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O Beco da Quarentena: cena de rasuras
urbanas no texto-urbe
The Beco da Quarentena: sceneofurbanscribbles
in the urbe-text
Carlos Henrique Pessoa Cunha
Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte, Brasil. Doutorando em Ciências
Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil. E-mail: ch.pc@hotmail.com
Josimey Costa Da Silva
Professora e Pesquisadoranos programas de Pós-graduação em Estudos da Mídia e em Ciências Sociais na Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, Brasil. Doutora em Ciências Sociais/Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
Brasil. Pós-doutorada em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. E-mail:
josimeycosta@gmail.com
Resumo:
O conceito de rasuras urbanas e suas conexões com os processos de constituição dos
espaços urbanos e suas produções de subjetividades são as questões centrais deste
artigo. Buscamos tensionar as narrativas urbanas com foco em projetos urbanísticos
disciplinantes, programas de captura retrotópica sobrecodificante de centros
históricos e territorializações existenciais molares. Pensamos outras possibilidades de
experienciar, comunicar-se e consumir o urbano, entrevendo e fazendo emergir
textos urbanos rasurados, mas compossíveis. Propomos os conceitos de rasuras
urbanas – ações positivas, produtoras de novas realidades, subjetividades e
possibilidades para os desejos nas polis – e de captura retrotópica sobrecodificante
em oposição à ideia de revitalização de espaços urbanos. Construímos uma análise
no âmbito da microhistória sobre o Beco da Quarentena, no bairro da Ribeira (NatalRN).
Palavras-chave:
Rasuras urbanas; Subjetividades; Captura retrotópica sobrecodificante; Beco da
Quarentena.
Abstract:
The urban scribbles concept and their connections with the processes of constitution
of urban spaces and their productions of subjectivities are the central questions of
this work. We tried to stress the urban narratives focusing on urbanistic disciplinary
projects, programs of retrotopic capture of overcoding historical centers and
existential molar territorializations. We also think about other possibilities of
experiencing, communicating and consuming the urban, by interviewing and making
urban texts that are scribbled but compossible. We still propose the concepts of urban
scribbles – positive actions, producers of new realities, subjectivities and possibilities
for the desires in the polis – and overcoding retrotopic capture as opposed to the idea
of revitalization of urban spaces to construct a microhistory analysis about Beco da
Quarentena, in the neighborhood of Ribeira (Natal-RN).
INTERIN, v. 24, n. 1, jan./jun. 2019. ISSN: 1980-5276.
Carlos Henrique Pessoa Cunha; Josimey Costa Da Silva. O Beco da Quarentena: cena de rasuras urbanas no texto-urbe. p. 121138.
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Keywords:
Urban scribbles; Subjectivity; Retrotopicovercoding capture; Beco da Quarentena.
1 A escrita do texto-urbe
As cidades são grandes textos, sempre inacabados, sempre em fluxos e em
conflitos – os quais, embora sigam sendo capturados por regras sintáticas e
semânticas normatizantes, são também construídos a partir do enlace de desejos e
afetos que cruzam e explodem seus autores – produção de rasuras. Logo, o texto
urbano é constantemente atravessado por essas linhas de fuga, inicialmente
indomáveis, produzidas por mãos nômades cuja ação, por vezes, rompe com a ordem
da escrita formal. Nesse momento de ruptura, algo novo é maquinado, produzido e
consumido, um não-texto, um texto urbano-outro, que não é pura rasura nem puro
texto formal.
As rasuras urbanas não são produzidas para destruir as condições urbanísticas
projetadas, nem mesmo têm um caráter de luta ideológica e de resistência formal.
Elas são ações positivas, pois produzem novas realidades, subjetividades e
possibilidades de efetuação dos desejos nas polis. Por essa ótica, as cidades, em seus
movimentos de ocupações, reocupações, consumos e comunicações, estão longe de
serem obras apenas de uma linha de força rígida que se impõe, produz e codifica
espaços homogêneos e projetados. Existem os espaços-outros, os espaços-fuga, as
utopias localizadas (heterotopias), as rasuras urbanas, que maquinam novas
subjetividades, ou seja, novas possibilidades de existência. Em outras palavras, as
rasuras conferem novos movimentos ao texto-urbe; todavia, isso não implica dizer
que o plano urbanístico disciplinador é negado, mas que disciplina e fuga coexistem.
Aqui, iremos nos apropriar do conceito de subjetividade discutido por Guattari,
quando este propõe uma definição provisória de subjetividade como sendo:
O conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais
e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial
autorreferencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma
alteridade ela mesma subjetiva (2012, p. 19).
