrigo da Costa – Mercadores e banqueiros: sociedade e economia no Portugal dos séculos XIV e XV. Brasília: Interlândia, 2009; CARDOSO, Ana Clarinda – Os livros de contas do mercador Michele da Colle (1462-63): do registo contabilístico à atividade comercial e financeira na praça de Lisboa. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2016. Dissertação de Mestrado; MOUTA, Fernando Jorge Cruz – João Martins Ferreira, Mercador-Cavaleiro. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2017. Dissertação de Mestrado; CARDOSO, Ana Clarinda – “O peso dos impostos na atividade de um mercador pisano em Lisboa no século XV”. População e Sociedade 31 (Jun. 2019), pp. 57-68. 8 RAU, Virgínia – Feiras Medievais Portuguesas: subsídios para o seu estudo. Lisboa: Editorial Presença, 1982; COELHO, Maria Helena da Cruz – A Feira de Coimbra no contexto das feiras medievais portuguesas. Coimbra: Inatel, 1992; COELHO, Maria Helena da Cruz – “As Feiras em tempos Medievais”. In Actas do 3º Encontro de História. Vectores de Desenvolvimento Económico: as feiras. Da Idade Média à Época Contemporânea. Vila do Conde: Câmara Municipal, 2005, pp.13-30; GOMES, Saúl António – “As feiras e as Indústrias Rurais no Reino de Portugal”. In ESPINACH, Germán Navarro; VILLANUEVA MORTE, Concepción (coords.) – Industrias y mercados rurales en los Reinos Hispánicos (siglos XIII-XV). Murcia: Sociedade Española de Estudios Medievales, 2017, pp. 17-35; CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval (1125-1521): Evolução, Organização e Articulação. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2019. Dissertação de Mestrado. 9 SILVEIRA, Cláudia – “O espaço peri-urbano de Setúbal na Baixa Idade Média: produções e estruturas produtivas”. In La Ciudad Medieval y su influencia territorial. Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 2007, pp. 161-180; MELO, Arnaldo Sousa; RIBEIRO, Maria do Carmo – “La mobilité des artistes et des artisans de la construction dans les chantiers portugais au Moyen Âge: apports pour l’étude des Biscaïens”. In Les Transferts artistiques dans l’Europe gothique. Repenser la circulation des artistes, des oeuvres, des thèmes et des 486 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL contar com algumas investigações que procuram averiguar o grau da participação feminina nos labores produtivos e comerciais10. Mesmo com estes novos caminhos de investigação, que despertaram o interesse de vários investigadores nacionais, sendo que referimos apenas alguns dos trabalhos mais recentes dentro da tradição historiográfica destes temas, o panorama nacional tem ainda muito espaço para crescer. Pareceu-nos, por isso, oportuno reflectir sobre alguns dos aspectos que temos vindo a referir, utilizando para tal os instrumentos notariais vimarenenses de meados do século XV, com o objectivo de contribuir para o conhecimento existente sobre a presença de mesteirais e de mercadores na documentação medieval portuguesa. Os elementos recolhidos na investigação que temos vindo a efectuar relativos a informações sobre mesteres e mercadores, bem como sobre espaços onde eles habitavam e/ou trabalhavam, são provenientes do fundo da Colegiada de Santa Maria da Oliveira de Guimarães, referentes ao século XV. Nesta primeira fase, foram seleccionados, como fonte, os maços 44 a 52 dos documentos particulares daquela colecção, correspondentes, grosso modo, ao final do reinado de D. João I e à regência do Infante D. Pedro. Como seria de esperar, as referências aos artesãos e aos homens de comércio encontram-se em actos, nos quais eram os principais intervenientes ou em que apareciam como testemunhas. Esta documentação, composta, na sua grande maioria, por prazos e contratos de arrendamento, revela-se desafiante aos nossos olhos, pela manifesta repetição dos formulários e das informações contidas no texto. A análise permitiu a selecção de alguns exemplos e de casos paradigmáticos que reflectem a realidade da época, possibilitando, eventualmente, a comparação com outros espaços e cronologias já estudadas. A partir dos dados recolhidos procurámos identificar e relacionar os homens11, fossem mesteirais ou mercadores, entre si e com os espaços, nomeadamente as praças e ruas, que faziam parte da rede de abastecimento do burgo vimarenense medieval. savoir-faire (XII-XVI siècle). Paris: Éditions Picard, 2014, pp. 209-224; SEQUEIRA, Joana – O Pano da Terra: Produção têxtil em Portugal nos finais da Idade Média. Porto: U. Porto Edições, 2014.; SEQUEIRA, Joana – “A indústria da seda em Portugal entre os séculos XIII e XVI”. In Las Rutas de la Seda en la Historia de España y Portugal. Valência: Publicacions de la Universitat de València, 2017, pp. 343-373; ACS, Luana Narcisa – Os ofícios dos metais nas cidades medievais portuguesas: o caso dos ourives (1300-1449). Lisboa: NOVA FCSH, 2019. Dissertação de Mestrado. 10 COELHO, Maria Helena da Cruz – “A Mulher e o Trabalho nas cidades medievais portuguesas”. In Homens, espaços e poderes: séculos XI –XVI. Vol. I. Lisboa: Livros Horizonte, 1990, pp. 37-59; GONÇALVES, Iria – “Regateiras, padeiras e outras mais na Lisboa Medieval”. In Lisboa Medieval. Os rostos da cidade. Lisboa: Livros Horizonte, 2007, pp. 11-29; SEQUEIRA, Joana; MELO, Arnaldo Sousa – “A mulher na produção têxtil portuguesa tardo-medieval...”; PEREIRA, Mariana da Fonseca Antunes Alves – A mulher e o trabalho nas cidades e vilas portuguesas medievais (séculos XIV e XV). Lisboa: NOVA FCSH, 2020. Dissertação de Mestrado. 11 Os casos de homonímia foram resolvidos através do cruzamento de dados sobre o lugar de residência ou sobre a titulatura. Nos casos em que se revelou impossível confirmar a identidade de um individuo, consideramos que se tratava de um novo caso. OS MERCADOR ES E OS MESTER ES NA PAISAGEM URBANA DO SÉCULO XV 487 2. O contributo da documentação notarial vimaranense. A vila de Guimarães era, no século XV, um ponto nevrálgico onde se desenrolavam inúmeras actividades económicas, fundamentais para a vitalidade e sobrevivência do burgo12. Os diferentes ofícios, desempenhados quer no interior das suas muralhas quer nos seus arrabaldes, constituíam os pilares sobre os quais assentavam os seus sectores produtivos e comerciais. A presença e o labor destes homens deixaram marcas na documentação, permitindo-nos relacioná-los, entre si, e com os espaços que percorriam. O desempenho das funções produtoras e comerciais era determinante, não só no que diz respeito à organização dos espaços urbanos das vilas e cidades medievais, mas, também, no caso dos sectores produtivos, pelo acrescentado valor económico conferido às matérias primas através de um conjunto de diversos processos e transformações13. Esses espaços, destinados à produção ou ao comércio, deixavam marcas na toponímia local. As ruas e praças destinadas à execução das actividades artesanais existem em todas as vilas medievas14, sendo que Guimarães não se afigura como uma excepção, como veremos mais à frente. Os dados recolhidos até ao momento, relativos a 303 instrumentos notariais dentro dos maços documentais referidos, permitem-nos verificar uma predominância dos ofícios ligados aos sectores dos couros e ao comércio, seguidos de perto pelo dos têxteis. Juntos, estes três sectores constituem mais de 50% das referências analisadas, número demonstrativo da importância destas actividades produtivas e comerciais na vila de Guimarães no século XV. No sector dos couros, destaca-se a presença de 22 sapateiros, 11 seleiros, 7 correeiros e 2 curtidores, enquanto que no sector têxtil obtivemos 26 alfaiates, 6 tosadores, 5 tecelões e 1 costureiro15, num total de 80 artesãos. No sector comercial encontramos 34 mercadores, 7 almocreves e 2 cambistas ou cambiadores. Entre os diversos ofícios, cinco deles assumem uma maior presença entre os dados recolhidos. Os mercadores, os alfaiates, os sapateiros, os barbeiros e os seleiros constituem 58% dos 32 diferentes tipos de profissionais que identificamos16. A maior 12 Para a história urbana de Guimarães durante o período medieval ver: FERREIRA, Maria da Conceição Falcão – Guimarães: duas vilas, um só povo: estudo de história urbana (1250-1389). Braga: CITCEM, 2010; e FERREIRA, Maria da Conceição Falcão – Uma rua de elite na Guimarães medieval: 1376-1520. Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães, 1989. 13 PINTO, Olímpia Conceição Barbosa – “Mesteres Vimaranenses: o setor dos couros nos séculos XIV e XV”. In Incipit: Workshop de Estudos Medievais da Universidade do Porto 2 (2011-2012). p. 97. 14 RIBEIRO, Maria do Carmo, MELO, Arnaldo Sousa – “A influência das atividades económicas na organização da cidade medieval portuguesa...”, p. 151. 15 Informação recolhida na leitura da documentação notarial presente nos maços 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51 e 52 de documentos particulares do fundo da Colegiada de Santa Maria da Oliveira de Guimarães: PT/ TT/CSMOG/DP44-52. 16 Alguns destes homens encontravam-se ao serviço do Conde de Barcelos, entre eles: um barbeiro 488 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Sectores Têxtil e vestuário Metalúrgico Couros Comercial Alimentar Construção Serviços Outros Ofícios Nº de profissionais Alfaiate 26 Costureiro 1 Tecelão 5 Tosador 6 Alfaieme 2 Bainheiro 4 Caldeireiro 3 Cuteleiro 1 Ferrador 5 Ferreiro 8 Ourives 2 Correeiro 7 Curador 1 Curtidor 2 Sapateiro 22 Seleiro 11 Almocreve 7 Cambiador 2 Mercador 34 Carniceiro 7 Almuinheiro 1 Carpinteiro 3 Mestre de obras 1 Mestre de pedraria 2 Pedreiro 3 Pintor 1 Serralheiro 2 Barbeiro 10 Boticário 2 Saboeiro 2 Totais 38 25 41 41 8 12 12 2 Figura 1 – Distribuição dos ofícios identificados por sectores entre 1424 e 1451). OS MERCADOR ES E OS MESTER ES NA PAISAGEM URBANA DO SÉCULO XV 489 expressão destes ofícios na documentação poderá dever-se a uma maior importância que estes teriam na economia urbana à época ou porque simplesmente eram os que recorriam mais ao uso da escrita no decorrer dos seus autos transacionais com a Colegiada de Santa Maria de Guimarães. A identificação dos indivíduos e dos seus ofícios deve ser relacionada com alguns dos espaços que protagonizavam um papel no abastecimento do burgo medieval. Como em tantas outras vilas medievais portuguesas, o mercado local, com um funcionamento diário, deveria ser realizado no interior das muralhas17. No entanto, as feiras de âmbito regional e com um carácter não permanente eram, por norma, realizadas em espaços exteriores, mais amplos, tendo marcado a toponímia local18. No caso de Guimarães, isso verifica-se no espaço chamado de “Campo da Feira”, no arrabalde da vila, perto da “Porta do Postigo”. Este espaço, apesar de situado nas imediações da vila, já se deveria encontrar, em meados do século XV, parcialmente rodeado de construções permanentes e de pequenos terrenos agrícolas. Facto que é demonstrado por um auto realizado entre o cabido da Colegiada de Santa Maria e o Concelho de Guimarães, datado de 29 de Setembro de 1453, em que o primeiro escamba “umas casas e almuinhas e hortas” que partiam com “o rossio que está em a Porta do Postigo” e do outro lado com o “Campo da Feira”, “e de contra a vila parte com umas almuinhas e latas que são do prior”19. De qualquer modo, o “Campo da Feira” continuou, na segunda metade do século XV, a ser um local de referência na malha urbana vimaranense: aí ficavam as casas de morada de Fernão Martins, almuinheiro, a onde se deslocou um tabelião para a escrita de um instrumento de nomeação de terceira pessoa em prazo, relativo ao “lugar da Ramada”, datado de 4 de Setembro de 146020. Outro espaço comercial, sem dúvida o mais activo da vila, por se encontrar no coração da baixa vimaranense medieval, seguindo as palavras de Conceição Falcão, seria “a Praça de Santa Maria e o contíguo adro de S. Tiago; nesse espaço, com a torre dos sinos, a casa do concelho, os açougues, as tendas, em suma o fervilhar da actividade citadina”21. Sabemos, por exemplo, com base numa sentença escrita a 4 de Fevereiro de (Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 44, doc. 38), um boticário (Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 44, doc. 42.) um carpinteiro (Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 45, doc. 4.) e um seleiro (Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 48, doc. 8.). 17 CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval (1125-1521): Evolução, Organização e Articulação..., p. 33. 18 CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval (1125-1521): Evolução, Organização e Articulação..., p. 242. 19 Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 44, doc. 13. 20 Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 51, doc. 23. 21 FERREIRA, Maria da Conceição Falcão – Guimarães: duas vilas, um só povo: estudo de história urbana (1250-1389)..., p. 253. 490 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL 1436, pelo tabelião Luís da Maia, que nessa praça existia um “alpendre onde vendem o pão em grão”, onde certamente se escoaria a produção do termo e se adquiriam as matérias-primas que alimentavam os moinhos do burgo. A escrita deste documento é testemunhada por dois mercadores, João Pires e Luís Vasques22, cuja actividade profissional dá o nome a uma das ruas que desembocava na praça da vila. O topónimo “Rua dos Mercadores” parece indicar que aqui se encontrariam concentrados os profissionais do ofício comercial. No entanto, os dados recolhidos apenas nos dão a indicação de dois mercadores moradores nesta artéria urbana, Gil Domingues23 e Pêro Álvares24. O primeiro, confrade de Santa Maria, surge frequentemente na documentação enquanto outorgante de prazos com o cabido da Colegiada de Guimarães. O segundo é também uma presença assídua em negócios com a Colegiada, celebrando com esta prazos, escambos e até doações, surgindo por vezes como testemunha de contratos alheios. Além disso, a 30 de Agosto de 142825 é referido como vereador e ouvidor no concelho de Guimarães, testemunhando a sua presença e participação no poder local26. A par do sector ligado ao comércio, também o sector produtivo e transformador dos Couros assumiria uma considerável importância, mesmo que estes se localizassem em diferentes espaços. Os seus profissionais de excelência, os sapateiros, encontravam-se espalhados um pouco por todo o espaço urbano, apesar de topónimos como “Rua Sapateira ou “Rio (ou Rua) de Couros” poderem indicar uma preferência tradicional por estas vias27. Não dispondo de dados suficientes para fazer uma análise conclusiva sobre a distribuição dos mesteirais pelos diferentes espaços da vila, e tendo em conta as possíveis deslocações entre local de trabalho e local de residência, as informações recolhidas indicam-nos que apenas três sapateiros moravam na “Rua Sapateira”, enquanto cinco moravam na “Rua Caldeiroa”, quatro no “Rio (ou Rua) de Couros”, dois na “Rua da Torre Velha” e na “Rua Nova” e um na “Rua da Santa Maria”. O único sapateiro morador na “Rua de Santa Maria” que conseguimos apurar surge, a 10 de Julho de 143828, com o nome de João Esteves, numa carta pela qual compra a João Gonçalves umas casas e três covas de pelames, cujas confrontações Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 48, doc. 4. Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 46, doc. 25. 24 Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 44, doc. 26. 25 Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 45, doc. 6. 26 Sobre a participação dos mercadores no poder local ver: FARELO, Mário – A oligarquia camarária de Lisboa: (1325-1433). Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2009. Tese de Doutoramento, pp. 188-196. Sobre a participação dos mesteres no poder local ver: MELO, Arnaldo Sousa – “Os mesteirais e o poder concelhio nas cidades medievais portuguesas (séculos XIV e XV)”. Edad Media: Revista de Historia 14 (2013), pp. 149-170. 27 Sobre a morfologia urbana de Guimarães na Idade Média ver: FERREIRA, Maria da Conceição Falcão – Guimarães: duas vilas, um só povo: estudo de história urbana (1250-1389)... 28 Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 48, doc. 31. 22 23 OS MERCADOR ES E OS MESTER ES NA PAISAGEM URBANA DO SÉCULO XV 491 Fig. 2 – Mapa da vila de Guimarães medieval, adaptado pelo autor a partir de: MARQUES, A. H. de Oliveira, et alii – Atlas de cidades medievais portuguesas: séculos XII-XV. Lisboa: Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, 1990. p. 17. As adaptações efectuadas dizem respeito à indicação dos arrabaldes: R. de Gato, R. Caldeiroa, Rio de Couros e Campo da Feira. 492 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL indicam: “as quais casas e pelames partem de uma parte com a Rua dos Coiros, arrabalde da dita vila e da outra com as casas de pelames que foram de João de Freitas”29. O sapateiro pagou a pronto 800 reais brancos pela aquisição das suas novas propriedades, o que parece indicar que o profissional dispunha de capital suficiente para investir numa expansão daquilo que deveria ser o seu negócio. Assim, tal como Arnaldo Melo refere para a cidade do Porto30, é possível que os sapateiros controlassem uma parte da curtição que era feita na vila, auferindo por isso largos rendimentos. A forte presença dos sapateiros nesta área de Guimarães é também confirmada por diversos documentos em que estes surgem naquele local, no “Rio (ou Rua) de Couros”. Para além das casas referidas, adquiridas pelo sapateiro João Esteves, nesta artéria dos arrabaldes estariam três sapateiros, a 7 de Dezembro de 1429, enquanto testemunhas na tomada de posse de uma propriedade pelo Cabido31. Não admira, pois, que esta área localizada a sudoeste do perímetro amuralhado, à saída da “Porta da Torre Velha”, fosse caracterizada pelos cheiros intensos associados às actividades de curtição aí desenvolvidas32. Relativamente ao sector dos têxteis, não foi possível sinalizar uma área do espaço urbano que lhe fosse especificamente dedicado, reforçando as dificuldades atrás referidas. Dos 26 alfaiates que conseguimos identificar, apenas conhecemos o local de morada de um indivíduo: trata-se de João Anes, morador na “Rua Nova” e testemunha de uma doação ao Cabido da Colegiada33. Esta escassez de informação é contrabalançada pela existência de exemplos interessantes acerca da organização dos ofícios. Assim, e por exemplo, a 4 de Fevereiro de 1455, são apresentados como testemunhas de um traslado, o alfaiate Afonso Gil e o seu costureiro Diogo Vasques34, indicando uma relação de sujeição do segundo face ao primeiro no patamar da especialização. Sobre a presença dos profissionais do sector da construção na paisagem urbana de Guimarães, podemos dizer que entre os carpinteiros, mestres de obras, mestres de pedraria, pedreiros, pintores e serralheiros recolhidos, apenas conseguimos identificar a morada de um pedreiro, Álvaro Anes, junto à “Porta de São Domingos”35, 29 30 Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 48, doc. 31. MELO, Arnaldo Sousa – Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média: o Porto, c.1320-c.1415..., p. 170. Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 45, doc. 30. RIBEIRO, Maria do Carmo; MELO, Arnaldo Sousa – “O crescimento periférico das cidades medievais portuguesas (séculos XIII- XVI): a influência dos mesteres e das instituições religiosas”. In Evolução da Paisagem Urbana: cidade e periferia. Braga: CITCEM, 2014. p. 93; PINTO, Olímpia Conceição Barbosa – Mesteres Vimaranenses: o setor dos couros nos séculos XIV e XV..., p. 99. 33 Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 46, doc. 12. 34 Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 45, doc. 4. 35 Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 50, doc. 19. 31 32 OS MERCADOR ES E OS MESTER ES NA PAISAGEM URBANA DO SÉCULO XV 493 e a de um pintor, Gonçalo Anes, próximo da “Rua Nova do Muro”36. Sobre a organização do ofício de serralheiro, encontramos indícios que nos permitem avançar algumas reflexões. Num instrumento de doação datado de 29 de Outubro de 1428, feito na casa do tabelião João Anes, lê-se que “Pedro Afonso, serralheiro, que vive com Lourenço Gonçalves, serralheiro” foram presentes como testemunhas37. Infelizmente, apenas sabemos que estes homens eram moradores na vila de Guimarães, não nos sendo dada qualquer indicação relativamente à localização da sua habitação. O que levaria dois homens, que partilhavam o mesmo ofício, a viverem na mesma casa? Seria por um estar dependente do outro, por questões de aprendizagem ou de aperfeiçoamento do ofício? Talvez funcionasse, nessa residência comum, uma oficina de serralharia em que ambos trabalhavam. Interrogações a que só um estudo de maior fôlego poderá responder. De um modo geral, os dados recolhidos na documentação não nos permitiram distribuir os diversos mesteres em áreas topográficas específicas da vila de Guimarães. De facto, estes parecem encontrar-se dispersos um pouco por todas as artérias urbanas. “Na Rua Caldeiroa” encontramos, correeiros, ferreiros e sapateiros, na “Rua de Gato” temos bainheiros e correeiros, na “Rua do Muro” cuteleiros e seleiros e na “Rua Nova” pintores, sapateiros e seleiros. O silêncio dos documentos relativamente à morada de muitos dos artesãos e profissionais identificados não nos deu, até ao momento, dados que possam corroborar a hipótese de uma distribuição geográfica destes. 3. Conclusão. Ao longo do nosso percurso sobre o fundo documental da Colegiada de Santa Maria da Oliveira, cruzamo-nos com os vários homens38 que faziam fluir as matérias vitais para a sobrevivência do burgo medieval de Guimarães. A frequência com que faziam uso da escrita, através dos tabeliães, nos seus negócios com a Colegiada de Santa Maria de Guimarães, permitiu que a sua existência chegasse, ou não, até anos nossos dias através da documentação. Entre eles encontramos os mais especializados, à cabeça de negócios consideráveis, com capitais ao seu dispor, os que se encontravam ao serviço de privados como o Conde de Barcelos, e outros, os mais simples e que se encontravam na base da hierarquia do ofício39. Este corpo produtivo da vila, diverso e constituído pelos vários mesteirais e comerciantes, articulava-se entre as ruas e praças vimaranenses, de forma mais ou Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 50, doc. 22. Lisboa, Torre do Tombo, CSMOG, mç. 45, doc. 12. 38 Não identificamos qualquer referência a elementos do sexo feminino associados aos setores comercial e produtivo da vila de Guimarães no século XV. 39 MELO, Arnaldo Sousa – Trabalho e Produção em Portugal na Idade Média..., p. 161. 36 37 494 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL menos homogénea, assegurando e usufruindo dos sistemas e processos logísticos que garantiam o abastecimento da vila. Apenas o alargamento do conjunto documental permitirá recolher todos os testemunhos referentes aos ofícios económicos urbanos, levando a uma melhor compreensão e conhecimento sobre a presença dos mesteirais e mercadores e impacto na paisagem urbana. OS MERCADOR ES E OS MESTER ES NA PAISAGEM URBANA DO SÉCULO XV 495 496 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL “quallquer [...] rregateira que conprar quaaesquer mantjmentos em quaisquer lugarees”: o papel das regateiras no abastecimento alimentar urbano Mariana Alves Pereira1 Resumo Na participação feminina no trabalho urbano, visível sobretudo no comércio alimentar, as regateiras ganharam destaque em várias cidades e vilas portuguesas. Mesmo que dependentes do dinamismo económico e demográfico dos centros urbanos, a sua existência ficou documentada para grande parte do mundo urbano português. Através do comércio de produtos como o pescado, a carne, os legumes e verduras, as regateiras tiveram um papel importante no abastecimento alimentar e, também, na economia urbana. Contudo, o temor da especulação dos preços e o medo da fraude na qualidade dos produtos lançaram as autoridades concelhia e régia numa busca pelo controlo das regateiras, de modo a assegurar o abastecimento urbano. Por isso mesmo, as regateiras foram colocadas sob alçada dos almotacés, controladas nos seus ofícios, nas suas compras e, sobretudo, nas condições de venda. Assim, o presente estudo pretende evidenciar a prática das regateiras nos centros urbanos portugueses, ao longo dos séculos XIV e XV, evidenciado o seu papel no abastecimento alimentar urbano: coarctado em tempos de escassez ou privilegiado em tempos de abundância. Palavras-chave Mulher; Trabalho; Regateiras; Cidades, Abastecimento. 1 Instituto de Estudos Medievais – NOVA FCSH. 498 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL The regateiras’ role in the urban food provisioning Abstract The regateiras (female hucksters) have earned a leading role among women participation in Portuguese urban work landscape, especially in the food trade. Although their existence depended on the economic an demographic dynamics of the urban centres, there are documents which prove that they were once spreaded throughout many Portuguese cities and towns. Through the trade of products such as fish, meat and vegetables, the regateiras have played an important role in the food supplying system, as well as in the urban economy. But the fear of price speculation and of food quality fraud brought the attention of both the King and regional authorities who, in order to consolidate the urban food supply, enforced a tighter control over the regateiras. Thus, this women were put under the municipal supervision, who started controlling their workplaces, the products they bought and, above all, their trading conditions. This research aims to assess the work of the regateiras in the Portuguese urban centres throughout the 14th and 15th centuries, pointing out the role of these women in the food supplying system – both limited in times of scarcity and privileged in times of prosperity. Keywords Women; Work; Cities; Food supply. Introdução. Ao longo dos séculos XIV e XV, a participação feminina no trabalho urbano foi sentida sobretudo no sector da alimentação. Esta realidade é atestada, por um lado, pela variedade de vocábulos ocupacionais femininos presentes na documentação coeva, fixados de acordo com o produto manuseado ou tarefa executada2. Por outro lado, pela dispersão geográfica dessa mesma documentação, sendo possível encontrar 2 Sobre este tema, ver: MELO, Arnaldo Sousa – “Women and Work in the Houseold Economy: The Social and Linguistic Evidence from Porto, c. 1340-1450”. In The Medieval Household in Christian Europe, c. 850 – c. 1550. Managing Power, Wealth and the Body. Turnhout: Brepols, 2003, pp. 249-269. O PAPEL DAS R EGATEIR AS NO ABASTECIMENTO ALIMENTAR URBANO 499 ofícios como as padeiras ou vendedeiras e regateiras de produtos alimentares para vários centros urbanos portugueses3. A variedade de ofícios femininos no sector alimentar justifica-se, primeiramente, pelo papel que a mulher desempenhava no mundo doméstico. Por um lado, era sobre ela que recaía a alimentação do agregado familiar, tanto na aquisição dos alimentos como, também, da sua confecção. Além disto, no contexto do trabalho, a mulher participou nos processos quer de produção, de transformação ou de comércio de vários produtos alimentares, sendo que foi neste último que a mulher ganhou algum destaque na documentação coeva, sobretudo de índole concelhia. Com efeito, a incumbência dos governos urbanos para garantir o abastecimento alimentar das populações gerou vários mecanismos de controlo e vigilância para os ofícios do sector alimentar. Ainda que com maior incidência nas ocupações relacionadas com produtos de abastecimento alimentar básico, como o pão ou o pescado, a verdade é que as autoridades concelhias intervieram nos ofícios femininos de modo indelével, por meio da normativa. Contudo, não só as autoridades concelhias se demonstraram atentas à participação feminina no abastecimento alimentar das cidades e vilas, mas também a autoridade régia desempenhou o seu papel. Embora mais episódica, a intervenção régia na regulação dos ofícios femininos evidenciou a sua importância não só para o contexto de abastecimento urbano como, também, para a economia urbana. Assim, a regulação por parte das autoridades concelhia e régia incidiu nos vários ofícios femininos, quer naqueles que se relacionassem com a produção ou com a transformação4, sendo que foi no comércio que a normativa mais se acentuou. A verdade é que a mulher apenas participava nas fases produtivas e transformadoras de alguns produtos alimentares, fosse pela forte presença masculina – como no sector do pescado – ou pela componente doméstica dessas actividades – como no sector das frutas e hortaliças. No comércio de alimentos, por seu turno, a participação da mulher foi tão variada quanto o leque de produtos passiveis de ser consumidos nos espaços urbanos medievais5. Precisamente neste contexto, as regateiras adquiriram algum destaque, não só pela variedade de produtos como pelo tipo de comércio praticado. 3 Sobre este tema, ver: GONÇALVES, Iria − “Regateiras, Padeiras e outras mais na Lisboa Medieval”. In KRUS, Luís; OLIVEIRA, Luís Filipe; FONTES, João Luís (coords.) − Lisboa Medieval. Os Rostos da Cidade. Lisboa: Livros Horizonte, 2007, pp. 1-29; COELHO, Maria Helena da Cruz − “A Mulher e o Trabalho nas cidades medievais portuguesas”. In Homens, espaços e poderes: séculos XI – XVI. Vol. I: Notas do viver social. Lisboa: Livros Horizonte, 1990, pp. 37-59; PEREIRA, Mariana Alves – A mulher e o trabalho nas cidades portuguesas medievais. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2020. Dissertação de Mestrado. 4 PEREIRA, Mariana Alves – A mulher e o trabalho nas cidades portuguesas medievais…, 2020, Dissertação de Mestrado,pp. 58-102. . 5 GONÇALVES, Iria − “Regateiras, Padeiras e outras mais na Lisboa Medieval…”, p. 12. 500 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL 1. As regateiras no abastecimento alimentar urbano. Na longa fileira de pessoas que contribuíam para o abastecimento alimentar dos espaços urbanos medievos encontravam-se as regateiras, cujo comércio de alimentos vários lhes permitiu ganhar algum destaque na documentação coeva. O seu ofício associava-se sobretudo ao comércio livre, ou seja, à venda de produtos pelo preço que o consumidor estivesse disposto a dar, ainda que não se esgotasse aí. Apesar da preferência da sociedade medieval por colocar o produtor directamente em contacto com o consumidor6, desde cedo tanto as vereações urbanas quanto o monarca consideraram essencial garantir a existência de vendedores e revendedores que pudessem contribuir ou suprimir as falhas do abastecimento alimentar urbano. Através da prestação de juramento quando deles houvesse necessidade7, cabia então aos almotacés assegurar a existência de profissionais tidos como essenciais para o espaço urbano, como padeiras, carniceiros e regateiras. A estas últimas, contudo, podia ser dada maior liberdade de comércio de produtos como o pescado fresco ou seco8, legumes9 e frutas variadas10, mariscos11, carnes12 ou azeites13. Naturalmente, a oferta de produtos por parte das regateiras dependia da dimensão espacial, da dinâmica populacional e social da população. Com efeito, nos séculos XIV e XV, Portugal contava apenas com uma cidade de média dimensão a nível europeu, Lisboa. Esta cidade era, então, uma excepção no conjunto do reino, dispondo de uma dinâmica comercial apoiada e desenvolvida, entre outros, graças à 6 Cf. GONÇALVES, Iria − “Defesa do consumidor na cidade medieval: os produtos alimentares (Lisboa – séculos XIV e XV)”. In Um olhar sobre a cidade medieval. Cascais: Patrimonia, 1996, pp. 35-39. 7 O juramento consistia numa forma de acordo entre os mesteirais e as autoridades concelhias, realizado de forma verbal ou escrita, perante os evangelhos. Cf. Por exemplo: OS REGIMENTOS de Évora e de Arraiolos do século XV. Introdução e revisão de Hermínia Vasconcelos Vilar. Leitura e Transcrição de Sandra Paulo. Évora: CIDEHUS, 2005, p. 101. Sobre este tema ver: MELO, Arnaldo − O trabalho e produção em Portugal na Idade Média: o Porto, c. 1320–c. 1415. Braga: Universidade do Minho, 2009. Tese de Doutoramento em História, pp. 301-305. 8 Cf. OS REGIMENTOS de Évora e de Arraiolos do século XV…, p. 136; “VEREAÇOENS”. Anos de 14011449. O segundo Livro de Vereações do Município do Porto existente no seu Arquivo. Ed. de J. A. Pinto Ferreira. Porto: Câmara Municipal do Porto, 1980, p. 76; LIVRO DE VEREAÇÃO de Alcochete e Aldeia Galega (14211422). Introdução, transcrição e notas de José Manuel Vargas. Alcochete: Câmara Municipal de Alcochete, 2005, p. 159. 9 Cf. DOCUMENTOS históricos da Cidade de Évora. Ed. de Gabriel PEREIRA. Reimpressão, Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1998, p. 25; ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV. Separata da Revista al-‘ulya 7 (1999), p. 144. 10 Cf. O LIVRO das Posturas Antigas da Cidade de Évora …. p. 90. 11 Cf. HISTÓRIA florestal, aquícola e cinegética. Ed. de C. M. Baeta Neves. Vol. I: 1208-1438. Lisboa: Direcção Geral do Ordenamento e Gestão de Florestas, 1980 , p. 50. 12 Cf. GOMES, Saul António − Documentos Medievais de Santa Cruz de Coimbra: I-Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Separata de Estudos Medievais 9 (1988), p. 142. 13 Cf. “VEREAÇOENS”. Anos de 1390-1395. O mais antigo dos “Livros de Vereações” do Município do Porto existente no seu Arquivo. Ed. de A. Magalhães BASTO. Porto: Câmara Municipal do Porto, 1937, p. 177; LIVRO de vereação de Alcochete e Aldeia Galega (1421-1422)…, p. 159. O PAPEL DAS R EGATEIR AS NO ABASTECIMENTO ALIMENTAR URBANO 501 presença da corte régia – e toda a máquina administrativa que a acompanhava14. O restante território do reino caracterizava-se por vilas e cidades de menor dimensão que, mesmo integradas no crescimento urbano verificado, nunca puderam atingir as proporções daquela. Ainda assim, alguns centros urbanos adquiriram algum destaque, como Évora, Santarém, Porto ou Coimbra. Por consequência, na cidade de Lisboa o número de regateiras seria bastante mais elevado que nos restantes centros urbanos e a oferta de produtos mais alargada, em virtude não só da quantidade de população que ali residia como, também, da que ali passava, dispondo de um poder de compra mais elevado. A título de exemplo, note-se a existência de mulheres especializadas na venda de marisco naquela cidade, as marisqueiras, caso pouco comum para o restante reino15. Ainda assim, a presença de regateiras não foi menor por todo o reino de Portugal, sobretudo no que refere ao comércio de produtos alimentares importantes para a dieta medieval16. A obtenção dos produtos podia ser realizada directamente aos produtores ou, também, a outros vendedores, muitas vezes necessitando da autorização dos almotacés. Assim ocorreu em Évora, no final do século XIV, quando se instituiu que a venda de pescado às regateiras da cidade necessitava do assentimento do almotacé17. Além disto, as regateiras podiam também deslocar-se do centro urbano onde comerciavam para adquirir os seus produtos. Como se sabe, a cidade medieval “era uma estrutura frágil, artificial mesmo, incapaz de se bastar a si própria”18, pelo que o abastecimento dos produtos alimentares provenientes do seu exterior desempenhava um importante papel. Em 1309, há notícia de que as regateiras de Setúbal e da Pederneira se deslocavam a Santarém, onde comerciavam pescados e mariscos19. Mais tarde, em 1403, as regateiras de Loulé deslocavam-se a Tavira e Faro a fim de comprarem pescado e sardinha, que depois vendiam na vila20. 14 Cf. ANDRADE, Amélia Aguiar − “Lisboa Medieval, Cabeça de Reino, cidade de muitas e desvairadas gentes”. In ANDRADE, Amélia Aguiar; FARELO, Mário (coords.) − Pão, Carne e Água: Memórias de Lisboa Medieval. Lisboa: Arquivo Municipal de Lisboa, IEM NOVA FCSH, 2019, pp. 37-47. 15 Cf. LIVRO das Posturas Antigas. Leitura paleográfica de Maria Teresa Campos Rodrigues. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 1974, p. 10. 16 Veja-se, a este respeito, para Coimbra: CAMPOS, Maria Amélia − “Alimentar a cidade de Coimbra na Baixa Idade Média: notas sobre os alimentos, as estruturas de transformação alimentar e os ofícios” in SOARES, Carmen; MACEDO, Irene Coutinho (eds.) − Ensaios sobre Património Alimentar Luso-Brasileiro. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2019, pp. 113-326. 17 Cf. O LIVRO das Posturas Antigas da Cidade de Évora…, p. 15. 18 Cf. GONÇALVES, Iria − “Defesa do consumidor na cidade medieval: os produtos alimentares (Lisboa – séculos XIV e XV)…”, p. 98. 19 Cf. Descobrimentos Portugueses. Ed. de João Martins da Silva Marques. Lisboa: Instituto para a Alta Cultura, 1944, sup. V. 1, p. 385. 20 Cf. ACTAS de vereação de Loulé. Séculos XIV-XV…, pp. 145-146. 502 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL 2. A regulação das autoridades concelhias. A actividade das regateiras, contudo, era bastante vigiada pelas autoridades concelhias, que procuravam evitar o açambarcamento e a especulação de produtos essenciais à população urbana. Para o colmatar, os governos urbanos desenvolveram um conjunto de mecanismos de regulação do ofício, tais como o controlo do número de regateiras, o controlo da aquisição e venda dos produtos ou a fixação dos espaços de trabalho. Quanto ao controlo do número de regateiras, este era realizado por meio da obrigatoriedade de inscrição na vereação concelhia das mulheres que quisessem exercer o ofício. No Porto, em 1401, esta medida foi estipulada para as regateiras de caças, carnes e de pão cozido, sendo que a venda destes produtos por mulheres não inscritas na vereação era punida com uma pena pecuniária21. Ao mesmo tempo, o facto de o juramento estar previsto para a ocupação das regateiras pode, também, indiciar um mecanismo de controlo do número de mulheres dedicadas a esse ofício22. A aquisição e venda dos produtos foi dos temas que mais preocuparam as autoridades concelhias relativamente a estas mulheres23. Por um lado, as autoridades procuraram vigiar a obtenção dos produtos por parte das regateiras. Através do almotacé, no final do século XIV, a vereação de Évora procurou controlar o comércio do pescado, impedido a sua venda às regateiras sem o seu assentimento24. O mesmo sucedeu em Lisboa, onde a vereação, já no final do século XV, impediu a revenda de pescado por parte das regateiras, deixando o exclusivo desse comércio aos pescadores, exceptuando-se, contudo, produtos como os caranguejos ou berbigões, que podiam ser comerciados livremente. Neste último caso, fica patente a diferente importância atribuída a determinados produtos por parte da vereação lisboeta, o que permitiu às regateiras o comércio livre de algumas espécies de marisco, mas coarctou a possibilidade de comércio do pescado. De facto, o consumo de marisco não era considerado tão fundamental como o do pescado, mesmo que o seu comércio tenha sido livre até à postura citada25. Por último, as regateiras de Lisboa também foram impedidas de adquirir e revender aves e lacticínios, para que os próprios produtores os pudessem comerciar26. Cf. “VEREAÇOENS”. Anos de 1401-1449… p. 76. Cf. Por exemplo: OS REGIMENTOS de Évora e de Arraiolos do século XV…, p. 29-30. Ver também: MELO, Arnaldo Sousa – “Women and Work in the Houseold Economy: The Social and Linguistic Evidence from Porto, c. 1340-1450…”, pp. 249-269. 23 Cf. GONÇALVES, Iria − “Regateiras, Padeiras e outras mais na Lisboa Medieval…”, pp. 11-14. 24 Cf. O LIVRO das Posturas Antigas da Cidade de Évora …, p. 15. Ver também: FEIO, Rodolfo Nunes Petronilho − Por Prol e Bom Regimento. A cidade e o trabalho nas posturas antigas de Évora. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade Coimbra, 2017. Dissertação de mestrado, p. 134. Disponível em: https:// estudogeral.sib.uc.pt/handle/10316/85618. 25 GONÇALVES, Iria − “Regateiras, Padeiras e outras mais na Lisboa Medieval…”, p. 15. 26 Cf. LIVRO das Posturas Antigas…, p. 256. 21 22 O PAPEL DAS R EGATEIR AS NO ABASTECIMENTO ALIMENTAR URBANO 503 Por outro lado, o controlo das vereações concelhias também se fez sentir na imposição de condições de venda. A imposição de horários de venda foi uma das estratégias para assegurar o abastecimento urbano, procurando dirimir os episódios de açambarcamento e consequente especulação dos produtos por parte das regateiras. Um caso paradigmático dessa situação ocorreu no Porto, no final do século XIV, quando a vereação procurou resolver o problema decorrente do açambarcamento e consequente subida de preços por parte das muitas regateiras que, segundo o governo urbano, se dedicavam à venda de pescado, caça ou fruta27. Assim, somente a partir da hora da terça – as 9h da manhã – é que era permitida a venda por parte da regateiras28. Esta medida foi aplicada às regateiras de Lisboa29, Santarém30 e Setúbal31, ao passo que em Évora estavam sujeitas a tal horário as regateiras de fruta32. Até à hora estipulada, então, os alimentos deviam ser comercializados pelos preços impostos pelos almotacés, de modo a que a população se pudesse abastecer, sem que ficasse exposta à especulação do seu preço. Além dos horários de venda, por último, também o desrespeito pela almotaçaria posta aos produtos era punível com penas pecuniárias em cidades como Lisboa33, bem como a fraude na qualidade do produto34 ou o incumprimento dos espaços de trabalho fixados. Esta última foi outra das medidas adoptadas pelas vereações concelhias, que, contudo, apenas foi aplicada às regateiras de determinados produtos, como o pescado, sendo que o comércio ambulante continuou a ser prática recorrente por parte dessas mulheres35. Cf. “VEREAÇOENS”. Anos de 1390-1395 …, p. 201. Esta medida teve alcance não só em cidades portuguesas, como também em Cuenca, Guadalajara ou Tolendo. Cf. ESCRIBANO ABAD, José Luis − Política de aprovisionamiento de alimentos: el mercado urbano en el antiguo Reino de Toledo durante la Baja Edad Media. Espanha: Universidad Nacional de Educación a Distancia, 2013. Tese de Doutoramento, pp. 184-185. Ver também: PEREIRA, Mariana Alves – A mulher e o trabalho nas cidades portuguesas medievais…, pp. 79-82. 29 Cf. LIVRO das Posturas Antigas …, p. 12. 30 Cf. VIANA, Mário – “A participação do concelho de Santarém em Cortes nos séculos XIV e XV. 1. Documentação”. Arquipélago-História, Revista da Universidade dos Açores VIII (2004), p. 369. 31 Cf. BRAGA, Paulo Drumond − Setúbal medieval (séculos XIII a XV). Setúbal: Câmara Municipal de Setúbal, 1998, p. 116. 32 Cf. O LIVRO das Posturas Antigas da Cidade de Évora …, p. 21. Ver também: FEIO, Rodolfo Nunes Petronilho − Por Prol e Bom Regimento. A cidade e o trabalho nas posturas antigas de Évora…, p. 138 33 Cf. LIVRO das Posturas Antigas…, p. 36. 34 Ver: PEREIRA, Mariana Alves – A mulher e o trabalho nas cidades portuguesas medievais (séculos XIV e XV)…, pp.73-96. 35 Conforme avança Saúl António Gomes, “Coimbra era cidade de forte dinâmica comercial, sobremodo em torno da produção e do consumo nas áreas alimentares, do vestuário e do calçado, marroquinaria e da ourivesaria. Entre os mesteirais que poderiam vir aos açougues reais por ocasião do mercado semanal das segundas-feiras, segundo o compromisso estabelecido, em 1269, entre o Município e o rei D. Afonso II, para venda dos seus produtos, citam-se tendeiros, correeiros, sapateiros, fanqueiros, peliteiros, manteeiros, esteireiros e tecelões de feltro e de burel, para além dos açougueiros de carnes e de pescados e, ainda, das muitas regateiras que se encarregavam da venda, fixa ou ambulante, de pão, lacticínios, méis, castanhas e de especiarias, como o cominho, açafrão e pimenta, entre outros produtos hortícolas e frutícolas.” cf. GOMES, Saul António – “Coimbra-aspectos da sua paisagem urbana em tempos medievos”. Biblos IV, nova série, (2006), pp. 126-127. 27 28 504 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL No início do século XV, as regateiras de pescado de Évora estavam proibidas, de acordo com o Regimento da cidade, de o vender em casa ou noutro lugar que não a praça, onde o produto era almotaçado36. O mesmo estava previsto para Arraiolos, onde estava prevista uma pena pecuniária para as regateiras que vendessem pescado em casa e não na praça37. Com efeito, em ambos casos, a evasão ao espaço definido determinava a ausência de controlo por parte dos almotacés do pescado, o que podia ter repercussões no preço do produto, pesos e medidas ou na sua qualidade38. O estabelecimento de espaços de trabalho para as regateiras foi também aplicado de modo a evitar, por exemplo, concertações e conluios entre regateiras e produtores. Atente-se ao exemplo de uma norma emitida pelo concelho de Lisboa em 1482, que determinou que as regateiras não pudessem vizinhar com as chamadas donas do pescado ou seja, as mulheres de pescadores que vendiam directamente o produto39. Quanto ao cumprimento das normas impostas, não só se mostraram atentas as autoridades concelhias como, também, a autoridade régia. No plano concelhio, eram aplicadas penas pecuniárias, por exemplo, às regateiras que comprassem fruta para revenda antes da hora da terça, em Évora40. A privação de liberdade foi ainda uma outra sanção aplicada caso às mulheres vendessem pescado fora do lugar estipulado pelas autoridades concelhias de Lisboa41. À parte destas, determinados comportamentos podiam ainda ser sancionados com punição física, como a compra para revenda de farinha dentro das Fangas de Lisboa42. 3. A regulação da autoridade régia. No plano régio, a intervenção do monarca foi apenas notada quando chamado a intervir pelos próprios concelhos que, considerando a conduta das regateiras gravosa e não a conseguindo colmatar, a ele recorriam para deliberar sobre o tema43. Um exemplo dessa atenção prestada pelos monarcas à conduta das regateiras surge em 1361, aquando da reunião de Cortes em Elvas. Aí foi apresentado a D. Pedro um capítulo geral do povo, ou seja, um capítulo ratificado por todos – ou grande parte – dos procuradores de concelho ali presentes, em que se queixavam de cartas régias de privilégio a regateiras, isentando-as do cumprimento da almotaçaria, ou Cf. OS REGIMENTOS de Évora e de Arraiolos do século XV…, p. 136. Cf. OS REGIMENTOS de Évora e de Arraiolos do século XV…, p. 137. 38 Cf. LIVRO das Posturas Antigas…, p. 122. 39 Cf. LIVRO das Posturas Antigas…, p. 151 40 Cf. O LIVRO das Posturas Antigas da Cidade de Évora…, p. 21 41 Cf. LIVRO das Posturas Antigas…, p. 151 42 Cf. POSTURAS do concelho de Lisboa: Século XIV. Leitura paleográfica de José Pedro Machado. Lisboa: Sociedade da Língua Portuguesa, 1974, p. 49. 