Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                
LÍNGUA De voz e De silêncio: DiscursiviDaDes Dos jornais Última Hora e FolHa de S.Paulo Francis Lampoglia* Valdemir Miotello** Lucília Maria Sousa Romão*** Resumo: Este artigo estuda o funcionamento dis‑ cursivo de três fotografias de capa publicadas em 1o de abril de 1965, sendo duas oriundas do jor‑ nal Última Hora e uma do jornal Folha de S.Paulo, que enfocam o primeiro aniversário do golpe mili‑ tar de 1964. Para tanto, utilizaremos como pres‑ suposto teórico a análise do discurso de matriz francesa, fundada por Michel Pêcheux. Objetiva‑ mos flagrar como as noções de silêncio e hetero‑ geneidade discursiva materializam‑se nas fotos e legendas dos recortes selecionados, observando como são tecidos sentidos na relação entre o ver‑ bal e a imagem. Palavras-chave: análise do discurso; silêncio; jornal. INTRODUÇÃO ■ ste trabalho visa construir um estudo discursivo sobre fotografias e le‑ gendas de primeira página que tratam das comemorações do aniversário de um ano da ditadura militar brasileira, sendo duas fotos oriundas do jornal Última Hora, do Rio de Janeiro, e uma do jornal Folha de S.Paulo, pu‑ * E Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade do Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos (PPGCTS/Cech/UFSCar). Fapesp (Processo n. 2010/03200-2). E-mail: francidusp@hotmail.com. ** Doutor em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor do Curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade pela Universidade de São Carlos (PPGCTS/Cech/UFSCar). 136 *** Livre-docente em Ciência da Informação e doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do curso de Graduação em Ciências da Informação e da Documentação e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP/USP). Professora colaboradora do mestrado em Ciência, Tecnologia e Sociedade da UFSCar. TODAS AS LETRAS S, v. 14, n. 1, 2012 LÍNGUA blicadas em 1o de abril de 1965. Tendo como embasamento teórico a análise do discurso (AD) de linha francesa pechetiana, focaremos em nossas análises os mecanismos de silêncio e heterogeneidade discursiva, conceitos trabalhados nessa teoria. Para tanto, iniciaremos nosso trabalho discutindo os conceitos de heterogeneidade discursiva e silêncio na teoria da AD, seguida pelas aná‑ lises, e finalizaremos, sem a pretensão de esgotar o estudo, com as conside‑ rações finais. SILÊNCIO E HETEROGENEIDADE DISCURSIVA: DISPOSITIVOS DA AD FRANCESA Fundada por Michel Pêcheux em 1969, a análise do discurso (AD) de linha francesa possui ferramentas teóricas que auxiliam o analista no estudo do pro‑ cesso discursivo, dentre eles, destacamos neste artigo os conceitos de heteroge‑ neidade discursiva e silêncio. Baseada no dialogismo, conceito amplo elaborado por Mikhail Bakhtin (2006), Authier‑Revuz (1999) trabalha a noção de heteroge‑ neidade discursiva, que tem o pressuposto de que todo dizer é construído por uma trama de dizeres heterogêneos, e a distingue em dois tipos, quais sejam, a heterogeneidade mostrada e a constitutiva. A heterogeneidade mostrada é o nível da [...] representação que um discurso dá em si mesmo de sua relação com o outro, do lugar que ele lhe dá, explicitamente, designando na sequência, através de um conjunto de marcas linguísticas, os pontos de heterogeneidade (AUTHIER-REVUZ, 1999, p. 10). Ou seja, nessa modalidade, a voz do outro está presente no dizer de forma explícita, sob as formas do discurso direto – sinalizado por marcas como aspas, dois pontos, travessão etc. – e também do discurso indireto, da ironia, do pasti‑ che, entre outros. Já na heterogeneidade constitutiva, não