MONSERRAT, Ruth (2010). A língua do povo My›k y. Campinas: Editora Curt
Nimuendajú. Pp. xxii + 249. 3 tabelas, 2 mapas, 26 textos e 1 vocabulário. ISBN
978-85-99944-18-9. (Paper) R$ 40,00
Em junho de 1971, uma equipe liderada por um padre jesuíta estabelecia o primeiro encontro
com os My)ky, uma sociedade indígena vivendo no Noroeste do Estado do Mato Grosso,
bastante próximo à Rondônia. Os My)ky são linguística e culturalmente aparentados com os
Irantxe, um povo indígena em contato com a sociedade brasileira desde a década de 1940. De
fato, My))ky e Irantxe falam uma mesma língua, classificada por Aryon Rodrigues como isolada
(Rodrigues 1986:95), sendo que os grupos se separaram no início do século XX. Ainda segundo
Rodrigues, até a década de 80 só havia “estudos elementares” dessa língua (duas pequenas
publicações).
Em fins de 1980, quando os My)ky não haviam completado 10 anos de ‘contato’, Ruth
Monserrat iniciou os estudos de sua língua, a convite da missionária católica Elizabeth Rondon
Amarante (uma neta de Rondon vivendo entre os My)ky desde o final dos anos 70). De uma
longa pesquisa e da parceria investigativa com Beth Rondon, resultou a primeira descrição
sistemática da língua Irantxe-My)ky, defendida como tese de doutorado e, uma década depois,
finalmente publicada. Em carta à autora (transcrita parcialmente na contracapa do livro), Robert
Dixon refere-se ao trabalho como uma “esplêndida gramática”.
A obra conta com uma Apresentação da já citada Elizabeth Rondon Amarante e um
Prefácio da autora, dois textos introdutórios que aludem à condições, aos colaboradores e ao
tempo da pesquisa. Seguem-se dois mapas de localização do território e da Terra Indígena
My)ky, e uma brevíssima informação sobre o povo. A propósito, os My)ky somavam cerca de
25 pessoas ao tempo do ‘contato’, contando hoje (40 anos depois) com uma população de
cerca de 90 pessoas (Ricardo e Ricardo 2006:13).
A descrição da língua propriamente dita está dividida, no livro, em três grandes blocos
(Fonologia, Morfossintaxe e Morfossintaxe 2), seguida de uma seção de Textos e, finalmente,
um Vocabulário.
Na Fonologia são apresentados os inventários consonantal e vocálico, processos
fonológicos e morfo-fonológicos e uma informação sobre alfabeto e ortografia.
No que se refere ao sistema fonológico, Monserrat postula 17 fonemas consonantais no
My)ky (contra 18 no Irantxe), sendo quatro oclusivas simples ( p , t , k , / ), três palatalizadas
( pj , t j , k j ), três fricativas (s , š , h ), duas nasais simples ( m , n ), duas nasais
palatalizadas ( m j , n j ), duas aproximantes ( w , j ) e uma líquida ( r ). O Irantxe contaria com
duas líquidas ( r , l ), mas a autora anota a ocorrência de “variação livre” entre l e r “na
pronúncia de muitas palavras por alguns falantes irantxe”. Anota-se também que alguns
falantes (principalmente Irantxe, mas também My)ky) realizam m em posição inicial de palavra
como [mb].
Três informações, no entanto, sugerem que a língua não possui séries de fonemas
palatalizados mas, antes, um padrão silábico que permite sílabas de onset complexo, nas
quais a segunda consoante é /j/. A primeira é o fato de que, além das oclusivas e das nasais
palatalizadas (as séries com valor [- contínuo] ) a autora informa ainda a palatalização de /w/
e de /r/, duas soantes. A segunda é a informação da própria autora de que “a consoante /s/
quando palatalizada é [š] (a fricativa poderia, então, ser analisada, simetricamente com
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as oclusivas, como /sj/)”. E a terceira, é a observação (acima referida) da realização [mb]
para o /m/ inicial; no entanto, os exemplos dados envolvem tanto /m/ inicial quanto o
suposto fonema complexo /mj / : muhu [mbuhu] ‘chuva’; mjehy [mbjehy] (p. 1), o que revela
a independência dos dois fones ( m + j ). Por tudo isso, pareceria mais apropriado (e econômico)
ampliar o padrão silábico em um item, e subtrair cinco (ou, talvez, oito) fonemas complexos
do inventário.
