MELLO, Ê. L. et al. Postura corporal, voz e autoimagem... Per Musi, Belo Horizonte, n.31, 2015, p.74-85.
DOI: 10.1590/permusi2015a3104
Postura corporal, voz e autoimagem em cantores líricos
Ênio Lopes Mello (PUC, São Paulo, SP)
enio.mello@superig.com.br
Luiz Ricardo Basso Ballestero (USP, São Paulo, SP)
ricardo.ballestero@gmail.com
Marta Assumpção de Andrada e Silva (PUC, São Paulo, SP)
m.andradaesilva@gmail.com
Resumo: A consciência corporal é um pré-requisito imprescindível na manutenção da postura
e na elaboração da gestualidade vocal e corporal para os cantores líricos. O objetivo desse
estudo foi discutir sobre as relações entre signos posturais e vocais com a autoimagem em
cantores líricos. Para tanto, foi realizada uma discussão semiológica baseada na Fisioterapia,
Fonoaudiologia, Medicina, Filosofia, Psicologia e Artes, principalmente canto. Essa discussão
foi estruturada em três tópicos: A) Singularidade e percepção corporal; B) Imagem e
expressão; C) Postura, voz e autoimagem. Considerações finais: a expressão e a imagem
corporal são figuradas por meio da conscientização da postura e do movimento corporal,
portanto todo movimento é expressivo. Toda expressão tem efeito na imagem corporal, logo,
toda nova percepção da expressão produzirá alteração na autoimagem. Dessa forma, o cantor
lírico altera a percepção de si mesmo, a cada nova interpretação e institui novos signos para os
gestos e para as posturas corporais.
Palavras chaves: postura; imagem corporal; voz.
Body posture, voice and self-image on lyrical singers
Abstract: Body awareness is an essential precondition to maintain posture and the
development of vocal and bodily gestures for lyric singers. The aim of this study was to discuss
the relationship between postural and vocal signs with self-image in lyric singers. Therefore, a
discussion was performed based on semiotic Physiotherapy, Speech Therapy, Medicine,
Philosophy, Psychology and Art, especially singing. This discussion was structured around
three topics: A) Uniqueness and body awareness; B) Image and expression; C) Posture, voice
and self-image. Final considerations: the expression and body image are characterized through
awareness of posture and body movement so every movement is expressive. Every expression
as an effect on body image, therefore every new perception of the expression will produce
changes in the self-image. Thus, the lyric singer changes the self-perception on each new
interpretation and establishes new signs for the gestures and body postures.
Keywords: posture; body image; voice.
1 - Introdução
Cantores líricos necessitam de liberdade e controle da postura corporal,
durante uma interpretação operística, uma vez que isso favorece a estabilidade
vocal. Portanto, para esses profissionais a consciência corporal é um prérequisito imprescindível na elaboração dos gestos (MELLO et al., 2013;
LAGIER et al., 2010; STAEL et al, 2009; MELLO et al., 2009; ARBOLEDA,
FREDERICK, 2008).
Entretanto, as práticas inerentes ao canto lírico são extremamente exigentes
quanto aos quesitos técnicos vocais e cênicos. Os cantores devem conceber
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um estilo de canto em conformidade com as partituras e em condições prédeterminadas, que raramente podem sofrer alterações. Como por exemplo:
adequar aspectos linguísticos às normas de pronúncia do idioma; adaptar o
timbre vocal para determinada peça/compositor/estilo/personagem/gênero;
respeitar as indicações de andamento, intensidade e a tonalidade conforme a
partitura (KAYAMA et al., 2007; SOUSA et al., 2010, MELLO et al., 2013).
Quando estão em cena, os cantores líricos devem incorporar as características
estilísticas, emocionais e físicas do personagem, segundo critérios
estabelecidos pelo diretor cênico e ou regente, sem que isso cause prejuízo
aos ajustes vocais. Essas são características do corpo cênico do cantor
durante uma interpretação, que para alguns críticos, por vezes, pode atrapalhar
o corpo que canta (VELARDI, 2011). Em contrapartida a essas exigências,
quando estão nos palcos os cantores são aclamados por interpretações
ímpares. E igualmente são apreciados pela habilidade em conceber os
elementos musicais em caráter de improvisação; pela capacidade de criar um
gestual cênico próprio; pela homogeneidade na concepção interpretativa que
norteia a execução da obra. Além disso, para TRAGTENBERG (2007, p.43), o
intérprete-cantor impõe uma maneira pessoal na peça que interpreta, de tal
modo que, há uma restituição do próprio cantor a si mesmo. Para a autora, o
processo de criação operístico reflete a capacidade e o caráter de cada cantor,
no qual são expostas características pessoais do intérprete, que podem dar
vida aos atributos do personagem e atualizar valores sociais.
