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Rádio Novo

Rumores

Este texto discute a produção radiofônica ficcional brasileira dos anos 1950 a partir da perspectiva da politização, do engajamento e das preocupações estéticas expressos em trabalhos desenvolvidos por Túlio de Lemos, Dias Gomes e Osvaldo Molles. Além de oferecer uma visão do trabalho desses realizadores, o texto visa contextualizar as suas obras tanto em relação ao cenário radiofônico do período como diante do contexto mais geral da produção simbólica nacional. Além disso, é oferecida uma reflexão sobre a relação entre os trabalhos desses autores e as preocupações então expressas pelo Partido Comunista Brasileiro, criado em 1922, em relação à área de cultura.

número 24 | volume 12 | julho - dezembro 2018 DOI:10.11606/issn.1982-677X.rum.2018.145932 Rádio Novo: a crítica social e a experimentação estética no rádio ficcional brasileiro dos anos 19501 Rádio Novo: social critique and aesthetical experimentation of Brazilian radio drama in the 1950s Eduardo Vicente2 1 Este artigo tem como base a comunicação apresentada no I Cinemídia Intermidialidades, encontro internacional realizado na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) entre os dias 16 e 20 de novembro de 2015. 2 Professor Associado da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Coordenador do MidiaSon – Grupo de Estudos e Produção em Mídia Sonora, bolsista de produtividade PQ.2/CNPq. E-mail: eduvicente@usp.br. 173 Rádio Novo: a crítica social e a experimentação estética no rádio ficcional brasileiro dos anos 1950 Eduardo Vicente Resumo Este texto discute a produção radiofônica ficcional brasileira dos anos 1950 a partir da perspectiva da politização, do engajamento e das preocupações estéticas expressos em trabalhos desenvolvidos por Túlio de Lemos, Dias Gomes e Osvaldo Molles. Além de oferecer uma visão do trabalho desses realizadores, o texto visa contextualizar as suas obras tanto em relação ao cenário radiofônico do período como diante do contexto mais geral da produção simbólica nacional. Além disso, é oferecida uma reflexão sobre a relação entre os trabalhos desses autores e as preocupações então expressas pelo Partido Comunista Brasileiro, criado em 1922, em relação à área de cultura. Palavras-chave História do rádio no Brasil, radiodrama, Dias Gomes, Osvaldo Molles, Túlio de Lemos. Abstract This paper discusses the production of radio drama by Brazilian stations during the 1950s, from the perspective of politicisation, political engagement and aesthetical concerns present in creations of Túlio de Lemos, Dias Gomes and Oswaldo Molles. After providing an overview on those producers’ enterprise, the article contextualises their works within the situation of radio in the period and the more general context of the national symbolic production. Additionally, it offers a brief consideration on the relationship between these authors’ oeuvre and the concerns about culture expressed by the Brazilian Communist Party (created in 1922). Keywords Brazilian radio history, radiodrama, Dias Gomes, Osvaldo Molles, Tulio de Lemos. 174 DOSSIÊ número 24 | volume 12 | julho - dezembro 2018 Este texto busca demonstrar que uma produção radiofônica mais autoral e engajada chegou a ser desenvolvida no Brasil, especialmente no rádio paulistano, ao longo dos anos 1950. Sintonizados com a efervescência política e cultural do período, autores como Túlio de Lemos, Dias Gomes e Osvaldo Molles, entre outros, desenvolveram, naquela época, obras que representaram um importante momento de renovação estética e de politização da ficção radiofônica nacional. Com o objetivo de oferecer uma breve apresentação da produção desses autores, dentro do que é denominado aqui como o rádio novo paulistano3, farei, inicialmente, uma breve descrição do cenário mais conservador representado pelas radionovelas do período, focando especialmente naquelas produzidas pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro. A seguir, será discutido o contexto mais geral da politização da produção cultural do Brasil dos anos 1950 e 1960 para, então, ser discutido o papel do PCB — o Partido Comunista