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O Beco da Quarentena

INTERIN

O conceito de rasuras urbanas e suas conexões com os processos de constituição dos espaços urbanos e suas produções de subjetividades são as questões centrais deste artigo. Buscamos tensionar as narrativas urbanas com foco em projetos urbanísticos disciplinantes, programas de captura retrotópica sobrecodificante de centros históricos e territorializações existenciais molares. Pensamos outras possibilidades de experienciar, comunicar-se e consumir o urbano, entrevendo e fazendo emergir textos urbanos rasurados, mas compossíveis. Propomos os conceitos de rasuras urbanas - ações positivas, produtoras de novas realidades, subjetividades e possibilidades para os desejos nas polis - e de captura retrotópica sobrecodificante em oposição à ideia de revitalização de espaços urbanos. Construirmos uma análise no âmbito da microhistória sobre o Beco da Quarentena, no bairro da Ribeira (Natal-RN).

121 O Beco da Quarentena: cena de rasuras urbanas no texto-urbe The Beco da Quarentena: sceneofurbanscribbles in the urbe-text Carlos Henrique Pessoa Cunha Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte, Brasil. Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil. E-mail: ch.pc@hotmail.com Josimey Costa Da Silva Professora e Pesquisadoranos programas de Pós-graduação em Estudos da Mídia e em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil. Doutora em Ciências Sociais/Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Pós-doutorada em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: josimeycosta@gmail.com Resumo: O conceito de rasuras urbanas e suas conexões com os processos de constituição dos espaços urbanos e suas produções de subjetividades são as questões centrais deste artigo. Buscamos tensionar as narrativas urbanas com foco em projetos urbanísticos disciplinantes, programas de captura retrotópica sobrecodificante de centros históricos e territorializações existenciais molares. Pensamos outras possibilidades de experienciar, comunicar-se e consumir o urbano, entrevendo e fazendo emergir textos urbanos rasurados, mas compossíveis. Propomos os conceitos de rasuras urbanas – ações positivas, produtoras de novas realidades, subjetividades e possibilidades para os desejos nas polis – e de captura retrotópica sobrecodificante em oposição à ideia de revitalização de espaços urbanos. Construímos uma análise no âmbito da microhistória sobre o Beco da Quarentena, no bairro da Ribeira (NatalRN). Palavras-chave: Rasuras urbanas; Subjetividades; Captura retrotópica sobrecodificante; Beco da Quarentena. Abstract: The urban scribbles concept and their connections with the processes of constitution of urban spaces and their productions of subjectivities are the central questions of this work. We tried to stress the urban narratives focusing on urbanistic disciplinary projects, programs of retrotopic capture of overcoding historical centers and existential molar territorializations. We also think about other possibilities of experiencing, communicating and consuming the urban, by interviewing and making urban texts that are scribbled but compossible. We still propose the concepts of urban scribbles – positive actions, producers of new realities, subjectivities and possibilities for the desires in the polis – and overcoding retrotopic capture as opposed to the idea of revitalization of urban spaces to construct a microhistory analysis about Beco da Quarentena, in the neighborhood of Ribeira (Natal-RN). INTERIN, v. 24, n. 1, jan./jun. 2019. ISSN: 1980-5276. Carlos Henrique Pessoa Cunha; Josimey Costa Da Silva. O Beco da Quarentena: cena de rasuras urbanas no texto-urbe. p. 121138. 122 Keywords: Urban scribbles; Subjectivity; Retrotopicovercoding capture; Beco da Quarentena. 1 A escrita do texto-urbe As cidades são grandes textos, sempre inacabados, sempre em fluxos e em conflitos – os quais, embora sigam sendo capturados por regras sintáticas e semânticas normatizantes, são também construídos a partir do enlace de desejos e afetos que cruzam e explodem seus autores – produção de rasuras. Logo, o texto urbano é constantemente atravessado por essas linhas de fuga, inicialmente indomáveis, produzidas por mãos nômades cuja ação, por vezes, rompe com a ordem da escrita formal. Nesse momento de ruptura, algo novo é maquinado, produzido e consumido, um não-texto, um texto urbano-outro, que não é pura rasura nem puro texto formal. As rasuras urbanas não são produzidas para destruir as condições urbanísticas projetadas, nem mesmo têm um caráter de luta ideológica e de resistência formal. Elas são ações positivas, pois produzem novas realidades, subjetividades e possibilidades de efetuação dos desejos nas polis. Por essa ótica, as cidades, em seus movimentos de ocupações, reocupações, consumos e comunicações, estão longe de serem obras apenas de uma linha de força rígida que se impõe, produz e codifica espaços homogêneos e projetados. Existem os espaços-outros, os espaços-fuga, as utopias localizadas (heterotopias), as rasuras urbanas, que maquinam novas subjetividades, ou seja, novas possibilidades de existência. Em outras palavras, as rasuras conferem novos movimentos ao texto-urbe; todavia, isso não implica dizer que o plano urbanístico disciplinador é negado, mas que disciplina e fuga coexistem. Aqui, iremos nos apropriar do conceito de subjetividade discutido por Guattari, quando este propõe uma definição provisória de subjetividade como sendo: O conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial autorreferencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva (2012, p. 19). Debater acerca dessas rasuras urbanas e suas conexões com os processos de constituição dos espaços urbanos e suas produções de subjetividades irrompe como INTERIN, v. 24, n. 1, jan./jun. 2019. ISSN: 1980-5276. Carlos Henrique Pessoa Cunha; Josimey Costa Da Silva. O Beco da Quarentena: cena de rasuras urbanas no texto-urbe. p. 121138. 