Ao focar esse contexto, é posto em reflexão se essas condições
preestabelecidas interferem na percepção de cada cantor sobre si mesmo. Há
no processo de concepção estilística condições obrigatórias quanto à
incorporação e as alterações das características posturais em favor do
personagem. Por essa razão, pressupõe-se que as exigências dos processos
de criação e interpretação de uma peça têm implicações diretas na constituição
e no reconhecimento da autoimagem em cantores líricos.
Subjaz nessas reflexões uma preocupação que está focada no processo de
preparação de cantores líricos frente às concepções operísticas. Se um cantor
não tiver um trabalho voltado para o refinamento da percepção de si mesmo,
provavelmente o reconhecimento do próprio corpo estará comprometido e,
consequentemente, sua capacidade de incorporar as características
emocionais e físicas de um personagem estará reduzida. Da mesma forma,
esse processo pode provocar dissociação entre a imagem e o esquema
corporal do cantor.
A ópera, segundo PAHLEN (1991), conduz a uma reflexão sobre o espírito e a
imagem de uma época, que reflete os acontecimentos dentro de uma
sociedade e configura um potencial de atualidade, maior do que qualquer outra
manifestação artística.
A partir desses pressupostos, o objetivo do artigo é discutir sobre as relações
dos signos posturais e vocais com a autoimagem em cantores líricos.
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2- Método
Para contemplar esse objetivo foram abordadas proposições semiológicas da
Fisioterapia, Fonoaudiologia, Medicina, Filosofia, Psicologia e Artes,
principalmente canto operístico.
A Semiologia é a ciência geral dos signos, que estuda os fenômenos da
significação (PEIRCE, 1993). Nessa concepção, signo é aquilo que representa
algo para alguém, que está relacionado com uma segunda coisa, seu objeto,
que diz respeito a uma qualidade, de tal modo que significa uma terceira coisa.
Com base nesse pressuposto, elaborou-se uma discussão sobre a semiose ou
seja, o processo de significação da autoimagem do cantor lírico em relação a
própria voz, a postura corporal e a expressão durante uma interpretação, partir
de três tópicos: A) Singularidade e percepção corporal; B) Imagem e
expressão; C) Postura, voz e autoimagem.
A) Singularidade e percepção corporal
Parte-se do pressuposto que corpo é linguagem. Esse conceito está implicado
nas palavras do corpo, que são expressas e traduzidas por movimentos, cujas
possibilidades de compreensão pautam-se na noção de organização de grupos
musculares, que formam conjuntos psiconeuromusculares e cadeias
miofasciais que mobilizam cadeias articulares e constroem o gesto, dentro de
um contexto social. Segundo a autora “O corpo oferece meios de comunicação
e caminhos terapêuticos excepcionais, em especial quando a palavra está
ausente; é inadequada; desadaptada ou viciada. Importante é estar em
condições de ver, compreender e responder às mensagens gestuais e
posturais. Elas são palavras que, se ouvidas e compreendidas, contribuem
para aliviar o desconforto humano”. (DENYS-STRUYF, 1995, p.13).
O silogismo desse pressuposto tem como base os princípios da
psicomotricidade que visa, entre outros aspectos, o reconhecimento, a
identificação e a diferenciação da localização dos movimentos corporais, como
um todo. Essa compreensão de base psicocorporal foi adotada por vários
autores, cada qual na sua área de atuação, como LAPIERRE (1978) na
Cinesiologia; LABAN (1978) na Dança; STANISLAVISK (2000) no Teatro;
WALLON (1985), PICQ, VAYER (1988) e LE BOULCH (1988) na Educação e
na Psicologia; MÉZIÈRES (1947) e PIRET, BÉZIERS (1992) na Fisioterapia,
entre outros.
Entretanto, essa concepção contrapôs-se a uma prática vigente nas atividades
físicas até meados do século XX, oriunda da influência Europeia,
principalmente francesa e alemã, na qual o corpo era compreendido pelos
aspectos mecânicos (VEIRA, SOUZA, 2009).