Brasileiro — dentro deste processo. Finalmente, serão apresentadas algumas obras dos autores citados. A Rádio Nacional e a “moral conservadora” Não seria descabido afirmar que os relatos sobre a história do nosso rádio nas décadas de 1940 e 1950, ou seja, durante o período apontado como o da “época de ouro” do rádio brasileiro são, de um modo geral, relatos sobre a atuação da Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Fundada em 1936 e incorporada ao patrimônio da União em 1941 (SAROLDI; MOREIRA, 1984), a Nacional foi, sem qualquer dúvida, a mais importante emissora de rádio da história do Brasil, determinando por décadas os padrões que pautariam o desenvolvimento do veículo no país. Embora a função mais explícita de instrumento propagandístico do governo não coubesse propriamente à emissora e sim ao programa A Hora do Brasil, criado em 1935, Miriam Goldfeder destaca que à Nacional “caberia, teoricamente, a reprodução dos sistemas de valores dominantes enquanto emissora pertencente 3 O termo é uma forma de aproximar os programas produzidos pelos autores que serão aqui citados ao processo de renovação artística e/ou politização das artes que seria proposto por movimentos artísticos ligados principalmente ao cinema, ao teatro e à música do período, mas tentarei explicar melhor essa questão ao final desse artigo. 175 Rádio Novo: a crítica social e a experimentação estética no rádio ficcional brasileiro dos anos 1950 Eduardo Vicente ao Patrimônio da União, recodificando-os em termos de uma ideologia própria dos setores médios” (GOLDFEDER, 1980, p. 41). Assim, “a emissora deveria atuar como um mecanismo de controle social (...) destinado a manter as expectativas sociais dentro dos limites compatíveis com o sistema como um todo” (Idem, p. 40). Lia Calabre (2006), que se dedicou ao estudo das radionovelas produzidas pela emissora, afirma que ela veiculou 158 produções do gênero entre 1940 e 1946. Deste total, Calabre localizou 34 roteiros, os quais classificou e analisou em seu trabalho. Ao discutir as principais características dessas obras, Calabre aponta que, entre os protagonistas masculinos, eram predominantes os empresários e profissionais liberais, enquanto grande parte das “protagonistas femininas está na categoria ‘sem ocupação definida’, fato compreensível, pois, na maioria das vezes, essa posição é ocupada pelas personagens jovens, que são cuidadas por seus pais. Não é comum que o romance principal se passe com personagens de meia-idade ou mais velhos.” (CALABRE, p. 156). Fica patente, deste modo, o protagonismo das classes dominantes e a posição submissa da mulher, o que coincide com as afirmações de Goldfeder acerca da função dos programas como sendo de reforçar o sistema de valores vigente. Calabre observa, também, que as obras são, de um modo geral, ambientadas na contemporaneidade (anos 1940) e no cenário urbano do Rio de Janeiro (CALABRE, 2006, p. 152-153), mas esclarece que “as mazelas da cidade quase não aparecem nas radionovelas. Quando analisamos a ocupação da maioria dos protagonistas, verificou-se que esta é composta de profissionais liberais e empresários. A cidade destes personagens é a das mansões, das casas confortáveis, dos bairros urbanizados, com carros e motoristas particulares” (CALABRE, 2006, p. 189). Além disso, entre as características das radionovelas analisadas, temos questões caras à ideologia varguista como a valorização do trabalho, do estudo como forma de ascensão social, das leis de proteção aos trabalhadores e das associações de classe, com algumas das produções sendo, inclusive, ambientadas dentro de fábricas (CALABRE, 2006, p. 162-173). 