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Brasil de Muitas Linguas

2018, Fernando Santoro, Luisa Buarque (orgs). Dicionário dos Intraduzíveis: Um vocabulário das filosofias Vol. 1. Belo Horizonte: Autêntica Editora

Brasil revela uma ainda muito pouco conhecida diversidade de línguas e falas, sobretudo se adentrarmos o universo das línguas e dizeres ameríndios, resistentes e sobreviventes. É uma diversidade silenciada, pelo Estado, missões, meios de comunicação, nas escolas, diante da soberania (nacional) de uma única língua. Diante da agonia e da morte, contudo, das brechas e fronteiras, emergem novas línguas e variedades, orais e escritas. Eis uma primeira questão a ser enfrentada: o que é língua? Não há uma resposta única e inequívoca. A maior parte deste texto trata da tradução de línguas indígenas como processo, desafio, impasse, (im)possibilidade. Propomos alguns exercícios e saídas, atravessando palavras, gramáticas e artes verbais de um pequeno conjunto de línguas: a expressão do que chamaríamos de tempo, e que tempo não é, lá onde não é esperado, em Kuikuro; o baile de traduções de palavras cruciais nas cosmologias ameríndias; a tradução de poéticas verbo-musicais, que operam transformações e conexões entre mundos humanos, não-humanos e supra-humanos (Kuikuro, Marubo, Parakanã, Tikmũ'ũn). A chegada de intelectuais indígenas à academia nos oferece, enfim, reflexões e provocações em torno da 'nossa' tradução de suas línguas. Em suma, traduzir línguas indígenas é um exercício em abismo de trocas de perspectivas e exige assumir o equívoco sempre latente.

BRASIL DE MUITAS LÍNGUAS Dicionário dos Intraduzíveis - 114 BRASIL DE MUITAS LÍNGUAS LÍNGUAS INDÍGENAS NO BRASIL >LÍNGUA, LÍNGUAS E TRADIÇÕES, PORTUGUÊS, ASPECTO O Brasil revela uma ainda muito pouco conhecida diversidade de línguas e falas, sobretudo se adentrarmos o universo das línguas e dizeres ameríndios, resistentes e sobreviventes. É uma diversidade silenciada, pelo Estado, missões, meios de comunicação, nas escolas, diante da soberania (nacional) de uma única língua. Diante da agonia e da morte, contudo, das brechas e fronteiras, emergem novas línguas e variedades, orais e escritas. Eis uma primeira questão a ser enfrentada: o que é língua? Não há uma resposta única e inequívoca. A maior parte deste texto trata da tradução de línguas indígenas como processo, desafio, impasse, (im)possibilidade. Propomos alguns exercícios e saídas, atravessando palavras, gramáticas e artes verbais de um pequeno conjunto de línguas: a expressão do que chamaríamos de tempo, e que tempo não é, lá onde não é esperado, em Kuikuro; o baile de traduções de palavras cruciais nas cosmologias ameríndias; a tradução de poéticas verbo-musicais, que operam transformações e conexões entre mundos humanos, não-humanos e supra-humanos (Kuikuro, Marubo, Parakanã, Tikmũ’ũn). A chegada de intelectuais indígenas à academia nos oferece, enfim, reflexões e provocações em torno da ‘nossa’ tradução de suas línguas. Em suma, traduzir línguas indígenas é um exercício em abismo de trocas de perspectivas e exige assumir o equívoco sempre latente. I. BRASIL MULTILÍNGUE O Brasil é, ainda, multilíngue. Além das línguas trazidas por imigrantes, das variedades regionais do português brasileiro, dos falares afrodescendentes, estima-se que no Brasil ainda sobrevivem, em graus variados de vitalidade, em torno de 160 línguas ameríndias, distribuídas em 40 famílias, 2 macro-famílias (troncos) e uma dezena de línguas isoladas. Esta diversidade linguística continua sendo silenciada, com estratégias variadas, pelo Estado, por missões, meios de comunicação e, nas escolas, em todos os níveis do chamado ‘sistema educacional’. A soberania de uma única língua, a dos conquistadores que conformaram a ‘nação’, é mantida a qualquer custo. As línguas sempre morrem ou se transformam, no passado e hoje, e novas línguas surgem do encontro entre povos, mas é inegável que uma perda vertiginosa da diversidade linguística, nada natural, caracteriza a era da conquista europeia dos novos e velhos mundos, sobretudo nos últimos 500 anos e, ainda mais, nos últimos 200 anos. Tendo como base o último Censo brasileiro, realizado em 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 37,4% dos 896.917 que se declararam “indígenas” falam sua língua nativa, a dos seus pais ou avós, e somente 17,5% desconhecem o português. O censo também revelou que 42,3% dos “indígenas” já não vivem em áreas indígenas e que 36% se estabeleceram em cidades; esta porcentagem continua em rápido crescimento. Dos que não estão mais em terras indígenas, apenas 12,7% falavam a(s) língua(s) dos seus pais ou avós. O português era falado por 605,2 mil indivíduos (76,9% dos “indígenas”) e por praticamente todos os que vivem fora de suas terras (96,5%). A proporção entre 5 e 14 anos que falava uma língua indígena era de 45,9%, 59,1% dentro de terras indígenas e 16,2% fora delas. Nas terras indígenas, boa parte dos falantes de língua indígena não falavam português, sendo o maior percentual o dos indivíduos com mais de 50 anos (97,3%), enquanto que, fora das terras, nessa mesma faixa etária, o Censo revelou um percentual bem menor (40,7% de falantes somente de língua indígena). O quadro é claro: a transmissão esperada entre gerações é interrompida. Segundo estimativas, já desatualizadas, o panorama não é animador: a média é de 250 falantes por língua; muitas línguas são usadas apenas em domínios restritos ou podem ser consideradas ‘inativas’; outras definham para o status de ‘línguas adormecidas’, um eufemismo, já que se supõe que elas possam ser ‘acordadas’. O último falante de Apiaká morreu no começo de 2012, outras línguas contam com menos de 10 falantes, como o Yawalapiti, entre outras. O Guató é exemplo do último capítulo da sobrevivência de uma língua nativa: dois semi-falantes sem comunicação entre si. Há não poucas línguas que manifestam sinais de declínio, com o abandono de artes verbais, de partes do léxico culturalmente cruciais, com o uso do português como língua-franca, o crescente Dicionário dos Intraduzíveis - 115 BRASIL DE MUITAS LÍNGUAS bilinguismo (língua(s) indígena(s)/português). As línguas 'ameaçadas' são a maioria das que existem, muito mais do que as oficialmente declaradas como tais, se adotarmos o critério internacional que define como 'línguas em perigo' as que têm menos de mil falantes. Sabemos ainda pouco sobre essas línguas, apesar dos avanços importantes de estudos, pesquisas e da documentação, nos últimos vinte anos. II. “LINGUA” : UM PRIMEIRO INTRADUZÍVEL Quantas são? Quantas línguas indígenas ainda existem no Brasil? A resposta a esta pergunta deveria ser simples, mas, de fato, não há nenhum levantamento atualizado e os números são aproximativos; muito menos sabemos sobre a diversidade dialetal interna a cada língua. Uma língua sem diversidade interna é uma ficção: qualquer língua varia no tempo e no espaço (geográfico e social) e de uma situação comunicativa para outra. Não temos com relação às línguas indígenas a mesma atenção destinada à variedade interna do português; elas são quase sempre apresentadas como ‘objetos’ homogêneos. E ainda menos sabemos sobre sistemas e contextos de bilinguismo e de multilinguismo, regra e não exceção na história e na paisagem ameríndias antes da conquista. Nessa dança dos números de objetos (línguas) supostamente contáveis, faz pensar o número de línguas indígenas que consta do Censo de 2010: 274. Este número se choca com as estimativas dos linguistas, mesmo as mais generosas: por volta de 160 línguas. O que caracteriza uma