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RELATÓRIO TÉCNICO Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical 34(1):103-105, jan-fev, 2001. Antimoniato de meglumina No ano de 2000, o Ministério da Saúde, por meio de processo licitatório, adquiriu o antimoniato de N-metil glucamina, cujo nome comercial é o antimoniato de meglumina do laboratório Eurofarma (produto registrado como similar1 na Agência Nacional de Vigilância Sanitária/ Ministério da Saúde) para o tratamento dos pacientes portadores de leishmanioses. Esse medicamento foi distribuído diretamente do produtor para as Secretarias Estaduais de Saúde e Coordenações Regionais da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), a partir de 30 de abril próximo passado. O antimoniato de N-metil glucamina é o fármaco de primeira escolha para o tratamento das leishmanioses. Este fármaco é um produto que requer administração cautelosa, sob acompanhamento clínico e laboratorial, por ser cardiotóxico, hepatotóxico e nefrotóxico. A partir de outubro de 2000 a Fundação Nacional de Saúde/FUNASA, por meio do Centro Nacional de Epidemiologia, recebeu notificações de eventos adversos de severidade grave (abscessos estéreis, intensas dores musculares e nas articulações reações alérgicas) em pacientes que encontravam-se fazendo uso do referido medicamento. Essas notificações iniciaram-se nos Estados do Piauí, Paraná e Mato Grosso, estendendo posteriormente a outras unidades federadas. O Centro Nacional de Epidemiologia (CENEPI), em 10 de outubro de 2000 convocou o Comitê Técnico Assessor em Diagnóstico e Tratamento das Leishmanioses, que reúne os principais especialistas brasileiros, para analisar esses relatos, tendo o mesmo recomendado a suspensão da utilização dos lotes desse medicamento relacionados com os eventos notificados. O CENEPI/FUNASA, nessa ocasião, informou esse fato ao Ministério da Saúde e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária e enviou ofícios aos Secretários Estaduais e Coordenadores Regionais da FUNASA suspendendo a utilização dos lotes 05/00A, 05/00B, 10/00A, 10/00B, 16/00, 17/00A E 23/00B. O CENEPI/FUNASA iniciou uma investigação epidemiológica mais detalhada das reações adversas notificadas nos Estados do Piauí e Paraná. No Piauí, a investigação abrangeu 99 pacientes de Teresina, correspondendo a 70% do total dos submetidos ao tratamento com esse medicamento. Nesse estudo, foi encontrada uma taxa de ocorrência de enduração ou abscessos extensos no local da aplicação do medicamento de 38,4% e 8% dos pacientes, respectivamente, apesar desses tipos de reação adversa não serem esperados de ocorrer nessas proporções. Dentre os lotes usados, o 05/00A, o 05/00B e o 10/00B apresentaram elevadas taxas de ataque para enduração ou abscessos de 43,5%, 22,2% e 33,3%, respectivamente. Para o lote 17/00A, a taxa de ataque foi de 5,5% e os três pacientes que fizeram uso do lote 09/00 B não apresentaram reações. Realizou-se também um estudo epidemiológico que comparou os pacientes que utilizaram esses lotes com um grupo de pacientes que utilizou outros lotes do mesmo medicamento, encontrando-se associação estatística com o desenvolvimento de enduração e/ou abscessos, verificando-se Riscos Relativos de 2,6 ( IC de 1,7 a 3,8), 2,5 (IC de 1,6 a 3,7) e 2,3 ( IC de 1, 5 a 3,6), respectivamente, para os lotes 05/00 A, 05/00B 10/00B. A análise desse estudo não encontrou associação entre os eventos e a dose aplicada, o sexo e a idade dos pacientes. Os estudos no Estado do Paraná encontram-se em fase de análise dos resultados. O CENEPI/FUNASA providenciou o encaminhamento de amostras desses e de outros lotes relacionados com a ocorrência dos eventos adversos para a realização de análises laboratoriais. Como o referido medicamento não possui informação científica publicada nas farmacopéias brasileira e internacional, que estabeleçam parâmetros para o controle de qualidade, utilizou-se a comparação com o medicamento registrado no Ministério da Saúde como inovador2 (Glucantime-Aventis). Foram encaminhadas ao Instituto Oswaldo Cruz/ FIOCRUZ amostras de quatro lotes relacionados com eventos adversos nos Estados do Piauí, Rio de Janeiro e Paraná, o 23/00B, o 10/00B, o 05/00B, o 17/00 A, do produto da Eurofarma e do lote 266 do laboratório Aventis, para a realização de microscopia eletrônica. O resultado desta microscopia, pelas técnicas de varredura e transmissão, detectou a presença de estruturas fibrosas em todos os lotes do antimoniato de meglumina da Eurofarma analisados. No lote analisado do medicamento inovador do laboratório Aventis, não foram detectadas estruturas fibrosas . O Instituto Oswaldo Cruz sugeriu que fosse realizada a pesquisa de metais para esclarecer esse achado. Por não existirem referências de Limite Máximo Esperado (LME) de metais pesados para este medicamento, pesquisou-se na farmacopéia brasileira (3a edição) os LME para outros medicamentos injetáveis. Os valores encontrados como LME para esses medicamentos tiveram uma variação de 10 a 25mg/l. 1, 2. Produto similar é todo produto registrado no Ministério da Saúde a partir de um produto com as mesmas características e princípio ativo já registrado, que por sua vez é denominado inovador. Endereço para correspondência: CENEPI/FUNASA. SAS, Quadra 4, Bloco N, Sala 707, 70058-902 Brasília, DF, Brasil. Tel: 55 61 314-6332 Recebido para publicação em 20/02/01. 