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Madeira, Plumária, Pintura Corporal, Rituais: o caso dos Kayapó (PA) Luíndia Azevedo, L. E1. Jornalista, prof.ª Dept. Comunicação Universidade Federal do Amazonas A maioria dos indígenas brasileiros apropria-se de penas, plumas, penugens de aves e tintas à base de jenipapo, de urucu e de calcário misturadas com óleo de copaíba, tucum, babaçu ou conforme a tradição de cada etnia para com toda uma simbologia própria misturar cores, formas e texturas. Criam, assim, adereços e pinturas corporais que fazem parte de suas formas simbólicas, entendidas por Thompson (1995) como ações, objetos e expressões significativas de vários tipos, estruturados em contextos e processos socio-históricos específicos, através dos quais, essas formas são produzidas, transmitidas e recebidas. Funcionam em contextos estruturados como: “valor simbólico”, quando as formas simbólicas são apreciadas ou desprezadas pelos indivíduos; e, “valor econômico”, quando as formas são trocadas no mercado. A valoração econômica é um processo desenvolvido historicamente e, nas sociedades atuais, assumiu o papel de mercadorias ou bens simbólicos, estes podem ser comprados, vendidos ou trocados de qualquer modo no mercado. Objetiva-se analisar a arte plumária e a pintura corporal dos Kayapó, do Pará para os quais a ornamentação do corpo era a característica mais original de sua cultura, porque estabelecia um processo de diferença entre ser índio Kayapó e os outros seres vivos da floresta. Anteriormente, expressavam um “valor simbólico” e se relacionavam com a vida cerimonial em oposição ao cotidiano. Atualmente, o valor simbólico é perpassado por vários fatores e atinge o “valor econômico”. A transformação é marcada, sobretudo, pelas relações de demarcação de territórios, conflitos com diversos atores sociais e pela inserção na economia de mercado através da exploração de madeira. Estas facetas revelam que os Kayapó não estavam preparados para agirem como atores sociais na busca de gerenciamento de recursos, e ao mesmo tempo, de afirmarem o sentimento de unidade de grupo e conservação dos ambientes. Questiona-se: sob quais condições se deu a passagem de valor simbólico para valor econômico? A comercialização e a demanda de mercado pelos adornos retirou ou não a qualidade, a identidade étnica e o sentimento de pertença das formas simbólicas? As mudanças de padrões de consumo advindas da exploração de madeira fundamentaram sustentabilidade e melhoria na qualidade de vida no coletivo, ou só para alguns líderes? Primeiro, faremos uma contextualização territorial, política, econômica, sociocultural, ecológica dos Kayapó, no Pará. Enfatizaremos o modo de produção e reprodução anteriormente, e a atual articulação com o mercado advindas do processo de exploração de madeira e ouro, bem como os padrões de consumo e mudanças. Segundo, discutiremos os projetos alternativos desenvolvidos pelo Governo, Ibama, Funai, Fundações e Ong’s, sob a perspectiva de os mesmos fornecerem ou não sustentabilidade, geração de renda e conservação dos recursos naturais dentro da visão de coletividade e sentimento de pertença. Terceiro, analisaremos os enfeites de pena, a pintura corporal e os rituais sob a visão de valor simbólico, suas condições de passagem do valor simbólico para o valor econômico e suas implicações positivas e negativas para os Kayapó. 1 Publicado In: SIMÕES, M. S. (org.). VII IFNOPAP: Populações e tradições às margens do rio Tocantins: um diálogo entre a cultura e biodiversidade ed. Belém-PA : UFPA, 2004, p. 225 -248. Contextualização territorial, política, econômica, sociocultural e ecológica Os índios Kayapó habitam uma vasta área localizada nos estados do Pará e de Mato Grosso. Falam uma língua do tronco Jê, e os grupos Kayapó se autodenominam “Mebêngôkre” (povo nascente d’água). A maior aldeia se encontrava no Posto Indígena Gorotire, criado em 1938 e que serviu de base para outros grupos àquela época ainda não contatados. Nele viviam representantes de todos os subgrupos Kayapó, com uma população com mais de 1000 pessoas. O posto localizase no Pará, às margens do rio Fresco, afluente do Xingu, cerca de 100 km a oeste de Redenção, numa área de alta diversidade ecológica. A aldeia