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Desenho em tinta sobre cartolina – Pilar Roca
2
3
Conselho Editorial
Alessandra Soares Brandão (UFSC)
Ana Graça Canan (UFRN)
Ana Mafalda Leite (Universidade de Lisboa)
Anco Márcio Tenório Vieira (UFPE)
Anita Martins Rodrigues de Moraes (UFF)
Arnaldo Saraiva (Universidade do Porto)
Brenda Carlos de Andrade (UFRPE)
Gastón A. Alzate (California State University)
Inocência Mata (Universidade de Lisboa)
João Batista Pereira (UFRPE)
José Rodrigues Seabra Filho (USP)
Juliana Luna Freire (UFPB)
Juliana Pasquarelli Perez (USP)
Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne (UFPB)
Maria Nazareth de Lima Arrais (UFCG)
Maurizio Gnerre (Università di Napoli L’orientale)
Maximiliano Torres (UERJ)
Ramayana Lira (UFSC)
Regina Dalcastagnè (UnB)
Saulo Neiva (Université Blaise Pascal - Clermont-Ferrand)
Simone Schmidt (UFSC)
Suzi Frankl Sperber (UNICAMP)
Yuri Jivago Amorim Caribé (UFPE)
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CDM Design e Consultoria Empresarial Ltda
Camille Barbosa de Aquino
Roberta Lima Designer
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Roberta Lima Designer
Vanessa Riambau Pinheiro
Pilar Roca
Luciane Alves Santos
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½¶ºÅÆòµ¶O outro pé da sereiaʁµ¶º²ÀÆÅÀ
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todo seu rigor, para o domínio artístico, não escapa ao “quinhão da fantasia” que garante a autonomia relativa da obra diante de suas fontes originárias.
ö·Í´ºÀ
O presente livro é resultado das pesquisas do PPGL – Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba –, em especial da linha “Tradição e
modernidade”. Os textos aqui publicados privilegiam a relação entre literatura e sociedade como temática geral, abrangendo realizações literárias do Brasil, da América do
Norte, da Região do Cone Sul, da África e da Europa, na contemporaneidade.
¶Ã´¶³¶ʉĶʁ ²À ½À¿¸À µ²Ä ½¶ºÅÆÃ²Ä Å¶Ĝú´²Ä ¶ ´Ãăź´²Äʁ ² µºȱ´Æ½µ²µ¶ µ¶ µ¶ȱ¿ºção cronológica e conceitual dos limites do “contemporâneo”. Por exemplo, o famoso
ensaio de Theodor Adorno sobre as inovações romanescas do século vinte, “Posição
do narrador no romance contemporâneo”, data dos 50, mas refere-se a autores das
primeiras décadas do século, como Proust e Joyce. Agamben, por sua vez, caracteriza
Nietzsche como “contemporâneo” – um pensador que não se submete às “trevas” e às
modas dominantes de sua época. Ante várias ambiguidades e imprecisões, sobressai
ƾ²ȷƺµ¶ËÂƶ¿ÓÀì²Á¶¿²Ä´À¿´¶ºÅƲ½ʁöÄÅúŲ²ÀĶķÀÃèÀĵÀ½À¸ÀÄʁ¾²Ä´ÀÃöÄponde, antes de tudo, a um paradoxo apontado por Bauman: a liquidez imperativa do
próprio objeto em foco.
Dadas a diversidade e a riqueza dos recursos críticos e teóricos, percebemos
a necessidade de trabalhar com uma unidade de enfoque, a ser discernida no próprio
contemporâneo tematizado nas obras. A heterogeneidade da linha de pesquisa também
º¾ÁĢ¶¶ÄĶµ¶Ä²ȱÀʇòŲʉĶµÀ¶Ä·ÀÃèÀµ¶Æ¿ºµ²µ¶²Ä¶Ã²½´²¿è²µÀ¶¾Æ¾²Ã¶²½ºµ²µ¶
multifacetada que não pode ser velada por artifícios críticos ou teóricos. As análises
recorrem, então, a embasamentos diversos, de alguns autores já consagrados, como
Antonio Candido, Todorov, Marshall Berman, David Roas, Anthony Giddens, Zygmunt
Bauman, Stuart Hall, Giorgio Agamben, dentre outros, bem como de autores menos
divulgados, ao menos nos estudos brasileiros, como Achille Mbembe, Franz Fanon e
Mary Fulbrook. Essas referências são importantes pontos de partida para a compreensão de toda uma literatura empenhada em tematizar as fragmentações sociais da vida
contemporânea.
Na abordagem de tramas e interpretações poéticas que contemplam as contradições entre globalização e identidade cultural, a busca de identidades pós-coloniais,
hibridismo, transnacionalidade, leituras feministas e dramaturgia trágica de autoria
·¶¾º¿º¿²ʁ²Ã¶½²èÓÀµÀÄÁ¶ÃÄÀ¿²¸¶¿Ä´À¾À¶ÄÁ²èÀ·²¿ÅÍÄź´Àʁ²ÄÆÁ¶Ãȱ´º²½ºµ²µ¶µÀÄ
valores cada vez mais efêmeros da indústria cultural, o perigo de mutilação da memória histórica, dentre outras preocupações, procuramos deixar nossa contribuição para
a fortuna crítica de uma temática inesgotável.
Arturo Gouveia
No enfoque da relação entre literatura e sociedade, procuramos reconhecer a
prioridade concedida à fatura textual. Trata-se de uma contribuição pioneira de Antonio Candido em sua época, contemporânea da divulgação internacional dos Formalistas Russos e da visão de “desautomatização da linguagem”, por exemplo, assim como
da Escola de Frankfurt, em especial a defesa adorniana da imanência da obra, sem
renúncia à historicidade plasmada na linguagem. Acreditamos que tais contribuições,
ligadas a novas abordagens também aqui contempladas, continuam de fundamental
importância para os estudos da contemporaneidade. Como princípio norteador de Antonio Candido, por exemplo, para que as abordagens críticas não caiam no sociologismo, a noção de que o externo se torna interno, uma vez priorizada, concebe a sociolo¸º²¶²¹ºÄÅÀúÀ¸Ã²ȱ²´À¾ÀµºÄ´ºÁ½º¿²Ä²Æɺ½º²Ã¶ÄʁÆź½ºË²µ²Ä´À¾À¾¶ºÀʁ¿ÓÀ´À¾Àȱ¾ʇ
Esse procedimento nos ensina a insistir na busca do elemento social na literatura como
´À¾ÁÀ¿¶¿Å¶º¿ÅÃă¿Ä¶´ÀµÀÄŶÉÅÀÄʁ²Ä¶Ãºµ¶¿Åºȱ´²µÀ¿ÓÀ´À¾Àº½ÆÄÅòèÓÀµ²ÄÀ³Ã²Äʁ
mas como categoria analítica e explicativa da própria elaboração artística. Assim, ainda
que o realismo de um texto tenha a pretensão de observar e transpor o mundo, com
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Sandra Luna
Juliana Luna Freire
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ò¸ìµº²¶ÇºÀ½í¿´º²ʃ·Æ¿µ²¾¶¿ÅÀĵÀµÃ²¾²ÅÃ͸º´À
As relações entre a dramaturgia trágica e a violência remetem às origens do
teatro clássico. Embora a tragicidade encenada nas arenas gregas apareça na tradição
crítica associada a noções de destino e fatalidade, o drama trágico jamais pôde prescindir de ações humanas para a perpetração das catástrofes que consubstanciam as
tragédias. Ainda que as intervenções dos deuses nas tramas conferissem às antigas
tragédias sua aura metafísica, a violência física fazia-se determinante ao pathos trágico
que engendrava a katharsis, mesmo que as terríveis cenas de sangue e morte fossem
ocultadas das vistas dos espectadores, como costumava ocorrer na tradição grega.
A intricada associação entre tragédia e violência levou René Girard (A violência
e o sagrado, 2008) a vislumbrar, na sintaxe originária do gênero, a dívida das tragédias
²ÀÄúÅÀÄIJ´Ãºȱ´º²ºÄʇ¾³ÀòÄƳ¾¶Åºµ²²´À¾Á½¶ÉÀÄÁÃÀ´¶ÄÄÀĵ¶¶ÄŶź˲èÓÀʁ²Åò¸ìµº²Ä¶Ãº²ʁ²Àȱ¾¶²À´²³Àʁ²Å¶²Åò½ºË²èÓÀµÀʖIJ´Ãº·ă´ºÀʗµÀ¹¶ÃĜºÀƵ²¹¶ÃÀă¿²ʁ´Æ»²Ä
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IJ´Ãºȱ´º²ºÄʁÀ¹¶ÃĜºÅÃ͸º´À²ÄÄƾ¶À½Æ¸²Ãµ²Âƶ½¶´Æ»²¶½º¾º¿²èÓÀÀÆÁÆ¿ºèÓÀ¶ÄŲ³¶½¶´¶²Á²Ã²¸¶¾µ²ÇºÀ½í¿´º²ʁÁÀ¿µÀȱ¾Ìµ¶ÄÀõ¶¾ʇ
Ressalte-se que, no entender de Girard (2008), a violência, intestina ao humano, é contagiosa e imparável, propaga-se com voracidade e apenas se resolve ao
encontrar uma vítima. Nas sociedades arcaicas, desprovidas de um sistema judiciário,
a exacerbação da violência no seio da comunidade resultava em uma crise societal que
ÄÀ¾¶¿Å¶¶Ã²²Á½²´²µ²´À¾²º¾À½²èÓÀúÅƲ½ăÄź´²µ¶Æ¾Ä²´Ãºȱ´²µÀʇ¾³Àò¿¶¿¹Æ¾²
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da divindade no rito legitimava o sentido sagrado do sacrifício e isso abonava a arbiÅòú¶µ²µ¶µ²¶Ä´À½¹²µÀÄIJ´Ãºȱ´²µÀÄʁÂƶ¶Ã²¾Ä¶¾Áöʁ¿ÓÀÁÀò´²ÄÀʁÁÀÃŲµÀöĵ¶
“marcas vitimárias” – órfãos, estrangeiros, andarilhos, mendigos, precisamente aqueles e aquelas cujas mortes não ensejariam vingança.
Nas fábulas infantis, a arbitrariedade do sacrifício como condição à paragem
da violência é ironicamente simbolizada pela pedra que se oferta ao ogro para aplacar
sua ira. Nas tragédias, é o herói quem ocupa o centro da arena trágica e sua destruição
será percebida como mecanismo de restauração da “ordem”, já que sua eliminação ou
ÁÆ¿ºèÓÀÁĢ¶ȱ¾²ÀÄ´À¿ȷºÅÀÄ´À¿ÄźÅÆźÇÀĵ²Åò¾²ʇ¿ÅöŲ¿ÅÀʁ²¶½¶ºèÓÀµÀ¹¶ÃĜºÌ
´À¿µºèÓÀµ¶ʖIJ´Ãºȱ´²µÀʗ¿ÀµÃ²¾²¿ÓÀĶÃ;¶¿ÀIJóºÅÃÍú²µÀÂƶ²Ä¾ÀÃŶĽ¶Ç²µ²Ä²¶·¶ºÅÀ¿ÀÄúÅÀÄIJ´Ãºȱ´º²ºÄʁ´À¿´½Æº ºÃ²ÃµʯЀϾϾІʰʇ
É importante considerar que a ação trágica, estruturadacom base em uma l󸺴²´²ÆIJ½ÂƶµÃ²¾²ÅºË²²Åò»¶ÅĜú²µÀ¹¶ÃĜº´À¾À¶ºÉÀµÀÆ¿ºÇ¶ÃÄÀȱ´´ºÀ¿²½ʁŶ¿µ¶²
µºÄÁ¶ÃIJÃÀÆ´²¾Æȷ²Ã¶ÄIJ²Ã³ºÅòú¶µ²µ¶µ²ÄÀ½ÆèÓÀÅÃ͸º´²ʁÁÀöɶ¾Á½Àʁº¿µº´º²¿µÀ
na trama um “erro trágico” (hamartia) cometido pelo personagem heroico e que se faz
ºµ¶¿Åºȱ´²Ã´À¾À¶½¶¾¶¿ÅÀµÃ²¾Íź´ÀÂƶÁÃÀÇÀ´²ʁµºÃ¶Å²Àƺ¿µºÃ¶Å²¾¶¿Å¶ʁ²´²ÅÍÄÅÃÀ·¶ÂƶÀ²³²Å¶ʇÀ¶¿Å²¿ÅÀʁ´À¾À³¶¾ÇºÆ ºÃ²Ãµʁ²ÁÃĜÁú²µº¾¶¿ÄÓÀ´À¿ȷºÅÆÀIJ
das tramas trágicas evidencia uma crise societal em curso, na qual reinam por toda
parte a desordem e a violência. Não fosse pela arbitrariedade da construção estética
da ação, centralizada na trajetória do herói e enfatizando o que convém para indiciar o
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protagonista, tornando-o, ao mesmo tempo, agente e paciente do pathos trágico, não
seria fácil discernir na rede de inter-relações sociais constitutivas do mythos as causas
originárias das desordens que nas tragédias clamam por um desfecho trágico.
Embora não seja nosso propósito aprofundar leituras críticas dos antigos textos trágicos, importa-nos, entretanto, ressaltar que a violência perpetrada nas tragédias não deve ser lida sob a óptica da ação individual, sem que se considere a tessitura
da trama em sua completude. O próprio Aristóteles na Poética insistia em que não é o
ethos, mas o mythos, a “alma da tragédia”. E o mythos, dizia o estagirita, é a composição dos atos. Sob esse prisma, vale a pena ouvir Raymond Williams (Tragédia Moderna, 2002) sobre a necessidade de se fazer uma leitura descentrada da ação trágica,
justamente porque, para este autor, tragédia não é aquilo que acontece ao herói, mas
ʖ²Âƺ½ÀÂƶ²´À¿Å¶´¶ÁÀþ¶ºÀµÀ¹¶ÃĜºʗʯÁʇІϾʰʇ ÄÄÀĺ¸¿ºȱ´²Âƶʁ²À½²¿è²ÃʉĶ´À¿ÅòÀ
Æ¿ºÇ¶ÃÄÀ´À¿ȷºÅÆÀÄÀʁÀ¹¶ÃĜº¶Çºµ¶¿´º²²Å¶º²µ¶º¿Åú¸²Ä¿²ÂƲ½ì¶¿Ã¶µ²µÀ¶º¿ÄŲµÀ²
reagir tragicamente. Neste sentido, aquilo a que se costuma referenciar como “ordem”,
no universo das tragédias, é, no entender de Raymond Williams, fundamentalmente,
“desordem”.