176 DOSSIÊ número 24 | volume 12 | julho - dezembro 2018 Mas, ainda que a análise de Calabre tenda a confirmar as afirmações de Goldfeder sobre o viés conservador da Rádio Nacional, seria importante considerar que os trabalhos analisados por ela foram produzidos, em sua quase totalidade, durante o primeiro Governo Vargas e, mais especialmente, sob a Ditadura do Estado Novo (1937-1945), na qual a censura e o controle sobre a produção intelectual e artística foram intensos (GOULART, 1990). Assim, não considero adequado utilizarmos esses exemplos para afirmar uma pretensa tradição conservadora do rádio carioca, que seria confrontada por um rádio paulistano mais engajado. De toda a forma, voltarei a essa questão no final do texto. Neste sentido, o cenário apresentado até aqui, que certamente se repetia nas radionovelas de São Paulo, é oferecido principalmente como uma demonstração da tradição com a qual uma vertente mais crítica e engajada da produção radiofônica deveria se confrontar; porém, gostaria agora de discorrer brevemente sobre a forma pela qual essa vertente se estabelece no cenário mais geral da produção cultural brasileira do período. O cenário da cultura brasileira dos anos 1950/1960 Ao discutir a extraordinária combinação entre criatividade artística e crítica social que caracterizou a produção simbólica do país das décadas de 1950 e 1960, Renato Ortiz observa que [...] um fator a se considerar é a formação de um público que, sem se transformar em massa, define sociologicamente o potencial de expansão de atividades como o teatro, o cinema, a música e até mesmo a televisão [...] uma audiência específica, mas considerável, formada pelas camadas urbanas médias. (ORTIZ, 1994, p. 102) Mas a simples formação de um público apto ao consumo de obras de maior sofisticação não explica, evidentemente, a intensa politização da produção cultural do país no período. Ortiz aprofunda essa questão a partir de uma aproximação com o quadro proposto por Perry Anderson acerca do surgimento do modernismo na França. Segundo Ortiz, Anderson 177 Rádio Novo: a crítica social e a experimentação estética no rádio ficcional brasileiro dos anos 1950 Eduardo Vicente percebe o surgimento dessa modernidade associada a três coordenadas no campo social. A primeira diz respeito a um passado clássico, altamente formalizado nas artes visuais. [...] A segunda coordenada está vinculada às inovações tecnológicas que conhece a sociedade europeia neste período [...]. Ao terceiro elemento Perry Anderson denomina “a proximidade imaginativa da revolução social”. (ORTIZ, 1994, p. 104) No caso brasileiro, no entanto, O passado clássico nós não possuíamos. No Brasil [...] existiu uma correspondência histórica entre o desenvolvimento de uma cultura de mercado incipiente e a autonomização de uma esfera de cultura universal. [...] Foi esse fenômeno que permitiu um “livre trânsito”, uma aproximação de grupos inspirados pelas vanguardas artísticas, como os concretistas, aos movimentos de música popular, bossa nova e tropicalismo. (ORTIZ, 1994, p. 104) Assim, Ortiz sugere a existência, no país, de uma maior permeabilidade entre o que Pierre Bourdieu define como os polos da “arte erudita” e da “arte média” da produção simbólica (BOURDIEU, 1982, p. 139-140), permitindo que uma considerável dose de sofisticação e experimentação estética estivesse presente mesmo a produções voltadas a um consumo, em alguma medida, massificado. Além da aproximação entre música de vanguarda e música popular citada acima, Ortiz exemplifica esse processo também através da relação entre o teatro e o teledrama, mas poderíamos vincular a este “livre trânsito” também as trajetórias de dois dos autores citados no início deste texto. Alfredo de Freitas Dias Gomes (1922-1999), por exemplo, diante da falta de melhores perspectivas profissionais como autor teatral, transfere-se do Rio de Janeiro para São Paulo em 1944, passando a trabalhar na Rádio Panamericana (DIAS GOMES, 2004, p. 70). Ainda que tenha permanecido por vinte anos trabalhando nesse veículo, Dias Gomes afirmou que “nunca encarara o rádio senão como meio de subsistência – meus desesperados esforços para levá-lo a sério e conferir dignidade ao meu trabalho soavam falsos para mim.” (DIAS GOMES, 1998, p. 123). 