Vertentes & Interfaces I: Estudos Literários e Comparados
CRÍTICA PERFORMATIVA
NEM SE INCOMODE… É SÓ BRINCADEIRA DE ÈRES
Denise França Carrascosa*
Pra entender o Erê
Tem que tá moleque
Uh, Erê, êê
Tem que conquistar alguém
E a consciência leve…
(O Erê, Cidade Negra)
RESUMO: O ensaio “Crítica Performativa” foi escrito com o intento de tornar-se mais um dispositivo instrumentalizador da Crítica Literária Negra no Brasil que opere no sentido de ampliar a potência epistemológica do pensar a partir da literatura negra africana, afrodiaspórica e, especificamente,
negrobrasileira, com fundamento em uma forma encorpada de pensamento teórico-crítico que se
deseja afrodeslocador do aparato ocidental eurocêntrico que tem instituído as regras de valoração,
visibilização e canonização da arte literária há, pelo menos, dois milênios.
PALAVRAS-CHAVE: Crítica Performativa; Literatura Negra; Afrodeslocamento.
Em língua yorubá, eré é palavra que quer significar “brincadeira, festa, festejo, jogos”. (NAPOLEÃO, 2011, p. 74). Aprendo com minhas mais velhas que os Ères (espíritos
de criança) são feitos de movimento, de energia se deslocando entre os corpos, porque sua
* Professora Adjunta da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Ensina Literaturas de Língua Inglesa na Graduação
em Letras e integra as linhas de pesquisa de Teorias e Crítica da Literatura e da Cultura e Estudos de Tradução
no PPGLitCult – Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura da Ufba.
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função por aqui é fazer a comunicação entre a pessoa e seu Orixá; entre um estado de
consciência a si e inconsciência a outro esquema de tempo-espaço; entre forças de individuação e forças de conexão ao deslimite do imponderável pelo humano. Para entendê-los,
é preciso saber das forças da tradução entre diferentes linguagens de estar no mundo, entre
diferentes mundos para (não) estar na linguagem.
Jamais fazendo mal a qualquer vivente, os Ères pertencem à zona cinética da
dança, dos cânticos, das papilas gustativas dadas aos sabores doces, das manias de “bulir
com quem tá quieto”. Suas “verdades” são ditas como quem conta piada, como quem sabe
a vida com o corpo inteiro, como quem não pode crer em um deus que não saiba dançar
(NIETZSCHE, 2011).
O problema milenar da má consciência, da consciência pesada de moralidade
cristã, com que o projeto imperialista euro-sentado sombreou o que violentamente inventou como “ocidente”, é aquele que nos pedagogiza com a seguinte sentença: “E onde há
riso e alegria, o pensamento nada vale” (NIETZSCHE, 2001).
Ora, a filosofia produzida na orla externa desta sombra é ar que sopram em nossos
ouvidos os Ères. É brisa ventando delicadamente sobre areia ensolarada:
[…] que pensamento deverá ser para mim, razão, garantia e doçura
de toda a vida que me resta! Quero cada vez mais aprender a ver
como belo aquilo que é necessário nas coisas: - assim me tornarei
um daqueles que fazem belas as coisas. Amor fati (amor ao destino):
seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é
feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado
e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim! (NIETZSCHE, 2001, p. 187-8)
O dizer Sim! ao acaso da vida, “sua música mais bela” (NIETZSCHE, 2001,
p.189), produz movimentos de fuga da pré-programação suposta das categorias mortíferas
de pensamento que enquadram as pessoas e, mais violentamente, as não-pessoas (xs negrxs
do mundo) e suas trajetórias em roteiros maquinicamente traçados. A máquina da produção
de capital global, que pretende nos englobar inclusive os desejos, é necrosante dos sujeitos
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que usa para a combustão de seu funcionamento – não lhes permite dizer Sim! à vida
porque já programa seus corpos natimortos.