²èÓÀ ÅÃ͸º´² ¿ÓÀ Ķ µ¶ȱ¿ºÃº²ʁ ÁÀÃŲ¿ÅÀʁ ´À¾À Åò¿Ä¸Ã¶ÄÄÓÀ Ì Àõ¶¾ʁ ¾²Ä
como reação à desordem. Sob essa perspectiva, o sofrimento (ou o “sacrifício”, no dizer
de Girard) das personagens trágicas adquire, para Raymond Williams, sentido revolucionário, instigando-nos a atentar criticamente para a dimensão social que estrutura
ÀÄ´À¿ȷºÅÀĵò¾Íź´ÀÄ¿ÀÄŶÉÅÀÄÅÃ͸º´ÀÄʇÂƺDz½¶Ãº²²Á¶¿²¶ÇÀ´²Ã²ÈÄÀ¿ʯϿЇЅІʰʁ
Á²Ã²Âƶ¾²²èÓÀµÃ²¾Íź´²ʁĶ»²¿²Åò¸ìµº²²¿Åº¸²ÀÆ¿ÀµÃ²¾²¾Àµ¶Ã¿Àʁµ¶ȱ¿¶ʉĶ
¶Ä¶µ¶Ä¶¿ÇÀ½Ç¶²ÅòÇìĵ¶´À¿ȷºÅÀÄÄÀ´º²ºÄʁ´À¿ȷºÅÀÄÂƶÁÀĺ´ºÀ¿²¾Á¶ÄÄÀ²Ä´À¿Åò
pessoas, indivíduos contra grupos, grupos contra outros grupos, indivíduos ou grupos contra forças sociaisou naturais. Não surpreende que nesse universo dramático
º¿¶ÇºÅ²Ç¶½¾¶¿Å¶´À¿ȷºÅÆÀÄÀ²ÇºÀ½í¿´º²²ÄÄƾ²¿²´¶¿²²Ä¾²ºÄDzú²µ²Ä·Àþ²Äµ¶
representação estética.
¶ÁöĶ¿Å²èĢ¶Äµ²ÇºÀ½í¿´º²¿²µÃ²¾²ÅÆøº²ÅÃ͸º´²
A história da dramaturgia trágica no ocidente poderia ser reescrita com base
nas diversas convenções estéticas voltadas à representação da violência nos textos dramáticos que se tornaram canônicos. Se, como dissemos, os gregos subtraíam aos olhos
dos espectadores as cenas de sangue e morte, sonegando a encenação dos recorrentes
suicídios, enforcamentos, assassinatos por armas cortantes e outros gestos violentos
Âƶ´À¿ȱ¸ÆòDz¾²Ä´²ÅÍÄÅÃÀ·¶Ä¶¾ÄƲÄÅò¸ìµº²ÄʁºÄÄÀÁ²Ã¶´º²µ¶Ç¶ÃʉĶÌÄ´À¿µºèĢ¶Ä
¶ÄÁ¶´ăȱ´²Ä µÀÄ Å¶²ÅÃÀÄ ¸Ã¶¸ÀÄʁ Âƶʁ Ķ¿µÀ ²³¶ÃÅÀÄʁ ´À¾ ÀÄ ¶ÄÁ¶ÅʹƽÀÄ À´ÀÃö¿µÀ Ì
½Æ˵Àµº²ʁµºȱ´Æ½Å²Ç²¾²¶¿´¶¿²èÓÀǶÃÀÄÄă¾º½µ¶ÄIJǺÀ½í¿´º²·ăĺ´²¿Æ¾²²ÃŶÂƶ
clamava por seriedade e elevação estética, características fundamentais da tragédia
enquanto gênero, dramático e teatral. Para impedir que o trágico resvalasse para o
cômico, a violência física no teatro grego ocorria por trás da cena (skené) e era depois
relatada por alguma testemunha, enquanto o corpo já inerte – mutilado, ensanguentado – era exposto na arena, carregadopor meio de uma espécie de carrinho de rolimã
(ekkuklema).
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ĵºȱ´Æ½µ²µ¶Äµ¶¶¿´¶¿²Ã²ÇºÀ½í¿´º²·ăĺ´²¿ÀÄŶ²ÅÃÀĵ²²¿Åº¸Æºµ²µ¶Ã¶Äpondem ainda hoje pelas frequentes alusões dos críticos à pouca probabilidade de terem sido as tragédias de Sêneca produzidas para a cena. Sendo Sêneca um mestre em
dramatizar a violência física, suas tragédias se encerram em catástrofes aterradoras e
nada em seus textos sugere que as cenas de sangue e morte devessem ser subtraídas
²ÀÄÀ½¹Àĵ²Ã¶´¶ÁèÓÀŶ²Åò½ʇÄƲ¶µ¶º²ʁÁÀöɶ¾Á½Àʁ¾²Å²Æ¾µÀÄȱ½¹ÀÄÌǺÄŲ
dos espectadores, enquanto arrasta a outra criança para ser morta diante de Jasão,
tudo isso sob os olhares do público, se é que realmente o teatro latino levou essa peça à
encenação. Seja como for, séculos depois, o teatro renascentista, que teve as tragédias
de Sêneca por modelares, encontrou meios de encenar nos palcos da modernidade o
horror das tragédias, de maneira que célebres dramaturgos dos tempos modernos,
dentre eles, Shakespeare, devem ao tragediógrafo latino muito do gosto pela exibição
¶ÉÁ½ă´ºÅ²µ²ÇºÀ½í¿´º²·ăĺ´²ʁ¶¾³Àò¿ÓÀĶÁÀÄIJÅú³ÆŲòÁ¶¿²Ä̺¿ȷÆí¿´º²µ¶í¿¶´²
essa convenção teatral, considerando-se que a historicidade será sempre um elemento
µ¶ȱ¿ºµÀõ²Ä´À¿Ç¶¿èĢ¶Ä²ÃÅăÄź´²ÄÂƶĶÁ¶ÃÁ¶ÅƲ¾ʇÀ´²ÄÀµÀµÃ²¾²¶½ºÄ²³¶Å²¿Àʁ
não se pode esquecer que o mesmo público que ia ao teatro comparecia a execuções
públicas, de maneira que, na Londres dos séculos XVI e XVII, por exemplo, não faltavam oportunidades para que se assistisse a enforcamentos ou decapitações em praça
pública. Não surpreende que o teatro renascentista inglês responda a essa predisposição da recepção para a degustação prazerosa de cenas de extremada violência física.
À´ÀÃöõÀÄÄì´Æ½ÀÄʁ²º¿ȷ¶ÉÓÀ¶ÄÅìź´²ÂƶʁÄÀ³º¿ȷÆí¿´º²µ²ÄöÇÀ½ÆèĢ¶Ä
liberais no ocidente, transformaria a tragédia em drama burguês, produziu mudanças
severas na representação da violência nos palcos trágicos. Os gestos convulsivos que
caracterizavam a violência física nas grandes tragédias eram condizentes com a retórica elevada dos reis, príncipes e nobres que protagonizavam suas tramas. Quando
o teatro trágico se “rebaixa” e se faz drama burguês, ou drama social, extingue-se a
chamada “cláusula dos Estados” – a convenção que restringia o heroísmo trágico aos
representantes da nobreza – , e o protagonismo das peças passa a ser concedido a homens e mulheres comuns. Nesse novo gênero dramático e teatral, a elevada linguagem
ÁÀìź´²µ²ÄÅò¸ìµº²ÄĶÅÀÿ²ÁÃÀIJº´²ʇ²¾³ì¾²¾ÀÃŶĶ¾Àµºȱ´²ʁĶʖö³²ºÉ²ʗʁĶ
aquieta, assumindo novas conotações de tragicidade, não raramente cedendo lugar a
mortes simbólicas, como a desonra, a falência moral ou material, o banimento social, a
½ÀÆ´Æòʇ ÄÄÀ¿ÓÀĺ¸¿ºȱ´²Âƶ²ÄIJÄĺ¿²ÅÀĶÄƺ´ăµºÀÄŶ¿¹²¾ÄºµÀ¶É´½ÆăµÀĵ²´¶¿²
trágica, apenas os novos tempos fazem incidir conotações mais condizentes com a
historicidade implicada na representação mimética da ordem\desordem da vida burguesa. Considerando o peso dos contextos históricos na feitura dos dramas sociais, não
faltará inspiração aos dramaturgos para representarem formas mais contemporâneas,
reais ou simbólicas, de matar ou morrer. Ibsen faz Nora bater a porta de sua Casa de
Bonecas,²³²¿µÀ¿²¿µÀ¾²ÃºµÀ¶ȱ½¹ÀIJÀȱ¿²½µÀµÃ²¾²ʇ¶¿¶ÄĶ¶º½½º²¾Äʁ¶¾Um
Bonde Chamado Desejo, concede a Blanche DuBois a eternização de suas fantasias na
loucura, que não deixa de ser morte em vida. Eugene O’Neill, em O luto assenta em
Electra, uma releitura da Oresteia de Ésquilo, “higieniza” o banho de sangue dado pela
Clitemnestra grega ao apunhalar seu esposo Agamemnon, fazendo com que Christine assassine Manon recusando-se a lhe entregar as pílulas que o poderiam livrar do
ataque cardíaco que o fulmina em cena. Tudo isso nos diz que a história das representações da violência no teatro trágico tem muito a nos contar sobre a história da nossa
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própria civilização.
O drama social adquire estatuto modelar no ocidente no século XIX e, sob inȷÆí¿´º²µÀŶ²ÅÃÀµ¶ ³Ä¶¿ʁŲ½Ç¶ËÀ¾²ºÄº¿ȷƶ¿Å¶µÀĵò¾²ÅÆøÀľÀµ¶Ã¿ÀIJµ²Ã
continuidade ao que Raymond Williams chamou de “Forma Geral” da dramaturgia
trágica, o século XX viria a produzir um amplo espectro de peças representativas da
dor e do sofrimento humanos resultantes das mazelas da vida social no mundo bur¸ÆíÄʇí¿·²Ä¶½²¿è²µ²ÄÀ³Ã¶ÀÄ´À¿ȷºÅÀÄÄÀ´º²ºÄ´À¾À´²ÆIJµÀöĵ²Åò¸º´ºµ²µ¶¿¶ÄIJ
forma modelar de drama evidencia que mesmo as crises existenciais mais profundas
experimentadas em cena pelos personagens resultam de suas interações sociais. Com
isso, essa tradição dramática alcança um forte pendor para a crítica social e embora
haja uma vertente teórica que negue a esses dramas sociais o estatuto de “tragédias”,
como o faz, por exemplo, George Steiner, em A morte da tragédia (2006), outras concepções teóricas reconhecem que o teatro trágico sempre foi mutável, sempre pautouʉĶ¶¾´À¿ȷºÅÀÄÄÀ´º²ºÄ²½º¿¹²µÀIJÀÄĶÆÄ´À¿Å¶ÉÅÀĹºÄÅĜú´ÀĶʁÁÀÃŲ¿ÅÀʁ´²Å¶¸Àú˲¾ÀµÃ²¾²ÄÀ´º²½´À¾ÀʖÅò¸ìµº²¾Àµ¶Ã¿²ʗʁ¿²µ¶ȱ¿ºèÓÀ·Àþƽ²µ²ÁÀòʾÀ¿µ
Williams (2002).
¿ȷ¶ÉĢ¶ÄµÀÅÃ͸º´À¿²ÇºÃ²µ²Á²Ã²²ÁĜÄʉ¾Àµ¶Ã¿ºµ²µ¶
Essa revisão crítica das formas historicizadas de representação da violência na
ÅòµºèÓÀµÃ²¾Íź´²¶ÄƲ²Áö¶¿ÄÓÀ¶¾Ã¶½²èÓÀ²´À¿ȷºÅÀÄÄÀ´º²ºÄ¿ÀÄÁ¶Ã¾ºÅ¶²ȱþ²Ã
algo que interessa diretamente ao estudo da dramaturgia contemporânea. Para melhor
¶¾³²Ä²Ã¿ÀÄIJÄöȷ¶ÉĢ¶Äʁµ¶Ç¶¾ÀÄ´À¿Äºµ¶Ã²ÃÂƶʁµ¶Äµ¶²ÄÀú¸¶¿Ä´½ÍÄĺ´²Ä²Å쾶ados do século XX, a despeito das marcantes distinções que evidenciamos no tocante à
representação da violência e ao tratamento concedido à tragicidade no cânone teatral
no ocidente, o gravitas permaneceu por séculos associado ao trágico. Em toda essa
tradição que revisitamos, o pathos trágico sempre esteve associado a um tratamento
respeitoso, grave, elevado, do sofrimento humano, mesmo em dramas cujos protago¿ºÄŲIJÁ²Ã¶´¶¾ʖö³²ºÉ²µÀÄʗÄÀ´º²½¾¶¿Å¶ʇ ÄÄÀ¿ÓÀĺ¸¿ºȱ´²Âƶ²ÄÅò¸ìµº²Äʁ²¿Åº¸²Ä
ou modernas, não acolhessem a comicidade, o humor, a ironia, mas as tiradas cômicas
não incidiam diretamente sobre o ethos ou sobre o pathos trágico, eram apenas inserções de situações ou alusões risíveis, nesgas para a experimentação do que os críticos
de Shakespeare chamaram de “alívio cômico”, cenas leves enxertadas na trama trágica,
cujo arcabouço, no entanto, permanecia na esfera das artes sérias e elevadas.
Por volta de meados do século XX, no entanto, outras opções estéticas se materializam na cena teatral, dentre as quais poderíamos destacar as contribuições advindas do Teatro do Absurdo, de Beckett e Ionesco, do Teatro Épico, de Brecht, e do Teatro
da Crueldade, de Artaud. Em linhas muito gerais poderíamos dizer que a partir dessas
º¿ȷÆí¿´º²Äʁ¿ÀDzķÀþ²Äµ¶ÅòŲ¾¶¿ÅÀµÀÅÃ͸º´ÀÁ²ÄIJ¾²º¿´ºµºÃ¿²µÃ²¾²ÅÆøº²¶
as décadas seguintes serão pródigas em recusar o tratamento convencionalmente sério
e respeitoso que, durante séculos, foi concedido à tragicidade no drama.