denominada de Pykatôti tinha a forma tradicional circular e possuía duas “casas de homens”, uma orientada na direção do leste (nascente) e a outra, na direção do oeste (poente). Embora Pykatôti fosse permanentemente habitada, grupos saíam em excursões por semanas e até por vários meses. Os viajantes retornavam à aldeia com penas valiosas, itens rituais e abundante carne para as cerimônias. Pykatôti era dirigida por dois Mebenjadjwyra rax (caciques fortes) e numerosos Mebenjadwyra (caciques secundários). As mulheres também possuíam uma organização bem estruturada com a sua própria Menire nhô mebenjadjwra (capitã), responsável pela organização das atividades econômicas ligadas à agricultura e à vida social feminina. Provavelmente, por volta de 1919, Pykatôti foi totalmente abandonada (POSEY: 1987). Os Kayapó classificavam seus recursos naturais em diversos ecossistemas. Cada ecossistema era visto como uma unidade coesa de interações entre plantas, animais, tipo de solo e o próprio homem. Em resumo, manipulavam os ecossistemas para maximizar a diversidade biológica e manter próximos de si os animais e as plantas que mais apreciam.(Ibid.: 23-5) Em 1936, por ocasião dos primeiros contatos com os Gorotire através de missionários e o extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI), hoje, Fundação Nacional do Índio - Funai, os indígenas já usavam roupas e espingardas, porém constituíam uma comunidade reduzida e enfraquecida por enfermidades. Após seis meses de contato, dos 356 sobreviveram somente 85. Segundo Posey (1987), os conflitos e a tensão chegaram ao máximo, houve separação do grupo e a formação de quatro subgrupos: 1. Kayapó-Mekrãgnoti através dos Postos indígenas – P.I. (P.I. Mekrãngnoti, P.I. Pykany, P.I.Jarina, Ingú e P.I. Kretire); 2. Kayapó- Gorotire (P.I. Gorotire, P.I. Kikretum, Kubekrãken, P.I. A-ukre, P.I. Kokraimôrrô e P.I. Karara’ O; 3. Kayapó- Xicrin (P.I. Cateté e P.I. Bacajá) e, 4. Aldeias Isoladas (Karara’O, Py’rô, Ngra-mrári, Pituirarô e Pykatoty). Desde a ruptura de Pykatôti, os Kayapó não foram mais capazes de estabelecer uma só aldeia com ambas casas de homens, nem de chegar a um acordo sobre quem, nos tempos modernos deveria ser o cacique forte. A dispersão dos grupos levou a uma redução de cerimoniais em virtude da ausência de especialistas na questão e o mesmo processo deve ter ocorrido em outras áreas do saber e da prática, dando origem à fragmentação e à redução cultural. Em 1936, os Kayapó já não utilizam as pinturas corporais como “roupas”, abandonaram a Dança da Vespa, durante a qual os guerreiros eram repetidamente picados por marimbondos numa “luta” cerimonial. O uso de grandes rodelas de enfeites nas orelhas e de botoques nos lábios também cedeu à pressão de sentirem-se envergonhados diante dos não-índios (Id.: 1982; 1987). Durante os anos 70 e 80, as atividades de pecuária, extração de madeira e mineração foram estabelecidas, em sua maioria ilegalmente, mas com a conivência da Funai e também de alguns líderes do povo Kayapó. A partir de 1983, se intensificaram as mudanças de comportamento através de novas indumentárias, de objetos eletro-eletrônicos e, principalmente, da necessidade de gerar recursos para o custeio dessas novas formas de vida e de consumo. Chegaram a igreja, a escola, o exército, os fazendeiros, os posseiros, as mineradoras e os garimpeiros concorrendo mais, ainda, para a ruptura do conhecimento tradicional. Conflitos armados contra os invasores se produziam cada vez mais, esfacelando a coletividade, o sentimento de unidade e pertença dos Kayapó. O processo fomentou o surgimento de muitos “mekte-pidja-mari”, conhecedores de plantas que não proclamam uma relação com os espíritos, mas apenas argumentam lidar com as propriedades curativas de certas plantas. Os rios ficaram poluídos por mercúrio e outros produtos químicos usados na exploração do ouro. Estradas foram abertas na floresta para facilitar o acesso de madeireiros. Os líderes Kayapó, com o pagamento recebido compraram carros, avião, tratores, antenas parabólicas, televisões, relógios e comidas importadas e outros objetos de consumo. De acordo com a maioria dos pesquisadores, tal acesso não foi compartilhado por todos indígenas e as condições de educação e de saúde eram