Aqui, brincando de Ères, não acusamos ninguém. Negamos apenas o não, tentando desviar teu olhar. Sim, estou falando contigo que me lê agora, pois neste agora é que
somos. Não estou brincando. Só no agora existimos em corpo e linguagem. Passado e
futuro são linhas de força que circusncrevem este nosso agora apenas para intensificá-lo,
para fazê-lo escapar correndo das horas marcadas, dos compromissos agendados, do peso
do mundo do trabalho produtivo que apenas utiliza nosso corpos para gerar um gasto – da
gente, da gente como parte de uma ecosfera, que se vem gastando cada vez mais exponencialmente.
Não se incomode com isso que acabei de dizer…era só piada. E apenas por brincadeira, te pergunto: “Milhões de anos-luz podem curar / o que alguns segundos na vida
podem representar”? Desculpe se te confundo um pouco agora neste começo. Mas “Pra
entender o Erê/tem que tá moleque” e ter a consciência leve (CIDADE NEGRA, 1996).
Você está preparado pra brincar de esconde-esconde, corre-corre e pega-pega?
Uma vez, lendo Walter Benjamin pronunciar palavras grandes e aterrorizantes,
como guerra, memória e história, levei um susto de ver que ele também falou da brincadeira. Ele foi ler um texto sobre jogos humanos e fez a gente entender que é um erro pensar
a brincadeira na perspectiva do adulto, do ponto de vista da imitação, como condicionamento da criança para a cultura econômica. Grande pensamento marxista. Mas Benjamin
consegue dar uma abanada nele e interpreta o intérprete assim:
É possível que aconteça o seguinte: antes que o amor externo nos
faça penetrar na existência e nos ritmos frequentemente hostis de
um ser humano estranho, ensaiamos primeiro com os ritmos originais que se manifestam, em suas formas mais simples, nesses jogos
com coisas inanimadas. Ou antes, é justamente através desses ritmos
que nos tornamos senhores de nós mesmos. (BENJAMIN, 1994, p.
252)
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A grande lei que regeria o mundo da brincadeira seria a repetição. O motor da
representação, como da brincadeira, não seria “fazer como se”, mas “fazer sempre de
novo” – “a transformação em hábito de uma experiência devastadora”. Pois é brincadeira,
e nada mais, que estaria na origem de todos os hábitos, que seriam “formas petrificadas,
irreconhecíveis, de nossa primeira felicidade e de nosso primeiro terror”. Ainda parafraseia
o filósofo um seu poeta contemporâneo, para quem, cada sujeito teria uma imagem que
faria o mundo inteiro desaparecer: “para quantas pessoas, essa imagem não surge de uma
velha caixa de brinquedos?” (BENJAMIN, 1994, p. 253).
Este pensador-ère, brincando entre a vida e a morte, abre nossos ouvidos pra
coisas tão delicadas, de tão sérias e cotidianas ao mesmo tempo. Para os hábitos que performam nossos corpos em suas circularidades cotidianas, por exemplo. Não repetimos o
que imitamos ou porque imitamos, como queria Aristóteles lá no início da disciplina crítica
da arte da linguagem. A repetição é a força motriz de um desejo de brincadeira. E fazer
“sempre de novo” é se arriscar em errar aquilo que se repete, se entregar a um fluxo de
errância que vai redesenhando sua gestualidade corporal todo dia, de novo, e mais uma vez.
O progresso ou regresso é re-dobrado nas territorializações espiraladas que fogem sempre
do centro modelar (aquele que a gente tinha que imitar pra se educar como gente grande),
reinventando outros centros provisórios uma vez mais... mas não liga, não... é tudo brincadeira, só... é menina besta brincando de fazer redemunho na areia da praia....com aquela
velha pazinha de sua encardida caixa de brinquedos...