O foco dessa influência estava voltado para o trabalho e para o rendimento
físico, em uma perspectiva moral e cívica, que visava à padronização do
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comportamento. Priorizava-se a imitação de um modelo mecânico de
movimentos, por meio do condicionamento físico, para a automação e controle
das ações dos indivíduos, marcados pela execução de exercícios repetitivos e
disciplinares. Nesse período, a despeito das condições emocionais,
intelectuais, da saúde ou do desejo, os indivíduos eram apenas dotados de
corpo, cuja representação era exclusivamente biológica (LANGLADE,
LANGLADE, 1970; SOARES, 1994).
O exposto acima remete às contundentes considerações apresentadas por
DAMÁSIO (1996) sobre a dicotomia entre corpo e mente formulada pelo
filósofo francês Descartes, que o autor considerou como “O erro de Descartes”.
DESCARTES (1973) expôs um raciocínio que distingue a substância corporal
da substância mental ao conceber que o ato de pensar é uma atividade
separada do corpo. Nessa concepção a substância corporal é infinitamente
divisível, com volume, dimensão e funcionamento mecânico, enquanto que a
substância mental é indivisível, sem volume, sem dimensão e intangível.
Segundo DAMÁSIO (1996) há, nessa compreensão, a sugestão de que o
raciocínio, o juízo moral e o sofrimento, advindo da dor física ou agitação
emocional, podem existir independentemente do corpo. A separação cartesiana
pode estar subjacente ao modo de pensar da maioria dos neurocientistas, que
insistem em explicar a mente, exclusivamente, pelo viés dos fenômenos
cerebrais. Com isso, negligenciam o organismo como um todo, e em relação ao
meio ambiente físico social, em que está inserido. Consequentemente, excluem
o fato de parte do próprio meio ambiente ser também um produto das ações
anteriores do organismo.
Ao reiterar que o corpo, além da relação com a mente, deve ser compreendido
dentro de um ambiente, levar-se-á em consideração o contexto social. Isso
implica em respeitar os sujeitos segundo a individualidade e as relações.
Para KECK E RABINOW (2008), quando um corpo é atravessado por normas e
regularidades, trata-se da representação de um corpo genético, ou seja,
submetido ao controle e à formação do “Eu”. O sujeito é um mero portador de
tendências estatísticas e estilísticas, que deve submeter-se a um
comportamento adequado, segundo padrões impostos pela sociedade e/ou as
demandas de trabalho.
De forma análoga, se as concepções estilísticas, eminentes da interpretação
de uma ópera forem impostas a ponto de restringirem a espontaneidade e/ou
as expressões singulares dos cantores, provavelmente estaremos diante de
artistas com capacidade reduzida ou destituídos de possibilidades
interpretativas subjetivas e, portanto, ausentes de si mesmos.
Com base nas considerações da segunda tópica de FREUD (1950), o corpo é
concebido como “eu próprio”, que permite uma compreensão do
autoconhecimento como a consciência-de-si, que é determinado pela
consciência das sensações e dos sentimentos. Segundo essa tópica, se o
acesso à percepção estiver limitado ou se a mente estiver sobrecarregada de
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preocupações, não há possibilidade de ocorrer atualizações de sensações e,
por conseguinte, pode ocorrer um confronto entre a percepção e a realidade
externa, de tal modo que, as sensações tornam-se um elemento indeterminado
para o sujeito.
Sob o prisma da fenomenologia de MERLAU-PONTY (2006), a percepção
torna-se possível a partir da experiência, da conscientização e da
internalização (interiorização) dos movimentos e sensações. Portanto, as
informações obtidas, principalmente, pelo tato, visão, audição, propriocepção
interferem diretamente no tônus muscular, na postura, e na organização
espacial. Assim sendo, a associação do movimento com a percepção configura
um acesso concreto ao psíquico. Paralelamente, a intencionalidade e os juízos
de valores podem configurar um caráter singular e simbólico na identidade de
cada sujeito.
Na concepção fenomenológica de HUSSERL (1859-1938) toda consciência
é consciência de alguma coisa (ZILLES, 2007), não é uma substância, mas
uma atividade constituída por atos (percepção, imaginação, especulação,
volição, paixão, etc.), com os quais visa a algo, que se traduz em movimento.
Com base no que foi discutido, é possível compreender que a percepção
corporal, em cantores, está intimamente ligada à capacidade de vivenciar as
sensações durante uma interpretação e, é dimensionada às características
singulares. Esse entendimento pode ser aprofundado por meio do estudo dos
conceitos de imagem corporal.