língua? Em primeiro lugar, o número ‘exagerado’ de 274 línguas indígenas aponta para um suposto equívoco que deve ser interpretado, já que expressa traduções, apropriações, representações – com força e valor políticos – por parte dos alvos da operação censitária, os ‘indígenas’. Diante das opções ‘raciais’ oferecidas pelo censo, os que se autodeclararam ‘indígenas’ acessavam perguntas a respeito de seu ‘idioma’ ou ‘língua’, uma inovação introduzida com o propósito de avaliar quantitativamente e qualitativamente a existência e vitalidade das línguas indígenas no Brasil. As discussões provocadas pelos dados do censo têm revelado as dificuldades de compreender o que é ‘língua’, chegar a uma definição que convença falantes, supostos não-falantes que se definem decididamente falantes de línguas consideradas ‘extintas’ ou ‘adormecidas’, linguistas e nãolinguistas, agentes do Estado responsáveis por ‘patrimonializar línguas’. Chegamos ao segundo ponto. Cabe uma pergunta: afinal, o que é uma língua? Trata-se de um construto ideológico, que resultou, no Brasil, na perpetuação torturante da distinção entre, de um lado, língua nacional (uma nação, uma só língua) e línguas de civilização com suas literaturas (as que têm assento nos departamentos universitários) e, do outro lado, aquelas que até hoje custam a ser chamadas de ‘línguas’, talvez ‘idiomas’, ou dialetos e ‘gírias’, sendo estes dois últimos termos claramente estigmatizantes. Muitas vezes, os que se autodeclararam para o censo como falantes de uma língua considerada ‘extinta’, pertencem a grupos que conseguiram ressurgir da invisibilidade e do silêncio. Em sua luta para o reconhecimento de sua existência e resistência, bem como de seus direitos territoriais, declarar-se falantes de uma ‘língua’ é um corolário lógico e uma urgência política. Algumas dessas comunidades não ficam apenas na retórica, mas estão, no momento, empenhados em se apropriar de uma língua, seja junto a vizinhos falantes de variedade ou língua aparentada (geneticamente e/ou historicamente), seja através de uma recriação, como está acontecendo, há quase duas décadas, com o Patxohã, a “língua dos guerreiros” Pataxó, no sul do Estado da Bahia. É o que está acontecendo no resgate da língua dos Guató, o povo sobrevivente do Pantanal. Novas vidas e novas línguas voltam a povoar uma paisagem de perda e subtração, em iniciativas espontâneas de revitalização, sacudindo a omissão e à revelia das tímidas e fragmentadas políticas linguísticas do Estado. Em suma, é a noção de ‘língua’ como construto político que interessa daqui em diante: ‘língua’ declarada para existir, resistir, reagir. BRASIL DE MUITAS LÍNGUAS Dicionário dos Intraduzíveis - 116 Sobre experiências de revitalização de línguas nativas no Brasil e alhures ver a página eletrônica http://nupeli-gela.weebly.com/ e o número especial da Revista LinguiStica, disponível em https://revistas.ufrj.br/index.php/rl/issue/view/463. Línguas morrem, mas novas línguas surgem dos interstícios, nas fronteiras, num constante processo de criatividade expressiva, em novas variedades tanto orais como escritas (por exemplo, o 'internetês misturado', português/língua indígena, usado nas comunicações eletrônicas em redes sociais). Se línguas morrem, enterradas em funerais apressados (que lástima! Não foi possível salvá-las...), outras sobrevivem em variedades inesperadas. Jovens indígenas pulam capítulos inteiros da história da escrita alfabética ocidental, passando de uma forma de oralidade (a 'tradicional') para outra (vídeos, televisão, filmes, cantos, desenhos), inventando incessantemente novas poéticas, novos ‘textos’, novas ironias, novas metáforas, novos xingamentos, em suas línguas 'misturadas'...estamos em pleno 'glocal', a explosão do local no coração do global. Os índios sempre foram bilíngues e multilíngues, mesmo antes dos brancos chegarem. III. LINGUAS INDIGENAS: DESAFIOS TRADUTIVOS A beleza dessas línguas Faz parte do métier do etnólogo se confrontar com palavras e expressões de línguas outras e tentar compreender seus significados e sentidos como janelas que permitiriam acesso a formas de pensamento, categorizações, sentimentos, representações de práticas e relações, perspectivas. Faz parte do métier do linguista dedicar-se à contemplação e interpretação das formas de uma língua. Com ‘formas’ entende-se a realização sonora (fonético-fonológica) de categorias lexicais e gramaticais; com “contemplação” entende-se, aqui, a intenção de transmitir o estranho e inelutável fascínio que é possível experimentar diante de puras formas que decantam em frases e enunciados; com “interpretação” entende-se, aqui, a tentativa de apreender a sua semântica, o seu significado, para, em última instância, poder traduzir. Todos, afinal, traduzem, o tempo todo, tudo. No caso de línguas ameríndias - não familiares e ainda parcialmente compreendidas – nós nos defrontamos com desafios específicos e, às vezes, extremos. Alguns exemplos ilustram, a seguir, o que estamos querendo dizer. Tempo no nome? Cerca de 600 Kuikuro habitam seis aldeias ao sudeste da Terra Indígena do Xingu, no Estado de Mato Grosso, e falam uma das variedades dialetais da Língua Karib do Alto Xingu (LKAX), um dos ramos meridionais da família linguística karib (S. Meira & B. Franchetto, “The Southern Cariban Languages and the Cariban Family”, 2005). Esta população faz parte do sub-sistema karib, por sua vez incluído no sistema regional multilíngue e multiétnico conhecido como Alto Xingu, onde outros grupos indígenas falam línguas pertencentes aos principais troncos e família das terras baixas da América do Sul: Tupi (Kamayura e Aweti), Arawak (Wauja, Mehinaku, Yawalapiti), além de uma língua isolada (Trumai). Como qualquer ‘língua’, a LKAX é construto do linguista, já que o que existe de fato são variedades dialetais, com dois dialetos principais, cada um deles subdividido em dois sub-dialetos: Kuikuro e Matipu-Uagihütü, de um lado, e, do outro, Kalapalo e Nahukwa. Enfrentamos, de início, as armadilhas das denominações, se considerarmos que, hoje, Matipu não fala Matipu, que Nahukwa parece falar Kalapalo (ou vice-versa), que Matipu, que é e não é Uagihütü, parece falar Kuikuro (ou vice-versa). Esse quebra-cabeça de micro-diversidade é resultado de uma complexa história de fusões e fissões entre grupos locais e os etnônimos, hoje usados e congelados nos sobrenomes individuais em documentos oficiais (carteira de identidade, certificados de nascimento, entre outros), são heterônimos de origens variadas. De fato, os verdadeiros auto-etnônimos são topônimos modificados pelo termo ótomo (donos, mestres) e são efêmeros na dimensão do tempo “histórico”. Assim, os Kuikuro se conhecem e se apresentam como Lahatua ótomo, ‘donos de Lahatuá’, aldeia abandonada nos anos 50 do século passado por ocasião da última devastadora epidemia de sarampo que dizimou a sua população. Eles podem também se apresentar como Ipatse ótomo, ‘donos de Ipatse (pequena lagoa)’, sua localização atual. O problema apresentado pelas BRASIL DE MUITAS LÍNGUAS Dicionário dos Intraduzíveis - 117 armadilhas das denominações é geral e onipresente no contexto ameríndio, e alhures, fruto da digestão colonizadora de nomes, referências e sentidos. Em Kuikuro, existe um pequeno sufixo, uma única sílaba, que só ocorre com nomes: -pe. Daqui em diante este morfema da flexão nominal será glosado como NTM, Marcador de Tempo Nominal (Para o desenvolvimento da análise linguística do Tempo Nominal em Kuikuro, ver B. Franchetto & M. Santos, “Tempo Nominal em Kuikuro (Karib Alto-Xinguano)”, 2009 e B. Franchetto & G. Thomas, “The nominal temporal marker -pe in Kuikuro”, 2016). 