ÄIJĿÀDzĺ¿ȷ¶ÉĢ¶Ä·Àþ²ºÄÂƶÄÀ³Ã¶²Åò¸º´ºµ²µ¶º¿´ºµ¶¾ʁÀ³Çº²¾¶¿Å¶ʁ
não podem ser desconectadas da historicidade que contextualiza as peças. Aqui caberia
16
³¶¾¶ÇÀ´²Ã²µ¶ȱ¿ºèÓÀµ¶²Ê¾À¿µº½½º²¾ÄʯЀϾϾЀʰÄÀ³Ã¶ÀÂƶ¶½¶´¹²¾ÀƵ¶ʖ¶Ätrutura de sentimento”, espécie de emergência de formas criativas que compartilham
características assemelhadas por serem resultantes de certa predisposição geracional
para perceber agitações ou perturbações nas ordens e valores hegemônicos manifestos
e a esses distúrbios na vida política, social, cultural conferir feições estéticas. Como
bem diz o autor, conferindo à historicidade seu papel na história das artes: novos conteúdos se precipitam em novas formas. No que diz respeito ao século XX, vejamos o
que escreveu Marvin Carlson acerca da percepção pelo teatro das catástrofes resultantes de um processo civilizatório que apregoava a hegemonia dos saberes, da ciência, do
progresso intelectual da humanidade e culminou em duas Grandes Guerras e outras
tantas aberrações:
A falta de sentido ou a aparente malevolência do universo, o horror da guerra moderna e a ameaça de destruièÓÀ²Åĝ¾º´²ȱ˶ò¾Âƶ¾ÆºÅÀÄŶĜú´ÀÄʁ²ÁĜIJ¶¸Æ¿µ² ƶÃòƿµº²½ʁĶ¿ÅºÄĶ¾ÂƶÀźÁÀµ¶¶ÉƽŲèÓÀ
proporcionado pela tragédia, mesmo a mais sombria
[...], já não era atingível. Voltaram-se de preferência
para a comédia negra ou a comédia com implicações
ÅÃ͸º´²Äʁʳʇʇʇʴ¸í¿¶ÃÀ¾²ºÄ²µ¶ÂƲµÀÌ´À¿Ä´ºí¿´º²¾Àµ¶Ã¿²ʇʯʁϿЇЇЅʁÁʇЂЀЇʰ
Dentre os autores referidos por Carlson, como representativos desse desen´²¿Å²¾¶¿ÅÀµÀ¾Æ¿µÀ²Ä¶Ãöȷ¶ÅºµÀ¿ÀŶ²ÅÃÀʁDz½¶²Á¶¿²´À¿·¶ÃºÃÀÂƶµºË ú¶µÃº´¹
Duerrenmatt em seu texto Problemas do TeatroʁÁƳ½º´²µÀ¶¾ϿЇЃЂʇƶÃö¿¾²ÅÅ¿ÓÀ
nega a possibilidade de permanência do elemento trágico na dramaturgia contemporânea, apenas considera não mais ser possível a pura tragédia e isso por vários motivos, dentre os quais, as perdas de referências que possibilitariam o tratamento sério e
circunstanciado do trágico:
¾Æ¿µÀµ¶¹À»¶ʁµÀ¾ÀµÀ´À¾ÀĶ¿ÀIJÁöĶ¿Å²ʁµºȱ´º½¾¶¿Å¶Ä¶µ¶ºÉ²¶¿·Àþ²Ã¿ÀľÀ½µ¶ÄµÀµÃ²¾²¹ºÄÅĜú´ÀÄ´¹º½½¶Ãº²¿Àʁĺ¾Á½¶Ä¾¶¿Å¶Á¶½À·²ÅÀµ¶¿¶½¶¿ÓÀ
¾²ºÄ ¶¿´À¿ÅòþÀÄ ¹¶ÃĜºÄ ÅÃ͸º´ÀÄʁ ¾²Ä ÅÓÀʉÄÀ¾¶¿Å¶
Åò¸ìµº²Äʁ¶¿´¶¿²µ²ÄÁÀô²Ã¿º´¶ºÃÀÄÆ¿ºÇ¶ÃIJºÄ¶¶É¶´ÆŲµ²ÄÁÀþÍÂƺ¿²Äµ¶¾À¶ÃʇÓÀĶÁÀµ¶¾¾²ºÄ·²Ë¶Ã
ʖ²½½¶¿ÄŶº¿Äʗ²Á²Ãźõ¶ ºÅ½¶Ã¶µ¶Åͽº¿ʇÁÀµ¶Ãµ¶ÄŲĵƲÄȱ¸ÆòÄìÅÓÀ¸º¸²¿Å¶Ä´ÀÂƶ¶½²ÄÁÃĜÁú²Ä²º¿µ²
´À¿ÄźÅƶ¾¶Ç¶¿ÅƲºÄ¶¶Çºµ¶¿Å¶Ä·Àþ²Äµ¶¶ÉÁöÄÄÓÀ
de tal poder. Além disso, a desgraça vinculada especial¾¶¿Å¶²ÀÁú¾¶ºÃÀʁ¶³²ÄŲ¿Å¶²ÀĶ¸Æ¿µÀʁò¾ºȱ´ÀÆʉĶ
demais e tornou o mundo confuso, violento, mecânico e
·Ã¶Âƶ¿Å¶¾¶¿Å¶²³ÄÀ½ÆŲ¾¶¿Å¶µ¶ÄźÅÆăµÀµ¶Ä¶¿ÅºµÀʇ
poder de Wallenstein ainda era um poder visível; entreŲ¿ÅÀʁÀÁÀµ¶Ãµ¶¹À»¶Àì²Á¶¿²Ä¶¾Á¶Âƶ¿²¶Ä´²½²ʁ²ÄĶ¾¶½¹²¿µÀʉĶ²Æ¾º´¶³¶Ã¸ʁ¶¾Âƶ²¾²ºÀÃÁ²ÃŶÁ¶Ã¾²¿¶´¶²·Æ¿µ²µ²¿À²¿ĝ¿º¾Àʁ¿À²³ÄÅòÅÀʇµÃ²¾²µ¶
17
´¹º½½¶ÃÁöÄÄÆÁĢ¶Æ¾¾Æ¿µÀŲ¿¸ăǶ½ʁƾ²Ç¶Ãµ²µ¶ºÃ²
ação do Estado, como de resto também a tragédia grega.
ºÄăǶ½¿²²ÃŶìÄÀ¾¶¿Å¶²Âƺ½ÀÂƶÁÀµ¶Ä¶Ã²³²Ã´²µÀ
Á¶½²ÇºÄÓÀʇÄŲµÀ¹Àµº¶Ã¿Àʁ´À¿ÅƵÀʁȱ´Àƺ¿²Áö¶¿sível, anônimo, burocrático, e isto vale não apenas para
Moscou ou para Washington, mas também para Berna.
ÅƲ½¾¶¿Å¶ʁ ²Ä ²èĢ¶Ä ¶ÄŲŲºÄ ÄÓÀ »À¸ÀÄ Ä²Åăú´ÀÄʁ Âƶ
vieram depois, e seguem as tragédias consumadas em
silêncio. Faltam os verdadeiros representantes e os heÃĜºÄÅÃ͸º´ÀÄ¿ÓÀÅí¾¿À¾¶ʇʯЀϾϾЅʁÁʇІЃʉІЄʰ
Impressiona como, já em meados do século XX, Duerrenmatt tenha atentado
para as causas da irreverência que recairia sobre a dramaturgia trágica nas décadas
posteriores. Em suas palavras, diante da desarrumação do mundo contemporâneo,
somente a comédia estaria apta a expressar a tragicidade:
A tragédia, por ser o gênero artístico mais rígido, pressupõe um mundo enformado. A comédia [...] pressupõe
um mundo desenformado, em mudança, em revolução,
um mundo em arrumação, como o nosso. [...]
A tragédia pressupõe culpa, necessidade, moderação,
´À¿ÅÃÀ½¶ʁ öÄÁÀ¿Ä²³º½ºµ²µ¶ʇ ² ´À¿·ÆÄÓÀ öº¿²¿Å¶ ¶¾
nosso século [século XX], nesta desordem da raça bran´²ʁ¿ÓÀ¶ÉºÄŶ¾¾²ºÄ´Æ½Á²µÀĶŲ¾³ì¾¿ÓÀ¶ÉºÄŶ¾
¾²ºÄ öÄÁÀ¿ÄÍǶºÄʇ º¿¸Æì¾ ÁÀµ¶ ÀÆ Âƶà ´À¿Åú³ÆºÃ
µ¶²½¸Æ¾¾ÀµÀ¶¾ÁÃÀ½µÀÂƶÂƶÃÂƶĶ»²ʇƵÀì
²ÃòÄŲµÀ¶ȱ´²ÄÆÄÁ¶¿ÄÀ¿Æ¾Ã²ÄŶ½ÀÂƲ½ÂƶÃʇÀÿ²mo-nos coletivamente culpados, coletivamente encarcerados nos pecados de nossos pais e de nossos anteÁ²ÄIJµÀÄʇ À¾ÀÄ ²Á¶¿²Ä ȱ½¹ÀÄ µ¶ ȱ½¹ÀÄʇ ÄŶ ì ¿ÀÄÄÀ
²Ë²Ãʁ¿ÓÀ¿ÀÄIJ´Æ½Á²ʃ²´Æ½Á²¶ÉºÄŶÄÀ¾¶¿Å¶´À¾À·²ÅÀ
Á¶ÄÄÀ²½ʁ´À¾À²ÅÀö½º¸ºÀÄÀʇ¿ĜÄ´À¿Çì¾²Á¶¿²Ä²´À¾ìµº²ʯЀϾϾЅʁÁʇІЅʉІЇʰ
As palavras de Duerrenmatt podem ser vistas como emblemáticas no tocante
Ìĵºȱ´Æ½µ²µ¶Ä¶¿·Ã¶¿Å²µ²ÄÁ¶½ÀŶ²ÅÃÀµ²Ä¶¸Æ¿µ²¾¶Å²µ¶µÀÄì´Æ½À¿ÀÂƶöÄÁ¶ºta à dramatização de tragédias representativas do seu próprio tempo. Seja como for,
não apenas o teatro, mas distintas formas de expressão estética em circulação na contemporaneidade optaram não apenas pelo cômico, mas também pela ironia, pela par󵺲ʁÁ¶½ÀÁ²Äź´¹¶ʁö´ÆÃÄÀIJÁÅÀIJº¿µº´º²Ã´ÃºÅº´²¾¶¿Å¶²Âƺ½ÀÂƶÀIJÃźÄŲÄȷ²¸Ã²¾
como a “estrutura de sentimento” resultante das contradições do tempo presente.
²ÃĜµº²¶ºÃÀ¿º²¿²µÃ²¾²ÅÆøº²ÁĜÄʉ¾Àµ¶Ã¿²
O recurso à parodização na contemporaneidade tem sido tão recorrente, que
Linda Hutcheon (2002) propõe ter a paródia alcançado estatuto de gênero, impon18
do-se na arte e na cultura atual como uma espécie de “modus operandi” discursivo,
uma forma potente de revisão crítica do já visto, já dito, que, por via paródica, se faz
desconstruído, denunciado, deformado, desdito.