43 Ver: PEREIRA, Mariana Alves – A mulher e o trabalho nas cidades portuguesas medievais…, pp. 96-102. 36 37 O PAPEL DAS R EGATEIR AS NO ABASTECIMENTO ALIMENTAR URBANO 505 seja, do cumprimento de preços e pesos e medidas estabelecidos pelas autoridades concelhias. O monarca foi sensível à argumentação apresentada pelos concelhos, de que tal impedia a aquisição de mantimentos a preços justos, e acedeu a não mais conceder esse tipo de privilégio e em anular os já atribuídos44. Contudo, tal não impediu posteriores concessões régias de privilégios a regateiras. No século XV, o monarca foi informado pelo concelho de Santarém, através de um capítulo especial, mais uma vez em contexto de Cortes, que as regateiras daquele lugar usavam indevidamente do privilégio de isenção de almotaçaria quando este tinha sido atribuído aos seus maridos45, queixa que o monarca deferiu interditando às regateiras o uso de um privilégio que não lhes tinha sido directamente concedido. Por fim, a mesma situação é levada a cortes em 1440, desta feita pelo concelho de Setúbal. Neste contexto, a decisão do monarca proíbe mesmo o exercício do comércio a quem que não obedecesse às regras de almotaçaria46. Deste modo, quando chamada a fazê-lo, a autoridade régia parecia ceder à argumentação das autoridades concelhias, considerando que o ofício das regateiras devia obedecer a determinadas regras para as quais não devia existir qualquer excepção. Esta questão, contudo, evidencia também a dificuldade de aplicação da normativa por parte das autoridades e os problemas que os privilégios régios podiam trazer. Contudo, também as próprias regateiras podiam ser as queixosas das normas aplicadas pelos governos urbanos. Datada de 1338 encontra-se uma carta de Afonso IV, dirigida aos alvazis, alcaide e concelho de Santarém, onde se registava que “as Regateiras e alguũns outros dessa vila”, bem como os seus vedores e almoxarifes, o tinham informado de que algumas posturas estabelecidas pelo concelho sobre o trabalho das regateiras as prejudicavam e eram também danosas ao dito concelho. Em resposta, o monarca regulou o trabalho das regateiras, evidenciando a sua importância para a vila uma vez que lhes permitiu o exercício do ofício, regulando-o de acordo com determinadas regras – todas elas tendo em vista medidas tendentes a assegurar o abastecimento urbano, como a obrigação de cumprir os preços impostos pelos almotacés47. Mais tarde, em 1389, D. João I foi informado dos abusos praticados pelos almotacés em relação às regateiras de pescado e fruta em Évora. O monarca, perante a queixa de corrupção por parte dos almotacés, toma a decisão de permitir o livre 44 Cf. CORTES Portuguesas, reinado de D. Pedro (1357-1367). Ed. A. H. de Oliveira Marques. Lisboa: Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, 1986, p. 53. 45 Cf. VIANA, Mário – “A participação do concelho de Santarém em Cortes nos séculos XIV e XV. 1. Documentação...”, p. 369. 46 Cf. CORTES portuguesas: reinado de D. Afonso V: cortes de 1439. Dir. João José Alves Dias. Lisboa: Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, 2016, p. 411. 47 Cf. CHANCELARIAS Portuguesas: D. Afonso IV. Direcção de A. H. de Oliveira Marques, Vol. 2. Lisboa: Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, 1992, p. 227. 506 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL comércio dos produtos, determinando que “cada um possa vender e comprar o que quiser sem almotaçaria nenhuma”48. Esta decisão, que aparentemente parece contrária aos interesses de abastecimento urbano da população, uma vez que lhes permite o comércio sem cumprir o preço estabelecido pelos almotacés, evidencia a importância dada pela monarca às regateiras para o abastecimento urbano. Este exemplo, contudo, não é caso único. A importância das regateiras para a economia urbana fica visível numa carta dada pelo infante D. Pedro, ao concelho de Coimbra, datada de 1437. Nesta data, é pedido pelas autoridades concelhias que o Duque da cidade se pronuncie acerca das regateiras de peixe frito e carne assada, argumentando que a sua existência era negativa dados os preços praticados e as fraudes cometidas sobre o produto, afectando a sua qualidade. A resposta do infante, contudo, vai contra as pretensões concelhias, autorizando o comércio de tais produtos por parte das regateiras. Para aquele, a sua existência não podia trazer qualquer mal, além de que era proveitosa para os caminhantes que por ali passassem, evitando-lhes despesas e trabalho49. Assim, o infante D. Pedro procurou incrementar o comércio de alimentos tendo em vista, sobretudo, o consumo de estrangeiros e caminhantes, não se remetendo apenas para o consumo da população urbana. Não dando maior importância às questões apontadas pela vereação concelhia, o duque de Coimbra opta assim por cativar a existência e consumo dos alimentos já cozinhados que, não perigando o normal abastecimento básico da população, acrescentavam novo valor à economia do meio urbano. Conclusão. Posto isto, é possível perceber que as autoridades concelhias e régias pretendiam que o número e presença das regateiras no comércio alimentar urbano fosse constante e suficiente para garantir, sem grandes sobressaltos, as necessidades das populações das cidades e vilas portuguesas. A sua presença garantia a existência de produtos alimentares essenciais para o abastecimento urbano, como o pescado, a carne, as hortaliças ou as frutas. Todavia, mesmo que pudessem representar o ingresso de produtos ou o seu escoamento para a população urbana, as regateiras foram submetidas a um conjunto de imposições de modo a evitar fraudes que pusessem em causa os esquemas de abastecimento urbano. Neste sentido, o comércio das regateiras era apenas praticado em horários específicos e sob a vigilância das autoridades concelhias, que Cf. DOCUMENTOS históricos da Cidade de Évora…, parte I, p. 90. Cf. PIMENTA, Belisário – “As cartas do Infante D. Pedro à Câmara de Coimbra (1429-1448)”, separata de Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra XXIII (1958), pp. 18-19. 48 49 O PAPEL DAS R EGATEIR AS NO ABASTECIMENTO ALIMENTAR URBANO 507 asseguravam, entre outros, a qualidade dos produtos. Por outro lado, convém realçar que a intervenção das autoridades concelhias foi mais premente relativamente a regateiras que comercializassem produtos de maior importância para a dieta alimentar ou cujos esquemas de abastecimento apresentassem maior fragilidades, como o pescado. Não obstante, a actuação das autoridades nem sempre foi contra a prática das regateiras, sendo-lhes dado também espaço no contexto económico urbano para desenvolverem a sua actividade. Tal como ficou patenteado na carta do duque de Coimbra, onde é afirmado o papel das regateiras para o consumo e economia urbanos, o trabalho das regateiras não se baseava somente na venda e revenda de produtos destinados ao abastecimento alimentar básico mas, também, ao comércio especulativo de alimentos, podendo participar na sua própria transformação e, por isso, acrescentando valor ao produto. Deste modo, não se pense que as regateiras eram todas reguladas da mesma maneira ou que praticavam o mesmo tipo de comércio, dado que o comércio de determinados produtos, além de não ser controlado pelas autoridades concelhias – como se viu no caso dos caranguejos e berbigão – podia ser feito de modo itinerante pelas cidades e vilas portuguesas. Dado o exposto, pode-se concluir que as regateiras detinham um papel importante para o abastecimento urbano pois delas podia depender a existência e venda de determinados produtos, fosse por servirem de intermediárias na sua venda ou por perigarem a sua existência com as suas práticas de comércio. Por outro lado, a sua importância para a economia urbana, e em parte também para o seu abastecimento, fica evidente na defesa que lhes é feita pelo infante D. Pedro que, não considerando as alegadas fraudes praticadas sobre os produtos, lhes permite a existência e comércio, mesmo contra as autoridades concelhias. 508 PARTE V Tempos de comércio: mercados e feiras, fiscalidade e moeda Times of Trade: Markets, Fairs, Taxation, and Money Na Lisboa de D. João I (1385-1433): fiscalidade régia e abastecimento Catarina Rosa1 Resumo Pelas suas dimensões e peso demográfico, Lisboa era a principal cidade do Portugal medieval e, como tal, aquela cujas necessidades de abastecimento eram mais difíceis de satisfazer. Sobre os bens essenciais de consumo (pão, carne, peixe, legumes, vinho, etc.), importados e/ou transacionados em Lisboa, recaíam encargos fiscais que, ao longo do período medieval, conheceram uma nítida evolução, sendo que o reinado de D. João I foi a este nível um ponto de viragem. De facto, no decurso de quase meio século de governação, D. João I reformou o quadro da fiscalidade régia em Lisboa, quer pela concessão de privilégios de isenção, quer pela institucionalização de novos impostos, designadamente as sisas gerais e a dízima nova do pescado. Para além disso, o reinado deste monarca foi também um período de frequentes carestias, que obrigaram à adaptação do fisco régio de modo a salvaguardar o abastecimento desta cidade. Com efeito, o presente estudo presta-se a dar a conhecer o aparelho fiscal montado pela Coroa em torno do abastecimento de Lisboa, com enfoque sobre os produtos alimentares, e, de resto, presta-se a explicar de que forma o abastecimento desta cidade condicionou a política fiscal régia, ao tempo de D. João I. Palavras chave Abastecimento urbano; Produtos alimentares; Fiscalidade régia; Privilégios de isenção fiscal; Crises frumentárias. 1 IEM-NOVA FCSH. 512 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Lisbon at the time of D. João I (1383-1433): royal taxation and urban supply Abstract Given its dimensions and its demographic weight, Lisbon was the main city of Medieval Portugal, and also the one whose supplying needs were harder to accommodate. Essential goods, such as cereal, meat, fish, vegetables, wine, etc., that were either imported or traded in Lisbon were taxed by the Crown and, at the time of D. João I, royal fiscality undertook significant changes, brought about by the fiscal privileges granted to Lisbon’s municipality and by the collection of new taxes. Furthermore, the reign of D. João I was also a period of frequent shortages that forced royal fiscality to adapt to ensure that Lisbon’s supplying needs were met. Therefore, the following text aims to present the fiscal apparatus established by the Crown in order to tax Lisbon’s supply system of essential goods, and also to explain how supplying this city conditioned royal fiscal policy. Keywords Urban supply; Essential goods; Royal fiscality; Fiscal privileges; Shortages. 1. Uma aproximação à Lisboa de D. João I. A partir da segunda metade do século XIII, Lisboa foi-se progressivamente afirmando como cabeça do reino, um estatuto que, antes do reinado de D. João I, era já praticamente incontestável. No contexto da rede urbana medieval portuguesa, o protagonismo de Lisboa achava-se plasmado a diversos níveis. Desde logo, do ponto de vista político, mercê das frequentes e prolongadas estâncias da comitiva régia, configurava o espaço privilegiado da presença régia e do exercício do poder real2. Para além disso, a oligarquia camarária lisboeta beneficiava de um acesso privilegiado à figura régia e mantinha com a Coroa e respetivo oficialato 2 ANDRADE, Amélia Aguiar – “Lisboa Medieval, Cabeça do Reino, Cidade de Muitas e Desvairadas Gentes”. In ANDRADE, Amélia Aguiar, FARELO, Mário, GOMES, Marta (eds.) – Pão, carne e água: memórias de Lisboa medieval. Lisboa: Arquivo Municipal de Lisboa - Instituto de Estudos Medievais, 2019, pp. 37, 40. NA LISBOA DE D. JOÃO I (1385-1433): FISCALIDADE R ÉGIA E ABASTECIMENTO 513 uma relação de forte dependência3. Do ponto de vista económico, destacava-se pela sua intensa atividade comercial, favorecida pela sua posição geográfica privilegiada, - assegurada pela sua implantação na embocadura de um dos principais cursos de água peninsulares, o rio Tejo, e pela sua proximidade ao Atlântico-, que lhe permitia, em simultâneo, estabelecer contactos comerciais com o interior do reino, com o Norte e Sul de Portugal e também com a restante Europa. Em acréscimo, o estuário do Tejo configurava um porto natural, amplo e abrigado, favorável à navegação marítima e fluvial, à pesca e à construção naval4. Com efeito, à cidade de Lisboa afluía um grande número de pessoas e de mercadorias das mais diversas proveniências e, no contexto do Portugal medieval, desempenhava o papel de principal centro redistribuidor5. Por outro lado, a preponderância desta cidade explica-se pela sua dimensão e pelo seu peso demográfico, subsequentes de uma conjuntura de acentuado crescimento, que Lisboa viveu, desde, pelo menos, meados do século XIII. De facto, o seu espaço amuralhado, após a edificação da Cerca Fernandina, compreendia uma área superior a 100 hectares e, no último quartel do século XIV, tinha uma população de aproximadamente 35.000 habitantes6, sendo, por isso, a maior e mais densamente povoada cidade do reino, embora, em termos europeus, fosse um núcleo urbano de médias dimensões7. Para lá da Cerca Fernandina, a cidade de Lisboa espraiavase ainda por três arrabaldes e enquadrava um termo que compreendia uma área alargada, - conquanto nem sempre estável -, dotada de uma notável aptidão agrícola, subjacente aos seus solos férteis e irrigados e aos seus terraços aluviais formados pelos depósitos arenosos e lodosos gerados pelas cheias ocasionais do Tejo8. O abastecimento de Lisboa dependia, desde logo, do seu alfoz9, que lhe fornecia Dentro de uma população de 128 oligarcas, que estiveram em funções entre 1325 e 1433, 69 desempenharam funções ao nível do oficialato régio, 18 tinham laços de dependência com o rei e 41 apresentavam ambas as situações, sendo que dos 59 que tinham laços de dependência com o rei (18+41), 81% eram vassalos régios, 15% eram criados do rei, 2% eram privados do monarca e 2% eram beneficiários da mercê régia. FARELO, Mário – A Oligarquia Camarária de Lisboa (1325-1433). Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2008. Tese de doutoramento, pp. 273-274, 302. 4 ANDRADE, Amélia Aguiar – “Lisboa Medieval…”, p. 38. 5 ANDRADE, Amélia Aguiar; MIRANDA, Flávio – “Lisbon: Trade, Urban Power and the King’s Visible Hand”. In BLOCKMANS, Wim, WUBS-MROZEWICZ, Justyna, KROM, Mikhail (eds.) – The Routledge Handbook of Maritime Trade Around Europe, 1300-1600: Commercial Networks and Urban Autonomy. London: Routledge, 2017, p. 336. 6 MARQUES, A. H. de Oliveira – “Lisboa”. In MARQUES, A. H. de Oliveira; GONÇALVES, Iria, ANDRADE, Amélia Aguiar – Atlas de Cidades Medievais Portuguesas: séculos XII-XV. Lisboa: Centro de Estudos Históricos da Universidade de Lisboa, 1990, p. 55. 7 ANDRADE, Amélia Aguiar – “Lisboa Medieval…”, p. 37. 8 CATARINO, Maria Manuela – Na Margem Direita do Baixo Tejo: paisagem rural e recursos alimentares. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1998. Dissertação de Mestrado, pp. 9-10. 9 GONÇALVES, Iria – “Lisboa e o seu abastecimento em cereais”. In ANDRADE, Amélia Aguiar, FARELO, Mário, GOMES, Marta – Pão, carne e água: memórias de Lisboa medieval. Lisboa: Arquivo Municipal de Lisboa - Instituto de Estudos Medievais, 2019, p. 51. 3 514 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL um importante conjunto de produtos alimentares, tais como cereais, vegetais, fruta, vinho, azeite, mel, peixe e carne10. Todavia, a capacidade produtiva do alfoz não acompanhou o acelerado crescimento da cidade e, por isso, não podia, por si só, satisfazer as necessidades de consumo de um núcleo urbano com as dimensões e peso demográfico de Lisboa, que, de resto, se procurava abastecer um pouco por todo o reino. Neste sentido, a sua influência consumidora estendia-se sobre uma vasta área, fazendo-se sentir com particular vigor sobre os centros urbanos circundantes11. Por outro lado, Lisboa dependia ainda dos produtos alimentares provenientes do estrangeiro, sobretudo os cereais, em torno dos quais se organizou um complexo circuito de abastecimento à escala internacional12. Abastecer a cidade de Lisboa não era, portanto, tarefa fácil, especialmente em maus anos agrícolas e em tempo de guerra, duas circunstâncias que, com frequência, estiveram na origem de crises frumentárias, obrigando à tomada de medidas por parte da edilidade lisboeta e da Coroa, medidas essas que, em certas ocasiões, se traduziram na adaptação das práticas fiscais régias em função das necessidades de abastecimento da cidade. 2. A fiscalidade régia em Lisboa nas vésperas do Interregno. Um elemento indissociável do abastecimento de Lisboa era a fiscalidade, em particular a fiscalidade régia, aqui entendida como um fator num difícil equilíbrio entre as necessidades de consumo da cidade e os objetivos de cobrança subjacentes à atuação do fisco régio13. Nas vésperas da crise política de 1383 – 1385, que desencadeou a guerra contra Castela (1383-1411), a fiscalidade régia em Lisboa traduzia-se na aplicação de um conjunto diverso de impostos e taxas, que incidiam, de forma direta, sobre a exploração agrícola (jugada), a caça (condado), a pesca (dízima do pescado), a utilização dos fornos de telha (dízima da telha) e a escrita (tabeliado); e, de forma indireta, sobre o comércio urbano (açougagem, fangagem, alcavala, salaio, relegagem, mordomado, direito dos lombos) e o trânsito de mercadorias à escala nacional (portagens e costumagens) e à escala internacional (dízima alfandegária), aos quais acresciam ainda os impostos que recaíam sobre a minoria judaica (serviço real, ANDRADE, Amélia Aguiar; MIRANDA, Flávio – “Lisbon: Trade, Urban Power…”, p. 337. ANDRADE, Amélia Aguiar; MIRANDA, Flávio – “Lisbon: Trade, Urban Power…”, p. 338. 12 GONÇALVES, Iria – “Lisboa e o seu abastecimento…”, p. 53. 13 A fiscalidade aplicada pelo concelho de Lisboa incidia igualmente sobre o abastecimento urbano. Todavia, o estudo da articulação entre o sistema fiscal concelhio e as dinâmicas de abastecimento deste núcleo urbano ultrapassa o escopo do presente texto. Não obstante, sobre a fiscalidade municipal em Lisboa, veja-se: RODRIGUES, Maria Teresa Campos – Aspectos da Administração Municipal de Lisboa no século XV. Lisboa: Câmara Municipal, Separata da Revista Municipal 101-109 (1966), pp. 73-80. 10 11 NA LISBOA DE D. JOÃO I (1385-1433): FISCALIDADE R ÉGIA E ABASTECIMENTO 515 genesim, etc.) e islâmica (azaqui, alfitra, etc.)14. No seu conjunto, estes encargos configuravam o elenco fiscal aplicado pela Coroa em Lisboa, sendo que, dentro do quadro global da fiscalidade régia, apesar da existência de modelos de foral e de elementos fiscais comuns a vários concelhos, cada um tinha uma configuração fiscal própria, subjacente ao respetivo foral, às suas práticas consuetudinárias e aos privilégios emanados do poder real. A constituição deste aparato fiscal teve início no período subsequente à conquista da cidade pelas forças cristãs, em 1147, tendo sido objeto de um primeiro enquadramento aquando a outorga do foral, que, em 1170, D. Afonso Henriques concedeu aos mouros forros de Lisboa, de Almada, de Palmela e de Alcácer15, e do foral que, em 1179, atribuiu ao concelho de Lisboa16. Posteriormente, o quadro fiscal consagrado nestes dispositivos foralengos sofreu alterações, subjacentes à atualização das taxas adscritas a alguns destes impostos, à atribuição de privilégios de isenção e à adoção de novas soluções fiscais. De facto, alguns dos referidos encargos foram, na verdade, introduzidos num momento posterior à elaboração desses textos foralengos. É o caso da dízima alfandegária17 e do tabeliado18, cuja institucionalização teve lugar na segunda metade do século XIII, no contexto de uma estratégia de reforço do poder régio desenvolvida pela Coroa nesta cronologia. 14 Sobre a aplicação da fiscalidade régia em espaços urbanos no Portugal medieval, veja-se, por exemplo: BEIRANTE, Maria Ângela da Rocha – Santarém Medieval. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1980, pp. 239-250. Sobre a fiscalidade régia em núcleos urbanos do espaço ibérico, veja-se, por exemplo: MENJOT, Denis – Fiscalidad y sociedad: los murcianos y el impuesto en la Baja Edad Media. Múrcia: Academia Alfonso X el Sabio, 1986, pp. 141-149. ORTÍ GOST, Pere – Renda i Fiscalitat en una ciutat medieval: Barcelona, segles XII-XIV. Barcelona: CSIC, 2000, pp. 397-529. 15 Ordenações Afonsinas – Nota de apresentação de Mário Júlio de Almeida Costa e nota textológica de Eduardo Borges Nunes, 2ª ed., Vol. 2. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998, pp. 529-531. 16 “Foral de Lisboa de 1179”. In CAETANO, Marcelo – A administração municipal de Lisboa durante a primeira dinastia (1179-1383). Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1981, pp. 114-123. No foral de 1179, encontra-se consagrada a aplicação da jugada, açougagem, salaio, alcavala, condado, dízima do pescado, portagens e dízima da telha. Todavia, o texto foralengo não apresenta um elenco sistemático das obrigações fiscais dos moradores de Lisboa e respetivo alfoz, referindo apenas aquelas que, à data da outorga do foral, se pretendeu fixar ou atualizar. Com efeito, o foral é omisso em relação a certos encargos, cuja satisfação estava já então estabelecida. Tal pode ter sido o caso da fangagem, das costumagens, do mordomado e do direito dos lombos, que surgem documentados a partir do século XIV, embora a sua arrecadação fosse, por certo, muito anterior. 17 Não foi possível precisar o momento a partir do qual se impôs a cobrança da dízima alfandegária em Lisboa. Sabe-se, porém, que remonta, pelo menos, ao reinado de D. Afonso III, uma vez que a primeira referência documental à sua arrecadação data de 1274. Para além disso, sabe-se que, em 1288, Lisboa dispunha já de uma alfândega, isto é, um edifício próprio onde se procedia à cobrança da dízima. PEREIRA, João Cordeiro – Para a História das Alfândegas em Portugal no início do século XVI (Vila do Conde – Organização e Movimento). Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1983, p. 22, 24. 18 Não foi possível determinar o momento em que se estabeleceu a cobrança do tabeliado, que, todavia, foi objeto de um enquadramento entre 1287 e 1290, quando D. Dinis fixou o valor global a satisfazer pelos tabeliães de cada localidade. MARQUES, A. H. de Oliveira – “A população portuguesa nos fins do século XIII”. In Ensaios de História Medieval Portuguesa. 2ª ed. Lisboa: Editorial Vega, 1980, pp. 57-65. 516 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Para além destes impostos, que, a título ordinário, os oficiais régios arrecadavam em Lisboa, a Coroa socorria-se igualmente de uma fiscalidade extraordinária, constituída pelos serviços, isto é, os subsídios que o concelho de Lisboa, à semelhança de outros, outorgava ao rei, quando para isso solicitado, recebendo, em troca, privilégios e mercês. A outorga dos serviços era objeto de negociações particulares entre o rei e o concelho, a cargo do qual ficava a arrecadação do quantitativo outorgado, sendo que, para o efeito, estava autorizado a lançar impostos extraordinários, tais como sisas, talhas e fintas19. Os serviços tinham, portanto, um caráter distinto dos pedidos régios20, – cuja cobrança se generalizou a partir do reinado de D. João I, conquanto não tenha substituído a outorga de serviços21 –, dado que os pedidos eram outorgas coletivas feitas, em Cortes, pelos concelhos aí reunidos, e, por isso, eram arrecadados de forma uniforme em todo o reino, tendo, desde cedo, tomado a forma de um imposto direto sobre os bens das pessoas tributáveis22. Paralelamente à outorga de serviços, o concelho de Lisboa procedia ao lançamento de sisas para solver as despesas próprias da edilidade em situações de aperto financeiro23. Uma prática que, todavia, foi abandonada no reinado de D. João I, quando, a partir de 1387, a Coroa se apropriou das sisas concelhias, sendo que, daí 19 O primeiro destes serviços feitos pelo concelho de Lisboa à Coroa data de 1308. Não se sabe de que forma foi arrecadado, pois as fontes não o revelam. Livro dos Pregos: estudo introdutório, transcrição paleográfica, sumários e índices – VIEGAS. Inês Morais, GOMES, Marta (coord.), MARTINS, Miguel Gomes, LOUREIRO, Sara de Menezes (trans.), Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 2016, doc. 26, p. 85. Ainda no século XIV, no período precedente à crise dinástica de 1383-1385, conhecem-se outros serviços feitos pelo concelho, sob pretextos diversos. Livro I de Místicos de Reis, Livro II dos Reis D. Dinis, D. Afonso IV, D. Pedro – Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 1947, doc. 3, pp. 13-15 (1336); Lisboa, Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Histórico (AML-AH), Livro 1º de Serviços a El-Rei, doc. 2 (1357); Livro dos Pregos…”, doc. 71, p. 148 (1373); Lisboa, Torre do Tombo (TT), Chancelaria de D. Fernando, liv. 4, fls. 7v. e 19 (1376), fls. 68v. (1383). 20 HENRIQUES, António Castro – State Finance, War and Redistribution in Portugal, 1249-1527. York: Universidade de York, 2008. Tese de doutoramento, p. 207. 21 De facto, no século XV, para além de participar nos pedidos régios, o concelho de Lisboa contribuiu igualmente com serviços: em 1427, para o casamento de D. Duarte com D. Isabel de Aragão; em data incerta, mas anterior a 1433, para o câmbio do infante D. Pedro; em 1436, por ocasião da primeira visita do príncipe D. Afonso a Lisboa; e, por fim, em 1476, para pagar o soldo dos contingentes concelhios que se encontravam em Castela. Chancelarias portuguesas: D. João I. Organização e revisão geral de João Alves Dias. Lisboa: Centro de Estudos Históricos - Universidade Nova de Lisboa, 2006, vol. 4, t. 2, doc. 671, p. 159 (1427). Lisboa, AML-AH, Livro 1º de Serviços a El-Rei, doc. 8 (1433), 9 (1436). Livro dos Pregos…”, doc. 413, 414, 415, pp. 538-540 (1476). 22 Iria Gonçalves considerou que o primeiro pedido régio foi votado nas Cortes de Guimarães de 1308. GONÇALVES, Iria – Pedidos e empréstimos públicos em Portugal durante a Idade Média. Lisboa: Centro de Estudos Fiscais da Direção Geral das Contribuições e Impostos – Ministério das Finanças, 1964, p. 39, 131132. Todavia, parece-nos que, na verdade, nesta reunião de Cortes não foi acordada a outorga de um pedido, mas sim de serviços, oferecidos por vários concelhos, designadamente o de Lisboa. Na nossa opinião, a origem dos pedidos régios situa-se no subsídio outorgado pelos povos a D. João I, nas Cortes de Coimbra de 1385, pois foi nesta ocasião que, pela primeira vez, foi votado, em Cortes, um subsídio geral, sob um pretexto diverso da conservação da moeda. Sobre as deliberações das Cortes de Coimbra de 1385, veja-se: CAETANO, Marcelo – As Cortes de 1385. T. 5, vol. 2. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1951. Separata da Revista Portuguesa de História, p. 98. 23 Livro I de Místicos de Reis, Livro II dos Reis D. Dinis, D. Afonso IV, D. Pedro…, doc. 6, pp. 23-25 (1355); Lisboa, AML-AH, Livro 1º de Serviços a el-Rei, doc. 2 (1356); Livro I de Místicos, Livro II d’el Rei D. Fernando – Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 1949, doc. 5, pp. 33-37 (1362). Lisboa, AML-AH, Livro 1º de Sentenças, doc. 18 (1381). NA LISBOA DE D. JOÃO I (1385-1433): FISCALIDADE R ÉGIA E ABASTECIMENTO 517 em diante, o pagamento dos serviços ficou subordinado ao lançamento de talhas e fintas. 3. A Crise de 1383-1385. O quadro fiscal régio aqui apresentado sofreu, todavia, alterações significativas durante o Interregno e ao longo do reinado de D. João I. De facto, no contexto da crise dinástica, desencadeada pela morte de D. Fernando, a cidade de Lisboa desempenhou um papel fundamental na afirmação da dinastia de Avis, tendo-se pronunciado declaradamente contra a regência da Rainha D. Leonor e recebido D. João, Mestre de Avis, como regente e defensor do reino, incentivando outros concelhos a proceder de igual modo24. Para além do seu inestimável apoio, Lisboa sofreu duramente os efeitos da guerra contra Castela, tendo, em Fevereiro de 1384, sofrido um ataque de uma frota castelhana e, entre Maio e Setembro de 1384, estado cercada pelas forças de João I de Castela25, sendo que, durante este período, a população lisboeta viveu uma situação de fome generalizada, devido à destabilização do sistema produtivo e à interrupção dos circuitos normais de abastecimento da cidade26. Com efeito, o Mestre de Avis, ao longo do ano de 1384, julgou necessário, por um lado, recompensar o concelho pelo apoio e serviços prestados e assegurar a sua colaboração em situações futuras e, por outro lado, promover o aprovisionamento da cidade, tendo, para o efeito, atribuído diversos benefícios fiscais. Desde logo, em Abril de 1384, na sequência do referido ataque da frota castelhana e na preparação do cerco que se avizinhava, D. João isentou os moradores de Lisboa da portagem, usagem e costumagem a satisfazer quer pelas mercadorias trazidas de outras partes do reino à cidade, quer pelas mercadorias daí exportadas27. À data, os vizinhos de Lisboa estavam já dispensados do pagamento destes direitos pelos produtos trazidos à cidade para consumo próprio, mediante o pagamento anual de 1 soldo à Portagem28. Todavia, mercê deste privilégio fiscal, a partir de 1384, a isenção estendeu-se às mercadorias importadas para efeitos comerciais. Depois, em Outubro de 1384, após o cerco ter sido levantado, o Mestre de Avis concedeu novos privilégios, tendo isentado os moradores de Lisboa do pagamento de portagens, usagens e costumagens em qualquer parte do reino, bem como 24 COELHO, Maria Helena da Cruz – D. João I: o que re-colheu Boa Memória. Lisboa: Temas e Debates, 2008, pp. 46-50. 25 COELHO, Maria Helena da Cruz – D. João I…, pp. 57-58, 63-69. MARTINS, Miguel Gomes – Lisboa e a Guerra (1367-1411). Lisboa: Livros Horizonte, 2001, pp. 70-73. 26 MARTINS, Miguel Gomes – “Abastecer as cidades em contexto de guerra: o cerco de Lisboa em 1384”. In ARIZAGA BOLUMBURU, Beatriz; SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús Ángel (coord.) – Alimentar la ciudad en la Edad Media. Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 2009, pp. 140-145. 27 Livro dos Pregos…, doc. 133, pp. 261-262. 28 Lisboa, TT, Núcleo Antigo, 357, fl. 30v. (Foral da Portagem de Lisboa). 518 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL dispensado da satisfação da alcavala, da mealharia e da açougagem todos aqueles que trouxessem à cidade pão, carne e quaisquer outros mantimentos29, um privilégio que visava evidentemente atrair os produtores e mercadores à cidade, tendo em vista a satisfação das carências alimentares de uma população que estivera submetida a um prolongado cerco30. Uma vez que a cobrança de alguns dos referidos direitos quitados por D. João tinha lugar nos paços das carniçarias, das fangas da farinha e do trigo, que pertenciam à Coroa, o Mestre de Avis, a pedido do concelho, doou-lhe ainda estes equipamentos, juntamente com os direitos que aí se arrecadavam31. Por fim, ainda em Outubro de 1384, D. João abdicou da cobrança da jugada, da relegagem, do salaio, do mordomado, da anadaria, do direito dos lombos, da açougagem, da mealharia e da alcavala em Lisboa32. Deste modo, o Mestre de Avis confirmou e alargou o âmbito dos privilégios anteriormente outorgados, tendo produzido uma reordenação da fiscalidade aplicada pelo poder régio nesta cidade, por via da desconstrução do complexo aparelho fiscal que onerava o comércio urbano, subjacente à cobrança da açougagem e da fangagem, que incidiam sobre a utilização dos açougues e das fangas controlados pela Coroa33; à arrecadação da relegagem, da alcavala e do salaio, que recaíam sobre a transação de certos produtos, tais como o vinho, a carne, os cereais e o pão34; à aplicação do julgado das vacas, parte integrante do mordomado, e do direito do lombos, que oneravam o abate e o talho de vacas, bois e porcos no interior da cidade e respetivo alfoz35; bem como o julgado das barcas, que também integrava o mordomado, incidindo, por seu turno, sobre o peixe trazido em barcas de pesca à cidade para ser vendido no açougue36. Livro dos Pregos…, doc. 134, pp. 261-262. MARTINS, Miguel Gomes – “Abastecer as cidades…”, p. 139. 31 Livro dos Pregos…, doc. 128, p. 240. 32 Chancelarias portuguesas: D. João I…, vol. 1, t. 1 (2004), doc. 420, pp. 219-221. 33 A açougagem foi objeto de um primeiro enquadramento aquando a outorga do foral de 1179, correspondendo então à satisfação de 1 dinheiro por cada vaca, zebro, veado e peixe vendido nos açougues. É provável que, posteriormente, se tenha procedido à atualização das taxas aplicadas às açougagem. Todavia, o registo dessa atualização não chegou até nós. “Foral de Lisboa de 1179…”, pp. 116-117. Por seu turno, a fangagem consistia no pagamento de 1 dinheiro por cada cesto de pão vendido nas fangas. Cortes Portuguesas, reinado de D. Afonso IV (1325-57). Ed. de A. H. Oliveira Marques. Lisboa: Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, 1982, pp. 80-81 (artigo 65º). 34 A relegagem configurava um imposto de 1 almude por cada carga cavalar de vinho vendido ao tempo do relego, isto é, o monopólio régio da venda do vinho. “Foral de Lisboa de 1179…, p. 115. A alcavala correspondia ao pagamento de 3 dinheiros, pelas cabeças de vaca e de boi, e de 1 dinheiro pelas cabeças de carneiro, ovelha, cabra e porco vendidas na cidade. Lisboa, TT, Núcleo Antigo, 357, fl. 14v. A alcavala incidia também sobre a venda de cereais, obrigando à entrega de 3 dinheiros por cada carga de besta maior e 3 mealhas por cada carga de besta pequena transacionada nas fangas da farinha e do trigo. Lisboa, TT, Núcleo Antigo, 357, fl. 29v. Por seu turno, o salaio consistia no pagamento de 1 de cada 30 pães produzidos, ou de 1 pão por cada 30 soldos de pães vendidos. “Foral de Lisboa de 1179…, p. 121; Lisboa, TT, Núcleo Antigo, 357, fl. 35. 35 O julgado das vacas correspondia ao pagamento de 5 dinheiros por cada vaca e 3 dinheiros por cada boi abatido e talhado na cidade. Livro dos Pregos…, doc. 156, p. 277. Por seu turno, o direito dos lombos configurava um encargo de 2 soldos e meio por cada porco talhado para efeitos comerciais. Cortes Portuguesas, reinado de D. Afonso IV…, p. 67 (artigo 20º). 36 O julgado das barcas constituía um imposto de 2 dinheiros pelo pescado trazido em barcas. Livro dos 29 30 NA LISBOA DE D. JOÃO I (1385-1433): FISCALIDADE R ÉGIA E ABASTECIMENTO 519 Não obstante, embora D. João I tenha abdicado dos direitos fiscais arrecadados nos espaços entretanto doados ao concelho, afigura-se provável que a edilidade tenha procedido ao aproveitamento fiscal desses equipamentos, que, sob a jurisdição do concelho, não se terão convertido em espaços francos. A outorga dos referidos privilégios teve lugar quando D. João era ainda regente do reino e, portanto, quando nas Cortes de Coimbra de 1385, foi aclamado rei de Portugal e viu a sua situação legitimada, uma das prioridades do concelho foi obter a ratificação desses privilégios, bem como a confirmação dos privilégios, graças e mercês de natureza diversa outorgados outrossim pelo Mestre de Avis37. Todavia, nem todos os benefícios fiscais confirmados por D. João I, nessa reunião de Cortes, foram, efetivamente, respeitados. De facto, em 1390 e em 1394, o concelho de Lisboa agravou-se ao monarca por razão dos oficiais régios, designadamente o almoxarife dos celeiros e o das ovenças, não terem respeitado a isenção do mordomado38, da jugada39 e do direito dos lombos40. Não obstante, em resposta aos agravos do concelho, D. João I reiterou os seus privilégios fiscais e, mais tarde, em 1415, voltou a confirmar todos os privilégios concedidos durante o Interregno41. Graças à prodigalidade régia, Lisboa viu a sua posição de principal cidade do reino consolidada, achando-se, em definitivo, dotada dos maiores e melhores privilégios, e, de resto, embora as suas dificuldades de abastecimento se tenham prolongado para lá do levantamento do cerco, em Setembro de 138442, os benefícios fiscais concedidos pelo Mestre contribuíram para a recuperação de Lisboa, na sequência daquele que foi um período de intensa atividade militar, de grandes perdas humanas e de forte destruição material, marcado outrossim pela escassez de bens alimentares e pela fome. 4. As inovações fiscais de D. João I. A reordenação do quadro fiscal estabelecido pela Coroa em Lisboa no contexto da crise dinástica de 1383-1385 foi acompanhada, no reinado de D. João I, pela adoção de novas soluções fiscais de caráter geral, cuja aplicação configurou a emergência de uma fiscalidade de tipo estatal, traduzida na generalização dos já referidos pedidos régios, a partir de 1385; na conversão das sisas num imposto régio ordinário, a partir de 1387; e na instituição da dízima nova do pescado em 1420. Uma vez que as sisas Pregos…, doc. 156, p. 277. 37 Livro dos Pregos…, doc. 129, pp. 240-248. 38 Livro dos Pregos…, doc. 156, p. 277. 39 Livro dos Pregos…, doc. 198, p. 313. 40 Livro dos Pregos…, doc. 197, p. 311-313. 41 Livro dos Pregos…, doc. 280, pp. 372-373. 42 MARTINS, Miguel Gomes – “Abastecer as cidades…”, p. 146. 520 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL incidiam sobre a compra e venda de mercadorias e a dízima nova do pescado recaía sobre a atividade piscatória e o trânsito do pescado, a adoção destas novas soluções fiscais, - apenas com a exceção dos pedidos régios, que incidiam sobre a propriedade individual das pessoas tributáveis -, produziu uma nova articulação entre a fiscalidade régia e o abastecimento urbano. Na verdade, quando, em 1387, os concelhos, os fidalgos e os prelados, reunidos em Cortes, outorgaram a D. João I as sisas para financiar a guerra contra Castela43, a arrecadação deste imposto indireto em Lisboa não constituía uma novidade, uma vez que, conforme tivemos já oportunidade de referir, desde, pelo menos, 1336, que o concelho procedia ao lançamento de sisas, quer para satisfazer serviços oferecidos à Coroa, quer para solver as despesas da edilidade. Todavia, até 1387, as sisas conservaram o seu caráter de imposto extraordinário do sistema fiscal concelhio, apesar de, entre 1373 e 1383, se ter procedido à sua cobrança de forma praticamente ininterrupta, e de, em 1382, as sisas terem sido objeto de uma apropriação temporária por parte de D. Fernando44. Só a partir de 1387, é que as sisas se converteram num encargo que a população de Lisboa tinha de suportar de forma contínua, pois, embora a outorga das sisas feita em 1387 fosse válida por apenas um ano, D. João I, sob o pretexto de continuar a guerra contra Castela, obteve novas outorgas e sucessivas prorrogações e, num momento em que não foi possível precisar, as sisas converteram-se num ingresso ordinário da Coroa, sendo que, quando em 1402, Portugal e Castela acordaram tréguas por 10 anos, as sisas eram já um imposto ordinário, cuja arrecadação se encontrava sob a alçada do poder régio45. Deste modo, a partir de 1387, todas as transações (compras, vendas e trocas) ficaram sujeitas ao pagamento das sisas, das quais ninguém era isento46. Por seu turno, a institucionalização da dízima nova do pescado, em Janeiro de 1420, teve lugar num contexto já distinto, tendo-se destinado a dar resposta às dificuldades sentidas pela Coroa em recrutar galeotes para servir nas galés régias47, GONÇALVES, Iria – Pedidos e Empréstimos Públicos…, doc. 3, pp. 213-215. Lisboa, TT, Chancelaria de D. Fernando, liv. 3, fl. 21v-22. 45 De acordo com Fernão Lopes, por ocasião da assinatura destas tréguas, o conselho régio reuniuse para discutir o estado da fazenda real. A partir da narrativa do cronista, sobressai o facto de já então as sisas serem encaradas como um ingresso ordinário da Coroa. LOPES, Fernão – Crónica de D. João I. Porto: Civilização, 1994, vol. 2, p. 457. 46 De facto, ninguém era isento das sisas, às quais até a família real estava obrigada pelas compras e vendas feitas por si ou em seu nome, um princípio que surgiu, pela primeira vez, consagrado no regimento das sisas, elaborado no ajuntamento de Coimbra de Maio de 1387. GONÇALVES, Iria – Pedidos e Empréstimos Públicos…, doc. 3, pp. 214. 47 Os galeotes eram recrutados entre os homens do mar (pescadores e barqueiros), depois arrolados em conjuntos de 20 (vintenas) pelos vintaneiros. Os problemas subjacentes ao seu recrutamento eram numerosos: recrutavam-se pessoas demasiado novas ou demasiado velhas, que não estavam em condições de servir nas galés e, muitas vezes, pereciam no mar; uma vez que o recrutamento era forçado e acarretava grandes riscos, muitos procuraram eximir-se dele, dando dinheiro a pessoas que fossem em seu lugar ou até fugindo, sendo que, neste caso, os seus bens eram apreendidos e depois vendidos pelos oficiais régios; de resto, não havia pessoas suficientes para armar mais do que 4 ou 5 galés. Lisboa, TT, Chancelaria de D. João I, liv. 5, fl. 110. 43 44 NA LISBOA DE D. JOÃO I (1385-1433): FISCALIDADE R ÉGIA E ABASTECIMENTO 521 um serviço pessoal do qual os homens do mar (pescadores, barqueiros, etc.) se podiam eximir, mediante o pagamento deste novo imposto, que consistia em pagar a dízima de todo o peixe capturado em contexto fluvial e marítimo, sendo que, onde era costume pagar-se a dízima do pescado, pagar-se-ia, daí em diante, duas dízimas, ou seja, o quinto do pescado (20% da fauna piscícola capturada)48. Assim, em Lisboa, onde, desde o século XII, os pescadores pagavam a dízima do pescado, passou a satisfazer-se o quinto. Todavia, a dízima nova do pescado depressa ultrapassou o seu âmbito original de aplicação. De facto, logo em Fevereiro de 1420, D. João I respondeu a uma série de dúvidas que lhe foram colocadas pelos oficiais da Portagem de Lisboa, -isto é, a instituição fiscal responsável nesta cidade pela arrecadação desde novo imposto-, e, a partir das suas respostas, ficou estabelecido que o quinto do pescado a satisfazer pelo peixe capturado não era acumulável com a dízima que se pagava de portagem pela entrada e saída do peixe na cidade, de maneira que os pescadores que tivessem solvido duas dízimas pelo peixe por si apanhado, não tinham de pagar uma terceira dízima se o levassem para o exterior da cidade, desde que, claro está, apresentassem um alvará comprovativo segundo o qual tinham pago o quinto do pescado49. Por outro lado, os estrangeiros que em Portugal comprassem peixe para exportar estavam obrigados a pagar duas dízimas, em vez de apenas uma dízima de portagem como até então se fazia50. Deste modo, a dízima nova do pescado ultrapassou o seu âmbito original de aplicação quer ao nível das pessoas tributadas, quer ao nível do objeto taxado, pois, em vez de onerar apenas os homens do mar que se queriam eximir do serviço de galés, pesava também sobre os estrangeiros; e em vez de incidir exclusivamente sobre a pesca, recaía também sobre a exportação do pescado. 5. A articulação entre o sistema fiscal e o abastecimento urbano. Com base no que foi referido anteriormente, fica claro que, por um lado, as referidas isenções fiscais produziram uma reordenação do quadro da fiscalidade régia aplicado em Lisboa, de maneira que o aparelho fiscal que incidia sobre o abastecimento da cidade ficou, entre 1384 e 1387, circunscrito às portagens, costumagens, dízima alfandegária e dízima do pescado. Por outro lado, as inovações fiscais de D. João I reforçaram a fiscalidade régia sobre abastecimento urbano, onerado pelas sisas gerais de forma permanente a partir de 1387, e pela dízima nova do pescado, a partir de 1420. Lisboa, TT, Chancelaria de D. João I, liv. 5, fl. 110. MARQUES, João Martins da Silva – Descobrimentos Portugueses (edição comemorativa dos descobrimentos portugueses). Lisboa: Instituto Nacional de Investigação científica, 1988, vol. 1 – Suplemento, doc. 205-206, pp. 323-324. 50 MARQUES, João Martins da Silva – Descobrimentos Portugueses..., p. 324. 48 49 522 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL A arrecadação destes encargos fiscais fazia-se de forma articulada e bem definida. Desde logo, o desembargo de todos os produtos provenientes do estrangeiro, por via marítima, pertencia à Alfândega de Lisboa, onde tinha lugar a arrecadação da dízima alfandegária, da qual, porém, os mercadores que tivessem despachado as suas mercadorias noutra alfândega do país, antes de as ter trazido a Lisboa, estavam dispensados, mediante a apresentação de um alvará comprovativo de como o seu pagamento já tinha sido efetuado. Por outro lado, os artigos de outras partes do reino, ao dar entrada em Lisboa, eram desembargados na Portagem, onde se procedia à cobrança das portagens e costumagens. As costumagens correspondiam a uma taxa ad valorem única de 4 dinheiros do maravedi, que incidia, exclusivamente, sobre os artigos de marçaria, especiaria, latoaria, ouro fiado, prata, ferro, pez e aljôfar51, enquanto as portagens recaíam sobre as restantes mercadorias, assumindo a forma de taxas ad ponderum e ad valorem, em função da proveniência do produto e da via de acesso à cidade. Deste modo, considerando o exemplo do trigo, – que, de todos os cereais panificáveis, era o mais produzido e consumido em todo reino –, verifica-se que, de acordo com o Foral da Portagem de Lisboa, vigente ao tempo de D. João I, pelo trigo que vinha de outras partes do reino e dava entrada em Lisboa, por via fluvial, pagava-se de portagem 1 de cada 30 alqueires52 e, por via marítima, pagava-se a dízima53. Porém, se o trigo viesse de Almada ou de Coina, pagava-se, por argã (8 alqueires), 4 dinheiros e, por costal (4 alqueires), 2 dinheiros54; se viesse de Alcácer do Sal, pagava-se, por argã, 18 dinheiros e, por costal, 9 dinheiros55; e, se viesse de Odemira ou de Sines, pagava-se de portagem 1 de cada 20 alqueires56. Para além destes direitos de portagem propriamente ditos, que oneravam o trânsito interno de mercadorias, à Portagem de Lisboa pertenciam igualmente outros direitos, designadamente a dízima do pescado e a dízima nova do pescado. Ao entrar em circulação no mercado da cidade, todos os produtos transacionados ficavam sujeitos à satisfação das sisas, um encargo suportado a meias por ambas as partes envolvidas na transação. Com efeito, pelo mesmo artigo, podiam cobrar-se sisas mais do que uma vez, consoante o número de vezes que fosse vendido, comprado ou trocado. Dada a multiplicidade de espaços onde, em Lisboa, se realizavam operações comerciais (açougues, fangas, carniçarias, tendas, lojas, etc.), a arrecadação das sisas dependia da colaboração dos próprios contribuintes, aos quais cabia a obrigação de, no prazo de três dias, declarar todas as transações realizadas Lisboa, TT, Chancelaria de D. Fernando, liv. 1, fls. 84v.