123 uma questão central neste artigo. Buscamos tensionar as narrativas urbanas, focadas, por exemplo, em projetos urbanísticos disciplinantes, programas de capturas retrotópicas sobrecodificantes1 de centros históricos, planos diretores, territorializações existenciais molares, a fim de lançarmos o olhar para as outras possibilidades de viver, experienciar, se comunicar e consumir o urbano – textos urbanos rasurados, mas compossíveis. Para essa discussão, propomos os conceitos de rasuras urbanas e capturas retrotópicas sobrecodificantes, tomando como possibilidade de experiências empíricas o espaço conhecido como Beco da Quarentena, no bairro da Ribeira, em Natal-RN. Partimos de uma breve análise no âmbito da microhistórica como proposto por Deleuze e Guattari (2012) e que aplicamos a esse bairro e ao referido beco. Não nos deteremos aqui a uma narrativa histórica minuciosa acerca do bairro mencionado, nem do Beco da Quarentena, numa perspectiva da macrohistória significante (macropolítica), norteada por forças molares, com suas explicações ancoradas em buscas por organizações, estruturas identitárias binárias, homogêneas e por representações explicativas de uma dada existência. Vamos singrando o passado como uma nau da micropolítica, em busca de perceber as linhas moleculares ou de fugas, que atuaram no processo histórico, aquilo que vazou, que escapou dos aparelhos de estado, das máquinas sobrecodificantes. Aqui, dialogando visceralmente com Deleuze e Guattari, consideramos como tarefa do historiador: [...] assinalar o período de coexistência ou de simultaneidade dos dois movimentos (de um lado descodificação-desterritorialização e, de outro, sobrecodificação-reterritorialização), pois é nesse período que se distingue o aspecto molecular do aspecto molar (2012, p. 110). Nesse debate sobre macro e micropolítica, tomamos como conexão teórica o texto “Micropolítica e Segmentaridade”, de Deleuze e Guattari, que alerta para o fato de que micro e macro, nessa discussão, não tratam de dimensões dos elementos ou da cronologia. Segundo estes autores: Elaboramos esse conceito em oposição ao conceito de “revitalização”. Discutiremos melhor acerca dele, no decorrer deste artigo. 1 INTERIN, v. 24, n. 1, jan./jun. 2019. ISSN: 1980-5276. Carlos Henrique Pessoa Cunha; Josimey Costa Da Silva. O Beco da Quarentena: cena de rasuras urbanas no texto-urbe. p. 121138. 124 […] a diferença entre uma macrohistória e uma microhistória não concerne de modo algum o tamanho das durações consideradas, o grande e o pequeno, mas sistemas de referência distintos, conforme se considere uma linha sobrecodificada de segmentos ou um fluxo mutante de quanta (2012, p. 110-111). Sendo assim, sobrecodificações, mesmo seguindo descodificações, mapeando esses territorializações, cruzamentos, desterritorializações, reterritorializações, das linhas de segmentarização que atuaram sobre a formação do espaço conhecido como Beco da Quarentena, ao longo de todo século XX e início do século XXI, atuaremos numa condição de micro-história, micropolítica. 2 “Onde os deuses desvairados do sexo barato faziam ali suas orgias” O bairro da Ribeira constitui uma parte do perímetro mais antigo do povoamento da cidade de Natal. Até final do século XIX, uma grande parte desse bairro era banhada pelas águas do rio Potengi, formando em alguns momentos um grande pântano (CUNHA, 2014). No início do século XX, essas condições foram alteradas após várias obras urbanas, movidas pelos recém-nascidos governos republicanos, que autoproclamavam-se porta-vozes dos discursos de modernidade, como por exemplo, a pavimentação e alargamento de ruas e avenidas, edificação de imponentes prédios, como o do Teatro Carlos Gomes, a drenagem parcial do pântano da campina e a construção da Praça Augusto Severo e do cinema Polytheama, o melhoramento do porto da cidade, no final da Av. Tavares de Lyra, e dos sistemas de fornecimento de água e energia. As alterações físicas urbanísticas foram acompanhadas por transformações profundas no modo de viver, pensar e consumir esse espaço. Aos poucos, cada vez mais lojas de artigos de luxo, como chapéus, roupas, artigos pessoais, importados da Europa ou de centros como Recife, Rio de Janeiro e São Paulo, agitavam o comércio e embelezavam donzelas e cavalheiros que circulavam pelas ruas reformadas da Ribeira e pela arborizada Praça Augusto Severo (CUNHA, 2014). Novas subjetividades foram sendo maquinadas ao longo dos anos 1930 e 1940, o que corrobora com as análises de Lazzarato, quando este afirma que “a produção material representa um tipo de complexo industrial para a produção de subjetividade” (2014, p. 13). Dessarte, não podemos anuir a separação clara e definida entre produção INTERIN, v. 24, n. 1, jan./jun. 2019. ISSN: 1980-5276. Carlos Henrique Pessoa Cunha; Josimey Costa Da Silva. O Beco da Quarentena: cena de rasuras urbanas no texto-urbe. p. 121138. 