B) Imagem e esquema corporal na constituição da expressão
A imagem corporal é a figuração do próprio corpo, formada na mente de cada
indivíduo, ou seja, o modo pelo qual o corpo se apresenta para cada um. Essa
figuração resulta das sensações da superfície do corpo que ocorrem por meio
das impressões visuais, táteis, térmicas, dor, entre outras (SCHILDER, 1999,
p.7).
Existem três tipos de sensações: externas; internas e imediatas. As externas
são percebidas por meio dos movimentos (cinestesia); as internas são
percebidas pela dor ou desconforto e as imediatas são sensações da
experiência de uma parte do corpo em determinado momento. Essas
sensações são consideradas como um estranhamento do corpo, porque
permanecem fora da consciência central, até que haja uma apropriação, por
meio da conscientização (SCHILDER, 1999, p.7). Para o autor, esses três tipos
de sensações formam o esquema corporal, que corresponde à imagem
tridimensional que todo sujeito tem do próprio corpo. Portanto, não se deve
analisá-las separadamente, porque são decorrentes da movimentação corporal
e constituem a expressão dos sujeitos.
A autoimagem se concretiza por meio do movimento, seja interno ou externo,
aparente ou não. Essa visão permite compreender que toda a expressão
advém dos movimentos necessários para se comunicar algo. Logo, a
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expressão vocal e a autoimagem estão intimamente implicadas por terem o
mesmo princípio de formação, que é o movimento.
Em complementaridade a esse raciocínio, levar-se-á em consideração uma
premissa da imagem corporal, que diz respeito à possibilidade de
reconfiguração continuamente da autoimagem. Isso pode ser conquistado, por
meio da observação, da aprendizagem e dos valores socioculturais
internalizados nas vicissitudes e percepções táteis, cenestésicas, visuais e
auditivas (BARROS, 2005).
Nessa perspectiva, o movimento corporal representa um elemento integrador e
ao mesmo tempo a expressão da singularidade de cada sujeito, uma vez que,
os padrões motores dos indivíduos remetem ao processo de aprendizagem
obtido na infância, que são testados e aprimorados por toda a vida.
Desse modo, a imagem corporal permite ao sujeito uma movimentação
organizada e coerente com a intenção e com as necessidades, além de
imprimir características individuais e circunstanciais às realizações em todos os
gestos. Mutuamente, a expressão e a imagem corporal são renovadas
constantemente, por meio das novas possibilidades de movimentos
(TURTELLI, TAVARES, 2008; SANTIAGO, MEYEREWICZ, 2009).
A partir dessas conjecturas compreende-se que todo movimento corporal é
expressão, porém nem sempre é decodificada ou estabelece sentido para o
interlocutor. Embora possa produzir sentido para si mesmo. Há nessa
proposição uma convicção de que toda expressão tem efeito na imagem
corporal. Portanto, toda nova percepção das expressões produzirá alteração na
autoimagem.
Por outro lado, o comprometimento ou problemas na execução de movimentos
corporais podem gerar transtornos de ordem motora, cognitiva e perceptual.
Quando uma pessoa é capaz de elaborar o plano geral de um movimento, mas
é incapaz de transformá-lo em ação, trata-se de uma apraxia. Porém, quando
há uma desordem na elaboração deste plano geral, trata-se de uma apraxia de
ideias, na qual a ordem das ações parciais fica prejudicada. Se a dificuldade
estiver relacionada à qualidade da execução, o desempenho das ações
parciais fica alterado, isso é considerado como uma apraxia motora (PENNA,
1990).
Todos esses comprometimentos acometem alterações na autoimagem, de
modo que, a atualização do esquema corporal pode incorrer por meio do
descontrole de movimentos. Consequentemente, nessas condições não há
identidade nos gestos e nem possibilidades aprimorá-los. Ao transpor esse
raciocínio para o contexto dos cantores líricos, é possível compreender que a
expressões vocais e corporais estão comprometidas, ou seja, limitadas e/ou
prejudicadas se houver desconexão entre os movimentos e a percepção em
uma interpretação operística.
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Por outro lado, se o cantor não for limitado ou refreado em suas capacidades
interpretativas, e a representação das personagens estiver em consonância
com as possibilidades de concepção própria, ocorrerá uma renovação da
autoimagem, a tal ponto, que a incorporação da personagem transformará o
intérprete.