Não são pouco os teorizadores que se debruçam sobre a arte na condição
pós-moderna e a dimensão irônica e paródica recorrente na estética contemporânea
À´ÆÁ²À´¶¿ÅÃÀµ²Äöȷ¶ÉĢ¶Ä¶µ¶³²Å¶Ä¶¿·Ã¶¿Å²µÀÄÁÀöÄĶIJÆÅÀöÄʇ²ÄÁ²½²Çòĵ¶
Hutcheon:
Muitos dos desacordos acerca da avaliação das estrat鸺²ÄÁĜÄʉ¾Àµ¶Ã¿²ÄÁÀµ¶¾Ä¶ÃǺÄÅÀÄ´À¾ÀÀöÄƽŲµÀ
µ¶Æ¾²Ã¶´ÆIJ̵ÆÁ½º´ºµ²µ¶µ²ÁÀ½ăź´²µ¶Ã¶ÁöĶ¿Å²èÓÀµÀµºÄ´ÆÃÄÀÁĜÄʉ¾Àµ¶Ã¿Àʇ²Ã²½²¿º½µ¶ʁ²ºÃÀ¿º²
ì ƾ² ´²Ã²´Å¶ÃăÄź´² ÁÀĺźDz ¶ µ¶ȱ¿ºµÀò µÀ ÁĜÄʉ¾Àµ¶Ã¿Àʂ Á²Ã² ¶ÃÃÊ ²¸½¶ÅÀ¿ʁ ² ºÃÀ¿º² ì À Âƶ ´À¿µ¶¿²
ÀÁĜÄʉ¾Àµ¶Ã¿ºÄ¾À²ÀÅúǺ²½¶²À¼ºÅÄ´¹ʇ²Ã²²½¸Æ¿Äʁ²
º¾Á½º´²èÓÀº¿¶ÇºÅÍǶ½µÀÁĜÄʉ¾Àµ¶Ã¿ºÄ¾À¿Àµ¶³²Å¶¶¿Åö²ÃŶ¶½¶Ç²µ²¶´Æ½ÅÆòµ¶¾²ÄIJìĺ¸¿ºȱ´²ÅºÇÀʂÁ²Ã²
ÀÆÅÃÀÄʁì½²¾¶¿ÅÍǶ½ʇ²Ã²ʇ ʇ³Ã²¾Äʳʇʇʇʴʁ²Äʒº¿µ¶Å¶Ã¾º¿²èĢ¶Äº¿ÄÀ½łÇ¶ºÄʓÁ¶½²ÄÂƲºÄ¶½¶ÁÃĜÁúÀµ¶ȱ¿¶À
ÁĜÄʉ¾Àµ¶Ã¿À ¶ÄÅÓÀ º¾Á½º´ºÅ²¾¶¿Å¶ ö½²´ºÀ¿²µ²Ä Ì ·²½Å²µ¶Ä¶¿ÅºµÀ¶Ìµ¶¾À½ºèÓÀµÀÄ·Æ¿µ²¾¶¿ÅÀĴƽÅÆòºÄʁ
¶¿ÂƲ¿ÅÀ Á²Ã² ¹²³ ²ÄIJ¿ ¶ÄÄ²Ä ¾¶Ä¾²Ä º¿µ¶Å¶Ã¾º¿²èĢ¶Ä ÄÓÀ Á²ÃŶ µ¶ ƾ ʒ²¾Á½À µ¶Ä¶»À öǺĺÀ¿ºÄŲ ¿À
¾Æ¿µÀÀ´ºµ¶¿Å²½ʁµ¶Ä¶ÄŲ³º½ºË²¿µÀʤöʉ¶ÄŲ³º½ºË²¿µÀ´Ĝµº¸ÀÄʁ´Î¿À¿¶ÄʁÁÃÀ´¶µº¾¶¿ÅÀÄʁ´Ã¶¿è²Äʓʇʯ ʁ
ЀϾϾЀʁÁʇϿЅʉϿІʁÅòµÆèÓÀ¿ÀÄIJʰʇ
A questão que se coloca como premente no tocante à recorrência da
paródia na arte e na cultura contemporâneas seria, portanto, a discussão sobre as
potencialidades dessas formas artísticas para a crítica. Se, conforme Jameson, o pós-modernismo corresponde à lógica cultural do capitalismo tardio, como poderia essa
²ÃŶÁĜÄʉ¾Àµ¶Ã¿²¶Ä´²Á²ÃÌ´ÀÀÁŲèÓÀʁÌöºȱ´²èÓÀʁ²ÀIJÁ¶½Àľ¶Ã´²µÀ½Ĝ¸º´ÀĶ²ÀÄ
valores hegemônicos em circulação no próprio sistema que o engendra e que consome
ÄƲÄÁÃÀµÆèĢ¶Äʎ¶¾µ¶ºÉ²Ãµ¶²Âƺ¶Ä´¶Ã²µºȱ´Æ½µ²µ¶µÀÁÃÀ³½¶¾²ÂƶĶÁÃÀÁĢ¶²
º¿Ç¶Äź¸²Ãʁ ÆÅ´¹¶À¿²ȱþ²ʁ¶¿ÅöŲ¿ÅÀʁÂƶ²²¾³º¸Æºµ²µ¶¶²µÆÁ½º´ºµ²µ¶ÄÓÀ¾²Ã´²Ä
por excelência dessa arte pós-moderna, convidando-nos a pensar que sua poética e sua
política evocam a indecibilidade, isto é, revelam, ao mesmo tempo, sua potencialidade
para a crítica social e, portanto, para a resistência contra-hegemônica, e também a
consciência de pertencimento ao sistema e às tradições que insiste em parodiar, ironi˲Ãʇµ¶Ä²ȱÀµ²´Ãăź´²Ä¶Ãº²¹À»¶Ã¶ÄÁÀ¿µ¶Ã²¶ÄIJº¿µ¶´º³º½ºµ²µ¶ʁ²¶ÄIJ²¾³º¸Æºµ²µ¶ʇ
No drama anglo-americano contemporâneo, a parodização, a ironia, a comicidade, mas também a caricatura, o excesso e o grotesco dominam a cena e provocam,
¿² öÁöĶ¿Å²èÓÀ µ² Åò¸º´ºµ²µ¶ʁ º¿ȷ¶ÉĢ¶Ä ¶ÄÅìź´²Ä ¾ÆºÅÀ ´À¿Çºµ²ÅºÇ²Ä ²À ¶É¶Ã´ă´ºÀ
teórico. Ora, se o drama social se caracteriza, desde a sua origem, por enredar em sua
mimesisµº¾¶¿ÄĢ¶Ä´À¿ȷºÅÆÀIJIJÄÄÀ´º²µ²Ä̵¶ÄʤÀõ¶¾ÄÀ´º²½¶ÂƶÁÃÀµÆ˶¾²ÇºÀ-
19
lência trágica, seu forte pendor para a crítica social e política foi sempre característica
marcante do gênero, mesmo quando suas formas deixaram o realismo e experimentaram outras concepções estéticas – expressionistas, impressionistas, simbolistas. A
questão que ora se apresenta nos convida a teorizar sobre como se efetiva a permanência da função crítica dessas peças contemporâneas, considerando-se a “ambiguidade”
inerente ao pós-modernismo. Como dramas sociais que parodiam formas tradicionais
e valores hegemônicos, fazendo recair fortes cargas de ironia sobre as representações
µ²µ¶ÄʤÀõ¶¾µ²Çºµ²ÄÀ´º²½ʁ´²Ãº´²ÅÆò¿µÀ²ÁÃĜÁú²Ã¶²½ºµ²µ¶Âƶ½¹¶Ä¶ÃǶµ¶Ã¶ferência e conduzindo o gênero para o domínio do cômico, do absurdo, do nonsense,
poderiam ainda levar a efeito a função crítica associada ao gênero? Como se comporta
a tragicidade nessas construções paródicas, irônicas, debochadas?
²ÃĜµº²ʁºÃÀ¿º²¶´Ãăź´²¿ÀŶ²ÅÃÀµ¶²Æ½²À¸¶½ʃŲ³ÆʁÅòƾ²¶Åò¸ìµº²¿²µ¶Äʤ
Àõ¶¾ÄÀ´º²½¶¾How I Learned to Drive ʯϿЇЇЅʰ
Muito se tem escrito na crítica feminista sobre as barreiras que se antepõem às
¾Æ½¹¶Ã¶ÄÂƲ¿µÀĶµ¶µº´²¾²µʤ¶Ä´Ã¶Ç¶Ã¶ÉÁ¶Ãºí¿´º²ÄʁÅòƾ²Ä¶µ¶Ä¶»ÀÄ·¶¾º¿º¿ÀÄʇ
²´À¿Åò¾ÓÀµ²µºȱ´Æ½µ²µ¶¶ÉÁ¶Ãº¾¶¿Å²µ²ÁÀþƺŲĵ¶Åò˶Ã̽ºÅ¶Ã²ÅÆòŶ¾²Ä-tabu, a dramaturga norte-americana Paula Vogel concede clara visibilidade ao tema
µ²Á¶µÀȱ½º²¿²À³Ã²How I Learned to Drive ʯϿЇЇЅʰʇÀ³Ã²Á²ÃŶµ¶Æ¾µ¶Ä¶»ÀöǺsionista de abordar a questão do abuso sexual em um enquadramento complexo, que
focaliza não apenas o contexto familiar, mas também esferas da vida social e política,
¶¿Ã¶µ²¿µÀÀŶ¾²¶¾Æ¾Æ¿ºÇ¶ÃÄÀȱ´´ºÀ¿²½´À¿ȷºÅÆÀÄÀ¿ÀÂƲ½º¿ÄźÅƺèĢ¶ÄʁDz½ÀöÄ
e comportamentos contemporâneos aparecem mimetizados sob perspectivas paródicas impiedosas, desconstrutivas, demolidoras. A peça provocou grande repercussão à
época de sua estreia e recebeu o Pulitzer Prize for Drama ¶¾ϿЇЇІʁ¶¾³ÀòŶ¿¹²µ¶morado mais de duas décadas para chegar à BroadwayʁÀÂƶ´À¿ȱ¸Æòʁµ¶²¿Å¶¾ÓÀʁ
a censura prévia a que estão sujeitas certas produções artísticas, sobretudo as que se
lançam contra valores e instituições hegemônicas, como é o caso da referida peça, que
µ¶Ä²ȱ²¶µ¶¿Æ¿´º²·Æ¿µ²¾¶¿ÅÀÄ´²ÃÀÄ̺µ¶À½À¸º²µÀAmerican Way of Life.
How I Learned to DriveʯϿЇЇЅʰʁ¶¾ÁÀÃÅƸÆíÄʁʖÀ¾À¶Æ²Áö¿µº²µºÃº¸ºÃʗʁ
caracteriza-se como paródica já em sua opção por formatar a ação dramática com
base em um manual de instruções sobre direção automobilística, cada uma das cenas
da peça correspondendo a uma lição sobre como aprender a guiar um automóvel. A
iniciação nas aulas de direção metaforiza, irônica e pateticamente, a iniciação da protagonista, Li’l Bit, na vida sexual. No papel de experimentado instrutor, o próprio tio
da menina, Uncle Peck, sempre presente, gentil e carinhoso, na verdade, um substituto
ŶÿÀµ²ȱ¸ÆòÁ²Å¶Ã¿²Âƶ·²½Å²Ì´Ãº²¿è²ʁ²À¾¶Ä¾ÀŶ¾ÁÀʁƾÁ¶ÃǶÃźµÀʁÂƶ¿ÓÀ
perde oportunidade de levar a sobrinha ao colo para facilitar suas “aulas”, quando as
perninhas curtas da menina de onze anos ainda sequer alcançavam os pedais do carro.
Nada é simples, no entanto, nessa peça escrita por Paula Vogel, em cuja trama,
instituiçõese valores da vida familiar, social e política se enredam de maneira a evidenciar que há algo de podre na comunidade parodicamente representada nesse universo
ȱ´´ºÀ¿²½ʇÁÃĜÁúÀ¿´½¶¶´¼ʁÀ¶ÉÁ¶Ãº¶¿Å¶ʖº¿ÄÅÃÆÅÀÃʗʁ¿ÓÀìÄÀ¾¶¿Å¶Æ¾ÅºÀ²¾ÀÃÀ-
20
samente cafajeste, mas também um veterano da Segunda Guerra, sofrendo de Desordem de Estresse Pós-Traumático e alcoolismo. Com isso já se pode adivinhar que as
perversões de Uncle Peck respondem a uma história de vida pessoal, de maneira que,
¶¾³Àò²Ã¶ÄÁÀ¿Ä²³º½ºµ²µ¶ÄÀ³Ã¶²ÁÃÍź´²µ²Á¶µÀȱ½º²Ã¶´²º²ÄÀ³Ã¶²ÄƲÁ¶ÄÄÀ²ʁ¿ÓÀ
ĶÁÀµ¶½¶ÃÄƲÄƳ»¶ÅºÇºµ²µ¶Ä¶¿ÓÀ´À¾ÀöÄƽŲµÀµ¶Æ¾²´À¿ȷÆí¿´º²µ¶´²ÆIJÄÂƶ
´À¿Ç¶Ã¸¶¾Á²Ã²ÄƲµ¶ʤ·Àþ²èÓÀµ¶´²ÃÍŶÃʇº¿µ²ÂƶÀµÃ²¾²Ä¶»²ʁµ¶Äµ¶²ÄÄƲÄ
Àú¸¶¿Ä¸Ã¶¸²Äʁ·Æ¿µ²¾¶¿Å²½¾¶¿Å¶µ¶ȱ¿ăǶ½¶¾Å¶Ã¾Àĵ¶²èÓÀʁ¿ÓÀĶÁÀµ¶¶ÄÂƶ´¶Ã
o papel do ethos dos protagonistas no que diz respeito às ações que praticam em cena.
Nesse caso, vale a pena lembrar que o caráter de Uncle Peck na trama apresenta-se
como o ethos de uma subjetividade descentrada, construída sob os auspícios de forças
que o atormentam e que sobre ele atuam, o que faz do personagem, ao mesmo tempo,
algoz e vítima, da sociedade e de si mesmo. Esse descentramento do sujeito tem sido
característica marcante na literatura e no teatro pós-moderno, mas o tratamento soȱÄź´²µÀÂƶ²¶ÄIJÄƳ»¶ÅºÇºµ²µ¶¶Äź½¹²è²µ²´À¿´¶µ¶²Æ½²À¸¶½¾¶Ã¶´¶Ä¶Ã½ºµÀ´À¾
singular atenção, pois se faz determinante à modelagem crítica de sua dramaturgia.
²½Å²µºË¶ÃÂƶ²²èÓÀµ²Á¶è²Å¶¾Ã¶·¶Ã¶¿´º²ºÄ¹ºÄÅĜú´ÀÄ´½²ÃÀĶ¶ÄÁ¶´ºȱ´²µÀÄ
¿²Åò¾²ʇ²èÓÀ·Ã²¸¾¶¿Å²µ²Á¶Ã¾ºÅ¶¾Æµ²¿è²Äµ¶´¶¿ÍúÀÄʁ¶ÅÀµÀĶ½¶Äȱ¸Æò¾
´À¾À²¾³º¶¿Å¶Ä¾²Ã´²¿Å¶Äµ²ÄÀ´º¶µ²µ¶²¾¶Ãº´²¿²µ²µì´²µ²µ¶ϿЇЄϾ¶ϿЇЅϾʃ¶ÄÅòdas suburbanas em Maryland, por onde a adolescente era “ensinada” a dirigir; a casa
dos avós de Li’l Bit, onde se reuniam os membros da família; um restaurante, uma
escola e um quarto de hotel, espaços representativos dos modos de vida na Carolina
do Sul e, em sentido mais geral, da cultura norte-americana no período estabelecido
como setting da ação.
A rede de interações que convergem para produzir a dramaticidade e a tragicidade na trama evidencia que a sexualidade ocupa posição privilegiada dentre as
muitas mazelas da vida social representadas parodicamente na cena. O próprio núcleo
familiar de Li’l Bit ilustra, com tons de comicidade, a marcada conotação sexual das
personas¶¾²èÓÀʇ¶ÄIJȱ¸ÆòèÓÀÁ²ÃĜµº´²µ¶Æ¾²ÄÀ´º¶µ²µ¶·ÀÃŶ¾¶¿Å¶¶ÃÀź˲µ²ʁ
os personagens são nomeados através de apelidos que remetem a características associadas às suas partes sexuais: Li’l Bit, por exemplo, refere-se ao tamanho minúsculo da
vagina da menina ao nascer – e foi o próprio tio que tomou o bebê nas mãos, enquanto
a família constatava, entre as pernas da recém nascida, “uma coisinha de nada” (little
bit)ʇÓÀĶÁÀµ¶Ãº²²Âƺµ¶ºÉ²Ãµ¶¾¶¿´ºÀ¿²ÃÀÆÅòº¿ȷ¶ÉÓÀÁ²ÃĜµº´²ʁúÄăǶ½¶´²Ãº´²ta, implicada nesse apelido, que evoca“Lilibet”, a forma carinhosa pela qual o Rei GeÀø¶´¹²¾²Ç²²ÄƲȱ½¹²µ¶Äµ¶Á¶Âƶ¿²ʁ²²º¿¹²½ºË²³¶Å¹ʁ¿À¾¶¿À³Ã¶ʁµ¶Àú¸¶¾
¹¶³Ã²º´²ʁ´Æ»²Äº¸¿ºȱ´²èÓÀ¶Ã²²½¸À´À¾Àʖ¶Æ¶ÆÄìƾ»Æò¾¶¿ÅÀʗʇ¶´º·Ã²µÀ¶¾
suas implicações paródicas, o apelido da protagonista da peça se revela fortemente cômico, sarcástico, impiedoso, rebaixando e erotizando o apelido que se popularizou para
Elizabeth, um nome amplamente popular. Além de Li’l Bit, os demais personagens
também são nomeados em relação às suas genitálias: o avô será referido na peça como
o Big Papa (Grande Vovô); a mãe é a Titless Wonder (Maravilha sem Peitos), o primo é
Blue Balls (Bolas Azuis) e o tio é Uncle Peck (Tio Bicador).