125 material e produção de subjetividades, por não considerá-los como realidades antagônicas: ambas se entrecuzam, retroalimentam-se e compõem uma grande máquina urbana. Ativos agenciamentos coletivos de enunciação – produção de signos – e agenciamentos maquínicos2 – produção de corpos – foram mobilizados para a construção de um novo mundo – a cidade e o cidadão moderno. No final da década de 1930, Natal já respirava essa subjetividade de modernidade, não só em seu traçado e projetos urbanístico, mas, também, na proliferação de diversificados espaços de sociabilidade, nas formas de consumir a cidade, em livrarias, cinema, teatro, nos bancos da Praça Augusto Severo, etc. Ainda que esse consumo de luxo tenha ganhado força na Ribeira, foi o segmento noturno e boêmio que mais se destacou na vida cotidiana do bairro. Na Ribeira funcionava um grande número de bares, cafés, bilhares e cabarés, as chamadas pensões alegres3, que contribuíram decisivamente para transformar os desejos, os possíveis, a vida cotidiana efetivada no bairro, que cada vez mais se aquecia após o crepúsculo. A Natal moderna, civilizada e elegante, que desejava se assemelhar à Paris da Belle Èpoque4 não conseguia neutralizar as forças que fugiam e escorregavam por entre os dedos disciplinantes. Rasuras urbanas que produziam incessantemente novas realidades, novos territórios existenciais, ora desterritorializantes, ora reterritorializantes. Os territórios existenciais são agenciados a partir de gestos, afetos compartilhados, modos de agir, produções materiais, que sistematizam uma espécie de ritual, uma composição, uma máquina, que causa impressões de familiaridade, um sentir-se em casa que, nas palavras de Rolnik, “é efeito de uma série de imperceptíveis processos de simulação que se puseram a funcionar, ao mesmo tempo e sucessivamente” (2014, p. 32). 2 Discutimos acerca das diversas formas de agenciamentos a partir da obra de Deleuze e Guattari (2011b). 3 Diversos cabarés foram inaugurados, como o Arpege, o Wonder Bar e Maria Boa (este localizava-se na Cidade Alta), bem como tantas outras pequenas casas de prazer, nas imediações da Rua Chile e Tavares de Lyra. 4 A Avenida Tavares de Lyra chegou a ser apelidada popularmente de a Champs Élysées potiguar. INTERIN, v. 24, n. 1, jan./jun. 2019. ISSN: 1980-5276. Carlos Henrique Pessoa Cunha; Josimey Costa Da Silva. O Beco da Quarentena: cena de rasuras urbanas no texto-urbe. p. 121138. 126 Fotografia 1 – Beco da Quarentena Fonte: site Overmundo5. Nesse cenário, podemos iniciar um olhar mais direcionado para a Travessa da Quarentena (fotografia 1), que já foi chamada de Rua das Donzelas e hoje é mais popularmente conhecida como Beco da Quarentena. Uma estreita via enlameada de 25 metros de comprimento, um antigo portal escuro, que interliga duas importantes e dinâmicas ruas do bairro da Ribeira, as ruas Chile e Frei Miguelinho. Por ficar a poucos metros do cais do porto da cidade, a travessa, no início do século passado, recebia a visita de muitos marinheiros que chegavam de viagens, ou de moradores da cidade mesmo, com doenças venéreas ou outros males contagiosos, como a varíola, e precisavam ficar de quarentena nos navios, ou transitando apenas nas imediações do cais. A partir da metade do século XX, a travessa se consolidou como um ponto de baixo meretrício, conhecido como o Beco da Quarentena. Enquanto outros cabarés da cidade, como o Arpege, o Wonder Bar, ambos na Rua Chile, e o Maria Boa, na Cidade Alta, cresciam e recebiam visitantes com um poder aquisitivo mais alto e membros do oficialato militar, o Beco da Quarentena atendia a um público de baixa renda ou doente. Segundo Sr. Porpino, um antigo frequentador das noites da Ribeira, “o cara dizia que, quando trepava6 lá, já vinha com uma dosagem de penicilina” (informação verbal)7. Doenças, bebedeiras, violência e mortes marcavam os dias e noites do Beco, fazendo-o figurar no rol sobrecodificado dos espaços malditos da 5 Disponível em: <https://goo.gl/bPSNiY>. Acesso em: ago. 2018. Praticar ato sexual. 7 Entrevista concedida ao autor em 04 jun. 2013. 6 INTERIN, v. 24, n. 1, jan./jun. 2019. ISSN: 1980-5276. Carlos Henrique Pessoa Cunha; Josimey Costa Da Silva. O Beco da Quarentena: cena de rasuras urbanas no texto-urbe. p. 121138. 