Debater acerca dessas rasuras urbanas e suas conexões com os processos de
constituição dos espaços urbanos e suas produções de subjetividades irrompe como
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uma questão central neste artigo. Buscamos tensionar as narrativas urbanas, focadas,
por exemplo, em projetos urbanísticos disciplinantes, programas de capturas
retrotópicas
sobrecodificantes1
de
centros
históricos,
planos
diretores,
territorializações existenciais molares, a fim de lançarmos o olhar para as outras
possibilidades de viver, experienciar, se comunicar e consumir o urbano – textos
urbanos rasurados, mas compossíveis. Para essa discussão, propomos os conceitos de
rasuras urbanas e capturas retrotópicas sobrecodificantes, tomando como
possibilidade de experiências empíricas o espaço conhecido como Beco da
Quarentena, no bairro da Ribeira, em Natal-RN. Partimos de uma breve análise no
âmbito da microhistórica como proposto por Deleuze e Guattari (2012) e que
aplicamos a esse bairro e ao referido beco.
Não nos deteremos aqui a uma narrativa histórica minuciosa acerca do bairro
mencionado, nem do Beco da Quarentena, numa perspectiva da macrohistória
significante (macropolítica), norteada por forças molares, com suas explicações
ancoradas em buscas por organizações, estruturas identitárias binárias, homogêneas e
por representações explicativas de uma dada existência. Vamos singrando o passado
como uma nau da micropolítica, em busca de perceber as linhas moleculares ou de
fugas, que atuaram no processo histórico, aquilo que vazou, que escapou dos
aparelhos de estado, das máquinas sobrecodificantes. Aqui, dialogando visceralmente
com Deleuze e Guattari, consideramos como tarefa do historiador:
[...] assinalar o período de coexistência ou de simultaneidade dos dois
movimentos (de um lado descodificação-desterritorialização e, de outro,
sobrecodificação-reterritorialização), pois é nesse período que se
distingue o aspecto molecular do aspecto molar (2012, p. 110).
Nesse debate sobre macro e micropolítica, tomamos como conexão teórica o
texto “Micropolítica e Segmentaridade”, de Deleuze e Guattari, que alerta para o fato
de que micro e macro, nessa discussão, não tratam de dimensões dos elementos ou da
cronologia. Segundo estes autores:
Elaboramos esse conceito em oposição ao conceito de “revitalização”. Discutiremos melhor acerca
dele, no decorrer deste artigo.
1
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[…] a diferença entre uma macrohistória e uma microhistória não
concerne de modo algum o tamanho das durações consideradas, o grande
e o pequeno, mas sistemas de referência distintos, conforme se considere
uma linha sobrecodificada de segmentos ou um fluxo mutante de quanta
(2012, p. 110-111).
Sendo
assim,
sobrecodificações,
mesmo
seguindo
descodificações,
mapeando
esses
territorializações,
cruzamentos,
desterritorializações,
reterritorializações, das linhas de segmentarização que atuaram sobre a formação do
espaço conhecido como Beco da Quarentena, ao longo de todo século XX e início do
século XXI, atuaremos numa condição de micro-história, micropolítica.
2 “Onde os deuses desvairados do sexo barato faziam ali suas orgias”
O bairro da Ribeira constitui uma parte do perímetro mais antigo do
povoamento da cidade de Natal. Até final do século XIX, uma grande parte desse
bairro era banhada pelas águas do rio Potengi, formando em alguns momentos um
grande pântano (CUNHA, 2014). No início do século XX, essas condições foram
alteradas após várias obras urbanas, movidas pelos recém-nascidos governos
republicanos, que autoproclamavam-se porta-vozes dos discursos de modernidade,
como por exemplo, a pavimentação e alargamento de ruas e avenidas, edificação de
imponentes prédios, como o do Teatro Carlos Gomes, a drenagem parcial do pântano
da campina e a construção da Praça Augusto Severo e do cinema Polytheama, o
melhoramento do porto da cidade, no final da Av. Tavares de Lyra, e dos sistemas de
fornecimento de água e energia.
As alterações físicas urbanísticas foram acompanhadas por transformações
profundas no modo de viver, pensar e consumir esse espaço. Aos poucos, cada vez
mais lojas de artigos de luxo, como chapéus, roupas, artigos pessoais, importados da
Europa ou de centros como Recife, Rio de Janeiro e São Paulo, agitavam o comércio
e embelezavam donzelas e cavalheiros que circulavam pelas ruas reformadas da
Ribeira e pela arborizada Praça Augusto Severo (CUNHA, 2014). Novas
subjetividades foram sendo maquinadas ao longo dos anos 1930 e 1940, o que
corrobora com as análises de Lazzarato, quando este afirma que “a produção material
representa um tipo de complexo industrial para a produção de subjetividade” (2014,
p. 13). Dessarte, não podemos anuir a separação clara e definida entre produção
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material e produção de subjetividades, por não considerá-los como realidades
antagônicas: ambas se entrecuzam, retroalimentam-se e compõem uma grande
máquina urbana.