O sistema vocálico mostra-se bastante rico, com duas séries de vogais orais (breves e
longas) e duas séries de vogais nasais (breves e longas). Cada série conta com sete vogais,
totalizando 28 vogais no sistema. Na série básica, das orais breves, as vogais se distribuem,
segundo a autora, em: três altas (i , é, u), três médias (e , « , o) e uma baixa ( a ), sendo que as
chamadas “médias anterior e posterior” em geral são realizadas como [E] e [O] (p.3). Isso
sugere que o sistema provavelmente distinga uma série de vogais altas (i, é, u) em oposição
a uma série de vogais baixas (E, a, O), e inclui uma sétima vogal, que Trubetzkoy denominou
“vogal indiferenciada”, que não se inclui naquele jogo de oposições do sistema. Nas vogais
posteriores, evidentemente, o sistema opõe as arredondadas (u, o) às não-arredondadas (é,
a). Quanto à vogal /«/, a autora consigna alternâncias (morfo-fonológicas) com /e/ e, mesmo,
variação livre com esta última vogal em determinados termos (p. 9-10).
A oposição entre vogais orais e nasais parece neutralizar-se “em posição final não
tônica (ou com tom não alto)” (p. 4). A referência a tom está resumida em um tópico de cerca
de meia página (3. Supra-segmentais), em que se informa que o estudo ainda é incipiente “no
que se refere às relações entre altura, duração e intensidade vocálica” (p. 6). Para ilustrar a
pertinência da questão a autora elenca alguns exemplos “não analisados, em que a altura
parece contrastar, e não apenas complementar subsidiariamente a quantidade” (p. 6).
Quanto ao padrão silábico, a autora informa que as palavras são sempre terminadas
por vogais, embora a língua admita sílaba fechada (CVC) em posição inicial e medial.
Nos processos fonológicos destacam-se os espalhamentos de nasalidade e a
harmonização vocálica em determinados sufixos (p.7). Os processos morfo-fonológicos
tratam de queda e alternâncias de segmentos em contextos de juntura por composição ou
de sufixação. Os tópicos 5.6 e 5.7, no entanto, parecem melhor enquadrar-se em
harmonização vocálica (um assunto tratado em processos fonológicos).
A seção de Fonologia conclui-se com um tópico sobre Alfabeto e Ortografia (p.11ss), em
que se esclarecem as relações entre grafemas e fonemas, sendo que as consoantes ditas
palatalizadas são grafada com dígrafos, e as vogais longas são marcadas por diacríticos (acento
agudo nas orais, acento circunflexo nas nasais). A única escolha que parece pouco recomendável
é a adoção do sublinhado como diacrítico para distinguir a vogal /«/ = a (cf. Diniz 2007).
A primeira das partes dedicadas à Morfossintaxe abrange 42 tópicos relacionados à
morfologia flexional do verbo. Na abertura da seção a autora esclarece que “na língua
M y) k y todos os predicados são verbais”, classificando-se os verbos em ativos e
não-ativos, e estes últimos em estativos e não-estativos. Segundo Monserrat, “a maior
riqueza formal da língua falada pelo povo my)ky está concentrada no verbo” (p. 13).
Os primeiros quatro tópicos da seção tratam, nessa ordem, das categorias (flexionais)
Discurso, Pragmática, Pragmática-2 e Discurso Interior. A primeira realiza-se pelos
morfemas {-nã} e {-natã}, que constituem os últimos elementos expressos na morfologia
verbal. Seu papel exato, porém, não foi completamente esclarecido, mas a autora apresenta
um bom conjunto de dados e suas melhores hipóteses interpretativas.
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Segue-se a categoria Pragmática, que comporta “índices bioletais que indicam a
relação entre os participantes do discurso segundo critérios de bipartição natural dos
sexos, diferença de gerações e hierarquia referencial nominal”, e a categoria Pragmática-2,
cujos marcadores sufixais “indicam a relação de classe entre o falante e o referente
sujeito da oração” (sendo marcado o caso em que se dão classes diferentes, e não
marcado quando da mesma classe). Os marcadores de Discurso Interior, segundo a autora,
“caracterizam a posição do falante como não comprometida em relação ao evento da
fala”, o que, na fala dos próprios indígenas, significa “falar consigo mesmo” ou “estar só
pensando”, ainda que o enunciado seja produzido efetivamente (p. 21).