é possível detectar a presença do outro no discurso, apesar de ele constituir todo dizer. Recuperando a ideia bakhtiniana de que todo discurso é construído em meio a outros discursos, já que “nenhuma palavra é virgem, mas, ao contrário, carregada, ‘habitada’ pelos discursos ‘em que tenha vivido sua vida de palavra’ [...]” (AUTHIER‑REVUZ, 1999, p. 10), e que todo dizer é destinado e moldado conforme o interlocutor, Authier‑Re‑ vuz (1999, p. 10) afirma que "esse duplo dialogismo – que participa do que chamo heterogeneidade constitutiva de todo discurso – escapa larga e inevitavelmente ao enunciador e não se manifesta no fio do discurso por marcas lingüísticas". Ou seja, embora as muitas vozes não estejam explícitas na superfície do dis‑ curso, todo dito carrega dentro de si o dizer de outro(s). Outro dispositivo teórico que focamos neste trabalho é a noção de silêncio. Elaborado por Orlandi (2007) e inserido nos estudos da AD pechetiana, o si‑ lêncio tanto viabiliza como produz sentidos. Em outras palavras, o silêncio não só produz as condições para significar, mas ele próprio produz efeitos de sentido. 137 DE VOZ E DE SILÊNCIO, Francis Lampoglia, Valdemir Miotello e Lucília Maria Sousa Romão LÍNGUA O silêncio, assim como a linguagem, é passível de deslocamentos e sentidos múltiplos, permitindo que se veja que “todo discurso sempre se remete a outro discurso que lhe dá realidade significativa” (ORLANDI, 2007, p. 24). Com isso, ele pode ser distinguido em silêncio fundador e política do silêncio, e o primei‑ ro refere‑se à incompletude da linguagem e o outro remete à escolha e à inter‑ dição do dizer. Diz a autora que o silêncio fundador é o princípio de toda signi‑ ficação. Ele não está apenas entre as palavras, mas também as constitui. Como condição de significação, do silêncio resulta uma incompletude constitutiva da linguagem, em que a ausência do silêncio implica a falta de sentido pelo exces‑ so do dizer. A busca pela completude da linguagem – tentando dizer tudo e, com isso, suprimir o silêncio – prejudica o sentido. O silêncio, então, se faz ne‑ cessário, pois fornece condições para o significar. Além disso, nele também se instalam as bases para a polissemia, em que, segundo Orlandi (2007, p. 69), “mais se diz, mais o silêncio se instala, mais os sentidos se tornam possíveis e mais se tem ainda a dizer”. Já a política do silêncio se refere à tentativa de apagamento de outros dizeres possíveis, mas indesejáveis, em uma dada situação discursiva (ORLANDI, 2007). A partir disso, a política do silêncio pode ser subdividida em duas formas, a sa‑ ber, o silêncio constitutivo e o silêncio local. O primeiro é condição para toda produção de linguagem e pertence à ordem de produção de sentido. Ao dizer certas palavras, necessariamente outras palavras são silenciadas, fazendo que determinadas regiões de sentido sejam mobilizadas em detrimento das demais. Com isso, o silêncio constitutivo opera nas fronteiras das formações discursivas, silenciando dizeres – e consequentemente sentidos – que ultrapassem o que pode e deve ser dito. No silêncio constitutivo, [...] se diz “x” para não (deixar) dizer “y”, este sendo o sentido a se descartar do dito. É o não-dito necessariamente excluído. Por aí se apagam os sentidos que se quer evitar, sentidos que poderiam instalar o trabalho significativo de uma “outra” formação discursiva, uma “outra” região de sentidos. O silêncio trabalha assim os limites das formações discursivas, determinando consequentemente os limites do dizer (ORLANDI, 2007, p. 73-74). 