Ativos agenciamentos coletivos de enunciação – produção de signos – e
agenciamentos maquínicos2 – produção de corpos – foram mobilizados para a
construção de um novo mundo – a cidade e o cidadão moderno. No final da década
de 1930, Natal já respirava essa subjetividade de modernidade, não só em seu traçado
e projetos urbanístico, mas, também, na proliferação de diversificados espaços de
sociabilidade, nas formas de consumir a cidade, em livrarias, cinema, teatro, nos
bancos da Praça Augusto Severo, etc. Ainda que esse consumo de luxo tenha
ganhado força na Ribeira, foi o segmento noturno e boêmio que mais se destacou na
vida cotidiana do bairro. Na Ribeira funcionava um grande número de bares, cafés,
bilhares e cabarés, as chamadas pensões alegres3, que contribuíram decisivamente
para transformar os desejos, os possíveis, a vida cotidiana efetivada no bairro, que
cada vez mais se aquecia após o crepúsculo.
A Natal moderna, civilizada e elegante, que desejava se assemelhar à Paris da
Belle Èpoque4 não conseguia neutralizar as forças que fugiam e escorregavam por
entre os dedos disciplinantes. Rasuras urbanas que produziam incessantemente novas
realidades,
novos
territórios
existenciais,
ora
desterritorializantes,
ora
reterritorializantes. Os territórios existenciais são agenciados a partir de gestos,
afetos compartilhados, modos de agir, produções materiais, que sistematizam uma
espécie de ritual, uma composição, uma máquina, que causa impressões de
familiaridade, um sentir-se em casa que, nas palavras de Rolnik, “é efeito de uma
série de imperceptíveis processos de simulação que se puseram a funcionar, ao
mesmo tempo e sucessivamente” (2014, p. 32).
2
Discutimos acerca das diversas formas de agenciamentos a partir da obra de Deleuze e Guattari
(2011b).
3
Diversos cabarés foram inaugurados, como o Arpege, o Wonder Bar e Maria Boa (este localizava-se
na Cidade Alta), bem como tantas outras pequenas casas de prazer, nas imediações da Rua Chile e
Tavares de Lyra.
4
A Avenida Tavares de Lyra chegou a ser apelidada popularmente de a Champs Élysées potiguar.
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Fotografia 1 – Beco da Quarentena
Fonte: site Overmundo5.
Nesse cenário, podemos iniciar um olhar mais direcionado para a Travessa da
Quarentena (fotografia 1), que já foi chamada de Rua das Donzelas e hoje é mais
popularmente conhecida como Beco da Quarentena. Uma estreita via enlameada de
25 metros de comprimento, um antigo portal escuro, que interliga duas importantes e
dinâmicas ruas do bairro da Ribeira, as ruas Chile e Frei Miguelinho. Por ficar a
poucos metros do cais do porto da cidade, a travessa, no início do século passado,
recebia a visita de muitos marinheiros que chegavam de viagens, ou de moradores da
cidade mesmo, com doenças venéreas ou outros males contagiosos, como a varíola, e
precisavam ficar de quarentena nos navios, ou transitando apenas nas imediações do
cais.
A partir da metade do século XX, a travessa se consolidou como um ponto de
baixo meretrício, conhecido como o Beco da Quarentena. Enquanto outros cabarés
da cidade, como o Arpege, o Wonder Bar, ambos na Rua Chile, e o Maria Boa, na
Cidade Alta, cresciam e recebiam visitantes com um poder aquisitivo mais alto e
membros do oficialato militar, o Beco da Quarentena atendia a um público de baixa
renda ou doente. Segundo Sr. Porpino, um antigo frequentador das noites da Ribeira,
“o cara dizia que, quando trepava6 lá, já vinha com uma dosagem de penicilina”
(informação verbal)7. Doenças, bebedeiras, violência e mortes marcavam os dias e
noites do Beco, fazendo-o figurar no rol sobrecodificado dos espaços malditos da
5
Disponível em: <https://goo.gl/bPSNiY>. Acesso em: ago. 2018.
Praticar ato sexual.
7
Entrevista concedida ao autor em 04 jun. 2013.
6
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cidade. Em março de 1979, Saraiva publicou o poema “Cantilena do Beco da
Quarentena”, que se referia ao Beco nos seguintes termos:
[...] Ainda nas calças curtas, residindo na Ribeira
As mulheres davam sopa, vivendo numa bebedeira
Minha vida tinha início, no antro da buraqueira.
[...] Sem ter pra quem apelar, a miséria ali reinava
Jamais a saúde pública, naquele beco passava
Por isso é que uma criança, perdida no mundo estava.
[...] A polícia era constante, dava ronda a noite inteira
Mas nunca evitou as brigas, vivendo de tal maneira
Que muitas mortes ali houve, por causa de bebedeira.
No outro dia, os jornais, lamentavam, tinham pena
Dando notas alarmantes, a coluna era pequena
Pra contar as suas brigas, no beco da quarentena.
[...] As mulheres mais formosas, daquele beco infernal
Tinham os nomes mais lindos, que conheci em Natal
Rosa, Judith, Jurema, Jaqueline, e Marial.
Iracema e Jacira, Julimar, Inês, Bonina.
Iraci, Branca e Maria, Isabel, Mara e Alvina
Inês, Pureza, Cecí, Alice, Marte, Vanina.
Foram mulheres da vida, eu de todas tinha pena
Pela fome que passavam, como um bando de falena
Vivendo desabrigadas, no beco da quarentena.