A iniciação sexual de Li’l Bit e os abusos dos quais se faz vítima acontecem,
21
portanto, em um drama social no qual o ambiente familiar é caracterizado como disfuncional e tóxico, com recorrentes agressões verbais, cenas de bullying e silêncios
familiares permissivos sobre os abusos que ali ocorrem.Trata-se, portanto, de um
¶¿Ã¶µ²¾¶¿ÅÀȱ´´ºÀ¿²½¿ÀÂƲ½ ² µÃ²¾²Åº´ºµ²µ¶¶² Åò¸º´ºµ²µ¶ʁ ÅòŲµ²Ä ´À¾ºÃÀ¿º²
e comicidade, decorrem de uma sociedade omissa, marcada por variadas formas de
violência que impedem a formação de Li’l Bit como mulher de maneira positiva, construtiva. Não surpreende que ela se deixe amparar pelos braços fortes do seu Tio Peck
e que consinta, em sua própria miséria emocional, com os carinhos que recebe do
źÀÁ¶µĜȱ½À´À¾Àł¿º´Àʖ¶Ä´²Á¶ʗµ²·²¾ă½º²µºÄ·Æ¿´ºÀ¿²½ʇ¶¾³Ã¶¾ÀÄÂƶ¿´½¶¶´¼
fornece não apenas carinho, mas também segurança, afeto e prazer. Em determinado
momento da trama ele dirá: “I don’t have sons. You’re the nearest to a son I’ll ever have
– and I want to give you something. (...) when you’re in control of the car, just you and
the machine and the road – that nobody can take from you. A power”1 (p. 58). É assim
Âƶ¿´½¶¶´¼¶ÉÁ½º´²Ä¶Æº¿Å¶Ã¶ÄĶ¶¾µ²Ã²Ä²Æ½²Äµ¶µºÃ¶èÓÀ²ºÅºÅʁ¶ÄƲȱɲèÓÀ
pelo prazer de dirigir não será destoante do sentimento mais geral dos norte-americanos em relação aos seus automóveis. Ao mesmo tempo que o tio é o mais próximo que
temos de um adulto que se importava com a menina, ele não consegue estabelecer um
vínculo saudável com a sobrinha sem o avanço das dependências do seu próprio desejo
pervertido e de sua capacidade para criar situações de intimidade que gradualmente
ÇÓÀÁÃÀ¸Ã¶µº¿µÀ²ÅìÀȱ¾µ²Á¶è²ʁµÃ²¾Íź´À¶ÅòƾÍź´ÀʁÁ²Ã²¶½²ʂÅÃ͸º´ÀʁÁ²Ã²¶½¶ʇ
A peça é dividida por lições de direção e cada cena corresponde a uma “aula”
que recebe títulos sugestivos, como: “Safety First: You and your Driver Education”,
ou “Driving in First Gear”, “You and the Reverse Gear” 2. Para cada cena-lição, Vogel
º¿ÄÅÃƺ ƾ² Ķ½¶èÓÀ ¾Æĺ´²½ µ² ìÁÀ´²ʁ Âƶ Dzº Ķ ¾Àµºȱ´²¿µÀʁ »Æ¿Å²¾¶¿Å¶ ´À¾ ÀÄ
modelos de carro referidos nas falas, e acompanhando o desenvolvimento sexual da
relação abusiva.
A temporalidade embaralhada das cenas, fragmentação comum à arte pós-moderna, é parte da cuidadosa retórica textual da autora e serve a vários propósitos,
operando no sentido de construir a escalada da ação em direção à dramaticidade e à
tragicidade. É assim que o público vai recebendo recortes, retalhos de informações
advindas de temporalidades diferentes que, aos poucos, desvelam os personagens e
suas ações. Como se estivesse a montar um quebra-cabeças, a recepção se confronta
com os impactos de cada nova cena que vai compondo a trama e elucidando os fatos
¿¶ÄĶƿºÇ¶ÃÄÀȱ´´ºÀ¿²½ʇÓÀ´ÆÄŲ½¶¾³Ã²ÃÂƶʁĶ¿µÀÀµÃ²¾²²²ÃŶµÀ¶Å¶Ã¿ÀÁöĶ¿Å¶ʁ¿ÓÀº¾ÁÀÃŲÂƲ¿µÀ²²èÓÀ²ÁöĶ¿Å²µ²ʤöÁöĶ¿Å²µ²¿²´¶¿²Å¶¿¹²À´ÀÃúµÀʁ
¶½²Ä¶ÁöĶ¿Åºȱ´²Ä¶¾Áöµº²¿Å¶µÀÄÀ½¹ÀĵÀĶÄÁ¶´Å²µÀöĶ¿¶ÄIJÁöĶ¿Åºȱ´²èÓÀ
contribui para provocar impactos na audiência. Nesse jogo retórico, a um só tempo,
dramático e teatral, a dosagem das informações importa diretamente aos processos de
construção do ethos retórico dos personagens e de uma ação que gravita em torno de
um tema-tabu, de maneira que, por exemplo, o primeiro abuso, quando Li’l Bit tinha
²Á¶¿²ÄϿϿ²¿ÀÄʁÄĜ춿´¶¿²µÀ²Àȱ¾µ²Á¶è²ʇ²Ä´¶¿²ÄÂƶÀ²¿Å¶´¶µ¶¾ʁ²²Æµºí¿´º²
Æ¿ÓÀŶ¿¹Àȱ½¹ÀÄʇÀ´íìÀ¾²ºÄÁÃĜɺ¾À²Æ¾ȱ½¹ÀÂƶ¶Æ»²¾²ºÄŶöºʦ¶¶ÆÂƶÃÀŶµ²Ã²½¸ÀʇʯʇʇʇʰÂƲ¿µÀÇÀ´í
está no controle de um carro, só você e a máquina na rua – ninguém pode tirar isso de você. Um poder.
2 “
Segurança em Primeiro Lugar: Você e sua Educação no Trânsito”, ou “Dirigindo na Primeira Marcha”, “Você e a marcha ré”.
Ͽ
22
já testemunhou por vários ângulos o modus operandi do instrutor e a maneira como
leva sua sobrinha-aluna a passear em um carro que também é adaptado para a cena,
cortado ao meio, extirpado de sua parte frontal, de maneira a exibir os dois assentos
dianteiros, deixando o tio-instrutor e a sobrinha-aprendiz sentados diante do público,
¶¿ÂƲ¿ÅÀÀÁ¶µĜȱ½À¾º¾¶ÅºË²Àµ¶Ä½ºË²Ãµ¶ÄƲľÓÀĶ¿Åö²ÄÁ²ÃŶĵÀ²ÆÅÀ¾ĜǶ½ʦ
objeto altamente erotizado na cultura norte-americana – e o corpo de Li’l Bit, que se
·²Ëʁ²Äĺ¾ʁ²³ÆIJµ²¶¾Á½¶¿²ÇºÄŲµ²²Æµºí¿´º²ʇƵÀºÄÄÀµºËµ²ÄÀȱÄź´²èÓÀ¶ÄÅìź´²
da peça, que opta por uma linguagem cênica anti-realista, nem por isso desprovida de
um forte sentido de realidade dramática.
Dissemos que a peça parodia um manual de instruções sobre direção. Falta
dizer que ela também parodia a própria tradição dramática e teatral. Na trama da peça,
Á²ÃŶÄĺ¸¿ºȱ´²ÅºÇ²Äµ²²èÓÀȱ´²¾²´²Ã¸Àµ¶´ÀÃÀÄʉµ¶²µÀ½¶Ä´¶¿Å¶Äʁµ¶¹À¾¶¿Ä¶µ¶
mulheres. Na verdade, além dos dois personagens principais, Li’l Bit e Uncle Peck, todos os outros papéis são representados por essas instâncias corais, explicitamente descritas no texto como “vozes do coro grego”. Se considerarmos que, na tradição grega, o
coro era a representação da voz da coletividade, ao apresentar os personagens – mãe,
²Çĝʁź²ʁ²Çĝʦ´À¾ÀÇÀ˶ĵÀ´ÀÃÀ¸Ã¶¸Àʁ²Æ½²À¸¶½ÅºÁºȱ´²¶ÄIJÄpersonas, a elas concedendo representatividade coletiva. Ora, sendo essas personas-coros precisamente
²Âƶ½²ÄÂƶ´Ãº²¾²Á¶Ã¾ºÄĺǺµ²µ¶Âƶ¿²Åò¾²²ÆÅÀú˲²Á¶µÀȱ½º²ʁȱ´²´½²ÃÀÂƶÀÄ
seus comportamentos e valores representam as instituições, parodizando não apenas o
teatro grego, mas a vida social contemporânea e os “pequenos” crimes que se acumulam na rotina cotidiana: as agressões verbais, o bullying, os abusos de poder patriarcal,
os excessos (e as carências) da sexualidade, tudo isso atravessado pela hipocrisia, pelo
silêncio dos que consentem com os abusos, que seguem permitidos aos olhos da sociedade. Nesse sentido, as personas-coros na peça são, ao mesmo tempo, aqueles que
perpetuam regras de comportamento socialmente aceitas, ainda que perversas, casos
¶¾Âƶȱ´²´½²Ã²²´Æ½ÅÆòµ²²Á²Ãí¿´º²ʁ¾²ºÄµÀÂƶƾ²ìź´²ÀƾÀò½·²¾º½º²ÃÀÆ
social que pudesse salvaguardar o amadurecimento da menina e de sua sexualidade.
Essas personas-coros marcam, portanto, parodicamente, na mesquinhez dos
gestos e falas do cotidiano, a violência encoberta e a hipocrisia dos modos de vida
contemporâneaem suas diversas instituições. Quando o coro grego feminino (como
¾Ó¶ʰ ¶¿Äº¿² ² ºʓ½ ºÅ ÄÀ³Ã¶ ´À¾À ʖ³¶³¶Ã ÄÀ´º²½¾¶¿Å¶ʗ ʯÁʇ ЀЇʰʁ ö´À¾¶¿µ²ʃ “A lady
never gets sloppy—she may, however, get tipsy and a little gay”3ʯÁʇЀЇʰʇÀ¸À²µº²¿Å¶ʁ
parodiando o célebre início do texto da Declaração de Independência dos Estados Unidos, aduz: “When in the course of human events it becomes necessary, go to a corner
ÄŲ½½²¿µº¿Ä¶ÃÅŹ¶º¿µ¶É²¿µ¾ºµµ½¶ȱ¿¸¶ÃµÀȿŹ¶Å¹ÃÀ²Å²½¾ÀÄÅÅÀŹ¶¶Áº¸½ÀÅźÄʇ
Divulge your stomach contents by such persuasion, and then wait a few moments before rejoining your beau waiting for you at the table”4 (p. 33). A comicidade irônica
da cena reside nos contrastes: induzida a beber pelo tio, que tenta seduzi-la em um
restaurante, a jovem adolescente rememora em cena essas recomendações vazias da
mãe sobre como beber socialmente e se portar como uma lady. Note- se,no conselho
¾²½²µÊ¿Æ¿´²ȱ´²³í³²µ²ʦ¶½²ÁÀµ¶ʁ¿À¶¿Å²¿ÅÀʁȱ´²ÃƾÁÀÆ´ÀÅÀ¿Å²¶Æ¾ÁÀÆÂƺ¿¹À²½¶¸Ã¶ʇ
Quando, no decorrer dos eventos humanos, for necessário, vá para o último banheiro e insira o seu dedo indicador e
médio na garganta, até a epiglote. Esvazie o conteúdo do seu estômago com essa persuasão, e aguarde alguns minutos
antes de reunir-se com o seu beau esperando à mesa
3
Ђ
23
da mãe, o uso do termo “beau” do francês, como uma fala engrandecida e trabalhada
de uma classe média com ares de elevação social, tentativa de criar uma aura rebuscada típica dos manuais de comportamento americanos para as “boas moças”. A fala
estilizada contrasta com a hipersexualização e a vulgaridade do comportamento e do
discurso cotidiano da família, por exemplo, da avó, alertada para não mostrar os seios
̾¶Ä²ʯÁʇϿЇʰʂ²Ä·²½²ÄµÀ²ÇĝʁÂƶº¿ÅÃÀµÆ˲Ŷ¾Íź´²µÀĶÉÀ¶¾ÂƲ½ÂƶÃÀ´²ÄºÓÀʁ
²Å쾶ľÀ¶¿ÂƲ¿ÅÀÃÀƳ²Æ¾³ºÄ´ÀºÅÀµ²´À˺¿¹²ʯÁʇЂЂʰʇÄĺ¾ʁ¶¿ÂƲ¿ÅÀʁÁÀÃƾ
lado, Li’l Bit recebe instruções sobre a importância do bom comportamento feminino
ʯÁ½ÍÄź´Àʁ ÄÆÁ¶Ãȱ´º²½ʁ ²Ãźȱ´ºÀÄÀʰʁ ÁÀà ÀÆÅÃÀ ½²µÀʁ ¶ÄÄ²Ä Ã¶´À¾¶¿µ²èĢ¶Ä µÀ ´ÀÃÀʉ¾Ó¶
contrastam com o aspecto grotesco dos conselhos do coro-avô: “What does she need a
college degree for? She’s got all the credentials she’ll need on her chest” (p. 21)5.