péssimas. Por pressão do Banco Mundial, a Companhia Vale do Rio Doce - CVRD se viu obrigada a investir cerca de US$ 12 milhões em demarcação e programas de educação, saúde e infra-estrutura básica nas áreas indígenas dos Xicrin do Cateté, situadas na área de influência de suas minas e ferrovia (Estrada de Ferro Carajás) em 1982. Neste caso dos Xickrin, a CVRD firmou um convênio com a Funai (Convênio/CVRD/Funai N. 453/89), objetivando o controle de seus limites a oeste e a proteção dos indígenas. A demarcação administrativa desta reserva detentora de 439.150 ha foi homologada através do Decreto No. 384, de 24 de dezembro de 1991 (COELHO, no prelo). A maioria das terras Kayapó foi demarcada entre as últimas décadas de 1980 e o início de 1990 (TURNER: 1995). Após um longo tempo de espera e de pressões, em 2003, Baú, localizada em Altamira, no sul do Pará foi demarcada como Terra Indígena. Hoje, os Kayapó totalizam aproximadamente 5.000 índios, e apesar, deste número ser considerado pequeno, a influência histórica dos Kayapó a outros povos indígenas, especificamente no que se refere ao manejo da natureza, deixou uma marca profunda na composição do ambiente da Amazônia (OLIVEIRA e HAMÚ, 1992). No final de 94, os Kayapó Gorotire rebelaram-se contras os invasores e pouco depois outras comunidades apoiadas pela Polícia federal se uniram para expulsar os madeireiros de suas terras. Contudo, o período da expulsão durou pouco, pois os indígenas continuavam dependentes das novas formas de vida. Logo, permitiram aos madeireiros a continuação de suas atividades. Algumas tentativas foram colocadas em prática para afastar os Kayapó e as empresas da exploração predatória de madeira: o Tribunal Federal suspendeu a extração de madeira de áreas indígenas e aplicou multas às companhias madeireiras responsáveis pelos danos ambientais. Entretanto, muitas madeireiras ilegais continuam a retirar madeira, com o beneplácito de alguns líderes indígenas e do próprio Ibama. Projetos alternativos à exploração predatória de madeira Manejo Florestal Inseridos num contexto regional de exploração predatória de madeira de lei, mogno, os Xicrin do Cateté, no sul do Pará, aderiram às pressões e assinaram contratos com madeireiras. Para se contrapor a esta situação, surgiu um projeto de manejo florestal (corte seletivo de madeira em floresta nativa) na área, coordenado pelos Xicrin através da Associação Bep-Nói, o Instituto Socioambiental – ISA -, com o apoio logístico e financeiro da CVRD e do Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil. A partir de 1990, a equipe realizou debates sobre criminalização das empresas madeireiras, conseqüências ambientais decorrentes desta exploração, gerenciamento de recursos naturais e alternativas econômicas. Os debates objetivavam aprofundar o conhecimento sobre o potencial dos recursos florestais existentes na área como forma de mobilização dos próprios indígenas contra a ação das madeireiras, além de qualificar as discussões sobre alternativas econômicas e gerenciamento dos recursos naturais pela comunidade. Para a equipe, os Xicrin passaram por “mutações sociais” e se adaptaram constantemente às mudanças. Estas não são recentes, dão corpo a uma espiral que de dentro para fora se amplia rapidamente causando mais impactos e onde as soluções somente podem ser vistas através de uma nova forma de manejo. Com a diminuição das áreas de caça, coleta e agricultura decorrente do contato, e com a criação da necessidade de bens de consumo, a comercialização de produtos indígenas vêm se constituindo em alternativa econômica viável. O ISA se retirou do projeto há mais ou menos de três anos, pois os Kayapó queriam prosseguir sozinhos. Muitos problemas têm ocorrido na área, principalmente, em relação aos planos de manejo florestal. Segundo os Kayapó, os planos necessitam da análise e autorização do Ibama, mas o órgão é lento na distribuição das Autorizações para Transporte de Produtos Florestais, documento necessário para a comercialização da madeira. Em julho de 2003, o IbamaPA suspendeu a análise dos planos de manejo florestal em várias áreas indígenas e não indígenas, fato que deu origem ao protesto de cerca de mil trabalhadores madeireiros na frente da sede da referida instituição. No