-86. Lisboa, TT, Núcleo Antigo, 357, fls. 17-20. Lisboa, TT, Núcleo Antigo, 357, fl. 26v. 53 Lisboa, TT, Núcleo Antigo, 357, fl. 5. 54 Lisboa, TT, Núcleo Antigo, 357, fl. 14. 55 Lisboa, TT, Núcleo Antigo, 357, fl. 3. 56 Lisboa, TT, Núcleo Antigo, 357, f. 4. 51 52 NA LISBOA DE D. JOÃO I (1385-1433): FISCALIDADE R ÉGIA E ABASTECIMENTO 523 junto dos rendeiros e escrivães das sisas, sob pena de extravio da mercadoria57. Para além disso, em qualquer transação entre vizinhos do mesmo concelho, cabia ao vendedor arrecadar a sisa de ambas as partes e depois, no prazo de dez dias, dirigirse aos siseiros para entregar o dinheiro arrecadado, sob pena de pagar o dobro da sisa58. Numa transação entre um vizinho e um não-vizinho a responsabilidade de arrecadar a sisa recaía sobre o primeiro59. Não obstante, para além de impor pesadas penas sobre o incumprimento dos referidos prazos, a arrecadação das sisas era assegurada pelos siseiros através de uma atenta ação de vigilância sobre a atividade comercial e sobre o trânsito de mercadorias, assegurada pela consulta dos livros dos tabeliães, onde se fazia o registo de negócios realizados no concelho60; pelo controlo de todas as mercadorias que davam entrada e saída na cidade61; e pela realização de varejamentos, isto é, a inspeção trianual das mercadorias62. Ao longo do reinado de D. João I, produziram-se, em Cortes, diversos regimentos referentes às sisas, que, sucessivamente, atualizaram as taxas que lhes estavam adscritas63. Deste modo, considerando, de novo, o exemplo do trigo, verifica-se que, em 1387, a taxa adscrita às sisas pela transação do trigo era de 8 dinheiros por libra64, o que correspondia a um acréscimo de 3,3% sobre cada transação, tendo em conta que 1 libra correspondia a 240 dinheiros65. A partir de 1398, passou a cobrar-se 2 soldos por libra66, ou seja, um acréscimo de 10% sobre cada transação, considerando que 1 libra equivalia a 20 soldos67. Assim, tendo em conta a evolução do preço do alqueire de trigo, em Lisboa, no período aqui considerado68, verifica-se que, por 1 alqueire de trigo, se pagava de sisas, 20 dinheiros (1,6 soldos), em 1389; 1.400 soldos (2 reais), entre 1419-1425; e, por fim, 1.120 soldos (1,6 reais), em 143269. 57 GONÇALVES, Iria – Pedidos e Empréstimos Públicos…, doc. 3, pp. 214 (1387). Lisboa, Torre do Tombo, Chancelaria de D. João I, liv. 5, fl. 50v. (1398), fl. 116v. (1418). 58 GONÇALVES, Iria – Pedidos e Empréstimos Públicos…, doc. 3, p. 213 (1387). Lisboa, Torre do Tombo, Chancelaria de D. João I, liv. 5, fls. 51v-52 (1398), fl. 118v. (1418). 59 GONÇALVES, Iria – Pedidos e Empréstimos Públicos…, doc. 3, pp. 213 (1387). Lisboa, Torre do Tombo, Chancelaria de D. João I, liv. 5, fl. 51v. (1398), fólio 117v. (1418). 60 GONÇALVES, Iria – Pedidos e Empréstimos Públicos…, doc. 3, p. 214 (1387). Lisboa, Torre do Tombo, Chancelaria de D. João I, liv. 5, f. 51 (1398), fl. 117 (1418). 61 Lisboa, TT, Chancelaria de D. João I, liv. 5, fl. 51 (1398), fl. 117-117v. (1418). 62 Lisboa, TT, Chancelaria de D. João I, liv. 5, fl. 51 (1398), fl. 117 (1418). 63 No reinado de D. João I foram elaborados, pelo menos, quatro regimentos das sisas, em 1387, 1390, 1398 e 1418. Todavia, o de 1390 não chegou até nós. 64 GONÇALVES, Iria – Pedidos e Empréstimos Públicos…, doc. 3, p. 213. 65 FERRO, Maria José Pimenta – Estudos de História Monetária Portuguesa (1383-1438). Lisboa: [s. n.], 1974, p. 39. 66 Lisboa, TT, Chancelaria de D. João I, liv. 5, fl. 50v. (1398), fl. 116v. (1418). 67 FERRO, Maria José Pimenta – Estudos de História Monetária…, p. 39. 68 50 soldos, em 1389; 20 reais, entre 1419-1425; e 16 reais, em 1432. FERREIRA, Sérgio Matos – Preços, Salários e Níveis de Vida em Portugal na baixa Idade Média. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2014. Tese de doutoramento, p. 252. 69 1 soldo = 12 dinheiros; 1 libra = 20 soldos = 240 dinheiros; 1 real branco = 35 libras = 700 soldos. FERRO, Maria José Pimenta – Estudos de História Monetária…, p. 39. 524 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL 6. As condicionantes do abastecimento. A existência de um aparelho fiscal que onerava o abastecimento de Lisboa não implicava, todavia, que o fisco régio fosse indiferente aos imperativos do aprovisionamento urbano, que foi, aliás, uma das preocupações da Coroa e dos dirigentes locais, na justa medida em que a satisfação das necessidades de consumo de Lisboa era indispensável à manutenção da ordem interna da cidade e, por extensão, do reino. Evidência disso é o facto de D. João I ter concedido diversos privilégios de isenção fiscal a algumas vilas e cidades do reino (Alcácer do Sal, Almada, Cascais, Coina, Lourinhã, Palmela, Santarém, Setúbal e Sintra; Abrantes, Aveiro, Lagos, Odemira e Porto), assim como a regiões e reinos estrangeiros (Andaluzia, Bretanha, Inglaterra e Flandres), sob a condição de que trouxessem cereais a Lisboa70; bem como o facto de D. João I, ao longo do seu reinado, ter atribuído, em diversas ocasiões, isenções de caráter temporário da dízima e/ou das sisas sobre certos produtos alimentares, designadamente os cereais, os legumes e o peixe. De facto, em 1397, ainda no contexto da guerra contra Castela, D. João I, face à escassez de géneros em Lisboa, isentou da dízima todos os cereais trazidos à cidade, quer de outras partes do reino, quer de fora, conforme solicitado pelo concelho71. A isenção era válida até ao final da guerra, porém, - uma vez que, entretanto, o concelho fizera acordos com alguns mercadores para que trouxessem cereais a Lisboa-, a pedido da edilidade, D. João I comprometeu-se a manter a isenção da dízima para esses mercadores, ainda que a paz com Castela fosse assinada72, o que, todavia, se verificou apenas em 1411. Após a guerra, em 1412, Lisboa achou-se, de novo, confrontada com a falta de cereais e D. João I, a pedido do concelho, isentou da dízima os cereais que, até 1413, fossem trazidos de fora do reino à cidade73. A isenção era, portanto, válida por apenas um ano, todavia, em Julho de 1412, o rei prolongou-a até Janeiro de 141474, e em Agosto de 1412, estendeu-a igualmente aos cereais que, de outras partes do reino, fossem trazidos por via marítima à cidade75. Em acréscimo, em Outubro de 1412, isentou das sisas todos os legumes importados da Bretanha, sendo que a isenção se aplicava apenas ao vendedor e, portanto, o comprador continuava obrigado à sisa76. Em Agosto de 1413, a pedido do concelho, D. João I prolongou todas as referidas isenções até 141577. ANDRADE, Amélia Aguiar; MIRANDA, Flávio – “Lisbon: Trade, Urban Power…”, p. 340. Livro dos Pregos…, doc. 220, p. 334. 72 Livro dos Pregos…, doc. 221, p. 334. 73 Lisboa, AML-AH, Livro 1º do provimento do pão, doc. 17. 74 Lisboa, AML-AH, Livro 1º do provimento do pão, doc. 17. 75 Lisboa, AML-AH, Livro 1º do provimento do pão, doc. 18. 76 Lisboa, TT, Chancelaria de D. João I, liv. 5, fl. 60v. 77 Lisboa, AML-AH, Livro 1º do provimento do pão, doc. 3. 70 71 NA LISBOA DE D. JOÃO I (1385-1433): FISCALIDADE R ÉGIA E ABASTECIMENTO 525 Mais tarde, em 1422, Lisboa enfrentava, de novo, dificuldades e, por isso, D. João I, voltou a isentar da dízima os cereais importados do estrangeiro, tendo depois, ainda em 1422, alargado a isenção à sisa sobre a venda de cereais78. Ambas as isenções eram válidas até Setembro de 1423, tendo sido prolongadas por mais um ano, até Setembro de 142479, e, depois, até Setembro 142580. Por fim, em 1426, as dificuldades persistiam, e, por isso, o concelho preparava-se para comprar cereais em Inglaterra e, de modo a viabilizar o negócio, requereu ao rei que isentasse da sisa tanto os compradores, como os vendedores de cereais, ao que D. João I, mais uma vez, acedeu, tendo suspendido a cobrança da sisa do pão até Outubro de 142781. A escassez de cereais e de legumes não foi, todavia, o único dos problemas de abastecimento com os quais Lisboa se deparou neste período. Aliás, em 1431, devido à falta de sardinhas, D. João I concordou em isentar da dízima nova do pescado o peixe importado do estrangeiro. Uma isenção válida apenas por um ano, até Fevereiro de 143282. Assim, verifica-se que no final do século XIV e nas décadas iniciais da centúria seguinte as situações de escassez de víveres em Lisboa foram frequentes, sendo que, embora, ao tempo de D. João I, a ocorrência de carestias não constituísse uma novidade83, foi no seu reinado que se aplicou e generalizou a prática de atribuir benefícios fiscais de caráter temporário, - válidos, normalmente, por 1 ano, conquanto sujeitos a prorrogações-, em articulação com as necessidade de aprovisionamento de Lisboa, uma cidade difícil de abastecer, devido ao seu peso demográfico, e, por isso, vulnerável à ocorrência de maus anos agrícolas e à destabilização dos seus circuitos normais de abastecimento. 7. Considerações finais. O reinado de D. João I configurou, portanto, um período decisivo para a evolução da fiscalidade régia em Lisboa, devido, por um lado, às isenções fiscais concedidas pelo Mestre de Avis durante o Interregno; e, por outro lado, às inovações fiscais de D. João I, que, no seu conjunto, produziram uma reordenação do quadro fiscal aplicado pelo poder régio nesta cidade e, por extensão, uma nova articulação entre o fisco régio e aprovisionamento deste núcleo urbano. Por outro lado, quer no contexto da crise de 1383-1385, quer no decurso da governação deste monarca, Lisboa enfrentou, por Lisboa, AML-AH, Livro 1º do provimento do pão, doc. 6. Lisboa, AML-AH, Livro 1º do provimento do pão, doc. 7. 80 Lisboa, AML-AH, Livro 1º do provimento do pão, doc. 9. 81 Lisboa, AML-AH, Livro 1º do provimento do pão, doc. 11. 82 Livro dos Pregos…, doc. 301, p. 396. 83 A. H. de Oliveira Marques assinalou a ocorrência de crises cerealíferas em 1355-56, 1364-1366, 137172 e 1374-76. Vide MARQUES, A. H. de Oliveira – Introdução à História da Agricultura em Portugal: a questão cerealífera durante a Idade Média. 3ª ed. Lisboa: Edições Comos, 1978, pp. 257-260. 78 79 526 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL diversas vezes, situações de escassez de víveres, tendo-se, nestas ocasiões, colocado a fiscalidade régia ao serviço do abastecimento da cidade, através da concessão de privilégios fiscais, alguns de caráter permanente, e outros temporários, válidos por curtos períodos de tempo, embora sujeitos a prorrogações. El Diezmo de los “Trigos” del Cabildo Catedralicio del Reino de Mallorca: Estructura Y Recaudación (1400-1420) Maria del Camí Dols Martorell1 Resumen El propósito de la investigación es demostrar la importancia del diezmo de los cereales dentro del conjunto de las finanzas catedralicias. A través de un análisis detallado de los legajos referentes a la serie documental de Mensa Capitular, custodiados en el Archivo Capitular, descifraremos la estructura, el funcionamiento y los beneficios que reportaba este impuesto al Cabildo mallorquín y, finalmente, evidenciaremos que el diezmo de los cereales era también fuente de abastecimiento en la “Ciutat” de Mallorca a lo largo de la época medieval. Palabras clave Diezmo; Cereales; Capítulo de la Catedral de Mallorca; Beneficios; Abastecimiento. The Ten of the “Wheats” of the Cathedral Cabildo of the Kingdom of Mallorca: Structure and Collection (1400-1420) Abstract The purpose of the research is to demonstrate the importance of the tithe of cereals within the set of cathedral finances. Through a detailed analysis of the files referring to the documentary series of Mensa Capitular, kept in the Chapter Archive, we will decipher the structure, operation and benefits that this tax 1 Universitat de les Illes Balears. 528 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL brought to the Majorcan Council and, finally, we will show that the tithe of the Cereals was also a source of supply in the “Ciutat” of Mallorca throughout medieval times. Keywords Tithe; Cereals; Chapter of the Cathedral of Mallorca; Catering; Benefits. 1. Introducción. El diezmo de los cereales, que a continuación se analizará, fue uno de los tributos más importantes del que se servía la Iglesia de Mallorca para engrosar sus arcas, tributo que gozaba de un complejo y configurado sistema de estructuración y funcionamiento. El presente estudio se enmarca cronológicamente entre los años 1400 y 1420, periodo donde la situación político-económica del Reino de Mallorca no era demasiado alentadora. Por un lado, existía una relación tensa entre el poder terrenal y el espiritual, liderado este último por el obispo D. Lluís de Prades i Arenós2. Por otro lado, a esta tesitura de malestar político se le sumaría la desfavorable situación económica. Las producciones agrícolas, durante este periodo, no eran suficientes para abastecer a toda la población, aunque algunos propietarios almacenaban parte de la producción: unos, con fines especulativos; y, otros, en cambio, para aligerar en lo posible la pesada carga del pago del diezmo sobre el rendimiento deficitario. En los campos de cultivo, al igual que en el resto de las ciudades europeas, se practicaba una agricultura de subsistencia que, unida a las inclemencias meteorológicas y al uso de utensilios anticuados, la abocaban a continuas crisis productivas, conduciendo a la consiguiente crisis de subsistencia y, todo ello, a crisis demográficas por la falta de alimentos. La solución a la que tuvieron que recurrir las autoridades del Reino de Mallorca para hacer frente al problema de abastecimiento básico fue la importación de víveres, fundamentalmente, cereales. Ante la difícil situación del campo mallorquín, el ciclo natural de los productos agrarios seguía su curso y, aunque la producción fuera mísera y deficiente, los diezmos, y entre ellos el de los cereales, se seguían cobrando de manera sistemática, llegando a recaudar sustanciosas sumas de dinero, tanto por parte de la Procuración 2 SASTRE MOLL, J. – La Seu de Mallorca. La prelatura de D. Lluís de Prades i Arenós (1390-1430). Palma: Consell de Mallorca, 2007. EL DIEZMO DE LOS “TRIGOS” DEL CABILDO CATEDR ALICIO DEL R EINO DE MALLORCA 529 Real como por la parte del Cabildo catedralicio, a través de su Procurador General3. En este contexto, la presente investigación girará en torno a tres ejes principales: la estructura y funcionamiento de la recaudación del diezmo de los “trigos”4; el desarrollo del mercado de cereales derivado de este diezmo, los precios de venta y cómo, a la vez, dicho mercado serviría como fuente de abastecimiento alimentario de la población; y, finalmente, la evidencia de los grandes beneficios que reportaba el cobro del tributo a las finanzas capitulares, así como las importantes dimensiones socioeconómicas que tuvo el gravamen del diezmo en el Reino de Mallorca. 2. Fuentes documentales: estado de la cuestión. El estudio de los Cabildos de las catedrales españolas a lo largo de la historia ha suscitado un gran interés y, por tanto, una proliferación de trabajos científicos que abordan diferentes ámbitos: historia, cultura y, también, desde el punto de vista social y económico. En lo concerniente al Capítulo de la Seo de Mallorca entre 1400 y 1420, se ha realizado un análisis de las fuentes primarias para poder entender su estructura económica, centrada, fundamentalmente, en la organización, percepción y recaudación de los diezmos. En estas fuentes, custodiadas en el Archivo Capitular de Mallorca (ACM), en concreto, en la serie documental de Mensa Capitular5, aparecen, de manera muy detallada, las contabilidades catedralicias: las deudas que mantenían diversos particulares con los canónigos y el recuento de todos los diezmos que recibían anualmente de cada una de las parroquias de Mallorca y Menorca, especificando, incluso, cuáles entregaban el gravamen en efectivo o en especie. Gracias a ello, se han podido puntualizar las villas que lo realizaban en género, es decir, que entregaban el impuesto en frutos de la tierra: en un principio, sólo fueron los casos de Sineu-Sant Joan, Porreres y Petra; no obstante, a medida que se va avanzando cronológicamente, fue aumentando el número de parroquias que así lo hacían. Además de toda la información sobre los diezmos, gracias al procurador general del Capítulo, se han conocido cada una de las prebendas recibidas por cada uno de los miembros capitulares según su rango eclesiástico, así como los costes de las 13 fiestas anuales celebradas en la catedral y el balance final anual de las finanzas eclesiásticas. En cuanto a las fuentes secundarias, la publicación de trabajos sobre los cabildos catedralicios ha ido aumentando. De ellos se desprende cómo la Curia 3 Archivo Capitular de Mallorca (de ahora en adelante ACM), Mensa Capitular, liv. 2728-2736: Del 1400 hasta 1409 ostentó el cargo Guilllem Ferrer. ACM, Mensa Capitular, liv. 2737-2745: El procurador general del Cabildo entre 1410 y 1420 fue Guillem Seguí. 4 En la documentación aparece como “blats”. 5 ACM, Mensa Capitular, liv. 2728-2745. 530 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL eclesiástica devino centro de poder y cómo sus miembros gozaron de un status social, económico y político superior dentro de las sociedades del Antiguo Régimen. Los análisis ofrecen una visión general de la composición y estructura de los cabildos en cada uno de los territorios hispánicos, la provisión de prebendas y el número y heterogeneidad de sus miembros, todos ellos llegando a una misma conclusión final: los Cabildos eran instituciones que disponían de grandes patrimonios y de una amplia capacidad de maniobra social y económica. Con esta finalidad se han consultado las investigaciones referentes a los cabildos catedralicios de Barcelona6, Palencia7, Coria8, Málaga9, La Rioja10, Zamora11, Granada12, Toledo13 o Sevilla14, entre otros. Tal y como se ha indicado en la introducción, el presente estudio gira, también en torno al mercado de los cereales procedentes del diezmo capitular recaudado, concretamente, a los lugares de producción y precios. Por ello, es inevitable hacer una relación bibliográfica sobre dicha cuestión. El análisis sobre la articulación del negocio triguero que se fue desarrollando en Castilla y León durante el setecientos ha sido realizado por Enrique Llopis y Miguel Jerez15. En referencia a los reinos de la Corona de Aragón, deben citarse las obras de Antoni Riera Melis16, tesis que 6 TORRES FERRER, M. J. − La catedral de Barcelona en el siglo XV. Gestión económica del patrimonio y proyección social y política. Barcelona: Universitat de Barcelona, 2001. Tesis doctoral; BAUCELLS REIG, J. − “Les dignitats eclesiàstiques de Barcelona als segles IX-XI”. Acta Medievalia 26 (2005), pp. 69-80. 7 MARCOS MARTÍN, A. − “De nuevo sobre los diezmos. La documentación decimal de la diócesis de Palencia: problemas que se plantea”. In Investigaciones históricas: Época moderna y contemporánea 4 (1983), pp. 99-122 [Consultado el 20 de abril 2020]. Disponible en http://uvadoc.uva.es/handle/10324/21243 8 MELÓN JIMÉNEZ, M. A.; RODRÍGUEZ GRAJER, A. − “Modos de percepción y distribución de los diezmos en la Diócesis de Coria (1566-1773)”. In Hernán Cortés y su tiempo: actas del Congreso “Hernán Cortés y su tiempo”, V Centenario (1485 – 1985). Vol. 1. Mérida: Junta de Extremadura, Editora Regional de Extremadura, 1987, pp. 177-191. 9 BRAVO CARO, J. J.- “El arrendamiento de los diezmos del obispado malagueño”. Baetica 12 (1989), pp. 177-185. 10 IBÁÑEZ RODRÍGUEZ, S. – “El diezmo en La Rioja (s. XVI-XVIII)”. Brocar 18 (1994), pp. 189-222. 11 ÁLVAREZ VÁZQUEZ, J. A. – Los diezmos de Zamora: 1500-1840. Zamora: Universidad de Salamanca, 1984. 12 La tesis doctoral realizada por Rafael LÓPEZ MARÍN, defendida en 1998, referente al Cabildo de Granada. LÓPEZ MARÍN, R. – El Cabildo de la Catedral de Granada en el siglo XVI. Granada: Universidad de Granada, 1998. Tesis doctoral. 13 De María José LOP OTÍN, la tesis doctoral en donde se analiza la estructura social y económica del Cabildo catedralicio de Toledo en el siglo XV. LOP OTÍN, M. J. – El Cabildo catedralicio de Toledo en el siglo XV: aspectos institucionales y sociológicos. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 2008. 14 LADERO QUESADA, M. A. – Diezmo eclesiástico y la producción de cereales en el Reino de Sevilla: 1408-1503. Sevilla: Universidad de Sevilla, 1978. 15 LLOPIS AGELÁN, E.; JEREZ MÉNDEZ, M. – “El mercado de trigo en Castilla y León, 1691-1788: arbitraje espacial e intervención”. Historia Agraria 25 (2001), pp. 13-68. 16 RIERA MELIS, A. – “Crisis frumentarias y políticas municipales de abastecimiento en las ciudades catalanas durante la Edad Media”. In OLIVA HERRER, H. R.;BENITO MONCLÚS, P. (coords.) – Crisis de subsistencia y crisis agrarias en la Edad Media. Sevilla: Universidad de Sevilla, 2007, pp. 125-160; RIERA MELIS, A. – “Els cereals als mercats catalans de la Baixa Edat Mitjana”. In SABATÉ CUNILL, F.; PEDROL, M. (coords.) – El mercat: un món de contactes i intercanvis. Barcelona: Pagès Editors, 2014, pp. 119-140; RIERA MELIS, A. (coord.) – Crisis frumentàries, iniciatives privades i polítiques públiques de proveïment a les ciutats catalanes durant la Baixa Edat Mitjana. Barcelona: Institut d’Estudis Catalans, 2015. EL DIEZMO DE LOS “TRIGOS” DEL CABILDO CATEDR ALICIO DEL R EINO DE MALLORCA 531 tratan de esclarecer el funcionamiento del mercado de abasto de granos, la falta de productos, la gestión que se derivaba de ello y la incidencia de las crisis trigueras sobre la población. Otra obra interesante es la de Eva Serra Puig17, en donde se examina el modus operandi del intercambio de cereales en la Barcelona medieval. Y, para el caso del Reino de Valencia18, se estudia la comparación del mercado de cereales que mantenían las distintas villas del reino con otros enclaves peninsulares y mediterráneos durante el siglo XV. Centrándose en el Reino de Mallorca, desde un punto de vista local, la publicación de artículos sobre la evolución del Cabildo catedralicio de Mallorca a lo largo de la historia no son tan numerosos respecto a los del resto de territorio español. Hay que citar, para la Edad Media, los realizados por: en primer lugar, Jaume Sastre Moll19, donde aparecen transcritos los orígenes de la Iglesia de Mallorca, el otorgamiento de rentas y propiedades y el proceso constructivo de la Catedral; en segundo lugar, Albert Cassanyes20; y, en último lugar, Francisco José Pérez21, enfocado a la institución eclesiástica como centro de poder e influencia en la Mallorca del siglo XVIII. En lo relativo al fisco mallorquín en época medieval, antes de abordar las rentas eclesiásticas, es de justicia, enaltecer los trabajos realizados por el Dr. Pau Cateura22 y la obra de Francisco López Bonet23, que examina el comportamiento de los diezmos recaudados por la Procuración Real a lo largo del XIV, además de la producción agraria y su relación con el dicho impuesto. 17 SERRA PUIG, E. – “Els cereals a la Barcelona del segle XIV”. In Alimentació i societat en la Catalunya medieval. Barcelona: CSIC, 1988, pp. 71-107. 18 VICIANO NAVARRO, P. – “Mercado cerealista, crédito a corto plazo y desigualdad en el Reino de Valencia, las villas de Cocentaina y Castellón en el siglo XV”. Hispania 78 (2018), pp. 103-137. 19 SASTRE MOLL, J. – El Llibre Groc de la Seu. Palma: Cabildo de la Catedral de Mallorca, 2012; SASTRE MOLL, J. – Llibre Verd de la Seu de Mallorca (1211-1715). Palma: Cabildo de la Catedral de Mallorca, 2017; SASTRE MOLL, J. – La Seu de Mallorca. La prelatura de D. Lluís de Prades i Arenós. Palma: Consell de Mallorca, 2017. 20 CASSANYES ROIG, A. – “El capítol catedralici de Mallorca a la segona meitat del segle XV (14501495)”. Anuario de estudios medievales 48/2 (2018), pp. 587-614; CASSANYES ROIG, A. – “El Cabildo catedralicio de Mallorca y la política de Fernando II el Católico”. Espacio, tiempo y forma 30 (2017), pp. 193-220. 21 GARCÍA PÉREZ, F. J. – “El Cabildo catedralicio de Mallorca (1700-1750). Estudio de una élite de poder durante el siglo XVIII”. Tiempos Modernos. Revista electrónica de Historia Moderna 29 (2014). [Consultado el 19 de abril 2020] Disponible en http://www.tiemposmodernos.org/tm3/index.php/tm/article/ view/364/418 22 CATEURA BENNÀSSER, P. – Comprar, vendre i pagar al rei. Els impostos indirectes del Regne de Mallorca (segles XIV-XV). Palma: El Tall, 2009; CATEURA BENNÀSSER, P. – Recaptar per pagar deutes: el còdex 29 de l’Arxiu del Regne de Mallorca (1390). Palma: El Tall, 2009. 23 LÓPEZ BONET, F. – El diezmo en el Reino de Mallorca y en la estructura económica de la Procuración Real: 1315-1396. Palma: Universitat de les Illes Balears, 1983. Tesis doctoral; LÓPEZ BONET, F. – “L’estudi del delme recaptat per la procuració reial de Mallorca en el segle XIV i el seu interès respecte a l’aproximació de la conjuntura econòmica”. Butlletí Societat Arqueològica Lul·liana 39 (1983), pp. 381-406; LÓPEZ BONET, F. – “Fiscalitat i producció agrària: el percepció del delme a Mallorca”. In CATEURA BENNÀSSER, P. (dir.) – Comprar, vendre i pagar al rei: els impostos indirectes al Regne de Mallorca (segles XIV-XV). Palma: El Tall, 2005, pp. 71-116. 532 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Respecto a las finanzas del Cabildo catedralicio, es preciso nombrar a Maria del Camí Dols Martorell24, quien realiza un análisis de los diezmos recaudados por los capitulares de Mallorca en el primer cuarto del siglo XV para demostrar la especialización agrícola y ganadera de Mallorca y Menorca. Referente a la percepción de los diezmos en la Mallorca del siglo XVI, hay que destacar la publicación de José Juan Vidal25. En cuanto al mercado triguero practicado en el Reino de Mallorca durante la Edad Media, ha sido uno de los aspectos más estudiados y, por tanto, con una amplia producción bibliográfica. Se debe citar el gran número de investigaciones realizadas por D. Álvaro Santamaría26, relativas al negocio de los cereales y a su administración durante la Edad Media, así como las pertenecientes a Francisco Sevillano Colom27, José Juan Vidal28, Pau Cateura29, Maria Barceló30 i Plàcid Pérez31, donde se destaca la gran importancia de los enlaces comerciales que mantenía la ciudad de Mallorca con otras regiones. Realizado este breve repaso sobre las fuentes documentales consultadas, es imperioso centrarse en el tema de la investigación: el diezmo de los cereales del Cabildo catedralicio de Mallorca entre el 1400 y 1420. 3. Los orígenes del diezmo en el Reino de Mallorca: punto de desencuentro entre el monarca y el Cabildo catedralicio de Mallorca32. Tras la conquista cristiana de Mallorca, dirigida por el rey Jaume I, se empezó a 24 DOLS MARTORELL, M.C. – Estudi agro-econòmic de Mallorca i Menorca, del 1380 al 1420, segons el delme eclesiàstic. Palma: Universitat de les Illes Balears, 2014. Tesis doctoral. 25 JUAN VIDAL, J. – “Los diezmos en la diócesis de Mallorca en el siglo XVI”. Mayurqa 22 (1989), pp. 811-824. 26 SANTAMARÍA ARÁNEZ, Á. – El reino de Mallorca en la primera mitad del siglo XV. Palma: Diputación provincial de Baleares, 1955; SANTAMARÍA ARÁNEZ, Á. – “El mercado triguero de Mallorca en la época de Fernando el Católico”. In VI Congreso de Historia de la Corona de Aragón. Zaragoza, 1959, pp. 379392; SANTAMARÍA ARÁNEZ, Á. – “Esglésies i administració a Mallorca en època del Cisma d’Occident”. Estudis Baleàrics 13 (1984), pp. 55-106; SANTAMARÍA ARÁNEZ, Á. – “Sobre la gestión fiscal y la coyuntura económica en Mallorca entorno al 1510”. Mayurqa 14 (1975), pp. 21-61; SANTAMARÍA ARÁNEZ, Á. – Ejecutoria del Reino de Mallorca. Palma: Ajuntament de Palma, 1990. 27 SEVILLANO COLOM, F. – “De Venecia a Flandes, via Mallorca y Portugal”. Butlletí Societat Arqueològica Lul·liana 33 (1969), pp. 1-33; SEVILLANO COLOM, F. – “Mercaderes y navegantes mallorquines (siglos XIII-XV)”. In MASCARÓ PASARIUS (ed.) – Historia de Mallorca, Palma: Miramar, 1971, pp. 431-520 28 JUAN VIDAL, J. – “El regne de Mallorca en temps de Carles V (1466-1476)”. Mayurqa 26 (2000), pp. 11- 46. 29 CATEURA BENNÀSSER, P. – “Valencia y Mallorca en el siglo XV”. Mayurqa 26 (2000), pp. 181-193. 30 BARCECLÓ CRESPÍ, M. – “Cargamentos de trigo para Mallorca a través del puerto de Málaga (14901516)”. In II Congreso de Historia de Andalucía. Vol. II. Córdoba: Consejería de Cultura y Medio Ambiente, 1994, pp. 275-287; BARCECLÓ CRESPÍ, M. – “Aspectes de la relació de Mallorca amb el Regne de Nàpols a la Baixa Edat Mitjana”. Butlletí Societat Arqueològica Lul·liana 72 (2016), pp. 29-51. 31 PÉREZ, P. – “El mercat de blats de la vila de Sóller (1466-1476)”. Mayurqa 21 (1985-198), pp. 147-166. 32 DOLS MARTORELL, M.C. – Estudi agro-econòmic de Mallorca i Menorca del 1380 al 1420 segons el delme eclesiàstic. Palma: Universitat de les Illes Balears, 2015. Tesis doctoral. EL DIEZMO DE LOS “TRIGOS” DEL CABILDO CATEDR ALICIO DEL R EINO DE MALLORCA 533 forjar en estas tierras una nueva entidad política, económica, administrativa y social, sustentada sobre los cimientos de una “Carta de Franquesa” (1230), que conocemos como el Reino de Mallorca33. La nueva realidad política de Mallorca traería con ella una nueva forma de organización en todos los sentidos. Es en este momento cuando se intuye el establecimiento del sistema feudal en la isla. Uno de los puntos fuertes de esta realidad era la recaudación del diezmo. En un principio, lo percibiría el monarca de manera íntegra, respetando así el privilegio concedido por el Papa Urbano II, en 1095, al rey Pedro I, en virtud del cual el monarca era beneficiario de los diezmos de todos los territorios conquistados a los musulmanes, de acuerdo con el espíritu de cruzada34. En el 1238, en el momento de la instauración de la diócesis de Mallorca, uno de los puntos de fricción entre el poder real y el espiritual fue la percepción del diezmo. Por este motivo, y con el fin de solucionar esta incómoda situación, el rey Jaume I acordó con el primer obispo de Mallorca, Ramon de Torrelles, para la dotación de la diócesis y de sus ministros, la cesión de un tercio de los diezmos de frutos de la tierra y de los animales y a las parroquias35, una cuarta parte. Dichas cesiones reales no fueron suficientes para satisfacer las demandas eclesiásticas y, por tanto, la Iglesia mallorquina siguió con sus reivindicaciones para recibir todos los ingresos que aportaban los diezmos. Tales eran las disputas entre la autoridad eclesiástica y civil que, en el año 1308, el Papa Clemente V, bajo las súplicas del Obispo y Cabildo, dirigió una misiva a Jaume II de Mallorca, donde expresaba tener información de que el monarca percibía dos partes de los diezmos y, por ello, demandaba hacer entrega íntegra de los diezmos a la diócesis de Mallorca36. Finalmente, ambos poderes llegaron a un pacto, el conocido “Pariatge de 1315”, entre el monarca Sanç I y el obispo Guillem de Vilanova, por el cual se estipulaba que 33 SANTAMARÍA ARÁNEZ, Á. – Ejecutoria del…, pp. 521-522; RIERA MELIS, A. – “Els repartiments feudals de Mallorca i les seves conseqüències immediates (1230-1245)”. Catalan Historial Review 10 (2017), pág. 133 [Consultado el 19 de abril de 2020] Disponible en https://www.raco.cat/index.php/ CatalanHistoricalReview/article/view/96860 34 RIERA MELIS, A. – “Els repartiments…”, p. 134. Esta actuación tendría un paralelismo en diferentes reinos de la Península Ibérica. Concretamente, en Castilla y León, el Papa Honorio III, siguiendo la misma línea que en el Reino de Mallorca, promulgó una bula en el año 1219, concediendo al monarca castellanoleonés, Fernando III el Santo, las denominadas “Tercias del diezmo”. La diferencia residió en que en el contexto peninsular las fricciones entre el poder civil y eclesiástico se solventaron, al contrario que en la diócesis mallorquina, donde continuaron. (MARTÍN VIANA, J. L. – “El diezmo como tributo y costumbre. Siglo XVIII”. Revista folklore, 69 (1986), pp. 87-96. En línea: [Consultado el 20 de abril del 2020] Disponible en:http://www.cervantesvirtual.com/obra-visor/el-diezmo-como-tributo-y-como-costumbre-siglo-xviii/ html/). Otro ejemplo serían los pleitos sucedidos entre la curia eclesiástica y el poder real en la ciudad cacereña de Coria, como consecuencia del desacuerdo existente en lo referente a la manera de recibir y distribuir los diezmos (MELÓN JIMÉNEZ, M.A. y RODRÍGUEZ GRAJER, A. – “Modos de percepción y distribución de los diezmos en la Diócesis de Coria (1566-1773)…”. pp. 177-191. 35 CAMPANER, Álvaro – Cronicon Mayoricense. 3ª ed. Palma: Ajuntament de Palma, p. 24. 36 CAMPANER, Álvaro – Cronicon…, p. 24. 534 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL la percepción del diezmo se repartiría en dos mitades, una real y la otra eclesiástica: “que tots els delmes pertanyents a sa Majestat, Sanç I, com l’Església, es delmessin i es repartissin a parts iguals, una meitat per al Rei i l’altra meitat per l’Església, amb algunes reserves a favor del monarca; en quant als delmes de Menorca, quedava l’Església, amb aquesta comunitat i divisió, damnificada amb 400 lliures, meitat de les quals, s’obligà al Rei a pagar tots els anys a l’Església”37. Gracias a este acuerdo sobre la percepción del diezmo, el patrimonio eclesiástico aumentó considerablemente, acrecentando la fracción de ingresos aportados por el impuesto: del 25 al 37’5 %. Sin embargo, el problema de las rentas seguía sin tener una solución definitiva. Años más tarde, ya en los inicios de 133238, llegó a Mallorca Jaume III, quien solicitó audiencia con el Obispo y el Cabildo, donde se trataron temas espinosos, como los diezmos y su jurisdicción. El problema de la captación del tributo seguía vigente en el Reino de Mallorca y, por ello, en 1338, el mismo monarca concedió un real privilegio por el cual cedía todos los diezmos de trigo, cebada, avena y legumbres que él percibía a las parroquias de Sineu, Sant Joan, Petra i Sóller, apreciados en 666 libras, 13 sueldos y 6 dineros, al Obispo, Berenguer de Balla, y al Cabildo. Los propósitos reales no fueron suficientes para poner freno a las demandas eclesiásticas, por lo tanto, los diezmos siempre fueron motivo de disputa entre la diócesis y el monarca, debido, en gran parte, a que eran una suculenta fuente de ingresos muy interesante para ambos39. 4. Los diezmos: estructura y funcionamiento. Una vez terminado el ciclo agrícola, se procedía a la siega. Una cuadrilla de segadores se disponía con la hoz a recolectar los cereales40. Iban dejando las gavillas tras de sí para, posteriormente, conducirlas hacia las eras, donde se realizaba la tarea de la trilla y, finalmente, el aventado41. Así, dejaban los granos limpios de polvo y paja que eran conducidos, en última instancia, hasta los silos42, donde permanecerían hasta CAMPANER, Álvaro – Cronicon…, p. 45. CAMPANER, Álvaro – Cronicon…, p. 45. 39 BARCELÓ CRESPÍ, M. – “Conflicto entre los jurados y el obispo y el cabildo de Mallorca (1478)”. Anuario de Estudios Medievales 29 (1999), pp. 21-33. 40 ACM, Mensa Capitular, liv. 2733, fl. 19: “Un hom que lloga ab sa bèstia per plegar los blats”; ACM, Mensa Capitular, liv. 2736, fl. 24: “Un hom ab una bèstia qui aplega los blats del delme de Sineu i Sant Joan”; ACM, Mensa Capitular, liv. 2740, fl. 25v: “Tres homes ab tres bèsties per aplegar los blats d’Inca, Selva, Campanet i d’Uyalfàs”. 41 ACM, Mensa Capitular, liv. 2736, fl. 20: “Porgar 112 qª de tosseta de Sineu”. ACM, Mensa Capitular, liv. 2736, fl. 33: “Tot l’ordi de porgar com lo vené”. 42 ACM, Mensa Capitular, liv. 2742, fl. 31v: “Tres sitges de Ciutat on foren mesos tots los blats”. ACM, Mensa Capitular, liv. 2744, fl. 51v: “Lloguer de sis sitges en què foren mesos tot lo forment e ordi e rostoll e empallar”. 37 38 EL DIEZMO DE LOS “TRIGOS” DEL CABILDO CATEDR ALICIO DEL R EINO DE MALLORCA 535 poder evaluar los rendimientos conseguidos. Finalizados los trabajos en el campo, era importante realizar el cómputo de la cosecha recogida. El diezmero comunicaba al procurador capitular la producción43 que se había alcanzado. Ambos efectuaban una valoración de la cosecha para calcular el diezmo perteneciente al Cabildo. Se diezmaba sobre las eras, lo que impedía al campesino retener para sí el fruto de mejor calidad y, por otra parte, que éste fuera entregado en malas condiciones44. Hecho el cálculo de los frutos decimales, se procedía al anuncio del diezmo a lo largo de toda la geografía isleña, tal y como aparece en los documentos, “fer la crida”45. Esta acción era delegada a los “corredors de lletres”, encargados de ir a las parroquias foráneas para dar a conocer la puesta en arriendo del diezmo. En el caso concreto de los cereales, el gravamen se subastaba en la villa mallorquina de Sineu, situada en el centro de la isla, el primer domingo de mayo46. Hay que puntualizar que los otros diezmos se arrendaban haciendo coincidir la fecha con la festividad de algún santo, tal y como sucedía en otros territorios47. Desde 1400 hasta el 142048, la administración capitular optó por este sistema de transacción, efectuándose en moneda o, como sucedía en las parroquias de Sineu-Sant Joan49, Porreres50, el conjunto político-administrativo formado por Inca, ACM, Mensa Capitular, liv. 2737, fl. 25v: “Los hòmens qui mesuraven los blats”. MARCOS MARTÍN, A. – “De nuevo sobre los diezmos. La documentación decimal de la diócesis de Palencia: problemas que se plantea…”, p. 115. 45 “Fer la crida” se podría traducir como “realizar un pregón”. 46 ACM, Mensa Capitular, liv. 2729, fl. 35v: “Pagui a Jaume Robiol, qui aporta una lletra per l’illa a tothom que volgués comprar delmes dels blats que fos a Sineu lo primer diumenge de maig”; ACM, Mensa Capitular, liv. 2732, fl. 38: “Un hom qui porta una lletra defora de la Ciutat, que tothom que volgués comprar delmes dels blats, fos a Sineu, diumenge a 3 de maig, per l’any 1405”; ACM, Mensa Capitular, liv. 2730, 38v: “ A 23 d’abril de 1403, un hom que aporta lletres a defora, que tothom que volgués comprar delmes dels blats fos lo primer diumenge de maig a Sineu”. BRAVO CARO, J. J. – “El arrendamiento de los diezmos del obispado malagueño”. Baetica 12 (1989), p. 182: “siendo tañida la campana por ellos, y a voz de pregonero”. [Consultado el 20 de abril del 2020] Disponible en http://www.revistas.uma.es/index.php/baetica/article/view/734/698 47 BRAVO CARO, J. J. – “El arrendamiento...”, p. 181. En el Reino de Mallorca, el diezmo de la hortaliza se arrendaba en último domingo de enero, pero, en determinadas ocasiones, coincidía con: los de los ganados, en la festividad de San Antonio entre los días 16 y 17 de enero, en la plaza del Pan de la ciudad; el diezmo del aceite, en Bunyola, en San Mateo, el 21 de septiembre; y el vino, el 24 de agosto, en Inca (DOLS MARTORELL, M. C. – Estudi agro-econòmic…, p. 13.). 48 ACM, Mensa Capitular, liv. 2728, fl. 2-15; ACM, Mensa Capitular, liv. 2729, fl. 2-15; ACM, Mensa Capitular, liv. 2730, fl. 2-16; ACM, Mensa Capitular, liv. 2731, fl. 2-15; ACM, Mensa Capitular, liv. 2732, fl. 2-15v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2733, fl. 2-15.; ACM, Mensa Capitular, liv. 2734, fl. 2-16.; ACM, Mensa Capitular, liv. 2735, fl. 2-16v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2736, fl. 2-15; ACM, Mensa Capitular, liv. 2737, fl. 2-16v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2738, fl. 2-16; ACM, Mensa Capitular, liv. 2739, fl. 2-16; ACM, Mensa Capitular, liv. 2740, fl. 2-45; ACM, Mensa Capitular, liv. 2741, fl. 2-27; ACM, Mensa Capitular, liv. 2742, fl. 1-36; ACM, Mensa Capitular, liv. 2743, fl. 1-49v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2744, fl. 2-53;ACM, Mensa Capitular, liv. 2745, fl. 2-41. 49 Estas poblaciones formaban parte de la misma parroquia, encabezada por Sineu. ACM, Mensa Capitular, liv. 2728, fl. 19: “Compte de los blats e llegums de les parròquies de Sineu i Sant Joan de part comuna per l’any 1400 són les que segueixen: de forment 161 qr 4 barc 3 alm, de tosseta 97 qr 3 barc, d’ordi 140 qr 3 barc, de faves 2 qr 2 barc 1 alm i mig, de ciurons 1 barc 4 alm i mig, de llenties 1 alm”. 50 ACM, Mensa Capitular, liv. 2728, fl. 25: “Compte de los blats e llegums de la parròquia de Porreres 43 44 536 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Fig. 1 – Parroquias donantes del diezmo en especie. Selva, Campanet y Uyalfás51 y Petra52, en especie53. No obstante, se debe incidir en que, a medida que se va avanzando cronológicamente, el grupo de parroquias que aportaban el diezmo de los cereales en género se iba ampliando: a partir de 140754, se sumó a ello Alcúdia55; en 141156, Sant Martí de Mianes de Petra57; tres años más tarde, per l’any 1400 així com segueix: de forment 161 qr 3 barc, de xeixa blanca 51 qr 3 barc, d’ordi 201 qr, de faves 1 qr, de guixes 3 alm, de llenties 1 alm”. 51 ACM, Mensa Capitular, liv. 2728, fl. 17: “Compte de los blats e llegums de les parròquies d’Inca, Selva, Campanet i Uyalfàs per l’any 1400 són: de forment 250 qr, de xeixa blanca 16 qr, d’ordi 109 qr, de faves 2 qr, de guixes 1 barc 1 alm, de ciurons 1 barc 1 alm, de llenties 1 alm”. 52 ACM, Mensa Capitular, liv. 2730, fl. 25: “Compte de los blats de Petra per l’any 1401 així com segueix: de forment, 290 qr 3 barc i 4 alm i mig, de xeixa blanca 83 qr 1 barc 3 alm, d’ordi 267 qr 2 barc 1 alm i mig, de faves 2 qr”. 53 Los distintos reinos peninsulares tienen el mismo proceder. Por ejemplo, en La Rioja, también se percibe en especie (IBÁÑEZ RODÍGUEZ, S. – “El diezmo en La Rioja (s. XVI-XVIII)”. Brocar 18 (1994), Logroño, pp. 189-222. 54 ACM, Mensa Capitular, liv. 2734, fl. 20. 55 ACM, Mensa Capitular, liv. 2734, fl. 20: “Lo compte dels blats d’Alcúdia per l’any 1407 així com segueix: de forment 91 qr 4 barc, de mestall 31 qr, d’ordi 67 qr, d’avena 2 qr, de faves 8 qr, de guixes 4 barc, de llenties 3 barc”. 56 ACM, Mensa Capitular, liv. 2738, fl. 19. 57 ACM, Mensa Capitular, liv. 2738, fl. 19: “Compte de los blats de Sant Martí de Mianes de Petra per l’any 1411 són: de forment, 19 qr 3 barc, de tosseta 2 qr 1 barc 3 alm, d’ordi 10 qr 3 barc”. EL DIEZMO DE LOS “TRIGOS” DEL CABILDO CATEDR ALICIO DEL R EINO DE MALLORCA 537 lo hizo Campos58; Felanitx59, en el 1416; y las últimas localidades en agregarse a esta práctica fueron Manacor60, Robines, Sencelles, Alaró61, Muro y Santa Margalida62, en 141763. Los canónigos alentaban dicho procedimiento por serles mucho más rentable el recibo del diezmo en mercancía, ya que después, al poner a la venta el producto disponible, acumulaban ingresos más cuantiosos. El tributo sobre los cereales64 recaía, para el caso del Mallorca, sobre las producciones anuales de trigo, toseta, cebada, morcajo, trigo blando65, habas, garbanzos, almortas y lentejas. En el ámbito logístico, el montante recaudado con el pago del diezmo era puesto en subasta y, por tanto, se concedía al mejor postor. Las personas beneficiadas66 con la locación debían dejar constancia de la transacción con la firma de una notificación ante notario. Ser “llevador” del diezmo requería gozar de un cierto nivel adquisitivo, lo que ayudaba a la Iglesia a proteger sus intereses, contribuyendo a que fueran potentados67 quienes monopolizaran el “cargo”, aspecto que queda patente, nombrando, en algunas ocasiones, a clérigos de cierto rango68. Por otra parte, una vez realizado el ejercicio económico anual, el proceder inmediato era retirar la cosecha de los silos y transportarla69 hacia las denominadas “botigues”70, las cuales tendrían su paralelismo en el ámbito peninsular con las cillas decimales71. Estos grandes graneros formaban parte del patrimonio capitular y su situación geográfica coincidía con las parroquias que aportaban el diezmo 58 ACM, Mensa Capitular, liv. 2740, fl. 45: “Compte de los blats de Campos per l’any 1414 és així com segueix: de forment 152 qr, d’ordi 164 qr 5 barc, de faves 1 qr”. 59 ACM, Mensa Capitular, liv. 2742, fl. 35: “Lo compte de los blats de la parròquia de Felanitx que són per l’any 1416: de forment 109 qr, d’ordi 9 qr 4 barc 3 alm, de faves 2 barc”. 60 ACM, Mensa Capitular, liv. 2743, fl. 49: “Lo compte de los blats de la parròquia de Manacor que són per l’any 1417: de forment 175 qr, de tosseta 10 qr, d’ordi 110 qr, de faves 2 qr, de guixes 1 barc 1 alm, de llenties 1 alm”. 61 ACM, Mensa Capitular, liv. 2743, fl. 29: “Lo compte del delme dels blats de la parròquia de Robines, Alaró i de Sencelles de l’any 1417: de forment 227 qr, de tosseta 18 qr, d’ordi 118 qr 3 barc, de faves 2 qr 3 barc, de llenties 5 alm, de guixes 1 barc”. 62 ACM, Mensa Capitular, liv. 2743, fl. 17: “Compte de les rendes de Muro i Santa Margalida, açò és delme dels blats per l’any 1417: de forment 160 qr, d’ordi 72 qr 3 barc, de faves 1 qr 5 barc, de guixes 4 alm, de ciurons 1 alm”. 63 ACM, Mensa Capitular, liv. 2743. 64 En la documentación aparece con la denominación “lo delme dels blats”. 65 Blat “xeixa” 66 En los legajos se transcribe “llevadors”. 67 ÁLVAREZ VÁZQUEZ, J. A. – Los diezmos…, p. 151: “Los arrendatarios de los distintos diezmos solían ser propietarios de bienes, que eran precisamente la garantía de las rentas”. 68 ACM, Mensa Capitular, liv. 2732, fl. 26: “Lo procurador del delme dels blats de Porreres, per la part del Capítol, mossèn Ramon Nicolau i Jaume Vallcanera”. 69 ACM, Mensa Capitular, liv. 2743, fl. 30v: “Costaren de treure de sitja 118 qr i mitja d’ordi de Robines”, fl. 38: “Tot lo dit forment d’Alcúdia de treure de sitja i portar-los en botiga”. 70 ACM, Mensa Capitular, liv. 2738, fl. 25: “Dues botigues en què metien los blats”. 71 MARCOS MARTÍN, A. – De nuevo sobre…., p. 103. 538 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL en especie. Por tanto, se encontraban en Sineu72, Alcúdia73, Porreres74, Campos75, Porreres76, Petra77, Inca78, Selva79, Campanet80 y Felanitx81. Estas “botigues”, además de salvaguardar la recolecta de granos, garantizaban la disposición de reservas de cereales para un consumo posterior y, también, aseguraban las existencias de semillas para las siembras venideras. Fig. 2 – Las “botigues” (graneros) capitulares. Asimismo, dentro de toda esa estructura, los miembros del Cabildo eran agraciados con una serie de prebendas por su condición de eclesiásticos82, por este motivo, un porcentaje de las producciones de cereales iban destinadas a amortizar ACM, Mensa Capitular, liv. 2744, fl. 26: “Metre tota la toseta en la botiga de Sineu”. ACM, Mensa Capitular, liv. 2738, fl. 38: “La botiga d’Alcúdia en que mes tots los blats”. 