A morfologia do verbo apresenta, em resumo, a seguinte ordem:
RADICAL – ASPECTO – NÚMERO/PESSOA OBJETO – PRAGMÁTICA 2 – EVIDENCIAL
2 – HABITUAL – TEMPO – NÚMERO/PESSOA SUJEITO – MODO – DISCURSO
INTERIOR – PRAGMÁTICA – DISCURSO
Observando os tópicos iniciais desta parte do livro, e sua sequência (abaixo), percebe-se
o “plano da obra”, que se ocupa da morfologia do verbo a partir dos elementos mais ‘externos’
(à direita) e seguindo, da direita para a esquerda, em direção ao Radical. Isso explica porque a
morfologia derivacional do verbo vai tratada na parte seguinte (terceira) da obra.
Na sequência Moserrat apresenta a categoria Modo, vista de maneira ampla,
abarcando cinco oposições que correspondem “mais ou menos ao que é chamado de
Modo em muitas línguas” (por ela identificadas como: Declarativo, Interrogativo,
Imperativo, Afirmativo Enfático e Admirativo) e outras duas expressões de evidencialidade
(epistêmica). No caso das Declarativas, a autora destaca a polêmica sobre a adequação ou
não de incluir-se uma tal categoria no sistema modal, mas conclui que, no My)ky, ainda que
as Declarativas sejam formalmente não marcadas, “não há argumentos satisfatórios para
deixar de considerar o ‘declarativo’ como parte do sistema de Modo” (p.25).
Segue-se a apresentação das categorias (obrigatória) Número/Pessoa Sujeito, com
um quadro síntese (p. 34) que apresenta a 46 formas distintas em que a categoria é expressa.
Há três séries de sufixos (marcadores subjetivos) em função da categoria de verbo com
que ocorrem. Para cada Pessoa há três distinções de número (singular, dual e plural), e nas
2as e 3as pessoas distinguem-se formas para [+ Proximidade] e [- Proximidade), relacionadas
à expressão de Modalidade Evidencial.1
O tópico seguinte trata da categoria Tempo, na qual a autora identifica duas formas
para passado (remoto e não remoto), duas para futuro (imediato e não-imediato) e uma
para presente (“que inclui o passado-presente”). A esse tópico Monserrat dedica 14
páginas nas quais, para cada uma das grandes divisões temporais (Presente, Passado,
Futuro), seleciona um grande número de exemplos, combinando as diversas possibilidades
de marcadores subjetivos. A categoria Habitual é o assunto seguinte, inclusive por suas
interrelações com as distinções temporais. Ela não se agrupa, porém, com os marcadores
Aspectuais (ver adiante), mas co-ocorre com eles, ocupando posição distinta na cadeia
dos sufixos flexionais do verbo.
Infelizmente, uma falha do diagramador, não detectada na revisão, agrupa a primeira linha da
Série II (referente às formas singulares) com as formas da Série I, e a primeira linha da série III, com as
formas da série II. O leitor, com atenção, logo percebe, mas prejudica a clareza da leitura.
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Monserrat descreve, então, a categoria Modalidade Evidencial-2, na qual reconhece
um sistema de quatro oposições, comportando: (i) o Evidente, não marcado; (ii) o Inferencial,
marcado por {-maka}; (iii) o Especulativo, marcado por {-hé}; e (iv) a Negação, com quatro
realizações distintas: (a) negação da realidade atual; (b) negação de futuro; (c) negação da
habitualidade; (d) negação absoluta.
Segue-se a sistematização sobre a categoria Número/Pessoa Objeto, esclarecendo a
autora que pôde depreender e classificar a maioria dos marcadores objetivos apenas no
Irantxe, obtendo um quadro bem mais limitado em My)ky. A autora apresenta, então, à pg.