[...] Quarentena! És um inferno, que os bichos-homens criaram
No reinado da miséria, suas vidas estragaram
Infelizes dos mortais, que naquele beco andaram.
Quantas vidas preciosas, no beco da perdição
Tiveram sua má sorte, pois não indo pra prisão
Findavam no cemitério, sem ter uma extrema-unção.
[...] Pederastas, cafetinos, maconheiros afamados
Frequentavam o tal beco, sendo bastante estimados
Avistando com seus homens, com os quais eram amigados.
[...] Me despeço dos amigos, motivado de emoções
No beco da quarentena, tem mulheres e violões
Muita cachaça e maconha, pederastas e ladrões!8
Natal cresceu e se urbanizou cada vez mais, notadamente após a chegada dos
militares estadunidenses, durante a Segunda Guerra Mundial9. Essa expansão foi
8
Nesse poema, Gumercindo Saraiva descreve o seu cotidiano, ao lado de alguns seus amigos, quando
eram frequentadores assíduos das “diversões” no Beco da Quarentena. Texto integral disponível em:
<https://goo.gl/DE4TPZ>. Acesso em: 30 ago. 2018.
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seguida por tentativas de ordenar o espaço urbano e seus usos (NATAL, 2007).
Regras para o hábitat foram discutidas e implantadas, e a população natalense, uma
parte financeiramente mais elevada dela, notadamente em fins dos anos 1950, iniciou
um movimento de transferência das suas residências para bairros nascentes como
Tirol e Petrópolis, distanciando-se cada vez mais das forças boêmias e marginais que
avançavam sobre a Ribeira – forças moleculares e, por vezes, de fuga, que abalavam
as tentativas de transformar a Ribeira num bairro mais glamouroso, aos olhos da elite
social natalense.
Não obstante o comércio de atacado se consolidar como atividade econômica
dominante no bairro, assim como a presença de vários órgãos públicos, espaços
como o Beco da Quarentena mantiveram-se em atuação, assumindo cada vez mais,
mesmo sem ser esse o objetivo, uma força de rasura urbana, traços, rabiscos que
cortavam, sobrepunham-se, entrelaçavam-se, com os traços normatizados e
normatizadores, possibilitando a constante (re)escrita de textos-urbe em marginália.
Forças molares, segmentarizantes binárias, agenciamentos de enunciação, seguiram
atuando na Ribeira, classificando, rotulando, sobrecodificando os espaços e as
pessoas, como por exemplo, diversas normas urbanísticas, forças capitalísticas,
reportagens de jornais, poemas, como o de Gumercindo Saraiva, citado
anteriormente, ou relatos, como o texto publicado por Onofre Júnior, intitulado
Breviário da Cidade do Natal, quando o autor se referiu ao Beco, no capítulo A
Zona, da seguinte maneira:
A “Quinze de Novembro” e o “Beco da Quarentena” são locais
característicos, barra pesada. O burlesco e o trágico coexistindo. Cenas
patéticas, brigas, navalhas. Atmosfera trevisaniana em grau superlativo.
E, quem sabe, deve haver amor, ternura. Pois, como disse Xica Pirrita,
“rapariga também é fííí de Deus.
[...] O velho beco, com seu “claro mistério”, continua maldito. As pessoas
decentes o evitam, até mesmo durante o dia, como se o vissem ainda
empestado. Que peste era essa e por que não se atravessa o Beco de um
lado a outro? (1984, p. 95-96).
O campo aéreo de Parnamirim – Parnamirim field – e a cidade de Natal serviram de base militar
estadunidense entre os anos de 1942 e 1945. Durante esses anos, a economia local cresceu
vertiginosamente. O comércio da cidade se expandiu, com a presença dos militares, sedentos por
prazeres que atenuassem as tensões da guerra, e que constantemente frequentavam as noites quentes
do bairro da Ribeira, em Natal. Para um aprofundamento sobre essa vida social desses militares e suas
relações com os habitantes de Natal, durante a Segunda Guerra Mundial, ver PEDREIRA (2005).
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Ao longo dos anos 1980, a cidade se expandiu em várias direções, com o
crescimento de novos bairros. O bairro da Cidade Alta se consolidou como polo do
comércio varejista, para logo depois perder esse posto para o movimento de
surgimento de shopping centers na zona sul de Natal. E a Ribeira? Esta mantinha-se
em plena atividade comercial, notadamente diurna. Entretanto, com a despedida dos
raios solares, um novo território existencial emergia das sombras. Bêbados,
mendigos, drogados, traficantes, prostitutas, boêmios, funcionários dos órgãos
públicos localizados no bairro, intelectuais, encontravam nas ruas da Ribeira formas
múltiplas de efetuarem seus desejos10; desejos de sexo barato, de embriaguês, de
descontração, como também desejos de (re)viver um passado, idealizadamente
glorioso, perdido, por entre as ruas sujas, escuras e soturnas da Ribeira. Os velhos
casarões em ruínas inspiravam sentimentos de nostalgia em muitos dos que se
aventuravam por aquelas paragens. Nesse sentido, Guattari considera que:
Quer tenhamos consciência ou não, o espaço construído nos interpela de
diferentes pontos de vista: estilístico, histórico, funcional, afetivo… Os
edifícios e construções de todos os tipos são máquinas enunciadoras. Elas
produzem uma subjetivação parcial que se aglomera com outros
agenciamentos de subjetivação (2012, p. 140).