138 Outra forma da política do silêncio é o denominado silêncio local, que se refe‑ re à censura, à interdição do dizer. Na censura, há a proibição de determinados dizeres visando ao apagamento de certos sentidos. Ao impedir que determinados sentidos circulem, proíbe‑se também que o sujeito ocupe um dado posiciona‑ mento que escape à ideologia dominante. Orlandi (2007, p. 76) afirma que a censura “não é um fato circunscrito à consciência daquele que fala, mas um fato discursivo que se produz nos limites das diferentes formações discursivas que estão em relação”. Tendo em vista as formas do silêncio discutidas até ago‑ ra, veremos como os mecanismos da AD até aqui debatidos operam no discurso do recorte selecionado. TODAS AS LETRAS S, v. 14, n. 1, 2012 LÍNGUA ANÁLISE DISCURSIVA DA/ENTRE FOTOGRAFIA E LEGENDA Um dos recursos utilizados pelo jornal e que, embora forneça a ilusão de pro‑ va inquestionável da realidade, tem o poder de silenciar vozes é a fotografia. Esta, que apenas retrata um traço da realidade, fornece pistas do todo por meio das partes, “condenando sentidos ‘inconvenientes’ ao apagamento” (SILVA; ROMÃO, 2008, p. 38). A ilusão de imparcialidade, neutralidade e realidade que a fotografia sugere é um efeito ideológico, em que o sujeito imagina estar vendo o real e não uma das imagens (leituras) do real, tal é a ilusão de imanência dos sentidos ao mate‑ rial não verbal. Segundo afirma Barthes (1984, p. 16) sobre a fotografia, “seja o que for o que ela dê a ver e qualquer que seja a maneira, uma foto é sempre in‑ visível: não é ela que vemos. [...] Em suma, o referente adere”. Embora pareça que a foto seja um material que capture a realidade tal qual ela é, isento de escolhas, a fotografia é fruto das seleções do sujeito‑fotógrafo quanto aos elementos que a compõem, desde a posição da câmara até o aconteci‑ mento/sujeito a ser fotografado, fazendo falar certos sentidos e apagando outros. Com isso, os sentidos do não verbal, e em especial da fotografia, são construídos por meio do jogo de cores, iluminação, ângulos, corte, planos e enquadramento (SILVA; ROMÃO, 2008), promovendo o mito de reprodução do real, ao mesmo tempo que silencia outros ângulos e enquadramentos que suscitariam outros sentidos. Dessa forma, o sujeito‑fotógrafo, ao escolher um ângulo e não ou‑ tros, produz um corte na realidade, silenciando sentidos que um outro ângulo ou enquadramento poderiam reclamar. A ação ideológica que perpassa o sujeito‑fotojornalista também influencia o sujeito‑editor que, dentre as muitas fotos tiradas pelo fotógrafo, seleciona ape‑ nas uma ou duas fotos que produzam sentidos que se alinhem ao posicionamen‑ to do periódico para compor as páginas do jornal (SILVA; ROMÃO, 2008). No‑ ta‑se, então, que a fotografia produz um duplo silenciamento, um no momento de sua produção, pelo sujeito‑fotógrafo – ao escolher um enquadramento, si‑ lenciam‑se outros –, e outro no momento da publicação, em que o sujeito‑edi‑ tor seleciona poucas fotos e silencia as demais. E como forma de direcionar e de dialogar com os sentidos suscitados pela imagem, a legenda emerge como fator importante na condensação de sentidos tidos como naturais e evidentes, “sem buscar atravessá‑los em sua opacidade e sem interpretar o litígio que ele trava com a fotografia” (SILVA; ROMÃO, 2008, p. 38). Dessa forma, ao direcio‑ nar o sujeito‑leitor para determinados sentidos entendidos como óbvios, a le‑ genda também silencia outros sentidos possíveis que a foto poderia sinalizar, tentando restringir, “fechar” os sentidos dentro de uma dada formação discur‑ siva que interesse ao sujeito‑jornalista/editor. Essa tentativa, entretanto, mos‑ tra‑se falha, já que os dizeres, assim como os sujeitos, são passíveis ao equívo‑ co e