61, duas tabelas de sufixos objetivos (identificados por Paradigma I e Paradigma II),
alertando ao fato de que eles não se limitam a marcar o que normalmente se entende por
Objeto, uma vez que em My)ky “qualquer argumento oblíquo pode, em determinadas
circunstâncias, ser co-referencializado no verbo por um sufixo ‘objetivo’, seja este verbo
transitivo ou intransitivo (ativo ou não ativo)” (p. 60-61). A exemplificação (sempre
copiosa em todo o livro) inicia-se pelas conjugações objetivas do verbo transitivo x)tata
‘empurrar’, no Paradigma I, e dos verbos sale ‘costurar’ e mopa ‘roça’ (respectivamente,
um transitivo e outro estativo não-ativo), no Paradigma II. Prototipicamente, sufixos do
Paradigma I ocorrem em verbos de dois argumentos (transitivos diretos, indicando o
Objeto Direto) ou de três argumento (bitransitivos, indicando o Objeto Indireto). Também
prototipicamente, sufixos do Paradigma II referenciam, em verbos transitivos, um argumento
oblíquo (“hierarquicamente mais alto que O”), ocorrendo também em verbos intransitivos
ativos em que o argumento não-sujeito é oblíquo, e em verbos estativos, em que o argumento
não-sujeito é um complemento oblíquo.
Destaque-se que, como mostram os dados, a autora conclui que os sufixos objetivos
“fazem referência, numa oração com verbo transitivo ou intransitivo, ao argumento
nominal (não sujeito) mais alto na Hierarquia Nominal” (p. 72), sendo que nessa última
distinguem-se espíritos x humanos x animais.
No tópico subsequente, Monserrat trata do Reflexivo/Recíproco (de fato, um único
marcador –pa, reflexivo, para os dois paradigmas acima mencionados, e que pode tomar,
pragmaticamente, o sentido de recíproco (p. 68-69).
Finalmente, o estudo da flexão verbal é concluído com a categoria Aspecto. Por sua
riqueza e importância na gramática, ocupa 25 páginas do livro (p. 73-98). Nos verbos
ativos Monserrat reconhece alguns imperfectivos (progressivo, ininterrupto, permansivo)
e perfectivos (conclusivo, iterativo resultativo, este segundo anotado como “duvidoso”);
nos verbos estativos reconhece um gradual (em oposição a um não-gradual), um completo
e um culminativo. Cada um deles é tratado em um tópico específico, com um bom número
de exemplos, incluindo alguns não referidos na introdução da seção: um frustrativo, um
aleatório e um perdurativo (nos verbos ativos). Há, ademais daqueles, dois sufixos
(-ku e -tu) cuja semântica expressa o contraste perfeito-imperfeito, mas que ocorrem tanto
após raiz verbal ativa, quanto após raiz adjetiva somada a um dos sufixos estativos. Se
esses sufixos forem tomados como formativos dos radicais, os sufixos estativos (que os
precedem) já não poderiam ser vistos como parte do sistema flexional. Monserrat deixa,
então, em aberto a decisão sobre o caráter deles, deixando igualmente em suspenso a
hipótese de que “parte dos marcadores da categoria de Aspecto integra o sistema
derivacional e outra, o sistema flexional do verbo” (p. 74). A própria possibilidade de
situar a categoria Aspecto na morfologia derivacional é lembrada, em outro tópico, como
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uma alternativa de análise simplificadora (cf. p. 99). No caso dos perfeitos -ku e -tu a autora
observa que o mesmo sufixo pode funcionar como ‘perfeito não-resultativo’ ou como
‘perfeito resultativo’, a diferença residindo na estrutura dos radicais: nos resultativos os
perfeitos integram o sistema derivacional, de modo que a construção resultativa opera
com marcadores N/P subjetivos próprios; já nos não-resultativos, os perfeitos participam
do sistema flexional, de modo que as construções não-resultativas apresentam os
marcadores número/pessoais regulares usados com as demais categorias flexionais do
verbo (p. 91).
A terceira parte da obra, reunida sob o título Morfossintaxe 2, trata da morfologia
derivacional verbal, das relações de coordenação e subordinação no período composto,
da flexão nominal e do sintagma nominal, e outros tópicos relacionados.
Toda morfologia derivacional, como a flexional, é composta de sufixos, à exceção do
iterativo, “o único prefixo produtivo na língua” (p. 102). O iterativo possui distintas
realizações fonéticas (dependendo do elemento inicial do morfema que sirva de base para
a derivação), variando entre [s], [S], [Si] e a simples palatalização de /t/. Como sufixos, há
um dispersivo -xe ~ -se (que talvez pudesse se analisado como Aspecto, em lugar de
derivativo); um marcador -kykja que deriva adjetivos/particípios a partir de verbos
transitivos; os deverbais -ky, -jaky, -kyjaky que expressam a semântica de agente, possuidor
ou utilizador; o deverbal -kje’y que agrega o significado de instrumento, suporte, local,
modo, etc.; o negativo ou reversivo -pu, que deriva adjetivos de sentido contrário ou
reverso a partir de nomes e adjetivos; e, por fim, os intensificadores (que compõem
radicais não apenas de verbos ativos e estativos, mas também de advérbios e de adjetivos
em função adverbial).