127 cidade. Em março de 1979, Saraiva publicou o poema “Cantilena do Beco da Quarentena”, que se referia ao Beco nos seguintes termos: [...] Ainda nas calças curtas, residindo na Ribeira As mulheres davam sopa, vivendo numa bebedeira Minha vida tinha início, no antro da buraqueira. [...] Sem ter pra quem apelar, a miséria ali reinava Jamais a saúde pública, naquele beco passava Por isso é que uma criança, perdida no mundo estava. [...] A polícia era constante, dava ronda a noite inteira Mas nunca evitou as brigas, vivendo de tal maneira Que muitas mortes ali houve, por causa de bebedeira. No outro dia, os jornais, lamentavam, tinham pena Dando notas alarmantes, a coluna era pequena Pra contar as suas brigas, no beco da quarentena. [...] As mulheres mais formosas, daquele beco infernal Tinham os nomes mais lindos, que conheci em Natal Rosa, Judith, Jurema, Jaqueline, e Marial. Iracema e Jacira, Julimar, Inês, Bonina. Iraci, Branca e Maria, Isabel, Mara e Alvina Inês, Pureza, Cecí, Alice, Marte, Vanina. Foram mulheres da vida, eu de todas tinha pena Pela fome que passavam, como um bando de falena Vivendo desabrigadas, no beco da quarentena. [...] Quarentena! És um inferno, que os bichos-homens criaram No reinado da miséria, suas vidas estragaram Infelizes dos mortais, que naquele beco andaram. Quantas vidas preciosas, no beco da perdição Tiveram sua má sorte, pois não indo pra prisão Findavam no cemitério, sem ter uma extrema-unção. [...] Pederastas, cafetinos, maconheiros afamados Frequentavam o tal beco, sendo bastante estimados Avistando com seus homens, com os quais eram amigados. [...] Me despeço dos amigos, motivado de emoções No beco da quarentena, tem mulheres e violões Muita cachaça e maconha, pederastas e ladrões!8 Natal cresceu e se urbanizou cada vez mais, notadamente após a chegada dos militares estadunidenses, durante a Segunda Guerra Mundial9. Essa expansão foi 8 Nesse poema, Gumercindo Saraiva descreve o seu cotidiano, ao lado de alguns seus amigos, quando eram frequentadores assíduos das “diversões” no Beco da Quarentena. Texto integral disponível em: <https://goo.gl/DE4TPZ>. Acesso em: 30 ago. 2018. INTERIN, v. 24, n. 1, jan./jun. 2019. ISSN: 1980-5276. Carlos Henrique Pessoa Cunha; Josimey Costa Da Silva. O Beco da Quarentena: cena de rasuras urbanas no texto-urbe. p. 121138. 128 seguida por tentativas de ordenar o espaço urbano e seus usos (NATAL, 2007). Regras para o hábitat foram discutidas e implantadas, e a população natalense, uma parte financeiramente mais elevada dela, notadamente em fins dos anos 1950, iniciou um movimento de transferência das suas residências para bairros nascentes como Tirol e Petrópolis, distanciando-se cada vez mais das forças boêmias e marginais que avançavam sobre a Ribeira – forças moleculares e, por vezes, de fuga, que abalavam as tentativas de transformar a Ribeira num bairro mais glamouroso, aos olhos da elite social natalense. Não obstante o comércio de atacado se consolidar como atividade econômica dominante no bairro, assim como a presença de vários órgãos públicos, espaços como o Beco da Quarentena mantiveram-se em atuação, assumindo cada vez mais, mesmo sem ser esse o objetivo, uma força de rasura urbana, traços, rabiscos que cortavam, sobrepunham-se, entrelaçavam-se, com os traços normatizados e normatizadores, possibilitando a constante (re)escrita de textos-urbe em marginália. Forças molares, segmentarizantes binárias, agenciamentos de enunciação, seguiram atuando na Ribeira, classificando, rotulando, sobrecodificando os espaços e as pessoas, como por exemplo, diversas normas urbanísticas, forças capitalísticas, reportagens de jornais, poemas, como o de Gumercindo Saraiva, citado anteriormente, ou relatos, como o texto publicado por Onofre Júnior, intitulado Breviário da Cidade do Natal, quando o autor se referiu ao Beco, no capítulo A Zona, da seguinte maneira: A “Quinze de Novembro” e o “Beco da Quarentena” são locais característicos, barra pesada. O burlesco e o trágico coexistindo. Cenas patéticas, brigas, navalhas. Atmosfera trevisaniana em grau superlativo. E, quem sabe, deve haver amor, ternura. Pois, como disse Xica Pirrita, “rapariga também é fííí de Deus. [...] O velho beco, com seu “claro mistério”, continua maldito. As pessoas decentes o evitam, até mesmo durante o dia, como se o vissem ainda empestado. Que peste era essa e por que não se atravessa o Beco de um lado a outro? (1984, p. 95-96). O campo aéreo de Parnamirim – Parnamirim field – e a cidade de Natal serviram de base militar estadunidense entre os anos de 1942 e 1945. Durante esses anos, a economia local cresceu vertiginosamente. O comércio da cidade se expandiu, com a presença dos militares, sedentos por prazeres que atenuassem as tensões da guerra, e que constantemente frequentavam as noites quentes do bairro da Ribeira, em Natal. Para um aprofundamento sobre essa vida social desses militares e suas relações com os habitantes de Natal, durante a Segunda Guerra Mundial, ver PEDREIRA (2005). 9 INTERIN, v. 24, n. 1, jan./jun. 2019. ISSN: 1980-5276. Carlos Henrique Pessoa Cunha; Josimey Costa Da Silva. O Beco da Quarentena: cena de rasuras urbanas no texto-urbe. p. 121138. 