1 Da transcrição à tradução Os dados ou exemplos abaixo são transcritos usando a ortografia (alfabética) desenvolvida pelos professores kuikuro e pela linguista. As correspondências entre ‘letras’ ou grupos de letras (dígrafos e trígrafo) e símbolos do Alfabeto Fonético Internacional (IPA), quando diferentes, são as seguintes: ü (ɨ), j (ʝ), g (flap uvular), ng (ŋ), nh (ɲ), nkg (ŋɡ); N representa uma nasal flutuante subespecificada. Os exemplos em Kuikuro a seguir são apresentados com notação em quatro linhas: transcrição ortográfica, segmentação morfológica, tradução interlinear (glosas), tradução (livre). As abreviações para as glosas são: 1, 1ª pessoa; 2, 2ª ; 3, 3ª pessoa; 12, 1ª pessoa plural inclusiva; 13, 1ª pessoa plural exclusiva; ANMLZ, nominalizador de agente; BEN, benefactivo; COMPL, completivo; COP, cópula; DDIST, dêitico de distância; DTR, detransitivizador; DUR, durativo; ENF, enfático; ERG, ergativo; FIN, finalidade; FUT, futuro; FIT.IM futuro iminente; HA, partícula ha; IMPPL, imperativo plural; LOG, logofórico; MO, marcador de objeto; NANMLZ, nominalizador de não-agente; NTM, marcador de tempo nominal; PL, plural; PNCT, pontual; POSS, posse; PRF, perfectivo; PTP, particípio. A narrativa mítica contada pela velha Ájahi, em 2004, na aldeia Ipatse, é uma versão feminina da mais conhecida versão masculina intitulada: “A viagem de Agahütanga para a aldeia dos mortos”. Ájahi deu um título: “A mulher que foi para a aldeia dos mortos”. Uma mulher é levada pela sogra morta e pela saudade (sentimento perigoso e virtualmente fatal) do esposo morto pelo caminho dos mortos (anha) até a aldeia destes, caminho e aldeia celestes. Lá, para ver o mundo dos vivos embaixo, é preciso ficar de cabeça para baixo; lá é dia quando aqui é noite, e vice-versa; o que são peixes para os vivos, são baratas para os mortos, e vice-versa, e assim em diante. Os mortos têm outras palavras, como túhagu no lugar de angagi, para se referir a uma peneira, ou igiholoto no lugar de alato, para se referir ao tacho que serve para assar beiju, ou ajunu no lugar de umüngi, para se referir ao pigmento vermelho tirado das sementes de urucum. ♦ Ver quadro 2. 2 A sogra morta comenta dirigindo-se à (ex)nora viva: tsatüeha tsatüeha kakisükope uhitsa leha kupehe-ni i-ta-tüe-ha i-ta-tüe-ha k-aki-sü-ko-pe 3-ouvir-IMPPL-HA 12-palavra-POSS-NTM uhi-tsa procurar-DUR leha COMPL kupehe-ni 12.ERG-PL “ouçam! ouçam! Nós estamos procurando as nossas ex-palavras” “ouçam! ouçam! nós estamos tentando falar (pronunciar) aquelas que foram as nossas palavras” egea akatsange leha kakisükope leha ege-a akatsange leha DDIST mesmo COMPL k-aki-sü-ko-pe 12-palavra-POSS-PL-NTM é assim que são as nossas palavras kakisükope elükugigatühügü leha k-aki-sü-ko-pe elükugi-ga-tühügü 12-palavra-REL-PL-PE virar-DUR-PRF as nossas palavras são viradas leha COMPL leha COMPL BRASIL DE MUITAS LÍNGUAS uhijü leha kupehe ngiko itanügü kupehe uhi-jü leha kupehe ngiko procurar-PNCT 12.ERG coisa Dicionário dos Intraduzíveis - 118 ita-nügü dar.nome-PNCT kupehe 12.ERG procuramos e chamamos as coisas tentamos nomear as coisas Realcei as palavras kakisükope e kupehe/kupeheni. Num primeiro momento, e durante muito tempo, glosei e traduzi o sufixo -pe (que vemos no nome kakisükope, ‘nossas palavras-PE) como ‘ex-’, interpretando-o como ‘passado nominal’, o que resulta em construções agramaticais (não aceitáveis) para o falante de português, como, no exemplo acima, ‘ex-palavra’. Para entender o que significaria “procurar nossas ex-palavras”, é preciso também examinar a presença do marcador de primeira pessoa inclusiva (nós inclusivo), realizado no prefixo (ku)k- e pluralizado pelo sufixo -ko no nome e realizado no pronome ergativo plural kupeheni. A distinção entre dois ‘nós’, uma primeira pessoa inclusiva e uma primeira pessoa plural exclusiva, é largamente difusa nas línguas ameríndias e em muitas outras ao redor do mundo. Quem fala, ao usar o ‘nós’ inclusivo, inclui nele além de si mesmo (ego), o seu interlocutor (tu), enquanto este último é excluído quando se usa o ‘nós’ exclusivo (ego e outro). A primeira pessoa inclusiva pode ser pluralizada para denotar um coletivo, ‘todos nós’, inclusivo. O contraste entre esses ‘nós’ é de grande rendimento na fala coloquial e de diversos gêneros, permitindo um constante e sutil jogo de deslizes de perspectivas ao longo de uma conversa, por exemplo. Voltando ao trecho da narrativa de Ájahi, o entendimento tropeça produzindo um engodo tradutivo diante do ‘nós’ inclusivo e, mais ainda, de ‘nossas (inclusivo) ex-palavras’. A morta-alma fala com uma viva dizendo que as palavras dos mortos são outras, sinônimos no léxico da língua dos mortos. O que são, aqui, as “nossas (inclusivo) ex-palavras”? São as palavras dos mortos sinônimos-sombra das palavras dos vivos já que para eles não mais possíveis no presente de sua nãoexistência? Os mortos-alma tentam associar coisas a palavras com sentido pleno só para os vivos; suas palavras só podem ser palavras-pe, já que eles são seres pe, que foram e não são mais. A eles não pode ser atribuída propriedade de existência, mas somente de precedência. Permanece uma ambiguidade: será que a sogra morta adota a perspectiva da viva, e, então, as palavras são -pe para a viva? Será que esta pode ser uma implicatura do passado nominal -pe? O nosso entendimento apenas arranha a beira de um abismo de inefabilidade e leva a traduções frustrantes. Traduzir, contudo, é preciso, mesmo se palavras são -pe para a viva? Será que esta pode ser uma implicatura do passado nominal -pe? penosamente. A segunda linha da tradução ‘livre’ é um pouco mais agradável, se assim podemos dizer, quando comparada à primeira linha, que seria uma tradução mais literal, ou seja, mais ‘colada’ à tradução interlinear, onde a cada morfema, seja ele lexical ou gramatical, é atribuída uma glosa, uma abreviatura em sigla de um significado. A tradução livre literal tenta recompor as glosas em uma frase-alvo que deveria ser equivalente à frase-fonte; a tradução livre não-literal deveria polir, digamos, a primeira, tornando-a menos rude. A nossa tradução literal já é uma primeira traição, um duplo equívoco, dando uma dupla falsa impressão: a de que estamos sendo ‘fieis’, e esta fidelidade produz um objeto feio que reflete a sua feiura sobre o enunciado-fonte. A nossa tradução ‘mais livre’ parece querer redimir a feiura original que se espelha na feiura da literalidade. Mais uma tentativa, então: outras camadas de tradução, recriações do enunciado-fonte, a serem transmitidas ao leitor (a sonoridade já se perdeu, aniquilada pelo ‘texto’ escrito). A re-criação deveria expressar o efeito da diferença entre as palavras/língua dos vivos e as palavras/língua dos mortos, que estão em contraste ou inversão, mas em perfeita equivalência, pura tradução, numa distância espacial e temporal, espaço-tempo dos mortos e espaço-tempo dos vivos. A re-criação deveria expressar o efeito da perspectiva dos vivos ou da perspectiva dos mortos sobre a procura ou tentativa penosa, por parte dos mortos, de encontrar as palavras dos vivos por trás das palavras outras que inevitavelmente saem de suas bocas-mortas? Em outras palavras, a tradução deveria recriar os efeitos emanados da coexistência arrepiante entre um ‘passado nominal’ – o morfema -pe - e o pronome inclusivo que aparentemente abarca mortos e vivos. O Tempo Nominal em Kuikuro, então, localiza o tempo no qual a propriedade denotada pelo nominal é atribuída ao referente e localiza o momento do nominal antes