As potências, os signos produzidos, as práticas experienciadas no bairro da
Ribeira, especificamente à noite, ao longo dos anos 1980 e metade dos anos 1990,
rasuravam o texto-urbe natalense, era marginália em profusão; transformavam aquele
espaço em algo a ser evitado pelas pessoas de bem da cidade, parafraseando Onofre
Júnior (1984). Como se as palavras desse escritor, direcionadas, em 1979, para o
Beco da Quarentena, ecoassem agora sobre todo o bairro, sobrecodificando-o,
estigmatizando-o. Aqui, o alcance da rasura urbana se expandiu; tais rasuras não são
fixas, não respondem às normas, limites, dilatam-se e se comprimem,
desterritorializam e reterritorializam, dependendo dos agenciamentos a que se
relacionam, que máquinas de subjetivação produzem.
3 Captura retrotópica sobrecodificante, rasuras contemporâneas
10
A noção de desejo, aqui considerada, dialoga com as discussões de Rolnik (2014), quando esta
afirma que o “desejo é a própria produção do real social” (p. 58) e que “o desejo só funciona em
agenciamento” (p. 37).
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Bauman (2017), pensando a atualidade, discute acerca das buscas
desesperadas por segurança, estabilidade e felicidade e aponta para uma descrença
em relação ao futuro, uma crise dos Estados-Nação e das utopias então propostas.
Para ele, esse futuro se apresenta cada vez mais como incerto e ameaçador para as
novas gerações, causando uma inversão nos olhares utópicos. Conforme afirma esse
autor, “o século XX começou com uma utopia futurista e acabou com nostalgia”
(2017, p. 8); ou seja, seu início foi contaminado por uma fé cega no progresso, no
futuro redentor da ciência e da tecnologia. Entretanto, o alvorecer do século XXI
exalou (e ainda exala) um pessimismo em relação aos Estados, aos políticos
tradicionais, aos partidos políticos, aos sindicatos, às igrejas, às velhas utopias. Dessa
forma, uma subjetividade nostálgica motiva com cada vez mais força uma busca por
revivals – REvitalizações, REtrospectivas, moda REtrô, REmakes, REedições –
fazendo surgir anseios pelo retorno de um suposto passado glorioso, uma era de ouro
já perdida, os bons tempos, ou seja, utopias do passado – Retrotopias.
A retrotopia, esse fluxo molar, duro, segmentarizante, sobrecodificante,
territorializante e reterritorializante, vai atuar também diretamente sobre a ocupação
urbana, notadamente em relação aos chamados Centros Históricos. Para nos
referirmos ao processo de reocupação dos centros históricos, propomos o conceito de
Capturas Retrotópicas Sobrecodificantes. Elaboramos esse conceito em oposição
direta à difundida ideia de revitalização. O uso do termo revitalização é bastante
criticado por muitos estudiosos acerca desse movimento de reocupação dos centros
históricos urbanos, pois o mesmo pressupõe uma morte de um dado espaço urbano,
seguido de um retorno à vida (revitalização). Questionamos esse termo por
considerarmos que esses espaços nunca morreram de fato, mas, sim, passaram a ser
ocupados e experienciados por segmentos da sociedade e suas produções de
subjetividades e territorializações existenciais, não considerados nas análises oficiais,
técnicas urbanísticas e midiáticas.
As Capturas Retrotópicas Sobrecodificantes ganharam força inicialmente em
Londres e Nova Iorque, desde o fim dos anos 1960 e início dos anos 1970, tendo
uma classe média yuppie como pioneiros. No caso da América Latina, os poderes
públicos foram os coordenadores de tais processos. No Brasil, o lançamento do
Programa Cidades Históricas (PCH), em 1973, pode ser visto como um precursor
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desse movimento de tentativa de preservação, reocupação e exploração econômica
dos Centros Históricos urbanos.
Seguindo nesse fluxo molar retrotópico, no final dos anos 1980, as propostas
de intervenções no bairro da Ribeira, em Natal, passaram a ser discutidas, tendo
como marco, a Lei n. 4.932 (1997), que sistematizou a Operação Urbana Ribeira da
qual fazia parte o “Projeto Fachadas da Rua Chile”, que operacionalizou a reforma e
pintura de quase todos os casarões da Rua Chile e a troca de parte do seu calçamento,
alterando profundamente suas condições físicas.