Pará, as indústrias madeireiras empregam 80 mil trabalhadores diretos, e 300 mil indiretos (Diário do Pará, 24 jul. 03) No decorrer 2002 e 2003, várias denúncias na mídia regional confirmam a exploração madeireira, em terra indígena dos Xicrin, Trincheira/Bakajá. A mesma situação impera na terra Apyterewa e mais recentemente, várias infrações foram registradas na terra indígena Arara. Os índios moradores da terra indígena Kararaô detectaram retirada de madeira e estão negociando com madeireiros. Sementes: o lucro ecológico Em 2002, a Funai, os Kayapó das aldeias Gorotire, Kubenkraken e Moikarakô e o Clube de Semente do Brasil, Olhos D’água -Goiás estabeleceram uma parceria para fomentar alternativas à obtenção de recursos financeiros e proporcionar autosuficiência aos Kayapó. As três aldeias ligadas a Redenção possuem mais de vinte áreas de castanhais, todavia, a produção se perde anualmente, por falta de condições de exploração. O objetivo da parceria foi de estimular a coleta e a venda de sementes para todo Brasil, gerando renda para a comunidade indígena envolvida, afastando, desse modo, os Kayapó do comércio de madeira. Segundo a Funai, o referido comércio só beneficia os madeireiros. Estes compram por R$ 50,00 uma árvore de mogno e a mesma demora aproximadamente 30 anos para atingir a idade adulta. Tal situação provoca danos ao meio ambiente. Com a venda das sementes, os indígenas poderiam auferir anualmente até R$ 180,00 por árvore que permanecerá intacta e pronta para novas produções. Wagner Tramm, do Departamento do Patrimônio Indígena e Meio Ambiente (Depima) da Funai, afirma: “os Kayapó estão se acabando culturalmente. Perdem a natureza e os índios. Estes ficam cada vez mais pobres enquanto os madeireiros enriquecem. Os Kayapó passaram a ter outras necessidades e só negociam a madeira por falta de alternativas econômicas”. A Funai se responsabilizou pelas despesas relativas à oficina de capacitação e à implantação do viveiro para a produção de plantas. O Clube ensinaria aos índios coletar, conservar, propagar, disseminar e tratar das sementes, bem como, construir viveiros, plantar mudas e recuperar áreas degradadas. A Funai teve o apoio do Ibama através de leilões de madeira apreendida fora das terras dos índios. De acordo com Tramm, a experiência funcionou apenas em 2002. Em 2003, com a mudança de governo, nada foi realizado. No momento, algumas discussões tentam dar prosseguimento ao projeto. A respeito dos leilões de madeiras realizados pelo Ibama, Tramm não se posicionou em relação ao assunto. Entretanto, notícias na mídia regional denunciam que a madeira autuada pelo Ibama jamais se reverte a favor dos indígenas. Exemplo dessa situação ocorreu por ocasião da apreensão de 70 toras de mogno da terra indígena Apyterewa, em 1997, tendo a administração do referido órgão investido cerca de R$ 30 mil para escoar a madeira até a cidade de Altamira para ficar sob a guarda do Exército. Com o passar dos anos e dependentes de autorizações judiciais para leilão de madeira, nenhum comprador se interessou em adquiri-la, em razão de seu apodrecimento quase total. Óleo de castanha, pulseiras x Body Shop A Body Shop, multinacional inglesa, fabricante de produtos de higiene pessoal e com lojas em 44 países, tem como lema Comércio, Ajuda Não. Seu princípio é de que os povos da floresta possuem o direito de continuar com suas maneiras tradicionais de vida e determinar seu próprio futuro. De acordo com Clay (2002) a empresa e os Kayapó acordaram um projeto para a extração de óleo da castanha-do-Pará, produto abundante na área. Os índios responsabilizaram-se pela extração do óleo para ser usado em condicionadores para cabelo. A Body Shop financiou mais de 450 mil dólares para projetos de geração de renda e cedeu funcionários. Fundações como Cultural Survival, Rainforest Foundation, dentre outras, doaram fundos adicionais para Paiakan e a Companhia Comercial de A-Ukre, fundada em 1991. A Body Shop investiu mais 500 mil dólares para programas de saúde e usou estes fundos como contrapartida para obter mais de 2,93 milhões de dólares do Banco Central para programas de saúde na região entre 1993 e 1998. Saulo Petean, representante da Body Shop, contratado em 1990 ajudou a supervisionar o controle