129 Ao longo dos anos 1980, a cidade se expandiu em várias direções, com o crescimento de novos bairros. O bairro da Cidade Alta se consolidou como polo do comércio varejista, para logo depois perder esse posto para o movimento de surgimento de shopping centers na zona sul de Natal. E a Ribeira? Esta mantinha-se em plena atividade comercial, notadamente diurna. Entretanto, com a despedida dos raios solares, um novo território existencial emergia das sombras. Bêbados, mendigos, drogados, traficantes, prostitutas, boêmios, funcionários dos órgãos públicos localizados no bairro, intelectuais, encontravam nas ruas da Ribeira formas múltiplas de efetuarem seus desejos10; desejos de sexo barato, de embriaguês, de descontração, como também desejos de (re)viver um passado, idealizadamente glorioso, perdido, por entre as ruas sujas, escuras e soturnas da Ribeira. Os velhos casarões em ruínas inspiravam sentimentos de nostalgia em muitos dos que se aventuravam por aquelas paragens. Nesse sentido, Guattari considera que: Quer tenhamos consciência ou não, o espaço construído nos interpela de diferentes pontos de vista: estilístico, histórico, funcional, afetivo… Os edifícios e construções de todos os tipos são máquinas enunciadoras. Elas produzem uma subjetivação parcial que se aglomera com outros agenciamentos de subjetivação (2012, p. 140). As potências, os signos produzidos, as práticas experienciadas no bairro da Ribeira, especificamente à noite, ao longo dos anos 1980 e metade dos anos 1990, rasuravam o texto-urbe natalense, era marginália em profusão; transformavam aquele espaço em algo a ser evitado pelas pessoas de bem da cidade, parafraseando Onofre Júnior (1984). Como se as palavras desse escritor, direcionadas, em 1979, para o Beco da Quarentena, ecoassem agora sobre todo o bairro, sobrecodificando-o, estigmatizando-o. Aqui, o alcance da rasura urbana se expandiu; tais rasuras não são fixas, não respondem às normas, limites, dilatam-se e se comprimem, desterritorializam e reterritorializam, dependendo dos agenciamentos a que se relacionam, que máquinas de subjetivação produzem. 3 Captura retrotópica sobrecodificante, rasuras contemporâneas 10 A noção de desejo, aqui considerada, dialoga com as discussões de Rolnik (2014), quando esta afirma que o “desejo é a própria produção do real social” (p. 58) e que “o desejo só funciona em agenciamento” (p. 37). INTERIN, v. 24, n. 1, jan./jun. 2019. ISSN: 1980-5276. Carlos Henrique Pessoa Cunha; Josimey Costa Da Silva. O Beco da Quarentena: cena de rasuras urbanas no texto-urbe. p. 121138. 130 Bauman (2017), pensando a atualidade, discute acerca das buscas desesperadas por segurança, estabilidade e felicidade e aponta para uma descrença em relação ao futuro, uma crise dos Estados-Nação e das utopias então propostas. Para ele, esse futuro se apresenta cada vez mais como incerto e ameaçador para as novas gerações, causando uma inversão nos olhares utópicos. Conforme afirma esse autor, “o século XX começou com uma utopia futurista e acabou com nostalgia” (2017, p. 8); ou seja, seu início foi contaminado por uma fé cega no progresso, no futuro redentor da ciência e da tecnologia. Entretanto, o alvorecer do século XXI exalou (e ainda exala) um pessimismo em relação aos Estados, aos políticos tradicionais, aos partidos políticos, aos sindicatos, às igrejas, às velhas utopias. Dessa forma, uma subjetividade nostálgica motiva com cada vez mais força uma busca por revivals – REvitalizações, REtrospectivas, moda REtrô, REmakes, REedições – fazendo surgir anseios pelo retorno de um suposto passado glorioso, uma era de ouro já perdida, os bons tempos, ou seja, utopias do passado – Retrotopias. A retrotopia, esse fluxo molar, duro, segmentarizante, sobrecodificante, territorializante e reterritorializante, vai atuar também diretamente sobre a ocupação urbana, notadamente em relação aos chamados Centros Históricos. Para nos referirmos ao processo de reocupação dos centros históricos, propomos o conceito de Capturas Retrotópicas Sobrecodificantes. Elaboramos esse conceito em oposição direta à difundida ideia de revitalização. O uso do termo revitalização é bastante criticado por muitos estudiosos acerca desse movimento de reocupação dos centros históricos urbanos, pois o mesmo pressupõe uma morte de um dado espaço urbano, seguido de um retorno à vida (revitalização). Questionamos esse termo por considerarmos que esses espaços nunca morreram de fato, mas, sim, passaram a ser ocupados e experienciados por segmentos da sociedade e suas produções de subjetividades e territorializações existenciais, não considerados nas análises oficiais, técnicas urbanísticas e midiáticas. As Capturas Retrotópicas Sobrecodificantes ganharam força inicialmente em Londres e Nova Iorque, desde o fim dos anos 1960 e início dos anos 1970, tendo uma classe média yuppie como pioneiros. No caso da América Latina, os poderes públicos foram os coordenadores de tais processos. No Brasil, o lançamento do Programa Cidades Históricas (PCH), em 1973, pode ser visto como um precursor INTERIN, v. 24, n. 1, jan./jun. 2019. ISSN: 1980-5276. Carlos Henrique Pessoa Cunha; Josimey Costa Da Silva. O Beco da Quarentena: cena de rasuras urbanas no texto-urbe. p. 121138. 