do tempo de referência, com uma diversidade interessante de interpretações, como nos exemplos abaixo. Não se trata, contudo, de ‘Tempo’, propriamente, mas de um aspecto que podemos chamar de ‘terminativo’ ou de ‘cessação’, não tendo qualquer implicação de ‘não existência’, no presente da enunciação, do referente objeto. O Tempo ‘passado’ é apenas uma implicação inferida. ♦ Ver quadro 3. BRASIL DE MUITAS LÍNGUAS Dicionário dos Intraduzíveis - 119 3 -PE O comportamento do morfema -pe parece confirmar a sua primeira interpretação como ‘passado no nome’? Vejamos alguns exemplos. Com nomes não-animados: üne-pe (casa-NTM): casa velha, ninguém mora mais nela ahukugu-pe (panela-NTM): a panela está quebrada, não serve mais taho-pe (faca-NTM): a faca está quebrada, cega, não serve mais, sumiu, perdi u-tuhinhaho-pe (1-roça-NTM): não fiz roça no lugar que tinha escolhido itsuni-pe (mato-NTM): o mato está queimado ou está desmatado ito-pe (fogo-NTM): o fogo apagou tunga-pe (água-NTM): a água está suja, imprópria para beber e usar em geral hankgunginga-pe (rio.Culuene-NTM): o rio Culuene está seco ou fechado t-ahehi-si-nhü-pe (PTP-escrever-PTP-NANMLZ-NTM): isto é um/o livro (lit. o que foi escrito) Com nomes animados não-humanos: katsogo-pe (cachorro-PE): o cachorro morreu, está morto ou sumiu por um tempo kanga-pe (peixe-PE): o peixe morreu naturalmente ou estragou depois de pescado ou você está vendo espinhas de peixe. ekege-pe (onça-NTM0: posso falar assim se encontro ossos de onça no caminho. Com nomes humanos: haindene-pe(velho-NTM): o velho morreu ou viajou. itoto-pe (homem-NTM): o homem morreu ou virou mulher, outro ser. anetü-pe(chefe-NTM): o chefe morreu ou a pessoa não é mais chefe. Com nomes possuídos, -pe localiza a relação entre possuidor e possuído num tempo que precede o tempo de referência, inferindo a cessação da relação: tahitse utologupe tahitse u-tolo-gu-pe arara 1-bicho.estimação-POSS-NTM arara não é mais meu bicho de estimação, morreu ou dei para outra pessoa isuüpe is-uü-pe 3-pai-NTM unhope u-nho-pe 1-esposo-NTM ‘meu falecido pai’ ‘meu falecido esposo’ ou ‘ meu ex-esposo (separado)’ -pe é também manifestação da propriedade de ‘ precedência’, com inferência de cessação, com a obrigação de marcar com o sufixo -pe os objetos completamente afetados pela ação dos verbos de consumação, destruição e remoção. ahukugupe helü uheke ahukugu-pe he-lü panela-NTM quebrar-PNCT u-heke 1-ERG eu quebrei a (ex)panela u-ingü u-ingü 1-roupa geputugupe titsagü uheke geputu-gu-pe ti-tsagü sujeira-POSS-NTM tirar-DUR eu estou removendo a (ex-)sujeira da minha roupa u-heke 1-ERG BRASIL DE MUITAS LÍNGUAS Dicionário dos Intraduzíveis - 120 Onde está o Tempo? Dizia Agostinho no livro IX das Confissões: “O que é então o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se alguém me perguntar, não sei”. Para complicar ainda mais o tema, tempo linguístico está inerentemente imbricado com outra noção ou fenômeno, o aspecto, noção que começou a ser delineada com os Estoicos. Aspecto se refere tanto ao momento no qual um certo evento acontece com relação a outro momento, quanto, e sobretudo, ao modo como ele procede e se instancia, por exemplo, o fato dele, evento, ser realizado ou se realizar até o final ou não (as ideias, em contraste, de perfeição e imperfeição, perfectivo e imperfectivo, determinado e indeterminado). Nossa experiência do tempo como a sucessão de passado, presente e futuro passa, pelo menos nas línguas indo-europeias, pelo “tempo verbal”, ou “tempo no verbo”. A associação privilegiada do tempo com o domínio do verbo tem conformado nossas perspectivas na filosofia, assim como nas análises linguísticas. Assumimos que os ambientes da frase contêm a dimensão temporal e que os ambientes nominais (sintagma determinadores) lidam com localização (location) e identificação. A associação do tempo ao verbo “ser” na filosofia clássica ocidental, a partir de Aristóteles, atrelou de modo privilegiado o tempo ao verbo (cf. ASPECTO, p. xxx). Na famosa divisão da frase apofântica (declarativa) entre ónoma e rhêma (mais tarde renomeados como nome e verbo), entre uma substância e um predicado, Aristóteles dizia que “um verbo é aquilo que a mais significa o tempo” Ῥῆμα δέ ἐστι τὸ προσσημαῖνον χρόνον (De Interpretatione, 3, 16b 6). O verbo ‘ser', para ele, opera a síntese entre sujeito e predicado como pura expressão do tempo. Entendemos, hoje, que nem todas as línguas alocam a expressão do tempo no verbo, e nem todas as línguas são obcecadas por tempo. A sigla TAM é usada na literatura linguística para se referir, de modo geral, ao complexo flexional, não exclusivamente verbal, que inclui a expressão do tempo, do aspecto e do modo. Sem entrar na problemática da diversidade de perspectivas sobre a determinação aspectual (para tanto cf. ASPECTO), podemos dizer que, na linguística contemporânea mais difundida (Hans Reichenbach, Elements of Symbolic Logic, 1947), modo indica a atitude do falante com relação ao que está dizendo (uma constatação, uma hipótese, um desejo, uma ordem, etc.); tempo é definido como a relação entre o momento da enunciação e o momento de referência, enquanto aspecto é definido como uma relação entre o momento de referência e o momento do evento. Sabemos, hoje, que tempo, sobretudo, mas também modo e aspecto não necessariamente se manifestam lá onde nós, a partir de nossas categorias metalinguísticas, esperaríamos. Em outras palavras, podem se manifestar em verbos, nomes, pronomes, artigos, demonstrativos, como afixos ou como clíticos, tendo como escopo sintagmas ou a frase inteira, podem se entrelaçar com modalidades epistêmicas e evidenciais. A tipologia é vasta e é surpreendente a diversidade das manifestações dessas propriedades, diversidade obviamente contida nos limites do possível numa língua natural. A literatura sobre línguas ameríndias em geral e amazônicas, em particular, está cheia de exemplos. Em Tariana, língua arawak, o tempo está em verbos, nomes, associado a clíticos evidenciais de segunda posição (A. Aikhenvald, The Amazonian Languages, 1999); em Nambikwara se funde com os modos (I. Lowe, “Nambiquara”, 1999); em Wari’ (família Txapakura) aparece em certos pronomes demonstrativos (D. Everett & B. Kern, Warí, 1997); em Jarawara (Fam. Arawa) a mesma flexão temporal ocorre com verbos e nomes (R. Dixon, The Jarawara language of southern Amazonia, 2004); em todas as línguas karib, enfim, há tempo verbal e tempo nominal (D. Derbyshire, “Carib”, 1999; Kohen&Kohen, “Apalai”, 1986; M. Abbott, “Macushi”, 1991, entre outros). Falta, nessa literatura, contudo, uma reflexão sobre o que é tempo linguístico, sobretudo nas línguas ameríndias. As línguas, em geral, parecem organizar suas expressões ‘temporais’ em torno de dois eixos: passado-não passado; futuro-não futuro. A Língua Karib do Alto Xingu é um exemplo de atualização da distinção futuro-não futuro. Assim, o tempo (linguístico) está no verbo somente em uma das suas possibilidades (uma positiva e uma negativa). A flexão verbal, todavia, é rica na expressão de modos e aspectos. Há modo descritivo, hipotético, interativo ou performativo (como o imperativo e o hortativo). E há dois ‘futuros’ completamente distintos: uma espécie de ‘futuro iminente’, que transmite o envolvimento intencional do falante, mobilizado, em movimento, no/pela/para a ação. E o ‘Futuro’ expresso pelo sufixo -ingo que ocupa sempre a última posição da palavra tanto verbal como nominal. Trata-se de um Futuro do qual o falante se distancia. O Futuro -ingo, repare-se, ocorre também com nomes. ♦ Ver quadro 4. BRASIL DE MUITAS LÍNGUAS