Pare e pense no que já se viu
Pense e sinta o que já se fez (biribiri, birirum)
O mundo visto de uma janela
Pelos olhos de uma criança
(CIDADE NEGRA, 1996)
Eis o nosso propósito aqui e agora: fazer você se alegrar. Cante também um
pouco. Não é brincadeira: o pensamento não se opõe à alegria. Quer ver? Para Espinosa,
o corpo humano teria seu movimento pensante ativado por 48 afetos, dentre os quais 3
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basilares: o desejo, a tristeza e a alegria. A alegria, portanto, é afeto nobre e ligado ao pensamento, para esse filósofo que foi excomungado: “A alegria é a passagem do homem de
uma perfeição menor para uma maior”, afeto que amplia e intensifica sua potência de agir
(SPINOZA, 2007, p. 239).
Isto é, o desejo da repetição não representacional, que leva à alegria, aquela que
produz na criança uma vontade de fazer de novo e, em fazendo, fazer o novo, para continuar a ser alegre, pode ser pensado hoje como uma espécie de desenho circular que vai se
dobrando sobre si mesmo erraticamente, sempre errando o alvo, cada novo circuito gestando novos pontos-alvo, para não atingi-lo novamente ad infinitum e, assim, ampliar o espaço de gozo que a brincadeira gera. Isto é, na força que nos dobra à imitação, mimesis,
verossimilhança, que paralisa o mundo, mutilando-o em duas esferas especulares, há o redobrar de uma força suplementar alegre que arranha o espelho, vira ele em ângulo assimétrico, quebra ele às vezes em pedacinhos e desloca a demanda representacional para outro
canto, multiplica-a em muitos pedaços incontáveis... disseminação de imagens. Tem um
pessoal chamando isso de “performatividade”.
A arte da performance moderna, não é novidade pra ninguém, é coisa do começo
do século XX. Parece coisa de vanguarda europeia e norte-americana que correu mundo e
vem correndo até hoje (CARLSON, 2009). Forma de experimentação com os instantes do
corpo, com as reorganizações espaciais deste corpo em relação a um sujeito consciente a
si. A arte da performance moderna, não é novidade pra nós, é coisa de pretxs e suas artes
na diáspora; modo de escapar de um espelho único do mundo, brincando de ser performer,
fugindo dos modelos representacionais necropolíticos e dos modos genocidas e epistemicidas de produção do capital branco, pra tentar brincar de não morrer.
No meio do século, a filosofia saussureana da linguagem, como conjunto de signos representacionais do mundo, ainda predominava como trampolim para os estudos vinculados ao campo das ciências humanas, da linguagem e da crítica de artes. Mas, foi aí que
apareceu um outro filófoso-ère, da mesma ciranda de um Nietzsche, de um Espinosa, e
pôs tudo de ponta-cabeça com uma pergunta de criança: como fazer coisas com palavras?
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(AUSTIN, 1962). Em meados dos anos 50, a este pensador inglês, J. L. Austin, já não
interessava mais o que as sentenças queriam dizer, que sentidos representavam sobre o
mundo, mas o que reações pragmáticas os enunciados produziam no mundo. Coisa simples. Como ninguém tinha pensado nisso antes? Só Ères podem “fazer de novo”.
A década de 60 vê uma explosão de possibilidades no campo das experimentações
corporais, da música, das artes plásticas, audiovisuais e literárias, que penso como intimamente vinculadas aos processos de emergência de novos corpos-sujeitos em cena, desviantes das máquinas de colonização e escravização da cabeça-euro-sentada. Diversas Áfricas
se proliferam e bradam! Alguma filosofia aí escapa à sua cômoda sombra e vem pro sol
dizer do “estatuto do acontecimento”. Esticando ainda mais a corda austiniana, pergunta
o que poderia um enunciado performativo (aquele que faz coisas no mundo para além de
representá-lo) se não fora revestido de uma citacionalidade que o aprisiona, de uma força
de repetição representacional que o codificaria sem linha de fuga?