ao deslocamento de sentidos. A partir dessa breve explanação sobre fotografias e legendas, nos concentra‑ remos nas análises de nosso recorte, que são três fotografias e suas respectivas legendas publicadas no aniversário de um ano do golpe militar. O primeiro re‑ corte foi retirado da capa da edição matutina do jornal Última Hora do dia 1o de abril de 1965, trazendo a seguinte fotografia: 139 DE VOZ E DE SILÊNCIO, Francis Lampoglia, Valdemir Miotello e Lucília Maria Sousa Romão LÍNGUA Figura 1 – “Senhoras mandaram rezar...” (1965). Fonte: Jornal “Última Hora”, de 1o de abril de 1965. 140 O jornal publicou a seguinte notícia: “Muitos discursos, inclusive três do Ma‑ rechal‑Presidente Castelo Branco – insòlitamente presente a uma reunião do Congresso Nacional –, assinalaram, ontem, a passagem do primeiro aniversário do movimento armado que depôs o Sr. João Goulart e levou ao poder o atual Govêrno. Em contraste com o que ocorreu há um ano, no dia de hoje, não se realizaram nem estão programados quaisquer manifestações de rua. O único ato que se realizou com presença de público (aliás muito reduzida) foi a missa man‑ dada rezar, ontem, na Candelária, por uma organização de senhoras, através o Ministro da Viação, Marechal Juarez Távora (ausente). Estiveram presentes nu‑ merosos militares, tendo à frente o General Ururai Terra Magalhães, comandan‑ te do 1o Exército, Soldados e cabos de diversas unidades foram transportados até a Candelária em viaturas do Exército. O elemento feminino, entretanto, pre‑ dominava. (Leia noticiário na segunda página) [sic]”. Na legenda, o dizer “primeiro aniversário do movimento armado que depôs o Sr. João Goulart e levou ao poder o atual governo” faz falar certos sentidos, e apaga outros, que poderiam surgir se o dizer utilizado fosse “revolução”, assim como afirma Orlandi (2007, p. 53), em que “há, pois, uma declinação política da signifi‑ cação que resulta no silenciamento como forma não de calar mas de fazer dizer ‘uma’ coisa, para não deixar dizer outras”. Dessa forma, o dizer publicado remete a sentidos de golpe de Estado, de tomada arbitrária e violenta do poder, resgatan‑ do, pela memória discursiva, os dizeres sobre os acontecimentos que derrubaram João Goulart do governo. Ao mesmo tempo que tais sentidos são sinalizados, são silenciados outros sentidos caso a palavra utilizada fosse “revolução”, que remete‑ ria, por exemplo, a sentidos de uma ação legitimada pelo povo. A ênfase no baixo número de pessoas que comemoraram o golpe, na afirmação “em contraste com o que ocorreu há um ano, no dia de hoje, não se realizaram nem estão programados quaisquer manifestações de rua”, remetendo a sentidos de que as expectativas políticas esboçadas há um ano não se cumpriram, deixando a população insatis‑ feita, frustrada, sem motivos para comemorar. A baixa participação popular é também destacada na sequência “O único ato que se realizou com presença de público (aliás muito reduzido) foi a missa mandada rezar, ontem, na Candelária, por uma organização de senhoras, através o Ministro da Viação, marechal Juarez TODAS AS LETRAS S, v. 14, n. 1, 2012 LÍNGUA Távora (ausente)”, marcando sentidos de isolamento e distanciamento do governo em relação ao povo. Nota‑se que se marcou também a ausência de sujeitos que faziam parte do governo, como o marechal Juarez Távora, sugerindo que nem os próprios “revolucionários” se confraternizavam no aniversário do golpe. Nas fotos, vê‑se a presença majoritária de duas vozes, a dos militares e a de um grupo de senhoras, tendo ao fundo civis masculinos. As fotos dialogam com a legenda na medida em que as mulheres e os militares aparecem