Dicionário dos Intraduzíveis - 121 4 Dois futuros Futuro iminente: eihetinhi hõhõ kenguhitsai, kunhitai eihetomi iheke, nhitai üngele e-ihe-tinhi hoho keng-uhi-tsai 2-agarrar-ANMLZR ENF 1/2.MO-procurar-FUT.IM ku-nh-i-tai 12-MO-trazer-FUT.IM e-ihe-tomi i-heke nh-i-tai üngele 2-agarrar-FIN 3-ERG 1/2/MO-trazer LOG Vou procurar aquela que te agarrou, vou trazê-la para você para ela te agarrar, vou trazê-la. Futuro em que o falante se distancia (-ingo): akaga tuhutelüingo kuge heke Alato muguinha, kogetsi akaga tuhute-lü-ingo kuge heke Alato mugu-inha kogetsi akaga juntar-PNCT-FUT gente ERG Alato filho-BEN amanhã Amanhã as pessoas juntarão os frutos de akaga para o filho de Alato. O Futuro -ingo ocorre também com nomes: uagisuguingoha egei u-agisu-gu-ingo=ha ege-i 1-bolsa-POSS-FUT=HA DDIST-COP eu terei aquela bolsa / aquela bolsa será minha A flexão verbal em Kuikuro inclui, ainda, aspectos (pontual, durativo, perfeito) e uma forma participial. A inferência temporal do durativo é ambígua quando fora de contexto, sendo a default a que o momento da enunciação coincide com o momento de referência (o nosso “presente”), interpretação excluída para o aspecto perfeito. A inferência temporal do aspecto Pontual é de uma leitura como tempo genérico (“crianças choram à toa”) ou como passado recente. Termos metalinguísticos como “interpretação” ou “leitura” tem evidentemente implicações diretas e não triviais para qualquer tradução. O exemplo abaixo, retirado de uma versão da narrativa das Hiper-Mulheres, mostra a precedência do aspecto na flexão verbal e a inferência temporal (B. Franchetto,“L’autre du même: parallélisme et grammaire dans l’art verbal des récits Kuikuro (caribe du Haut Xingu, Brésil)”, 2003): etĩkitako leha egei leha et-iNki-ta-ko leha 3DTR-inventar-DUR-PL COMPL eles estavam se transformando ege-i DDIST-COP etĩkitako leha heu kuegüi et-iNki-ta-ko leha 3DTR-inventar-DUR-PL COMPL eles estavam se transformando em queixadas etĩkilüko leha et-iNki-lü-ko 3DTR-inventar-PNCT-PL eles se transformaram leha COMPL heu kuegü-i queixada-COP leha COMPL O narrador descreve a cena pelos olhos do rapaz que, escondido, vê seus pais virando queixadas no acampamento de pesca. A tradução usa o verbo na flexão do passado, mas não captura a duplicidade do olhar no presente e do registro da narração, supostamente relatando fatos passados. O efeito da sucessão paralelística dos aspectos durativo nas primeiras duas linhas e Pontual na última linha, sintetiza admiravelmente o processo e seu desfecho, assustadores. Esta cena se repete em blocos também paralelísticos que seguem a primeira descrição, citando a fala do rapaz que volta à aldeia e relata o acontecimento à mãe, depois citando a fala da mãe relatando o mesmo para as BRASIL DE MUITAS LÍNGUAS Dicionário dos Intraduzíveis - 122 outras mulheres. Todas irão se metamorfosear em hiper-mulheres. Observe-se que o Tempo é inferido também, e sobretudo, do uso de um dêitico de distância (ege), como mostra a primeira linha do trecho citado. A assim chamada “periferia esquerda” da frase (Rizzi, “The Fine Structure of the Left Periphery” 1997), camada que domina as camadas flexional e lexical e locus da interação entre proposição e força pragmática, é ativa na maioria dos enunciados Kuikuro. A periferia esquerda abriga não mais do que um constituinte e sua fronteira, interna à frase, é marcada por um dêitico ao qual é sufixada a cópula não verbal -i. No exemplo acima, o dêitico de distância espaçotemporal ege resolve a ambiguidade da flexão verbal aspectual (durativo), afastando o momento do evento para antes e longe do Tempo da enunciação, para nós, um passado. IV. NA BEIRA DA TRADUÇÃO IMPOSSIVEL O trabalho de tradução de e para línguas ameríndias é uma tarefa árdua e delicada. Qualquer tradução é aproximada, falha, deixa frustração ou aquela melancolia acariciada por W. Benjamin (“A tarefa do Tradutor”, 2016), ainda mais quando nos deparamos com categorias culturais cruciais ou com peças de poética verbo-cantada. De almas e espíritos Tomemos, novamente, o Kuikuro. Como compreender as palavras itseke, kuẽgü, anha, akunga,? Estamos no cerne de uma cosmologia ameríndia. Como diz P. Boyer (Tradition as Truth and Communication: a cognitive description of Traditional Discourse, 1990, p. 37): “The vocabulary of a natural language is not a uniform landscape [O vocabulário de uma língua natural não é uma paisagem uniforme]”. A tradução de itseke oscila entre ‘espírito’, ‘bicho-espírito, ‘bicho’. No dicionário kuikuro, a tradução é ‘hiper-ser’, com a seguinte definição que, dada em língua nativa por um pesquisador kuikuro, foi assim traduzida: “Itseke é aquele algo que nos devora-apavora, não é gente, não pode ser visto; assim falamos; itseke é aquele algo que nos ataca-golpeia com flechas invisíveis quando adoecemos”. Kuẽgü consta também do dicionário Kuikuro (inédito) com a seguinte definição, também aqui traduzida do original em Kuikuro: “Kuẽgü é o que algo pode ser, os bichos podem ser itseke, as aves grandes também podem ser kuẽgü”. Todo itseke é kuẽgü (todo hiper-ser é hiper, tradução que resulta numa curiosa redundância, numa proposição contida em si), mas não todo ser kuẽgü é itseke. Kuẽgü é operador cosmo-onto-lógico, nome que modifica outro nome (hiper de X), duplicando a expressão para se referir a um ser monstruoso, perigoso, sub ou super-normal (anormal por defeito ou por excesso), alguns diriam ‘sobrenatural’. São seres primordiais e presentes, um universo paralelo e incidente no aqui-agora. Propomos uma tradução: ‘hiper’. Assim: kuge kuẽgü (hiper-gente, das profundezas das águas, gente-peixe, afins de humanos e doadores de flautas, rituais, danças, músicas, plantas); hite kuẽgü (hyper-vento, dos redemoinhos e dos vendavais); tukuti kuẽgü (hiper-beijaflor, poderoso dono do pequi e de seus rituais); tahinga kuẽgü (hyper-jacaré, que copulou com as esposas do chefe Magika, por este foi morto, e de sua genitália surgiu a planta do pequi); tolo kuẽgü (hiper-pássaro, a harpia, chefe das aves contra as quais anha, os ‘mortos’, devem lutar para chegar a sua aldeia celeste). A tradução de anha como ‘morto’ captura apenas uma parte de seu significado. As traduções de akunga como ‘alma’ ou ‘duplo’ ou ‘sombra’ evocam, cada uma, um de seus sentidos, cuja somatória está, contudo, aquém de algo que é tudo isso e mais ainda. É inevitável evocar ideias nativas sobre morte, além-morte, corpos, vida. Ao serem inquiridos, os falantes nativos, incluindo os xamãs, podem responder com o ceticismo diante da inefabilidade; as definições são parciais e não necessariamente compartilhadas. Fiquemos entre mortos e almas, dos Kuikuro para os Mẽbêngôkre (Kayapó), povo do Brasil central falante de uma língua da família Jê. A antropóloga Vanessa Lea (Riquezas Intangíveis de Pessoas Partíveis. Os Mẽbêngôkre (Kayapó) do Brasil Central, 2012, p.47) logo nos diz: “Transcrevendo e traduzindo textos gravados...era muito compensador poder decifrar narrativas inteiras, ajudando a contrabalançar a frustração de nunca entender inteiramente tudo o que as pessoas falavam em outras situações. A tradução de uma série de narrativas ofereceu a possibilidade de acesso irrestrito aos processos de pensamento dos Mẽtyktire, e sua maneira de se expressar é muito superior às paráfrases do antropólogo”. Dicionário dos Intraduzíveis - 123 BRASIL DE MUITAS LÍNGUAS Lea nos fala de significados e tradução da palavra karõ, que ela define como ‘polissêmica’. “Quando um xamã deixa seu corpo (ĩ, carne) na cama, enquanto está deitado para dormir, é seu karõ, traduzível como “alma” ou “espírito”, que viaja para lugares distantes e transforma-se em animais” (idem, p. 96)....Além de se referir ao espírito, ou alma, , também significa “sombra”, “fotografia”, “eco”, “mapa” e para especificar a que se refere é qualificada por outra palavra; por exemplo kabẽ karõ, eco da voz. Designa gravações de voz, imagens na televisão e máscaras. Quando usado como verbo, significa “explicar”, “planejar” e “prever”. Os defuntos levam o “alma” (karõ) de seus pertences para a aldeia dos mortos. Ao acrescentar o prefixo que designa uma coletividade (mẽ), mẽkarõ são “fantasmas” ou “espírito dos mortos”. Quando karõ é usado nos nomes (próprios) sem ser contextualizado é inevitavelmente elíptico (idem, p. 381). É uma noção que, diz Lea, poderia ser glosada como princípio vital, próxima à alma ou espírito dos Araweté, noção mais complexa constituída por uma parte terrestre e uma parte celeste (V. Lea, op. cit., p. 404; Viveiros de Castro, 1986). Abstração Lea (idem, p. 240) chama a nossa atenção para outro aspecto extremamente relevante: “o grau de abstração de determinadas palavras”. É o caso de krã, às vezes traduzida como “cabeça”, mas que se aplica a muitas coisas de forma arredondada. Assim, é usada em diversos termos compostos como “túmulo” (pyka krã), referindo-se à forma cônica de terra empilhada em cima do túmulo; designa também a cabeça do pênis e a flor da bananeira. Este exemplo parece aproximar o Mẽbêngôkre das línguas com classificadores, como as da família Tukano e várias da família Arawak, somente para ficarmos no âmbito das línguas da América do Sul. Nelas, morfemas classificadores determinam morfemas lexicais abstratos. A linguista Kristine Stenzel (“Algumas “jóias” tipológicas de Kotiria (Wanano)”, 2009, p. 11) menciona os classificadores entre as “pérolas” da língua Kotiria (Tukano oriental), oferecendo alguns exemplos: “O classificador de objetos redondos –ka é utilizado em referências à maioria dos tubérculos e frutas, como khu-ka ‘uma raiz de mandioca’ e sudu-ka ‘uma fruta cajú’. Mas esse classificador também ocorre para individualizar outros objetos tipicamente arredondados, como ~ta-ka ‘uma pedra’, e que pode até ocorrer com um animado cuja forma arredondada é sua propriedade mais saliente, como ~su’i-ka ‘um caracol’. Já frutas (e alguns animados) com formas alongadas e curvadas levam o classificador –paro, como ho-paro ‘uma banana’, ~bede-paro ‘uma fruta ingá’ e wupo-paro ‘uma lagarta-cabeluda’”. E ainda, pari só pode ser ‘lago’ com o classificador taro, ‘corpo de água parada’. Lea lembra que Lévi-Strauss (La Pensée Sauvage, 1962, p.11) foi um dos primeiros a argumentar que as palavras abstratas não se restringem às línguas “civilizadas”. Voltando ao Kuikuro, está na consciência metalinguística dos falantes a natureza dos morfemas lexicais como raízes não categorizadas e que decantam em nomes ou verbos pelo trabalho da morfologia categorizadora. Apenas um exemplo do que pode ser gerado a partir da raíz √aki: X aki-sü aki-tsuNaki-haaki-tseaki-(i)tu-nguNaki-heku-gi aki-ho aki-nhá ‘palavra-língua de X’ ‘discursar’ ‘contar, narrar’ ‘aconselhar, avisar’ ‘falar duro, agressivamente’ ‘falar bem, com verdade, pacificar’ ‘fofoqueiro’ ‘narrativa‘ O Kuikuro, assim, revela com clareza algo que pode ser dito de todas as línguas naturais humanas: as raízes que constituem o léxico não são categorias ontologicamente pré-existentes à manipulação morfossintática que produz frases-enunciados no mundo real do discurso, seja ele interno ou comunicativo. Será que um bom exercício de tradução pode abrir algum acesso aos processos de pensamento dos falantes de línguas indígenas, como diz Lea? Talvez só abra frestas, mas certamente seus meios e maneiras de se expressar são superiores às paráfrases do antropólogo e à suposta literalidade do linguista. BRASIL DE MUITAS LÍNGUAS Dicionário dos Intraduzíveis - 124 A tradução pelos intelectuais indígenas Ainda na imensa Amazônia, deixemos a sua periferia meridional para a sua porção ocidental, onde vivem os Marubo, falantes de uma língua da família Pano, nos vales dos rios Ituí e Curuça. Nelly Barbosa Duarte Dollis (Yoshi, Varin Mesma) é uma antropóloga marubo (rio Curuça), autora da dissertação de mestrado “Nokẽ mevi revõsho shovima awe, ‘o que é transformado pelas pontas das nossas mãos’ (N. Dollis, 2017). No título, já há uma tradução (obrigatória) a qual chegou a autora, falante de Marubo. Vejamos o que ela diz na introdução de seu trabalho: ♦ 5 Ver quadro 5. Nokẽ mevi revõsho shovima awe “O título deste trabalho, Nokẽ mevi revõsho shovima awe, é uma das expressões que escutei várias vezes das mulheres quando comentavam sobre seu trabalho manual: noke-N mevi revo-N-sho shovi-ma awe 12-N mão ponta-N-GEN criar-CAUS pertence Uma tradução para o português poderia ser a seguinte: ‘O que é transformado pela ponta das nossas mãos’, embora o verbo desta frase signifique, entre outras coisas, ‘criar’ e ‘fazer existir’ O leitor precisa saber que há diferença entre os sentidos de duas frases. Mevῖ shovima awe significa ‘trabalho das mãos’, como o trabalho da roça, a construção da maloca, a fabricação da canoa, capi- nar ao redor da casa, todas tarefas masculinas. Mevi revõsho shovima awe significa ‘trabalho das pontas das mãos’, como, para os homens, arco e flechas, cestaria, pentes, chapéus de penas e, para mulheres, os cestos feitos de tucum, peneiras, abanadores, esteiras, saias de algodão, redes de tucum, redes de algodão e indumentárias ou adornos. Outra frase que poderia servir de título seria : Nokẽ mevĩsho shovia awe noke-Nmevĩ-sho shovi-a awe 12-N mão-GEN criar-PRES pertence Se tomarmos cada palavra desta frase, chegamos a uma aproximação: nukẽ (pronome pessoal) é uma marca de primeira pessoa plural, ‘nós’ ou ‘nosso’; mevĩ-sho, palavra com dois morfemas, ‘mão-movimento’, ou seja, fazer/trabalhar com as mãos em movimento; surgir/começar, surgimento/começo; awe, tudo aquilo que alguém faz e lhe pertence; sho (sufixo genitivo); shovi-a (verbo transitivo), criar, fabricar, produzir. O problema está na tradução da frase inteira, onde se conectam as palavras. Fazer é saber, saber fazer as coisas, conhecimento que faz com que as coisas sejam feitas. Fazer é com as mãos, é o saber das mãos. É um saberfazer total, incorporado, para cada pessoa que sabe-faz. É um saber-fazer que ‘pertence’ a quem sabe-faz, assim como as coisas que passam a existir pelo seu trabalho. Das mãos o saber entra na pessoa, é interiorizado e é exteriorizado. E o saber pela escrita, escrevendo, escrito, que é o meu caso? A mesma frase se aplicaria quase naturalmente, já que escrever passa pelas mãos, ou, melhor, é conhecimento que a mão faz existir, materializa, conhecimento que se move sempre de fora para dentro e vice-versa, e que faz crescer a pessoa. Para entender um pouco melhor este ‘saber fazer’, costumo lembrar o que ouvi muitas vezes do segundo irmão mais velho da minha mãe – Ivinipapa, pai de Ivini, conhecido como Alfredo ou Alfredão. Perguntou-me, uma vez: “O que o médico faz para ele ter o seu conhecimento?”