Nas discussões sobre as relações entre casais, considerando-se a sexualidade
do avô – Big Papa – como o “patriarca” da família, os dois coros femininos, (mãe e avó)
traçam em suas falas imagens estereotipadas da sexualidade masculina como brutal e
animalizada:
“(As mother) It’s true. Men are like children. Just like little
boys.
(As Grandmother): Men are bulls! Big Bulls!
(As Mother) Vulgar!
(As Grandmother) Primitive! Hot!” ЄʯÁʇЂЄʰʇ
O discurso, portanto, ressalta (e naturaliza) a animalização latente na sexualiµ²µ¶µÀ¹À¾¶¾ʁ»ÆÄźȱ´²¿µÀ¶ÄĶ´À¾ÁÀÃŲ¾¶¿ÅÀĶÉƲ½ºË²µÀµÀľ¶Ä¾ÀÄʁ¶¾³Àò
defendendo a necessidade de que as mulheres lutem por serem ouvidas: “(As Mother)
Just one thing a married woman needs to know how to use – the rolling pin or the
broom”7 ʯÁʇЂЃʰʇ¾Ó¶µ¶ºʓ½ºÅ´¹¶¸²²Ä¶Ã¶ÄĶ¿ÅºÃµ²·²½Å²µ¶²ÁÀºÀ¶ÄÅÃÆÅÆò½µ²
família com respeito à sua própria relação com o ex-marido, o pai ausente da protagonista: “You could have helped me! You could have told me something about the facts of
life!”8 (p. 52). Contudo, os abusos verbais no seio da vida familiar persistem, gravitando em torno da sexualidade e se tornando cada vez mais normatizados.
ção com a qual a audiência é obrigada a lidar.
¾³Àò·²è²Á²ÃŶµ¶ÄĶ¿ł´½¶À·²¾º½º²Ãʁȱ´²´½²Ã²²·²½Å²µ¶º¿Åº¾ºµ²µ¶µ¶ºʓ½
ºÅ´À¾ÀÁÃĜÁúÀ´ÀÃÁÀʁ²Äĺ¾´À¾Àȱ´²Á²Å¶¿Å¶ÄƲº¿¸¶¿Æºµ²µ¶¶¾Ã¶½²èÓÀ²¾ÆºÅÀ
do que é dito em casa, sua ignorância em relação ao que ocorria ao seu redor. A voz
narrativa na peça, que faz comentários à medida que a menina vai criando consciência
da seriedade dos eventos que a cercam, dá testemunho do seu drama: “Even with my
family background, I was sixteen or so before I realized that pedophilia did not mean
people who loved to bicycle...”10 ʯÁʇϿІʰʇÂƶÄÅÓÀµ²´À¿Ä´ºí¿´º²ʯÀƵ²·²½Å²µ¶´Ànhecimento) da personagem acerca de sua própria condição de abusada sexualmente
ȱ´²¾¶Å²·Àú˲µ²¿²´¶¿²Ã¶ÁöĶ¿Å²ÅºÇ²µ²Áú¾¶ºÃ²º¿Ç¶Äźµ²µÀźÀʉÁ¶µĜȱ½ÀÄÀ³Ã¶²
sobrinha, na qual o coro tem papel crucial, sendo esta a única cena na qual o coro representa a voz de Li’l Bit. A criança, em sua inocência, restringe-se ao silêncio na cena.
Note-se, no entanto, que a própria tia sabia do comportamento do esposo e
de sua fascinação pela sobrinha, de maneira que é sob o signo do consentimento familiar que ocorre o abuso sexual. A hipocrisia social revela-se na fala da esposa de
Uncle Peck, após anos de abuso: “I’m no fool. I know what’s going on” 11 (p. 78). Aunt
Mary, no entanto,desvia para Lil’ Bit a responsabilidade pelo assédio, a menina teria
seduzido, manipulado o tio:“And I want to say this about my niece. She’s a sly one, that
À¿¶ºÄʇ¹¶¼¿ÀÈĶɲ´Å½Êȹ²ÅŶʓĵÀº¿¸ʂŶʓÄÅȺÄŶµ¶´¼²ÃÀÆ¿µ¹¶Ã½ºÅŽ¶ȱ¿¸¶Ã
and thinks it’s all a big secret (...) I’m a very patient woman. But I’d like my husband
back” 12 (p. 78). Nas instruções cênicas, Vogel sugere a postura da personagem na performance: “Stage directions: (Female Greek Chorus checks her appearance, and with
dignity comes to the front of the stage and sits down to talk to the audience)” 13 (p. 78).
Percebam a expressão “with dignity”, já enfatizando que, mesmo na situação de conȷºÅÀº¿Å¶Ã¿Àʁ·²¾º½º²Ãʁ¶½²Ä¶ÁÀÃŲ´À¾Àƾ²ʖ³À²¶ÄÁÀIJʗʁĶ¾´À¿·ÃÀ¿Å²ÃÀ¾²ÃºµÀʇ
É crucial perceber que a crítica às ações do adulto da relação, ou até mesmo aos outros
²³ÆÄÀĵÀ¾²ÃºµÀʁì²ÆĶ¿Å¶ʇÀÂƶµºËöÄÁ¶ºÅÀÌÁ¶µÀȱ½º²ʁÀ¸¶½µºËÂƶ·²Ëº²Á²ÃŶ
da sua intenção como dramaturga denunciar “a network of people enabling them”14
(Collins-Hughes, 2020).
¾Æ¾²µ²Ä´¶¿²Ä¾²Ã´²¿Å¶Äµ²Åò¾²ʁʖϿЇЄЇʇA typical family dinner”9 , o
tema, mais uma vez, é a sexualidade de Li’l Bit, assediada à mesa por piadas e comentários derrogatórios, vergonhosos, humilhantes, que costumam fazer todos os membros,
exceto Uncle Peck. Isso o diferencia dos demais aos olhos de Li’l Bit. Assim, à medida
que a família constantemente faz bullying, a presença digna e respeitável do tio se fortalece como o único familiar que a respeita, apoia e escuta de maneira séria, carinhosa,
honesta. Essa dualidade do personagem como apoiador e abusador cria uma contradi-
E como nada é simples nessa trama, que visa representar um drama no qual as
Á¶ÄÄÀ²Äȱ¸Æò¾ʁ²À¾¶Ä¾ÀŶ¾ÁÀʁ´À¾À´Æ½Á²µ²Ä¶Çăź¾²Ä¶¾Ã¶½²èÓÀ²Æ¾ÄºÄŶ¾²
social degradado, note-se, a favor da compassividade de Aunt Mary perante o esposo,
sua consciência de que Uncle Peck, marido gentil, dedicado, trabalhador, é, ele próprio,
uma vítima:
Para que ela precisa de um diploma de faculdade? Ela tem todas as credenciais que precisa nos peitos.
(Como mãe) É verdade. Homens são como crianças. Como meninos pequenos.
(Como avó): Homens são touros! Grandes touros!
(Como mãe) Vulgares!
(Como avó) Primitivos! Quentes!
Ѕ
(Como mãe) Só uma coisa que uma mulher casada precisa saber como usar – o rolo de pão ou a vassoura.
Vocês poderiam ter me ajudado! Poderiam ter me ensinado algo sobre como é a vida!
Ї
ϿЇЄЇʇ¾ÅăÁº´À»²¿Å²Ãµ¶·²¾ă½º²
ϿϾ
5
6
24
I know I’m lucky. The man works from dawn to dusk. And
¶Ä¾À´À¾À¾¶Æ¹ºÄÅĜú´À·²¾º½º²Ãʁ¶Æź¿¹²ϿЄ²¿Àľ²ºÄÀƾ¶¿ÀÄÂƲ¿µÀ¾¶µ¶º´À¿Å²ÂƶÁ¶µÀȱ½º²¿ÓÀĺ¸¿ºȱcava alguém que adorava pedalar na bicicleta...
ϿϿ
Eu não sou boba. Eu sei o que está acontecendo.
ϿЀ
E eu quero dizer isto sobre a minha sobrinha. Ela é muito esperta, aquela menina. Ela sabe exatamente o que ela está
fazendo; ela conseguiu enrolar Peck no dedinho dela e pensa que é tudo um grande segredo (...) Eu sou uma mulher
muito paciente. Mas eu quero meu marido de volta.
ϿЁ
Instruções cênicas: (Coro feminino confere a aparência, e com dignidade vem para a frente do placo e se senta para
falar com os espectadores).
25
the overtime he does every year – my poor sister. She sits
every Christmas when I come to dinner with a new stole,
or diamonds, or tickets to Bermuda.
I know he has troubles. And we don’t talk about them. I
wonder, sometimes, what happened to him during the war.
The men who fought World War II didn’t have “rap sessions” to talk about their feelings. Men in his generation
were expected to be quiet about it and get on with their
livesʯ ʁϿЇЇІʁÁʇЅЅʉЅІʰϿЃ
É assim que Uncle Peck não se revela um vilão na trama, que nada tem de
¾²¿ºÂƶăÄŲʇźÀÁ¶µĜȱ½ÀìƾǶŶò¿Àµ¶¸Æ¶Ãòʁ¶¿Çº²µÀÁ¶½ÀÄŲµÀÁ²Ã²½ÆŲÃ
¶¾Æ¾µÀÄÁºÀöĴ¶¿ÍúÀĵ¶ÄĶ´À¿ȷºÅÀ¾Æ¿µº²½ʦÀŶ²ÅÃÀµÀ²´ăȱ´ÀʁµÀÂƲ½Ã¶tornou derrotado pelos próprios traumas dos quais padece, o alcoolismo e o Estresse
Pós-Traumático, obrigado a seguir a vida no seio familiar e social, sem qualquer amparo psicológico, como se os anos em contato com a morte pudessem ser simplesmente relevados, esquecidos, superados. Note-se, aqui, a crítica severa de Vogel à cultura
bélica, aos efeitos que dela derivam e que incidem dramaticamente sobre a sociedade
norte-americana, repercutindo traumas em novos traumas.
Ainda a favor do sympathos que recai sobre Uncle Peck, não se pode esquecer
seu desvelo, seu carinho extremado para com Li’l Bit, sendo frequentes os gestos do
personagem nos quais as perversas táticas de seduzir se confundem com um profundoe doentio amor. Nas cenas de sedução, ele constantemente aguarda o consentimento
dela: “nothing is going to happen between us until you want it to. Do you know that?”
16
ºʓ½ºÅöÄÁÀ¿µ¶²ȱþ²ÅºÇ²¾¶¿Å¶ʁ¶¶½¶¾²ºÄƾ²Ç¶Ëº¿ÄºÄŶʃ“Nothing is going to
happen until you want it to. Do you want something to happen?” “I don’t know” 17 (p.
38, grifos nossos). Claro que, considerando-se a idade da menina e a maneira como Li’l
Bit é fragilizada e desempoderada como sujeito, o cuidado de Uncle Peck em assegurar
que haja consentimento dela para que possa se aproximar do seu corpo, embora seja
uma estratégia perversa, no mínimo, dúbia, que indicia, ainda que de forma paciente
e terna, seu desejo de realmente consumar o ato sexual assim que este for consentido,
contrasta, no entanto, radicalmente, com os discursos de um entorno violento, agressivo. Entre um sedutor abusivo, mas afetuoso, terno, gentil, respeitoso, e uma família
agressiva, disfuncional e abusiva, Li’l Bit é a grande vítima, absolutamente carente dos
apoios institucionais necessários para protegê-la, de todos e de si mesma.
Äö½²èĢ¶Ä¶ÃÀź˲µ²Ä¶¿ÅöÀźÀ¶²ÄÀ³Ãº¿¹²Á¶ÃµÆò¾ÁÀò¿ÀIJȱÀʇ¿´½¶
¶´¼Á²Ã¶´¶ȱɲÃʉĶ¶¾ºʓ½ºÅʁÂƶDzºÄ¶·²Ë¶¿µÀʁ¿À´ÀÃöõÀŶ¾ÁÀ¶µ²Ä²Æ½²Äµ¶
ϿЂ
Uma rede de pessoas que permitiam isso.
CORO GREGO DE MULHERES (como Tia Mary): Eu sei que tenho sorte. O homem trabalha dia e noite. E as horas
¶ÉÅòÄÂƶ¶½¶·²ËÅÀµÀ²¿Àʦ¾º¿¹²ÁÀ³Ã¶ºÃ¾Óʇ½²ȱ´²Ä¶¿Å²µ²²´²µ²²Å²½ʁ¶¿ÂƲ¿ÅÀ¶ÆǶ¿¹À»²¿Å²Ã´À¾Æ¾²¿ÀDz
estola, ou diamantes, ou com passagens para Bermuda.
Eu sei que ele tem problemas. E não falamos sobre eles. Eu me pergunto, algumas vezes, o que aconteceu com ele
durante a guerra. Os homens que lutaram na guerra não tinham sessões de análise para falarem de seus sentimentos.
ÄÁ¶Ã²Ç²ʉĶµÀĹÀ¾¶¿Äµ¶ÄƲ¸¶Ã²èÓÀÂƶȱ´²ÄĶ¾Âƺ¶ÅÀĶ´À¿Åº¿Æ²ÄĶ¾²ÅÀ´²ÃÄƲÄǺµ²Äʇ
ϿЄ
Nada vai acontecer entre nós até que você queira. Você sabe disso?
ϿЅ
Nada vai acontecer até que você queira. Você quer que algo aconteça?
ϿЃ
26
direção, menina-moça, moça feita, enquanto ele aguarda pacientemente que a sobri¿¹²´À¾Á½¶Å¶µ¶ËÀºÅÀ²¿ÀÄÁ²Ã²ÂƶÁÀÄIJȱ¿²½¾¶¿Å¶´À¿Äƾ²ÃÀ²ÅÀĶÉƲ½ÅÓÀ²¿Äº²µÀ¶²µº²µÀʇ¶ÄIJ¶ÄÁ¶Ã²Á¶½²¾²ºÀúµ²µ¶µÀĶÆÀ³»¶ÅÀµ¶µ¶Ä¶»Àʁ²Ã¶½²èÓÀÁ¶µĜȱ½²
Ķ´À¿´Ã¶ÅºË²Ç²¶¾ȷ¶ÃŶÄʁ´²Ãă´º²ÄʁĶµÆèĢ¶ÄǶó²ºÄʁ²½ºÍÄʁ¶ÉÅö¾²¾¶¿Å¶ÁÀìź´²Äʇ
lirismo das falas de Uncle Peck sendo outro ingrediente que permite a romantização
de sua perversão: “I will tell you, you can keep all the cathedrals of Europe. Just give
me a second with these—these celestial orbs—(Peck bowls his head as if praying. But he
is kissing her nipple. Li’l Bit, eyes still closed, rears back her head on the leather Buick
car seat)”18 (p. 12-13). E se a poesia conduz a percepção do caráter de Uncle Peck aos
domínios da elevação estética, seu voyeurismo¶ÄƲȱɲèÓÀÁ¶½À²ÆÅÀ¾ĜǶ½Á¶Ã¾ºÅ¶¾
½¶ºÅÆòÄÁÀÃǶÃŶ¿Å¶ÄŶĜú´²Ä¾²ºÄ²·¶ºÅ²Ä̵¶¿ł¿´º²µ¶Ä¶Æ¾²´¹ºÄ¾Àʁöȷ¶ÉÀµ²
sociedade na qual está inserido.