em primeiro plano, sugerindo serem eles os que comandam as comemorações. Já na edição vespertina do mesmo dia, a foto de capa de Última Hora a res‑ peito do assunto é a seguinte: Figura 2 – Flagrante de aniversário (1965). Fonte: Jornal “Última Hora” (1965). O jornal publicou a seguinte notícia: “Desfiles militares e solenidades cívicas, nas quais o Marechal Castelo Branco discursou por três vêzes – duas em Brasí‑ lia, uma em Belo Horizonte – marcaram as comemorações ontem, do 1o aniver‑ sário da “revolução”. Na Guanabara, pela manhã, foi rezada missa na Igreja da Candelária, presentes senhoras da sociedade, autoridades e militares de várias patentes. Por todo o dia, nas escolas públicas, as crianças assistiram surprêsas e confusas à doutrinação “revolucionária”, muitas vezes contrária ao pensamen‑ to de seus pais: assim o exigiu, em circular, o Departamento de Educação Primá‑ ria. Em São Paulo, o Cardeal D. Agnelo Rossi, em sermão solene, agradeceu a Deus por estar afastado o perigo do comunismo, mas condenou com veemência os que qualificam como subversivos os jovens que se engajam na luta pela reden‑ ção dos trabalhadores. Os estudantes paulistas de Direito, num manifesto irôni‑ co, parabenizaram a “revolução” por todos os seus crimes e erros. Na maioria das cidades brasileiras, o povo não participou dos festejos programados, preferindo viver normalmente, em silêncio, um dia normal de trabalho: nem mesmo a movi‑ mentação dos desfiles conseguiu atrair mais que alguns curiosos. Na foto, feito [sic] do pavilhão presidencial, em Brasília, a Banda do Batalhão de Guardas exe‑ 141 DE VOZ E DE SILÊNCIO, Francis Lampoglia, Valdemir Miotello e Lucília Maria Sousa Romão LÍNGUA 142 cuta dobrados em meio a parada, tendo‑se, ao fundo, uma parte da assistência que ocorreu ao desfile”. Observa‑se aqui a presença de duas vozes, uma oficial – representada pela banda de música dos guardas presidenciais –, e outra de resistência – marcada na expressão “gorilões”. A voz de resistência atravessa a voz oficial, indicando que o discurso não é homogêneo. A legenda, que não comenta o dizer “gorilões”, afirma que “Na maioria das cidades brasileiras, o povo não participou dos feste‑ jos programados, preferindo viver normalmente, em silêncio, um dia normal de trabalho: nem mesmo a movimentação dos desfiles conseguiu atrair mais que alguns curiosos [...]”, pontuando a ausência da participação popular, em espe‑ cial a classe de baixa renda, nas festividades, já que “Na Guanabara, pela ma‑ nhã, foi rezada missa na Igreja da Candelária, presentes senhoras da sociedade, autoridades e militares de várias patentes [...]”. O sujeito‑jornalista posiciona o povo associando‑o a sentidos de sujeitos pertencentes à classe de baixa renda, como submisso, alienado e indiferente à política, ao afirmar que o povo viveu um dia de trabalho normal, como vive em outros dias: em silêncio. O normal para o povo seria, então, viver e trabalhar em silêncio, instigado a ficar alheio aos acon‑ tecimentos políticos que o governam. A foto, assim como a legenda, apresenta a presença de poucos populares que assistem ao desfile. Entretanto, conforme a legenda, o que motiva a observação da banda não é o sentimento cívico ou patriótico, nem para comemorar ou festejar o aniversário do golpe, mas sim por simples curiosidade. Observa‑se, então, que o povo é mais uma vez colocado na posição de alienado aos acontecimentos políticos. Também são detectáveis na legenda as vozes de crianças e de seus pais, da Igreja e de estudantes universitários, marcando a heterogeneidade discursiva no trecho. Nota‑se que o posicionamento desses sujeitos postos em