. Respondi: “No estudo ele busca determinadas situações sobre as quais ele quer aprender.” Meu tio comentou: “Enquanto faço uma maloca ou um cesto, eu tenho todo o conhecimento que está na minha cabeça, não estou fazendo somente uma maloca ou um cesto; cada contexto, cada objeto, é um saber total, não é somente fazer uma coisa e deixá-la pronta”. Isso é importante para compreender o que vou dizer. Produzir com as mãos é um conhecimento total. O leitor verá que escolhi traduções, traduções atalho, que sempre deixam um amargo na boca: ‘trabalho manual’, ‘artesanato’, ‘artesãs’, ‘artesão’. Cada uma destas palavras em português deve ser pensada como tendo atrás dela tudo o que tentei explicar anteriormente. As mulheres dizem “nokẽ mevi revõsho shovima awe” com um tom de satisfação diante de suas próprias ações e feitos. Os bens que manufaturam são a base sobre a qual se eleva a sua autoestima, como prova do seu valor e de seu conhecimento. Para as mulheres, o que se transfoma nas pontas das mãos são cestas de folhas novas de tucum (txitxã), abanadores (wekoti), peneiras (toati), saias (vatxi) e pintura corporal (kene). Cada um destes ‘objetos’ tem um grafismo específico, chamado de kene, mesmo nome da pintura corporal. Não se produzem estas coisas à toa, apenas para fins utilitários, mas para conseguir realizar o desenho e conhecer a história dos objetos. Há uma grandeza em saber transformar algo em padrões de desenhos.” Nelly Barbosa Duarte Dollis (Yoshi, Varin Mesma) BRASIL DE MUITAS LÍNGUAS Dicionário dos Intraduzíveis - 125 Mais recentemente, Nelly escreveu umas notas em torno do entendimento-tradução das palavras marubo chinã e kene. Com a sua autorização, reproduzo sem modificação esses seus apontamentos: “Chinã: pensamento. Chinã-viá: estar suspirando. Chinã-via: quando alguém herdar a personalidade de outra pessoa. chinã – nato: órgão vital, órgão principal. chinã kene; dom da sabedoria (chinã kene-ya quero dizer que uma pessoa possui muitos conhecimentos). Kene: quarto, repartição de dormitório. Kene: com uma explicação tosca digo que “para os Marubo” kene é uma simbologia dos notórios de saberes que descrevem a nossa história oral “escrita” na memória, que são feitos no corpo, no rosto, nos colares, trabalhos feitos com as mãos e que se encontram nos animais, nas faunas e que outros povos também possuem. Eu posso dizer que wichá-rasĩ ‘riscos’ são chinã-kene dos nawa-rasĩ não índios. Nawa-rasĩ papirí kene ‘kene de papel dos não índios’. A escrita.” Sandra Benites, outra antropóloga indígena, tenta nos introduzir à filosofia guarani na introdução de sua dissertação de mestrado “Viver na língua”. Sandra fala-escreve insistentemente sobre o “bem viver guarani” e de sua experiência-choque como professora nas escolas indígenas. No seu texto há uma tensão constante entre as palavras guarani em guarani e o esforço para traduzi-las. ♦ 6 Ver quadro 6. Viver na língua “Falo de choque, porque quando eu dava aula percebi que os conhecimentos arandu, dos Guarani, estão fora da escola e não estão escritos no papel. Muitas vezes, o que está no papel não é tão importante para as crianças quanto o que não está escrito no papel, o que causa um choque com os conhecimentos dos juruá, que, estando no papel, ficam parados e não acompanham o movimento e djerowia (crenças) das crianças. Nós acreditamos mais na nossa história, porque ela nos ensina a construir teko porã, o bem viver, e, para alcançar teko porã, precisamos manter nosso reko de forma ''ciclíca''. Minha experiência me deu outro olhar, fui percebendo que eu estava reproduzindo a forma que estava no papel. Minha vó dizia que não podia acreditar muito no papel, porque isso me deixaria cega; ela sempre me alertava que a escrita não tem sentimentos, não anda, não respira, é história morta. A escrita pode nos enganar, se não tiver cuidado com ela, mas podemos fazer pernas para ela caminhar, de modo a acompanhar quem está dentro dela. Agora entendo porque ela dizia essas palavras: estar dentro das palavras vivas faz com que arandu permaneça. Minha preocupação aumentou quando cheguei à conclusão de que no ore arandu tudo é sagrado em relação a todas as coisas que existem no mundo... encontrou, que tinha três encruzilhadas, na esquerda, na direita e à nossa frente. Este nós chamamos de Nhanderowai e, até hoje, caminhamos para alcançar nhanderowai, exatamente onde Nhandesy ete se perdeu na encruzilhada. Ore arandu se chocam com as escolas, como Nhandesy Ete se perdeu na encruzilhada, onde ela errou o caminho por causa de sua incerteza e vencida pelo cansaço e pela tristeza. Ore arandu nunca foi escrito no papel, meus avos diziam que quando arandu está no papel perde a força do conhecimento e o poder. Por isso os mais velhos sempre tiveram medo de colocar as crianças na escola, e eu desafiei meus pais mesmo, mesmo sabendo que eu ia sofrer. O sonho, xara'u, é também nosso conhecimento, não está escrito no papel, não é tocado, não é visto, mas para nós faz partes do teko porã rã, do ‘bem viver futuramente’. Falar de xara'u deveria fazer parte de um ensino diferenciado e especifico....Esse teko porã rã, o bem viver do jeito de ser guarani no futuro, está associado a uma forma de agir, de pensar, de se comportar e de se relacionar com os outros e a natureza. Por isso, o território, a terra, para os nós guarani é fundamental, porque sem ele não é possível desenvolver esse ser futuro e alcançar o bem viver que permita chegar a nhanderowai... O ensinamento se dá sempre através do ritual e está relacionado com py'a, sentimentos. Com os ensinamentos sobre o papel escrito, não pude fazer meus alunos viver dentro da escrita. Nossos caminhos são inversos do conhecimento que está escrito no papel. A diferença da palavra vivida está na nossa história verdadeira, contada e praticada. Arandu está em movimento. Arandu escritos são aqueles que não se movem. Por isso, arandu mesmo está na minha mente e preciso pesquisar sempre. Desafios maior é lutar com dois conhecimentos, da escrita e das palavras vividas, como se fosse o caminho que Nhandesy Quando nós Guarani não conseguimos teko porã, as pessoas ficam em estado de py'a reta, confusos e desequilibrados. Para os jovens guarani, pode virar nhemyrõ, uma pessoa desiludida ou desencantada, sem perspectiva nenhuma, então chega até no estado de querer morrer...O bem viver guarani está atrelada ao futuro... Teko é um modo de ser, assim procurei a entender e compreender que aquilo que falarmos também vivemos, vivemos dentro da palavras e sentimos a palavras que falamos.” Sandra Benites BRASIL DE MUITAS LÍNGUAS V. Dicionário dos Intraduzíveis - 126 ARTES VERBAIS E POÉTICAS AMERÍNDIAS: DESAFIOS PARA UMA (IN)TRADUÇÃO (TRANS)CRIAÇÃO. As sociedades ameríndias, com toda a sua diversidade, revelam conhecimentos e tradições de uma riqueza infinita. Destaca-se a pluralidade de gêneros de fala ritualizada e de fala cantada (verbomúsica), em suas muitas possibilidades de musicalização, que opera transformações e conexões entre mundos humanos, não-humanos e supra-humanos. A fala cantada se caracteriza muitas vezes por registros especiais e qualidades esotéricas, o que tem levado alguns etnógrafos e linguistas a descrevê-la como ininteligível. A compreensão e, consequentemente, uma tradução esbarram em metáforas densas, elipses, vocábulos obsoletos, jogos de linguagem. Uma característica marcante e difusa é a versificação paralelística, onde cada repetição encerra uma variação que impulsiona a sucessão de imagens mentais, versificação que pulsa no ritmo da respiração e da dança. Quem se aproxima das artes verbo-musicais ameríndias precisa conhecer a fundo as estruturas da língua indígena, os contextos culturais, e uma já considerável literatura de etnopoéticas e suas possíveis traduções. Cito, aqui, alguns autores importantes da etnografia da fala e da análise e tradução de artes verbais ameríndias: B. Swann, On the Translation of Native American Literatures, 1992; R. Bringhurst, A Story as Sharp as a Knife, 1999; D. Hymes, 1977; J. Sherzer, Kuna Culture Through Its Discourse, 1990; D. Tedlock, The Spoken Word and the Work of Interpretation, 