de qualidade e as finanças do negócio. A empresa custeou 15.000 dólares para as áreas de coleta, sistemas de transporte e infraestrutura e, 80.000 dólares à compra de barcos, motores de popa, bombas de água, equipamentos de fábrica. Um avião foi comprado para as atividades comerciais e transporte de doentes. Em 1991, começaram os impasses entre a empresa e os indígenas. Os U$ 80.000 de empréstimo foram gastos pelos Kayapó antes do inicio da coleta e processamento do óleo. A empresa reconheceu a perda do empréstimo original e financiou os custos de capital de giro do projeto em uma base anual, deduzindo a quantia adiantada do pagamento do óleo recebido. Foi estimado que a A-Ukre poderia produzir cerca de 3.500 quilos de óleo das 22 toneladas de castanha coletadas. Em 1992, a Body Shop instalou a mesma operação na vila de Pukanuy, na reserva Mekaranotire. O investimento inicial foi de U$ 70.000. Para monitorar o impacto da coleta da castanha, contratou-se uma equipe internacional de três pessoas para conduzir o estudo (Ibid.: 35-40). Além desta experiência, uma outra foi formada pela Body Shop e mulheres artesãs Kayapó. Para Clay (2002: 50) a empresa estava interessada em colocar dinheiro nas mãos das mulheres para satisfazer as necessidades da família. Em 1993, as mulheres entregaram 20 mil braceletes de contas multicoloridas (miçangas). Em 94, 50 mil e em 1995, 30 mil. Cada artesã recebia U$ 3,50 por unidade. 15.000 dólares foram adiantados para comprar as contas coloridas e o fio. Saulo Petean levou dois indígenas a São Paulo para ensinar-lhes onde, como comprar e como negociar melhores preços. Cada mulher recebia contas e fios para fazer 25 a 30 pulseiras e recebia pagamento quando confeccionasse 20 ou mais braceletes. Cada artesão podia ficar com 25% a 33% de sua produção. Os pagamentos eram feitos por meio dos chefes. Saulo e um representante dos Kayapó contavam as pulseiras e calculavam a quantidade devida a cada artesã. Cada mulher recebia seu pagamento em envelope lacrado. Um problema de qualidade surgiu: as mulheres tendiam a manter as contas vermelhas e azuis para elas e usavam as outras cores para as pulseiras a serem vendidas. Pelas pulseiras que ficavam não recebiam pagamento. Depois de um tempo, os clientes reclamaram da pouca diversificação dos modelos e cores e o negócio foi extinto (Ibid.: 49-50). Após alguns desentendimentos, houve o afastamento de Saulo em 1996. Logo depois Body Shop começou a enfrentar alguns problemas em relação ao “uso de imagem dos Kayapó”. Saulo Petean, em artigo intitulado “Broken Promises” (htpp://www.indian-cultures) informa que nos anos 90 a empresa Body Shop tentou aumentar sua visibilidade mundial unindo sua imagem com os indígenas e produtos da floresta tropical de Brasil. A associação gerou propaganda gratuita na mídia para a empresa, porém, esta imagem tornou-se problemática para os indígenas: o chefe Pykati-re, da aldeia Pukany caracterizou as promoções de impróprias e processou a companhia por não cumprir seu compromisso pagando o uso de imagens dos indígenas. A foto de Pykati-re com cocar tradicional e com os ‘dedos polegares para cima' foi usada em milhares de cartazes e folhetos como publicidade da empresa e, também, para levantar fundo de ajuda aos Kayapó. Anciões da aldeia afirmam não ter recebido dinheiro nem da publicidade e nem do referido fundo de ajuda. O Instituto para Desenvolvimento Estudos na Universidade de Sussex, alega que os líderes Kayapó não concederam direitos de uso de imagem para a companhia. Enfatiza que a mesma rompeu estruturas sociais datadas de longo tempo. De acordo com Petean, a empresa sofreu crítica acentuada de pesquisadores e da mídia por vender produtos falsificados, bem como por explorar povos do terceiro mundo. Para ele, a empresa cultivou uma reputação de uma companhia "verde", com responsabilidade social e que abriu caminho no comércio unindo duas culturas diferentes. Entretanto, os indígenas foram usados apenas como uma ferramenta de marketing. Petean contesta as informações de Clay (2002) a respeito de a Body Shop ter investido na área de saúde: o projeto foi desenvolvido pelo Ministério de Saúde e pela Funai, com verbas do Banco Mundial. Saulo finaliza esclarecendo que a disputa de novo