Para TRAGTENBERG (2007, p.43), o cantor é capaz de enxergar a partitura ou
acatar os critérios estilísticos a partir das experimentações vividas. Nesse
raciocínio, o acréscimo de sensações cognitivas e emocionais das vicissitudes
configura um caminho de acesso para uma concepção singular de uma obra,
que a autora nomeou como partitura interna.
Nesse sentido, ao internalizar os conteúdos de uma partitura ou de um roteiro
cênico, por meio de um processo proprioceptivo experimentado, o intérprete
cria imagens mentalmente, que encontram identidades ou analogias com a
própria imagem (PÁDUA, BORGHOFF, 2007).
Diante do que foi discutido, compreende-se que, no caso de cantores líricos, a
consciência de si mesmo se liberta por meio da percepção da imagem e da
expressão corporal. Nessa condição, a significação estabelece contato com a
representação simbólica dos sentimentos do intérprete, em consonância com o
ambiente cênico. A tal ponto, que desencadeia um processo de semiose, ou
seja de significação e/ou ressignificação das representações entre os gestos
vocais, corporais e a autoimagem.
C) Postura, voz e autoimagem
Conforme abordagem anterior, se o corpo estiver preso a padrões fixos de
repetições de gestos, a autoimagem pode estar comprometida a um grau
reduzido de possibilidades expressivas (SCHILDER, 1999, p.68). Nessas
condições, a semiose pode configurar aspectos negativos, visto que o primeiro
estágio da nova percepção é um estranhamento. Portanto, em um corpo
destituído de propriocepção o estranhamento torna-se a única condição de
relação com o mundo e consigo mesmo.
Nessa perspectiva, os ajustes posturais que os cantores executam durante
uma interpretação operística, quando são impostos ou repetidos podem
provocar alterações na autopercepção e no controle dos gestos, além dos
aspectos emocionais. Dessa forma, as características posturais assumem
padrões desenvolvidos ou adquiridos para garantir “defesas ou controle” dos
gestos.
Para FELDENKRAIS (1977, p.28), a imagem corporal é dinâmica, porque se
modifica de ação para ação, porém, para além das questões orgânicas ela é
também produto da emoção da relação interpessoal, com o meio ambiente e
com os objetos de desejo. Portanto, a imagem corporal traduz as sensações
internas, os anseios, as memórias, a personalidade, a vicissitude, as emoções
e as relações externas.
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Segundo LAPIERRE (1984) a construção da imagem corporal ocorre
espelhada no que o Outro apresenta e no desejo por ele reproduzido. O autor
discorreu sobre o processo de apropriação da fala em crianças, para
exemplificar o processo de formação da imagem corporal e da identidade.
“A criança não espera nada do mundo exterior de plenitude e fusionalidade
(simbiose entre feto e mãe). A perda da plenitude fusional não assegura a
separação do Eu e do não-Eu, a qual exige uma dissociação perceptiva
entre as sensações provocadas pelo exterior e as sensações internas, que
se revertem em experiência. Os objetos transicionais e os desejos do
homem ocorrem para minimizar, ou seja, compensar a “falta de si” ou “de
um ser”. O desejo de possuir o corpo do outro se transforma em desejo
possessivo pelos objetos”. (LAPIERRE, 1984,p.18).
A “falta no corpo” está oculta no inconsciente, consequentemente pode emergir
no consciente sob a forma simbólica de uma falta do ter. Porém, o ter não
preenche essa falta, e o desejo de posse pelos objetos torna-se incontrolável e
cumulativo. Diante disso, a construção da autoimagem se vincula à maneira
pela qual o sujeito tenta consumir, enquanto objeto de desejo, o corpo de outro
indivíduo, para suprir o seu espaço fusional interior (MATARUNA, 2004, p.1).
Nessa perspectiva, a imagem corporal ultrapassa os limites do corpo. Quanto
mais próxima e estreita a ligação do corpo com o objeto, ou com o Outro, mais
possibilidades dessa relação se configurar na imagem corporal.
Assim posto, compreende-se que o objeto ou o Outro que estiver ligado ao
corpo, em um determinado momento, reciprocamente retesa algo da qualidade
na imagem corporal. Disso decorre, que qualquer coisa que se origina ou
emana do corpo faz parte da imagem corporal, ainda que esteja separado dele,
como por exemplo: a voz.
Segundo VIOLA (2008, p.15), a voz é um gesto resultante da interação dos
elementos prosódicos, com os segmentos fonéticos e com os sons não verbais
produzidos na comunicação (ruídos respiratórios, sons bucais e linguais), que
se estrutura conforme as condições emocionais, perceptivas e desejos.