Essa tentativa de aprisionar arbitrariamente o tempo num recanto urbano,
mediante reforma de fachadas de casas e estruturas físicas, constitui-se como uma
máquina de produção de novos mundos, ancorados em (re)leituras de mundos
passados idealizados. Dando passagem aqui aos estudos de Guattari, que considera
que “toda leitura do passado é necessariamente sobrecodificada por nossas
referências no presente” (2012, p. 114), bem como que “a desterritorialização é uma
marca do homem contemporâneo” (2012, p. 149), somos levados a perceber que as
obras de reforma das estruturas físicas de vários casarões e da própria Rua Chile
estiveram ligadas muito mais a agenciamentos de enunciação e maquinações
capitalísticas, do que propriamente à restauração de uma suposta terra natal – pois
essa restauração da origem não se faz mais possível, uma vez que, ainda segundo
Guattari, “esses territórios etológicos originários não estão mais dispostos num ponto
preciso da terra, mas se incrustam, no essencial, em universos incorporais” (2012, p.
149).
Fotografia 2 – Largo da Rua Chile, após Programa Fachadas da Rua Chile
Fonte: Projeto ReHabitar em Natal. SEMURB, 2008, p. 36.
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As obras do “Projeto Fachadas da Rua Chile” foram acompanhadas por um
forte movimento capitalístico de abertura de bares, boates e realização de eventos na
Rua Chile, produzindo novas e potentes subjetividades, territórios existencias que
sobrecodificaram não só a dita rua, mas todo o bairro da Ribeira, que agora era
territorializado a partir do rock, pop, reggae e suas máquinas de expressão, seus
enunciados, toda uma subjetivação coletiva.
Os interesses do mercado e os afetos que explodiram nos eventos da Rua
Chile produziram uma potente máquina de captura de subjetividades; um aparelho de
estado11, um fluxo molar, que lutava sempre para estriar os espaços, organizá-los,
homogeneizá-los e territorializá-los, apesar de um agenciamento de enunciação atuar
na consolidação de uma ideia de espaço de liberdade, referindo-se à Ribeira – “A
Ribeira parece que liberta”12, escreveu Henrique Fontes, um atuante produtor cultural
do bairro. Ao nosso ver, produziu-se uma falsa ideia de liberdade na Ribeira. Falsa,
pois os afetos, as experiências de comunicação, exposição, consumo no e do espaço
aceitas e valorizadas, eram apenas aquelas que estavam no leque dos vários mundos
possíveis, oferecidos pelos organizadores de eventos, donos de bares e boates e poder
público. Barricadas dispostas para disciplinar o tráfego de pessoas, tentativas de uso
privado do Largo da Rua Chile, combate à circulação de vendedores ambulantes, por
parte de empresários e produtores de eventos, dentre tantas outras práticas,
produziam uma liberdade controlada, disciplinada, que tentava neutralizar as forças
moleculares e de fugas.
Não obstante, essas ações de sedentarização dos desejos, de estriamento e
controle do espaço, uma máquina de guerra nômade, produtora de rasuras, seguiu
rompendo as muralhas, se entrelaçando com os sedentários, atuando em marginália e
rasurando aquele texto-urbe embelezado e empacotado para um consumo específico,
selecionado, estetizado e, na medida do possível, homogeneizado. Indivíduos e
grupos, por vezes, abandonaram a condição de massas, organizadas, com
sociabilidades de conjuntos, com unicidade de direção e produção de signos, e
11
Estamos aqui discutindo Aparelho de Estado X Grupos Nômades, Espaço Liso X Espaço Estriado, a
partir dos escritos de Deleuze e Guattari, em Mil Platôs V (2012b).
12
Disponível em: <https://goo.gl/pzYh7h>. Acesso em: 09 set. 2018.
INTERIN, v. 24, n. 1, jan./jun. 2019. ISSN: 1980-5276.
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assumiram posturas de matilhas13, com menos hierarquias, restrição de números de
indivíduos, dispersões, metamorfoses qualitativas e forças de desterritorializações.
Essas potências de fuga acabaram por ocupar espaços-outros, fora da caixinha
revitalizada, produzindo subjetividades de rasuras no novo cenário festivo da
Ribeira.
Em meio a esse processo de construção de um espaço estetizado na Rua
Chile, o Beco da Quarentena seguiu carregando o estigma da peste, da morte, da
prostituição barata, do medo e do abandono. Mesmo com diversas obras de
reconstrução e reforma da estrutura física de vários casarões da Rua Chile, nenhuma
iniciativa oficial efetiva foi direcionada para o Beco. Este, já com as portas e janelas
dos antigos puteiros14 lacradas com tijolos e cimentos, continuou envolto em uma
bruma, uma mensagem invisível e silenciosa, um agenciamento de interdição, que
inibia a entrada de muitas pessoas que transitavam pelas festas da Rua Chile. O Beco
se afirmava, naquele cenário, como uma potente rasura no texto-urbe festivo,
restaurado e colorido.
O Beco da Quarentena não é uma linha urbana de fuga, num sentido de
resistência formal às várias tentativas de modernização do bairro da Ribeira. Afinal,
quem frequentava seus estabelecimentos, senão os próprios moradores e
trabalhadores do bairro? Ele foi sendo transformado em condição de rasura, pois sua
existência e de seus mundos possíveis não neutralizaram o crescimento e
transformação do bairro e da cidade, mas marcavam a existência de algo
relativamente diferente, consumido, mas, ao mesmo tempo, execrado – a rasura torna
a composição de um texto esteticamente feio, mas tem sua função nesse texto.