178 DOSSIÊ número 24 | volume 12 | julho - dezembro 2018 Também no caso de Túlio de Lemos (1909-1978), a transição para o rádio ocorreu por razões econômicas. Segundo Irineu Guerrini Jr. (2013), Túlio se dedicava a uma carreira como cantor lírico quando, em 1939, foi acometido por uma doença e viu sua trajetória artística abreviada. Por essa razão, dois anos depois passou a trabalhar com “Oduvaldo Vianna na Rádio São Paulo, tendo participado de muitas novelas como roteirista e ator.” (GUERRINI Jr., 2013, p. 19). O próprio Oduvaldo, primeiro empregador no rádio também de Dias Gomes (DIAS GOMES, 2004, p. 70), foi obrigado a deixar em segundo plano o teatro e o cinema, áreas em que se destacava como autor e diretor, em favor do trabalho no rádio, que considerava mais bem remunerado e estável (VIANNA, 1984). Já em relação à segunda coordenada proposta por Anderson, Renato Ortiz aponta que O presente técnico ainda indeterminado, nós o possuímos em demasia. (...). As novas tecnologias, rádio, televisão, cinema, disco, abriram perspectivas para experiências as mais diversas possíveis. O experimentalismo possuía duas faces: uma negativa, referente às dificuldades propriamente técnicas dos profissionais; outra positiva, relativa à busca de soluções novas, às vezes engenhosas, para se contornar os problemas enfrentados. (ORTIZ, 1994, p. 106) Ortiz irá exemplificar essa questão através do caráter artesanal das produções do Cinema Novo, marca de uma indústria incipiente onde tais práticas ainda poderiam se contrapor àquelas adotadas no processo de industrialização da produção cinematográfica. Já para o rádio brasileiro dos anos 1950, entendo que o argumento deva ser relativizado, uma vez que este contava com uma estrutura comercial e técnica que o colocava num patamar superior, naquele momento, à televisão, ao cinema e à própria música popular. Há um consenso em considerar a década de 1950 como a “Era de Ouro” do rádio, com as emissoras contando com grandes auditórios e um expressivo corpo de profissionais formado por roteiristas, atores, regentes, sonoplastas, técnicos de som e músicos de orquestra (SAROLDI; MOREIRA, 1984). Isso se devia, evidentemente, aos grandes investimentos publicitários que recebia e que tornavam 179 Rádio Novo: a crítica social e a experimentação estética no rádio ficcional brasileiro dos anos 1950 Eduardo Vicente o rádio uma atividade de grande envergadura no favorável cenário econômico do período. Assim, o rádio certamente era menos permeável à experimentação e a trabalhos mais autorais do que outras áreas menos visadas da produção simbólica nacional. Talvez seja essa a razão pela qual trabalhos mais engajados e, numa certa medida, mais experimentais, como os que veremos adiante, tenham representado uma absoluta exceção em sua programação. Já a terceira dimensão, a da “proximidade imaginativa da revolução social”, Ortiz traduz como efervescência política, que abria no horizonte a perspectiva de mudanças substanciais da sociedade brasileira, mesmo quando reivindicadas por grupos ideologicamente antagônicos. O período que consideramos é marcado por toda uma utopia nacionalista que busca concretizar a saída de uma sociedade subdesenvolvida de sua situação de estagnação. (ORTIZ, 1994, p. 108) No caso brasileiro, a atuação do Partido Comunista Brasileiro, o PCB, fundado em 1922, será um importante fator a determinar os modos pelos quais se desenvolve essa “utopia nacionalista” no período. Por isso, seria importante nos voltarmos agora para uma breve discussão sobre a política cultural então proposta pelo partido. O PCB e a produção radiofônica brasileira dos anos 1950 Muniz Gonçalves Ferreira (2012) observa que a chegada do PCB à legalidade política, em 1945, “possibilitou ao partido uma interlocução privilegiada com o mundo das artes, da cultura e do pensamento em nosso país.” (FERREIRA, 2012, p. 28). Para Dênis de Moraes, A ideia de que, com a vitória dos Aliados na Segunda Guerra, o futuro imediato poderia ser repensado em bases igualitárias, identificou-se com as propostas socialistas. A tarefa do artista consistia em produzir obras comprometidas com as causas populares e que elevassem o nível cultural das massas. (MORAES, 2006, p. 98) 180 DOSSIÊ número 24 | volume 12 | julho - dezembro 2018 Neste contexto, nos anos 1950, entre filiados e simpatizantes do PCB, o rádio contava, entre outros, com atores e roteiristas como Oduvaldo Vianna, Dias Gomes, Mário Lago, Alberto Leal, Walter George Durst, Túlio de Lemos e Gilda Abreu, além dos compositores Guerra Peixe e Claudio Santoro. Entre as questões ideológicas defendidas pelo