Como ocorre em toda língua em que se apresenta uma classe de verbos não-ativos
(no caso, os estativos e não-estativos), membros dessa classe verbal podem comportarse como transitivos. É sobre transitividade e intransitividade que Monserrat trata na
sequência do estudo do verbo. A autora postula que, em My)ky, com verbos não-ativos há
dois tipos de construções: uma não-ativa intransitiva, com significado existencial, e
outra transitiva ‘possessiva’ (p.114). A contrapartida, também previsível, é que verbos
ativos também possam ter um uso intransitivo. É o que Monserrat exemplifica com verbos
como kare, “andar, caçar”, apa, ‘nascer, parir’ e taka, ‘saber, entender, aprender’ (esse
último, de funcionamento dito ‘ambíguo’).
Ao que parece, em razão da relação de verbos com a função predicativa, a autora
trata, na sequência, de um outro elemento da morfologia nominal e verbal, em parte, talvez,
relacionado a esse papel: uma classe fechada que denomina identificadores. Os
identificadores são uma classe fechada de sufixos que ocorre em “boa parte dos nomes,
adjetivos e advérbios”. Sugere Monserrat que sua origem possa ser um antigo classificador
(p. 116). O problema para sua interpretação sincrônica está em que eles podem ocorrer,
naquelas classes de palavras, tanto em posição predicativa como não-predicativa, além
do que, uma “outra porção bastante razoável” do léxico pertencente àquelas classes
não tem nenhum identificativo. Acrescente-se que um dos sufixos identificativos aparece
igualmente em construções verbais não-finitas, mas mesmo aí, “não é basicamente o
‘identificativo’ (...) que define o caráter de finitude ou não-finitude do verbo, e sim a
expressão das categorias de Número/Pessoa-sujeito” (p. 120). Disso resulta que Monserrat
se ocupe de uma extensiva descrição de tais identificativos, considerando “mais coerente
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dizer que em qualquer situação o que se tem são sufixos ‘identificativos’, que ocorrem
com nomes, adjetivos, advérbios e verbos, identificando seres, qualidades, estados,
eventos, processos” (p. 116). Na última parte do livro, como Anexo, a autora relaciona um
vocabulário (perto de 600 termos) organizado com base na sílaba final em My)ky, “que, em
parte dos casos, representa o sufixo ‘identificativo’ da palavra” (p. 225).
O tópico 11.Predicados, da parte III, detalha as formas finitas e não-finitas das
várias sub-classes de verbos. Para isso, inicia caracterizando os distintos predicados.
Predicados verbais ativos são expressos por um Verbo Ativo, isto é, um verbo “que tem
como radical um lexema verbal transitivo ou intransitivo, e não apresenta sufixos
aspectuais estativos” (p. 120). Predicados verbais estativos são expressos por um Verbo
Estativo, isto é, um verbo “que tem como radical um adjetivo primário ou construção
adjetiva derivada, ou apresenta um dos sufixos aspectuais ‘estativos’ -ro, -jo, -so, -to”
(idem). Predicados verbais não-estativos são expressos por um Verbo não-Estativo “que
tem como radical um nome ou construção nominal, um advérbio ou construção adverbial”
(idem). Um verbo com identificativo é necessariamente não-finito. “O mais interessante e
‘exótico’ na língua my)ky” – diz Monserrat – “é o fato de que qualquer verbo pode ser
‘fechado’ por um identificativo”. Nessas condições, o verbo não apresenta o marcador
subjetivo, embora possa portar um marcador pragmático. É preciso atenção, porém, ao
fato de que, na 3ª pessoa, “qualquer verbo (ativo ou estativo) sempre pode omitir o
marcador subjetivo”, de forma que, nessas condições, não é simples definir como finitas
ou como não-finitas as formas verbais que têm com base adjetivos ou advérbios sem
sufixo identificativo. Nessa situação, conclui Monserrat, “poderíamos dizer com a mesma
propriedade que temos predicados estativos com verbos na forma finita ou que os verbos
estão na forma não-finita” (p. 123). De todo modo, nesta obra a autora toma, em princípio,
como formas não-finitas aquelas formas verbais sem identificativo, a menos que comportem
expressamente um sufixo estativo ou outros marcadores verbais (nesses casos, as toma
como formas finitas com omissão da marca subjetiva de 3ª pessoa).