74 ACM, Mensa Capitular, liv. 2729, fl. 24: “La botiga de los blats de Porreres”. 75 ACM, Mensa Capitular, liv. 2740, fl. 42v: De port de la sitja a la botiga de Campos”. 76 ACM, Mensa Capitular, liv. 2744, fl. 26: “Una botiga en la vila de Petra on metien tots los blats”. 77 ACM, Mensa Capitular, liv. 2742, fl. 31v: “Una botiga en Petra en metien tots los blats”. 78 ACM, Mensa Capitular, liv. 2740, fl. 35v: “Adobar la botiga d’Inca dels blats”. 79 ACM, Mensa Capitular, liv. 2728, fl. 18v: “Una botiga en que mes los blats de Selva”. 80 ACM, Mensa Capitular, liv. 2730, fl. 23v: “Una botiga en Campanet en que meterem los blats”. 81 ACM, Mensa Capitular, liv. 2744, fl. 38v: “Una botiga de Felanitx on foren mesos tots los blats del delme de Felanitx”. 82 DOLS MARTORELL, M. C. – “El Capítulo de la Seo de Mallorca: sus trabajos y salarios (1400-1420)”. In SOLÓRZANO TELECHEA, J. Á.; MELO, Arnaldo Sousa (eds.) – Trabajar en la ciudad medieval europea. Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 2018, pp. 279-292. 72 73 EL DIEZMO DE LOS “TRIGOS” DEL CABILDO CATEDR ALICIO DEL R EINO DE MALLORCA 539 estos beneficios adscritos al colegio de clérigos de la diócesis mallorquina, actuando como una auténtica señora feudal y enriqueciéndose gracias al sistema fiscal. De Sineu83 se les ofrecían las siguientes cantidades: -De trigo: para el Obispo: 60 cuarteras para el Cabildo: 30 cuarteras cada uno para el Procurador General: 16 cuarteras - De toseta: para todo el Cabildo 10 cuarteras - De cebada: 40 cuarteras para el Obispo y para el resto de canónigos, cada uno, 10 qr. De Porreres84 percibían: - Cebada: el Obispo, 70 qr. Capítulo: 30 qr cada uno Procurador General: 11 qr. - Toseta: Obispo: 60 qr Capítulo: 20 qr cada canónigo Procurador General: 6 qr. De Petra85: - Cebada: Capítulo y Obispo: 20 qr. Procurador General: 4 qr. En ocasiones, en los documentos se testifica cómo algunas de estas cantidades adjudicadas eran puestas a la venta por parte del procurador general del Capítulo con una doble intención: en primer lugar, la introducción de dichas cosechas en el mercado de la ciudad86 favorecía económicamente a los canónigos, pudiendo vender su producto a unos precios sobrevalorados, más rentables para sus intereses particulares87; y, en segundo lugar, este comercio de granos, dependiendo del año, servía como válvula de escape ante la amenaza de una posible crisis de subsistencia, hasta tal punto que los Jurados de la ciudad recurrían a él para abastecer el mercado 83 ACM, Mensa Capitular, liv 2728, fl. 19; ACM, Mensa Capitular, liv 2729, fl. 17-18; ACM, Mensa Capitular, liv 2730, fl. 17-18; ACM, Mensa Capitular, liv 2731, fl. 20-20v; ACM, Mensa Capitular, liv 2732, fl. 21; ACM, Mensa Capitular, liv 2733, fl. 17-17v; ACM, Mensa Capitular, liv 2734, fl. 24, 25v; ACM, Mensa Capitular, liv 2735, fl. 20; ACM, Mensa Capitular, liv 2737, fl. 26; ACM, Mensa Capitular, liv 2739, fl. 31; ACM, Mensa Capitular, liv 2741, fl. 28. 84 ACM, Mensa Capitular, liv 2728, fl. 26; ACM, Mensa Capitular, liv 2729, fl. 23-23v; ACM, Mensa Capitular, liv 2730, fl. 27v; ACM, Mensa Capitular, liv 2731, fl. 24-24v; ACM, Mensa Capitular, liv 2732, fl. 26. 85 ACM, Mensa Capitular, liv 2730, fl. 25. 86 ACM, Mensa Capitular, liv. 2739, fl. 31v: “Venda de la toseta tramesa a los canonges per part de Guillem Seguí”. 87 ACM, Mensa Capitular, liv. 2739, fl. 31v: “ Vengui una quartera de mossèn Francesc des Caus a raó de 37 sous la quartera”. 540 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL público ante la falta de productos88, que, en ocasiones, servía para mostrar la generosidad del Cabildo, donándolas a los estratos más humildes de la sociedad. 5. El diezmo de los cereales del Cabildo catedralicio de Mallorca y la venta de granos en la Ciutat entre los años 1400 y 1420. Pasado un tiempo, los cereales diezmados eran conducidos hasta la capital del Reino de Mallorca, donde se ponían a la venta pública para satisfacer las necesidades alimentarias de los conciudadanos. Para ello, entraba en funcionamiento un engranaje que requería de gran esfuerzo. En primer lugar, se retiraban los granos custodiados en las diferentes “botigues”, que eran, nuevamente, aventados con el fin de iniciar el viaje hasta la ciudad. Las parroquias del interior transportaban los cereales por tierra, y las villas costeras los trasladaban por mar89. Era en éstas últimas donde se contaba con los servicios de un “formenter del moll”90, persona encargada de tener preparada la embarcación y la carga. De esta manera, comenzaba el periplo hasta el puerto de la capital, transcrito como “sa Portella”91. Una vez habían llegado, los sacos se descargaban y los pesaban92 para comprobar que el producto había llegado indemne. Posteriormente, los cereales llegados por tierra y mar se conducían hasta la plaza de la cuartera93, donde se ponía en marcha el mercado de los trigos y legumbres cosechados. Es preciso remarcar que ésta era una cuestión de primer orden por parte de las autoridades competentes, sobre todo, en épocas de crisis de subsistencia, ya que una de sus principales preocupaciones era disponer de granos para abastecer a la población. Hay que tener en cuenta que en el Reino de Mallorca, al igual que en el resto de ciudades de Europa, se necesitó durante la Edad Media un control sobre este tipo de mercado. Los poderes locales, mediante algunas intervenciones, debían garantizar unos precios asequibles y aptos para estos bienes a fin de que el consumo fuera suficiente en cada hogar94. 88 ACM, Mensa Capitular, liv. 2739, fl. 31V: “Compraren los Jurats de la Ciutat 5 qr 1 barc de toseta al procurador general del Capítol Guillem Seguí pertanyents a mossèn Jaume des Mur aº de 37 sous per qr, suma tot, 9 lb 11 s 2 d”. 89 ACM, Mensa Capitular, liv. 2744, fl. 31: “De port de Manacor 165 qr 3 barc de forment de Manacor fins a la mar”, fl. 34v: “Tots los blats del damunt dit delme d’Alcúdia, faves e altres llegums de portar a mar e carregar en barca”. 90 ACM, Mensa Capitular, liv. 2734, fol 19. 91 ACM, Mensa Capitular, liv. 2740, fl. 46: “Costaren de nolit de Campos fins a la portella 165 qr d’ordi”. 92 ACM, Mensa Capitular, liv. 2740, fl. 46: “De descarregar i mesurar tot l’ordi”. 93 La construcción de la cuartera de la Ciutat de Mallorca se cita, por primera vez, en la Carta de Franquesa, donde se estipula “la fabricació d’una quartera a Ciutat”. PONS FÀBREGUES, B. – “La Carta de Franquesa del rei en Jaume I, constituïnt el Regne de Mallorca”. In I Congrés d’Història de la Corona d’Aragó. Palma: Estampa “L’Esperança”, 1917; ROSSELLÓ VAQUER, R. – La Ciutat de Mallorca en el segle XIII. Felanitx: Ramon Rosselló Vaquer, 2001, p. 20; BARCELÓ CRESPÍ, M.; ROSSELLÓ BORDOY, G. – La Ciudad de Mallorca. La vida cotidiana en una ciudad mediterránea medieval, Palma: Lleonard Muntaner, 2006, p. 288. 94 RIERA MELIS, A. – “Crisis frumentarias y políticas municipales de abastecimiento en las ciudades catalanas durante la Edad Media…”, pp. 63. EL DIEZMO DE LOS “TRIGOS” DEL CABILDO CATEDR ALICIO DEL R EINO DE MALLORCA 541 Fig. 3 – El transporte de cereales desde las parroquias costeras hasta la ciudad. En cuanto a los valores monetarios de cereales, se podría afirmar que no estaban unificados a nivel del Reino, sino que dependían del lugar de procedencia y a la temporada. Los tomos de contabilidad eclesiástica permiten construir una serie de precios locales de la venta de granos. Dicho muestreo procede de los libros de Mensa Capitular del Cabildo de Mallorca, donante sistemático de cereales. A estos importes se les tenían que sumar todos los gastos ocasionados de la recolección y del transporte del producto95, aumentando así su precio final. El coste de la cuartera de trigo mantuvo un comportamiento irregular en el caso de Sineu. Entre los meses de septiembre a febrero, el valor era de 20 a 22 sueldos96. Los importes más bajos coincidían entre marzo y julio con 8 sueldos la cuartera97. La cebada, por su parte, sí mantenía unas pautas lineales: su cotización no variaba 95 ACM, Mensa Capitular, liv 2737, fl. 26: “De port de Petra a Ciutat 80 qr de toseta aº de 2 sous 6 diners per quartera: 10 lliures”; ACM, Mensa Capitular, liv 2739, fl. 25: “De port 122 qr de forment de Sineu a Ciutat aº de 2 sous per quartera: 12 lliures 4 s”; ACM, Mensa Capitular, liv 2740, fl. 46: “De port de Porreres a Ciutat 153 qr 1 barc de forment aº de 2 sous per quartera: 14 lb 11 d”. 96 ACM, Mensa Capitular, liv. 2728, fl. 19; ACM, Mensa Capitular, liv. 2732, fl. 21; ACM, Mensa Capitular, liv. 2734, fl. 24v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2736, fl. 15; ACM, Mensa Capitular, liv. 2740, fl. 18; ACM, Mensa Capitular, liv. 2741, fl. 17v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2744, fl. 18v-19; ACM, Mensa Capitular, liv. 2745, fl. 19v. 97 ACM, Mensa Capitular, liv. 2735, fl. 18; ACM, Mensa Capitular, liv. 2737, fl. 16; ACM, Mensa Capitular, liv. 2742, fl. 16. 542 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL a lo largo del año, conservando el precio de la cuartera a 9 sueldos98. La cuantía fija vendría determinada por que este cereal era muy fecundo en la zona, lo cual permitía la disposición del precio a la baja. Al contrario sucedía con el trigo toseta, el más caro. Los valores de la cuartera ascendían entre 24 y 27 sueldos99, llegando hasta tal punto que, en el año 1412, se llegó a pagar a 37 sueldos100. Por su parte, las legumbres más demandadas eran las habas, pagándose a 18 sueldos la cuartera101 sin mostrar ninguna variación. En cambio, las almortas y los garbanzos, al tener producciones reducidas, se ponían a la venta en “almuds”102, con unos de precios de entre 5 y 8 dineros103. En referencia a los precios de los cereales procedentes de Porreres, hay que decir que el de mayor cuantía era el trigo blando o “xeixa”: se ponía a la venta a 22 sueldos la cuartera104. Le seguía el trigo y el toseta, que en comparación con los de la parroquia de Sineu, ambos tasaban inferior. El importe oscilaba entre 18 y 15 sueldos por cuartera105. El cereal más barato, igual que para el caso anterior, era la cebada106: sus precios, entre marzo y abril, se mantenían a 7 sueldos; y, en mayo, a 8 sueldos la cuartera. En alusión a las legumbres, no aparecen datos contabilizados al respecto. En lo concerniente al valor del trigo de la parroquia de Petra, se pueden dilucidar dos etapas: una primera, comprendida entre 1400 y 1415107, en la que el precio de la cuartera se sostiene a 20 sueldos durante todo el año; y la segunda, a partir de 1416, en la que se observa una devaluación del producto, pagándose entre 12-13 sueldos por cuartera108. Lo mismo sucedió con el trigo toseta: entre el 1410 y el 1415, la cuartera se pagaba entre 21 y 23 sueldos109, pero, desde 1416, los valores 98 ACM, Mensa Capitular, liv. 2728, fl. 16v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2729, fl. 17; ACM, Mensa Capitular, liv. 2731, fl. 20v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2736, fl. 15; ACM, Mensa Capitular, liv. 2740, fl. 18; ACM, Mensa Capitular, liv. 2744, fl. 18v-19. 99 ACM, Mensa Capitular, liv. 2735, fl. 18; ACM, Mensa Capitular, liv. 2740, fl. 18; ACM, Mensa Capitular, liv. 2745, fl. 19v. 100 ACM, Mensa Capitular, liv. 2739, fl. 17. 101 ACM, Mensa Capitular, liv. 2729, fl. 17; ACM, Mensa Capitular, liv. 2734, fl. 24v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2736, fl. 15; ACM, Mensa Capitular, liv. 2740, fl. 18. 102 Almud: Medida de áridos equivalente a 1’95 kg [dcvb.es]. 103 ACM, Mensa Capitular, liv. 2731, fl. 20v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2737, fl. 16 104 ACM, Mensa Capitular, liv. 2728, fl. 25; ACM, Mensa Capitular, liv. 2729, fl. 23v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2730, fl. 27v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2732, fl. 27v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2732, fl. 26v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2734, fl. 22v; 105 ACM, Mensa Capitular, liv. 2730, fl. 27v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2732, fl. 26v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2740, fl. 39; ACM, Mensa Capitular, liv. 2742, fl. 48; ACM, Mensa Capitular, liv. 2743, fl. 45; ACM, Mensa Capitular, liv. 2745, fl. 36. 106 ACM, Mensa Capitular, liv. 2740, fl. 39; ACM, Mensa Capitular, liv. 2742, fl. 48; ACM, Mensa Capitular, liv. 2743, fl. 45. 107 ACM, Mensa Capitular, liv. 2730, fl. 25v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2731, fl. 21; ACM, Mensa Capitular, liv. 2738, fl. 25v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2740, fl. 38; ACM, Mensa Capitular, liv. 2741, fl. 25. 108 ACM, Mensa Capitular, liv. 2742, fl. 31; ACM, Mensa Capitular, liv. 2743, fl. 34; ACM, Mensa Capitular, liv. 2744, fl. 24v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2745, fl. 25v. 109 ACM, Mensa Capitular, liv. 2737, fl. 26; ACM, Mensa Capitular, liv. 2738, fl. 25v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2740, fl. 38; ACM, Mensa Capitular, liv. 2741, fl. 25. EL DIEZMO DE LOS “TRIGOS” DEL CABILDO CATEDR ALICIO DEL R EINO DE MALLORCA 543 descendieron hasta los 16 y 15 sueldos110. El trigo blando, por otra parte, oscilaba entre 20 y 21 sueldos la cuartera111, mientras que el coste de la cuartera de la cebada fue, al igual que en el resto, continuo a lo largo de estos años, de 9 sueldos112. En cuanto a las legumbres, únicamente se cita el precio de las habas en el 1406, que, como en Sineu, el importe fue de 18 sueldos113. Enrique Llopis Agalán y Miguel Jerez Méndez114, autores de un estudio sobre la articulación del mercado del trigo en Castilla y León, a partir de las contabilidades del Cabildo catedralicio, apuntan que en la zona castellana-leonesa existiría un anacronismo entre los precios de un cereal en distintos lugares y, también, un anacronismo entre los precios de los distintos cereales en una misma localidad. Mismo comportamiento se podría extrapolar en algunos cereales de Mallorca, exceptuando la cebada y en las legumbres, las habas. En este contexto, se debe considerar que en una sociedad eminentemente agraria, subordinada a las inclemencias climáticas y al desfase tecnológico, si se sufría una mala cosecha, como consecuencia, había una caída de la oferta de cereales. Este declive comportaba a un aumento de los precios, y, por tanto, el inicio de una crisis. Siguiendo a D. Álvaro Santamaría115, unos de los puntos de inflexión de la agricultura en Mallorca en la primera mitad del siglo XV era el déficit de cereales, lo que obligaba a las autoridades competentes a realizar importantes importaciones de granos. El trigo era la base de la alimentación y, por ello, era necesario conseguir una fuente de abastecimiento. El Cabildo catedralicio complementaba, de alguna forma, las actuaciones de los poderes civiles en este aspecto. Como se ha indicado anteriormente, su diezmo de los cereales servía, también, como suministro para la ciudad, pero no era suficiente como para satisfacer las demandas de granos, pese a que disponían de grandes extensiones de tierra con este cultivo. Por todos estos motivos, era necesaria la búsqueda de otros mercados que actuasen como proveedores de trigo. Las mismas respuestas dieron las autoridades catalanas ante la situación de carestía116. 110 ACM, Mensa Capitular, liv. 2742, fl. 31; ACM, Mensa Capitular, liv. 2743, fl. 34; ACM, Mensa Capitular, liv. 2744, fl. 24v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2745, fl. 25v. 111 ACM, Mensa Capitular, liv. 2730, fl. 25v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2731, fl. 24v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2745, fl. 25v. 112 ACM, Mensa Capitular, liv. 2728, fl. 25v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2737, fl. 26; ACM, Mensa Capitular, liv. 2732, fl. 27v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2741, fl. 25; ACM, Mensa Capitular, liv. 2743, fl. 34; ACM, Mensa Capitular, liv. 2744, fl. 24v; ACM, Mensa Capitular, liv. 2745, fl. 25v. 113 ACM, Mensa Capitular, liv. 2733, fl. 18. 114 LLOPIS AGALÁN, E. y JEREZ MÉNDEZ, M. − “El mercado de trigo en Castilla y León, 1691-1788: arbitraje espacial e intervención…”, pp. 13-68. 115 SANTAMARÍA ARÁNEZ, Á. − “El reino de Mallorca en la primera mitad del siglo XV”. In IV Congreso de la Historia de la Corona de Aragón, Palma: Diputación Provincial de las Baleares, 1955, p. 123. 116 SERRA PUIG, E. − “Els cereals a la Barcelona del segle XIV”. en Alimentació i societat en la Catalunya medieval, p. 73. En este artículo se constata que en el siglo XIII, Sicilia era un importante centro de importación de trigo a Barcelona. Las cargas de trigo siciliano se complementaban con los de origen sardo. No obstante, la 544 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Para proveerse de trigo, el eje comercial practicado por el Reino de Mallorca era Mallorca-Cerdeña-Sicilia117 y Nápoles118. También adquiría granos producidos en Berbería119, en Castilla120, en el Mediodía francés y en diferentes zonas de la península italiana. Asimismo, también fueron importantes las entradas de cereales procedentes del Reino de Valencia121, mismo procedimiento que utilizó la Barcelona medieval122. Estos reinos tenían un estrecho vínculo comercial, pues el intercambio de productos era la tónica habitual. Respecto a los negocios mercantiles mallorquines, se deben tener en cuenta los trabajos de Francisco Sevillano Colom123, donde queda latente el intenso tráfico marítimo y comercial experimentado en el puerto de la “Ciutat” de Mallorca. Gracias al análisis de los registros de “guiatges” del siglo XIV, el autor pudo constatar la enorme complejidad de conexiones del puerto de Palma con puertos peninsulares mediterráneos y atlánticos, así como el carácter internacional del Reino de Mallorca a lo largo de la Edad Media124. Para reafirmar, todavía más, estas actuaciones, es necesario referirse a los enlaces que mantenía, a la vez, el Reino de Mallorca con las ciudades de Almería y Málaga125, en donde las naves mallorquinas requerían de cargamentos de trigo. Retornando a tierras mallorquinas, la falta de trigo era de tal magnitud que, en determinadas ocasiones, las autoridades competentes decretaban permiso a los alcaldes de las poblaciones marítimas para asaltar embarcaciones cargadas de trigo que estuvieran navegando en aguas de Mallorca126. 6. Los ingresos del diezmo de los cereales del Capítulo de la Seo de Mallorca (1400-1420). A través de los recuentos de las contabilidades catedralicias, se pueden observar las ciudad condal no únicamente se nutría de cereales extranjeros, sino que también contaba con las inyecciones de trigo procedente del delta del Ebro y del Reino de Valencia, tal y como sucedía en el Reino de Mallorca. 117 JUAN VIDAL, J. − “El regne de Mallorca en temps de Carles V: balanç i perspectives”, Mayurqa, 26 (2000) p. 53.PÉREZ, P. − “El mercat de blats de la vila de Sóller (1466-1476)”. Mayurqa 21 (1985-1987), p. 147. 118 BARCELÓ CRESPÍ, M. − “Aspectes de la relació de Mallorca amb el Regne de Nàpols a la Baixa Edat Mitjana”. Butlletí de la Societat Arqueològica Lul·liana 72 (2016), pp. 29-51. 119 PÉREZ, P. − “El mercat de …”, p. 147. 120 SEVILLANO COLOM, F. − “Mallorca y Castilla (1276-1343)”. Boletín de la Sociedad Castellonense de Cultura 46 (1970), pp. 321-366. 121 CATEURA BENNÀSSER, P. − “Valencia y Mallorca en el siglo XV”. Mayurqa 26 (2000), p. 184; RIERA MELIS, A. – “Crisis frumentarias y políticas municipales de abastecimiento en las ciudades catalanas durante la Edad Media…”, p. 63: El autor apunta a que se exportaba trigo a Mallorca desde la ciudad de Orihuel. 122 SERRA PUIG, E. − “Els cereals…”, p. 73. 123 SEVILLANO COLOM, F. − “De Venecia a Flandes…”, pp. 1-33 124 SEVILLANO COLOM, F. − “De Venecia a Flandes…”, pp. 1-33; SEVILLANO COLOM, F. − “Mercaderes y navegantes…”, pp. 431-520. 125 BARCELÓ CRESPÍ, M. − “Cargamentos de trigo para Mallorca a través del puerto de Málaga (1490-1516)”. In II Congreso de Historia de Andalucía. Córdoba: Consejería de Cultura y Medio Ambiente, pp. 275-287. 126 CAMPANER, Á. − Cronicon…, p. 68. EL DIEZMO DE LOS “TRIGOS” DEL CABILDO CATEDR ALICIO DEL R EINO DE MALLORCA 545 fluctuaciones de los beneficios que reportaba el diezmo de los “trigos” al colegio de canónigos. Al ser muy cuantiosos los ingresos procedentes de este impuesto, constituían una de sus principales reservas. Como se puede observar en las tablas, los reportes oscilaban entre 1500 y 2700 libras anuales. Las cuotas máximas, establecidas en el año 1409, se presentaron con unos totales de 3135 libras, 18 sueldos y 10 dineros. Por contra, el “annus horribilis” recaudó 1358 libras, 18 sueldos y 7 d, en el 1411. Los gastos derivados del diezmo, a los cuales tenía que hacer frente el Cabildo, no supusieron, a lo largo de la etapa analizada, ningún inconveniente. Nunca alcanzaron un importe superior a 300 libras. Por tanto, las finanzas catedralicias tuvieron un balance contable positivo, pudiendo disfrutar de unas cuentas perfectamente saneadas. 1400 1401 1403 2.679 lb 11 s 3 d 2.860 lb 12 s 7 d 1410 1411 1412 2.784 lb 7 s 10 d 1.358 lb 18 s 7 d 1.680 lb 17 s 1404 1405 1406 1407 1408 1409 2.227 lb 2.707 lb 2.622 lb 1.838 lb 1.887 lb 1.727 lb 3.135 lb 15 s 5 d 4 s 6 d 10 s 7 d 5 s 5 d 12 s 10 d 17 s 4 d 18 s 10 d 1414 1415 1416 1417 1418 2.164 lb 1.727 lb 12 s 10 d 11 s 7 d 1.654 lb 12 s 4 d 1.585 lb 6s4d 1.346 lb 5s 1407 1408 1420 1.506 lb 15 s 4 d Tab. 1 − Ingresos. 1400 160 lb 6s1d 1410 106 lb 3s1d 1401 201 lb 3s1d 1411 94 lb 16 s 6 d 1403 586 lb 3s1d 1412 100 lb 11 s 1404 1405 1406 145 lb 11 s 2 d 172 lb 19 s 9 d 76 lb 17 s 7 d 1414 1415 1416 289 lb 7s4d 115 lb 15 s 9 d Tab. 2 − Gastos. 254 lb 4s6d 154 lb 1s1d 1417 387 lb 14 s 2 d 35 lb 4s8d 1418 410 lb 3s1d 1409 67 lb 12 s 6 d 1420 151 lb 2s4d 546 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL 3500 LIBRAS 3000 2500 2000 1500 1000 500 1400 1402 1404 1406 1408 1410 1412 1414 1416 1418 1420 1418 1420 AÑOS Gráfico 1 − Ingresos anuales del diezmo de los cereales. 700 LIBRAS 600 500 400 300 200 100 1400 1402 1404 1406 1408 1410 1412 1414 AÑOS Gráfico 2 − Gastos de la venta del diezmo. 1416 EL DIEZMO DE LOS “TRIGOS” DEL CABILDO CATEDR ALICIO DEL R EINO DE MALLORCA 547 7. Conclusiones. Recapitulando, el diezmo de los cereales fue un impuesto que recaía sobre el 10% de la producción de trigo, toseta, cebada, trigo blando, morcajo y legumbres: habas, lentejas, garbanzos y almortas. Su implantación en el Reino de Mallorca tiene su origen en el siglo XIII con la conquista cristiana de la isla, dirigida por el rey Jaume I, que estableció un nuevo régimen político, económico y social, al cual se sumaba un régimen fiscal favorable al soberano, destacando la percepción íntegra del diezmo. En el momento de la dotación de la Iglesia de Mallorca, empezaron a surgir una serie de problemas en torno a la estructura del fisco y su cobro. Inicialmente, para la dotación de la nueva diócesis y sus miembros, el rey concedió las dos terceras partes de todos sus diezmos, pero la decisión no fue suficiente para contentar a los religiosos, ya que lo que ellos perseguían era conseguir la captación completa de los diezmos. Pese a los intentos de los soberanos por sofocar el problema de los diezmos demandados por la curia eclesiástica, el problema siguió en plena vigencia hasta la llegada, en 1315, del “Pariatge”, pacto por el cual se repartían los diezmos, por mitades indivisas, entre el rey y el Cabildo de Mallorca. A todo ello se le debe sumar el malestar político, social y económico en el que estaba inmerso el Reino, fundamentalmente durante los últimos años del siglo XIV y en el siglo XV. Las tensas relaciones entre el poder civil y la Iglesia, el asalto de la aljama judía de la ciudad en 1391, las plagas, las malas cosechas, la producción agrícola era insuficiente para poder hacer frente a las demandas de alimentos, la especulación y el fraude sobre los productos y los precios fueron la dinámica habitual en esta sociedad feudal. No obstante, en ese clima de desasosiego, los diezmos se seguían cobrando con regularidad, de los cuales se veían beneficiados los canónigos de la catedral. El sistema de transacción se realizaba mediante el arrendamiento, en efectivo o en especie. Entre los productos fiscalizados, el más importante era el diezmo de los cereales, el cual se ponía en subasta el primer domingo de mayo en la parroquia de Sineu. De las villas, donde el arriendo se tramitaba en especie, destacaron: Sineu-Sant Joan, Petra y Porreres. Al existir una mayor demanda de trigos, sus producciones se transportaban hasta la capital del Reino. Una vez en la ciudad, eran conducidas hasta la cuartera para ponerlas a la venta a particulares. Los precios de los cereales estaban sujetos una variabilidad condicionada por su lugar de origen y la temporada. Tras el análisis de los valores contabilizados, los únicos cereales que se escapaban de estas fluctuaciones de precios fueron el trigo, cuyo coste por cuartera oscilaba entre 20 y 22 sueldos, y la cebada, el cereal más asequible al mantenerse de manera continua a 9 sueldos por cuartera. En lo concerniente al precio de las legumbres, las habas se 548 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL cotizaron de una manera unificada, a 18 sueldos por cuartera. Por el contrario, el resto de producciones cerealistas, en cuanto a su tasación, estaban sujetas a variaciones. Hay que tener en cuenta que los sistemas de cultivo eran deficitarios y que, en ocasiones, conducían a una caída de la oferta de los cereales, aumentando los precios e iniciando una crisis. No obstante, el Cabildo catedralicio seguía manteniendo su capacidad financiera. Sus ingresos ordinarios procedentes del cobro del diezmo iban al alza. Cabe apuntar que el diezmo de los cereales perteneciente a los canónigos de la Catedral de Mallorca fue el más importante del conjunto tributario. Además, con todo ello, se puede observar la evolución de la administración contable capitular, poniendo de manifiesto que las estructuras eclesiásticas capitulares fueron complejas y que se iba dibujando un mayor control, dirigido al bien de la diócesis, en particular, y al bien común del Reino, en general. EL DIEZMO DE LOS “TRIGOS” DEL CABILDO CATEDR ALICIO DEL R EINO DE MALLORCA 549 550 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Pro Bono Communitatis: The Towns and Monetary Policy in León and Castile, c.1130-1230 James J. Todesca1 Abstract The commercial awakening of Europe in the long 12th century depended on trustworthy currency. As the economy quickened, governments faced the challenge of producing an ample, reliable coinage for the burgeoning merchant class while still making a profit at their mints. Incorporating both diplomatic and numismatic evidence, this paper traces the interplay between royal monetary policy and town interests in León and Castile. In 1202, Alfonso IX of León (1188-1230) called “many men from each town” to an assembly at Benavente. There the townsmen agreed to a tax of one gold morabetino per head in return for the king’s promise not to alter the coinage for seven years. In neighboring Castile, Alfonso VIII (1158-1214) opted to debase his coinage without consulting his subjects. To combat the ensuing inflation, he was then forced to issue price ceilings in consultation with “the good men of my towns” in 1207. His successors soon imitated León and sought consent for a tax as a way to maintain the coinage. Both crowns then took innovative steps to supply their towns with a stable coinage. Years later, when Alfonso X (1252-84) of a united Castile-León deviated from this policy, it helped topple him from power. Keywords Coinage; Legislative assemblies; León; Castile; Numismatics. 1 Georgia Southern University. 552 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Pro bono communitatis: Los burgos y la política monetaria en León y Castilla, c.1130-1230 El despertar comercial de Europa a lo largo del siglo XII dependió de una moneda fiable. A medida que la economía se aceleraba, los diferentes gobiernos se encontraban con el desafío de crear un sistema monetario amplio y seguro para la incipiente clase comerciante, mientras que al mismo tiempo sacaban un beneficio de esas riquezas. Incorporando pruebas tanto diplomáticas como numismáticas, este ensayo traza la interacción entre la política monetaria real y los intereses del pueblo en León y Castilla. En 1202 Alfonso IX de León (11881230) llamó en asamblea a “muchos hombres de cada villa” en Benavente. Allí los ciudadanos acordaron pagar un impuesto de un maravedí de oro por cabeza a cambio de la promesa del rey de no cambiar la acuñación monetaria durante siete años. En la vecina Castilla, Alfonso VIII (1158-1214) optó por degradar su acuñación sin consultar a sus súbditos. Para hacer frente a la resultante inflación, lo forzaron a que fijara precios máximos con el asesoramiento de los “hombres buenos de mis villas” en 1207. Sus sucesores pronto imitaron a León y buscaron un consentimiento para un impuesto como manera de mantener la acuñación. Ambas coronas dieron pasos innovadores para ofrecer a sus pueblos un sistema monetario estable. Años más tarde, cuando Alfonso X (1252-84) − de una ya unida Castilla y León − se apartó de su política, esto ayudó a derrocarlo del poder. Palabras clave: Sistema monetario; Asambleas legislativas; León; Castilla; Numismática. The small church of Santiago in Carrión de los Condes displays on its western door a team of eight minters at work (Fig. 1). They appear alongside bread makers, jugglers, scribes, peasants fighting and a judge. Together these sculptures, probably carved in the 1160s, warned townsfolk of the moral danger of “avarice, luxury and violence” associated with commercial expansion.2 The sculptor’s knowledge of the various 2 “Iglesias de Santiago”. In GARCIÁ GUINEA, Miguel Ángel; PÉREZ, José María (eds.) − Enciclopedia del Románico en Castilla y León: Palencia. Vol. 2. Aguilar de Campoo: Fundación Santa María la Real, 2002, pp. 1012-13. Slightly north of Carrión, the church of San Pelayo in Arenillas de San Pelayo also seems to display moneyers at work as does a capital in the old cathedral cloister of Salamanca. TORRES, Julio − “Obreros, monederos y casas de mondeda. Reino de Castilla, siglos XIII-XV”. Anuario de Estudios Medievales 41 (2011), PRO BONO COMMUNITATIS:THE TOWNS AND MONETARY POLICY IN LEÓN AND CASTILE 553 stages of minting, however, is striking. His detailed figures serve as a poignant reminder of the growing importance of coinage in 12th-century León-Castile. In order to prosper, towns depended on it. Fig. 1 − Minters on the western door of the Iglesia de Santiago, Carrión de los Condes (Castilla). Source: A. García Omedes, La Guía Digital del Arte Románico (http://www.romanicoaragones.com). As the scholastic philosopher Nicholas Oresme noted “money is... for the good of the community”3. While barter might suffice in small villages, farmers bringing produce to weekly town markets looked to be paid in coin. The decrees drawn up by the canons and citizens of Santiago de Compostela in 1133 make clear that country folk and town residents (rusticus vel civis) would have been hard pressed to conduct business without it4. Indeed as a destination for pilgrims, Santiago was particularly reliant on coin as these visitors had little else to trade. They were also susceptible to cheating. Alfonso VI (1065-1109) complained that the coins of Santiago were frequently counterfeited, and the decrees of 1133 specifically warn minters and money p. 684, and figs 1-4; MOZO MONROY, Manuel − Enciclopedia de la moneda medieval románica en los reinos de León y Castilla, siglos VIII-XIV. Vol. 2. Madrid, 2017, pp. 151-52, 320-22. 3 “Moneta de natura sua instituta est et inventa pro bono communitatis”. JOHNSON, Charles (ed. and trans.) − The De Moneta of Nicholas Oresme and English Mint Documents. London: Thomas Nelson and Sons, 1956, p. 10. 4 FALQUE REY, Emma (ed.) − Historia compostellana. Turnhout: Brepols, 1988, bk. 3, chap. 33, pp. 472-75. 554 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL changers not to use false weights in providing coin5. Likewise, the contemporary Codex Calixtinus, commenting on the array of artisanal products available for sale, confirms that “one finds moneychangers, innkeepers and merchants of all sorts” on the main pilgrim route into town6. If Santiago was the bustling terminus of the pilgrim road, lesser towns still demanded coin. The monastery of Sahagún lies slightly west of Carrion de los Condes on the Camino de Santiago. Sometime in the 1080s, Alfonso VI granted a charter of population so as to establish a town alongside the abbey7. In 1093, he allowed that town a weekly market, with the revenue from any fines (calumpnia) incurred going to the monastery. By the opening years of Queen Urraca’s troubled rule (1109-26), the town of Sahagún had prospered enough for its burghers to revolt against the abbey’s lordship. As part of her effort to quell the rebellion, Urraca established a mint in the town in 11168. A mint allowed the townsfolk and more affluent peasants of Sahagún to more readily commute seigniorial dues into cash9. The abbot and local lords could then in turn use that coin to procure more than what the local market provided. The author of the Codex Calixtinus, writing sometime after 1139, described Sahagún as “prosperous in all sorts of goods.”10 Coinage was the lifeblood of the growing mercantile class in the twelfth century, before instruments of credit were widely known11. In Bernard of Clairvaux’s estimation, a skilled merchant was one who collected “sacks” of money12. But these 5 TODESCA, James J. – “The Crown Renewed: The Administration of Coinage in León-Castile c.1085-1200”. In TODESCA, James J. (ed.) − The Emergence of León-Castile c.1065-1500: Essays Presented to J. F. O’Callaghan. Farnham, England: Ashgate Publishing, 2015, pp. 13-14. On coinage and travellers, see NAISMITH, Rory − “The Social Significance of Monetization in the Early Middle Ages”. Past and Present 223 (2014), pp. 24-25. 6 FALQUE REY, Emma − Historia compostellana, p. 474. Terminal dates for the Codex Calixtinus are 1139 and 1173. MELCER, William (ed. and trans.) − The Pilgrim’s Guide to Santiago de Compostela. New York: Italica Press, 1993, pp. 122-23. On Santiago’s market, see further FLETCHER, Richard A. − St. James’s Catapult: The Life and Times of Diego Gelmírez of Santiago de Compostela. Oxford: Clarendon Press, 1984, pp. 182-84. 7 BARRERO GARCÍA, Ana María − “Los fueros de Sahagún”. Anuario de historia del derecho español 42 (1972), pp. 393-401, 493-97; UBIETO ARTETA, Antonio (ed.) − Crónicas anónimas de Sahagún. Zaragoza: Anubar Ediciones, 1987, pp. 19-24. 8 HERRERO DE LA FUENTE, Marta (ed.) − Colección diplomática del monasterio de Sahagún. Vol. 3. (1073-1109). León: Centro de Estudios e Investigación “San Isidoro”, 1988, pp. 229-31, no. 911. FERNÁNDEZ FLÓREZ, José Antonio (ed.) − Colección diplomática del monasterio de Sahagún (857-1300). Vol. 4. (11101199). León: Centro de Estudios e Investigación “San Isidoro”, 1991, pp. 47-49, no. 1195. 9 In 1096, three years after the establishment of the market in Sahagún, the abbot agreed to renounce his right that all bread had to be baked in the abbey’s oven. The townsfolk agreed to pay one solidus (12 denarii) annually per family for the right to bake on their own. HERRERO DE LA FUENTE, Marta − Colección diplomática, pp. 305-306, no. 974. 10 MELCER, William − The Pilgrim’s Guide, 1993, pp. 28-29, 86-87. On coin and growth of trade, see SPUFFORD, Peter − Money and Its use in Medieval Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 1988, pp. 240-52. 11 On the develoment of credit in twefth-century Italy, see LOPEZ, Robert S. − The Commercial Revolution of the Middle Ages, 950-1350. Cambridge: Cambridge University Press, 1976, pp.72-77. 12 “Si prudens mercator es, si conquisitir huius saeculi”: LECLERCQ, Jean and ROCHAIS, H. (ed.) − PRO BONO COMMUNITATIS:THE TOWNS AND MONETARY POLICY IN LEÓN AND CASTILE 555 coins were “struck at the orders of governments”13. Richard Fitz Nigel, in his Dialogue of the Exchequer, stressed that by the time of Henry I (1100-35) coin (numerata pecunia) had become of the “utmost necessity” (summe necessaria) in England. But he also stressed that “it is the king’s profit that is served in all these matters”14. The tension then between the needs of an expanding market economy and the fickleness of authorities that might spend more than they could afford, often made the maintenance of coinage a “constitutional project”15. This paper examines the earliest known negotiations over coinage between the townsmen of León-Castile and their kings. The former sought an ample, reliable currency while the latter, following Richard Fitz Nigel’s axiom, kept an eye on the profit generated from minting. The coin common to Latin Europe since the days of Charlemagne was the silver-alloyed denarius. The opening of the Goslar silver mines in Germany in the 10th century greatly increased production of these coins. Although Goslar was drying up at the close of the 11th century, the discovery of new sources of silver at Freiberg and other sites in the late-12th century allowed the pace of monetization to again pickup speed16. But in the mid-12th century, denarii were seemingly in short supply in Christian Iberia. In 1137, Urraca’s son, Alfonso VII (1126-57), granted the monastery of Oña the right to the salt works called Pozo del Conde. In his charter, which survives only in a copy, he stipulates that merchants coming from the far side of the Pisuegra river were to pay one denarius for each beast they brought to haul salt while those on the nearer side could pay this toll in bread. Yet for the actual purchase of salt, the king expected they would pay in “gold or silver or whatever other royal money”17. By “silver or whatever other royal money”, Alfonso probably meant merchants might pay in silver plate weighed out in marks or in his own silver-based denarii18. Payment Sancti Bernardi Opera. Vol. 8. Epistolae. Rome: Editiones Cisterciensis, 1977, pp. 311-17, no. 363. 13 LOPEZ, Robert − The Commercial Revolution..., p. 71. 14 JOHNSON, Charles (ed. and trans.) − Dialogus de Scaccario and Constitutio Domus Regis. London: Thomas Nelson and Sons, 1950, pp. 38, 40-42. 15 DESAN, Christine – Making Money: Coin, Currency and the Coming of Capitalism. Oxford: Oxford University Press, 2014, pp. 1-4, 37-69. 16 WOODS, Andrew R. − “From Charlemagne to the Commercial Revolution (c. 800-1150)”. In NAISMITH, Rory (ed.) − Money and Coinage in the Middle Ages. Leiden: Brill, 2018, pp. 105-109; SPUFFORD, Peter − Money and Its Use, pp. 74-121. 17 “Trajeren oro o plata o otra qualquier moneda real.” Dated 19 November 1137, the grant survives as a hybrid copy in the Archivo de la Diputación Provincial de Burgos. The beginning and ending are in Latin, but the main body is in Spanish. The copyist appears to have struggled with the original Latin, rendering “Michael Feliz, merinus” as “Michael, filius Marinus.” The style and witness list closely parallel another royal donation done the same day, although the former gives Christopher as abbot and the latter John. Christopher, however, also appears as abbot in a donation dated December 1137. While suspect, the grant of 19 November should not be wholly rejected as a forgery. A forger working after c.1200 would likely betray himself by giving prices in morabetinos or some later silver coinage. OCEJA GONZALO, Isabel (ed.) − Documentación del monasterio de San Salvador de Oña (1032-1284). Burgos: Ediciones J. M. Garrido Garrido, 1983, pp. ix-xii, 44-45, no. 52; ALAMO, Juan del (ed.) − Colección diplomática de San Salvador de Oña (822-1284). Vol 1. Madrid: Concejo Superior de Investigaciones Científicas, 1950, pp. 209-213, nos. 174 and 177; p. 217, no. 180. 18 For payment in silver plate alongside denarii, see Urraca’s sale of land for “iii mille solidos de 556 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL in gold is a reference to the Almoravid dinar, the morabetino, which came into the Christian kingdoms as Almoravid power in the south weakened.19 While the denarius in this grant is only one method of payment, demand for the coin was surely on the rise. The longer a coin stayed in circulation, however, the more it was susceptible to wear as well as counterfeiting and clipping20.To combat this deterioration, a minting authority, be it king, bishop or local lord, had to periodically change the coinage. An honest change, or mutatio, involved altering the coin’s motif while making no change to the standard of weight or fineness. To cover production cost and to generate some profit, however, a mutatio was also normally accompanied by a declaration that all other coins were now invalid and must be turned in to the mint at a discount21. For example, Afonso III of Portugal declared in 1261 that it took sixteen old coins to equal twelve of his new ones22. A mutatio, then, amounted to a tax on one’s holding in coin and was felt hardest by the merchants and artisans of the towns. Though Alfonso’s grant to Oña speaks casually of “whatever royal money”, he and his predecessors did attempt periodic mutationes or changes of the coinage. Palencia, just south of Carrión de los Condes, was the site of a mint overseen by the bishop, who enjoyed a third of its profits. In a charter of 1140, Alfonso reveals that his predecessors used to give the bishop a gift of furs on those occasions “when the money was changed (quando mutatio monete fierit)”. Reflecting the increasing availability of coin, the king now agreed to pay the bishop fifty gold morabetinos “when there denarios...et de xii markos argenti”. FERNÁNDEZ CATÓN, José María (ed.) − Colección documental del archivo de la Catedral de León (775-1230). Vol. 5. (1109-1187). León: Centro de Estudios e Investigación “San Isidoro”, 1990, pp. 32-33, no. 1340. See further PHILLIPS, Marcus − “The Monetary Use of Uncoined Silver in Western Europe in the Twelfth and Thirteenth Centuries”. In ALLEN, Martin; MAYHEW, Nicholas (eds.) − Money and Its Use in Medieval Europe Three Decades On. London: Royal Numismatic Society, 2017, pp. 1-18. The Oña charter’s reference to “otra qualquier moneda real” is possibly a nod to the jaccensis of Aragon which circulated in León-Castile in these years, but it would be odd for Alfonso VII to recognize it. More likely, the phrase indicates that the crown was not able to completely invalidate older royal issues so as to have only one coin type in circulation. For marks of silver as well as the jaccensis, see TODESCA, James J. − What Touches All: Coinage and Monetary Policy in León-Castile to 1230. New York: Fordham University, 1996. Ph.D. Thesis, pp.166-78; 195-96, 240-41. 19 On the morabetino, see TODESCA, James J. − “Selling Castile: Coinage, Propaganda and Mediterranean Trade in the Age of Alfonso VIII”. In GÓMEZ, Miguel; SMITH, Damian; LINCOLN, Kyle C. (ed.) − King Alfonso VIII of Castile: Government, Family and War. New York: Fordham University Press, 2019, pp. 41-42. 20 Richard Fitz Nigel recognized the effects of wear, counterfeiting and clipping. JOHNSON, Charles − Dialogus de Scaccario, p. 12. 21 Oresme acknowledged that sometimes a minting authority changed their coin without “prohibiting the previous money from circulating.” JOHNSON, Charles − The De Moneta..., pp. 13-14; cf. TODESCA, James − “The Crown Renewed...”, pp. 15-16. 22 “Duodecim denarii de moneta nova valeant per cambium in omnibus emptionibus et venditionibus et rebus aliis sexdecim denarios de veteribus denariis.” HERCULANO, Alexandre (ed.) − Portugaliae Monumenta Historica, Leges et Consuetudines. Vol. 1. 1856, reprint Nendeln, Liechtenstein: Kraus, 1967, pp. 210-12, no. 9. PRO BONO COMMUNITATIS:THE TOWNS AND MONETARY POLICY IN LEÓN AND CASTILE 557 is a change to new money”23. 50 gold pieces was not a small sum. Alfonso clearly anticipated a profit when he changed the coinage which he was willing to share with the bishop. Herein lay the problem with the mutatio; it was subject to abuse. In February of 1155, the papal legate Hyacinth, the future Celestine III (119198), convoked a large church council in the Castilian town of Valladolid. Following the tradition of the councils of Toledo, Emperor Alfonso and his two sons attended. Hyacinth, trained in theology and perhaps law at Paris, was respected throughout Europe despite his association with the radicals Abelard and Arnold of Brescia24. But at Valladolid relations between him and Alfonso grew tense over a dispute involving the archbishops of Braga and Compostela25. Alfonso was undoubtedly further annoyed by the council’s final decree, monetam quidquam, which requested that the emperor swear to maintain one coinage for the rest of his days, without exacting a price26. It further stipulated that this coin be of good weight and 4 denarii fine or onethird silver, a standard then becoming common in southern Europe27. While the presence of townsmen is not recorded at Valladolid, we can perhaps detect their input in monetam quidquam. First, the canon’s call for a specific fineness sounds like the expert advice of men attuned to the market. Secondly, its demand that Alfonso henceforth maintain one coin is clearly a protest against frequent mutations, a policy costly to the mercantile class since it taxed their capital in coin.28 Indeed the numismatic record affirms Alfonso changed his coin often. In his pioneering ABAJO MARTÍN, Teresa (ed.) − Documentación de la catedral de Palencia (1035-1247). Burgos: Ediciones J.M. Garrido Garrido, 1986, pp. 80-82, no. 35; TODESCA, James − “The Crown Renewed...”, pp. 22-23. 24 Louis VII (1137-80) of France and Eleanor of Aquitaine both valued his friendship. DUGGAN, Anne J. − “Hyacinth Bobone: Diplomat and Pope”. In DORAN, John and SMITH, Damian J. (eds.) − Pope Celestine III (1191-1198): Diplomat and Pastor. Farnham, England: Ashgate, 2008, pp. 3-8. 25 SMITH, Damian J. − “The Iberian Legations of Cardinal Hyacinth Bobone”. In DORAN, John − Pope Celestine..., pp. 91-93. 