Para melhor captarmos as implicações do olhar masculino de Uncle Peck sobre
Li’l Bit na peça, vale a pena conferir o conceito de scopophiliaʁµ¶ȱ¿ºµÀÁÀòÆòƽvey no texto “Visual Pleasure and Narrative Cinema”ʯϿЇЅЃʰʁÂƶÅòËöȷ¶ÉĢ¶ÄÄÀ³Ã¶À
·¶¾º¿ºÄ¾À¶À´º¿¶¾²ʃÄ´ÀÁÀÁ¹º½º²ÁÀµ¶Ãº²Ä¶Ãµ¶ȱ¿ºµÀ´À¾ÀÀµ¶Ä¶»ÀÁÀÃÀ³Ä¶ÃDzÃʁÀÆ
o prazer estético de olhar algo (p. 835). A mirada masculina (“male gaze”ʰ쵶ȱ¿ºµ²
ÁÀÃƽǶʴÀ¾À¶½¶¾¶¿ÅÀµ¶ȱ¿ºµÀõÀ²Á²Ã²ÅÀ´º¿¶¾²ÅÀ¸ÃÍȱ´ÀʁÁÀ¿µÀÀ¶ÄÁ¶´Å²µÀÃ
na posição de sujeito masculino que observa (e domina) a mulher na tela, ao mesmo
Ŷ¾ÁÀÂƶĶºµ¶¿Åºȱ´²´À¾ÀÁÃÀŲ¸À¿ºÄŲʯ¿À´º¿¶¾²µÀIJ¿ÀÄЃϾµ¶ À½½ÊÈÀÀµʁ
ainda branco e homem). As mulheres do cinema dos anos 50 representavam o “to-be-looked-at-ness” 19, e a posição da câmera sempre se posicionava como “bearer of
the look” ʯÁʇ ІЁЅʰʇ20 Em How I Learned to Drive, há uma cena em que Uncle Peck
convida Li’l Bit a uma sessão de fotos, ele fazendo-se de fotógrafo. Essa cena do “Photo ShootʗÅòËÅÀµ²²µº¿Î¾º´²µ²º¿µłÄÅú²´º¿¶¾²ÅÀ¸ÃÍȱ´²¶µ¶Ã¶ÇºÄŲÄÁÀÿĝʁƾ
subtexto constante na obra de Paula Vogel. Escondidos no porão de Uncle Peck, com
um cenáriopara o qual a dramaturga sugere sejam realizadas no background projeções
de imagens de modelos da Playboy, Peck, posicionado por trás das câmeras, se põe a
·ÀÅÀ¸Ã²·²Ã²ÄÀ³Ãº¿¹²ʁ¶¿ÅÓÀ´À¾ϿЁ²¿ÀÄʃ“Keep moving. Try arching your back on the
stool, hands behind you, and throw your head back”ʯÁʇЅЁʰʇЀϿ Elogiando o corpo da
¾¶¿º¿²ʁÂƶÀ³Ä¶ÃDzÁÀÃÅÃÍĵ²Ä½¶¿Å¶Äʁ¿´½¶¶´¼Ã¶ºÅ¶Ã²²À³»¶Åºȱ´²èÓÀµ²º¾²¸¶¾
de Li’l Bit, e tal era sua empolgação com a sessão de fotos, que já imagina poder dar
continuidade a essa atividade. Em sua mente doentia, sempre tramando a captura do
corpo de Li’l Bit nas armadilhas do seu olhar, a continuarem as sessões, dali a cinco
²¿ÀÄŶú²¾ÁÀÃÅ·Ĝ½ºÀÄǶõ²µ¶ºÃ²¾¶¿Å¶ÁÃÀȱÄĺÀ¿²ºÄʇ¶Ä¾À¶¾ÄƲº¿¸¶¿Æºµ²µ¶ʁ²
menina implora para que suas fotos não sejam divulgadas. A resposta de Peck diz muito do seu desejo de apoderamento do corpo da sobrinha: “I swear to you. No one will.
I’ll treasure this—that you are doing it only for me” 22 ʯÁʇЅЄʰʇ
ϿІ
ʖʯʇʇʇʰÁÀµ¶¾ȱ´²Ã´À¾ÅÀµ²Ä²Ä´²Å¶µÃ²ºÄµ²ÆÃÀÁ²ʇ¶¶¾ʉ¾¶ÄÀ¾¶¿Å¶Æ¾Ä¶¸Æ¿µÀ´À¾¶ÄŶÄʦ¶ÄŶÄÀó¶Ä´¶½¶Ätiais. (Peck baixa sua cabeça como se rezasse. Mas ele está beijando seu mamilo. Li’l Bit, olhos ainda fechados, recosta a
cabeça no assento de couro do carro...)
ϿЇ
Capacidade de ser olhada
20
ÀÃŲµÀÃʯÀƵÀ¿Àʰµ²ÇºÄÓÀʥŶÉÅÀʁÁƳ½º´²µÀ¶¾ϿЇЅЃʁ¿ÓÀµºÄ´Æź²²º¿µ²ÀÆÅòÄŶ¾Íź´²Äº¾Á½º´²µ²Ä¿²ÄÂƶÄtões identitárias, como raça, heteronormatividade, etnia, etc., uma revisão que a própria Mulvey realizou em meados
dos anos 2000.
ЀϿ
Continue se movendo. Tente arquear as costas no tamborete, com as mãos nas costas, e jogue a cabeça para trás.
22
Eu juro. Ninguém vai ver. Eu guardarei como um tesouro—que você está fazendo só para mim.
23
¶Ãº²³À¾Å¶ÃĽºµ¶Äµ¶·ÀÅÀ¸Ã²ȱ²Ä¶ÃĜź´²Äµ¶¾Æ½¹¶Ã¶Ä¶µ¶´²ÃÃÀÄ
27
Nas instruções dadas por Vogel para a montagem dessa cena acima descrita:
“(…) it would be nice to have slides of erotic photographs of women and cars” 23 ʯÁʇЃЂʰʇ
A força das imagens projetadas, além de remeterem ao gosto da arte pós-moµ¶Ã¿²Á¶½ÀľÀIJº´Àĵ¶Äº¾Æ½²´ÃÀÄʁÄÓÀƾ²Ã¶·¶Ãí¿´º²ÌȱɲèÓÀµ¶¿´½¶¶´¼¿À
automóvel e nos equipamentos eletrônicos como ferramentas de interação com a sexualidade e o poder masculino sobre o corpo feminino. Li’l Bit ressalta a relação direta do fetiche masculino entre carro e corpo, referindo-se à paixão dos garotos pelos
automóveis em “The Initiation into a Boy’s First Love”,24 desejo que surge “long after
a mother’s tits, but before a woman’s breasts”25 (54). Indagado por Li’l Bit sobre por
ÂƶÀ²ÆÅÀ¾ĜǶ½²Á²Ã¶´¶Á¶ÃÄÀ¿ºȱ´²µÀ´À¾ÁÃÀ¿À¾¶·¶¾º¿º¿À¶¾º¿¸½íÄʁ¿´½¶¶´¼
responde: “Good question. It doesn’t have to be a ‘she’- but when you close your eyes
and think of someone who responds to your touch – someone who performs just for
you and gives you what you ask for – I guess I always see a ‘she’”25 (59).
Note-se que, em How I Learned to Drive, a própria criação de Vogel nos põe
em uma posição desconfortável, ao criar uma linha tênue entre o desejo escopofílico
de Uncle Peck e a perspectiva assumida pela recepção da peça, já que nós também, enÂƲ¿ÅÀ½¶ºÅÀöÄʤ¶ÄÁ¶´Å²µÀöÄʁÀ³Ä¶ÃDz¾Àĺʓ½ºÅʁŶÄŶ¾Æ¿¹²¾ÀÄÅÀµÀÄÀIJÃź·ă´ºÀÄ
usados por Uncle Peck para a sua sedução. A pensarmos, sob perspectivas da crítica
feminista acima referida, acerca da brutalidade do abuso, faz muito sentido dramático
perguntarmo-nos: será que conseguimos resistir à apropriação do corpo da menina?
À¾ÀÀ½¹²¾ÀÄʎƶ¾À³Ä¶ÃDz¾ÀÄʎÀ¾ÀöĺÄź¾ÀIJƾ²´ÀÀÁŲèÓÀÄÆÁ¶Ãȱ´º²½µ²
sexualidade de Li’l Bit? O discurso falocêntrico e patriarcal é tão constante na obra, que
o desejo feminino permanece praticamente ausente do discurso.
De fato, se considerarmos a temática do trauma e suas implicações para o corÁÀʁÀµºÄ´ÆÃÄÀµ¶ºʓ½ºÅʁ¿Àȱ¾µ²Á¶è²ʁ²Ãö¾²Å²²¿¶¸²èÓÀµ¶ÂƲ½ÂƶÃÁÀÄĺ³º½ºµ²µ¶
µ¶µ¶Ä¶»ÀʁÁÀÃÂƶÀÅòƾ²Á²Ã¶´¶´¶º·²ÃÀ´ÀÃÁÀ¶²¾¶¿Å¶µ²¾¶¿º¿²ʁÂƶµ¶ȱ¿¶Àµº²
da sua primeira lição de direção como “(...) the last day I lived in my body” 26 ʯϿϾЂʰʇ
A desconexão com o próprio corpo, como uma maneira pós-traumática de expelir a
agressão, também é visível na cena do baile da escola, onde, de maneira caricaturesca,
Li’l Bit descreve os seios como mecanismos (outra vez a máquina) que bipam e atraem os homens. ʖÀ¾¶Åº¾¶Ä ·¶¶½½º¼¶Å¹¶Ä¶²½º¶¿½º·¶·Àô¶ÄʁŹ¶Ä¶ÅÈÀ¾ÀÆ¿µÄÀ·ȷ¶Ä¹
have grafted themselves onto my chest, and they’re using me until they can ‘propagate’
and take over the world”27 ʯЄЅʰʇ Íƾ²·²½Å²µ¶´À¿¶ÉÓÀ´À¾²Á²ÃŶµÀ´ÀÃÁÀÂƶ·Àº
explorada – pelo tio, pelos colegas da escola. Não surpreende que ela se sinta tão deslocada, tão desajeitada diante da câmera. Como sentir esse corpo tão explorado, abusado
por mãos alheias? Como se perceber como mulher e se recompor em sua inteireza?
Seria importante evocarmos aqui a teorização sobre trauma formulada por
ЀЂ
Muito depois dos peitos da mãe, mas antes dos seios de uma mulher
O último dia em que vivi no meu corpo.
25
Boa pergunta. Não tem que ser “ela” – mas quando eu fecho meus olhos e penso em alguém que responde ao meu
toque – alguém que atua somente para você e te dá o que você pede – eu sempre a vejo como “ela”.
26
O último dia em que vivi no meu corpo.
ЀЅ
Às vezes eu sinto que essas forças alienígenas, estes dois montes de carne se enxertaram no meu peito, e agora estão
me usando para se “propagar” e dominar o mundo.
26
28
Diana Taylor, em “Disappearing Acts” ʯϿЇЇЅʰʁŶÉÅÀ¿ÀÂƲ½²²ÆÅÀòµºÄ´ÆŶ²¿Àþ²lização de espetáculos públicos de violência. Em esferas públicas de aparente normalidade, performances de violência costumam cegar a população, gerando aquilo que
Diana Taylor chama de “percepticídio”: “To see, without being able to do, disempowers
absolutely. But seeing, without even admitting that one is seeing, further turns the
violence of oneself. Percepticide blinds, maims, kills through the senses.” (p. 123 -124)
Pode-se dizer que a obra de Vogel se lança contra o percepticídio. É evidente
nos relatos dos impactos da peça sobre o público que a recepção não se deixa cegar
pela violência que testemunha em cena: rememorando os efeitos de uma performance
recente dessa obra de Paula Vogel, levada à cena em 2020, portanto, mais de vinte anos
µ¶ÁÀºÄµ¶ÄƲ¶ÄÅöº²ʁ²¸ÀòÄÀ³²µºÃ¶èÓÀµ¶²Ã¼ÃÀ¼²Èʁ´À¾²ÃÊʉÀƺĶ²Ã¼¶Ã
e David Morse, respectivamente, nos papéis de Li’l Bit e Uncle Peck, (NYTimes), os
atores se dizem surpreendidos com o impacto da encenação sobre a audiência com
respeito ao que Nancy Fraser chama de conexão do feminismo com a justiça social
ʯЀϾϿЁʰʃ“The numbers of people who couldn’t leave after the show because they needed
company — people who would just be in tears out there.” (COLLINS-HUGHES, 2020).