Já em fins do século passado, as pensões alegres abandonaram o Beco e se
espalharam por outras áreas do bairro, sendo que agora, de forma geograficamente
pulverizada. Encaramos o fechamento desses estabelecimentos como uma vitória das
forças urbanas disciplinantes. Não afirmamos, com isso, que havia um interesse
oficial de fechamento dos puteiros do Beco, mas que agenciamentos de expressão
13
Para uma melhor compreensão das concepções de massas e matilhas aqui tratadas, ver o texto “Um
só ou vários lobos?” de Deleuze e Guattari (2011).
14
Estabelecimentos voltados para a prostituição.
INTERIN, v. 24, n. 1, jan./jun. 2019. ISSN: 1980-5276.
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molares atuaram para que cada vez mais aquele espaço devesse ser evitado, não só
por pessoas de bem, mas por qualquer um.
A partir de então, nenhuma outra iniciativa econômica ou social ocupou de
forma permanente aquele espaço, o que levou a uma degradação ainda maior de sua
estrutura e a proliferação de lendas urbanas envolvendo o Beco, recheadas de
fantasmas de putas e bêbados que assombram o lugar – “por que não se atravessa o
beco de um lado ao outro?”. Aquele espaço era cada vez mais rasura, fuga. Diversos
poemas, contos e reportagens em blogs seguem ainda falando sobre ele e, na maior
parte dessas referências, emergem ainda as imagens sobrecodificadas de decadência,
como por exemplo, no texto publicado, em 2006, por Barreto:
Na Ribeira há um caminho torto, feio, escuro.
É a Travessa da Quarentena, onde, há
muito, muito tempo, os deuses desvairados
do sexo barato faziam ali suas orgias.
O Beco da Quarentena, como ficou na
lembrança popular, é esse falido porão
da cachaça barata e das mulheres de todos
e de ninguém.
Ali, vez por outra, passantes cortam
caminho, num atalho sem futuro.
Ali, quem sabe, nas noites da velha Ribeira,
fantasmas de bêbados e marias se juntam.
E dançam sua dança de cachaça15.
Diante dessa condição de total rasura, o Beco passou a ser envolto por uma
força molar de captura retrotópica sobrecodificante, que cada vez mais declarava a
necessidade de revitalizá-lo, pois ali estava parte da história da cidade. Esse
agenciamento de expressão motivou ações como a lavagem do Beco da
Quarentena16, uma iniciativa cultural de muitos grupos envolvidos no Circuito
Cultural Ribeira. Este evento teve a sua primeira edição na terça-feira de carnaval de
2011. Na terceira edição, no domingo, 01 de maio de mesmo ano, vários artistas e
grupos culturais, como por exemplo, a Rosa de Pedra, Pau&Lata e a Companhia Gira
15
Trecho do poema de Emanoel Barreto, publicado no livro Crônicas para Natal. Disponível em:
<https://goo.gl/kozeok>. Acesso em: 03 set. 2018.
16
Alguns vídeos foram produzidos acerca desse evento e foram publicados na internet. Disponível
em: <https://goo.gl/9sThQV>. Acesso em: 13 set. 2018.
INTERIN, v. 24, n. 1, jan./jun. 2019. ISSN: 1980-5276.
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Dança, realizaram um grande cortejo artístico que partiu do bar Buraco da Catita e se
dirigiu ao Beco. Lá chegando, realizaram uma festa, uma celebração, quase religiosa,
em homenagem ao espírito daquele lugar, à sua história, às pessoas que por ali
efetivaram suas existências e seus desejos e também perderam suas vidas. Poderosos
tambores ecoaram, emanando intensas vibrações, acompanhados por cantos de
múltiplas vozes, que diziam, por exemplo: “Tá de bobeira, vem pra Ribeira, que o
Circuito vai rolar. É a lavagem do Beco da Quarentena, vamos com arte lavar…”17.
Acerca desse evento, no dia seguinte, Tavares fez um potente relato em seu blog:
Naquela hora, os tambores pararam e o canto em língua africana subiu aos
céus, numa celebração linda, que arrastou não somente os artistas mas o
público que estava também misturado com o cortejo. Quando eu vi aquele
beco onde já se passou tanta tragédia, onde já reinou a imundície, a
desordem, a prostituição, que é usado como banheiro público e onde os
seres humanos no último estágio da degradação vão se drogar, pois bem,
quando eu vi aquele espaço iluminado, banhado com água de cheiro e
perfumado com talco, com o cântico poderoso e ancestral se elevando e
trazendo as energias da Paz, da Arte, da Alegria e da Cordialidade, eu
senti que algo novo está acontecendo nessa cidade18.