partido, destacava-se a do nacionalismo. Marco Roxo e Igor Sacramento observam que Ao longo de sua história, a militância comunista encontrou na produção estética um meio de dar forma simbólica à ideologia nacionalista em torno da qual o PCB passou a estruturar a sua política de aliança para consolidar a “via burguesa” no país. [...] O nacionalismo se configurou, assim, em uma espécie de pré-realização estética da utopia socialista. (SACRAMENTO; ROXO, 2012, p. 7-8) Porém, se por um lado a questão do nacional era fundamental para o PCB, por outro era também uma demanda pré-existente numa nação periférica como o Brasil, onde a necessidade de construção de uma identidade própria surgia como uma “imposição estrutural” (ORTIZ, 1994, p. 184). É nesses termos que Marcos Napolitano pode afirmar que o Partido Comunista Brasileiro, desde meados dos anos 1950, não tinha, propriamente, uma política cultural organizada e sistemática. Entretanto, defendo a tese de que, ainda que as instâncias do Partido não tivessem uma doutrina e uma organicidade muito impositiva, os artistas comunistas (e simpatizantes) constituíam um núcleo pensante e criador que conseguiu traduzir, com relativo sucesso e coerência, a linha frentista e aliancista do partido. A opção pelo nacionalismo, a visão de povo como protoconsciência revolucionária, o papel mediador do artista-intelectual e o realismo como princípio da comunicação com o público (implicando no figurativismo nas artes, na defesa da canção como convenção melódica suportando uma mensagem poética e o realismo dramatúrgico no cinema e no teatro) foram as bases desse projeto. (NAPOLITANO, 2012, p. 101) Assim, a par das intenções do partido, poderíamos falar numa confluência de visões que não apenas permitiu a materialização das propostas 181 Rádio Novo: a crítica social e a experimentação estética no rádio ficcional brasileiro dos anos 1950 Eduardo Vicente estéticas e políticas elencadas por Napolitano, mas lhes deu uma importante legitimidade artística. Nestes termos, a identificação com o ideário político do PCB é evidente nas obras de Dias Gomes, Túlio de Lemos e Osvaldo Molles, autores que terão alguns de seus trabalhos discutidos mais adiante. Mas nem sempre é simples estabelecer a conexão entre intelectuais do período e o PCB, já que a permanência do partido na legalidade foi bastante curta (1945-1947): A repercussão da guerra fria no plano interno não tardou. O PCB foi perseguido pelo governo Eurico Gaspar Dutra e pelas forças conservadoras, que criaram, com apoio da imprensa, atmosfera favorável à suspensão do registro do partido em maio de 1947 e à cassação dos mandatos de seus parlamentares em janeiro de 1948, em sequência ao rompimento diplomático com a União Soviética. (MORAES, 2006, p. 99) De qualquer modo, no caso dos autores analisados neste artigo, as ligações nos parecem claras. Dias Gomes, em sua autobiografia, afirma ter-se filiado ao PCB já em 1945 (DIAS GOMES, 1998; p. 102). Em relação a Túlio de Lemos, Irineu Guerrini Jr., além de obter um depoimento de Bárbara Fazio4, amiga de Túlio que confirma sua condição de simpatizante do partido, localizou fotos de viagens deste à União Soviética e China, ainda nos anos 1950, inclusive uma na qual ele aparece ao lado de Mao Tse-Tung (GUERRINI Jr., 2013, p. 19-20). Já no caso de Molles os indícios são mais tênues, embora nos pareçam decisivos. Segundo depoimento ao autor de Vladimir Sacchetta (2017), Molles foi grande amigo de seu pai, Hermínio Sacchetta (1909-1982), um histórico militante trotskista brasileiro. Convidado por Molles para escrever o prefácio e a apresentação de sua coletânea de crônicas Piquenique Classe C, Sacchetta saúda no texto o “companheiro certo das horas incertas de minha acidentada 4 Bárbara foi esposa de Walter George Durst, um importante roteirista de rádio e televisão e também simpatizante do PCB. Segundo Bárbara, Túlio era um grande amigo da família e os visitava constantemente (Bárbara Fazio, depoimento ao autor, 2014). 