Como o foco, nesse ponto da obra, são os Predicados, e os tópicos logo adiante se
ocuparão das orações e de sua organização, entre aquele e estes a autora inclui a questão
dos Sintagmas Nominais Não-Sujeito. O destaque é para a marcação oblíqua, com diferentes
funções, para muitos deles: “qualquer oração que contenha um ou mais sintagmas
nominais além do SN Sujeito pode ter um deles marcado pelo sufixo ‘oblíquo’ -ki (nã)”
(p.126). Exemplifica-se com suas ocorrências em orações transitivas, em intransitivas e em
orações estativas. Passa-se daí à oração em si.
As possibilidades de frases em My)ky, com respeito ao número de verbos e suas
relações, são três: (a) as constituídas de uma oração com uma só forma verbal (radical
simples ou composto); (b) as constituídas de uma única oração, mas contendo duas ou
mais formas verbais, todas com o mesmo Sujeito, expresso apenas no último verbo; (c) as
constituídas de mais de uma oração, com mesmo Sujeito ou Sujeitos distintos, e com
expressão de N/P-Sujeito em todos os verbos (p. 129).
Segundo Monserrat, em My)ky a maior parte das sentenças (ou períodos) compostas
não tem nenhum marcador de coordenação ou subordinação, sendo o mais das vezes
construídas por orações justapostas (p. 131). No dialeto Irantxe, por sua vez, “uma sentença
com duas ou mais orações, com sujeitos co-referentes ou não, apresenta com bastante
regularidade um marcador verbal de ligação entre as orações que a integram” (p. 140).
D’ ANGELIS: A LÍNGUA DO POVO MY›KY
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Embora o mesmo marcador (-ri / -li) possa ocorrer também na fala dos My)ky, é muito
menos comum seu emprego por eles (idem). Os tópicos 18 (Coordenação) e 19
(Subordinação) são bastante ricos em exemplificação, como já se destacou para toda a
obra.
O tópico seguinte (20) trata da ordem dos constituintes na oração. A conclusão,
respaldada na coleção de exemplos selecionados (mas ancorada também no conjunto de
dados ao longo do livro, incluindo o conjunto de textos da Parte IV) é que “todas as
ordens são possíveis” (p. 153).
Quanto à classe de Nomes, a autora a caracteriza morfologicamente “pela
possibilidade de ocorrência privativa com certos marcadores gramaticais: os extensores
-nù ‘definido’ e -nã ‘indefinido, genérico’; os locativos -kje/-tje ‘pontual’ e -pa ‘difuso’;
o ‘diminutivo’ -si; e ainda os seguintes: -kanã ‘delimitativo’; -kapy ‘instrumento, meio’;
-kahi ‘semelhante’”(p. 157). Todos esses “marcadores” são descritos (e exemplificados)
como membros de um sistema flexional nominal. Ainda a respeito da classe dos Nomes, a
autora discute a composição nominal (p. 166) e, finalmente, trata do Sintagma Nominal e
sua estrutura (p. 168).
Em tópicos específicos Monserrat trata das classes dos Adjetivos, dos Advérbios e
dos Dêiticos (respectivamente, tópicos 35, 37 e 39). No caso dos Adjetivos, distinguem-se
morfologicamente das demais classes lexicais “pela ocorrência privativa com sufixos de
‘grau comparativo’ – e sintaticamente porque – quando em função não predicativa,
ocorrem exclusivamente como ‘atributos’ ou ‘epítetos’ de nomes (formando com eles um
nome composto)” (p. 169). Já os Advérbios, do ponto de vista morfológico “pode ser
definido negativamente como uma classe de palavras invariáveis que não admitem
afixos nominais e verbais (...) Do ponto de vista sintático, por outro lado, há uma série
de lexemas (tradicionalmente tratados como advérbios na maioria das línguas) que
funcionam exclusivamente como modificadores de verbos, de adjetivos e de outros
‘‘advérbios’’ (p. 172).