131 desse movimento de tentativa de preservação, reocupação e exploração econômica dos Centros Históricos urbanos. Seguindo nesse fluxo molar retrotópico, no final dos anos 1980, as propostas de intervenções no bairro da Ribeira, em Natal, passaram a ser discutidas, tendo como marco, a Lei n. 4.932 (1997), que sistematizou a Operação Urbana Ribeira da qual fazia parte o “Projeto Fachadas da Rua Chile”, que operacionalizou a reforma e pintura de quase todos os casarões da Rua Chile e a troca de parte do seu calçamento, alterando profundamente suas condições físicas. Essa tentativa de aprisionar arbitrariamente o tempo num recanto urbano, mediante reforma de fachadas de casas e estruturas físicas, constitui-se como uma máquina de produção de novos mundos, ancorados em (re)leituras de mundos passados idealizados. Dando passagem aqui aos estudos de Guattari, que considera que “toda leitura do passado é necessariamente sobrecodificada por nossas referências no presente” (2012, p. 114), bem como que “a desterritorialização é uma marca do homem contemporâneo” (2012, p. 149), somos levados a perceber que as obras de reforma das estruturas físicas de vários casarões e da própria Rua Chile estiveram ligadas muito mais a agenciamentos de enunciação e maquinações capitalísticas, do que propriamente à restauração de uma suposta terra natal – pois essa restauração da origem não se faz mais possível, uma vez que, ainda segundo Guattari, “esses territórios etológicos originários não estão mais dispostos num ponto preciso da terra, mas se incrustam, no essencial, em universos incorporais” (2012, p. 149). Fotografia 2 – Largo da Rua Chile, após Programa Fachadas da Rua Chile Fonte: Projeto ReHabitar em Natal. SEMURB, 2008, p. 36. INTERIN, v. 24, n. 1, jan./jun. 2019. ISSN: 1980-5276. Carlos Henrique Pessoa Cunha; Josimey Costa Da Silva. O Beco da Quarentena: cena de rasuras urbanas no texto-urbe. p. 121138. 132 As obras do “Projeto Fachadas da Rua Chile” foram acompanhadas por um forte movimento capitalístico de abertura de bares, boates e realização de eventos na Rua Chile, produzindo novas e potentes subjetividades, territórios existencias que sobrecodificaram não só a dita rua, mas todo o bairro da Ribeira, que agora era territorializado a partir do rock, pop, reggae e suas máquinas de expressão, seus enunciados, toda uma subjetivação coletiva. Os interesses do mercado e os afetos que explodiram nos eventos da Rua Chile produziram uma potente máquina de captura de subjetividades; um aparelho de estado11, um fluxo molar, que lutava sempre para estriar os espaços, organizá-los, homogeneizá-los e territorializá-los, apesar de um agenciamento de enunciação atuar na consolidação de uma ideia de espaço de liberdade, referindo-se à Ribeira – “A Ribeira parece que liberta”12, escreveu Henrique Fontes, um atuante produtor cultural do bairro. Ao nosso ver, produziu-se uma falsa ideia de liberdade na Ribeira. Falsa, pois os afetos, as experiências de comunicação, exposição, consumo no e do espaço aceitas e valorizadas, eram apenas aquelas que estavam no leque dos vários mundos possíveis, oferecidos pelos organizadores de eventos, donos de bares e boates e poder público. Barricadas dispostas para disciplinar o tráfego de pessoas, tentativas de uso privado do Largo da Rua Chile, combate à circulação de vendedores ambulantes, por parte de empresários e produtores de eventos, dentre tantas outras práticas, produziam uma liberdade controlada, disciplinada, que tentava neutralizar as forças moleculares e de fugas. Não obstante, essas ações de sedentarização dos desejos, de estriamento e controle do espaço, uma máquina de guerra nômade, produtora de rasuras, seguiu rompendo as muralhas, se entrelaçando com os sedentários, atuando em marginália e rasurando aquele texto-urbe embelezado e empacotado para um consumo específico, selecionado, estetizado e, na medida do possível, homogeneizado. Indivíduos e grupos, por vezes, abandonaram a condição de massas, organizadas, com sociabilidades de conjuntos, com unicidade de direção e produção de signos, e 11 Estamos aqui discutindo Aparelho de Estado X Grupos Nômades, Espaço Liso X Espaço Estriado, a partir dos escritos de Deleuze e Guattari, em Mil Platôs V (2012b). 12 Disponível em: <https://goo.gl/pzYh7h>. Acesso em: 09 set. 2018. INTERIN, v. 24, n. 1, jan./jun. 2019. ISSN: 1980-5276. Carlos Henrique Pessoa Cunha; Josimey Costa Da Silva. O Beco da Quarentena: cena de rasuras urbanas no texto-urbe. p. 121138. 133 assumiram posturas de matilhas13, com menos hierarquias, restrição de números de indivíduos, dispersões, metamorfoses qualitativas e forças de desterritorializações. Essas potências de fuga acabaram por ocupar espaços-outros, fora da caixinha revitalizada, produzindo subjetividades de rasuras no novo cenário festivo da Ribeira. Em meio a esse processo de construção de um espaço estetizado na Rua Chile, o Beco da Quarentena seguiu carregando o estigma da peste, da morte, da prostituição barata, do medo e do abandono. Mesmo com diversas obras de reconstrução e reforma da estrutura física de vários casarões da Rua Chile, nenhuma iniciativa oficial efetiva foi direcionada para o Beco. Este, já com as portas e janelas dos antigos puteiros14 lacradas com tijolos e cimentos, continuou envolto em uma bruma, uma mensagem invisível e silenciosa, um agenciamento de interdição, que inibia a entrada de muitas pessoas que transitavam pelas festas da Rua Chile. O Beco se afirmava, naquele cenário, como uma potente rasura no texto-urbe festivo, restaurado e colorido. O Beco da Quarentena não é uma linha urbana de fuga, num sentido de resistência formal às várias tentativas de modernização do bairro da Ribeira. Afinal, quem frequentava seus estabelecimentos, senão os próprios