Sabe-se que a armadilha da estetização da violência não existe somente na
´Æ½ÅÆòǺÄƲ½µ²ÄöǺÄŲÄÁÀÿÀ¸ÃÍȱ´²ÄÀÆ¿À²Á¶½ÀÌöÅĜú´²¾²Ä´Æ½º¿²µ²º¿µłÄÅú²
automobilística, mencionados anteriormente. O percepticídio também é claro na cultura musical e não raramente produções da cultura pop sensualizam e erotizam precocemente as adolescentes. Para a cena do photo shot acima analisada, entrecortando
as imagens de mulheres nuas, Paula Vogel não esquece de indicar uma seleção musical
a ser usada nas montagens da peça, e essas músicas servem de backdrop para o corpo
de Li’l Bit, que vai se movendo para agradar e seduzir a câmera, comandada pelo cobiçoso olhar de Uncle Peck: “For a thirteen year old, you have a body a twenty-year-old
woman would die for” (72). 30 Quando a menina se revela tímida demais para se deixar
fotografar, o tio insiste: “Pretend you’re in your room all alone on a Friday night with
your mirror – and the music feels good—just move for me, Li’l Bit—” (p.72). Nesse momento, a música que Vogel sugere, no estilo Roy Orbinson, se quer “seductive with a
beat” (p. 69): “anything you want, you got it!” 33 Mexer o corpo ao som da música para
a câmera do tio é precisamente realizar o desejo escopofílico, voyeurístico, entregar-se
à volúpia de Uncle Peck por possuir a sexualidade da sobrinha. E o fundo musical da
peça, exclusivamente composto por “hits românticos”, normaliza um comportamento
inadequado de atração sexual e beleza feminina apoiado pela indústria pop.
Mencionamos, em seção precedente deste texto, que a ambiguidade se apresenta como marca por excelência da arte pós-moderna. Nesse sentido, caberia realçar
Ver, sem ser capaz de atuar, desempodera absolutamente. Mas ver, sem nem admitir que está vendo, transforma
ainda mais a violência em si mesmo. Percepticídio cega, mutila, mata através dos sentidos.
ЀЇ
ÂƲ¿Åºµ²µ¶µ¶Á¶ÄÄÀ²ÄÂƶ¿ÓÀ´À¿Ä¶¸Æº²¾µ¶ºÉ²ÃÀŶ²ÅÃÀµ¶ÁÀºÄµÀĹÀÈÁÀÃÂƶÁö´ºÄ²Ç²¾µ¶´À¾Á²¿¹º²ʦÁ¶Äsoas que continuariam chorando lá fora.
30
Para uma menina de treze anos, você tem um corpo de matar de inveja qualquer mulher de vinte.
ЁϿ
Finja que você está sozinha no seu quarto uma sexta à noite com seu espelho – e a música é boa – mexa-se para mim,
Li’l Bit -32
Sedutora com ritmo.
33
Tudo que você quiser, vai ter!
28
29
²º¿µ²¸²èÓÀÄÀ³Ã¶´À¾ÀÀµÃ²¾²µ¶²Æ½²À¸¶½ʁÁ½¶¿Àµ¶´¶¿²Äµ¶Ä¶µÆèÓÀÁ¶µĜȱ½²¶
permeado de abusos verbais e sexuais, poderia não exercer sobre o público o fascínio
que o sexo e a violência costumam exercer. Como conseguiria a peça subverter a complacência, o consentimento social e o gozo da recepção em relação a esses fenômenos
tão explorados pela mídia, produzindo, ao contrário, reações de recusa e de crítica ao
percepticídio? Embora seja sempre muito arriscado e duvidoso lançar hipóteses sobre
a recepção das artes, a dramaturgia trágica carrega consigo, na estrutura profunda
do gênero, um elemento dramático altamente subversivo e que, nas tramas, costuma
indicar, orientar os caminhos emocionais a serem seguidos pela recepção: o pathos.
Outra característica da dramaturgia trágica que não pode ser esquecida é a dignidade
dos personagens trágicos. Muito já se debateu sobre essa dignidade característica do
teatro trágico. E ainda que a tradição dramática tenha se perpetuado através de formas
diversas, atualizadas em relação aos mais distintos fatores implicados na série histórica, essa elevação estética, mais do que moral, associada às personas trágicas, ainda
assegura que o sofrimento humano, suas dores, seus traumas, sejam percebidos com
seriedade.
Assim, ainda que a parodização recubra inúmeros aspectos da obra de Vogel
aqui analisada, a conjunção de fatores que atormentam Uncle Peck – os traumas de
guerra, o alcoolismo, o próprio distúrbio sexual que o faz abusar por anos de Li’l Bit,
µºÅ²ÃÓÀÀÄÃƾÀĵ¶ÄƲÁÃĜÁú²µ¶Ä¸Ã²è²ʇÀº¿Çìĵ¶Ç¶Ãȱ¿²½¾¶¿Å¶Ã¶²½ºË²µÀĶÆ
desejo perverso, de possuir sexualmente o corpo de Li’l Bit quando esta completasse
dezoito anos, Peck se confronta com o veemente “não” da sobrinha. Tendo amadureciµÀ¶²Áö¿µºµÀÂƶƾÁ¶µĜȱ½À¿ÓÀì²½¸Æì¾Âƶ¸ÀÄŲµ¶³º´º´½¶Å²ʁºʓ½ºÅÁĢ¶Æ¾ȱ¾
µ¶ȱ¿ºÅºÇÀ¿ÀÄÀ¿¹ÀµÀźÀʁÂƶĶ¶¿Åö¸²µ¶Ç¶Ë̳¶³ºµ²ʁµ¶ºÉ²¿µÀʉĶ¾ÀÃöòÀÄÁÀÆcos, de gole em gole. A comoção causada por esse pathos trágico é provocada pela próÁú²ºʓ½ºÅʁÂƶ¿²ÃòÀµ¶ȱ¿¹²¾¶¿ÅÀµ¶¶´¼ʃ“it took my uncle seven years to drink
¹º¾Ä¶½·ÅÀµ¶²Å¹ʇ ºÃÄŹ¶½ÀÄŹºÄ»À³ʁŹ¶¿¹ºÄȺ·¶ʁ²¿µȱ¿²½½Ê¹ºÄµÃºÇ¶ÃʓĽº´¶¿Ä¶ʗ(p.
ЇІʰЁЂ. Aqui se manifesta o sympathos, o sofrer com o personagem que sofre, condição
inescapável ao teatro trágico. Em um gesto de empatia, Li’l Bit ressalta a intensidade
da conexão entre os dois e, em que pese o fato de ter sido a relação entre eles desde
cedo abusiva, revela ao público o que se esconde sob a perversão do tio: “Who did it to
you, Uncle Peck? How old were you? Were you eleven?”(p. 99)35. Embora nada redima
Uncle Peck da responsabilidade pelas lições sexuais, a visão empática criada através do
olhar bondoso e compassivo de Li’l Bit guia a recepção, ao mesmo tempo, em direção
ao pathos trágico, e à percepção dos traumas resultantes da vida social, dentre eles,
o seu próprio trauma, vivido e revivido nas repetidas lições de direção e reencenado
muitas vezes diante dos olhos dos espectadores, convidados a experimentar a vocação
do teatro para a reencenação dos traumas, dos tabus, do sofrimento humano. Como
conclui Taylor, “Trauma expresses itself viscerally, through bodily symptoms, reenactments, and repeats”ʯЀϾϾЄʁÁʇϿЄЅЃʰ36. As performances de tons trágicos respondem de
¾²¿¶ºÃ²²ÆÅÀʉöȷ¶ÉºÇ²ÌÄö¶¿´¶¿²èĢ¶ÄµÀÅòƾ²¶ÌÄÄƲķÀþ²Äµ¶²Åº¿¸ºÃÀ´ÀÃÁÀʁ
¶¾ÀÃÀÆĶŶ²¿ÀIJÅìÂƶ¾¶ÆźÀ¾ÀÃöÄĶµ¶³¶³¶Ãʇú¾¶ºÃÀÁ¶Ãµ¶ÆÀ¶¾Áö¸Àʁµ¶ÁÀºÄ²¶ÄÁÀIJ¶ʁȱ¿²½¾¶¿Å¶ʁ²
carteira de motorista.
35
Quem fez isto com você, Tio Peck? Quantos anos você tinha? Eram onze anos que você tinha?
36
Traumas se expressa visceralmente, através de sintomas do corpo, reconstituições e repetições.
ЁЅ
¾Å¶²ÅÃÀ·ÀÃŶµ¶¾²ºÄÁ²Ã²ÁÅÀÈ¿ʳ²Á²ÃŶÄÆÁ¶ÃºÀöú´²µ²´ºµ²µ¶ʁ²º½¹²µ¶²¿¹²ÅŲ¿ʁÀ¿µ¶¶ÄÅͲÃÀ²µÈ²Êʴʇ
ЁЂ
30
repetindo em cena, estilizada e parodicamente, as violências cotidianas, os abusos e as
transgressões.
Segundo a dramaturga Paula Vogel, apesar do grande impacto da obra sobre
o público, a peça continua apresentando uma temática difícil de ser digerida. Na época
das primeiras apresentações, o Village Voice descreveu a obra em um editorial como
“A Theater Too Tough for Uptown” (COLLINS-HUGHES, 2020). A ambiguidade dos
Ķ¿Åº¾¶¿ÅÀÄÂƶ²Åò¾²ÄÆÄ´ºÅ²¶¾Ã¶½²èÓÀ²ÀÁ¶ÃÄÀ¿²¸¶¾Á¶µĜȱ½ÀÁ²Ã¶´¶Ä¶Ãƾ²
peça-chave para explicar o desconforto que a mesma provoca na recepção, instada a
´À¿Ä¶¿ÅºÃÂƶÀ²½¸À˵¶ºʓ½ºÅ첿ŶÄƾ²Çăź¾²µ²µ¶ÄʤÀõ¶¾ÄÀ´º²½ʇ
Isso nos permite concluir a presente análise retomando as teorizações de GiòõÄÀ³Ã¶Ä¶ÃÀ¸í¿¶ÃÀÅÃ͸º´ÀÁ²ÆŲµÀ¿²Ã¶¶¿´¶¿²èÓÀµ¶Æ¾ÃºÅÀIJ´Ãºȱ´º²½ʇƲÄ
perspectivas, no entanto, se entrecruzam nesta peça e merecem ser elucidadas. Por um
lado, enquanto drama social, como a peça representa um contexto histórico que remete explicitamente à Maryland dos anos 60, os gestos, os valores e os comportamentos
viciosos, hipócritas, degradados expostos na cena sugerem que há algo de podre nessa
sociedade mimetizada no teatro, o que condiz com a vocação do drama moderno para a
crítica social. Por outro lado, nos limites da própria trama enquanto construto estético,
À¶ºÉÀµ²²èÓÀʁ´¶¿Åò½ºË²µ²¿À´À¾¶Åº¾¶¿ÅÀµÀŲ³Æµ²Á¶µÀȱ½º²ʁŶ¿µ¶²ÁÃÀ»¶Å²ÃÄÀ³Ã¶¶ÄĶʖ¶ÃÃÀÅÃ͸º´Àʗ²ȱ¸ÆòèÓÀµÀ¾²½¾²ºÀÃÂƶÄÀ³Ã¶¶ÄĶƿºÇ¶ÃÄÀº¿´ºµ¶ʇ½¶ºÅÆra descentralizada da ação, no entanto, expõe, como dissemos acima, uma comunidade
de valores e comportamentos degradados, com um acúmulo de erros, transgressões
e violências que a todos contagia e se espraia em rede, normatizando-se por via das
instituições: desde o Estado, com sua política de guerra; a sociedade e seus valores ma´¹ºÄŲÄʁ²Ãźȱ´ºÀÄÀÄʁ¹ºÁĜ´ÃºÅ²Äʂ²´Æ½ÅÆòʁ¶ÃÀź˲µ²´À¾ȱ¿Äµ¶²Á¶½À²À´À¿ÄƾÀʂ²
família disfuncional; o bullying, como estado perene no cotidiano familiar, nada escapa
Ìľ²Ë¶½²Äµ¶Æ¾Å¶´ºµÀÄÀ´º²½²ÁÀµÃ¶´ºµÀ¶ÅƵÀ´À¿Ç¶Ã¸¶Á²Ã²¶Çºµ¶¿´º²Ã²µºȱ´Æ½dade de se localizar a gênese do mal nesse universo dramático. Daí a arbitrariedade
do mythos trágico, que compactua com a necessidade de eleger alguém para o papel
µ¶ʖIJ´Ãºȱ´²µÀʗʁ²½¸Æì¾Âƶ²ÄÄƾ²²´Æ½Á²¶²Ã¶ÄÁÀ¿Ä²³º½ºµ²µ¶ÁÀÃƾ²µ¶ÄÀõ¶¾
que, em última instância, é coletiva. Na urdidura da ação em How I Learned to Drive,
¿ÓÀ¹ÍµłÇºµ²Äµ¶Âƶ²Á¶µÀȱ½º²µ¶¿´½¶¶´¼·²Ëö´²ºÃÄÀ³Ã¶¶½¶²´Æ½Á²¶²Ã¶ÄÁÀ¿sabilidade pelo sofrimento causado a Li’l Bit, mas quem haverá de responder pelo seu
próprio sofrimento? Pelos abusos sofridos em sua própria infância? Pelos traumas originados de sua participação na guerra? Por sua doença psíquica, que o torna vítima de
ĺ¾¶Ä¾Àʎ¶»²´À¾À·ÀÃʁÀÄƺ´ăµºÀ½¶¿ÅÀµ¶¿´½¶¶´¼ʁ²ÁÆ¿ºèÓÀ²ÆÅÀʉº¿ȷº¸ºµ²Âƶ
o mata aos poucos, apresenta-se como emblema atualizado da antiga solução pensada
pelos gregos com a única resposta possível à condição trágica: quando nada mais há
ÂƶĶÁÀÄIJ·²Ë¶Ã´À¿ÅòÀĵ¶ÆĶÄÂƶö¸¶¾²µ¶ÄʤÀõ¶¾ʁöÄŲ²º¿µ²²²ȱþ²èÓÀµ²
dignidade humana, como a resposta possível à tragédia. Para além do seu próprio sofrimento, Lil’Bit parece reconhecer essa dignidade trágica do tio e o caráter injusto de
sua morte-punição: “Quem fez isso com você, Uncle Peck? Quantos anos você tinha?
¿Ë¶ʎʗʯÁʇЇЇʁÅòµÆèÓÀ¿ÀÄIJʰʇ´À¾ÀÀÅòƾ²Ä¶¶ÉÁöÄIJǺĴ¶Ã²½¾¶¿Å¶ʁ´À³Ã²¿µÀ
do corpo reiteradas reencenações das violências sofridas, Lil’Bit aperta o cinto, checa o
espelho retrovisor direito, depois o esquerdo, enquanto a projeção na cena faz surgir,
no banco de trás do seu carro, o espírito de Uncle Peck. Ela o vê, sorri pra ele, e partem
juntos, para mais um longo passeio que encerra a peça.
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