182 DOSSIÊ número 24 | volume 12 | julho - dezembro 2018 carreira profissional [...] sempre respondendo presente aos meus apelos” (SACCHETTA, s/d., p. 11). Além disso, Sacchetta afirma que o livro de Molles legitima a “literatura ‘popular’, em suas versões formais e de conteúdo. Com indiscutível vantagem do autor, em certos aspectos, sobre seus predecessores” (Alcântara Machado e Mário de Andrade foram os nomes mencionados) que, ao contrário de Molles, não conseguem “ocultar os punhos de renda do escritor para elites” (SACCHETTA, s/d., p. 14). Vale destacar, para uma melhor contextualização do momento em que foram veiculadas as obras aqui citadas, ou seja, o início da década de 1950, que, apesar da perseguição ao PCB, o cenário político permitiu uma considerável liberdade de expressão, especialmente a partir de 1951, quando Vargas retorna à presidência pela via eleitoral. Nesse seu segundo governo, Vargas, em uma surpreendente guinada ideológica, acaba angariando grande simpatia da esquerda a partir de suas convicções nacionalistas, de sua proximidade com a classe operária e por haver retirado as restrições existentes à participação dos comunistas na organização sindical (FAUSTO, 1995, p. 407 e 412). Apresentarei, agora, trechos de algumas das obras desses três autores, que ilustram a ideia de um “rádio novo” paulistano5. O “Rádio Novo” Paulistano A primeira delas é a série “Ópera em 1040 Quilociclos” que, criada em 1952 por Túlio de Lemos para a Rádio Tupi de São Paulo, trazia temas de óperas célebres transplantados para a contemporaneidade de São Paulo e adaptados criticamente ao seu contexto social e político. Irineu Guerrini Jr. (2013), a quem devemos a única pesquisa existente sobre a obra de Túlio, aponta que, na adaptação de Lo Schiavo (1887), de Carlos Gomes, por exemplo, a trama se desloca do Rio de Janeiro de 1801 para uma fazenda do interior de São Paulo em 1952. Em lugar da paixão entre a índia escrava e o filho do Conde, dono da fazenda, temos a ligação entre 5 Gostaria de apontar que, embora de forma mais resumida e para a discussão de uma temática um tanto distinta, alguns dos exemplos aqui utilizados já foram citados em texto anterior (VICENTE; SOARES, 2016). 183 Rádio Novo: a crítica social e a experimentação estética no rádio ficcional brasileiro dos anos 1950 Eduardo Vicente a trabalhadora doméstica e o filho do senhor das terras, que fala inclusive em reforma agrária no discurso progressista com que anuncia sua candidatura a um cargo eletivo. Na trama original, o Conde obriga a índia a se casar com um outro índio, enquanto na adaptação de Lemos o fazendeiro força a empregada da casa a se unir a um outro trabalhador rural da propriedade. Há, porém, uma diferença fundamental na solução do conflito amoroso. Enquanto na trama original o índio se suicida para deixar o caminho aberto para o amor entre a heroína e o filho do Conde, na versão radiofônica a protagonista não volta para o filho do patrão: [...] renegando o seu passado relativamente privilegiado de criada da Casa Grande, diz, encerrando o programa: Me arrependi – por demais da conta – de tê levado uma vida tão boa, enquanto o meu povo sofria tanto. Agora não gosto mais do senhor. Só gosto dele, que é meu marido. Eu vô com ele pro mato. (GUERRINI Jr., 2013, p. 134) Em outro programa da série, a adaptação de La Bohème (Giacomo Puccini, 1896), que mereceu uma análise mais aprofundada de Guerrini Jr., a ação se passa em um estúdio na Av. São João, no centro de São Paulo, onde moram quatro jovens de poucos recursos. Já no diálogo inicial, Colline, o filósofo do grupo, questiona Rodolfo, o pintor, por estar fazendo o retrato de uma cadela de estimação para a sua rica proprietária: Colline: Parece-me que você pertence à tal escola do realismo social, não é? Rodolfo: Perfeitamente, Colline. Colline: Há uma grande contradição entre o que você faz e o que você pensa. Rodolfo: Me diga uma coisa, Colline. Colline: O que é que há? Rodolfo: Nós não precisamos comer? Colline: Infelizmente. Rodolfo: Não precisamos pagar o aluguel deste estúdio que fica em plena Avenida São João? Colline: Sim. Rodolfo: Logo, precisamos arranjar dinheiro em qualquer parte, de qualquer maneira, até pintando cachorrinhas de estimação. Não é possível praticar o socialismo integral dentro da sociedade capitalista. (GUERRINI Jr., 2013, p. 137) 