moradores e trabalhadores do bairro? Ele foi sendo transformado em condição de rasura, pois sua existência e de seus mundos possíveis não neutralizaram o crescimento e transformação do bairro e da cidade, mas marcavam a existência de algo relativamente diferente, consumido, mas, ao mesmo tempo, execrado – a rasura torna a composição de um texto esteticamente feio, mas tem sua função nesse texto. Já em fins do século passado, as pensões alegres abandonaram o Beco e se espalharam por outras áreas do bairro, sendo que agora, de forma geograficamente pulverizada. Encaramos o fechamento desses estabelecimentos como uma vitória das forças urbanas disciplinantes. Não afirmamos, com isso, que havia um interesse oficial de fechamento dos puteiros do Beco, mas que agenciamentos de expressão 13 Para uma melhor compreensão das concepções de massas e matilhas aqui tratadas, ver o texto “Um só ou vários lobos?” de Deleuze e Guattari (2011). 14 Estabelecimentos voltados para a prostituição. INTERIN, v. 24, n. 1, jan./jun. 2019. ISSN: 1980-5276. Carlos Henrique Pessoa Cunha; Josimey Costa Da Silva. O Beco da Quarentena: cena de rasuras urbanas no texto-urbe. p. 121138. 134 molares atuaram para que cada vez mais aquele espaço devesse ser evitado, não só por pessoas de bem, mas por qualquer um. A partir de então, nenhuma outra iniciativa econômica ou social ocupou de forma permanente aquele espaço, o que levou a uma degradação ainda maior de sua estrutura e a proliferação de lendas urbanas envolvendo o Beco, recheadas de fantasmas de putas e bêbados que assombram o lugar – “por que não se atravessa o beco de um lado ao outro?”. Aquele espaço era cada vez mais rasura, fuga. Diversos poemas, contos e reportagens em blogs seguem ainda falando sobre ele e, na maior parte dessas referências, emergem ainda as imagens sobrecodificadas de decadência, como por exemplo, no texto publicado, em 2006, por Barreto: Na Ribeira há um caminho torto, feio, escuro. É a Travessa da Quarentena, onde, há muito, muito tempo, os deuses desvairados do sexo barato faziam ali suas orgias. O Beco da Quarentena, como ficou na lembrança popular, é esse falido porão da cachaça barata e das mulheres de todos e de ninguém. Ali, vez por outra, passantes cortam caminho, num atalho sem futuro. Ali, quem sabe, nas noites da velha Ribeira, fantasmas de bêbados e marias se juntam. E dançam sua dança de cachaça15. Diante dessa condição de total rasura, o Beco passou a ser envolto por uma força molar de captura retrotópica sobrecodificante, que cada vez mais declarava a necessidade de revitalizá-lo, pois ali estava parte da história da cidade. Esse agenciamento de expressão motivou ações como a lavagem do Beco da Quarentena16, uma iniciativa cultural de muitos grupos envolvidos no Circuito Cultural Ribeira. Este evento teve a sua primeira edição na terça-feira de carnaval de 2011. Na terceira edição, no domingo, 01 de maio de mesmo ano, vários artistas e grupos culturais, como por exemplo, a Rosa de Pedra, Pau&Lata e a Companhia Gira 15 Trecho do poema de Emanoel Barreto, publicado no livro Crônicas para Natal. Disponível em: <https://goo.gl/kozeok>. Acesso em: 03 set. 2018. 16 Alguns vídeos foram produzidos acerca desse evento e foram publicados na internet. Disponível em: <https://goo.gl/9sThQV>. Acesso em: 13 set. 2018. INTERIN, v. 24, n. 1, jan./jun. 2019. ISSN: 1980-5276. Carlos Henrique Pessoa Cunha; Josimey Costa Da Silva. O Beco da Quarentena: cena de rasuras urbanas no texto-urbe. p. 121138. 135 Dança, realizaram um grande cortejo artístico que partiu do bar Buraco da Catita e se dirigiu ao Beco. Lá chegando, realizaram uma festa, uma celebração, quase religiosa, em homenagem ao espírito daquele lugar, à sua história, às pessoas que por ali efetivaram suas existências e seus desejos e também perderam suas vidas. Poderosos tambores ecoaram, emanando intensas vibrações, acompanhados por cantos de múltiplas vozes, que diziam, por exemplo: “Tá de bobeira, vem pra Ribeira, que o Circuito vai rolar. É a lavagem do Beco da Quarentena, vamos com arte lavar…”17. Acerca desse evento, no dia seguinte, Tavares fez um potente relato em seu blog: Naquela hora, os tambores pararam e o canto em língua africana subiu aos céus, numa celebração linda, que arrastou não somente os artistas mas o público que estava também misturado com o cortejo. Quando eu vi aquele beco onde já se passou tanta tragédia, onde já reinou a imundície, a desordem, a prostituição, que é usado como banheiro público e onde os seres humanos no último estágio da degradação vão se drogar, pois bem, quando eu vi aquele espaço iluminado, banhado com água de cheiro e perfumado com talco, com o cântico poderoso e ancestral se elevando e trazendo as energias da Paz, da Arte, da Alegria e da Cordialidade, eu senti que algo novo está acontecendo nessa cidade18. No final de 2012, ainda nesse movimento de captura retrotópica sobrecodificante do Beco da Quarentena, sob a iniciativa da Casa da Ribeira, foi feita uma arrecadação de dinheiro, via doações, que conseguiu financiar a produção e instalação, no centro do Beco, de um poste de iluminação e uma imponente escultura do renomado artista plástico Guaraci Gabriel, intitulada Flor na Raiz. Tal flor tem uma base de concreto com uma chapa de aço, o caule é formado por duas grossas correntes unidas por hastes de alumínio e suas pétalas formadas por firmes telas. A instalação da obra, que também ocorreu em meio a uma grande festa, parecia que simbolizaria uma ocupação definitiva do Beco pela arte e pela cultura, inspirada na revitalização retrotópica, iniciada anos antes. 