1983; E. Basso, A Musical View of The Universe: Kalapalo Myth and Ritual Performance 1985. No contexto brasileiro, menciono apenas Pedro Cesarino (Quando a terra deixou de falar: cantos da mitologia marubo, 2013) e as publicações sobre os cantos Tikmũ’ũn/Maxakali (Maxakali & Rosse, Kõmãyxop – cantos xamânicos maxakali/tĩkmũ'ũn, 2011). Para oferecer exemplos, e nos limites deste texto, eis um pequeno conjunto de cantos ameríndios, transcritos e traduzidos (poeticamente). Os cantos tolo são executados pelas mulheres kuikuro do Alto Xingu em ocasiões rituais; no privado de suas casas, elas cantam para lembrar, aprender e ensinar esse repertório tradicional de mais de trezentos cantos, internamente organizado em conjuntos e sequências. Os tolo falam de amores (nunca conjugais), sedução, desejos, decepção, disputas. São imagens minimalistas de cenas que remetem a narrativas do cotidiano. Eis alguns deles, transcritos e traduzidos (B. Franchetto, “Tolo Kuikúro: Diga cantando o que não pode ser dito falando”, 1997, p. 57-64; “Línguas ameríndias: modos e caminhos tradução", 2012; B. Franchetto & T. Montagnani, Flûtes des hommes, chants des femmes. Images et relations sonores chez les Kuikuro du Haut Xingu, 2011; op. cit. 2012; “Langage, Langue et Musique chez les Kuikuro du Haut-Xingu" , 2014): 1. uagutilü higei uagutilü higei uagutilü higei uagutilü higei Kalukuma hüneke higei uagutilü higei aqui e agora definho de saudade de Kalukuma aqui e agora definho uagutilü higei uagutilü higei Ahiguata hüneke higei uagutilü higei 2. osiha kukihini Atahukula de saudade de Ahiguata aqui e agora definho vamos fugir Atahukula ige ngahaponga kukihini Atahukula para as cabeceiras do mundo, vamos fugir Atahukula tuã hepüati kukihi kukihini Atahukula para o lugar onde começaram as águas Atahukula BRASIL DE MUITAS LÍNGUAS Dicionário dos Intraduzíveis - 127 3. tuãka kete uhisü kilü uheke uhisü kilü uheke vamos banhar disse para o meu amado disse para o meu amado utalitsügü kutsonkgitomi umüngitsügü kutsonkgitomi uhisü kilü uheke hegei lave-me e tire um pouco do meu cheiro de copaíba lave-me e tire um pouco do meu urucum disse para o meu amado Os Parakanã, outro povo da bacia do rio Xingu falante de uma língua tupi-guarani, têm cantos sonhados. Foi um xamã que ouviu o canto em sonho, cantado por Amyna (Topoa), o deus da chuva, e traduzido pelo antropólogo Carlos Fausto (Inimigos Fiéis: História, Guerra e Xamanismo na Amazônia, 2001, p. 385): Eawyripé ke enaro-narongoho eha E naro-narongoho eha Enaro-narongoho eha Paranomokoa eremono-monon-owé Paranomokoa eremono-monon-owé Em tua casa, vai trovejar-vejar Vai trovejar-vejar Vai trovejar-vejar O longo rio tu fizeste transbordar-bordar O longo rio tu fizeste transbordar-bordar Os Tikmũ’ũn – mais conhecidos como Maxakali – sublimam a devastação de suas terras em Minas Gerais e de suas vidas terrestres cantando com e para seus hiper-seres, em rituais incessantes. Aqui está um trecho do canto de kõmãyxop vermelha/'ãta, executado no ritual kõmãyxop: xup nẽ gã tu nã kãm mi noite desceu e se deitou xup xo xop tu nũn hãm mi dia desceu e se deitou hãm ho xex tu nã kãm mi algodão desceu e se deitou kax pa xop mõ yũm hãn nũ sol veio boiando veio xet pa xop tu xup hãn nũ lua veio flutuando veio xix kata mõ yũm hãn nũ Estrela Grande veio boiando veio xix kata mõ yũm hãn nũ Estrela Vermelha veio boiando veio ........... xup nẽ ga noite tu nãn kãm mi desceu e se deitou ........... Por fim, os Marubo, de língua da família Pano, assim iniciam seu canto Naí Mai vaná, ‘formação do Céu e da Terra’ (P. Cesarino, op. cit., p. 46-47): Koĩ shõpa weki We votĩvetãki Koĩ rome weki Veõini otivo Koĩ shõpa weki Chĩkirinatõsho Koĩ Võa wení Vento de lírio-nevoa O vento envolvido Ao vento de rapé-névoa Há tempo flutua Vento de lírio-nevoa Vai se revolvendo E Koĩ Võa surge BRASIL DE MUITAS LÍNGUAS VI. Dicionário dos Intraduzíveis - 128 TRADUZIR EM PERSPECTIVA E ASSUMINDO EQUIVOCOS Traduzir línguas indígenas pode, ou deveria, ser um exercício em abismo de trocas de perspectivas. O princípio do perspectivismo, conceito filosófico-antropológico meta-ameríndio, proposto e desenvolvido pelos antropólogos Tania Stolze Lima (“O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma sociedade tupi”, 1996) e Eduardo Viveiros de Castro (A Inconstância da alma selvagem - e outros ensaios de antropologia, 2002; Metafísicas Canibais - elementos para uma antropologia pós-estrutural, 2015) seria, em síntese, o cerne de um possível pensamento ameríndio, que decantaria em uma descolonização do conhecimento ocidental. O ponto de partida é o de que todos os entes (humanos e não humanos, com ou sem ‘vida’) são ‘pessoas’ com algum tipo de ‘alma’ e são constituídos, essencialmente, por relações. Se deixamos, então, que as cosmologias ameríndias subvertam nossas epistemologias, conhecer e, acrescentamos, traduzir, é incorporar a perspectiva daquele ou daquilo ‘a ser conhecido/traduzido’, passando ao largo da objetificação, para, ao contrário, submergir sujeito entre sujeitos. É possível mover-se numa tradução perspectivista? Acho que sim, mas com a consciência saudavelmente pessimista de nunca conseguir ultrapassar o aquém e com a consciência saudavelmente otimista de que muito do que se diz pode ser revisto e redimensionado com uma real apreensão das estruturas e processos linguísticos, algo muito raro no campo antropológico, assim como é ainda mais raro entre os linguistas... Outra ideia instigante de Viveiros de Castro, chega como uma tábua de salvação: o ‘equívoco’, motor constitutivo do fazer tradutivo da própria antropologia. O perspectivismo vê a tradução como um processo de equivocação controlada, onde, por exemplo, procura-se controlar, de algum modo, a alteridade do referente e da referência, sempre considerando o equívoco como o modo de comunicação por excelência entre as diferentes posições de onde emanam ‘perspectivas’ em relação. O equívoco não seria erro, não produziria ‘falsos’ e, ao invés de impedir relações, faz com que elas se desvelem e se imponham. VII. ÍNDIO, INDÍGENA E o primeiro grande equívoco nos domina. Como diz E. Viveiros de Castro (Os involuntários da Pátria, 2016): “As palavras “índio” e “indígena” não são sinônimas nem derivada uma da outra. Os povos e indivíduos nativos das Américas foram chamados de “índios” por conta do famoso equívoco dos invasores europeus que pensavam ter chegado na Índia. A palavra “indígena”, por outro lado, vem do latim e significa “gerado dentro da terra que lhe é própria, originário da terra em que vive”, terra própria anterior à colonização. O antônimo de “índio”, no Brasil, é “branco”, tradução para o português das muitas palavras que nas muitas línguas indígenas se referem a todos e tudo o que não é “índio”. Essas palavras indígenas têm vários significados, mas um dos mais comuns é “inimigo”, como no caso de napë em Yanomami, kube’ em Kayapó, awĩ em Araweté”. Em outras palavras, o mundo é povoados de indígenas e de inimigos. Bruna FRANCHETTO BIBLIOGRAFIA ABBOTT, Miriam. 1991. Macushi. Derbyshire Desmond C. & Pullum Geoffrey (eds.), Handbook of Amazonian Languages, vol. 3. Berlin: Mouton de Gruyter. 33-127. AIKHENVALD, Alexandra Y. 2003. The Tariana language of Northwest Amazonia. Cambridge: Cambridge University Press. AIKHENVALD, Alexandra Y. & Robert M.W. Dixon. 1999 (eds), The Amazonian Languages. Cambridge: Cambridge University Press. BASSO, Ellen. 1985. A Musical View of The Universe: Kalapalo Myth and Ritual Performance. Philadelphia: Pennsylvania University Press. 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