contrato, ainda, permanece insegura e que a empresa tentou conseguir o apoio da Funai como sua aliada. Por sua vez, a Funai afirma ser o contrato inválido pela lei brasileira porque as comunidades indígenas não foram representadas através dela no contrato anterior. Plumária, pinturas corporais e rituais: valores simbólico e econômico De acordo com (Nicola e Dorta: 1986) as obras de plumária são o elo unindo o terreno ao transcendente e refletem a comunhão de quem as cria com o ambiente físico através do diálogo íntimo e natural que o indígena estabelece com o seu universo. As primeiras referências sobre esta arte encontram-se na carta de 1500 de Pero Vaz de Caminha a El-Rei Dom Manuel, citando adornos usados pelos Tupinambá. A arte plumária apresenta dois grandes grupos: adornos corporais, o majoritário, e o minoritário que congrega máscaras, trançados, brinquedos, armas e instrumentos musicais. Destacam-se na arte plumária os Urubú (Kaapor), Borôro, Karajá, Kayabí, Kaxináwa, Rikbáktasa, e os subgrupos Kayapó. Em uso, os adornos corporais correspondem ao desejo de agradar a vista, de atrair sexualmente parceiros e de codificar a diferenciação social e étnica. Segundo Nicola (1982:4) o índio brasileiro adota em seus adornos o que de mais belo e vistoso existe em seu mundo, ou seja, penas, plumas e penugens das aves de tamanho, formas, texturas e cores diversas. Para os Kayapó, do Pará a ornamentação do corpo era uma das características mais originais de sua cultura. A ornamentação do corpo conferia ao indivíduo o status de ser humano em contraposição aos outros seres vivos da floresta e, principalmente, estabelecia uma diferenciação de outros grupos indígenas habitantes da mesma região. Para ser Kayapó era necessário se apresentar adequadamente pintado e ornamentado seguindo os padrões tradicionais próprios a estas comunidades. A plumária Kayapó era extremamente variada: cocares, testeiras, diademas, braçadeiras, pulseiras, bandoleiras, dorsais, todas com penas coloridas das aves como a araracanga, a arara vermelha e a arara Canindé. A plumária, por estar ligada aos rituais, se executava na casa dos homens. Usa-se a plumária nos rituais de nominação, iniciação masculina, no casamento, e nos ritos funerários. De um modo geral, os enfeites de pena se relacionam com vida cerimonial em oposição ao cotidiano, quando a prevalecia a pintura corporal como único adorno do corpo. Dentro deste contexto, os adornos plumários expressavam valoração simbólica, utilitária e de diferenciação. A mitologia Kayapó-Xicrin era repleta de personagens isolados ou em grupos paramentados com adornos plumários, além de seres humanos recobertos de penas, à semelhança de pássaros. O uso de penugem colada à cabeça, tão característico do grupo, tem sua explicação no mito dos dois irmãos Kukrút-káko e Kúkrut-uíre. O mesmo relato narra a origem de várias aves, a partir da transformação das penas tiradas de um gavião, depois de morto pelos heróis (VIDAL, 1977). O diadema. Krokrok-ti, dos Kayapó-Xicrin pode representar um olho ou o sol, no entender de Vidal (1980), simboliza antes de tudo a forma circular de uma aldeia onde as penas azuis centrais, representam a praça, o lugar masculino e o ritual por excelência. A fileira de penas vermelhas, a periferia, as casas, o mundo doméstico e das mulheres. As penugens brancas amarradas nas pontas, a floresta...” Um artefato plumário envolve técnicas de transformação, aumentando, desse modo, as potencialidades estéticas oferecidas pelas penas, e técnicas de fixação, que permitem ao plumista exercer plenamente sua capacidade inventiva. A tapiragem visa obter a modificação da cor das penas de aves vivas, principalmente de papagaios e araras. Transformam-se, dessa forma, penas verdes em azuis e amarelas friccionando determinadas substâncias de origem vegetal ou animal na pele da ave ou fazendo-a ingeri-las. A cor confere inegável atrativo visual às peças e tem um papel fundamental na esfera das representações simbólicas, sendo muitas vezes associadas ao nascimento, à morte, ao prestígio social, ao poder político e religioso. A pintura corporal era uma produção feminina, cotidiana, executada nas casas e representava “a roupa” dos indígenas. Servia, também, para defendê-lo contra o