103 Silva Jr JB O CENEPI encaminhou amostras dos lotes 05/00B, 10/00B, 17/00 A e 23/00B do medicamento produzido pela Eurofarma e do lote 266 do produto da Aventis ao Laboratório de Análises Químicas Industriais e Ambientais da Universidade Federal de Santa Maria para análise de metais pesados. O laboratório foi escolhido por ser o responsável pelos estudos que estão estabelecendo os parâmetros de referência para esse medicamento. Os resultados detectaram, em todos os lotes produzidos pela Eurofarma, a presença de arsênio, com valores variando Metal Valor de Lote 23/00B Lote 10/00A Referência (VR) Eurofarma Eurofarma pesado mg/kg/dia oral 0,0003** Arsênio oral 0,007*** Chumbo Total de de 44,45 mg/l a 84,60mg/l e de chumbo, variando de 24,29mg/l a 52,31mg/l. No lote do produto da Aventis, os valores encontrados foram de 0,26mg/l para o arsênio e menor que 0,20mg/l para o chumbo. Apresentamos a seguir o quadro comparativo dos quantitativos de arsênio, chumbo e o somatório de todos os metais pesados detectados nos lotes 23/00B, 10/00 A (Eurofarma) e 266 (Aventis), com os respectivos valores de referência, considerando-se como exemplo um paciente de 60kg. 10 a 25mg/l **** metais pesados Lote 266 Aventis resultado dose recebida * resultado dose recebida* resultado dose recebida* mg/l mg/kg/dia mg/l mg/kg/dia mg/l mg/kg/dia 84,60# 0,0197 46,31 0,0108 0,26 42,57 138,41 65,8 > 36 > que o VR que VR 0,0099 52,31## 0,0122 1,4 > 1,7 > que o VR que o VR - 111,39 - 0,00006 < que o VR 0,20 0,00005 < que o VR 2,40 5,5 > que 4,4 > que 10 > que o maior VR o maior VR o maior VR - * Cálculo estimado para um paciente de 60kg, com dosagem de 20mg/SbV/ kg/dia (14ml/dia, por via parenteral, conforme a dosagem preconizada para tratamento das leishmanioses. ** Nível para risco mínimo - Referência da Agency for Toxic Substances and Disease Registry – Centers for Disease Prevention and Control/CDC *** Nível permitido – Referência da Organização Mundial de Saúde “Handbook on the Toxicity Tof Inorganic Compounds”. **** Referências de LME nos medicamentos injetáveis descritos na farmacopéia brasileira. # Maior valor de arsênio encontrado (Laudo Analítico 004/01) ## Maior valor de chumbo encontrado (Laudo Analítico 001/00) Nos dados acima verifica-se que o antimoniato de meglumina da Eurofarma apresenta uma quantidade de arsênio que varia de 36 a 65 vezes maior que o valor de referência para adminitração por via oral. No lote 266 produzido pela Aventis os valores encontrados, 0,00005mg/kg/dia, estão abaixo da referência. Com relação ao chumbo, os lotes 23/00B e 10/00A apresentam resultados de 1,4 e 1,7 vezes maior que o valor de referência, por via oral, respectivamente. Quanto ao somatório dos resultados dos metais pesados, os lotes da Eurofarma apresentaram 4,4 e 5,5 vezes mais metais que o maior valor de referência. No lote 266 da Aventis o valor encontrado foi 10 vezes menor que o maior valor de referência. Os valores de referência estabelecidos para o arsênio e o chumbo estão relacionados com a administração por via oral. Como o antimoniato de meglumina é uma droga injetável, torna-se ainda mais importante que os valores observados encontrem-se abaixo dos valores 104 de referência, sob pena da presença dessas substâncias poderem trazer riscos à saúde dos pacientes portadores de leishmaniose visceral e tegumentar americana tratados com essa medicação. A partir da notificação dos eventos adversos, a Coordenação de Acompanhamento Tecnológico Farmacêutico do Ministério da Saúde, encaminhou amostras dos lotes 05/00B, 10/00B e 17/00A do produto da Eurofarma, para realização de análise físico-química. Os resultados dos exames reprovaram os lotes 10/00A, 10/00B, por apresentarem pH abaixo do valor de referência. Os outros dois lotes foram aprovados nesse exame. O Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS)/FIOCRUZ também vem realizando análises similares no referido medicamento, com resultados que evidenciam níveis elevados de arsênio e chumbo. Em conclusão, o antimoniato de meglumina da Eurofarma contém níveis elevados de arsênio e chumbo, Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical 34:103-105, jan-fev, 2001 quando comparados aos valores de referência para a administração por via oral e ao medicamento inovador. Estes metais, em altas dosagens podem causar efeitos graves no organismo humano tais como diminuição de leucócitos e hemácias no sangue, efeitos aditivos nos tecidos respiratórios e sistema nervoso central, alterações severas no ritmo cardíaco, aumentar o risco para o câncer, entre outros. Com base nas evidências científicas já estabelecidas pelo estudo epidemiológico e pelas análises realizadas, recomendamos: . Suspensão do uso de todos os lotes do antimoniato de meglumina da Eurofarma que se encontra disponível na rede de saúde, como medida preventiva da ocorrência de reações adversas graves e da exposição a altos níveis de arsênio e chumbo, exceto em casos de calazar que impliquem risco de vida para os pacientes. Nesses casos, o monitoramento de possíveis reações adversas deve ser intensificado. A FUNASA vem adotando as seguintes condutas, conjuntamente aos demais órgãos do Ministério da Saúde: . . realização de exames minuciosos em todos os lotes do referido medicamento, com os devidos procedimentos fiscais, por parte da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Aquisição imediata de substituto do referido medicamento para evitar a descontinuidade no tratamento dos pacientes de leishmanioses. Brasília, 2 de fevereiro de 2001 Jarbas Barbosa da Silva Junior Diretor do CENEPI 105