No final de 2012, ainda nesse movimento de captura retrotópica
sobrecodificante do Beco da Quarentena, sob a iniciativa da Casa da Ribeira, foi feita
uma arrecadação de dinheiro, via doações, que conseguiu financiar a produção e
instalação, no centro do Beco, de um poste de iluminação e uma imponente escultura
do renomado artista plástico Guaraci Gabriel, intitulada Flor na Raiz. Tal flor tem
uma base de concreto com uma chapa de aço, o caule é formado por duas grossas
correntes unidas por hastes de alumínio e suas pétalas formadas por firmes telas. A
instalação da obra, que também ocorreu em meio a uma grande festa, parecia que
simbolizaria uma ocupação definitiva do Beco pela arte e pela cultura, inspirada na
revitalização retrotópica, iniciada anos antes.
17
Vídeo disponível em: <https://goo.gl/gPb9TM>. Acesso em: 13 set. 2018.
Texto da escritora e teatróloga Clotilde Tavare. Disponível em: <https://goo.gl/n3NqX8>. Acesso
em: 02 set. 2018.
18
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Fotografia 3 – Escultura Flor na Raiz
Fonte: Produzida pelo autor.
Compreendemos, sem, no entanto, tecer juízo de valor, que a pretendida
ocupação do Beco, era uma materialização de todo um fluxo molar de captura de
subjetividades de fuga, um apagamento da rasura. Mesmo que as manifestações
culturais envoltas nesse movimento utilizem um enunciado de algo underground,
marginal, o que ocorreu ali foi um esforço para integrar o Beco da Quarentena no
cenário colorido, festivo, capitalístico, da cena cultural da Ribeira. Havia uma busca
por desativar a usina de subjetividades rasurantes atuando no Beco, vistas sempre
pelas forças molares significantes como perigosas e desagregadoras, apesar de, ao
mesmo tempo utilizarem essas subjetividades como produtoras de agenciamentos de
expressão, enunciados, que justificavam tais ações de captura retrotópica
sobrecodificante.
Assim, a história do Beco da Quarentena, ao longo do século XX e início do
século XXI, foi formada a partir do embate e alianças entre fluxos molares,
moleculares e de fugas, diálogos (pacíficos ou não) constantes entre texto urbeformal e suas rasuras urbanas. Atualmente, transitar pelo Beco, notadamente a noite,
observando a sujeira, as paredes antigas quase desabando, as antigas fachadas das
casas de baixo meretrício lacradas com cimento e tijolos, a imponente escultura “Flor
na Raiz”, de Guaraci Gabriel, as pichações, as fezes humanas e camisinhas usadas
pelo chão, permite novos olhares, novas experiências dos espaços da Ribeira e suas
relações. Tal Beco segue rasurando e produzindo, a todo momento, subjetividades
rasurantes…
4 Rasurar é preciso
INTERIN, v. 24, n. 1, jan./jun. 2019. ISSN: 1980-5276.
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Essa situação de rasura urbana, em nenhum caso específico estudado, não
deve ser vista como algo definidora fixa, identitária – o espaço está rasura, ele não é
rasura. Um determinado recanto urbano pode ser ocupado por desejos, maquinações
e práticas rasurantes, num dado momento, para logo em seguida ser caputurado por
forças molares sobrecodificantes, e depois ser transfigurado novamente em fuga,
num movimento de territorialização, desterritorialização e reterritorialização
constante. Esse movimento segue dando uma dinâmica aos textos-urbes
contemporâneos, movimentos de produções de subjetividades e de cada vez mais,
novos territórios existenciais ou rasurantes.
A existência das rasuras urbanas não significa um projeto maquinado para
destruir as condições urbanísticas projetadas, o texto-urbe normatizado, nem mesmo
apresenta uma força ideológica definida, assumida como resistência organizada
contra as forças capitalísticas de sobrecodificação urbana. O texto-urbe formal e as
rasuras urbanas não só coexistem, mas cruzam-se mutuamente, se alteram e alteramse uns aos outros, num movimento constante. Destarte, as práticas rasurantes podem
ser encaradas como ações positivas, pois produzem novas existências urbanas; são
traços, rabiscos que cortam, se sobrepõem e se entrelaçam com os traços
normatizados e normatizadores, possibilitando uma constante (re)escrita de textosurbe, em marginália, uma incessante usina de subjetividades e possibilidades de
efetuação dos desejos nas polis. Rasurar é preciso!
O Beco da Quarentena seguiu sendo cruzado, ao longo de sua história, por
forças molares de sobrecodificação, de exclusão, de interdição. Espaço (mal)dito,
perigoso, insalubre, a partir de forças de expressão agenciadas, que lutam para
combater e descredibilizar tudo aquilo que lhe foge ao controle. Precisamos,
entretanto, borrar essa tela sombria historicamente pintada em relação a esse espaço,
e considerar que muitas pessoas, ao longo de décadas, moraram, trabalharam,
gozaram, se embriagaram e se divertiram naquela estreita via. Ela não é um vale das
sombras e da morte apenas, mas, sim, um espaço ocupado por subjetividades e
práticas que não se adequavam com projetos e mesmo com as condutas bem aceitas
pelas diversas sociedades que ocuparam a Ribeira ao longo do século XX e XXI.
REFERÊNCIAS
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