sol, os insetos e os espíritos maus. As cores e os desenhos representam desenhos de peixes, de aves e outros, estruturados dentro de um contexto e funcionando como um código: boa tinta, boa pintura, bom desenho garantem boa sorte na caça, na guerra, na pesca, na viagem. Nos dias comuns, as pinturas são simples, porém nas cerimônias mostra-se requintada cobrindo também a testa, as faces, o nariz, as costas, o tórax, pernas e braços dos homens. A pintura das mulheres se concentra mais no rosto, nos braços e nas pernas (teve-se oportunidade de verificar os mais variados desenhos nos Jogos Indígenas - Pará e Tocantins -). Ao representar uma característica e original e, ainda, de proporcionar um diferencial dentre outras etnias, os adornos plumários e a pintura corporal funcionam como formas simbólicas. Para Thompson (1990: 181-220), “as formas simbólicas são construídas e produzidas dentro de processos envolvidos por códigos e convenções de vários tipos, exibindo, então, uma estrutura articulada representativa e dizendo algo sobre alguma coisa, dentro de um contexto específico”. Dentro destes aspectos, a ornamentação do corpo através da plumária e da pintura tinham valor pessoal, utilitário e representativo para os Kayapó, porque referendavam um processo complexo de sua identidade étnica, conferindo-lhes posição e categoria dentro de contexto específico inerente à etnia. Para eles representava a sua “vestimenta”, ou seja, um processo de valorização e de afirmação cultural, já para os colonizadores apenas desenhos desprovidos de significado simbólico. Quando os Kayapó despem suas “pinturas” e “corporificam” a indumentária do outro, este ato passa a navegar no campo de interação de Bourdieu (1989), pois determina diferentes posições. Para os indígenas, dizem algo sobre o capital simbólico e cultural, para os “invasores”, o capital econômico e o início do processo de troca, onde as relações de poder e de barganha são desiguais. O processo de valorização é diferente para cada ator social e tanto o simbólico quanto o econômico refletem conflitos. Quando há uma combinação das duas valorações, temos uma valoração cruzada. Esta se refere a estratégias de conversão de capital através das quais o indivíduo procura converter um tipo de capital em outro, e reconvertê-lo em um estágio posterior do ciclo de vida, a fim de preservar ou melhorar, de modo geral, sua posição social. O que já estava “esquecido” é reconstruído e gerenciado para gerar renda. Assim, as pulseiras de miçangas das mulheres Kayapó foram comercializadas com a Body Shop para proporcionar uma melhoria na qualidade de vida de suas famílias. Neste mesmo patamar, a pintura como vestimenta cotidiana cedeu espaço às roupas. Em posições subordinadas, os indígenas são conduzidos pela praticidade e/ou encontram uma maneira de afirmar o valor de seus próprios produtos e atividades sem romper fundamentalmente com distribuição desigual de recursos. Para Posey (1982; 1984; 1987; 1994) a dispersão de grupos de Kayapó desde 1936 provocou várias mudanças no sistema tradicional dos mesmos. A Pykatôti desapareceu completamente e, nos tempos modernos, não há um grande cacique representativo de todos os subgrupos. Cada aldeia funciona como uma unidade política e independente. O sentimento de coletividade e de parentesco perdeu-se. Em relação aos rituais, conforme (Lea: 1986, apud Posey, 1994) há uma grande variação de mitos, canções, estórias e rituais apresentados nas aldeias, porque o grupo de herança está sem representantes antigos. Os rituais requerem pessoas especializadas presentes, na ausência, os rituais passam a ter significados diferentes. O ritual de nominação Bemp quando eram dados os nomes de maior status dos Kayapó, desapareceu. Bemp, hoje, é considerado um nome bonito, entretanto, não tem mais conotação de categoria e posição. A memória oral nos rituais é muito importante, sua perda, de certa forma, contraria a lógica da manutenção de identidade coletiva e não assegura a perdurância do grupo. Recorre-se, aqui, a Maffesoli (1998: 25) explicando que o desenvolvimento do ritual não é orientado para um fim, pelo contrário, ele é repetitivo e, por isso mesmo dá segurança à coletividade. Sua única função é reafirmar o sentimento que um dado