17 Vídeo disponível em: <https://goo.gl/gPb9TM>. Acesso em: 13 set. 2018. Texto da escritora e teatróloga Clotilde Tavare. Disponível em: <https://goo.gl/n3NqX8>. Acesso em: 02 set. 2018. 18 INTERIN, v. 24, n. 1, jan./jun. 2019. ISSN: 1980-5276. Carlos Henrique Pessoa Cunha; Josimey Costa Da Silva. O Beco da Quarentena: cena de rasuras urbanas no texto-urbe. p. 121138. 136 Fotografia 3 – Escultura Flor na Raiz Fonte: Produzida pelo autor. Compreendemos, sem, no entanto, tecer juízo de valor, que a pretendida ocupação do Beco, era uma materialização de todo um fluxo molar de captura de subjetividades de fuga, um apagamento da rasura. Mesmo que as manifestações culturais envoltas nesse movimento utilizem um enunciado de algo underground, marginal, o que ocorreu ali foi um esforço para integrar o Beco da Quarentena no cenário colorido, festivo, capitalístico, da cena cultural da Ribeira. Havia uma busca por desativar a usina de subjetividades rasurantes atuando no Beco, vistas sempre pelas forças molares significantes como perigosas e desagregadoras, apesar de, ao mesmo tempo utilizarem essas subjetividades como produtoras de agenciamentos de expressão, enunciados, que justificavam tais ações de captura retrotópica sobrecodificante. Assim, a história do Beco da Quarentena, ao longo do século XX e início do século XXI, foi formada a partir do embate e alianças entre fluxos molares, moleculares e de fugas, diálogos (pacíficos ou não) constantes entre texto urbeformal e suas rasuras urbanas. Atualmente, transitar pelo Beco, notadamente a noite, observando a sujeira, as paredes antigas quase desabando, as antigas fachadas das casas de baixo meretrício lacradas com cimento e tijolos, a imponente escultura “Flor na Raiz”, de Guaraci Gabriel, as pichações, as fezes humanas e camisinhas usadas pelo chão, permite novos olhares, novas experiências dos espaços da Ribeira e suas relações. Tal Beco segue rasurando e produzindo, a todo momento, subjetividades rasurantes… 4 Rasurar é preciso INTERIN, v. 24, n. 1, jan./jun. 2019. ISSN: 1980-5276. Carlos Henrique Pessoa Cunha; Josimey Costa Da Silva. O Beco da Quarentena: cena de rasuras urbanas no texto-urbe. p. 121138. 137 Essa situação de rasura urbana, em nenhum caso específico estudado, não deve ser vista como algo definidora fixa, identitária – o espaço está rasura, ele não é rasura. Um determinado recanto urbano pode ser ocupado por desejos, maquinações e práticas rasurantes, num dado momento, para logo em seguida ser caputurado por forças molares sobrecodificantes, e depois ser transfigurado novamente em fuga, num movimento de territorialização, desterritorialização e reterritorialização constante. Esse movimento segue dando uma dinâmica aos textos-urbes contemporâneos, movimentos de produções de subjetividades e de cada vez mais, novos territórios existenciais ou rasurantes. A existência das rasuras urbanas não significa um projeto maquinado para destruir as condições urbanísticas projetadas, o texto-urbe normatizado, nem mesmo apresenta uma força ideológica definida, assumida como resistência organizada contra as forças capitalísticas de sobrecodificação urbana. O texto-urbe formal e as rasuras urbanas não só coexistem, mas cruzam-se mutuamente, se alteram e alteramse uns aos outros, num movimento constante. Destarte, as práticas rasurantes podem ser encaradas como ações positivas, pois produzem novas existências urbanas; são traços, rabiscos que cortam, se sobrepõem e se entrelaçam com os traços normatizados e normatizadores, possibilitando uma constante (re)escrita de textosurbe, em marginália, uma incessante usina de subjetividades e possibilidades de efetuação dos desejos nas polis. Rasurar é preciso! O Beco da Quarentena seguiu sendo cruzado, ao longo de sua história, por forças molares de sobrecodificação, de exclusão, de interdição. Espaço (mal)dito, perigoso, insalubre, a partir de forças de expressão agenciadas, que lutam para combater e descredibilizar tudo aquilo que lhe foge ao controle. Precisamos, entretanto, borrar essa tela sombria historicamente pintada em relação a esse espaço, e considerar que muitas pessoas, ao longo de décadas, moraram, trabalharam, gozaram, se embriagaram e se divertiram naquela estreita via. Ela não é um vale das sombras e da morte apenas, mas, sim, um espaço ocupado por subjetividades e práticas que não se adequavam com projetos e mesmo com as condutas bem aceitas pelas diversas sociedades que ocuparam a Ribeira ao longo do século XX e XXI. REFERÊNCIAS INTERIN, v. 24, n. 1, jan./jun. 2019. ISSN: 1980-5276. Carlos Henrique Pessoa Cunha; Josimey Costa Da Silva. O Beco da Quarentena: cena de rasuras urbanas no texto-urbe. p. 121138. 138 BAUMAN, Zygmunt. Retrotopia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2017. CUNHA, Carlos H. P. 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