26 For the canon monetam quidquam, see TODESCA, James − “The Crown Renewed...”, p. 26, n. 55; TODESCA, James − What Touches All..., pp. 485-89. Precedent for confirming or swearing to uphold a coinage can be found in Catalonia. In 1118, Ramon Berenguer III (1086-1131) of Catalonia swore to maintain his coinage in Cerdanya, upon inheriting the county. But he exacted a cash payment in return which monetam quidquam condemns. Bisson believed monetam quidquam was first promulgated at Hyacinth’s council in Lerida, held after Valladolid, and suggests Bishop Pere of Vich may have been influential in drawing up the canon. But monetam quidquam addresses the emperor and so clearly originated at Valladolid. BISSON, Thomas − Conservation of Coinage: Monetary Exploitation and its Restraint in France, Catalonia, and Aragon (c. A.D. 1000-c.1225). Oxford: Clarendon Press, 1979, pp. 50-51, 81-82, 199-200, no. 1. 27 Medieval mints designated fineness by a special use of the term denarius. Pure silver was 12-denarii fine; a coin of half silver was 6-denarii fine. The Council of Valladolid called for a coin of 4 denarii or 0.33 fine. The coins of Jaca, Melgueil and Tours were all struck at this quaternal standard. SPUFFORD, Peter − Money and Its Use..., pp. 102-103. 28 It seems unlikely that the initiative behind monetam quidquam came solely from the clergy though the archbishop of Toledo presided over a council in Palencia in 1129 that warned against counterfeiting. GARCÍA Y GARCÍA, Antonio − “Concilios y sínodos en el ordenamiento jurídico del reino de León”. In El reino de León en la alta edad media. Vol. 1. Cortes, concilios y fueros. León: Centro de Estudios e Investigación “San Isidoro”, 1988, pp. 489-90, no. 6. 23 558 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL catalogue of the coinage, Heiss assigned thirty denarii to the reign29. But Alfonso VII’s reference to “qualquier moneda real” in the Oña grant of 1137 implies these changes were not executed efficiently and left a confusing array of older types in circulation, a further annoyance to merchants. The emperor, however, had little time to accept or reject the Valladolid council’s admonition; he died unexpectedly in August of 1157. The following May his eldest son, Sancho III (1157-58), accepted a division of the realm with his brother. Sancho became king of “Toledo and Castile” while Fernando II (1157-88) ruled as king in “León and Galicia”30. Sancho, however, died three months after the Sahagún meeting leaving his son, Alfonso VIII (1158-1214), as successor. The boy, not yet three, was now an orphan as his mother had died shortly before. Let us leave Alfonso for the moment as a child in Castile where rival factions vied for the regency. The continued contest between the towns and the crown over coinage can be traced more clearly in the Leonese sources31. Despite having attended the Valladolid council, Fernando II continued to exercise his sovereign right to periodically change the coinage. Coins in Fernando’s name are rare today, but Manuel Mozo, in his recent corpus, provides photographs of examples held in private collections. Mozo’s evidence indicates that Fernando struck at least fourteen types in his thirty-one years on the throne, implying he changed the coinage every two years or so32. Fernando’s proclivity to impose mutationes can also be glimpsed in his dealings with the see of Santiago. As we have seen, Santiago had a thriving mint thanks to an influx of foreign coins brought by pilgrims. Alfonso VI (1065-1109) had granted the bishop and cathedral chapter of Santiago full control of that mint, but Fernando’s father, Alfonso VII, reclaimed half the revenue. Fernando in turn restored full mint rights to the cathedral in 117133 and confirmed that privilege 29 HEISS, Aloïss − Descripción general de las monedas hispano-cristianas desde la invasión de los Árabes. Vol. 1. l865; reprint, Madrid: J.R. Cayon, 1975, plates 1-3. Many of these types carry no ruler’s name but invoke the imperial title. It is conceivable that some predate Alfonso VII and belong to his grandfather or even great grandfather. CRUSAFONT, Miquel; BALAGUER, Anna M.; GRIERSON, Philip − Medieval European Coinage, Vol. 6. The Iberian Peninsula. Cambridge: Cambridge University Press, 2013, pp 235-49, conclude that there are “more than 70 distinct monetary types” belonging to Alfonso VII, but they do not delineate how they arrive at that number. 30 According to the Primera crónica general, Sancho buried his father in Toledo and commenced to rule. He settled with his brother almost a year later at Sahagún. MENÉNDEZ PIDAL, Ramón (ed.) − Primera crónica general. Vol. 1. Madrid: Bailly-Bailliere é Hijos, 1906, pp. 663-64, chaps. 983-85; PROCTER, Evelyn S. − Curia and Cortes in León and Castile, 1072-1295. Cambridge: Cambridge University Press, 1980, pp. 73-74; GONZÁLEZ, Julio (ed.) − Regesta de Fernando II. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1943, pp. 241-43, no. 1; TODESCA, James − “Selling Castile”, pp. 31-32. 31 As PROCTER, Evelyn − Curia..., pp. 73-74, observes, “in the chaotic conditions of the minority (of Alfonso VIII) the curia did not play an effective role.” 32 Mozo catalogues 28 types under Fernando II. But his types 8-10 likely belong to Alfonso VIII of Castile. Likewise, I exclude types 11-16 which Fernando may have struck jointly with Alfonso VIII in Castile during the latter’s minority. In other instances, Mozo enters as separate types coins I interpret as variants of one type. MOZO MONROY, Manuel – Enciclopedia..., pp. 47-161. 33 RECUERO ASTRAY, Manuel; ROMERO PORTILLA, Paz; RODRÍGUEZ PRIETO, Angeles (eds.) − PRO BONO COMMUNITATIS:THE TOWNS AND MONETARY POLICY IN LEÓN AND CASTILE 559 in 1182. His charter of 1182 to Archbishop Peter and his canons outlines how this independent mint in Santiago was to operate alongside the king’s other mints: From this day you shall hold fully the entire mint with all its dues (directuris)...so that however much I lord king F(ernando) or my son lord king A(lfonso) or any of our successors may wish to remove (tollere) the money from the kingdom or permit it to be diminished in value, you and your successors shall be able to let this money of yours continue at full and firm value, valid and steadfast, in your town of Santiago and throughout your entire archdiocese as long as you wish, and this money of yours, granted and conceded to you, will suffer minimum damage due to any commutation and diminishment of value34. From what we know of the mechanics of mutation, the charter’s language makes precise sense. Fernando speaks of his right to “take” (tollere) a coin out of circulation and explains that this removal was accomplished by a commutation where the old coins were diminished in value against the new ones. He assures Santiago that their coins will remain exempt from this process; they will continue to circulate within the archdiocese at full value. Obv. IACOBI, bust facing front. Rev. REX, lion passant left; scepter/cross above. Source: Jesús Vico, S.A., auction 135, lot 400. Fig. 2 − Anonymous denarius minted at Santiago de Compostela. Documentos medievales del reino de Galicia: Fernando II (1155-1188). La Coruña: Xunta de Galicia, 2000, pp. 151-52, no. 122; TODESCA, James − “The Crown Renewed...”, pp.13-14, 27-28. 34 RECUERO ASTRAY, Manuel − Documentos, pp. 251-53, no. 193; Cf. TODESCA, James − “The Crown Renewed...”, pp. 27-28. 560 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Figure 2 shows one of the independent coins of Santiago. On the obverse we can just make out an image of St. James wearing a wide pilgrim’s hat with the legend IACOBI underneath. The reverse shows a lion passant facing left with a scepter rising above. Underneath is the legend REX, pointedly omitting the king’s name. By renouncing his father’s claim to the Santiago mint, Fernando had in effect allowed a feudal coinage at a time when Phillip Augustus (1180-1223) of France managed to get rid of many of the local coins in his realm in favor of two regional royal issues, the parisis and the tournois.35 The king’s indulgence of Santiago was at best awkward. Pilgrims and merchants travelling across León would be reluctant to change coins upon entering the archdiocese if they were to soon return along the same road and be expected to again use the royal coin. Overall, his tolerance of an independent mint in Santiago combined with frequent changes to the coinage in the rest of the realm amounted to a feckless monetary policy which could only have frustrated his subjects. Popular dissatisfaction with Fernando’s reign is evident in the action taken by his son Alfonso IX (1188-1230) as he moved to secure the throne after his father’s death in January 118836. In June, the sixteen-year-old Alfonso journeyed to Carrión de Los Condes where his cousin, the now grown-up Alfonso VIII, held “a famous and noble curia”37. At that assembly, Alfonso VIII knighted his young cousin and received his homage. Girded with the sword of knighthood, Alfonso IX returned to his realm where he convoked his first large curia in León that July38. The meeting was attended not only by his bishops and lay magnates but by “selected citizens of each city”, the earliest reference to townsmen at the Leonese court39. At the meeting, SPUFFORD, Peter – Money and Its Use..., pp. 197-200. Alfonso IX, born August 1171, was the product of Fernando’s first marriage to Urraca of Portugal; the couple separated in 1175 under pressure from Rome. Fernando’s third wife, Urraca López de Haro, survived her husband. With her own young son, she opposed Alfonso’s claim to the throne. ARVIZU, Fernando de − “Las cortes de León de 1188 y sus decretos: Un ensayo de critica institucional”. In El reino de León...,Vol. 1, pp. 19-22; BIANCHINNI, Janna − The Queen’s Hand: Power and Authority in the Reign of Berenguela of Castile. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2012, pp. 22-24. 37 O’CALLAGHAN, Joseph F. (trans.) − The Latin Chronicle of the Kings of Castile. Tempe: Arizona Center for Medieval and Renaissance Studies, pp. 22-23, chap. 11. The author of the chronicle, presumably Juan de Osma, here refers to Alfonso IX as “who now reigns,” indicating he composed at least this section during the king’s lifetime. Rodrigo de Rada described the assembly at Carrión in 1188 as a plena curia. O’CALLAGHAN, Joseph F. − The Cortes of Castile-León, 1188-1350. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1989, p. 14; O’CALLAGHAN, Joseph F. – “The Beginnings of the Cortes of León-Castile”. American Historical Review 74 (1969), p. 1516. 38 Similarly, Alfonso VIII called his first curia to Burgos directly after being knighted in 1169. GONZÁLEZ, Julio − El reino de Castilla en la época de Alfonso VIII. 3 Vols. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1960, Vol. 2, pp. 211-16, nos. 124-26; TODESCA, James – “Selling Castile...”, p. 34. 39 “Cum celebrarem curiam apud Legionem cum archiepiscopo et episcopis et magnatibus regni mei et cum electis civibus ex singulis civitatibus.” This undated charter records decrees dealing mainly with violence and judicial procedure. It seems likely that it is part of the acta of a large curia held in July 1188. ARVIZU, Fernando de − “Las cortes de León...”, p. 28; FERNÁNDEZ CATÓN, José María − “La curia regia de León...”, p. 485. González, however, argued that these decrees were produced at a meeting in April and that a second curia was held in July. GONZÁLEZ, Julio − Alfonso IX..., 2 Vols. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones 35 36 PRO BONO COMMUNITATIS:THE TOWNS AND MONETARY POLICY IN LEÓN AND CASTILE 561 Alfonso accused his father of having given “extravagantly of what ought to be given and what ought not to be given.” He therefore revoked his father’s charters pertaining to “royal storehouses (regiis cellariis) and other things (aliis)”, though what those other things were is unclear40. As with so many medieval assemblies, both lay and ecclesiastical, we surely do not have all the acta of this extraordinary curia which must have met over several days in the summer of 118841. By way of comparison, the only evidence we have of Henry II (1154-89) of England’s curia at Oxford in 1180, where he reached the important decision to change his coinage for only the second time, comes from passing references in two charters. As Paul Brand stressed, Henry’s councilors presumably wrote the various assizes of the reign down, but few have survived42. Likewise, we have only a single document that attests to two other royal assemblies held in León fourteen years after Alfonso’s initial curia of 1188. This text records a series of judicial decisions reached by a “full court” (plena curia) meeting at Benavente in March 1202. It tells us that “many men from each town” north of the Duero were in attendance43. The first few judgements address how knights and townsmen were to hold land from the church. The last has to do with the coinage: Científicas, 1944, Vol. 1, p. 46; Vol. 2, pp. 23-26, no. 11. PROCTER, Evelyn S. − “The Interpretation of Clause 3 of the Decrees of León (1188)”. English Historical Review 85 (1970), p. 45; O’CALLAGHAN, Joseph − “Beginnings...”, pp. 1513-1514;” O’CALLAGHAN, Joseph − The Cortes..., p. 16, accepted Gonzalez’ theory of two assemblies. 40 “Quia pater meus...prodigaliter dederat danda et non danda, revocarem omnes incartationes de regiis cellariis et de aliis quas ipse fecerat.” Alfonso is here recalling his actions at the curia in an undated mandate. He reveals further that the curia in question was held “in primordio regni mei, cum primo curiam celebravi apud Legionem, in claustro Sancti Isiodoro, presentibus archiepiscopo et episcopis, et ceteris ordinibus et religiosis viris, et presentibus comitibus et ceteris nobiliibus regni mei, cum ibi decreta mea institui.” GONZÁLEZ, Julio − Alfonso IX..., Vol 2, pp. 737-38, no. 662. 41 In addition to the documents discussed in notes 38 and 39 above, a third, dated July 1188, was done “cum venisem ego rex dominus Adefonsus Legionem.” It contains constitutiones addressing lawlessness in the kingdom and was enacted with “communi assensu et consilio baronum et curie mee.” GONZÁLEZ, Julio − Alfonso IX..., Vol 2, pp. 26-28, no. 12. This third document seems to date the curia to July, although Fernández Catón suggests it took place in June, before Alfonso journeyed to Carrión, and that the constitutiones were redacted later. FERNÁNDEZ CATÓN, José María − “La curia regia de León de 1188 y sus “decreta” y constitución”. In El reino de León en la alta edad media, Vol. 4. La monarquía (1109-1230) León: Centro de Estudios e Investigación “San Isidoro”, 1993, pp. 487, 492-97. 42 STACK, Gilbert M. − English Mint Administration, Moneyers and the Monetary Reform in the Reign of Henry II, 1154-1189. New York: Fordham University, 2004. Ph.D. Thesis, pp. 104-105; BRAND, Paul − “Henry II and the Creation of the English Common Law”. In HARPER-BILL, Christopher; VINCENT, Nicholas − Henry II: New Interpretations. Suffolk: Boydell Press, 2007, p. 228; ALLEN, Martin − “Henry II and the English Coinage”. In HARPER-BILL, Christopher − Henry II…, pp. 268-69. With regards to ecclesiastical gatherings, between 1049 and 1122 the popes or their legates called “at least one hundred councils... Of only one fourth of these synods do we possess a full or partial record of the decrees they issued.” ZEMA, Demetrius B. − “Reform Legislation in the Eleventh Century Church and Its Economic Import”. The Catholic Historical Review 27 (1941), p. 22. 43 The document, preserved in the cathedral of Zamora, appears to be original. A later Latin copy exist as well as a copy in Spanish. MUÑOZ Y ROMERO, Tomás − Colección de fueros municipales y cartas pueblas. 1847, reprint Madrid: Ediciones Atlas, 1972, pp. 107-110; ARVIZU, Fernando de − “Las cortes de León...”, p. 61; ESTEPA DIEZ, Carlos − “Las Cortes del reino de León”. In El reino de León..., Vol. 1, p. 230. 562 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Also in this curia it was decided, just as it always was, that if the king should again wish to change (mutare) his coinage for another, everyone from his kingdom must receive it uniformly. But if he wishes to sell (it), the people of the land shall not unwillingly buy it; and if the people of the land wish to buy it, the king shall not sell it to them unless he wishes to. But if he wishes to sell it and the people of the land wish to buy it, every one of his kingdom ought to uniformly buy it from him44. This is the first clear sign of a monetary conservation tax in León. Similar imposts had emerged earlier in the Anglo-Norman realm, as well as in Capetian France and Aragon-Catalonia45. The tax was an alternative to the king exercising his sovereign right to change the coinage. Rather than see their old coins invalidated, the assembly at Benavente agreed to pay a flat tax of one morabetino per head in exchange for the king not altering the money for seven years. The text refers to this levy as moneta.46 In England and Normandy it was called monetagium. The document goes on to inform us that a separate assembly meeting slightly earlier in the frontier zone of Extremadura also agreed to the moneta tax. It is safe to assume townsmen attended this meeting as well47. That the Benavente agreement was to last seven years should give us pause. Alfonso’s first assembly at León was fourteen years prior. While the three extant documents pertaining to the 1188 curia fail to mention coinage, there is clear evidence that the moneta levy had been agreed to before Benavente in 1202. In 1199, Alfonso confirmed for Salamanca’s town council the privileged status of twenty-five men working on the cathedral. The grant originated with Alfonso VII and was twice confirmed by Fernando II48. Alfonso IX’s charter, however, adds a qualification that 44 GONZÁLEZ, Julio − Alfonso IX..., Vol. 1, pp. 236-37, no. 167; TODESCA, James − “The Crown Renewed,” p. 28-30. 45 BISSON, Thomas − Conservation of Coinage: Monetary Exploitation and its Restraint in France, Catalonia, and Aragon (c.A.D. 1000–c.1225), passim. 46 The Benavente charter speaks of the sale of the money, “de emtione ipsius monete,” but in a later passage uses moneta in the sense of the tax collected: “Quod rex nec militibus nec aliis tenetur partem facere de pecunia quam collegerit pro su moneta...aut de pecunia quam colligat pro fossadaria.” This seems to say that the “king shall not be held to concede (facere) to his knights or others part of the wealth (pecunia) that he collects from his money tax (moneta) ...or from the wealth (pecunia) that he collects from fossadaria.” GONZÁLEZ, Julio − Alfonso IX..., Vol. 2, pp. 236-37, no. 167. This passage does not appear to be in the later Castilian version of the charter. MUÑOZ Y ROMERO, Tomás − Colección de fueros, pp. 109-110. 47 “Similiter eodem anno, et tempore simili eorum empta fuit moneta in tota Extremadura”. The Spanish translation is slightly different: “Otrosi en este mismo año, é tiempo, por esa mesma moneda de toda Exrtremadura”. GONZÁLEZ, Julio − Alfonso IX..., Vol. 2, pp. 236-37, no. 167; MUÑOZ Y ROMERO, Tomás - Colección de fueros, p. 110. 48 MARTÍN MARTÍN, José Luis, et alii (ed.) − Documentos de los archivos catedralicio y diocesano de Salamanca (siglos XII-XIII). Salamanca: Universidad de Salamanca, 1977, pp. 103-104, no. 17; pp. 122-24, no. 33; pp. 172-73, no. 85. These three older privileges are addressed to the cathedral chapter. Alfonso IX’s charter, however, is addressed to the town council. PRO BONO COMMUNITATIS:THE TOWNS AND MONETARY POLICY IN LEÓN AND CASTILE 563 does not appear in his predecessors’ privileges. It stipulates that these workers “are exempt and perpetually free so that henceforth no one shall demand anything from any of them... even if moneta is decreed in Salamanca or in its district”49. The text leaves no doubt that the moneta tax appeared before 1202, though it implies it had not been collected recently. The logical conclusion is that the assembly of León in 1188 had approved the sale of the coinage for seven years, or until 1195. Indeed in November 1194, Alfonso granted the military Order of Santiago a “full tenth of my moneta from the land of León, Zamora, Villafranca and my Asturias”50, another indication the tax existed before 120251. Alfonso did not include a tenth of moneta revenues from the archdiocese of Santiago in this grant because earlier in the year he had confirmed that the mint there was still independent of royal authority52. Since the cortes of 1188 was only months into his reign, Alfonso’s agreement to not change the coinage at that time probably meant maintaining his father’s last coin for seven years. He would have been able to sell the money again in 1195, but there is no indication he did so53. Perhaps his subjects balked at paying another moneta levy so soon, or perhaps Alfonso deemed it profitable at that point to issue a new coin in his own name. Hence the grant to Salamanca of 1199 anticipates that moneta might be decreed in the future. Three years later, in 1202, the levy was agreed to at Benavente and at an assembly south of the Duero. The Benavente texts says that at that meeting the “king sold his money to the people of the land from the Duero to the sea”, implying the agreement encompassed the archiepiscopacy of Santiago. Two undated royal mandates corroborate that Alfonso had by this point revoked Santiago’s independence, insisting his coin circulate in Galicia and that he collect moneda there when appropriate.54 The “Excusaverunt et perpetuo liveraverunt, sic quod nullus ab aliquo illorum deinceps aliquid exigat pro aliqua fazendaria seu pecto vel petito aut fossato, licet moneda mittatur in Salamanca vel in suo termino ad forum vel ad defforum, et ipsi excusati nulli teneantur de aliquo foro respondere nisi operi Sancte Marie.” MARTÍN MARTÍN, José Luis - Documentos, pp. 198-99, no. 109; GONZÁLEZ, Julio − Alfonso IX..., Vol. 2, pp. 186-88, no. 130. Cf. PROCTER, Evelyn − Curia, pp. 54-55; GRASSOTTI, Hilda − “Dos problemas de historia castellano-leonesa, 2: El pueblo y la moneda real en León y Castilla durante el siglo XII”. Cuadernos de Historia de España 49/50 (1969), pp. 182-84. 50 The following month, December 1194, Alfonso reaffirmed the privilege of moneta revenues to the Order of Santiago, granting “decimam partem tallii totius monete regni mei”. The language here assures us that moneta means a tax (tallage). The phrase “of my kingdom”, however, must not have encompassed independent Santiago. GONZÁLEZ, Julio − Alfonso IX..., Vol. 2, pp. 133-35, nos. 89-90. 51 Though they date it to 1197, Sánchez Albornoz and Prieto Prieto both took Alfonso’s grant to the Order of Santiago as evidence that moneta had been agreed to at León in 1188. SÁNCHEZ ALBORNOZ, Claudio − “La primitiva organización monetaria de León y Castilla”. Anuario de Historia del Derecho Español 5 (1928), pp. 339-40; PRIETO PRIETO, Alfonso − “La historiología de las cortes leonesas del 1188”. In El reino de León..., Vol. 1, 164. 52 GONZÁLEZ, Julio − Alfonso IX..., Vol. 2, pp. 122-23, no. 82. 53 Alfonso did hold a curia in the fall 1194, addressing its constitutiones to “omnibus regni sui prelatis et principibus et populis universis.” GONZÁLEZ, Julio − Alfonso IX..., Vol. 2, pp. 125-29, nos. 84-85; FERNÁNDEZ CATÓN, José María − “La curia regia de León...”, pp. 455-64, 470-75. 54 GONZÁLEZ, Julio − Alfonso IX..., Vol. 2, p. 733, no. 653, p. 739, no. 665; GONZÁLEZ BALASCH, 49 564 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL numismatic evidence also supports this conclusion. Figure 3 shows two variations of a well-struck denarius which may be Alfonso IX’s first issue, struck c.1195. Type A invokes the city of León, while type B alludes to Santiago. Both weigh over a gram, a good weight for a 12th-century denarius. A donation to San Pelayo of Oviedo in 1192 equates the gold morabetino to 84 royal denarii giving the Leonese denarius the same purchasing power as the well-respected denarii of Tours and Anjou55. Alfonso’s new coin likely upheld that strength. In 1202, then, Alfonso’s subjects agreed to again pay moneta in order to avoid another mutatio. At some point after that, however, the king resorted to debasement. One of his undated mandate reads: To all of Galicia who see this letter...I firmly and openly command that you shall accept this money of mine that now circulates just as you always (unquam) accepted a better one. And he who shall hence do otherwise, shall forfeit himself and all his possessions to me. And I command that my man who carries this letter of mine, along with the man of the archbishop, should seize him and take him and in this way bring him before me56. The mandate clearly seeks to quash resistance to a coin that had been reduced in either fineness or weight. Its stern language may indicate that the populace saw the debasement as particularly grievous, i.e., it occurred before the Benavente agreement expired in 1209. In 1204, Alfonso’s marriage to Berenguela, the daughter of Alfonso VIII of Castile, had collapsed. He not only had to field an army to counter Castilian aggression but by early 1205 made concessions to both Alfonso VIII and some “of the highest-ranking Castilian nobility”57. It was precisely at this time, January 1205, that Bartholomew and Simon Bonefacii mortgaged a vineyard in the environs of the city of León for 30 gold morabetinos, reserving the right to buy it back in one year or, failing that, in two years. But there were stipulations. If the denarius “should be debased (deteriorata fuerit)”, they agreed to redeem their land using gold. If the denarius remained stable (stabilis fuerit), however, they could buy back the property with denarii at the rate of 96 to the morabetino, a higher rate than what was current in the 1190s. It seems that despite the Benavente agreement, the Leonese denarius had fallen some by early 1205, and the Bonefacii feared it may do so again58. María Teresa (ed.) − Tumbo B de la Catedral de Santiago: Estudio y Edicíon. Santiago: Seminario de Estudios Gallegos, 2004, pp. 302-303, no. 143. 55 FERNÁNDEZ CONDE, Francisco Javier; TORRENTE FERNÁNDEZ, Isabel; LA NOVAL MENÉNDEZ, Guadalupe de (ed.) − El monasterio de San Pelayo de Oviedo: Historia y fuentes. Vol. 1. Colección diplomática (966-1325). Oviedo: Monasterio de San Pelayo, l978, pp. 91-94, no. 42. For the strength of the tournois and angevin, see TODESCA, James − What Touches All, pp. 276-78. 56 GONZÁLEZ, Julio − Alfonso IX..., Vol. 2, p. 733, no. 653. 57 BIANCHINNI, Janna − The Queen’s Hand..., pp. 76-80. 58 FERNÁNDEZ CATÓN, José María (ed.) − Colección documental del archivo de la catedral de León PRO BONO COMMUNITATIS:THE TOWNS AND MONETARY POLICY IN LEÓN AND CASTILE Type A: Obv. ADEFONSVS REX., lion. Rev. LEGIO CIVITAS:, cross. Wt. 1.01 g. Source Áureo y Calicó, auction 318, lot 1250. Type B: Obv. :ADEFONSVS REX:, lion passant, right. Rev. APIS.CI IACOBI., cross. Wt. 1.04 g. Source: Museo Arqueológico Nacional 1994.50.265. Fig. 3 − Two variations of a denarius of Alfonso IX of León, perhaps struck between 1195 and 1202. 565 566 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL The numismatic record suggests that this slight drop in the purchasing power of the Leonese denarius was caused by a reduction of its weight standard. The two coins shown in Figure 4 are less carefully struck than the denarius in Figure 3, and surviving specimens consistently weigh less than a gram59. One of these two coins likely represents Alfonso’s debasement c.1205. The Bonefacii, as informed residents of the town of León, may well have realized that Alfonso IX’s appeasement of his erstwhile father-in-law was not complete in 1205, but their fear that the denarius might fall again does not seem to have materialized. There is no further hint of popular resentment toward the coinage, and the sale of a house in Oviedo in 1217 quotes the same rate of 96 denarii to the morabetino that the Bonefacii had agreed to60. In the remaining years of his reign, Alfonso probably alternated between selling the coinage and issuing at least one more type though without any further diminishment in weight or fineness. Through a combination of mutatio and sale of the coinage, Alfonso IX and the populace of León managed to avoid drastic debasement. The same cannot be said for Alfonso VIII and Castile. The Castilian king was badly defeated by the Almohad caliph al-Mansur at Alarcos in 1195. Though al-Mansur followed up his victory with additional campaigns, Alfonso procured a truce c.1197. Roughly ten years later, perhaps around the time the peace was to expire, Alfonso convoked a large curia to deal with a mounting economic crisis61. As with the extraordinary assembly at Benavente in 1202, we have only a single document generated by this meeting, a set of price ceilings sent to the concejo of Toledo dated 120762. As Hernández points out, the document is an early example of a cuaderno, a record sent out by the king’s chancery of decisions made at his curia. This curia assembled during the Christmas season of either 1206 or 1207. The preamble tells us the ceilings, or cotos, were necessary because “things were being sold for more than is right and there was great damage to yourselves (i.e., the concejo of Toledo), the land, the archbishop and all the good men of my towns”63. The reference here to the archbishop perhaps indicates that the meeting was held in Toledo itself. Since the decrees were sent to the towns to (775-1230). Vol. 6. (1188-1230). León: Centro de Estudios e Investigación “San Isidoro”, 1991, pp. 157-58, no. 1780. 59 OROL PERNAS, Antonio − Acuñaciones de Alfonso IX. Madrid: Editorial Vico, l982. 60 FERNÁNDEZ CONDE, Francisco − El monasterio de San Pelayo, pp. 105-107, no. 50. For the series of treaties Alfonso IX made with Castile, see BIANCHINNI, Janna − The Queen’s Hand..., pp. 80-96. 61 The truce with the Almohads is reported both in the “Latin Chronicle” and by Rodrigo Jiménez de Rada, but neither specifies how long it was to last. O’CALLAGHAN, Joseph – The Latin Chronicle..., pp. 30-32, chap. 15; FERNÁNDEZ VALVERDE, Juan (ed.) – Roderici Ximenii de Rada, Historia de rebus hispanie sive historia gothica. Turnhout: Brepols, 1987, bk. 7, pp. 252-53, chap. 30; p. 256, chap. 34. Cf. O’CALLAGHAN, Joseph F. – Reconquest and Crusade in Medieval Spain. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2003, p. 63. 62 “Facta carta apud Toletum. ERA M CC XLV.” HERNÁNDEZ, Francisco J. – “Las cortes de Toledo de 1207”. Las cortes de Castilla y León en la Edad Media. Vol 1. Valladolid: Cortes de Castila y León 1988, p. 246. 63 HERNÁNDEZ, Francisco − “Las cortes,” p. 240. PRO BONO COMMUNITATIS:THE TOWNS AND MONETARY POLICY IN LEÓN AND CASTILE Obv. AN FO NS REX, cross divides field, scallop in each quadrant. Rev. LEO, lion passant right, cross above, O mark to right. Wt. .88g. Source: Áureo y Calicó, auction 297, lot 1320. Obv. + ILDEFONS: REX. Cross w. fleur de lys in each quadrant. Rev. Floral cross, square mark to each side, lions below. Wt. .87 g. Source: Museo Arqueológico Nacional 1994.50.358. Fig. 4 – Two denarii of Alfonso IX of León, probably struck between 1209 and 1230. 567 568 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL be read publicly and put into effect fifteen days after Christmas, it seems certain that town representatives participated in drawing them up64. While the document that has come down to us is not an original, it appears to be a contemporary copy and is in Castilian rather than Latin. It is possible the original was in Castilian as well so as to make the edicts more easily understood when they were read out65. The prices are set in morabetinos and dineros pepiones. It is perhaps not coincidental that this Romance text is the earliest text known to employ the colloquial term pepión to describe one of Alfonso VIII’s coins66. The term may derive from pepita or pipa, a seed or pip, connoting something of little value67. Shortly after Fernando III (1217-52) ascended the throne of Castile, he made a treaty with his father, Alfonso IX of León, where he recognized it took 180 pepiones to equal a morabetino68. Since 96 leoneses also equaled a morabetino, it is evident that the pepión was far weaker. It was what Catalan sources call a doblench, a coin of 2 denarii fine as opposed to the 4 denarii standard the council of Valladolid had hoped to maintain69. The distribution of types in 13th-century hoards suggests that the coin in Figure 5 is the debased pepión introduced by Alfonso VIII70. Once we recognize the pepión as a drastically debased coin, the price edicts of 1207 make sense. Prices were rising because merchants had discovered the coin’s reduced intrinsic value. That meant that anyone receiving fixed rents saw their 64 “Este establecemiento compice de seer curiado de quince dias despues de la fiesta de Natal qee es passada cabedelant. Et esta carta fagades la leer en el conceio, despues en los mercados e fagades que todos la iuren.” HERNÁNDEZ, Francisco − “Las cortes…” p. 245. The stipulation that the decrees be enacted fifteen days after Christmas raises two possibilities for the year of the actual assembly. It may have met late in 1207 with the edicts to go into effect in early1208. Or it met in late 1206 with the cuaderno itself not drawn up until early 1207 as HERNÁNDEZ, Francisco − “Las cortes…”, p. 225, suggests. 65 The treaty of Cabreros in 1206 between Alfonso IX and Alfonso VIII, which survives as an original with royal seals attached, is in Spanish. GONZÁLEZ, Julio − El reino de Castilla..., Vol. 3, pp. 365-74, no. 782; HERNÁNDEZ, Francisco − “Las cortes…” p. 223. 66 An undated will of Sancho I of Portugal (1174-1211) mentions “solidi et pipiones”. If this is a reference to Alfonso VIII’s coin, the will must be later than the year 1188 which Azevedo assigns it. AZEVEDO, Rui Pinto de; JESUS, P. Avelino de Jesus da; PEREIRA, Marcelino Rodrigues − Documentos de D. Sancho I (1174-1211). Vol 1. Coimbra: University of Coimbra, 1979, pp. 49-51, no. 31; MOZO MONROY, Manuel – Enciclopedia, pp. 304-305. 67 WILLIAMS, Edwin B. − Spanish and English Dictionary. Cali, Colombia: McGraw-Hill, 1978, p. 452, gives the idiom “no dárselo a uno un pepino de” as “to not give a fig for” or “to not care about”. ALONSO, Martín – Diccionario medieval español. Vol. 2. Salamanca: Pontifical University of Salamanca, 1986, p. 1488, suggests pepión derives from the Latin pipio meaning a young bird or piping. Cf. MOZO MONROY, Manuel – Enciclopedia, pp. 311-312. 68 The treaty survives in an undated “draft” and a shorter “official” version dated 26 August 1218. GONZÁLEZ, Julio − Alfonso IX. Vol. 2, pp. 460-62, no. 352; p. 479, no. 366; BIANCHINI, Janna − The Queen’s Hand, pp. 137-38, 154-56. 69 Contemporary to these events in Castile, Pedro II (1196-1213) introduced a coin of 2 denarii fine in Barcelona around 1209. BISSON, Thomas N. – “Coinages of Barcelona (1209 to 1222): The Documentary Evidence”. In BROOKE, C. N. L. et alii (ed.) − Studies in Numismatic Method Presented to Philip Grierson. Cambridge: Cambridge University Press, 1983, pp. 196-202. 70 TODESCA, James J. – “Coinage and the Rebellion of Sancho of Castile”. Mediterranean Studies 4 (1994), pp. 35-37. PRO BONO COMMUNITATIS:THE TOWNS AND MONETARY POLICY IN LEÓN AND CASTILE 569 Obv. ANFVS REX, bust 1. Rev. +TOLLETAº, cross, star in 1st and 4th quadrant. Source: The American Numismatic Society. Fig. 5 – Denarius, the pepión, of Alfonso VIII, struck before 1207. income diminished as they paid higher market prices in pepiones. While this affected all levels of society, the king specifically mentions the damage done “to the good men of my towns” in the preamble to the edicts. He clearly had summoned leading townsmen from different parts of the realm to lend their knowledge of markets in drawing up the detailed edicts. In the copy sent to the concejo of Toledo, Alfonso promises that if the decrees need tweaking, he will only do so after seeking their advice71. Some fifty years later, when Alfonso X (1252-84) issued economic decrees at his first cortes in Sevilla, he said that he had seen the posturas or agreements made by his great-grandfather, Alfonso VIII, “for all the people of the land.”72 Like the selling of the coinage at León in 1188 and Benavente in 1202, the edicts compiled at the cortes of Toledo c.1207 represent real cooperation between crown and people. The Leonese agreed to a tax, moneda, in exchange for the king not exercising his right to change the coinage. The motivation behind the townsmen consenting to this tax was, on one level, frustration with repeated mutationes since each introduction of a new coin brought a devaluation of the old currency. But underneath the resentment toward mutationes lay the populace’s fear that the crown might debase. That fear was justified by the appearance of Alfonso IX’s weakened 71 “E de mais sepades, que si alguna (cosa) fuere de emendar en esta carta; que la emendare io con conseio de los de vostra villa”. HERNÁNDEZ, Francisco − “Las cortes…”, p. 246. On the detailed knowledge required by the merchants attending the assembly, see HERNÁNDEZ, Francisco − “Las cortes…”, p. 225. 72 PROCTER, Evelyn – Curia..., pp. 273-84, no. 4; HERNÁNDEZ, Francisco − “Las cortes…”, pp. 226-29. 570 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL coin c.1205 and his threat to drag before him anyone who did not accept it. More drastic debasement in neighboring Castile, however, showed Alfonso VIII and his townsfolk the “great damage” such action inflicted. In the wake of that debasement, Castilian townsmen consulted with their king in an attempt to stem the ensuing inflation. By 1215, the year after Alfonso VIII’s death, the people of Castile, like those in León, had consented to the monetary conservation tax as references to moneta begin to appear in the documents73. Concern over the currency was not the sole reason the kings of León and Castile first called townsmen to their court. The earliest evidence of townspeople attending a royal assembly in Castile is in 1187, when the chief men (maiores) of fifty towns came to a curia at San Esteban de Gormaz to witness Alfonso VIII negotiate the betrothal of his daughter Berenguela to Conrad of Hohenstaufen74. Likewise, the townsmen who bargained with Alfonso IX over coinage at Benavente also had been summoned to acknowledge the rights of his new-born son, the future Fernando III who would reunite León and Castile in 123075. Nonetheless, the minters engraved on the archivolt of the church of Santiago in Carrión are a reminder of the importance of money to the towns of the late 12th century. Coinage was, to paraphrase a maxim of Roman law, something that “touched all”76. As a result, in the 13th century popular concern for the coinage continued to bring townsmen to the royal curias of Christian Spain. In December of 1253, for example, Afonso III of Portugal (1248-79) called churchmen, lay magnates and merchants along with “citizens and the good men of the town councils” to an assembly in Lisbon because they feared he would debase the money77. Similarly, citing the poor state of the coinage of Barcelona, Jaime I of Aragon73 GONZÁLEZ, Julio − El reino de Castilla..., Vol. 3, pp. 702-704, no. 986; pp. 719-21, no. 999; pp.746-47, no. 1015; O’CALLAGHAN, Joseph F. − “Beginnings...”, pp. 1519-20. 74 GONZÁLEZ, Julio − El reino de Castilla..., Vol. 2, pp. 807-808, no. 471, p. 857-63, no. 499, cf. pp. 800-807, nos. 467-470; O’CALLAGHAN, Joseph − “Beginnings...”, pp. 1512-13. The marriage never came off, however, and Berenguela married Alfonso IX of León in 1197. Their eldest son was Fernando III, born in 1201. BIANCHINNI, Janna − The Queen’s Hand, pp. 33-34, 42, 65. 75 O’CALLAGHAN, Joseph F. − “Beginnings...”, p. 1521. Rodrigo de Rada reports that “the bishops, magnates and town councils (civitatum concilia)” had, at Alfonso IX’s command, sworn fealty to Fernando on two occasions, a further indication that there were two large assemblies held in 1202. BIANCHINNI, Janna − The Queen’s Hand..., pp. 65-66. 76 “Quod omnes similiter tangit, ab omnibus comprobetur” was originally a precept applied in Roman civil law. By the early 13th century, it came to the notice of the decretalists and eventually made its way into Bracton. In 1295, Edward I (1272-1307) of England cited it in ordering the archbishop of Canterbury “to summon representatives of the clergy.” POST, Gaines − “A Romano-Canonical Maxim, Quod Omnes Tangit, in Bracton and in Early Parliaments”. In POST, Gaines (ed.) − Studies in Medieval Legal Thought: Public Law and the State, 1100-1322. Princeton: Princeton University Press, 1964, pp. 165-66 and passim. 77 “Pro eo quod timebant quod ego frangerem monetam...habui consilium cum riquis hominibus sapientibus de curia mea et consilio meo et cum prelatis et militibus et mercatoribus et cum civibus et bonis hominibus de consiliis regni”. HERCULANO, Alexandre (ed.) − Portugaliae Monumenta Historica..., pp. 19196, no. 3. The Lisbon cortes proceeded to pass price edicts analogous to those of Toledo c.1207. As is evident from these decrees, the Portuguese denarius had in fact already been debased by Afonso’s predecessors. Cf. HERNÁNDEZ, Francisco − “Las cortes…”, pp. 229-30. PRO BONO COMMUNITATIS:THE TOWNS AND MONETARY POLICY IN LEÓN AND CASTILE 571 Catalonia (1213-76) issued a new denarius on 1 August 1258. While he did so on his own authority, the king promised that in the future he would first consult the bishop and probi homines of Barcelona before minting.78 And Alfonso X, after repeated manipulation of León-Castile’s coinage, called delegates from “every city and every town” to a cortes in Sevilla in November of 1281 to propose yet another debasement. The representatives complained bitterly to Alfonso’s son, the future Sancho IV (128495), that they could not return home with such news79. When Sancho, angry with his father over his inheritance, rebelled the following spring, he called nobles, prelates and townsmen to an assembly at Valladolid. That cortes demanded Sancho reform the coinage80. Thanks to the efforts of townsmen in Spain and beyond the Pyrenees to exert control over the currency, by the 14th century Oresme, though an advisor to the Charles V (1364-80) of France, argued that coinage belonged not to the crown but to the people81. 78 HUICI MIRANDA, Ambrosio; DESAMPARADOS CABANES PECOURT, María (ed.) − Documentos de Jaime I de Aragón. Vol. 4. Zaragoza: Anubar, 1982, p. 124-26, no. 1033. 79 ROSELL, Cayetano (ed.) − Crónicas de los reyes de Castilla desde don Alfonso el Sabio hasta los católicos don Fernado y doña Isabel. Vol. 1. Madrid: M. Rivadeneyra, 1875, chap. 75, pp. 59-60. 80 GONZÁLEZ DIÉZ, Emiliano (ed.) − Colección diplomática del concejo de Burgos (884-1369). Burgos: Imprenta de Aldecoa, 1984, pp. 205-206, no. 118; TODESCA, James – “Coinage and the Rebellion...”. pp. 31-32. 81 JOHNSON, Charles − The De Moneta..., pp. 10-11, 37-42. LANGHOLM, Odd − Wealth and Money in the Aristotelian Tradition: A Study in Scholastic Economic Sources. Bergen: Universitetsforlaget, 1983, pp. 11-13. In the 12th century, John of Salisbury anticipated Oresme, holding that the king “must count his wealth as the people’s. He does not, therefore, truly own that which he possesses in the name of someone else”. SALISBURY, John of – Polycraticus. Ed. and trans. Cary J. Nederman. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, p. 40. See also WOOD, Diana − Medieval Economic Thought. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, pp. 105-107. 572 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Entre o abastecimento da vila e o comércio regional: Feiras mensais e quinzenais na Idade Média portuguesa Paulo Morgado e Cunha1 Resumo Quando pensamos nas feiras durante a época medieval, a nossa primeira imagem é a da feira anual, atraindo comerciantes de regiões distantes, como as célebres Feiras de Champagne. No entanto, outros modelos existiram, com periocidades mais frequentes e durações mais curtas. Embora, incomparáveis em termos de escala e de raio de atração, estas outras feiras desempenharam um papel importante na economia e sociedade da época. Como tal, irei focar a minha atenção nas feiras mensais e quinzenais em Portugal. Ocupando funções entre o centro abastecedor da cidade e um polo articulador do comércio de pequena e média escala, estas feiras contribuíram para o desenvolvimento económico das suas zonas de implantação. São também demonstrações da adaptabilidade do modelo das feiras a diferentes realidades comerciais, demográficas ou geográficas. Partindo da análise dos seus documentos instituidores, as “cartas de feira”, procurarei perceber os padrões e a evolução destes dois fenómenos. Esta análise será complementada com outra documentação avulsa, como os capítulos de Cortes, de forma a dar uma perspetiva o mais abrangente possível. Desta forma, tentarei compreender melhor não só o seu papel na estruturação económica de Portugal ao longo da Idade Média, como a sua continuação no período pósmedieval. Palavras-chave Comércio medieval; Feiras medievais portuguesas; Feiras mensais e quinzenais. 1 Faculdade de Letras da Universidade do Porto. 