184 DOSSIÊ número 24 | volume 12 | julho - dezembro 2018 Ao longo da versão de Túlio, Rodolfo, um jornalista que denuncia as condições precárias da periferia de São Paulo, chega a declamar um poema de Brecht, além de refletir, em diversos momentos, sobre o papel do intelectual na desalienação da sociedade (GUERRINI Jr., 2005). O segundo exemplo é o da série radiofônica Histórias das Malocas, de Osvaldo Molles (1913-1967), certamente a mais conhecida das obras que serão apresentadas aqui. Molles produziu a série para a Rádio Record entre 1954 e 1966. A obra era ambientada na periferia paulistana e contava com Adoniran Barbosa como seu principal radioator. Os trechos de seus roteiros que serão apresentados aqui, foram transcritos e publicados por Ayrton Mugnaini Jr. (2002). Adoniran interpretava, entre outros papéis, o protagonista Charutinho, morador da maloca, que abria o programa com a fala: Essa é minha maloca, manja? Mais esburacada que tamborim de escola de samba na quarta-feira de cinza. Onde a gente enfia a mão no armário e encontra o céu. Onde o chuveiro é o buraco da goteira. Às veis a gente toma banho em bacia e se enxuga com a toalha do vento. E quando não tem água a gente se enxuga antes do banho. Maloca tão pequena que a gente dorme lá dentro e tem que vim puxa o ronco aqui fora... não cabe os dois. Maloca tão miserável que só acende o fogo pra fazer churrasco quando pega fogo. Maloca onde na guerra contra os mosquito os mosquito é que ganharam a guerra. Maloca onde a riqueza é uns pedaço de fome e um pacote de gemido. Maloca... maloca onde eu cresci de teimoso que sô. (MUGNAINI Jr., 2002, p. 59) É evidente, no texto, não apenas o tom crítico, mas também o investimento lírico nos personagens da periferia. Nos programas da série, até a questão da discriminação racial ganhava evidência, com o negro Zé Conversa, outro dos personagens de Adoniran, afirmando em certo momento que Num posso cum essas pestes desses brancos [...] Acha que nóis os preto devia arranjá outro lugá para passeá nos domingo [...]. Eles vão quere me enganá que a Rua Direita é deles! Né não! A rua é livre! Eu sô preto, sô brasileiro e passeio na Rua Direita quando quisé, me bate ninguém vai! (MUGNAINI Jr., 2002, p. 54) 185 Rádio Novo: a crítica social e a experimentação estética no rádio ficcional brasileiro dos anos 1950 Eduardo Vicente Ao discutir a série de Molles, Miriam Goldfeder destaca o seu caráter crítico e a forma pela qual o autor, “superpondo os discursos cômico/trágico, extrai resultados que, à primeira vista, conformistas, desnudavam um espaço pouco consumido por um público de classe média.” (GOLDFEDER, 1980, p. 121). Já de Dias Gomes podemos citar A História de Zé Caolho, minissérie radiofônica veiculada em 1952 pela Rádio Bandeirantes de São Paulo, dentro do programa Sonho e Fantasia6. Em Zé Caolho, o autor apresenta a história de um lavrador cearense, Zé Zeferino, que chega à cidade de São Paulo na esperança de conseguir emprego e uma vida melhor. Ao fracassar na tentativa de obter trabalho, Zeferino, influenciado pelo pedinte Perneta, acaba por se tornar Zé Caolho, um mendigo que finge ser cego de nascença. Após receber um pacote contendo uma grande soma em dinheiro de uma bela e misteriosa mulher, o protagonista, agora rico, concorre inclusive à Presidência da República. Ao final; porém, descobrimos que tudo não passava de um sonho. A contundência política da obra fica evidente logo no seu início quando, após ouvirmos dois personagens pedindo esmolas, temos a fala do narrador: Será crime pedir? Será crime estender a mão à caridade pública? Mãos que deveriam estar dignificadas pelo trabalho? Não, crime não é pedir, crime é dar esmolas. Crime é dos que depositam migalhas nas mãos dos miseráveis em vez de lutar para destruir a podridão social que os criou7. A minissérie traz, ainda, diversas canções populares especialmente compostas, o que contrasta com o acompanhamento orquestral típico das produções ficcionais do período (VICENTE, 2013). Esse procedimento denota o interesse de Dias Gomes em incorporar elementos da cultura popular em suas 6 A análise desse programa foi realizada a partir de uma gravação do acervo do CEDOM, Centro de Documentação e Memória da Rádio Bandeirantes, cedida ao autor por Milton Parron. 