Essa pergunta é feita por Jacques Derrida, em suas Margens da Filosofia (1991), ali
onde sua gênese africano-argelina quer dizer algo (no texto Assinatura Acontecimento
Contexto). Derrida vai, aos poucos, descobrindo com o texto, aquilo que Austin talvez não
tivesse tido tempo de pensar a sério: que todo enunciado é performativo. Não há clivagem
entre constativos e performativos – aqueles que não produzem efeitos pragmáticos na vida,
só a representando e aqueles que impactam a vida, produzindo-a, muito respectivamente.
A linguagem, sempre performativa, escaparia ao círculo fechado da representação por sua
força de iteratividade. Vinda da palavra sânscrita iter (caminho/outro), a dupla inscrição de
sua ação na vida canalizaria o modo de ação da linguagem – repetivivo, vinculado ao citacional e, ao mesmo tempo, iterável, produtora de um iter que, ao mesmo tempo que cuida
da contenção de uma energia, protegendo-a de perdas, não poderia circundar toda sua intensidade, promovendo a alterização disseminadora de sua quantidade.
Derrida faz desse pensamento desdobramentos para uma filosofia da escrita, que
chamará de escritura, ao desejá-la como uma força incontida pela não-presença de quem
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escreve, pela suspensão do peso de sua falsa consciência a si, movida pelos fluxos da citacionalidade e da iterabilidade a produzir enunciados performativos, de potência demiúrgica,
vontade de refazer o mundo a cada retorno de palavras.
Essa zona de liberação das prisões da máquina colonial-escravocrata-falo-logofonocêntrica, que iniciou a crítica da representação na década de 60 e promoveu uma “virada performativa” a partir da década de 80, teve e continua a ter diversas repercussões no
pensamento crítico entre nós. Uma das mais impactantes é a forma de pensar o corpo queer,
em sua desarticulação entre sexo biológico, gênero e desejo, que encontrou como expoente
a pensadora Judith Butler (1990, 1993), por exemplo. Nesse sentido, começou a ser possível
pensar os corpos-sujeitos contemporâneos produzidos menos dentro de suas fronteiras
imaginariamente representáveis de desejo aceitável e mais em suas performatividades cambiantes em relação às contingências do acaso da vida, em que a única necessidade passa a
ser dizer Sim!
Mas tem um nó em tudo isso que meu Ère sempre estranhava e eu demorei a
formular mais ou menos o que era: Por que este Derrida franco-argelino quer também
descentrar essa voz, essa presença corpórea? O prefixo “fono” sempre me incomodou um
pouco na operação da desconstrução e no projeto de investimento no performativo a despeito do representacional. No contexto de genealogia do pensamento europeu fica até
compreensível; mas para as culturas africanas tradicionais e para as afro-diaspóricas, vai
ficando cada vez mais inaceitável. É o limite, a margem entre nós e o Derrida francês.
Deixa-nos um legado A. Hampaté Bâ (2010) de ensinamento sobre as culturas
tradicionais africanas que permanecem vigentes hoje, e com quem a maioria de nós na
Bahia tem ligação corpóreo-estética (pelo menos), de que há uma herança oral vital, da qual
são depositários os chamados “tradicionalistas”, que são chamados a se iniciar nos saberes
africanos vitais para a continuidade de sua existência comunitária terrena e espiritual. São
“ciências das plantas”: “ciências das terras”; “ciências das águas”; “ciências iniciatórias”;
isto é, ciências eminentemente práticas que consistem em “saber como entrar em relação
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apropriada com as forças que sustentam o mundo visível e que podem ser colocadas a
serviço da vida” (HAMPATÉ BÂ, 2010, p.188).
Obviamente que a máquina de guerra colonial europeia, ao desorganizar os saberes em alguns centros de administração onde nasceriam as cidades à sombra mortífera de
seus modelos urbanos, empurrou para as periferias e as matas os processos de iniciação,
que permanecem ainda ativos na contemporaneidade (mas não fora de risco de desaparição).