discurso não se alinha completamente ao governo, já que as crianças encontram‑se confusas e os estudantes manifestam‑se ironicamente. É possível observar também que, para instigar o efeito ilusório de sentido de imparcialidade da imprensa, é inse‑ rida a voz do cardeal que compactua com a expulsão dos comunistas. Entretan‑ to, o sujeito‑jornalista constrói o discurso de maneira a direcionar sentidos de que até mesmo a voz da Igreja, solidária ao governo, não concorda inteiramente com ele, já que condena os que qualificam como subversivos os jovens que lu‑ tam pela redenção dos trabalhadores. Já na capa do jornal Folha de S.Paulo, também publicada no dia 1o de abril de 1965, aparece uma fotografia referente ao mesmo desfile da banda de música dos guardas, em Brasília, em comemoração ao aniversário do golpe militar. No lado esquerdo da foto, está captada a imagem frontal dos guardas da banda en‑ fileirados, tendo à frente um guarda que toca trombone. No lado direito, é pos‑ sível ver ao fundo a multidão que assiste à festa. O ângulo da foto capta ainda parte do céu, em que aviões sobrevoam o local. Tal imagem é acompanhada pe‑ la legenda “DESFILE NO EIXO – Como parte das comemorações volução [sic], em Brasília, a banda de música do Batalhão de Guardas Presidenciais desfilou no Eixo Monumental” (FOLHA DE S.PAULO, 1o.4.1965, p. 1). Nesse recorte, observa‑se o silenciamento da voz de resistência em detrimento da voz oficial, pois, ao focar o céu e não o chão – onde havia a escrita “gorilões” –, o sujeito fotógrafo produz um recorte do acontecimento, fazendo falar certos TODAS AS LETRAS S, v. 14, n. 1, 2012 LÍNGUA dizeres e apagando outros. Ao enfocar os aviões no céu, o sujeito‑fotógrafo mo‑ biliza certas regiões de sentido que, no conjunto com outros elementos da foto, constrói um determinado discurso condizente com o posicionamento do jornal. Na foto, observa‑se que os guardas da banda de música encontram‑se enfi‑ leirados e organizados, fazendo falar sentidos de ordem, ordenação, dialogando com a legenda que a acompanha, que marca o “Desfile no eixo”. Observa‑se aqui que a palavra eixo remete tanto ao sentido de ordenação (o desfile está “nos ei‑ xos”, está tudo em ordem), quanto no sentido do nome do espaço físico, o “Eixo Monumental”. Esse jogo de palavras, entretanto, não são incompatíveis entre si, isto é, um sentido não necessariamente anula o outro, já que os guardas em fila remetem a sentidos de ordenação. Ao focar os aviões, a foto faz falar também sentidos de avanço tecnológico, de progresso, dialogando, dessa forma, com os dizeres da bandeira brasileira “Or‑ dem e Progresso”. A ordem, representada pelos guardas enfileirados, e o pro‑ gresso, simbolizado pelos aviões, constituem uma forma imagética da inscrição contida na bandeira do Brasil. Aqui o povo, diferentemente do que consta nos dizeres e na foto publicada pelo Última Hora, aparece em maior número, mas de longe, a observar a festa, como uma plateia. Ao estudarmos as fotografias, percebemos que enquanto a fotografia do Última Hora mobiliza certos sentidos em relação à festa – ao focar o chão e flagrar a luta de vozes –, a mesma foto silencia os aviões e outros aspectos da festa. Do mesmo modo, a foto da Folha silencia a luta de vozes ao focar os aviões, acionan‑ do, dessa maneira, outros sentidos. Verificamos, então, que, ao focalizar um determinado ângulo, outros ângulos são silenciados, assim como, ao dizer, si‑ lenciamos outros dizeres que suscitam determinados sentidos. Vale ressaltar aqui que as escolhas das palavras, assim como dos enquadramentos de uma foto, são influenciadas por um dado posicionamento e não são