grupo tem si mesmo, a exemplo das festas. Amplia-se a formulação, esclarecendo-se que os rituais implicam a mobilização das comunidades no gerenciamento de recursos naturais e sob a perspectiva de coesão da coletividade. Esse processo fomenta a interpretação do patrimônio, compreendida como a soma de significados e demonstração de interações do ambiente, da cultura e da história de um lugar. Muitas recriações foram introduzidas na plumária, na pintura e nos rituais. Desde algum tempo, as pulseiras, brincos, braceletes e colares de várias voltas são de miçangas multicoloridas. Mesmo de miçangas, predominam as peças em azul e vermelho. Desconhece-se o responsável pela sua introdução, uns apontam os missionários, outros a CVDR. Nos Jogos Indígenas, indagou-se de alguns Kayapó sobre o assunto. Não foram específicos, apenas responderam que eram importadas das Filipinas. Os braceletes têm desenhos que vão desde a bandeira dos Estados Unidos aos clubes de futebol do Brasil, e principalmente do Remo e Paissandu, times do Pará. Enquanto alguns alegam que o uso de miçangas descaracteriza os adornos, acredita-se ser até mais ecológico do que o uso de penas para os mencionados enfeites. Há uma constante comercialização de penas para artesanato entre os indígenas do Norte e Centro Oeste para os do Nordeste. Isto foi observado tanto com os Pataxó, em Coroa Vermelha, Porto Seguro, quanto nos Jogos Indígenas. Sobre o assunto menciona-se a operação “Selo Verde”, sob o patrocínio do Ibama e Funai desenvolvida desde 2002, em Parintins-AM, por ocasião do Festival dos Bumbás. A campanha visava conscientizar os visitantes a comprar artefatos de penas somente com “selo verde”, impedir o comércio ilegal e fomentar retorno financeiro aos indígenas. A campanha “Não tire as penas da vida” não fortalece o comércio ilegal e pode trazer melhorias substanciais na renda das populações indígenas. Porém, indaga-se, independente de ter ser sido confeccionada por indígenas, isto supõe um comportamento mais ecológico? Qual a vantagem de comercializar sua arte? Sobrevivência? Reafirmação de orgulho étnico? Transformar formas simbólicas em mercadorias é substituir objetos únicos por objetos feitos em série, e inclusive, vendê-los barato. Através da pressão do mercado, haverá de certa forma um acréscimo substancial na escassez de matérias primas o que demandará uma relação injusta para a regeneração natural dessas aves. Para Galvão (1979) os artefatos modernos não representam uma decadência de modelos précolombianos, extintos pela conquista, mas a sobrevivência de outras tradições também arcaicas, mas historicamente diversas. A transformação do valor simbólico em valor econômico do artesanato traduz-se, em muitos casos, a sua qualidade inferior no presente, se deve a efeitos de processo mais geral de contato entre as sociedades indígenas dominadas e a sociedade nacional dominante que traumatizou ou levou à desorganização cultural daquelas. A comercialização de alguns produtos de maior procura pelo interesse turístico levou a uma produção em maior escala e menos cuidada, a exemplo das bonecas e adornos dos Karajá, do rio Araguaia e das gamelas (espécies de pratos fundos de madeira com diversas formas) vendidas pelos Pataxó, no extremo sul da Bahia. Mesmo navegando numa área bastante conflitiva, onde atores sociais como indígenas, missionários, madeireiras, Ong’s, mineradoras, Funai, Ibama e empresas multinacionais disputam as formas simbólicas sob os mais variados interesses, estas independentes de suas constantes recriações podem, ainda, compor um universo visual, heterogêneo, gerador de renda e autogerenciador da sociobiodiversidade dos Kayapó. As reinvenções, apesar de orientadas quase que exclusivamente para a economia de mercado, ainda que sob um fio quase invisível de tradição, constitui-se um meio de comunicação de aspectos importantes da cultura, da vida social e da visão de mundo da etnia. Referências BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Betrand, 1989. CLAY, J. Os Kayapó e a Body Shop: a parceria de comércio com ajuda. In: ANDERSON, A; CLAY, J. (orgs.). Esverdeando a Amazônia: comunidades e empresas em busca de práticas para negócios sustentáveis. 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