7 A gravação original do programa está disponibilizada em <http://youtu.be/JvJ4F5zGhus> (Parte 1) e <http://youtu. be/RY4JKrFxqWw> (Parte 2). Ofereço uma descrição mais detalhada dessa obra de Dias Gomes em Radiodrama em São Paulo: A História de Zé Caolho, de Dias Gomes. Observatorio , v. 7, n. 1, p. 173-185, 2013. Disponível em: <http://obs.obercom.pt/index.php/obs/article/view/623/577>. 186 DOSSIÊ número 24 | volume 12 | julho - dezembro 2018 produções – preocupação que o acompanhará ao longo de toda a sua trajetória radiofônica (SACRAMENTO, 2012). Além disso, tanto nessa obra como nas descritas anteriormente, temos não só o protagonismo de membros das classes populares – mendigos, camponeses, desempregados, etc. – como uma visão mais dura e realista da cidade de São Paulo, bem distante das “mansões” e dos “bairros urbanizados” descritos por Calabre em sua análise das radionovelas da Nacional. Conclusão Este texto buscou demonstrar que, apesar do inegável predomínio da radionovela dentro de uma programação voltada, de um modo geral, para o entretenimento e a afirmação de valores conservadores (GOLDFEDER: 1980), o rádio ofereceu, ao longo dos anos 1950, espaços para uma expressão mais politicamente engajada por parte de alguns de seus realizadores. Neste sentido, esses trabalhos aproximaram o veículo de um processo de crescente politização da produção artística que resultaria, nos anos seguintes em manifestações de grande repercussão em áreas como o cinema (Cinema Novo), a música popular (Tropicalismo, Canção de Protesto), a literatura e o teatro (Arena, Teatro Oficina). Por essa razão, foi utilizada aqui a expressão “Rádio Novo” como uma forma de aproximar a produção dos autores radiofônicos aqui citados ao movimento mais amplo da produção simbólica nacional. Embora não haja aqui nenhuma pretensão de dar às poucas iniciativas apontadas o mesmo peso e abrangência das produções desenvolvidas nas áreas citadas, é importante afirmar a sua existência em um veículo que no Brasil é tido – e não sem razão, devo acrescentar – como tradicionalmente conservador. Também é importante deixar claro o uso de “paulistano” na descrição desse “rádio novo”. Ele se deve exclusivamente ao fato de que as produções analisadas foram efetivamente veiculadas pelo rádio de São Paulo. Como já foi afirmado aqui, entendo que não temos elementos, apesar das afirmações de Goldfeder ou 187 Rádio Novo: a crítica social e a experimentação estética no rádio ficcional brasileiro dos anos 1950 Eduardo Vicente das análises de Lia Calabre, para considerar o cenário radiofônico de São Paulo como radicalmente diferente do carioca. Na análise de Herança de Ódio, de Oduvaldo Vianna, por exemplo, irradiada pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro entre 1951 e 1952, Laura do Carmo aponta que, através do protagonista da narrativa, Vianna “dá voz aos seus ideais comunistas (força do operariado, direito à greve, divisão de lucros, perseguição a políticos corruptos, etc.), estimulando o ouvinte a não se entregar ao conformismo” (CARMO, 2007, p. 11). Neste sentido, talvez uma análise de produções radiofônicas desenvolvidas no Rio de Janeiro e em outros estados do país a partir da queda do Estado Novo demonstre que, mesmo em radionovelas centradas em “uma história de amor entre os protagonistas” (CARMO, 2007, p. 11), preocupações políticas e sociais podem ter ocasionalmente surgido. Assim, mesmo que sem a veemência expressa em alguns dos textos apresentados aqui, é possível que os germes de um “Rádio Novo” tenham estado presentes em diversas das produções radiofônicas realizadas no país durante o período. Referências BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1982. p. 99-181. CALABRE, L. O rádio na sintonia do tempo: radionovelas e cotidiano (1940-1946). Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2006. CARMO, L. Apresentação. In: CARMO, L. do (Org.). Oduvaldo Vianna: Herança de Ódio. Rio de Janeiro: Casa de Ruy Barbosa, 2007. DIAS GOMES, A. Apenas um subversivo. 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