aleatórias ou neutras. Nota‑se também que as fotografias não retratam a realidade tal qual ela é, mas ângulos de um dado posicionamento. Com isso, verifica‑se que o silêncio sempre acompanha o discurso, seja ele verbal ou não verbal. CONSIDERAÇÕES FINAIS Vimos aqui como múltiplas vozes constroem o discurso, seja ele materializa‑ do em forma de um texto verbalizado, no caso da legenda, ou em formato ima‑ gético, como a fotografia. Observamos também que a escolha de determinadas vozes, em detrimento de outras, produz certos sentidos que fazem falar o posi‑ cionamento discursivo do jornal que enuncia. Com isso, a seleção das palavras, dos ângulos fotográficos, dos personagens que compõem a matéria e até da po‑ sição da notícia no jornal, no caso localizado na primeira página, não é um pro‑ cesso neutro, pois implica o silenciamento de outras tantas palavras, ângulos etc., que poderiam ser escolhidos mas não o foram, em favor de um dado posi‑ cionamento discursivo. Dessa forma, as vozes e os silêncios são, portanto, im‑ prescindíveis na construção do dizer e na leitura dos sentidos, permitindo que, mesmo sob o autoritarismo da censura e da imposição de um dado posiciona‑ mento, houvesse vozes que, nas bordas do dizer e nas dobras do silêncio, pro‑ duzissem sentidos de resistência ante o arbítrio. 143 DE VOZ E DE SILÊNCIO, Francis Lampoglia, Valdemir Miotello e Lucília Maria Sousa Romão LÍNGUA REFERÊNCIAS AUTHIER‑REVUZ, J. Dialogismo e divulgação científica. Rua: Revista do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade, Campinas, n. 5, p. 9‑15, mar. 1999. BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006. BARTHES, R. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. FLAGRANTE de aniversário. Última Hora, Rio de Janeiro, ano 14, n. 4725, p. 1, abr. 1965. Disponível em: <http://www.arquivoestado.sp.gov.br/uhdigital/pdf. php?dia=1&mes=4&ano=1965&edicao=10&secao=1>. Acesso em: 14 jun. 2011. FOLHA DE S.PAULO, p. 1, 1o abr. 1965. Disponível em: <http://acervo.folha. com.br/fsp/1965/4/1/2>. Acesso em: 18 jun. 2011. ORLANDI, E. P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso (AAD‑69). In: GADET, F.; HAK, T. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Editora da Unicamp, 1993. SENHORAS mandaram rezar missa de aniversário. Última Hora, Rio de Janeiro, ano 14, n. 1515, p. 1, abr. 1965. Disponível em: <http://www.arquivoestado. sp.gov.br/uhdigital/pdf.php?dia=1&mes=4&ano=1965&edicao=1&secao=1>. Acesso em: 14 jun. 2011. SILVA, J. R. B.; ROMÃO, L. M. S. Fotografias e legendas do jornal Brasil de Fato: discurso e ideologia. Revista do GELNE (UFC), v. 10, p. 33‑44, 2008. Dispo‑ nível em: <http://www.gelne.org.br/Site/Arquivos/RevistaGELNE/2008_Artigo3. pdf>. Acesso em: 6 jun. 2011. LAMPOGLIA, F.; MIOTELLO, V.; ROMÂO, L. M. S. Voice and silence: the discursivity of the newspapers Última Hora and Folha de S.Paulo. Todas as Letras, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 136‑144, 2012. Abstract: This article studies the discoursive functioning in three photographs of covers published on April the first 1965, two from the Última Hora newspaper and the one Folha de S.Paulo newspaper, wich focus on the first 1964 military coup birthday. For this, we will use the theoretical framework of the french Discourse Analysis, founded by Michel Pêcheux. We aim to understand how the notion of silence and discoursive heterogeneity materialize in the photos and captions of the selected cuts, noting how meanings are woven in the relationship between verbal and image. Keywords: Discourse Analysis; silence; newspaper. Recebido em janeiro de 2012. Aprovado em fevereiro de 2012. 144