574 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Between the town’s supply and regional trade: monthly and fortnightly fairs in the Portuguese Middle Ages Abstract When we think about fairs in the middle ages, our minds are drawn to the annual fair, meeting place for far-flung merchants, like the renowned Champagne Fairs. Nonetheless, other types of fairs existed, taking place more frequently and during fewer days. Despite being incomparable in terms of scale and attraction radius, these other fairs had an important role in the economy, trade and society. Therefore, I will focus my attention on the monthly and fortnightly fairs in medieval Portugal. Assuming a role midway between the town’s supply centre and a node in small and mid-scale trade, these fairs contributed to the economy of the surrounding region. They are also good demonstrations of the adaptability of the institution to different commercial, demographic or geographic contexts. By analysing their founding charters, the so called “cartas de feira”, I will try to understand the trends and evolution of these two phenomena. This study is complemented by other miscellaneous documents, like parliamentary records, in order to give as wide a perspective as possible. With this, I will not only understand their role in the economic structure of Portugal in the middle ages, as their post-medieval evolution. Keywords Medieval commerce; Portuguese Medieval fairs; Monthly and fortnightly fairs. Quando pensamos nas feiras durante a época medieval, a nossa primeira imagem é a da feira anual, atraindo comerciantes de regiões distantes, como as célebres Feiras de Champagne. No entanto, outros modelos existiram, com periocidades mais frequentes e durações mais curtas. Embora, incomparáveis em termos de escala e de raio de atração, estas outras feiras desempenharam um papel importante na economia e sociedade da época. Neste texto, irei focar a minha atenção nas feiras mensais e quinzenais em Portugal. As feiras têm sido um tema clássico da historiografia, quer europeia quer portuguesa, embora tenha vindo a perder importância. Em Portugal, o trabalho ENTR E O ABASTECIMENTO DA VILA E O COMÉRCIO R EGIONAL... 575 mais reconhecido data já de meados da década de 19402 e o último grande congresso internacional dedicado ao tema foi realizado em 20003. É minha vontade que a minha dissertação de mestrado, recentemente apresentada e defendida, venha trazer um novo fôlego ao tema, motivando novas análises e discussões. Em larga medida as conclusões a que chego vêm confirmar as ideias de Virgínia Rau, com ligeiros reparos. Por exemplo a periodização por mim proposta é semelhante a mencionada por esta autora no final da sua obra, mas com uma maior justificação e sustentação documental. No entanto em alguns outros aspetos as minhas hipóteses divergem das de Virgínia Rau, sobretudo no que toca a imagem antagónica que esta autora descreve entre o comércio marítimo e as feiras. Com a análise de novos fenómenos, como as feiras algarvias (que são explicitamente voltadas para a atração de mercadores vindos por via marítima4), parece-me ser necessário rever esta oposição que Virgínia Rau apresenta. Existem ainda outros assuntos sobre os quais a obra de Virgínia Rau é omissa que procurei explorar na minha dissertação, como a existência de uma hierarquia e estatutos diferenciados nas feiras portuguesas5, a adaptação dos privilégios da feira a realidade socioeconómica do espaço em que esta se irá realizar, a existência de redes articuladas de feiras ou a importância das feiras mensais e quinzenais. Todos estes tópicos são particularmente relevantes para o tema do presente trabalho. Antes de iniciar a análise que aqui pretendo apresentar, parece-me importante definir conceitos, clarificando o que entendo por feira e o que distingue estas dos 2 RAU, Virgínia – Feiras Medievais Portuguesas: subsídios para o seu estudo. Lisboa: Presença, 1982 (a versão original foi apresentada como tese de licenciatura em 1943). Embora Portugal tenha, até Virgínia Rau seguido, grosso modo, o desenvolvimento da historiografia europeia, este tema não teve grande continuidade. Após a publicação da tese de Virgínia Rau, poucos têm sido os trabalhos que procuram analisar feiras, sendo que as grandes sínteses contidas nas Histórias de Portugal remetem para as suas conclusões. No entanto, algumas abordagens parcelares existiram, como a de Maria Helena da Cruz Coelho da Feira de Coimbra (COELHO, Maria Helena da Cruz – A Feira de Coimbra no contexto das feiras medievais portuguesas. Coimbra: Inatel, 1992) ou de Luís Miguel Duarte sobre a feira de Santa Maria da Feira (DUARTE, Luís Miguel – A feira da Vila: 1407-2007. Santa Maria da Feira: Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, 2007). Mais recentemente são de destacar o 3º Encontro de História realizado em Vila do Conde no ano de 2005, que procurou uma análise das feiras nacionais na longa duração (Actas do 3º Encontro de História. Vectores de Desenvolvimento Económico: as feiras. Da Idade Média à Época Contemporânea. Vila do Conde: Câmara Municipal, 2005) e as reflexões de Saul António Gomes sobre a relação entre as feiras e as indústrias rurais (GOMES, Saúl António – “As feiras e as Indústrias Rurais no Reino de Portugal”. In ESPINACH, Germán Navarro; MORTE, Concepción Villanueva (coords.) – Industrias y mercados rurales en los Reinos Hispánicos (siglos XIII-XV). Murcia: Sociedade Española de Estudios Medievales, 2017, pp.17-35). 3 CAVACIOCCHI, Simonetta (dir.) – Fieri e mercati nella integrazione delle economie europee secc. XIII-XVIII: Atti della “Trentaduesima Settimana di Studi”, Prato, 8-12 Maggio 2000. Florença: Le Monnier, 2001. Para uma síntese da historiografia sobre o tema, veja-se: CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval (1125-1521): Evolução, Organização e Articulação. Porto: Faculdade de Letras, 2019. Tese de Mestrado, pp.16-23. 4 Na carta de feira de Tavira mencionam-se os “Navios do Ponente” (CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., pp. 195-196). 5 Especificamente a existência de feiras designadas como gerais ou como reais. Veja-se CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., pp. 228-233. 576 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL mercados. A definição clássica baseia-se no cruzamento entre a periodicidade e o papel desempenhado pela reunião comercial em questão. O mercado seria mais frequente, ligado, sobretudo, ao abastecimento quotidiano e regular da povoação que servia. Já a feira realizar-se-ia menos vezes, por exemplo, apenas uma vez por ano. Nestas, o motivador seria o comércio de média e longa escala, articulando regiões distantes, atraindo mercadores de paragens longínquas. Esta distinção clara turva-se quando refletimos acerca das feiras mensais ou quinzenais, relativamente frequentes ao longo da Idade Média6. Definidas como “feiras-mercados” ou feiras regionais, estas foram, por vezes, renegadas como versões imperfeitas das grandes feiras. No entanto, mais recentemente têm sido valorizadas, procurando-se perceber o seu papel na circulação de bens e no comércio medieval7. Ao longo deste artigo irei referir como feira toda a reunião comercial, num dado local, com periodicidade quinzenal ou superior, seguindo a definição mais consensual na historiografia8. Parece-me também essencial refletir acerca das fontes que utilizei para a construção deste trabalho e a minha dissertação9. A principal fonte de dados relativos a feiras no Portugal Medieval é, sem dúvida nem surpresa, a carta de feira. Esta tipologia documental tipicamente estipula uma duração e uma data para as feiras, contendo ainda disposições sobre os privilégios e obrigações das mesmas, muitas vezes reduzidas a uma simples remissão para os privilégios de uma outra feira, tomadas como modelo10. Embora sejam fundamentais para a compreensão do fenómeno, estas cartas sofrem de duas limitações: apenas surgem em 1255, com a carta de feira da Guarda; carecem de uma série de informações relevantes, como os produtos comercializados ou as relações com feiras vizinhas11. Antes da sua autonomização enquanto tipologia documental dentro da chancelaria no reinado de D. Afonso III, os dados relativos a feiras em Portugal eram contidos nas cartas de foral, como nos casos supracitados de Ponte de Lima, Vila Nova de Famalicão 6 Embora relativamente frequentes, poucas têm sido as análises focadas sobre elas. Destas destaco: EPSTEIN, Stephan R. – “Regional Fairs, Institutional Innovation and Economic Growth in Late Medieval Europe”. The Economic History Review 47 (1994), pp. 459-482. Embora não seja estritamente sobre este tipo de feiras, estas são também alvo de uma análise na interessante obra de Carme Battle i Gallart (BATLLE I GALLART, Carme – Fires i mercats, factors de dinamisme econòmic i centres de sociabilitat (segles XI a XV). Barcelona: Rafael Dalmau, 2004). 7 Veja-se, por exemplo, o artigo de Stephan R. Epstein, acima citado. 8 Sobre esta definição: CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., pp. 31-35. 9 CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., pp. 24-26. 10 Por modelo, entenda-se um conjunto de feiras que partilham os mesmos privilégios, podendo variar detalhes como a data em que se realizam e a sua duração. No caso português, este fenómeno de remeter para uma outra feira é particularmente notório no caso do Trancoso, cujos privilégios são a base da maioria das fundações no período entre 1385 e 1420. Pelo contrário, no caso das feiras que obedecem ao modelo da de Covilhã, os privilégios, embora idênticos, são explicitamente copiados em cada carta. Para uma caracterização mais pormenorizada desta tipologia documental, veja-se CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., pp. 24-25. 11 Vários autores já comentaram o carácter quase “telegráfico” das cartas de feira portuguesas, como por exemplo: DUARTE, Luís Miguel – A feira da vila.... ENTR E O ABASTECIMENTO DA VILA E O COMÉRCIO R EGIONAL... 577 e Vila Real12. As informações incluídas são em tudo semelhantes às das cartas de feira, embora o conjunto de privilégios mencionados seja mais curto13. De forma a suprir algumas das lacunas deixadas por estas duas tipologias documentais, é importante recorrer a algumas outras, tais como: cartas de ofício, onde encontramos alguns ofíciais ligados a feiras, como escrivães14; cartas de perdão, onde os crimes relatados estão de alguma forma relacionados com feiras15; e capítulos de Cortes, onde são apresentadas questões relativas ao funcionamento das feiras16. Muito mais específicas, estas fontes podem oferecer alguns dados preciosos, que por vezes são o único testemunho de uma antiga feira17. No entanto, é preciso entender que mesmo usando um conjunto diversificado de fontes, estas deixam ainda muitos pormenores por entender18, sendo a realidade particularmente dramática para as feiras de menor dimensão que são o foco desta comunicação19. Embora, como mencionei, tenha procurado utilizar o maior número de fontes possível, o quadro geral da realidade portuguesa medieval continua a apresentar alguns dados que suscitam enormes dúvidas. Por exemplo, a relação entre os grandes centros urbanos e as feiras é difícil de perceber. Lisboa, por exemplo, não tem qualquer 12 Com o surgimento da carta de feira enquanto tipologia própria, assiste-se a um virtual desaparecimento de cláusulas relativas a feiras nas cartas de foral (excetuam-se casos como o já citado de Vila Real, por exemplo). No entanto, continua-se a assistir a uma relação muito próxima entre ambos documentos, sobretudo no período Dionisino, conforme adiante farei menção. 13 Tal dever-se-á mais ao próprio desenvolvimento das feiras e seus privilégios do que à tipologia documental. Tendencialmente, os privilégios das feiras portuguesas foram sendo progressivamente expandidos, sendo o modelo de Tomar do século XV mais complexo e descritivo do que o modelo da Covilhã do século XIV. 14 Veja-se, por exemplo, o caso da feira de Albergaria-a-Velha, da qual apenas temos notícia através da nomeação de Afonso Eanes como requeredor das sisas régias, panos e outras coisas que vêm a essa feira (Lisboa, Torre do Tombo, Chancelaria de D. Afonso V, l.15, f.122v e CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., pp. 305-306). 15 A título de exemplo, veja-se a carta de perdão concedida a Vasco da Fonseca em 1491 (Lisboa, Torre do Tombo, Chancelaria de D. João II, l.10, f.128). Este havia sido acusado de furtar dois jovens a caminho da feira de Penela de 1488. Na descrição da acusação é-nos não só fornecida a proveniência dos dois jovens (Vila Franca de Xira, viajando uma distância considerável até Penela) como também a carga furtada (sete côvados e meio de fustão, seis côvados de lenço de pano de Paris e dois côvados e duas terças de seda rasa) e a forma como eram transportadas (umas “canastras”), tudo dados de uma enorme relevância para o conhecimento do quotidiano das feiras medievais. 16 O exemplo mais significativo são, talvez, os capítulos apresentados por Trancoso nas Cortes de 1459, já referidos por Virgínia Rau e Gama Barros (RAU, Virgínia – Feiras Medievais Portuguesas..., pp. 87-90 e CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., pp. 166-168). 17 Como no caso supracitado de Albergaria-a-Velha. 18 Acima mencionei a existência de escrivães das feiras que, mesmo que apenas fossem das sisas, deveriam produzir inúmeros documentos relativos aos produtos comercializados, aos preços pagos, entre outros dados de enorme relevância. No entanto, não chegaram até nós vestígios desta documentação. 19 Maior parte da documentação conservada provém de fontes relacionadas com a administração central do reino, que, possivelmente, seria mais interventiva nas grandes feiras, que contribuiriam de forma mais avultada para o erário régio. Esta é uma das hipóteses para a relativa ausência de dados sobre as feiras mensais e quinzenais, embora seja impossível de confirmar ou infirmar esta suposição. O próprio facto de a larga maioria da documentação conservada relativa a feiras se encontrar neste tipo de fontes pode contribuir para um certo enviesamento da nossa perspetiva, obscurecendo alguns fenómenos de menores dimensões, mas que desempenhariam um papel importante à escala local e regional. 578 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL menção de uma feira, mas apenas um mercado semanal20. Santarém teria uma feira de grandes dimensões que, a pedido das autoridades locais é proibida em 132121. Para Évora apenas temos dados para uma feira no século XIII, sem continuidade aparente22. Apenas Coimbra e o Porto parecem ter tido feiras com alguma regularidade, mesmo que com aparente fragilidade23. Na minha dissertação avanço a hipótese de ser prejudicial para um centro populacional de grandes dimensões a concentração da atividade comercial numa época do ano (como aconteceria com uma feira), sendo mais apetecível um circuito de feiras, possivelmente mensais e quinzenais. No entanto, os dados de que dispomos são insuficientes para provar esta hipótese24. Vistas as limitações das fontes e clarificados os conceitos podemos então começar a analisar as feiras quinzenais e mensais em Portugal na Idade Média. Estas têm, entre nós, uma longa tradição, sendo mesmo possível que a primeira referência a uma feira em território nacional se trate de uma feira quinzenal – a de Ponte de Lima, em 112525. A feira de Vila Nova de Famalicão, conhecida em 1205, realizar-seia de quinze em quinze dias, ao Domingo. Já a mais antiga feira mensal seria fundada já por Afonso III em 1272 em Vila Real. Curiosamente, esta é criada em simultâneo com uma feira anual, assunto sobre o qual me debruçarei mais adiante. Seria moroso listar todas as feiras mensais e quinzenais registadas em Portugal. Uma vez que o meu objetivo com este texto é analisar as tendências gerais, opto por apresentar dois mapas, representando as feiras por periodicidade. O primeiro remete para a situação das feiras registadas até 1325, o final do reinado de D. Dinis e do primeiro ciclo de feiras portuguesas26. Já o segundo avança 20 Livro dos Pregos. Estudo Introdutório, transcrição paleográfica, sumários e índices. coord. Inês Morais Viegas e Marta Gomes; estudo introdutório de Edite Martins Alberto; Transcrição, sumário e índices Miguel Gomes Martins e Sara de Menezes Loureiro. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 2016, p. 129, doc. 53. 21 A feira de Santarém seria uma das mais longas do reino, com 62 dias de duração em 1317. No entanto, apenas quatro anos depois, os moradores desse local pedem para proibir essa feira. As referências conhecidas para uma suposta feira em Santarém no século XV parecem ligar-se a um mercado de âmbito local. Veja-se: CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., p. 369. 22 É uma das primeiras feiras a ser franqueada em Portugal, referida como tal em 1286. No entanto parece ter desaparecido, não existindo qualquer outra menção a ela. Em 1461, os moradores de Évora pedem para ter uma feira, mas este pedido é rejeitado pelo monarca, não sendo percetível a motivação para a resposta negativa. Veja-se: CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., p. 331. 23 A feira de Coimbra alterou seis vezes de data de realização entre 1377 e 1515, e o Porto apenas possui feira no século XV, sem grandes dados relativos a esta. Vejam-se as respetivas entradas em CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., pp. 327-328 e 362. 24 Este é apenas um exemplo de um problema para o qual as feiras analisadas parecem não dar resposta. Nas conclusões da minha dissertação apresento algumas outras, como a possibilidade de o número de feiras mensais e quinzenais, de âmbito local, ser maior do que o registado, abrindo a hipótese de algumas destas serem de fundação concelhia ou espontânea. Veja-se: CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., pp. 284-287. 25 CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., p.43. Sobre esta vila medieval, veja-se, por todos: ANDRADE, Amélia Aguiar – Um espaço urbano medieval: Ponte de Lima. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. 26 A periodização das feiras no contexto português é um assunto complexo. Neste texto sigo ENTR E O ABASTECIMENTO DA VILA E O COMÉRCIO R EGIONAL... 579 mais de 100 anos na cronologia, até ao final do reinado de D. Afonso V, remetendo para a situação nos finais do segundo ciclo das feiras em Portugal. A primeira evidência bastante clara da leitura destes mapas é que estas feiras se encontram sobretudo em duas regiões específicas do país: as quinzenais no EntreDouro-e-Minho; as mensais na bacia média do Douro e seus afluentes, mas com uma maior dispersão pelo território. Algumas exceções existiram, como a feira de Santa Maria da Feira, de periodicidade quinzenal, fora do Entre-Douro-e-Minho ou feiras mensais em Vouzela ou Torres Novas, consideravelmente mais a Sul. A explicação para esta distribuição é complexa e difícil de determinar, uma vez que estamos no reino do implícito, não existindo qualquer menção taxativa à motivação para a periodicidade de uma feira, ao contrário do que ocorre, por exemplo, para as datas em que estas se realizam. Mas, grosso modo, podemos ver uma certa correspondência entre as zonas mais densamente povoadas e as feiras de periodicidade quinzenal27. Estas também estariam situadas em importantes nexos viários, como o caso de Ponte de Lima ou Santa Maria da Feira – uma domina as rotas entre a Galiza e Portugal, com a importante passagem sobre o rio Lima; a outra está na rota Norte-Sul entre o Porto, Coimbra, Santarém e Lisboa, um eixo vital do Reino28. Uma maior densidade populacional e a circulação nas vias tornariam mais a periodização por mim definida na minha dissertação de mestrado. Para ter uma ideia da relevância do contexto para a periodização destes fenómenos, contraste-se a periodização apresentada por Virgínia Rau com a apresentada por Ladero Quesada para a realidade Castelhano-Leonesa (LADERO QUESADA, Miguel-Ángel – Las Ferias de Castilla. Siglos XII a XV. Madrid: Comité Español de Ciencias Históricas, 1994, pp. 77-100) e por mim para a realidade portuguesa. Virgínia Rau segue uma organização cronológica complexa, dividindo o seu arrolamento das feiras por reinados, mas tomando apenas a data de fundação para catalogar uma determinada feira e nessa entrada relatar todos os dados, independentemente do contexto. Esta decisão leva a uma certa descontinuidade na análise, com cada feira autonomizada. A própria autora parece refletir acerca desta questão, quando, num breve capítulo, apresenta uma periodização mais geral para o fenómeno das feiras em Portugal (RAU, Virgínia – Feiras Medievais Portuguesas..., pp. 165-169.). Pelo contrário, Ladero Quesada após analisar os vários núcleos regionais de feiras, tomando um critério mais geográfico que cronológico, apresenta uma síntese da realidade Castelhano-Leonesa periodizando com base em critérios ligados tanto ao desenvolvimento político como a própria realidade do fenómeno em análise. Seguindo este princípio, mas adaptando-o a realidade que estudei, defini uma cronologia das feiras em Portugal na Idade Média com cinco períodos: Uma fase incipiente, entre 1125 e 1260, entre a primeira feira registada e o primeiro modelo de carta de feira; um primeiro ciclo, entre 1260 e 1323, correspondendo ao predomínio das feiras de tipo Covilhã e a proliferação destas reuniões comerciais um pouco por todo o território; um período intermédio, entre 1331-1383, marcado por um abrandamento na concessão de feiras e pela decadência de algumas anteriormente registadas; um segundo ciclo, entre 1385-1476, grosso modo correspondendo a um segundo momento de fomento de novas feiras e renovação institucional, com o predomínio de modelos como o de Trancoso e de Tomar; e, por último, um período de transição entre a medievalidade e a modernidade, entre 1482 e 1521, onde se assiste simultaneamente à manutenção e confirmação de privilégios antigos e ao surgimento de novas realidades, como a feira de Tavira, voltada para o comércio marítimo. Para mais detalhes desta periodização e a sua fundamentação, veja-se CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., pp. 27-30. 27 Compare-se a dispersão das feiras no mapa da Fig. 1 e o povoamento de Portugal, segundo o “Rol de Igrejas” de 1320-1321 (RAMOS, Rui (coord.) – História de Portugal. Lisboa: Esfera dos Livros, vol. 9, 2009, mapa I.6. 28 Sobre a rede viária medieval portuguesa, dispomos ainda de poucos estudos. Destaca-se o já clássico trabalho de Carlos Alberto Ferreira de Almeida: ALMEIDA, Carlos Alberto Ferreira de – Vias Medievais: Entre-Douro-e-Minho. Porto: Faculdade de Letras, 1968. Dissertação de Licenciatura. Alguns outros trabalhos, 580 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Fig.1 – Feiras, por periodicidade, entre 1125 e 1325. Adaptado de CUNHA, Paulo Morgado e – As feiras no Portugal Medieval... ENTR E O ABASTECIMENTO DA VILA E O COMÉRCIO R EGIONAL... Fig. 2 – Feiras, por periodicidade, entre 1325 e 1482. Adaptado de CUNHA, Paulo Morgado e – As feiras no Portugal Medieval... 581 582 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL desejável uma feira realizada mais periodicamente. Já a concentração das feiras mensais ao longo do rio Douro e em Trás-osMontes parece ser fruto de uma política da monarquia para fixar populações nesse espaço e as enquadrar institucionalmente. Assim, a feira desempenharia um papel de articulador do comércio, desenvolvendo-se de forma paralela e por vezes simultânea aos vários forais da região, numa ação claramente concertada. Se por um lado o foral regulamenta o jurídico e o social, a feira regulamenta o comércio29. Em geral, duravam apenas um dia, embora tenha registo de feiras mensais que durariam até três dias. A este único dia acrescentar-se-iam os dias de duração dos privilégios, como a isenção da penhora, o que indicaria que tais feiras conseguiriam ter um raio de ação ligeiramente superior ao que o seu único dia de duração poderia indiciar, podendo mesmo supor-se que estes dias seriam destinados a atração de comerciantes externos, que beneficiariam dos privilégios na jornada de e para a feira30. É também possível constatar que, ao contrário do que alguns teóricos, como Stephan Epstein, propuseram para outras realidades europeias, não parece existir em Portugal um incremento destas feiras de menor escala e maior frequência à medida que avançamos na cronologia31. Se alguma tendência é detetável é a inversa, sendo o período em que estas feiras são mais comuns o de D. Dinis32. O seu papel na estrutura económica oscilaria, como aludo no título, entre o abastecimento da vila e seus arredores e um polo do comércio de curta e média distância. como os baseados nos itinerários régios, trouxeram importantes contributos: GALEGO, Júlia; GARCIA, João Carlos; ALEGRIA, Maria Fernanda – Os itinerários de D. Dinis, D. Pedro e D. Fernando. Interpretação gráfica. Lisboa: Centro de Estudos Geográficos, 1988. Mais recentemente, Rúben Filipe Conceição tem em curso um projeto para o estudo da rede viária medieval em Portugal, partindo das Inquirições de 1258. Até ao momento, apenas a região do Entre-Cávado-e-Minho foi estudada (CONCEIÇÃO, Rúben Filipe Teixeira da – “«Quo Vadis?»: pelos caminhos do Entre-Cávado-e-Minho nas Inquirições Gerais de 1258”. In Omni Tempore: atas dos Encontros da Primavera 2018. Porto: Universidade do Porto, 2019, pp. 163-197), aguardando-se brevemente os resultados para Trás-os-Montes. Aproveito para deixar o meu agradecimento por este me ter deixado consultar os resultados provisórios. 29 Esta ação é particularmente notória nos reinados de D. Afonso III e D. Dinis. Compare-se as feiras apresentadas na Fig. 1 com os mapas dos forais apresentados por Sottomayor-Pizarro: SOTTOMAYORPIZARRO, José Augusto de – “Monarquia e Aristocracia em Portugal (séculos XII-XIV). «Forais» e «Inquirições» na construção de uma geografia do Poder Régio”. In GUILLÉN, Fernando Arias; SOPENA, Pascual Martinez – Los Espacios Del Rey: Poder y Territorio en las monarquias hispánicas (siglos XII-XIV). Bilbao: Universidad del Paíx Vasco, 2018, pp. 133-184. Já António Matos Reis havia discernido uma importante ligação entre estas duas tipologias documentais. No entanto a sua análise é focada nos forais enquanto aqui me ocupam as feiras, sendo a sua análise destas segundas bastante elementar: REIS, António Matos – Os Concelhos na Primeira Dinastia: à luz dos forais e outros documentos da Chancelaria Régia. Porto: Universidade do Porto, 2004. Tese de Doutoramento. Sobre as feiras desses reinados veja-se: CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., pp. 47-50 e 58-80. 30 Para uma lista completa destas e outras feiras e seus privilégios, consulte-se: CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., anexo 1, pp. 304-396. 31 EPSTEIN, Stephan R. – “Regional Fairs, Institutional Innovation...”. 32 CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., pp. 43-227. ENTR E O ABASTECIMENTO DA VILA E O COMÉRCIO R EGIONAL... 583 A primeira função é bastante evidente, sendo mencionado várias vezes a importância da prosperidade de uma feira para a manutenção de uma vila33. Temos ainda evidências do comércio de bens de primeira necessidade nestas feiras. Por exemplo, na de Montalegre seriam negociados cereais34. De particular interesse, para esta questão da relação entre as feiras de periodicidade curta e o abastecimento urbano, é a cláusula existente em várias feiras, que obrigava a população do termo a comparecer. Esta disposição não era exclusiva das feiras, existindo também no mercado semanal de Loulé, por exemplo35. Esta imposição poderia variar, entre a obrigação de comparecimento mediante o pagamento de uma multa ou a mais simples proibição de comércio em locais que não a feira. Esta medida parece-me que se destinaria a garantir um fluxo razoavelmente constante de recursos da região sob o controlo de uma vila ou cidade, destinando-se, sobretudo, ao seu consumo interno. A medida não era popular, registando-se várias queixas sobre ela. Por exemplo, em 1459, os “lavradores aldeãaos do termo da nossa villa de viana” pedem para deixarem de ser obrigados de irem à feira quinzenal de Viana do Castelo36. Segundo estes, originalmente eram apenas proibidos de ir a outros locais vender os seus bens no dia da feira de Viana, mas, nos últimos anos, os da vila haviam determinado que seria obrigatória a comparência de um membro de cada casa. Depois, os rendeiros da feira faziam avenças com os do termo, obrigando-os a entregar cereais ou a prestarem serviços para puderem não comparecer. O monarca determina em favor dos habitantes do termo, remetendo para os privilégios originais. Situação distinta alegam os de Marialva, que se queixam de serem pobres e de apenas se deslocarem para a sua feira mensal para evitar a multa, perdendo um ou dois dias de valioso trabalho37. A existência de vários locais onde uma feira mensal coexistia e, por vezes, era fundada em simultâneo com uma anual38, parece também apontar para a distinção entre uma e outra em termos funcionais, sendo a mensal ligada, sobretudo, ao abastecimento da vila e ao comércio regional. Outro bom exemplo desta relação é expresso pelos moradores de Trancoso que, em 1459, pedem para que o seu mercado 33 A título de exemplo, vejam-se os argumentos utilizados na disputa entre os arrabaldes e o interior da vila de Torre de Moncorvo acerca do seu mercado: MORENO, Humberto Baquero – “O mercado na Idade Média (o caso de Torre de Moncorvo)”. In Estudos de História de Portugal, Vol. 1: Séculos X-XV. Homenagem a A. H. de Oliveira Marques. Lisboa: Editorial Presença, 1982, pp. 309-325. Embora se trate de informações relativas a um mercado, a situação seria semelhante em muitas feiras. 34 Lisboa, Torre do Tombo, Chancelaria de D. Dinis, l.3, f.107v. 35 ACTAS de Vereação de Loulé: séculos XIV-XV. coordenação Manuel Pedro Serra; leitura e transcrição Luís Miguel Duarte, João Alberto Machado e Maria Cristina Cunha. Loulé: Arquivo Histórico Municipal, separata da revista Al-Ulya 7 (1999), p. 95 36 Lisboa, Torre do Tombo, Leitura Nova, Além Douro, l.4, f.123. 37 Lisboa, Torre do Tombo, Chancelaria de D. Afonso V, l.33, f.55v, copiado em Lisboa, Torre do Tombo, Leitura Nova, Beira, L.2, f.186. 38 Veja-se, por exemplo, o caso de Vila Real em: CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., p. 60. 584 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL semanal passe a ser uma feira mensal devido a concorrência com outros espaços vizinhos, uma vez que esta afetava o povoamento da vila39. Mas, como referi, estas feiras não se limitavam a ser pontos de abastecimento urbano e de coordenação entre o termo e a vila, mas desempenhavam também um importante papel no comércio regional. Já em cartas de feira como a de Viana do Castelo de 1286, parece ficar claro que na sua feira tanto participariam pessoas do termo, que, como mencionei, eram obrigadas a fazê-lo, e pessoas de outras proveniências, parecendo indicar que seriam esperados comerciantes de outras paragens40. Uma das mais claras provas do desempenho desta função pelas feiras mensais é a existência de redes que articulavam várias destas, organizando e regulando o comércio de uma região. Depois estas redes poder-se-iam coordenar com outras redes, feiras ou centros urbanos. O caso mais claro no período estudado é o das feiras transmontanas, fundadas por D. Dinis: Alfândega da Fé, Mirandela, Mogadouro, Murça, Chaves e Vila Boa de Montenegro. As três primeiras seriam um pequeno grupo já em 1295, consolidando-se depois com a fundação da feira de Murça, ligando esse grupo inicial às restantes, em 130441. Organizadas em sentido Este-Oeste, começando, junto da fronteira, em Mogadouro, e progredindo em direção ao interior antes de rumar a Norte com as feiras de Vila Boa de Montenegro e Chaves este circuito poder-se-ia ainda articular com algumas outras feiras transmontanas, como Torre de Moncorvo, Freixo de Espada a Cinta ou Ansiães, ou com um outro pequeno circuito, a sul do Douro, formado por Trevões, Ranhados e S. João da Pesqueira42, onde seria feita a travessia do Douro. Esta rede poderia ser a espinha dorsal do comércio na região, tão acarinhada por D. Dinis, que se esforçou no seu povoamento e enquadramento no Reino português, após o desaparecimento dos principais senhores locais, os Braganções43. Em certas circunstâncias, o comércio destas feiras aparentemente menores poderia atrair mercadores de paragens mais longínquas, desempenhando um papel num comércio a uma outra escala. Já no circuito acima mencionado, o facto de as feiras se orientarem da fronteira para o interior parece-me significativo, possivelmente procurando captar mercadores vindos de Castela e Leão, embora tal seja meramente 39 Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., pp. 167-168. Esta feira coexistiria com a mais célebre, realizada anualmente pelo dia de S. Bartolomeu. 40 Lisboa, Torre do Tombo, Chancelaria de D. Dinis, l.1, f. 182v. 41 Estas datas apenas são as de fundação sendo difícil de percecionar a longevidade desta rede. 42 Estas três são também referidas em conjunto no ano de 1304: CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., pp. 72-73. 43 Veja-se: SOTTOMAYOR-PIZARRO, José Augusto de – “Monarquia e Aristocracia em Portugal...”, pp. 149-150. ENTR E O ABASTECIMENTO DA VILA E O COMÉRCIO R EGIONAL... Fig. 3 – Rede de Feiras Transmontanas e outras feiras, no século XIV. Adaptado de CUNHA, Paulo Morgado e – As feiras no Portugal Medieval... 585 586 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL especulativo44. De forma concreta, a feira de Miranda do Douro, em virtude da sua localização, contaria com a presença de mercadores castelhanos. Em 1498, por exemplo, denunciam que os mercadores de panos vindos de Castela sofriam com a obrigação de venderem os seus bens na alfândega, situação que já ocorreria há vários anos45. No entanto, mais significativo é o caso de Ponte de Lima, para a qual temos um curioso agravo apresentado em Cortes em 145946. Segundo os procuradores desta vila, uma portagem na vila de Ponte da Barca estaria a prejudicar a sua feira quinzenal, uma vez que limitava a normal deslocação dos galegos de Milmanda, Araújo e Monterrey, que vinham a essa feira vender o seu gado e comprar sal, entre outros produtos47. Tal situação deveria ser comum em muitas das feiras que mencionei, uma vez que quase todas se localizam próximas da fronteira, tornando-as importantes pontos de passagem e de comércio entre as várias regiões, quer fossem de diferentes reinos quer do mesmo Reino48. Antes de terminar, parece apenas importante refletir que estas feiras, ao se realizarem ao longo de todo o ano, deveriam certamente variar em importância e, consequentemente, em área de atração de feirantes. Numa altura menos propícia do ano, como o inverno49, poderiam reduzir-se a um local de intercâmbio entre o termo e a vila, sendo por vezes necessário coagir os habitantes para que a esta se deslocassem. Noutras alturas, fosse pela existência de excedentes agrícolas, fosse pela 44 Para contextualizar o comércio entre os dois reinos e a importância das feiras no mesmo, vejam-se: FREITAS, Isabel Vaz de – Mercadores entre Portugal e Castela na Idade Média. Gijón: Ediciones Trea, 2006 (destacando-se a análise das feiras nas pp.51-66) e MEDRANO FERNANDEZ, Violeta – Un mercado entre fronteras: Las relaciones comerciales entre Castilla y Portugal al final de la Edad Media. Valladolid: Universidad de Valladolid, 2010 (destacando-se a análise das feiras nas pp. 189-205). 45 Lisboa, Torre do Tombo, Chancelaria de D. Manuel I, l.31, f.49v, copiado em Lisboa, Torre do Tombo, Leitura Nova, Além Douro, l.1, f.214. Embora não seja certo que as informações acima mencionadas se referiam a sua feira mensal, pois a vila teria uma outra semestral que é mencionada em 1290 e 1516, sendo incerto que se realizasse em 1498. 46 Lisboa, Torre do Tombo, Chancelaria de D. Afonso V, l.36, f.168, copiado em Lisboa, Torre do Tombo, Leitura Nova, Além Douro, l.3, f.20v. 47 O tema das relações galaico-minhotas foi já várias vezes abordado, destacando-se: MORENO, Humberto Baquero – “Relações entre Portugal e a Galiza nos séculos XIV e XV”. Revista da Faculdade de Letras: História 7 (1990), pp. 35-45; COELHO, Maria Helena da Cruz – “As relações fronteiriças galaicominhotas à luz das cortes do século XV”. Revista da Faculdade de Letras: História 7 (1990), pp. 59-70; ANDRADE, Amélia Aguiar – “Entre Lima e Minho e Galiza na Idade Média: uma relação de amor e ódio”. In BARROCA, Mário – Carlos Alberto Ferreira de Almeida: in memoriam. Vol. I. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1999, pp. 77-91; MARQUES, José – “A fronteira do Minho, espaço de convivência galaico-minhota, na Idade Média”. In Estudos em Homenagem a Luís António de Oliveira Ramos. Vol. 2. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004, pp. 697-712; FONSECA, Luís Adão da (coord.) – Entre Portugal e a Galiza (sécs. XI a XVII): um olhar peninsular sobre uma região histórica. Porto: CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade, 2014. 48 Feiras como Santa Maria da Feira, embora quinzenais, poderiam articular o comercio entre o interior e o litoral, entre o Norte e o Sul. Sobre esta feira em particular, veja-se: DUARTE, Luís Miguel – A feira da vila... 49 Sobre os efeitos da época da realização no sucesso das feiras, veja-se a análise, baseada sobretudo nas feiras anuais, em: CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., pp. 234-242. ENTR E O ABASTECIMENTO DA VILA E O COMÉRCIO R EGIONAL... 587 procura de algum produto sazonal50, fosse pela realização de uma grande feira ou por uma romaria nas proximidades, estas feiras seriam mais concorridas, possivelmente atraindo mercadores de locais mais distantes. Assim, estas tornar-se-iam mais flexíveis do que as anuais, que dependeriam de uma boa data de realização para prosperarem. Em suma, as feiras mensais e quinzenais têm sido relegadas para segundo plano na análise desta instituição, pois a documentação sobre elas (e sobre as feiras em geral) é escassa e a sua importância na estrutura comercial e económica do Reino seria reduzida51. Com este trabalho espero ter demonstrado como, apesar de dificilmente comparáveis com as feiras de maiores dimensões, estas feiras de periodicidade curta desempenharam um papel fundamental na estruturação económica de Portugal ao longo da Idade Média, servindo como pontos de abastecimento para as povoações e como polos de articulação do comércio regional e mesmo inter-regional. Como tal, qualquer tentativa de compreensão da estrutura económica e comercial da medievalidade portuguesa ficará incompleta sem uma reflexão e discussão do papel de todas as reuniões comerciais, do mais pequeno mercado à maior feira, na circulação de bens, de ideias e de pessoas. 50 Embora se trate de feiras anuais, o exemplo mais ilustrativo do condicionamento cronológico de uma feira em torno de um produto é o das feiras algarvias. Centradas no comércio da fruta local, até ao século XVI apenas se testemunham feiras nesta região na chamada época da carregação, entre setembro e novembro. Veja-se CUNHA, Paulo Morgado e – As Feiras no Portugal Medieval..., pp. 236-237. 51 No entanto, parece-me ser crucial a análise destas feiras para uma maior compreensão da importância das feiras em contexto rural, uma das questões clássicas da historiografia sobre feiras, à qual já foram dedicados importantes congressos como: DESPLAT, Charles (dir.) – Foires et Marchés dans les campagnes de l’Europe Médievale et Moderne: actes des XIVes Journées Internationales d’histoire de l’Abbaye de Flaran, septembre 1992. Toulouse: Presses Universitaires du Mirail, 1996. 588 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Vegetais nos mercados do Ġarb al-Andalus (séculos VIII-XIII). Entre a arqueobotânica e os textos António Rei1 Resumo A alimentação, para o período islâmico e para o Ġarb al-Andalus, é uma das áreas temáticas sobre que temos vindo a trabalhar desde 2014. A nossa base de trabalho tem sido o conjunto vegetal, que se situa cronologicamente entre os séculos X e XIII, que temos vindo a identificar a partir da arqueo-botânica em Portugal, e confirmados, nos conteúdos, nas fontes andalusis de botânica e agronomia. Aquele conjunto vegetal autóctone, do Ġarb al-Andalus (Ocidente Ibérico) chegava aos mercados, ou por produção local ou através de rotas comerciais. E é esse conjunto, que chegaria aos mercados e lhes daria dinamismo comercial, mas também social e cultural, que iremos aqui identificar e elencar. Palavras-chave Vegetais; Mercados; Ġarb al-Andalus; Arqueo-botânica; Fontes andalusis. Vegetables in the markets of Ġarb al-Andalus (8th-13th centuries). Between archaeobotany and texts Abstract Food, for the Islamic period and for Ġarb al-Andalus, is one of the thematic areas we have been working on since 2014. Our base of work has been the plant cluster, which is chronologically located between the 10th and 13th centuries, which was identified from the archeo1 Investigador IEM / NOVA FCSH. “Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito da Norma Transitória - DL 57/2016/CP1453/CT0072” 590 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL botany in Portugal, and confirmed, in the contents, in the Andalusian sources of botany and agronomy. That native plant cluster from Ġarb al-Andalus (Western Iberian) reached markets either by local production or by trade routes. And is this native plant cluster that reached the markets and give them commercial, but also social and cultural dynamic, that we will identify and list here. Keywords Vegetables; markets; Ġarb al-Andalus; Archeo-botany; Andalusian sources. Introdução. O que se encontraria nos mercados do Ġarb al-Andalus? O que produziriam as suas hortas, pomares e campos? O que abasteceria aqueles mercados? É a isso que iremos procurar responder, através do que as fontes materiais arqueo-botânicas por um lado, e as fontes textuais árabes por outro, nos podem proporcionar para aquele período. Em relação a esta temática, de mercados e alimentação, e a algumas outras que lhe são próximas e algo acessórias, como a agricultura e a botânica, existe em Portugal uma extrema escassez de fontes, e que apenas incidem sobre a Baixa Idade Média. Assim, tem sido nossa intenção procurar preencher aquela ausência informativa a partir de fontes provenientes da cultura do al-Andalus e que trataram a botânica, a agronomia2 e também a alimentação. Nestas áreas temáticas atrás referidas, como em outras que trabalham a partir de fontes textuais árabes, não existe, em Portugal, comparação possível com o que se passa em Espanha. Espanha tem a formação de base do conhecimento do idioma, em universidades mas não só, e do período histórico andalusi; tem muitas e diversificadas fontes árabes para trabalhar, disponíveis em vários pontos do país; e tem, naturalmente, neste momento, a maior produção de edições, traduções e 2 A informação bibliográfica é bastante extensa, pelo que aqui apenas deixamos os nomes dos autores, e os títulos das fontes andalusis de agronomia e de botânica que temos trabalhado. Tratados agronómicos: Abū ‘l-Khayr – Kitāb al-Filāḥa; Al-Tiġnarī – Kitāb zuhrat al-bustān wa nuzhat al-aḏhān; Ibn al-’Awwām – Kitāb al-Filāḥa; Ibn Baṣṣāl – Kitāb al-qaṣd wa’l-bayān; Ibn Ḥajjāj – Al-Muqnī ‘ fī’ l-filāḥa; Ibn Wāfid – Majmū‘ fī ’l-filāḥa: Kitāb fī tartīb awqāt al-ġirāsa wa ‘l-maġrūsāt. Um tratado agrícola andalusi anónimo. Tratados botânicos: Abū l-Khayr – ‘Umdat al-Tabīb fī ma’rifat al-nabāt; Ibn al-Bayṭār – Kitāb al-Jami’ li-Mufradāt al-Adwiya wa-l-Aġdiya. VEGETAIS NOS MERCADOS DO ĠARB AL-ANDALUS (SÉCULOS VIII-XIII) 591 estudos de toda a Europa. Voltando à “nossa corte na aldeia”: tem sido essencialmente sobre os elementos vegetais que tenho vindo a trabalhar desde 20143, e em função do qual tenho entre mãos, já terminado, e em vias de publicação o estudo, muito mais vasto, e intitulado «Alimentação e Cura no Ġarb al-Andalus, entre os séculos X e XIII», para além de vários estudos parcelares anteriores, já publicados ou a aguardar publicação4. Ainda assim, agora apenas se pretende abordar aquilo que se poderia encontrar nos mercados do Ġarb al-Andalus e que proviria das produções agrícolas, na sua quase totalidade. Ao nível de algumas ervas aromáticas existiriam algumas exceções, que confirmam a regra, pois as mesmas poderiam ser obtidas diretamente na natureza, sem necessidade de cultivo. Todo um substancial conjunto de mais de quatro dezenas de plantas que eu caracterizei como “Ervas Selvagens Diversas” e que apresentei na comunicação em Castelo de Vide, não as integro neste trabalho, pois ultrapassaria os limites de páginas, mas constam naquele trabalho mais extenso e que atrás referi. Em busca dos vegetais nos mercados do Ġarb al-Andalus. Para construir o quadro genérico de quais seriam os vegetais que se poderiam encontrar nos mercados do Ġarb al-Andalus, foram cruzados os dados que a arqueobotânica tem proporcionado em Portugal nos últimos anos, para estratigrafias em contexto islâmico, entre os séculos X e XIII, com as informações que constam nas fontes escritas de botânica andalusi. 3 Investigação, com o título “Alimentação e Cura no Ġarb al-Andalus a partir dos tratados agrobotânicos hispano-árabes (séculos X-XIII)”, esteve sedeada no Instituto de Estudos Medievais (NOVA FCSH), de 2014 ao início de 2019, e na Escuela de Estudios Árabes (EEA-CSIC), (Granada), durante a Bolsa Pos-Doc da FCT (SFRH / BPD / 100519 / 2014). Durante as estadias em Granada, tive o privilégio de trabalhar com a Doutora Expiración García Sánchez, Investigadora Emérita do CSIC, com longa carreira na EEA-CSIC, e com a Doutora Julia Carabaza Bravo, Professora na Universidade de Granada, e investigadora com nome firmado há muito nestas temáticas. 4 Publicados: “Moçárabes e o Saber Médico em Al-Andalus entre os séculos VIII e X”. Revista Diálogos Mediterrânicos online 12 (2017), pp. 205-216; “Elementos vegetais na alimentação de al-Ušbûna, entre os séculos X e XII”. In SENNA MARTINEZ, João Carlos et alii (ed.) – Diz-me o que comes… Alimentação Antes e Depois da Cidade. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa/ Direcção Municipal de Cultura/ Departamento de Património Cultural/ Centro de Arqueologia de Lisboa, Sociedade de Geografia de Lisboa/ Secção de Arqueologia, pp. 6775; “Pelas margens do Funcho”. Cadernos do Endovélico 3. Livro do Congresso Internacional: “O Vale Sagrado do Lucefécit : da Arqueologia à Etno-Botânica e da Etnografia à Etno-Literatura”, CM Alandroal / Ed. Colibri, pp. 37-47. “Na Cozinha e na Botica do rei D. Dinis. Substâncias locais e importadas”. Diálogos Mediterrânicos online 15 (2018), pp. 166-180. No prelo: entregues, avaliados e aguardando publicação: “Na mesa do Ġarb al-Andalus (séculos X-XIII)”. In Da Mesa dos Sentidos aos Sentidos da Mesa. 4º Colóquio Luso-Brasileiro da História e Cultura da Alimentação. Universidade de Coimbra: no prelo; “Matéria Médica no «Livro dos Conselhos de El-rei D. Duarte». Uma abordagem preliminar”. In Livro do I e II Encontros sobre Artes da Cura. IELT, Museu da Farmácia: no prelo; “Flora do Algarve entre os séculos X-XIII”. In Xarajîb 9: Atas do Colóquio Internacional “As plantas do Gharb al-Andalus na botica e na cozinha (séculos X-XIII)”, no prelo; “Da Flora de Lisboa e sua região, a partir das fontes árabes (séculos X-XII)”. In Lisboa Medieval: Os territórios de Lisboa. Lisboa: IEM, no prelo. 