O fato é que tais saberes se transmitem por uma cadeia oral que aposta no corpo
dx tradicionalista como herdeirx e legadorx do conjunto desses saberes. É um corpo que
foi preparado, durante muitos anos, para transmitir a palavra correta e, junto com ela, seu
axé – sua energia vital. Se esta cadeia se quebra, inclusive pelo descuidado dos sujeitos com
seus corpos e com suas palavras, corre-se o risco de extinção de toda uma forma de existir
no mundo, de desenhar o mundo e produzir, com isso, estéticas e éticas de comunitarização
e subjetivação. Há aí um conjunto de forças performativas em jogo e em risco, nos alertou,
o intelectual-tradicionalista malinês Hampaté Bâ.
Já o pensador-dramaturgo nigeriano Wole Soyinka nos ensina que a tragédia tradicional yorubá se produz para encenar a angústia da fragmentação entre o eu e sua cosmogênese – as outras dimensões energéticas a que está inexoravelmente ligado. O modo
estético-ético de canalizá-la sem a dilaceração do sujeito seria a encenação: colocar o corpo
na terra – palco da existência – e agir nesse espaço, a partir das energias corporais que
criariam um canal de produção de vida que o liberaria do deslimite e do desespero
(SOYINKA, 2000, p. 480-1).
Essas condições angustiantes em máximo grau devem ter ocorrido a cada um de
nossos ancestrais que foi raptado de seu território, de sua vida, de suas relações afetivas e
foi violentamente trazido como não-humano a esta Cidade da Bahia, por exemplo, que
nunca salvou e continua a não salvar ninguém.
No entanto e incrivelmente, porque o que vou começar a dizer não pertence à
fronteira da verossimilhança: elas, eles, crianças e velhos também, não apenas sobreviveram
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à travessia, mas, pasmemos, conseguiram traduzir as tradições africanas e seu acervo de
saberes estético-éticos nas terras estrangeiras, inóspitas, mortificantes, sob o açoite ininterrupto da perda do estatuto de humanidade.
Leda Martins, em seu estudo genealógico, linguístico-simbólico e etnográfico dos
Congados ou Reinados no Brasil, nos faz entender a relação que estabelecem entre performance e rito, postulando o papel do corpo e da voz “como portais de inscrição de saberes
de várias ordens, dentre elas, a filosófica”:
Minha hipótese é que o corpo, na performance ritual, é local de inscrição de um conhecimento que se grafa no gesto, no movimento,
na coreografia, na superfície da pele, assim como nos ritmos e timbres da vocalidade. O que no corpo e na voz se repete é uma episteme. Nas performances da oralidade, o gesto não é apenas uma representação mimética de um aparato simbólico, veiculado pela performance, mas institui e instaura a própria performance. (MARTINS, 2002, p. 72)
Leda Martins entende que o teatro do sagrado afrodiaspórico que se encena nos
rituais de Reinado ou Congado produzem uma “performance mitopoética” que reencena
o mundo, não na chave da representação mimética. Ora, no mundo dos africanos sequestrados e seus descendentes, não há nada que se aprenda pela imitação que os libere da dor
de uma existência escravizada. Os gestos performáticos configuram um canal estético-corporal-vocal para traduzir a realidade cotidiana opressiva (corporal e mentalmente), alterando sua ordem simbólica na série histórico-social. A releitura do mito católico da aparição
de Nossa Senhora do Rosário das Águas sofreria um “deslocamento” forte, na medida de
uma interferência na “sintaxe do texto católico, inseminado agora por uma linguagem alterna que, como um estilo e um estilete, grafa-se e pulsa na conjugação do som dos tambores, do canto e da dança, entrelaçados na articulação da fala e da voz de timbres africanos” (MARTINS, 2002, p. 80).