A parte IV do livro é dedicada a textos. Ao todo são 26 textos produzidos em
circunstâncias e épocas diferentes (sendo que alguns são transcrições de narrativas
gravadas). Todos eles são transcritos, primeiramente, na ortografia vigente do My)ky; uma
segunda linha traz a transcrição com segmentação morfológica; segue-se a linha das
glosas morfema a morfema e, finalmente, a linha da tradução ao português. Em alguns
casos, a primeira linha traz a transcrição da forma escrita pelo autor indígena ipsis literis.
Um dos ‘textos’, na verdade, reproduz um conjunto de cinco pequenos cantos rituais. Na
maioria são narrativas breves, mas a de número 21 estende-se por sete páginas e meia, e
leva o título de “História da visita ao céu”.
Ao final do livro, como já mencionado, um Anexo traz uma lista vocabular organizada
“em função de sua sílaba final, que, em parte dos casos, representa o sufixo ‘identificativo’
da palavra”. Segundo a autora, a lista não é exaustiva, tendo apenas privilegiado 17
sílabas finais “que são claramente instâncias de ‘identificativos’ e algumas outras que
talvez possam vir a ser consideradas como tal” (p. 225).
Em razão do processo de harmonização vocálica (tratado na parte I da obra), alguns
dos identificativos comparecem com suas formas variantes. É o caso, por exemplo, de ’u – que
tem realizações [/u], [/a], [/é] e [/i] – e de hu – com realizações [hu], [hé], [hi] e [ha]. O que se
mostrou mais ‘produtivo’, dos identificativos elencados, foi -i/-wy (-li), com cerca de 115
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termos (a autora tratara brevemente dele às pgs 117-118). Não há, no entanto, justificativa
ou uma clara demonstração da identidade das formas -i, -wy e -li (e, ainda, -xi).
Com menores ou maiores reparos que se possam fazer, a obra de Ruth Monserrat
acerca da língua My)ky é das poucas descrições realmente abrangentes de uma língua
indígena produzida nos anos recentes em nosso país. Sua publicação coloca a língua
My)ky-Irantxe ao alcance dos pesquisadores que se queiram debruçar sobre aspectos
particulares de línguas que organizam um sistema verbal à base da distinção entre verbos
ativos e não-ativos (e estes, em estativos e não-estativos), ou sobre línguas aglutinantes
em processo de complexificação morfológica (gramaticalização). Do mesmo modo, traz
elementos para os linguistas que estudam a curiosa concentração de línguas classificadas
como ‘isoladas’, na região que abrange o Noroeste do Mato Grosso e parte da Rondônia.
Destaco, por fim, que a autora certamente teria realizado essa obra antes, e talvez
mais bem acabada, se ela própria se desse o tempo ou a possibilidade de dedicar-se tão
somente à investigação acadêmica de gabinete, com os materiais colhidos em campo. Mas
Ruth Monserrat é mais que linguista; ela é, de fato, também uma indigenista, uma intelectual
comprometida com o destino e com os interesses de um grande número de sociedades
indígenas no Brasil, às quais tem dedicado parte preciosa de seu tempo e de seu ‘lazer’.
Longe, no entanto, de empobrecer ou prejudicar sua pesquisa, a verdade é que a faz
qualitativamente superior às descrições baseadas nos preenchimentos de questionários e
nas análises “de ar condicionado”. “A língua do povo My)ky” encontrou, nela, a melhor
divulgadora possível.
____________
REFERÊNCIAS
DINIZ, Kollontai Cossich (2007). Notas sobre tipografias para línguas indígenas do Brasil. InfoDesign
Revista Brasileira de Design da Informação 4(1): 40-53.
RICARDO, Beto; RICARDO, Fany (eds.) (2006). Povos Indígenas no Brasil: 2001-2005. São Paulo:
Instituto Socioambiental.
RODRIGUES, Aryon Dall’Igna (1986). Línguas brasileiras. Para o conhecimento das línguas indígenas.
São Paulo: Edições Loyola.
Wilmar da Rocha D’Angelis
(Departamento de Linguística. IEL-UNICAMP)
Recebido: 6/9/2010
Versão revista: 12/9/2010
Aceito: 20/9/2010