592 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Os dados arqueo-botânicos dão-nos a informação sobre as plantas que de facto existiam naquele período; e os tratados botânicos dizem-nos o que naquela mesma época se conhecia sobre aquelas plantas, e a sua utilização nos aspetos alimentares e sanitários. A principal referência, no que à arqueo-botânica diz respeito, encontrei-a num trabalho de síntese da autoria de Paula F. Queiroz e José E. Mateus5, e foi o ponto de partida para conseguir uma ideia global, que não total, do que se poderia encontrar nos mercados do Ġarb al-Andalus. As informações textuais sobre as plantas encontradas, provém de fontes andalusis de botânica, em concreto de dois tratados, a obra de Abū l-Khayr, ‘Umdat alTabīb fī ma’rifat al-nabāt (Prontuário do Médico no Conhecimento das Plantas) (UM), e a de Ibn al-Bayṭār, Kitāb al-Jami’ li-Mufradāt al-Adwiya wa-l-Aġdiya (Coletânea Completa de todos os Remédios e Alimentos Simples, conhecido como Tratado dos Simples) (BY)6. Nas notas que procedam destas fontes, os títulos, serão abreviados, respetivamente por UM e BY. E a identificação, na nota, será, em UM (+ nº romano do volume, e nº de página); em BY (+ letra do volume, e nº da entrada). As palavras arabizadas7, de origem latina ou romance, que, a despeito dos termos árabes, continuavam a identificar várias plantas (e que apresentamos em itálico), indicam-nos plantas autóctones, ou há muito aclimatadas à Península Ibérica, e cujas identificações antigas sobreviveram, ainda que tocadas pela fonética do idioma árabe. Após o nome vulgar acrescentamos o respetivo nome científico, antes dos respetivos termos árabes ou arabizados. Observando aquela mesma terminologia árabe ou arabizada que identifica os vegetais, constatamos que havia termos que identificavam diferentes espécimes 5 QUEIROZ, Paula; MATEUS, José – “As plantas no quotidiano do mundo islâmico. Vestígios arqueobotânicos do sul de Portugal”. In GÓMEZ MARTÍNEZ, Susana (coord.) – Memória dos Sabores do Mediterrâneo. Mértola/Porto: Afrontamento, 2012, pp. 177-199. 6 AL-KHAYR, Abū – ‘Umdat al-Tabīb fī ma’rifat al-nabāt (UM), Ed. M. A. al-Khattābī. Rabat: Matbū’āt Akadīmiya al-Mamlaka al-Maġribīya, 1990; Abū l-Khayr al-Išbīlī – Kitābu ‘Umdati Tabīb fī ma’rifati nnabāt likulli labīb, Eds. y trads. J. Bustamante; F. Corriente, y M. Tilmatine. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 4 vols., 2004-2010. V. ainda o ms. XL da coleção Gayangos, da Real Academia de la Historia, Madrid; AL-BAYTAR, Ibn – Kitāb al-Jami’ li-Mufradāt al-Adwiya wa-l-Aġdiya (Coletânea Completa de todos os Remédios e Alimentos Simples, conhecido como Tratado dos Simples [BY]), trad. franc. Lucien LECLERC, Traité des Simples, 3 vols.: A, B e C, Paris, Institut du Monde Arabe, 1990 (ed. fac-símile da original, Paris: I – 1877; II – 1881 e III – 1883). 7 Dizemos “arabizadas”, porque é fácil perceber que algumas das designações identificadoras das plantas em causa, são pré-árabes, com origem latina, ou mesmo já romance, e a que o árabe apenas deu alguma alteração em função da sua própria fonética. Sobre estas questões da linguística ligada à botânica hispano-árabe v. ASÍN PALACIOS, Miguel − Glosario de Voces Romances: registradas por un botánico anónimo hispano-musulmán (siglos XI-XII). CSIC: EEAMG, 1943 (ed. facsim. Universidad de Zaragoza, 1994); CORRIENTE, Federico − “El Romandalusi reflejado por el Glosario Botánico de Abulxayr”. Estudios de Dialectología Norteafricana y Andalusí 5 (2000-2001), pp. 93-241. V. também CORRIENTE, Federico − Dictionary of Arabic and Allied Loanwords: Spanish, Portuguese, Catalan, Galician and Kindred Dialects. Leiden, Boston: E. J. Brill, 2008. VEGETAIS NOS MERCADOS DO ĠARB AL-ANDALUS (SÉCULOS VIII-XIII) 593 dentro de cada tipologia. Tal facto pode expressar diferenças regionais da própria agricultura andalusi dos séculos X a XIII; ou os termos em causa, serem marcas das diferentes origens e formações dos agrónomos que, nos seus tratados, descreveram as plantas em causa. Cereais. Comecemos pelos Cereais, os vegetais base da alimentação medieval. Os principais cereais então produzidos, consumidos e também comercializados, eram o trigo, nas suas variedades duras (Triticum vulgare Vill. [Triticum aestivum (L.)] / Qamḥ, ḥinṭah, burr, jibayrah) e nas variedades moles (Triticum spelta L. / Ḥinṭah, burr, ḥinṭah fārisiyyah, ḥinṭah rūmiyya, qamḥ al-baqar, sult, ša’īr, ašbiṭāllah, ašqāliyā)8, e também a cevada (Hordeum vulgare L. / Ša’īr, urdi’um ša’īr rūmī)9. Em alturas de carestia, e sempre que as condições orográficas o permitiam, as variedades tremesinas (Tirmīj, Tirmīš) de trigos (Triticum spelta L.) e de cevadas (Hordeum distichum L.) impunham-se, por permitirem mais do que uma colheita por ano10. O centeio (Secale cereale L. /Sult barrī, jintīnuh)11 era maiormente usado para forragem de animais, mas também era usado pelo seu aspeto curativo. A aveia (Avena sativa L. / Khurṭāl, abunuh), mais selvagem que cultivada, era usada principalmente no aspeto medico-sanitário, como um revigorante12. Os restantes cereais, como o painço (ou milho-miúdo) (Panicum sp. e Panicum milliaceum / Dukhn barrī, jāwars) produziam-se em muito menores quantidades13. Sendo um derivado direto de um qualquer cereal, muito preferencialmente do trigo, constata-se também a referência às massas alimentares (iṭriyya)14 termo onde é fácil perceber a etimologia da nossa palavra aletria (< al-iṭriyya), a qual é um tipo de massa que manteve aquela mesma denominação, e por se tornar, no idioma português, praticamente um sinónimo de um doce que tem por base precisamente aquela massa filamentosa muito fina. AL-KHAYR, Abū, UM, III, pp. 192-194. AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 715. AL-KHAYR, Abū, UM, III, pp. 109-110. AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 1255, 1321; C 2068. 10 As variedades tremesinas, também eram designadas por “romanas”, trigo romano (ḥinṭah rūmiyya [AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 193. AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 716]) e cevada romana (ša’īr rūmī [AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 109. AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 1322]), e por vezes também designadas genericamente, pelos termos khandarūs ou khundurūs (AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 109. AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 716; B 825, 1322), com idênticos significados. (v. também DOZY, R. − Supplément aux Dictionnaires Arabes. Leyden: E.J.Brill, 1881, vol. I, p. 407) 11 AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 177. AL-BAYTAR, Ibn, BY, B, 1209. 12 AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 55. AL-BAYTAR, Ibn, BY, B, 747, 775; C, 1779, 2256. 13 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 460 e B, 858. AL-KHAYR, Abū, UM, III, pp. 144-145. 14 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 94. 8 9 594 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Leguminosas. No relativo às Leguminosas, uma das maiores fontes de proteína não-animal e grande reforço da alimentação do homem medieval, e desde há muito presentes na Península Ibérica, constatam-se o chícharo (Pisum sativum L. / Basīl, basīla, arbilyaš (variedade de grão amarelado e rugoso)15 e a ervilha (Pisum sativum L. / Bizāj, julbān, jullabān (variedade de grão verde e liso)16, duas variedades de uma mesma família vegetal. Também o cizirão (Lathyrus latifolius L. / Jullabān barrī, ġalūkuš)17 e a ervilhaca (Vicia sativa L. / Julbān, ‘adas barrī, bīqiyah)18, leguminosas antigas e autóctones, com aplicação na alimentação humana e como forragem para animais. Nesta condição podemos incluir ainda o tremoço (Lupinus albus L. / Turmus)19. Mas as mais substanciais e energéticas Leguminosas, ainda hoje grandemente consumidas, e já então de presença consolidada na Ibéria, eram a fava (Vicia faba L. / Bāqilla, fūl, fābah, fābaš)20, o feijão-frade (Vigna unguiculata L. / Lūbyā, fayṣūlyā)21, o grão-de-bico (Cicer arietinum L. / Ḥimmiṣ, ḥummuṣ, arbānsuš)22, e as lentilhas (Lens esculenta Moench. / ‘Adas, lintilyaš)23. Do ponto de vista linguístico, constatamos que também entre o conjunto das Leguminosas existem diferentes plantas identificadas por um mesmo termo, ou por termo muito semelhante. Também entre elas se constatam várias identificações através de termos de origem latina ou romance, o que nos confirma a sua implantação na Península Ibérica já de muito antes do início do século VIII, e das terminologias árabes mais recentes. Do ponto de vista culinário e gastronómico, as Leguminosas já eram parte da dieta ibérica desde a Antiguidade pré-clássica, bem anterior ao período romano. Hortaliças. Quanto às Hortaliças, os vegetais que costumam ser produzidos nas hortas, vamos integrar, nesta designação mais abrangente, as Verduras, os Bolbos e os Cogombros. Entre as espécies hortícolas a maioria já cá estavam desde bem antes do século VIII, e tal facto deixou marcas nas identificações das mesmas, pois na respetiva nomenclatura, de origem árabe ou arabizada, voltamos a encontrar vários termos AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 495; B, 784; C 2060. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 154. AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 287, 495; B 817, 1330. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 154. 17 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 495; B, 784, 817. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 116. 18 AL-KHAYR, Abū, UM, III, pp. 199-200; AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 495; B, 784, 817. 19 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 406. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 122. 20 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 224; C, 1659. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 154. 21 AL-BAYTAR, Ibn, BY, C, 2042. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 200. 22 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 696. AL-KHAYR, Abū, UM, III, pp. 71-72. 23 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 350; B, 1518. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 118. 15 16 VEGETAIS NOS MERCADOS DO ĠARB AL-ANDALUS (SÉCULOS VIII-XIII) 595 com origem latina ou romance. Verduras. Entre as Verduras de folha, constata-se a presença da alface (Lactuca sativa L. / Khass, lakhtūqah, laytūqaš)24 e da couve (Brassica oleracea L. / Kurunb, akrunb)25. A arqueobotânica identifica a presença de vários tipos de Brassica, a que pertencem não só as couves, mas também os nabos, a mostarda e a couve-flor. No entanto, em relação à couve-flor, (Brassica oleracea L. var. botrytis / Kurunb šāmī, qunnabīṭ), a mesma terá tido uma entrada mais tardia na Ibéria, já em pleno período andalusi, aparecendo referida nos Calendários omíadas do período califal26. No entanto, e no relativo concretamente ao Garb al-Andalus, e em paralelo com outros vegetais que também abordaremos em contexto mais alargado, a couveflor também coloca problemas de inserção cronológica. Assim, temos bastantes reservas sobre se a couve-flor, até ao século XII, ou mesmo XIII, já estaria aqui no ocidente peninsular, completamente aclimatada, divulgada, consumida e mesmo comercializada. Entre as verduras de folha há também um caso que merece uma menção especial pela similitude com o anterior. É o caso dos espinafres (Spinacia oleracea L. / Asfānākh, isfānākh)27, os quais aparecem referidos nos textos agronómicos andalusis desde o início do século XI28, mas dos quais não se encontram quaisquer presenças concretas no solo em Portugal. E se a arqueo-botânica não os identifica materialmente até ao século XIII, as referências escritas aos espinafres são ainda muito mais tardias, sendo a mais antiga de finais do século XIV, mais concretamente em 1388, num elenco de produções de verduras de uma almuinha dos arredores de Coimbra, já durante o reinado de D. João I29. Entre outras espécies hortícolas encontramos também o aipo (Apium graveolens L. / Karafs, abiyuh)30, mas também o espargo, que aqui descriminamos entre a AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 115. AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 495; B, 784, 817. AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 321; C 1909. AL-KHAYR, Abū, UM, III, pp. 58-59. 26 Os “Calendários” (em árabe: Kitāb al-anwā‘), identificam um género literário (do género almanaque), onde constam dados astrológicos, meteorológicos, médicos, agrícolas e veterinários, todos ordenados pelos dias dos meses. Produtos de uma civilização se sínteses, estes calendários informavam ainda sobre as festividades das diferentes comunidades religiosas que compunham a sociedade (sobre os Calendários, origens, desenvolvimentos e tipologias, v. NAVARRO, María Ángeles − Risāla fī Awqāt al-sana. Un calendário anónimo andalusí. Granada: CSIC-EEA, 1990, pp. 15-29. 27 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 63. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 183. 28 Kitāb fī tartīb awqāt al-ġirāsa wa ‘l-maġrūsāt. Um tratado agrícola andalusi anónimo, Ed. Ángel C. LÓPEZ Y LÓPEZ. Granada: CSIC-EEA, 1990, pp. 95 e 249-250. 29 COELHO, Maria Helena da Cruz − “Apontamentos sobre a comida e a bebida do campesinato coimbrão em tempos medievos”. In Homens, Espaços e Poderes. Séculos XI-XVI. Vol. I: Notas do Viver Social. Lisboa: Livros Horizonte, 1990, pp. 9-22, p. 12. 30 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 203, 307; C 1902, 2161, 2304. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 45. 24 25 596 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL variedade cultivada (Asparagus officinalis L. / Halyūn, asfarāj, asfāraj) e a variedade brava ou selvagem (Asparagus acutifolius L. / Asfāraj, asfāraġus, asmāraġū)31, a qual era, e continua a ser, obtida diretamente da natureza. E encontramos também mais dois casos, muito singulares, ainda que completamente diferentes, pois revelam realidades opostas. Um primeiro caso, relacionado com a beringela (Solanum melongena L. / Bādanjān, bādinjān)32. Aquela planta, apesar de referida nos textos andalusis, já desde o século X33, não se constata, em absoluto, no espaço do Garb al-Andalus, no que terá sido numa realidade semelhante à dos espinafres, com uma aclimatação e uma divulgação também terá sido bastante tardia. O outro caso, pelo contrário, é o que envolve o morango (Fragaria vesca L. / Tūt arḍī). A singularidade do morango advém do facto de o mesmo ter sido identificado pela arqueo-botânica nas regiões de Lisboa e do Vale do Tejo, já desde o século X e com uma presença que se constata, pelo menos até ao século XII34. Mas, ao contrário da beringela e dos espinafres, e de forma no mínimo curiosa, senão mesmo surpreendente, a planta do morangueiro e o seu fruto encontramse completamente ausentes das fontes hispano-árabes, sejam elas agronómicas, botânicas ou mesmo culinárias, não se encontrando um único autor que a refira, nem para o Ġarb, nem para qualquer outra região do al-Andalus35. Bolbos. Entre os bolbos também vamos encontrar uma dominante de espécies autóctones ou aclimatadas desde bem antes da presença árabe na Península Ibérica, sendo, uma vez mais, prova disso, as denominações de origem latina ou romance que se constatam. Assim, entre os bolbos encontramos o alho (Allium sativum L. / Ṯūm, alyuš)36 e a cebola (Allium cepa L. / Baṣal, jubullah)37, e entre os bolbos radiculares, temos a cenoura (Daucus carota L. / Jazar, bištināqah, isfannāriyah, safnāriyah)38, o nabo AL-BAYTAR, Ibn, BY, C 2260. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 51. AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 177, 227, 649; C, 1984, 2152, 2294. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 181. 33 Kitāb fī tartīb awqāt al-ġirāsa wa ‘l-maġrūsāt. Um tratado agrícola andalusi anónimo, ed. Ángel C. López y López. Granada: CSIC-EEA, 1990, pp. 96 e 252-253. 34 QUEIROZ, Paula F; MATEUS, José − “As plantas no quotidiano do mundo islâmico. Vestígios arqueobotânicos do sul de Portugal…”, pp. 182 e 187. 35 Uma curiosidade final, ainda sobre os morangos. Já bem ultrapassada a Idade Média, e antes de Domingos Rodrigues, Chefe de Cozinha do rei D. Pedro II, e da sua obra, Arte da Cozinha, publicada em 1693, não encontramos os morangos nos textos culinários portugueses, nem mesmo no famoso Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, de 1565. 36 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 453. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 39. 37 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 96, 481; B, 1389. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 90. 38 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A, 296; B, 979. AL-KHAYR, Abū, UM, III, pp. 38-39. 31 32 VEGETAIS NOS MERCADOS DO ĠARB AL-ANDALUS (SÉCULOS VIII-XIII) 597 (Brassica rapa L. / Lift, saljam, nābuh)39, já atrás referido, e o rábano (Raphanus sativus L. / Fujl, lift, rābanuh, rābānš, rābānūš)40. Relativamente à cenoura existe a possibilidade de que a mesma possa ser confundida, por semelhança e por coexistência documentada em al-Andalus nos séculos XI e XII, com a chirivia ou pastinaca, uma outra radicular que podemos situar, tipologicamente, algures entre a cenoura e o rábano, mas que em árabe surge identificada com os mesmos termos, como se pode constatar nas terminologias presentes no parágrafo anterior41. Cogombros. Também entre as famílias dos cogombros, das vulgarmente chamadas “abóboras”, se constata a presença de alguns termos de origem latina ou romance nas respetivas identificações. Entre os cogombros, encontramos a propriamente dita abóbora (Cucurbita maxima L. / Dubbā’, qarʻ, ququbrah)42, com uma utilização predominantemente culinária; mas também a cabaça (Lagenaria siceraria L. / qarʻ)43, as quais eram, e ainda são, muito usadas, depois de tratadas e secas, como recipientes. Deste grupo, e também com uma grande presença no universo culinário, constatamos também a abobrinha (Cucumis flexuosus L. / Qiṯṯā’)44, o pepino / cogombro (Cucumis sativus L. / Khiyār, ququmruš)45, e o melão (Cucumis melo L. / Baṭṭīkh, khirbiz)46. Árvores e Arbustos − de Fruto e de Lenha. As árvores, são ainda hoje uma fonte de frutos e também de lenha. Se os frutos foram enriquecendo a alimentação humana ao longo de milénios; a lenha, constituiu uma das principais fontes de combustão da história humana, quase exclusiva desde a descoberta da produção e manuseamento do fogo, até ao século XIX, e ainda hoje não abandonada. E com influência decisiva na evolução humana, pois foi a partir de então que se começou a cozinhar, e não apenas a comer diretamente e em cru. Vamos elencar, por ordem alfabética, as árvores que já enchiam os campos AL-BAYTAR, Ibn, BY, C, 2035. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 59. AL-BAYTAR, Ibn, BY, B, 938. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 166. 41 Kitāb fī tartīb awqāt al-ġirāsa wa ‘l-maġrūsāt. Um tratado agrícola andalusi anónimo, ed. Ángel C. López y López. Granada: CSIC-EEA, 1990, pp. 272-273. 42 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 303; B 851, 919; C 1739, 1752, 2317. 43 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 303; B 851, 919; C 1752. AL-KHAYR, Abū, UM, III, pp. 115-116. 44 AL-BAYTAR, Ibn, BY, C 1739, 2317. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 82. 45 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 508; B 835; C 1690, 1739, 1743, 2071. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 83. 46 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 303; B 780, 870 919; C 2034, 2175. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 82. 39 40 598 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL do Ġarb al-Andalus, e indiretamente, com os seus frutos, ajudavam a encher e diversificar os seus mercados, e com a sua lenha aqueciam as casas, e os estômagos das gentes de então. Deixaremos em nota algumas informações em relação às menos comuns. - Abrunheiro ou Ameixeira brava (Prunus spinosa L. / Ijjāṣ barrī, ‘abqar jabalī; ou Prunus insititia L. / ijjāṣ barrī, ‘abqar barrī)47. - Açofeifeira (Ziziphus jujuba Mill. / Nabq, zufayzaf, ‘unnāb)48. - Agreira / Lódão bastardo (Celtis australis L. / Ajru, aḥrw, lūṭīs, mays, našam, qayqab)49 - Álamo / Choupo / Ulmeiro (Populus nigra L. e Populus alba L. / Ḥawr, ḥawar rūmī, ḥawar fārīsī, šajarat al-tawz)50. - Alfarrobeira (Ceratonia siliqua L. / Kharnūb, kharrūb)51 - Alfena (Ligustrum vulgare L. / Ḥinnā’)52. - Alperceiro / Damasqueiro (Prunus armeniaca L. / Barqūq, mišmiš, ‘ayn baqar [pl.’uyūn baqar], ‘ayn baqar aṣfar)53. - Ameixeira (Prunus domestica L. / Ijjāṣ, ‘abqar, ‘anbaqar, ‘ayn al-baqar pl. ‘uyūn al-baqar)54 - Amendoeira (Prunus dulcis ou amygdalus Batsch. / Lawz, amdlš, amiqdālġlūqiyā, mqdlāws)55 - Amoreira (Morus alba L. Tūt, tūt al-ḥarīr, mūrā; ou Morus nigra L. / Tūt aswad)56. - Aroeira / Lentisco (Pistacia lentiscus L. / Ḍarw, fākihat al-ḥajal, fulful al-ḥajal, lintiškuh, šajarat al-maṣṭikà)57. - Azinheira (Quercus ilex L. / Ballūṭ; ou Q. rotundifolia Lam. / Ballūṭ ḥulw’, lāndš)58 . - Carvalho (Quercus faginea & pyrenaica / ‘Afṣ)59. AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 480, 574, C 1749. AL-KHAYR, Abū, UM, III, pp. 160. AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 1116 e B 1594. AL-KHAYR, Abū, UM, III, pp. 2203-204. 49 AL-BAYTAR, Ibn, BY, C 2195. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. UM, III, pp. 66. Árvore comum em Portugal, mesmo em meio urbano, mas hoje sem grande utilização entre nós, para além de ser usada na arborização de zonas urbanísticas. Por informação oral da Profª. Doutora Expiración García, a quem agradecemos, soubemos que em Espanha são feitas compotas com os frutos destas árvores, os quais são colhidos nos finais de setembro e outubro. 50 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 108, 724, 725; B 1398; C 1982. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. UM, III, pp. 158. 51 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 763 a 766. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 68. 52 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 719. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 119. 53 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 274, 419, B 929, C 2136. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 159. 54 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 274. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 160. 55 AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 926, 927, 1412, C 2040. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 159. 56 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 434, C 1679. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 133. 57 AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 923, 924; C 2139. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 153. 58 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A273, 339, 493. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 163-164. 59 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A273, 339, 493. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 163-164. 47 48 VEGETAIS NOS MERCADOS DO ĠARB AL-ANDALUS (SÉCULOS VIII-XIII) 599 - Castanheiro (Castanea sativa Mill. / Qasṭalah, qašṭāniyaš, šāhballūṭ)60. - Cerejeira (Prunus avium L. / Qarāsiyā, ḥabb al-mulūk, širulyaš); e Ginjeira (Prunus cerasus L. / Ḥabb al-mulūk, qarāsiyā, širulyaš)61. - Cidrão ou Toranja (Citrus medica L. / Taranj, turunj, utrujj, utrunj)62. - Figueira (Ficus carica L. / Tīn, fīquh)63 - Framboeseira (Rubus idaeus L. / ‘Ullayq)64. - Freixo (Fraxinus excelsior L. / Dardār, farākhšinuh)65. - Loureiro (Laurus nobilis L. / Ġār, rand, rayḥān)66. - Macieira (Malus domestica Borkh / Tuffāḥ, mansānah, mansāniyā)67. - Marmeleiro (Cydonia oblonga Mill. / Safarjal, malmāluh)68. - Medronheiro (Arbutus unedo L. / Qaṭlab, quṭlub, janā, al-janā al-aḥmar, maṭrunyuh, maṭrūniyah, maṭrūniyuh, maṭrūnnuh, maṭrūnyuh)69. - Nogueira (Juglans regia L. / Jawz, nūj, nūjī)70. - Oliveira / Zambujo (Olea europaea L. / Zaytūn, āzmmūr, šajarah mubārakah, ūliyyah); (Olea europaea L. subsp. silvestre Mill. /Aġriyālā, azabūj, azabbūj, āzabbūj, ūlīastīr, zabbūj, zanbaj, zanbūj, zanbūj)71. - Pereira / Sorveira ou Pereira brava (Pyrus communis L. / Ijjāṣ, injāṣ, kummaṯrà, bīraš); (Sorbus domestica L. / Ġubayrā, sabsiyār, saysabān)72. - Pessegueiro - (1 - pêssego veloso) (Prunus persica (L.) Batsch / Khawkh, ‘uyūn baqar); (2 - pêssego careca ou nectarina) (idem / Khawkh banūš, khawkh bunūš)73. - Pinheiro bravo (Pinus pinaster Aiton / Ṣanawbar, bīnnuh, bīnnuš) e Pinheiro manso (Pinus pinea L. / Ṣanawbar, bnūniyā). Este último termo, arabizado, significa “o dos pinhões”74. AL-BAYTAR, Ibn, BY, A273, 339, 493. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 66. AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 480, C 1749. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 159-160. 62 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 16; B945; C 2086. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 76. 63 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 352, 439. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 99-101. 64 A framboeseira (Rubus idaeus L.) está identificada na zona do Vale do Tejo, em concreto Lisboa e Santarém, entre os séculos X e XII (QUEIROZ, Paula; MATEUS, José − “As plantas no quotidiano do mundo islâmico. Vestígios arqueobotânicos do sul de Portugal…”, pp. 182 e 187.), embora esteja ausente das fontes árabes destas temáticas. Um termo árabe que identifica a framboeseira, ‘ullayq, por vezes designa também outras espinhosas similares (Rubus spp.), como a amora silvestre (Rubus fruticosus L.), que poderia originar uma confusão entre ambas. Questão para um futuro estudo de caso. 65 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 383; B 861, 1305; C 2025. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 102. 66 AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 1065, 1540; C 1619. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 116-117. 67 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 417. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 124-125. 68 AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 908, 1192. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 84. 69 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 246, B 1290, C 1729, 1807. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 46. Sobre esta planta e a sua abundância na Serra de Monchique, apresentaremos muito em breve um estudo, com nova leitura, e onde se cruzarão informações das fontes botânicas e das fontes geográficas árabes. 70 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 525. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 114. 71 AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 1141. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 138-139. 72 AL-BAYTAR, Ibn, BY, C 1963. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 163. 73 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 420, B 830, 864. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 161. 74 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 433, B 1417, 1581, C 1806. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 152. 60 61 600 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL - Romãzeira (Punica granatum L. / Rummān, jullinār) e Romãzeira brava (Punica granatum L. / Jullanār, jullinār, rummān barrī)75. - Rosa e Roseira (Rosa sp. / Ward, rūšah)76. - Sabina (Juniperus phoenicea L., [ou Juniperus sabina] / Abhal, ‘ar‘ar)77. - Sobreiro (Quercus suber / Ballūṭ murr, qrniyūš, šubar, šūbar)78. - Vide (Vitis vinifera L. / Karm, ‘inab)79. No conjunto de árvores recenseadas conseguimos identificar, de forma evidente, três grupos que se sobrepõem, pela quantidade, ao resto: os Prunus spp. (Abrunheiro, Ameixeira, Amendoeira, Cerejeira, Damasqueiro, Pessegueiros), os Quercus spp. (Azinheira, Carvalho e Sobreiro) e os Pinus spp. (Pinheiro bravo e Pinheiro manso)80. Sendo o primeiro grupo, Prunus spp., essencialmente frutícola, os dois outros, no aspeto alimentar, acabam por ter características diferenciadas. Os pinheiros, em especial os pinheiros mansos e os seus frutos - os pinhões -, enquanto oleaginosas, constituem um importante complemento proteico na alimentação humana em geral; e já no período andalusí com uma importante presença na cozinha das elites, constatando-se quer em pratos salgados, quer em pratos doces. Os Quercus spp. ou “árvores das bolotas”, entram na alimentação humana de duas formas, direta e indireta. De forma direta as bolotas, grandes reservas de hidratos de carbono, podem ser consumidas diretamente, cruas, cozidas ou assadas; ou, se pisadas e desfeitas, também podem vir a dar origem a um tipo de papas, ou a um género de pães, que, em ambos os casos, supriam, muitas vezes, a falta dos cereais. Indiretamente, as bolotas alimentavam, e continuam a alimentar, animais, em especial ovinos e suínos, os quais depois entram na alimentação humana. Ervas Aromáticas. Depois dos cereais, das leguminosas, das hortaliças e dos frutos, a culinária cedo AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 1058. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 162 AL-BAYTAR, Ibn, BY, C 2274. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 168-169. 77 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 7; B 985, 1289, 1402. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 115. 78 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A273, 339, 493. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 163-164. 79 AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 1595. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 201-103. 80 Os pinheiros, foram, entre outras aplicações, matéria-prima para os estaleiros que existiram no Arade, em Silves, e no Sado, em Alcácer do Sal. Nesses estaleiros foram construídos, desde a segunda metade do século IX, embarcações para defesa das costas do Garb al-Andalus, muito especialmente em frente das incursões normandas, que durante a segunda metade do século IX e praticamente durante todo século X fustigaram o al-Andalus, pilhando e destruindo. (v. REI, António − O Gharb al-Andalus al-Aqsâ na Geografia Árabe (séculos III h. / IX d.C. – XI h. / XVII d. C.). Lisboa: IEM, 2012, pp. 128 e 165. V. ainda COELHO, A. Borges – Portugal na Espanha Árabe. 2ª Edição. Lisboa: Editorial Caminho, 1989, vol. 2, pp. 127-134). 75 76 VEGETAIS NOS MERCADOS DO ĠARB AL-ANDALUS (SÉCULOS VIII-XIII) 601 terá aprendido que a utilização de alguns outros vegetais, ajudavam a alterar sabores e efeitos dos alimentos principais, fossem estes vegetais ou não. Ou seja, estes condimentos ajudaram a que a simples alimentação se fosse transformando em gastronomia. Mas se num primeiro aspeto, e funcionando essencialmente como condimentos, e buscando um efeito predominantemente gustativo e olfativo, e daí serem entendidas como “aromáticas”, numa segunda vertente, já se procura um efeito de maior alcance, de cariz mais medico-sanitário, para além dos anteriormente referidos, já se podem considerar como sendo “ervas medicinais”. Estas ervas, aromáticas e / ou medicinais, eram, e ainda são, muitas vezes obtidas localmente, através de colheita direta na natureza, no entanto, também podem, ao menos algumas delas, ser obtidas através de cultivo. Obtidas diretamente da natureza, ou como produto agrícola, chegariam por certo aos mercados. Entre as identificadas no Ġarb al-Andalus, com presença atestada nas cozinhas, com funções tónicas, estimulantes, calmantes e digestivas; mas também, todas elas, com uma possível presença nos seus mercados, estão: - Alcaparra (Capparis spinosa L. / Kabbārā, qbārrā)81. - Alcaravia (Carum carvi L. / Karawiyā, karawiyyah, kammūn armīnī)82. - Alecrim (Rosmarinus officinalis L. / Iklīl, iklīl al-jabal, ṣa’tar rūmī)83. - Alfazema (Lavandula sp./ Khuzāma, šīḥ)84. - Coentros (Coriandrum sativum L. / Kuzbarah, juljulān, qulānturuh)85. - Cominhos (Cuminum cyminum L. / Kammūn, kūmīnūn)86. - Funcho (Foeniculum vulgare Miller subsp. Sativum / Rāziyānaj, bisbās, fnjuh, fnulyuh)87. - Hortelã (Mentha sativa L. / Na’na’, hartamā, māntah mayūrā)88. - Melissa / Cidreira (Melissa officinalis L. / Ḥabaq aš-šuyūkh, kāšif al-ḥuzn, marw, māntah jṭriyah, mufarriḥ qalb al-maḥzūn, turunjān)89. - Mostarda (Brassica nigra (L.) Koch [= Sinapis nigra L.] / Khardal, sinabī, ṣināb)90 - Orégãos (Origanum sp. / Ṣaʻtar, zaʻtar, awrīġānus)91. - Poejo (Mentha pulegium L. / Fūdanj jabalī, bulāyuh, fūdanj barrī, ġubayrah, AL-BAYTAR, Ibn, BY, C 1877. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 63. AL-BAYTAR, Ibn, BY, C 1772, 1913. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 65. 83 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 129. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 169. 84 AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 791, 1558. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 117. 85 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 424; C 1926, 1933. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 79. 86 AL-BAYTAR, Ibn, BY, C 1967. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p.83. 87 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 286; B 1019. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 101-102. 88 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 595; B 852, 1442; C 2227. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 129. 89 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 221, 324, 414, 592. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 128-129. 90 AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 767. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 59. 91 AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 1398. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 141-142. 81 82 602 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL ṣaʻtar nahrī)92 - Rosmaninho (Lavandula stoechas L. / Khuzāma naḥliyyah, mattāllah, mawrškuh, mawruh bškuh, mūqif al-arwāḥ)93. - Salsa (Petroselinum crispum (Mill.) / Maqdūnas, baṭrasāliyūn)94. - Sálvia / Salva (Salvia officinalis L. / Salīmah, sālimah, šālbiyah)95. - Tomilho (Thymus sp. / Ṣa’tar)96. - Verbena (Verbena officinalis L. / Qulunbayrah, qulunbāris, qulunbārs, ri’y alḥamām, šajarat al-ḥamām, ‘ušbah muqaddisah)97. Apesar de se constatarem, e de entre estas Ervas terem prevalecido algumas denominações com origem árabe, a quase totalidade deste conjunto de Aromáticomedicinais, já vinha de muito antes da presença da civilização árabo-islâmica na Península Ibérica, se atendermos às, também presentes, denominações, maioritariamente de origem latina e romance, e, por tanto, anteriores ao período andalusi. Produtos Transformados. Também nos mercados se encontravam produtos transformados, obtidos a partir de diferentes bases vegetais. Perfumes. De algumas das Ervas atrás referidas também se obtinham, por destilação, essências com usos terapêuticos ou de adorno e cosmética, usadas na produção de perfumes. Entre elas, encontramos as Rosas (Rosa sp.), de que era extraída a famosa, ainda hoje, “água de rosas”; mas também diferentes plantas do tipo Lavandula spp.: a Alfazema e o Rosmaninho; outra, a homónima Verbena; e ainda o Alecrim (Rosmarinus officinalis). Tecidos de seda. Temos uma árvore, a amoreira, numa realidade produtiva e económica diferente, situando-se na base de um processo que dava origem a tecidos de luxo,. AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 507, 584; C 1639, 1712. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 129. AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 791, 1558. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 117. 94 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 307; C 1902, 2161. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 147-148. 95 AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 1387. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 173. 96 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 62. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 191. 97 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 132, 211, 241; B 1046; C 1667. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 199. 92 93 VEGETAIS NOS MERCADOS DO ĠARB AL-ANDALUS (SÉCULOS VIII-XIII) 603 As suas folhas servem de alimento aos gusanos da seda, e por essa razão, a amoreira, é também identificada, entre outas denominações, pela expressão árabe tūt al-ḥarīr, que significa, literalmente, “a amoreira da seda”. Pela sua condição de artigo de luxo, a seda, e também mesmo os perfumes, tinham locais diferenciados nos mercados, as suas zonas mais nobres, as chamadas “alcaiçarias”. Plantas Oleaginosas e Saboeiras. Se a dietética é, de há muito, uma forma de cuidados médico-sanitários, pois já a Hipócrates (sécs. V-IV a.C.) se atribui a frase “faz do teu alimento o teu medicamento”, sabemos que a higiene também influi em muito na manutenção de uma condição saudável. Deixamos aqui uma listagem de plantas com potencialidades de cariz higienizante. Os óleos serviam, maioritariamente, para aplicações tópicas, mas também para a elaborações de óleos defumadores e purificadores. As ervas “saboeiras”, ricas em soda, e como o nome indica, serviam para produzir sabões, barrilhas saboeiras, que serviam para lavar roupas e todo o tipo de tecidos. A lavagem de tecidos usados pelos humanos, era uma medida sanitária preventiva, em especial nos tecidos em contacto direto com os indivíduos doentes. A especificidade das suas potencialidades faria com que as mesmas, e o seu uso, não fosse indiscriminado, mas sujeito a receitas e quantidades. - Gipsofila (Gypsophila struthium L. / Ġāsūl, šajarat Abū Mālik, šabunayra)98, usada na produção de sabões. - Pilriteiro ou Espinheiro alvar (Crataegus monogyna Oxyacantha L. / Alšawkat al-bayḍā’, bāḏāward, zaʻrūr, asbinah albah)99, com usos diversificados, quer para obtenção de óleo para iluminação, quer como medicamento, ou como substância tintureira. - Rícino, mamona, ou carrapateiro (Ricinus communis L. / Khirwa’, rijinuh)100, de onde se obtém um óleo com uso medicinal. - Salicórnia (Salicornia europaea L. / Ġāsūl miṣrī, ušnān al-qattārīn, ušnān ’aqrabī)101, também usada para produzir sabões. - Quenopódio marítimo (Chenopodium album / Qaṭaf baḥrī, qaṭaf barrī, baql arrūm barrī, sarmaq abyaḍ)102, para produção de sabões, como a anterior. AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 1286. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 106. AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 123; B 1009, 1112, 1290, 1614; C 2232. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 81. 100 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 693; B 771, 925, 1476 bis. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 167-168. 101 AL-BAYTAR, Ibn, BY, B 1037. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 171. 102 AL-BAYTAR, Ibn, BY, C 1811, 2037, 2171. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 70. 98 99 604 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Para uso culinário, mas não só… Determinados produtos, de importância na cozinha, mas não só e que eram obtidos através de diferentes processos. Entre os que provinham de colheita direta, constatamos o agraço (ḥiṣrim)103 - uvas verdes e ácidas, usadas como condimento −, ou o balaústo104 (o balaustion dos gregos: flor da romãzeira brava seca) (jullanār, jullinār), também usada como condimento alimentar acidificante. Por extração, temos o azeite (zayt). Através de secagem, as diferentes frutaspassas, de figo (tīn) ou de uva (zabīb). Por extração e transformação, temos o vinho (nabīḏ)105, enquanto que por transformação do mesmo vinho, se obtinha o vinagre (khall). Todos com utilização no universo culinário e gastronómico, ainda que o azeite também tivesse um inestimável papel na iluminação; e o vinagre, que pelo seu papel de antisséptico e desinfetante, sempre teve um grande uso no campo sanitário. Conclusões. A realidade do mundo rural do Ġarb al-Andalus entre os séculos X e XIII, e das suas produções de origem vegetal, cujos excedentes chegariam aos mercados, não seria muito diferente do que existiria nos períodos imediatamente anteriores, pelo menos desde o período romano. É significativo que algumas plantas, cuja importação e vulgarização é tradicionalmente associada ao período islâmico, como vimos, a beringela e os espinafres, mas mais ainda os citrinos, a laranja amarga o limão, se encontrem completamente ausentes. E pelo contrário, tenhamos presenças, como o morango e a framboesa, que se constatam ao longo daqueles mesmos séculos, e dos mesmos não tenha ficado o mais pequeno registo em nenhum dos tratados agronómicos que foram produzidos ao longo do século XI em al-Andalus. Por certo que, como também no período romano, quando a Hispânia era, então também, o extremo dessa outra malha económica mediterrânica, o Mare Nostrum, cá chegariam aos mercados outros elementos vegetais importados, embora em AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 119, 342, 679; C 1645. AL-KHAYR, Abū, UM, III, p. 202. AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 494. O botânico anadalusi refere que já como “balaustion” ou “balaustium” a flor da romãzeira brava foi identificada, respetivamente, por Dioscórides e por Galeno. Com a formulação “billoto” surge entre os condimentos usados na cozinha do rei D. Afonso V, embora na altura não identificado pela autora (V. SANTOS, Maria José Azevedo − “O peixe e a fruta na alimentação da corte de D. AfonsoV”. In A Alimentação em Portugal na Idade Média. Fontes, Cultura, Sociedade. Coimbra: INATEL, 1997, pp. 1-33, p. 8). 105 AL-BAYTAR, Ibn, BY, A 244; C 2211. 103 104 VEGETAIS NOS MERCADOS DO ĠARB AL-ANDALUS (SÉCULOS VIII-XIII) 605 quantidades mais modestas, e apenas acessíveis às elites regionais. De qualquer forma, com todas as exceções, pelas presenças e ausências, o Ġarb, região periférica em al-Andalus, e mais ainda no que era o mundo islâmico de então, e das respetivas rotas comerciais, parece, pois, ter mantido uma matriz económica algo autárcica nas produções agrícolas, e no que se comprava e vendia nos seus mercados, muito próxima daquela que existiria no período hispano-romano, aparentemente sem alterações significativas, entre os séculos I-II d.C. e o século XIII. 606 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL El Almirantazgo de Castilla y la ‘saca de pan’ en la segunda mitad del siglo XV: el control de un tráfico marítimo y sus consecuencias Lorenzo Lage Estrugo1 Resumen El almirante de Castilla tenía entre sus numerosos privilegios el control de la saca de pan. Teniendo en cuenta la importancia del comercio de trigo para el abastecimiento de las villas y ciudades medievales la injerencia del almirante causó numerosos conflictos. La expedición de licencias por parte del almirante encarecía los precios, lo cual propició un rechazo frontal a la aplicación de su jurisdicción en los puertos andaluces. La aspiración del almirante por controlar firmemente la exportación de trigo se manifestó social, económica y políticamente. Es reseñable como los grandes magnates regionales rechazaron la injerencia de la institución castellana, ya que eran propietarios de extensas tierras agrícolas y buscaban exportar sus productos sin intervención de otro noble castellano-leonés. Las ciudades, a su vez, buscaban garantizar el abastecimiento de trigo a un precio razonable y rechazaban las imposiciones del almirante como gravosas, tomando medidas en su contra. Finalmente, destaca el enorme volumen de dicho comercio, lo cual entre otras razones explica la incapacidad del almirante de controlarlo. Palabras clave Comercio; Fiscalidad; Almirante de Castilla; Cereales; Abastecimiento. 1 Universidad de Cádiz. 608 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL The Admiralship of Castile and the ‘saca de pan’ in the second half of the 15th century: the control of a maritime traffic and its consequences. Abstract The Admiral of Castille had among its many privileges the control over the grain exports, or ‘saca de pan’. Accounting for the material importance of grain trade for the adequate supply of medieval towns, the imposition of any kind of control by the admiral was bound to cause conflict. The expedition of licences by the admiral provoked a price raise, which was soundly refused by the Andalusian harbour societies. Even if it might be considered a lesser topic, the admiral’s goal to exert control over the exports manifested itself socially, economically and politically. It is remarkable how the great regional lords rejected the admiral’s intervention, because they were great landholders and wished to export grain without paying customs. The cities, by their own authority, sought to guarantee the supply of grain and bread at a reasonable price and, thus, flatly rejected the admiralship’s customs, taking measures against their application. Finally, it is remarkable the sheer volume of that trade, which, among other reasons, explains by itself why the admiral was unable to fully control it. Keywords Trade; Fiscal policies; admiral of Castile; Grain; Supply. Introducción. Los cereales eran la base de la alimentación medieval, pesada en hidratos de carbono, suficientemente nutricia pero algo repetitiva y, normalmente, carente en proteínas. El pan, en todas sus modalidades, era un elemento vital de la vida del hombre y mujer medios del medievo2. Incluso tenía una potente vertiente simbólica como sujeto de la transubstanciación, esto es, la conversión en la carne de Cristo 2 Las clases populares tenían un acceso menor a la carne tanto por su elevado precio como por cuestiones sociales, ya que era un símbolo de estatus y la carne de caza, por ejemplo, estaba reservada a las mesas nobles. El pescado dependía de la cercanía a regiones costeras o fluviales y al precio de éste. Generalmente los campesinos complementaban su dieta pesada en cereales con frutas y legumbres. GONÇALVES, Iria –“Acerca da alimentação medieval”. Revista da Faculdade de Letras, 4 série, 2 (1978), pp. 441‐458; FERREIRA, Nuno Paulo Soares –“A alimentação portuguesa na Idade Medieval”. Alimentação Humana. Revista da SPCNA 14, 3, (2008), pp. 104-114. EL ALMIR ANTAZGO DE CASTILLA Y LA ‘SACA DE PAN’ [...] 