Esses gestos performativos “afrográficos” derivariam da “ancestralidade” africana, uma “visão negra-africana do mundo” e uma força de encadeamento de elos entre
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vivos e mortos, elementos cósmicos e sociais, eventos presentes, passados e futuros “em
processo de perene transformação” nas espirais de uma concepção curvilínea do tempo,
em que viveríamos e pelo qual nossos corpos seriam energética e materialmente constituídos, de ancestralidade, do presente e do porvir, conforme o pensamento das sociedades
nicongo.
A mediação dos ancestrais, manifesta nos Congados pela força (axé)
dos candombes (os tambores sagrados), é a clave-mestra dos ritos e
é dela que advém a potência da palavra vocalizada e do gestus corporal, instrumentos de inscrição e retransmissão do legado ancestral
[...] Nos rituais, cada repetição é em certa medida original, assim
como, ao mesmo tempo, nunca é totalmente nova [...] Como um
logos em movimento do ancestral ao performer e deste ao ancestre
e ao infans, cada performance ritual recria, restitui e revisa um círculo fenomenológico no qual pulsa, na mesma contemporaneidade,
a ação de um pretérito contínuo, sincronizada em uma temporalidade presente que atrai para si o passado e o futuro e neles também
se esparge, abolindo não o tempo, mas a sua concepção linear e consecutiva. (MARTINS, 2002, p. 85)
O acontecimento performático, que restitui ao tempo a sua força de instante, depende intimamente das coreografias espiraladas em que o corpo “voleia sobre si”, ocupando o espaço “em círculos desdobrados, figurando a noção ex-cêntrica do tempo”. Este
corpo afrodiaspórico em performance ritual seria o demarcador de uma “espacialidade descontínua” dos territórios sequestrados, no mesmo passo em que engendraria uma “temporalidade cumulativa, compacta e fluida”, atualizando “os diapasões da memória, lembrança
resvalada de esquecimento, tranças aneladas na improvisação que borda os restos, resíduos
e vestígios africanos em novas formas expressivas”; funcionando, pois, como “suplemento
que recobre os muitos hiatos e vazios criados pelas diásporas oceânicas e territoriais dos
negros” (idem, p. 86-7).
A este dispositivo complexo de gestos e inscrições performatizadas pela voz e
pelo corpo, Leda Martins batizou oralitura – letra rasurante, inscrita na grafia do corpo negro
em movimento performático ritual, que dramatiza saberes ancestrais para presentificá-los
em forma de existência subjetiva e comunitária possível.
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Esse vigoroso estudo de uma pensadora negro-brasileira nos ensina, conjuntamente com as filosofias de Hampaté Bâ e Wole Soyinka, que a performatividade que desloca e descentra tempos e espacialidades euro-sentadas não reside inscrita na letra morta
grafada e atualizada pelas instâncias do campo literário – autoria, assinatura, texto, contexto, etc. e tal. A noção de performance negra como “afrografia” nos endereça a uma
noção do performativo que não prescinde jamais da presença do corpo e da voz como
atualizadores necessários de uma zona de força de deslocamento tempo-espacial que produz resistência, deslimite e descentramento aos biopoderes ainda em vigência da máquina
colonial-escravocrata, travestida hoje em “capital global”.
Nesse sentido, a crítica performativa que se quer em processo de fazimento no
Brasil e, em especial, aqui na Bahia, é coisa da ordem do corpo, da voz, dos pés que sentem
a terra na dança, do ritualístico, do material e do sagrado também. É coisa de Ère que sabe
traduzir, que sabe circular entre inumanos e humanos, ativando as forças aí represadas.
O filósofo Achille Mbembe faz a genealogia do termo “negro” como invenção da
máquina do capital, de sua emergência e globalização, “para significar exclusão, embrutecimento e degradação, ou seja, um limite sempre conjurado e abominado”:
Humilhado e profundamente desonrado, o Negro é, na ordem da
modernidade, o único de todos os humanos cuja carne foi transformada em coisa, e o espírito em mercadoria – a cripta viva do capital.
Mas – e esta é a sua manifesta dualidade – numa reviravolta
espetacular, tornou-se um símbolo de um desejo consciente
de vida, força pujante, flutuante e plástica, plenamente engajada no acto de criação e até de viver em vários tempos e várias
histórias ao mesmo tempo. A sua capacidade de enfeitiçar e,
até, de alucinar multiplicou-se. Algumas pessoas não hesitariam em reconhecer no negro o lodo da terra, o nervo da vida
através do qual o sonho de uma humanidade reconciliada com
a natureza, ou mesmo com a totalidade do existente, encontraria novo rosto, voz e movimento. (MBEMBE, 2014, p. 20-1,
grifo meu)
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Sismografando um “devir-negro do mundo”, o pensador camaronense se inquieta
e pergunta, como todo bom Ère: a reviravolta de que a História guarda segredo, mas que
está em curso forte, apagará as cicatrizes seculares da clivagem subjetiva, das monumentais
perdas coletivas sofridas? Junto com ele, pergunta meu próprio Ère: pensar na velocidade
do vento, a anos-luz da tragédia de tantos cotidianos nos libera? Quando, onde e como?
Há semanas em que tudo vem
Há semanas que é seca pura
Há selvagens que são do bem
A sequência do filme muda
(CIDADE NEGRA, 1996)
Ora, vamos brincar de dizer, demiurgicamente, Sim!
Mas se você é daqulxs que vive resmungando que o mundo está se acabando, que
não tem mais novidade e que não aguenta mais essa coisa de negro e de candomblé, melhor
não seguir adiante aqui na leitura, porque, deculpa, meu bem, você esqueceu, bem…uma
pena mesmo…o jogo está virando do avesso e agora que tá ficando bom, você não sabe
mais brincar.
De todo modo, vamos te contar como funciona a brincadeira, porque a gente não
é de excluir ninguém. Vê se aprende as regras. São pouquinhas. Olha como funciona a
nossa crítica performativa:
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
A gente diz sempre Sim!;
Não vale tirar o corpo do palco;
Antes de começar, sinta seus pés na terra e prepare-se pra botar a cabeça no
chão;
Não tem verbo no passado, nem no futuro. O verbo é a carne do presente;
Se tiver vertigem, a gente te ajuda;
Se quiser chorar, a gente lambe suas lágrimas;
Pode brincar de desobedecer as regras também.
Tá chegando setembro…tá chegando a hora de dá bala de mel prus menino…vamo acabá com isso de bala de sangue…chegando hora de bala doce, viu, bê?
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O erê é a criança
Sincera convicção
Fazendo a vida como o sol nos traz
Você sabe
Que o sentimento não trai
Um bom sentimento não trai
(CIDADE NEGRA, 1996)
PERFORMATIVE CRITICISM
DON’T WORRY ... IT'S JUST A JOKE PLAYED BY ÈRES
ABSTRACT: The essay “Performative Criticism” was written with the intention of becoming another instrumental device of Black Literary Criticism in Brazil, that operates to extend the epistemological power of thinking from African, Afrodiasporic and Black Brazilian Literature, based on an
embodied form of critical and theoretical thought which desires to be Afrodislocating of the Western
European aparatus that has instituted the rules of evaluation, visibilization and canonization of the
literary art for, at least, two thousand years.
KEYWORDS: Performative criticism; Black literature; Afrodislocation.
REFERÊNCIAS
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Press, 1975.
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DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Trad. Joaquim Torres Costa et al. Campinas, São
Paulo: Papirus, 1991.
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MARTINS, Leda. Performance do tempo espiralar. In: RAVETTI, Graciela, ARBEX,
Márcia (org.). Performance, exílio, fronteiras: errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte:
Fale, 2002.
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Trad. Marta Lança. Portugal: Antígona, 2014.
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Recebido em: 23/09/2018.
Aprovado em: 03/12/2018.
Fólio – Revista de Letras
Vitória da Conquista
v. 10, n. 2
p. 73-86
jul./dez. 2018