Nessa perspectiva a voz sofre transformações e torna-se espelho da
personalidade e dá indícios do estado emocional, da saúde, do desejo e do
estágio motor de cada cantor. Isso ocorre, porque a percepção dos cantores de
si mesmos é alterada em decorrência dos recursos interpretativos para a
caracterização de um personagem e, possivelmente essas alterações são
incorporadas pela emoção vivenciada. Dado que, o cantor é acometido de
alterações na imagem corporal, a cada novo estudo e interpretação.
A experiência corporal, enquanto realidade única para cada ser humano, tanto
no seu mover, quanto na própria organização física, tônica e postural retrata a
estrutura emocional de cada um. Dessa forma, as imagens que as pessoas
fazem do próprio corpo são a síntese viva das experiências emocionais,
oriundas das sensações erógenas eletivas, antigas ou atuais, ao mesmo tempo
das memórias inconscientes das vicissitudes relacionais (FERREIRA, 2008,
p.447).
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Para ANDRADA E SILVA (2005, p.95) pensar na própria voz é entrar em
contato com a percepção do próprio corpo. Para a autora, quando a voz dá
prazer a quem canta, significa que há consonância entre a imagem corporal e a
personalidade, de tal modo, que a interpretação pode cativar quem ouve. Essa
consonância significa que, a imagem que o espectador tem do cantor está em
acordo com a semiose do executante. A voz e a postura do cantor são
produtos singulares de um corpo e, ao mesmo tempo, a personificação do
sujeito. A partir dessas reflexões, pode-se considerar que o cantor de ópera
altera a autoimagem a cada novo estudo e interpretação. Isso, porque a
percepção de si mesmo é alterada em decorrência dos recursos interpretativos,
que caracterizam o personagem e que, possivelmente, são incorporados.
Ao se conceber a voz como um gesto vocal, subentende-se que ela produz
efeitos na autoimagem do cantor, da mesma forma que outros movimentos
corporais. Por conseguinte, toda alteração de imagem corporal pode produzir
efeito na qualidade vocal e vice-e-versa.
3 - Considerações finais
Ao refletir sobre a constituição da autoimagem do cantor lírico frente às
exigências performáticas operísticas, pode-se considerar que as imposições de
condutas são limitadoras e padronizadoras do comportamento. Isso pode ter
consequência no controle e na elaboração dos gestos, porque restringem de
certa forma, a liberdade, a subjetividade e a singularidade da interpretação.
A expressão e a imagem corporal são figuradas por meio da conscientização
da postura e do movimento corporal, portanto todo movimento é expressivo.
Porém, nem sempre é decodificado ou estabelece sentido para o interlocutor.
Embora possa produzir sentido para o interprete.
Toda expressão tem efeito na imagem corporal, logo, toda nova percepção da
expressão produzirá alteração na autoimagem. Dessa forma, o cantor lírico
altera a percepção de si mesmo, a cada nova interpretação e institui novos
signos para os gestos e para as posturas corporais. Por conseguinte, o prazer, a
intenção e a autenticidade do intérprete pode cativar quem ouve. Isso significa
que há sintonia da semiose entre o cantor e o ouvinte.
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em Fonoaudiologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, é
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MELLO, Ê. L. et al. Postura corporal, voz e autoimagem... Per Musi, Belo Horizonte, n.31, 2015, p.74-85.
membro colaborador do Laboratório de Voz da PUC-SP (LABORVOX/PUC-SP)
e atua em clínica particular. Recebe o apoio financeiro do CNPq (Bolsa de
Doutorado).
Luiz Ricardo Basso Ballestero é bacharel em música, Mestre em
música/piano e Doutor em artes musicais, detém o título de Piano
Accompanying and Chamber Music pela University of Michigan - Ann Arbor.
Atua como Professor doutor da Escola de Comunicação e Artes (ECA) na
Universidade de São Paulo (USP).
Marta Assumpção de Andrada e Silva é fonoaudióloga clínica; mestre em
Distúrbios da Comunicação e doutora em Comunicação e Semiótica pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Atua como
Professora Assistente Doutora na Pós-graduação em Fonoaudiologia na PUCSP; Professora Adjunta no Curso de Fonoaudiologia da Faculdade de Ciências
Médicas da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo; Coordenadora do
Ambulatório de Artes Vocais da Santa Casa e Integrante do LABORVOX/PUCSP.
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