609 según se anunció en la Última Cena. Es sorprendente constatar las numerosísimas ocasiones – ya sea en grabados, miniaturas, pintura o esculturas – en que algún elemento relacionado con el pan como concepto general hace aparición, desde la siega del trigo maduro a una hogaza siendo partida por Jesús y unos incrédulos apóstoles en medio de su sagrado refrigerio. Tal importancia justifica que el comercio de cereales, el abastecimiento de pan fuera, sin duda, la principal preocupación de cualquier población, junto con el igualmente indispensable suministro de agua potable3. La compraventa de cereales, desde la Antigüedad, como demuestra la Annona romana, era uno de los negocios más proclives a caer en manos de especuladores sin escrúpulos, que en tiempos de carestía encarecían el producto, o que incluso llegaban a provocar crisis de subsistencia retrayendo y reteniendo el pan para provocar un alza artificial de los precios que les beneficiase. Por todo ello el comercio de cereales es uno de los que reciben más atención institucional. Los concejos medievales siempre estaban al tanto de las fluctuaciones del mercado y en numerosas ocasiones acumulaban cereal o se encargaban de costear la llegada de cargamentos de pan que pudieran solucionar una potencial hambruna4. La venta y compra de trigo y otras especies frumentarias afines, era probablemente el flujo comercial más elemental, y por ello, toda cuestión que incidiera en dicho circuito, como hemos reiterado, era de gran consideración5. El comercio de cereales era imprescindible, ya que 3 El pan tiene una fuerte carga simbólica en la Edad Media derivado de un sincretismo de tradiciones heterogéneas –judaísmo, religiones clásicas- originado en los tiempos finales del Imperio romano. En la Edad Media, época simbólica donde las haya, cada aspecto de la comida tenía un trasfondo cultural. MONTANARI, Massimo – Alimentazione e cultura nel Medioevo. Roma: Laterza, 1992, pp. 124-137; MONTANARI, Massimo – Mangiare da Cristiani: diete, digiuni, banchetti, storie di una cultura. Milano: Rizzoli, 2015, pp. 23-33; WEISS ADAMSON, Melitta – Food in medieval times. Londres: Greenwod Press, pp. 1-4; pp. 181-189; GONÇALVES, Iria –“A alimentação”. In MATTOSO, José (dir.) – História da Vida Privada em Portugal, Vol I: A Idade Média, SOUSA, Bernardo Vasconcelos e (coord.). Lisboa: Círculo de Leitores, 2011, pp. 226-260. 4 Las crisis de cereales han atraído la atención de numerosos investigadores, en buena medida por su recurrencia en ciertos períodos y la evidente gravedad de una situación de carestía alimenticia. Véanse: MARTÍN GUTIÉRREZ, Emilio –“La crisis de 1503-1507 en Andalucía: reflexiones a partir de Jerez de la Frontera”. In OLIVERA HERRER, Hipólito Rafael; BENITO I MONCLÚS, Pere (coords.) – Crisis de subsistencia y crisis agrarias en la Edad Media. Sevilla: Universidad de Sevilla, pp. 207-302; IRANZO MUÑÍO, María Teresa –“Abastecimiento urbano, fiscalidad y política frumentario: el mercado del trigo en Huesca en el siglo XV”. In LALIENA CORBERA, Carlos; LAFUENTE GÓMEZ, Mario (coord.) – Una economía integrada. Comercio, instituciones y mercados en Aragón, 1300-1500. Zaragoza: Grupo de Investigación Consolidado CEMA, 2013, pp. 205-250; TOMÁS FACI, Guillermo – “Las estrategias señoriales en el mercado del cereal: el conde de Ribagorza ante la carestía gascona de 1347”. In LALIENA CORBERA, Carlos; LAFUENTE GÓMEZ, Mario (coords.) – Una economía integrada. Comercio, instituciones y mercados en Aragón, 1300-1500. Zaragoza: Grupo de Investigación Consolidado CEMA, pp. 251-261; BORRERO FERNÁNDEZ, Mercedes –“Crisis de cereales y alzas de precios en la Sevilla de la primera mitad del siglo XVI”. Historia, Instituciones, Documentos 18 (1991), pp. 39-57; GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel – “Las crisis cerealistas en Carmona a fines de la Edad Media”. Historia, Instituciones, Documentos 3 (1976), pp. 283-308. 5 Había regiones tradicionalmente productoras y otras naturalmente deficitarias. La integración de los mercados medievales en relación con el grano permitía el abastecimiento de las zonas más proclives a sufrir escasez. La especulación era constante, grandes productores solían retener grano para alzar los precios. Véanse: ESPEEL, Stef – “The grain market and preferential trade of large landowners in Flemish cities during the Age 610 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL ciertas regiones eran deficitarias, no produciendo suficiente grano para mantener su población, lo que se agravaba en épocas de crisis de subsistencia, que conducía a una importación de grano de otros territorios. Ello provocaba la existencia de un flujo comercial constante entre regiones productoras y deficitarias. El ejemplo más paradigmático a nivel mediterráneo es Sicilia, que siempre ejerció ejemplarmente su rol de granero en la cuenca occidental de dicho mar. 1. La saca de pan. Una cosa vedada y su problemática. En Castilla, literalmente se denomina como “saca” a la comercialización de un producto para su exportación, por mar o por tierra. Sin embargo, el concepto de sacar, en sí mismo, tiene una acepción negativa en el derecho medieval castellano, ya que solía denominarse como tal a aquellos productos cuya salida del reino conllevaba un perjuicio de éste y debía, por tanto, evitarse en la medida de lo posible. Por ello, la saca de pan, ganado, carne, metales o paños estaban comprendidas dentro de los que se denominaba como “cosas vedadas” 6. Teniendo esto en cuenta la participación en dicho comercio dependía de la expedición de un albalá o licencia que permitía al negociante en cuestión exportar cualesquiera de estas cosas vedadas, incluyendo el pan. Esto no sólo aseguraba que siguiera vedada una comercialización indebida de dicho producto estratégico, sino que también derivaba en una serie de ingresos arancelarios significativos. Las cosas vedadas, por naturaleza, eran aquellas of Shocks (1330-1370)”. Mélanges de l’École française de Rome. Moyen âge 131-1 (2019), en línea, consultado el 20 de diciembre de 2019. URL: http://journals.openedition.org/mefrm/5351; DOI: 10.4000/mefrm.5351; PÉREZ SAMPER, María de los Ángeles –“El pan nuestro de cada día en la Barcelona moderna”. Pedralbes 22 (2002), pp. 29-36; GENICOT, L. –Comunidades rurales en el Occidente medieval. Barcelona: Crítica, 1993, pp. 141-153; MIRANDA, Flavio; FARIA, Diogo –“Lisboa e o comercio marítimo com a Europa nos séculos XIV e XV”. In FONTES, João Luís; OLIVEIRA, Luís Filipe; TENTE, Catarina; FARELO, Mário; MARTINS, Miguel Gomes (coords.) – Lisboa medieval: gentes, espaços e poderes. Lisboa: Instituto Estudos Medievais, 2016, pp. 241-266; MARQUES, A. H. de Oliveira – Introdução à história da agricultura em Portugal. A questão cerealifera durante a Idade Média. Lisboa: Edição Cosmos, 1968; GONÇALVES, Iria – “A propósito do pão da cidade na Baixa Idade Média”. In SILVA, Carlos Guardado da (coord.), Turres Veteras IX. História da Alimentação. Torres Vedras 2007, pp. 49-72; GONÇALVES, Iria – “Defesa do consumidor na cidade medieval: os produtos alimentares (Lisboa –séculos XIV e XV). Um olhar sobre a cidade medieval. Cascais: Patrimonia, 1996, pp. 97-116. 6 En 1268, en las cortes de Jerez, ya incluyó Alfonso X el pan entre las cosas vedadas: “ninguno non saque de mis rreynos… oro, plata, cobre e pannos, cauallos e todas las otras bestias, bueyes, vacas, puercos e toçinos e todos los otros ganados (…) nin pan, nin vino, nin otra vianda ninguna (…)”. Las cortes de Haro de 1288 bajo Sancho IV y las de Palencia de 1313 de Alfonso XI ampliaron y cimentaron esta serie de prohibiciones dentro del derecho castellano; incluso llegaron a especificar el territorio de Portugal como particularmente vedado. Enrique II reiteró con contundencia las cosas vedadas en sendas ordenaciones Burgos y Toledo en 1377 y 1378 respectivamente, sentando las bases de la cuestión bajo la nueva dinastía. PINO ABAD, Miguel – “La saca de cosas vedadas en el derecho territorial castellano”. Anuario de historia del derecho español LXX (2000), pp. 200-207; MONTES ROMERO-CAMACHO, Isabel – “Las instituciones de la ‘saca’ en la Sevilla del siglo XV. Aproximación al estudio de la organización institucional del comercio exterior de la corona de Castilla al final de la Edad Media”. Historia, Instituciones, Documentos 31 (2004), pp. 417-421; BERMEJO CABRERO, José Luis – “Dos Ordenamientos de Enrique II sobre sacas”. Cuadernos de Historia del Derecho 5 (1998), pp. 271-280. EL ALMIR ANTAZGO DE CASTILLA Y LA ‘SACA DE PAN’ [...] 611 cuyo comercio debilitaba al reino frente a sus competidores, fortaleciendo su base poblacional en ocasión de una guerra. Sin embargo, la veda estricta del comercio de cereales sólo se realizaba en tiempos críticos, como guerra abierta, para impedir un desabastecimiento de la población en una potencial carestía, cortándose el comercio a causa del enfrentamiento armado. En tiempos de paz, o sin que hubiera una circunstancia excepcional, el comercio de trigo era común y corriente y no había un control específico más allá del pago de los debidos aranceles. Es decir, aunque según se había establecido en Cortes la exportación de pan era una cosa vedada, ésta solamente era prohibida taxativamente en tiempos críticos, siendo un tráfico con un gran volumen comercial en cualquier otra circunstancia. Los dos reinos que eran objeto más frecuente de un cese del comercio regular eran Portugal y el reino nazarí de Granada, uno por la encendida rivalidad dinástica con Castilla y el segundo por cuestiones militares e ideológicas7. La obligación de obtener una licencia del almirante o sus agentes para poder sacar pan condujo, naturalmente, a la frecuente redacción de cédulas y misivas en las cuales se conminaba al almirante que permitiera a tal o cual individuo sacar pan por vía marítima. Ejemplo de ello, la carta del rey actuando a favor del adelantado mayor de Andalucía y hermano menor del almirante, Pedro Enríquez de Ribera conminándole a que le autorizara a sacar trigo de Sevilla –la misiva también está dirigida a los miembros del concejo hispalense-, o una de Diego de Herrera, hombre principal de las Islas Canarias en aquel entonces, para que se le permitiera sacar pan de dicha localidad, con destino a las posesiones ultramarinas de la corona castellana8. La corona en ocasiones expedía una orden explícita al respecto. Como puede verse en un documento regio de 1477, en el cual se ordenaba al almirante y al concejo de Sevilla que se permitiera sacar pan con licencia al doctor Antonio Rodríguez de Lillo9. Las instituciones castellanas que podían tener mano en dicha saca del pan eran 7 Debe diferenciarse la teoría de la práctica, ya que ambos territorios tenían un próspero flujo comercial con las regiones circundantes, tanto por mar como por tierra. La economía granadina dependía en buena medida de las exportaciones de sus productos de alta demanda: seda, azúcar, trabajos en cuero y otras manufacturas de lujo. Castilla podía acceder a ese mercado vendiendo sus materias primas –como los cereales-, lo cual estaba expresamente censurado dentro de la ordenación de las cosas vedadas. Véanse: FÁBREGAS GARCÍA, Adela – “El reino nazarí de Granada como área de comercio internacional: ¿Colonia mercantil o espacio de integración?”. Anales de la Universidad de Alicante. Historia Medieval 18 (2012-2014), pp. 153-169; FÁBREGAS GARCÍA, Adela – “Redes de comercio y articulación portuaria del reino de Granada: puertos y escalas en el tráfico marítimo bajomedieval”. Chronica Nova 30 (2003-2004), pp. 69-102. 8 La carta fue dada el 28 de mayo de 1476, en la ciudad de Burgos. Simancas, Archivo General de Simancas, Registro General del Sello, RGS,LG,147605,363. La isla además había oscilado su producción agrícola hacia el sector vitivinícola, especialización que sucedió a la primigenia azucarera. La existencia de cultivos destinados a la exportación provocó un déficit permanente de cereales. MACÍAS HERNÁNDEZ, Antonio M. – “Población, producción y precios del trigo, 1498-1560”. Anuario de Estudios Atlánticos 57 (2011), p. 330. 9 Documento dirigido al almirante y los concejos sevillanos para sacar mil cahíces de trigo de dichas localidades el 20 de junio de 1477. Simancas, Archivo General de Simancas, Registro General del Sello, RGS,LEG,147706,256,3. 612 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL varias: el almojarifazgo, el almirantazgo y el guarda mayor de las cosas vedadas10. El trigo era un producto estratégico. Evidentemente una población bien alimentada y abastecida era más poderosa y próspera, y de poder evitarse había que impedir que las naciones enemigas se abastecieran de pan propio. Por ello, la exportación de cereales estaba férreamente controlada por la propia corona, garante última del mantenimiento del abastecimiento y de la prosperidad de la población; así como del cumplimiento de los derechos y elementos jurisdiccionales de las diversas instituciones involucradas. Pues bien, mientras que el almojarife tenía bajo su supervisión la expedición de licencias de comercio de pan, así como de la exacción de elementos aduaneros que afectaban, también, al flujo de la saca, el almirante tenía potestad jurisdiccional sobre dicho negocio por vía marítima. Percibiendo, por ello, unos derechos fijos sobre la actividad económica, así como la capacidad de supervisarlo, mientras que fuese, por supuesto, por mar. El control y la regulación de la saca del pan por localidades de frontera – tanto terrestre como marítima – correspondía a su vez a otras autoridades, los guardas de la saca. Éstos se hallaban apostados por todo el territorio y prestaban especial atención al borde con Portugal, país con el cual había un intenso comercio, a pequeña y gran escala, de cereales11. El almirante, por su parte, como elemento derivado de su control efectivo del tráfico marítimo, inspección de navíos y de instalaciones portuarias, debía supervisar y revisar la exportación del pan que se realizara dentro de su jurisdicción. Para ello, sus agentes debían no sólo expedir licencias, sino ejercer una supervisión efectiva del flujo comercial y penar a aquellos que se saltaran la prohibición. Sin embargo, la escasa delimitación inter-jurisdiccional provocaba enfrentamientos comunes con los almojarifes y los guardas de la saca. El almirante ejercía su control del tráfico marítimo inspeccionando los navíos, los cuales debían de pagar los derechos debidos al almirante en su llegada al puerto respectivo. Por ello, el control de las instalaciones portuarias a través de sus agentes – criados, lugartenientes, alguaciles y subordinados varios – era fundamental. La institución castellano-leonesa tenía, pues, que lidiar con toda una serie de interferencias derivadas de poderes señoriales, concejiles y privados, que buscaban o bien evitar el pago de dichos derechos o asegurarse una exención de su pago. En ello, el árbitro era la corona. Con respecto a la oposición nobiliaria, debe entenderse 10 En su momento fueron definidas por Isabel Montes, en un artículo de 2004, véase: MONTES, ROMERO-CAMACHO, Isabel – “Las instituciones de la ‘saca’ en la Sevilla del siglo XV. Aproximación al estudio de la organización institucional del comercio exterior de la corona de Castilla al final de la Edad Media”. Historia, Instituciones, Documentos 31 (2004), pp. 417-436. 11 Flávio Miranda caracterizó esa serie de pequeñas ciudades y plazas fronterizas cuya economía estaba profundamente interconectada con localidades castellanas. Lugares con actividad comercial, en muchas ocasiones un tráfico de baja intensidad. Véase: MIRANDA, Flávio – “Urban economy in a ‘Kingdom without cities’: population and exchange in late medieval Portugal”. In ANDRADE, Amélia Aguiar; COSTA, Adelaide Millán da (eds.) – La ville médiévale en débat. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, 2013, pp. 175-184. EL ALMIR ANTAZGO DE CASTILLA Y LA ‘SACA DE PAN’ [...] 613 que la aristocracia andaluza tenía enormes extensiones de tierras donde se producía cereal y el reino de Sevilla, era una de las grandes zonas de producción de pan de toda la península ibérica12. Así pues, estos nobles buscaban colocar el excedente en otros mercados, para lo cual la solución menos costosa era el transporte marítimo, ya que el terrestre era más lento y más caro13. Los grandes magnates intentaban de continuo conseguir como concesión regia los derechos sobre la saca de pan. Ello no sólo aumentaba sus ingresos al disminuir la presión fiscal sobre la actividad económica de sus territorios, sino que también impedía el obstruccionismo de poderes externos dentro de su área de influencia. Los puertos francos eran un gran aliciente para mercaderes extranjeros y dentro de la competitividad regional se buscaba poseer cualquier elemento que pudiera dar una ventaja. En la Bahía de Cádiz, villas como Sanlúcar de Barrameda o Cádiz se disputaban la flotante población de mercaderes estantes, buscando aumentar el volumen comercial de sus puertos ofreciendo exenciones y ventajas fiscales y arancelarias. El impago de derechos del almirantazgo, como el quinto de presas, los aranceles sobre la exportación o la expedición de licencias eran una constante, en buena medida porque los grandes nobles querían aumentar el atractivo económico de sus localidades y aumentar sus rentas. Por otro lado, debe recordarse que el almirante tenía específicamente derechos sobre la saca de pan14. Ello justifica los enfrentamientos con otros poderes, ya que disminuía, por un lado, los beneficios de la venta del trigo producido y, por otro lado, encarecía un producto ya de por sí bastante susceptible a la inflación y a los cambios bruscos en el nivel de los precios. Sobre todo, en tiempos de carestía, cuando había una necesidad perentoria de buscar grano en otras regiones, comprarlo y transportarlo. Incluso, ha de tenerse en cuenta que no sólo el almirante recibía una serie de beneficios sobre el precio de la harina, los cereales, el pan o el bizcocho, sino que toda una serie de personajes percibían rentas concretas sobre la saca15. La superposición de privilegios y mercedes podía llegar a encarecer gravosamente el 12 Miguel Ángel Ladero Quesada ofrece unas cifras totales concretas para finales de la Edad Media, de 1,5 a 1,65 millones de quintales de trigo anuales producidos en Andalucía, siendo más de la mitad proveniente del reino de Sevilla, en especial de las campiñas sevillana y jerezana. Ello indica un volumen de producción bastante considerable. La excepcional situación comercial de la región a finales del siglo XV favoreció el crecimiento del tráfico comercial de grano. LADERO QUESADA, Miguel Ángel – Andalucía a fines de la Edad Media. Cádiz: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Cádiz, 1999, pp. 29-35; pp. 60-94. 13 Sólo hay que ver el costo de las reparaciones periódicas que necesitaban las carreteras, que era bastante notable. Además, los caminos eran bastante frágiles, sufriendo su curso con la acción de los fenómenos atmosféricos. RUIZ PILARES, Enrique José – “La política viaria municipal a finales de la Edad Media (14301530): el caso de Jerez de la Frontera”. Norba. Revista de Historia 25-26 (2012-2013), pp. 207-227. 14 AZNAR VALLEJO, Eduardo – “Las rentas del almirantazgo castellano. Entre la ley y la costumbre”. En la España Medieval 37 (2014), pp. 132-135. 15 Alfonso de Ávila, o Dávila, ganaba como escribano de la saca (en 1478) seis maravedíes por cada cahíz de pan, trigo, cebada, centeno o semillas, y tres por cada quintal de bizcocho salido de Sevilla, MONTES, ROMERO-CAMACHO, Isabel – “Las instituciones de la ‘saca’ en la Sevilla del siglo XV. Aproximación al estudio de la organización institucional del comercio exterior de la corona de Castilla al final de la Edad Media”. Historia, Instituciones, Documentos 31 (2004), p. 432. 614 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL precio final de los productos mencionados, desde el pan en sí a los cereales, pasando por semillas y el llamado bizcocho, producto muy demandado por la armada. 2. El almirantazgo castellano y la saca de pan. Los derechos del almirante sobre la saca de pan eran variables, dependiendo en buena medida del momento y del volumen del comercio. Los beneficios debían ser bastante importantes como para requerir una atención constante por parte de aquel que ocupara dicha dignidad y, sobre todo, de sus subordinados jurisdiccionales, los lugartenientes16. Probablemente, fuera el derecho más importante de la institución junto con el porcentaje percibido por el quinto real de las presas tomadas en la mar17. El nombramiento de Rodrigo Álvarez de la Becerra como lugarteniente de almirante llevó asociados una serie de documentos, entre 1455 y 1456, en los cuales hay una mención de la saca de pan. Como puede observarse en la toma de posesión por parte del citado arrendador, en presencia de Alonso de Valladolid, criado del almirante, y de varios otros personajes, incluyendo Antonio Spínola y Pedro Ferrández de Casino, mercader estante y vecino de la ciudad; ambos de orígenes genoveses. El documento adjunta una carta del propio almirante, Fadrique Enríquez: (…) para que podades reçibir e recabdar en my nombre e para my según dicho es qualesquier derechos que a my pertenesia asy de maravedíes e de mercaderías e pan e moros e otras cosas por rason del dicho my ofiçio de almyrantazgo e me pertenese por razon de la saca del pan que se ha sacado fasta aquí commo de lo que se sacare de aquí adelante fuera de reyno con todas las penas e calomnyas en que sea caydo e incuirrido e cayere e yncurriere de aquí adelante por rason de la dicha saca e qualesquier otros derechos que a my pertenecen e pertenesian (…)18 La carta de poder del magnate castellano a su criado, Alonso de Valladolid, destaca los elementos principales de las rentas del almirantazgo: las presas de la mar, de las cuales posee legalmente el quinto, o un porcentaje de él, las cosas vedadas y la saca del pan. En el caso que se sacase sin licencia que se persiguiera al infractor y se le obligara a pagar una multa correspondiente al delito. El impago de licencias equivalía a una vulneración de los derechos jurisdiccionales del almirantazgo, algo 16 AZNAR VALLEJO, Eduardo –“Las rentas del Almirantazgo castellano. Entre la ley y la costumbre”. En la España medieval 37 (2014), pp. 132-135. 17 Los quintos de presas y los beneficios asociados aumentaron progresivamente en importancia a lo largo del siglo XV por su peso comparativo dentro del total. AZNAR VALLEJO, Eduardo – “Las rentas del Almirantazgo castellano. Entre la ley y la costumbre”. En la España medieval 37 (2014), pp. 135-146; CALDERÓN ORTEGA, J. M. – El Almirantazgo de Castilla: Historia de una institución conflictiva. Alcalá de Henares: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Alcalá de Henares, 2003, pp. 271-277. 18 Sevilla, Archivo General de Andalucía, Archivo de la Casa Ducal de Alba, Fondo del Almirante, C. 58. EL ALMIR ANTAZGO DE CASTILLA Y LA ‘SACA DE PAN’ [...] 615 que su titular no deseaba. Un episodio muy significativo de intento de burlar la jurisdicción del almirante en la saca de pan es del 5 de mayo de 1528. Hernando de Zayas, criado de Fadrique Enríquez, almirante de Castilla y de Granada, y su lugarteniente, Pedro de Soria, requieren al tesorero mayor de Rodrigo Ponce de León, el pago “de todos los derechos en quasquier manera le pertesian e pertenece (…) del pan que por el puerto desta villa de Rota (…)” fuese exportado, que el duque de Arcos y marqués de Zahara había conseguido evitar “de seys annos a esta parte”. Literalmente el noble andaluz no había pagado ni un sólo maravedí al almirante por todos los cereales que se habían embarcado en el puerto gaditano19. El duque de Arcos no tenía privilegio de exención de dicho pago, con lo cual su impago era una ilegalidad. Simplemente, estaba buscando evitar la intervención de otro noble en sus estados y, seguramente, no encarecer los costes de dicho tráfico comercial. En 1483 los monarcas ya habían ordenado al abuelo del I duque de Arcos, el marqués de Cádiz, que pagase los derechos sobre la saca del pan de sus posesiones y también que se asegurara de que los pagos se hicieran correctamente en su área de influencia. En aquella ocasión el almirante Alonso Enríquez de Quiñones envió a un apoderado, Alonso de Xeres, para reclamar dicho impago y regularizar la situación20. Ambos documentos son un ejemplo revelador de la fuerte oposición señorial al pago de una serie de derechos que eran considerados intrusivos. Debe considerarse además que el comercio de grano en la zona era bastante próspero. Otro señor regional que estaba involucrado en el comercio de grano andaluz era el duque de Medinaceli, que tenía por señorío el Puerto de Santa María, en la Bahía de Cádiz. En 1477, el 9 de julio, en la ciudad de Sevilla, los Reyes Católicos enviaban una carta a petición de Luis de la Cerda para que se le consintiera a éste, por parte del almirante, sacar trigo de sus propiedades agrícolas en dicho señorío21. En 1513 encontramos otra carta, un tercer ejemplo a otro de los grandes señores de la región, el duque de Medina Sidonia22, por la cual se prohíbe que ni él mismo, 19 Carta de pago otorgada en nombre del almirante Fadrique. Toledo, Archivo Histórico de la Nobleza, Fondo de Osuna, OSUNA,C.183,D.82-83. 20 El documento es del 25 de octubre de 1483 y fue expedido en la ciudad de Vitoria. Hace referencia a los derechos de la saca de pan en los puertos de Andalucía. Simancas, Archivo General de Simancas, Registro General del Sello, RGS,LEG,148310,22. 21 Simancas, Archivo General de Simancas, Registro General del Sello, RGS,LEG,147709,510. 22 La casa de Medina Sidonia, era la más rica del reino de Sevilla, por la entidad de sus posesiones. Claramente la capacidad productiva y económica de unos señoríos tan numerosos era considerable. El duque no sólo deseaba sacar pan –por ejemplo, de Niebla hacia Melilla- y otras mercancías sin pago de licencias o aranceles, sino que además buscaba asentar su hegemonía sobre la ciudad hispalense y su reino. Teniendo ello en cuenta el almirantazgo, bien asentado en la cabecera del dicho territorio, era un estorbo para ambas cuestiones. Algunos de los duques, como Juan Alonso Pérez de Guzmán tenían un fuerte interés en incrementar la prosperidad de sus estados. Véanse: MORENO OLLERO, Antonio – “Moreras, caña de azúcar y pastel: Los proyectos del duque de Medina Sidonia en el siglo XVI”. Andalucía en la Historia 58 (2017), pp. 36-41; PAREJO FERNÁNDEZ, Luis. – “Los intereses de Sevilla sobre el almojarifazgo de Sanlúcar (1297-1645)”. In 616 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL ni sus gobernadores, ni sus factores (sus subordinados directos) saquen pan de sus posesiones, como eran el condado (de Niebla) o Sanlúcar de Barrameda, cabeza de sus posesiones andaluzas23. Los Guzmanes buscaban evitar el pago de derechos al almirante – no sólo por el pan, sino también los quintos y las cosas vedadas – en sus posesiones desde la primera mitad del siglo XV – en 1445 habían llegado a ordenar un asalto a la casa del lugarteniente de almirante, llevándose dinero, documentos y mercaderías –, mayormente cuando estaban expandiendo y consolidando su influencia en el occidente andaluz.24 De hecho, Juan de Guzmán, I duque de Medina Sidonia, y su hijo Enrique de Guzmán, consiguieron en tiempos del pretendido rey Alfonso, hermano de Isabel la Católica, derechos sobre la saca de pan de las posesiones ducales. El 9 de junio de 1467, el príncipe-rey Alfonso hacía merced a Enrique de Guzmán de las tercias del pan de Sanlúcar, Trebujena, Condado de Niebla, Almonte, Huelva y Medina Sidonia con sus términos25. La enorme extensión de las concesiones, lógicas teniendo en cuenta que Alfonso contaba con el apoyo del duque, no pervivieron más allá de los turbulentos años finales del reinado de Enrique IV. Pero, sí que sobrevivió la intencionalidad, equiparable a la persistencia en el impago de los Ponce de León, por parte de los sucesivos duques de Medina Sidonia de intentar que sus puertos fueran francos o al menos eximirse del pago al almirante26. En ocasiones los agentes del almirantazgo cometían irregularidades o se excedían en sus funciones. Algo que ocasionaba las quejas de los concejos y de los mercaderes. Lo cual es totalmente comprensible, ya que los derechos del almirantazgo de por sí eran considerados una imposición opresiva que encarecía y dificultaba el tráfico mercantil de ciudades como Sevilla. Por ejemplo, el concejo llegó a enviar una carta en 1479 al almirante Alonso Enríquez de Quiñones sobre el IGLESIAS RODRÍGUEZ, Juan José; PÉREZ GARCÍA, Rafael; FERNÁNDEZ CHAVES, Manuel Francisco (eds.) – Comercio y cultura en la Edad Moderna, Vol. 2. Sevilla: Universidad de Sevilla, 2015, pp. 660-662; MORENO OLLERO, Antonio; FRANCO SILVA, Alfonso –“Datos sobre el comercio del puerto de Sanlúcar de Barrameda en el primer tercio del siglo XVI”. In Hacienda y comercio: actas del II coloquio de Historia Medieval Andaluza. Sevilla: Diputación Provincial de Sevilla, 1982, pp. 283-296; 23 Sevilla, Archivo General de Andalucía, Archivo Ducal de la Casa de Alba, Fondo del Almirante, C. 78-24. 24 El mandato de Juan de Guzmán para registrar las casas del almirantazgo nos remite a un episodio durante el cual el lugarteniente de almirante Diego Álvarez de la Becerra tuvo un encuentro con los agentes del magnate castellano, liderados por Pedro de Xeres, que ordenaba el registro de dichas casas en busca de ciertos documentos y un monto de dinero. Sevilla, Archivo General de Andalucía, Archivo de la Casa Ducal de Alba, Fondo del Almirante, C. 77-44. 25 ANASAGASTI VALDERRAMA, A. Mª.; RODRÍGUEZ LIÁÑEZ, L. – Niebla y su tierra en la Baja Edad Media: historia y documentos. Huelva: Diputación de Huelva, Servicio de Publicaciones, 2006, p. 803-804. 26 El comercio de grano tenía un peso específico para el duque, ya que este poseía las tierras más productivas en la zona. En 1509 los Guzmán obtenían 3.794 fanegas de trigo y 1.608 de cebada de sus propiedades en torno a Sanlúcar, un tercio de la producción del mismo. Generalmente dicho trigo era exportado o usado para abastecer las fortalezas del duque. No es de extrañar intentara sustraerse de la jurisdicción del almirantazgo. NAVARRO SAINZ, José María – “Aspectos económicos de los señoríos de los duques de Medina Sidonia a principios del siglo XVI”. Huelva en su historia 2 (1988), pp. 321-325. EL ALMIR ANTAZGO DE CASTILLA Y LA ‘SACA DE PAN’ [...] 617 asunto de la saca del pan27. Debe considerarse que las mercancías al salir de la ciudad de Sevilla, siguiendo el ejemplo, tenían que pagar derechos arancelarios, incluyendo el portazgo, con lo cual la necesidad de expedir una licencia podía llegar a ser una obligatoriedad dolosa28. La consecuencia más grave y más conocida de las quejas y problemas en torno a la saca de pan y del almirantazgo es la revuelta de Málaga. El alzamiento de la población malagueña no sólo anuló la influencia de la institución en la ciudad, sino que extendió un descontento cerval y generalizado al almirante y sus agentes por todo el reino de Granada y parte del de Castilla, con las grandes ciudades sintiéndose agraviadas por los impuestos que habían de pagar sobre el precio del pan al susodicho Fadrique Enríquez de Cabrera. Una revuelta violenta que conllevó la destrucción de la sede del almirantazgo en Málaga y la expulsión del lugarteniente de la ciudad29. La insistencia recurrente del almirante en el respeto a sus derechos es debida a que, frecuentemente, estaban intrínsecamente unidos: el impago de unos solía ir acompañado del impago de otros, como el tercio del quinto real. Así que, el incumplimiento de alguno de ellos solía conllevar un dominó de delitos contra la jurisdicción del almirantazgo. Debe tenerse en cuenta que disputaban con grandes poderes regionales. También se debe considerar, que la mayor parte de dichas cuestiones están relacionadas con la Andalucía Occidental porque éste era el gran punto comercial del reino castellano-leonés, enhebrando las rutas atlánticas con las mediterráneas. Lo cual, por otra parte, favorecía que fuera la zona donde más numerosas fueron las infracciones con respecto a la saca de pan, ya que el volumen mercantil favorecía la proliferación del fraude fiscal y el impago de los derechos del almirante. Hay que tener en cuenta que, pese al tenor de las órdenes regias al respecto, ello no es sino una respuesta a los intensos flujos con las consideradas coronas enemigas, sobre todo Portugal y Granada30. 27 La carta, en concreto, fue a petición del Marqués de Cádiz, Rodrigo Ponce de León. Sevilla, Archivo General de Andalucía, Archivo Ducal de la Casa de Alba, Fondo del Almirante, C. 77-82. 28 El Padrón del Portazgo, idéntico para las ciudades de Sevilla y Toledo, contiene 124 referencias fiscales, lo cual nos explicita lo complejo y extenso de los derechos arancelarios sobre las mercancías sacadas de una villa de las características de Sevilla. Debía pagarse, por ejemplo, por mercancías traídas de tierras musulmanas, el diezmo de los bajeles, el diezmo aduanero y el portazgo. GONZÁLEZ ARCE, J.D. – “Las rentas del almojarifazgo de Sevilla”. Studia histórica. Historia medieval 15 (1997), pp. 145-154. 29 CALDERÓN ORTEGA, José Manuel – “El almirantazgo de Granada (1512-1538): una historia conflictiva”. Revista de Historia Naval 92 (2003), pp. 7-50; CRUCES BLANCO, E.; LÓPEZ DE COCA CASTAÑER, J. E.; RUIZ POVEDANO, J. M. – Málaga y el almirantazgo mayor del reino de Granada (15101538). Málaga: Fundación Unicaja, 2017. 30 Pese a que motivos ideológicos o políticos clausuraran las fronteras o entorpecieran el flujo marítimo es indudable que había un considerable tráfico comercial y que ambos mercados tenían un gran interés tanto para los comerciantes castellanos como portugueses. Véanse: LOBO CABRERA, Manuel – “El comercio de cereales entre Tenerife y Portugal en el primer tercio del siglo XVI”. Arquipiélago 1 (1997), pp. 65-83; GARCÍA PORRAS, Alberto; FÁBREGAS GARCÍA, Adela – “Genoese trade networks in the sourthen Iberian península: trade, transmission of technical knowledge and economic interactions”. Mediterranean Historical Review 25 (2010), pp. 35-51; MALPICA CUELLO, Antonio; FÁBREGAS GARCÍA, Adela – “Los genoveses en el reino de 618 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL 3. El comercio de cereal con Portugal. Un flujo difícil de regular. El tráfico de grano entre Castilla y Portugal – tanto por vía terrestre como marítima – está constatado como una cuestión recurrente. Pese a la paulatina expansión agrícola portuguesa durante la Edad Media las condiciones climáticas y geográficas del país dificultaban el abastecimiento31. Así como fueron constantes los pleitos que dicho comercio de cereales ocasionaba para los infractores en tiempos de conflicto o fricción entre los monarcas de uno u otro reino. Ha de tenerse en cuenta que las fronteras políticas en muchas ocasiones no representan una división real: el Alentejo y la Extremadura castellana, por ejemplo, están en perpetua conexión32. No es una frontera “violenta” como la habida con el reino nazarí de Granada – aunque hubo largos períodos de paz entre ambas monarquías –, sino una permeable, donde poblaciones e individuos interactúan continuamente. La frontera marítima entre ambos reinos, Castilla y Portugal, también es una zona de constante encuentro, y la interrelación del Algarve con Andalucía es profunda33. Así pues, pese a que los guardas de la saca procuraban limitar el tráfico comercial sin licencias, este comercio, en ocasiones de muy baja intensidad, era muy difícil de regular34. Simplemente, la interconexión de los ámbitos económicos luso-castellano hacía muy difícil limitar Granada y su papel en la estructura económica nazarí”. In GALLINARI, Luciano (ed.) – Genova: la ‘Porta’ del Mediterraneo. Genova: Brigati, Istituto di Storia dell’Europa mediterránea, 2005, pp. 227-258. 31 Véanse: RAU, Virgínia –“A grande exploração agraria em Portugal a partir dos fins da Idade Média”, Revista de História 30, 61, (1965), pp. 65-74; MARQUES, A. H. de Oliveira – Introdução à História da agricultura em Portugal. A questão cerealifera durante a Idade Média…, pp. 33-60. 32 Las villas fronterizas de Portugal dependían económicamente no sólo de la producción ganadera y agrícola de su entorno, sino también del comercio con Extremadura, Castilla y Galicia. MIRANDA, Flávio – “Urban economy in a ‘Kingdom without cities’: population and exchange in Late Medieval Portugal…”, pp. 179-182; SERRÃO, Joaquim Veríssimo. – História de Portugal. Vol. II: (1415-1495). Lisboa: Verbo, 2003, pp. 286-291; SERRÃO, Joaquim Veríssimo. –História de Portugal, Vol. III: (1495-1580). Lisboa: Verbo, 2001, pp. 322-328. 33 Las ciudades del Algarve tenían con frecuencia crisis de abastecimiento. Las villas portuarias andaluzas solían ser el mercado en el cual se compraba el cereal necesario para alimentar lugares como Faro, Tavira o Portimão. Puertos que además formaban una red urbana profundamente interconectada económica, social y políticamente desde su conquista y la reorganización del reino por D. Dinis. SILVA, Gonçalo Melo da –“Alimentar la red urbana: las villas y ciudades portuarias del Algarve y el abastecimiento cerealista a finales de la Edad Media”. RIPARIA, Suplemento 2: Paisajes y redes portuarias en el Golfo de Cádiz (siglos XII-XVI) (2019), pp. 220-236; SILVA, Gonçalo Melo da – “A Coroa, as vilas e o mar: a rede urbana portuária do Algarve (1266-1325)”. In COSTA, Adelaide Millán da; ANDRADE, Amélia Aguiar; TENTE, Catarina (eds.) – O papel das pequeñas ciudades na construção da Europa Medieval. Castelo de Vide: Instituto de Estudos Medievais, Câmara Municipal de Castelo de Vide, 2017, pp. 558-566. 34 El fraude estaba muy extendido. Muestra de ello la disputa (recogida en una pesquisa de 30/5/1486) entre Juan de Villalobos, guarda de la saca, y Juan de Villafuerte, alcalde de Cardón que llevaba acémilas con trigo a Portugal sin licencia. O el poder (27/8/1486) expedido a Juan de Villalón, alcalde de la Hinojosa, para que cortara el flujo de grano al país vecino. Diego Mudarra recibió orden de la corona de informar sobre dicho comercio ilícito (9/1/1495). Simancas, Archivo General de Simancas, Registro General del Sello, RGS,LEG,148605,212; RGS,LEG, 148608,65; RGS,LEG,148605,76. EL ALMIR ANTAZGO DE CASTILLA Y LA ‘SACA DE PAN’ [...] 619 por completo el comercio entre ambos países, especialmente en zonas fronterizas.35 Se constata un tráfico marítimo entre Portugal y Castilla, y hay noticias de cargamentos de cereales andaluces hacia el Algarve o hacia las plazas norteafricanas – Ceuta, Arcila, Tánger –, que, teniendo un hinterland insuficiente para proveerlas necesitaban de la exportación de pan para mantenerse. Una de las causas del proverbial sangrado que provocaba el mantenimiento de estas ciudades, según opinaba el infante-regente Pedro de Portugal en la misiva dirigida a su hermano, Don Duarte, escrita en Brujas entre diciembre y abril de 142636. El Algarve sufría periódicas crisis de abastecimiento, debiendo traerse pan de fuera del reino37. Todo ello pese a que dicho comercio frecuentemente contara entre las cosas vedadas por la rivalidad entre portugueses y castellanos durante el siglo XV38. Relaciones comerciales que, en el lado castellano-leonés de la frontera marítima, debían de ser supervisadas por el almirante y su lugarteniente situado en tierras andaluzas occidentales, particularmente en Sevilla; que por otra parte albergaba todas las grandes instituciones que se ocupaban de la saca del pan. Así pues, las necesidades de unas regiones u otras y las propias dinámicas internas del comercio dificultaban en sobremanera la regulación de un negocio de tanta intensidad entre ambas coronas. También explica la recurrente búsqueda por parte de las ciudades del entorno de convertirse en puertos francos y privilegiados que no pagasen derechos arancelarios y de exportación al almirante 35 El comercio terrestre entre el Alentejo y la Extremadura castellana es bastante intenso. Y no se interrumpía totalmente ni siquiera en tiempos de guerra. MEDRANO FERNÁNDEZ, Violeta – “El comercio terrestre castellano-portugués a finales de la Edad Media: infraestructuras de apoyo a la actividad comercial y mercaderes”. Edad Media. Revista de Historia 8 (2007), pp. 332-336; MEDRANO FERNÁNDEZ, Violeta – “El contrabando de Castilla a Portugal al final de la Edad Media”. In ÁVILA SEOANE, Nicolás (ed.) – Cultura y mentalidades: de la Antigüedad al siglo XVII (Nuevas Investigaciones). Madrid: Castellum, 2007, pp. 137-167. 36 AA.VV. – Monumenta Henricina. Vol. I. Coímbra: 1960, Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, p. 148. La posesión de las villas africanas era vista como un triunfo político e ideológico de la Casa de Avís, pero eran costosísimas de mantener. GOMES, Saul António – D. Afonso V. Lisboa: Círculo de Leitores, 2018, pp. 177-197; FONSECA, Luís Adão da – D. João II. Lisboa: Círculo de Leitores, 2018, pp. 24-34; BARROS, Amândio – “A preparação das armadas no Portugal de finais da Idade Média”. Revista da Faculdade de Letras. Historia 7 (1990), pp. 106-110. 37 Gonçalo Melo da Silva, quien hace una extensa recopilación de las fuentes documentales sobre la cuestión en: SILVA, Gonçalo Melo da – “Alimentar la red urbana: las villas y ciudades portuarias del Algarve y el abastecimiento cerealista a finales de la Edad Media”. RIPARIA, Suplemento 2: Paisajes y redes portuarias en el Golfo de Cádiz (siglos XII-XVI) (2019), pp. 231. 38 Acerca de las relaciones entre Portugal y Castilla en el siglo XV, enturbiadas por los conflictos políticos y rivalidad constante en el escenario atlántico, véanse: GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel – “Las relaciones entre Portugal y Castilla en el siglo XV (1411-1474)”. In RIBOT GARCÍA, Luis Antonio; CARRASCO MARTÍNES, Adolfo; FONSECA, Luís Adão da (coords.) – El Tratado de Tordesillas y su época, Vol. 2. Valladolid: Junta de Castilla y León, Sociedad V Centenario del Tratado de Tordesillas, 1995, pp. 781-792; MARQUES, José – Relações entre Portugal e Castela nos finas da Idade Média. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994; OLIVERA SERRANO, César – “Portugal y Castilla entre la paz y la guerra durante el siglo XV”. In ARRANZ GUZMÁN, Ana; RÁBADE OBRADÓ, María del Pilar; VILLARROEL GONZÁLEZ, Óscar (coords.) – Guerra y paz en la Edad Media. Madrid: Sílex, 2013, pp. 375-400. 620 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Conclusiones. Teniendo en cuenta la información recogida en el presente estudio, se puede por todo ello inferir que el papel del almirante en la saca y el comercio del pan era de todo menos secundario. Aunque no fuese determinante y estuviese frecuentemente alienado o limitado, sí que los agentes del almirantazgo tuvieron un rol importante en la supervisión de uno de los comercios más estratégicos de la monarquía castellanoleonesa a finales de la Edad Media. La saca del pan era muy importante para en el abastecimiento urbano, supliendo las deficiencias de la producción local, con lo cual todo elemento que fuera partícipe de dicha cuestión debe ser tenido en cuenta. La debilidad estructural del almirantazgo en numerosas ocasiones disminuye la incidencia real de la imposición de derechos, aunque estos debieron de ser lo suficientemente gravosos como para que protagonizaran toda una serie de quejas y pleitos con nobles, mercaderes y otras instituciones, incluyendo concejos como el de Málaga o el de Sevilla. También demuestra que únicamente a través de la corona y con su apoyo puede la institución aplicar esta serie de derechos sin estorbo, ya que el nivel de mediatización de estas cuestiones es elevado, sobre todo por la multiplicidad de privilegios, exenciones, franquicias e incluso fraudes e impago que existieron en dichos años en Andalucía. Sin duda alguna, esta es una cuestión únicamente aplicable al reino de Sevilla, exacerbada por la presencia del almirante y por la proximidad a dos reinos en frecuente disputa con los castellanos: Portugal y Granada. Frecuentemente, la saca del pan a estos países era limitada por razones estratégicas y/o ideológicas. Pero, también con recurrencia las prohibiciones eran saltadas y las licencias expedidas por el almirante ignoradas, ante lo jugoso del volumen comercial de la exportación de cereales. También, ofrece un buen ejemplo de la aplicación real de la teórica jurisdicción del almirantazgo castellano-leonés y de cómo el almirante gestionaba sus derechos y rentas en el sur peninsular, mediante el empleo sucesivo de apoderados, criados y arrendatarios. Así como, muestra que el irregular desempeño de éstos afectó al cobro de dichas tasas y en ocasiones. Ya que una incorrecta gestión de dichos elementos jurisdiccionales desembocó en un menoscabo de dichas rentas y a una mayor oposición por parte de nobles con influencia regional, concejos e incluso individuos privados. La existencia de menciones a multas y la continua insistencia del almirante y sus agentes al respecto es paradigmática. En numerosas ocasiones, simple y llanamente, era la corona directamente quien se encarga de gestionar dichas cuestiones, ante lo problemático de la cuestión, poniendo orden en las frágiles relaciones del almirante con los diversos elementos que se oponían a su jurisdicción. Así pues, se puede aseverar que el almirante tuvo un papel importante, si bien no esencial ante lo mediatizado de la realidad de finales del EL ALMIR ANTAZGO DE CASTILLA Y LA ‘SACA DE PAN’ [...] 621 siglo XV, en la saca del pan. Y, por ello, en el abastecimiento y el comercio de grano marítimos, mediante la expedición de licencias y el control de las cosas vedadas, pudiendo influir en la naturaleza y la cuantía de los flujos comerciales del momento. El apoyo de una corona, reforzada en sus atribuciones y autoridad, durante el reinado de los Reyes Católicos, permitió una influencia superior de la debida a un gran noble castellano –rentista y absentista-, en un sur peninsular donde realmente estaba realizándose dicho comercio, los fraudes consiguientes y la supervisión de dicho tráfico. 622 ABASTECER A CIDADE NA EUROPA MEDIEVAL Apoio: