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11 Desenho em tinta sobre cartolina – Pilar Roca 2 3 Conselho Editorial Alessandra Soares Brandão (UFSC) Ana Graça Canan (UFRN) Ana Mafalda Leite (Universidade de Lisboa) Anco Márcio Tenório Vieira (UFPE) Anita Martins Rodrigues de Moraes (UFF) Arnaldo Saraiva (Universidade do Porto) Brenda Carlos de Andrade (UFRPE) Gastón A. Alzate (California State University) Inocência Mata (Universidade de Lisboa) João Batista Pereira (UFRPE) José Rodrigues Seabra Filho (USP) Juliana Luna Freire (UFPB) Juliana Pasquarelli Perez (USP) Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne (UFPB) Maria Nazareth de Lima Arrais (UFCG) Maurizio Gnerre (Università di Napoli L’orientale) Maximiliano Torres (UERJ) Ramayana Lira (UFSC) Regina Dalcastagnè (UnB) Saulo Neiva (Université Blaise Pascal - Clermont-Ferrand) Simone Schmidt (UFSC) Suzi Frankl Sperber (UNICAMP) Yuri Jivago Amorim Caribé (UFPE) ȷƺõÀĺ¿Å¶ÃDz½ÀÄʃ öȷ¶ÉĢ¶ÄÄÀ³Ã¶½ºÅ¶Ã²ÅÆò¶ ÄÀ´º¶µ²µ¶¿À¾Æ¿µÀ ´À¿Å¶¾ÁÀÃο¶À ÃÀ»¶ÅÀ ÃÍȱ´Àʃ CDM Design e Consultoria Empresarial Ltda Camille Barbosa de Aquino Roberta Lima Designer º²¸Ã²¾²èÓÀʃ Roberta Lima Designer Vanessa Riambau Pinheiro Pilar Roca Luciane Alves Santos 4 5 6 7 ƾÍúÀ 10 ö·Í´ºÀ 140 12 ¶ÁöĶ¿Å²èĢ¶Äµ²ǺÀ½í¿´º²¿²µÃ²¾²ÅÆøº²ÅÃ͸º´²¶ÄƲÄ Á²ÃÀµºË²èĢ¶Ä¿ÀµÃ²¾²ÁĜÄʉ¾Àµ¶Ã¿Àµ¶²ÆÅÀú²·¶¾º¿º¿²ʃ ÀŶ²ÅÃÀµ¶²Æ½²À¸¶½´À¿ÅòÀʖ¶Ã´¶ÁÅăµºÀʗ ²¿µÃ²Æ¿²ʉ ƽº²¿²Æ¿² öºÃ¶ ¶º¿²²Á²Ë¿À¾¶ÆÁ²ăÄʃ¿ÀŲÄÄÀ³Ã¶²Ópera do malandroʁµ¶¹º´ÀƲÃÂƶ ÃÅÆÃÀ ÀÆǶº² 152 ÁÃÀ³½¶¾²Åº´ºµ²µ¶Dz˺²ʇÀÁ¶Ãȱ½µ¶¶¿»²¾º¾²¾³Ã²º² ÃÅÆÃÀ ÀÆǶº² 167 ·²¿ÅÍÄź´À¶²¿²ÅÆò½ºË²èÓÀµ²º¿µº·¶Ã¶¿è²¿À´À¿ÅÀ ʖ²¶ÃÀÁÀÃÅÀʗʁµ¶¶¿²½ÅÀ¿òȮ Æ´º²¿¶½Ç¶Ä²¿ÅÀÄ 32 ¶¿´ÃÆ˺½¹²µ²¶¿ÅöÁÀ½ăź´²ʁ½ºÅ¶Ã²ÅÆò¶ÄÀ´º¶µ²µ¶¿² ¶ÇºÄŲ³À¿²¶Ã¶¿Ä¶Contorno ʯϿЇЃЁʉϿЇЃЇʰ º½²ÃÀ´² 48 ÁÃÀIJµ¶ ¶Ã¾²¿¿ ¶ÄĶµÆò¿Å¶²¶Áł³½º´²µ¶¶º¾²Ã ½²Ã²²Ãº²´¹¶¿¼¶½ 68 À³Àĺ¸¿Àµ²¹¶Å¶ÃÀ¸¶¿º²ʃöȷ¶ÉĢ¶ÄÄÀ³Ã¶¹º³ÃºµºÄ¾À¶ Åò¿Ä¿²´ºÀ¿²½ºµ²µ¶¿²½ºÅ¶Ã²ÅÆò¾Àè²¾³º´²¿² ²¿¶ÄIJº²¾³²Æº¿¹¶ºÃÀ 78 ²½ºÅ¶Ã²ÅÆòµ¶´À¾³²Å¶Ì·Ã²¸¾¶¿Å²èÓÀÄƳ»¶ÅºÇ²ʃ² ÁÀ¶Äº²¾Àè²¾³º´²¿²¶¾Á¶ÃÄÁ¶´ÅºÇ² ²¿¶ÄIJº²¾³²Æº¿¹¶ºÃÀ 92 ²ÃòźDzĵºÄÅĜÁº´²Äʃƾ²½¶ºÅÆò·¶¾º¿ºÄŲ²Á²ÃźÃµ¶º² º¶ºÃ²¶ă½º²À¾Á½ì ²Æ½Àµ¶ öºÅ²Ä À¾¶Äʉ²ÊÀ¿²Ã²ÀÆ˲µ²ÀÄŲ 111 124 8 176 188 202 ·²¿ÅÍÄź´À¶¾¶Ã¿²¾³Æ´Àʃ½¶ºÅÆòĵÀ¶ÄÁ²èÀ¶¾ ʖÄÄÀ¾³Ã²èÓÀ¿ÀºÀ ÀþÀÄÀʗʁµ¶ ²Ê¾¶ ÃºË ÇÄÀ¿ÃÆ¿Àµ²º½Ç² ¶·¶Ãí¿´º²Ä À³Ã¶ÀIJÆÅÀöĶ²Ä²ÆÅÀÃ²Ä Àµ¶Ã¿ºµ²µ¶ʁ¸½À³²½ºË²èÓÀ¶ºµ¶¿Åºµ²µ¶´Æ½ÅÆò½ʃƾ² ½¶ºÅÆòµ¶O outro pé da sereiaʁµ¶º²ÀÆÅÀ ²³ºÀ ÆÄŲÇÀÀ¾¶ÃÀº¾¶ÓÀʉ½º¿¶ÀÆ˲¶½´¹º²µ¶Ä ¶Äź½À¿²ÃòźÇÀ¶²ÄöÄĺ¸¿ºȱ´²èĢ¶ÄµÀº¾²¸º¿ÍúÀ ǶŶÃÀŶÄŲ¾¶¿ÅÍúÀ¶¾Caimʁµ¶ ÀÄì²Ã²¾²¸À ÀÄ캶¸ÀºÃ¿¶²¿ÅÀÄ 9 todo seu rigor, para o domínio artístico, não escapa ao “quinhão da fantasia” que garante a autonomia relativa da obra diante de suas fontes originárias. ö·Í´ºÀ O presente livro é resultado das pesquisas do PPGL – Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba –, em especial da linha “Tradição e modernidade”. Os textos aqui publicados privilegiam a relação entre literatura e sociedade como temática geral, abrangendo realizações literárias do Brasil, da América do Norte, da Região do Cone Sul, da África e da Europa, na contemporaneidade. ¶Ã´¶³¶ʉĶʁ ²À ½À¿¸À µ²Ä ½¶ºÅÆòÄ ŶĜú´²Ä ¶ ´Ãăź´²Äʁ ² µºȱ´Æ½µ²µ¶ µ¶ µ¶ȱ¿ºção cronológica e conceitual dos limites do “contemporâneo”. Por exemplo, o famoso ensaio de Theodor Adorno sobre as inovações romanescas do século vinte, “Posição do narrador no romance contemporâneo”, data dos 50, mas refere-se a autores das primeiras décadas do século, como Proust e Joyce. Agamben, por sua vez, caracteriza Nietzsche como “contemporâneo” – um pensador que não se submete às “trevas” e às modas dominantes de sua época. Ante várias ambiguidades e imprecisões, sobressai ƾ²ȷƺµ¶ËÂƶ¿ÓÀì²Á¶¿²Ä´À¿´¶ºÅƲ½ʁöÄÅúŲ²ÀĶķÀÃèÀĵÀ½À¸ÀÄʁ¾²Ä´ÀÃöÄponde, antes de tudo, a um paradoxo apontado por Bauman: a liquidez imperativa do próprio objeto em foco. Dadas a diversidade e a riqueza dos recursos críticos e teóricos, percebemos a necessidade de trabalhar com uma unidade de enfoque, a ser discernida no próprio contemporâneo tematizado nas obras. A heterogeneidade da linha de pesquisa também º¾ÁĢ¶¶ÄĶµ¶Ä²ȱÀʇòŲʉĶµÀ¶Ä·ÀÃèÀµ¶Æ¿ºµ²µ¶²Ķò½´²¿è²µÀ¶¾ƾ²ö²½ºµ²µ¶ multifacetada que não pode ser velada por artifícios críticos ou teóricos. As análises recorrem, então, a embasamentos diversos, de alguns autores já consagrados, como Antonio Candido, Todorov, Marshall Berman, David Roas, Anthony Giddens, Zygmunt Bauman, Stuart Hall, Giorgio Agamben, dentre outros, bem como de autores menos divulgados, ao menos nos estudos brasileiros, como Achille Mbembe, Franz Fanon e Mary Fulbrook. Essas referências são importantes pontos de partida para a compreensão de toda uma literatura empenhada em tematizar as fragmentações sociais da vida contemporânea. Na abordagem de tramas e interpretações poéticas que contemplam as contradições entre globalização e identidade cultural, a busca de identidades pós-coloniais, hibridismo, transnacionalidade, leituras feministas e dramaturgia trágica de autoria ·¶¾º¿º¿²ʁ²ö½²èÓÀµÀÄÁ¶ÃÄÀ¿²¸¶¿Ä´À¾À¶ÄÁ²èÀ·²¿ÅÍÄź´Àʁ²ÄÆÁ¶Ãȱ´º²½ºµ²µ¶µÀÄ valores cada vez mais efêmeros da indústria cultural, o perigo de mutilação da memória histórica, dentre outras preocupações, procuramos deixar nossa contribuição para a fortuna crítica de uma temática inesgotável. Arturo Gouveia No enfoque da relação entre literatura e sociedade, procuramos reconhecer a prioridade concedida à fatura textual. Trata-se de uma contribuição pioneira de Antonio Candido em sua época, contemporânea da divulgação internacional dos Formalistas Russos e da visão de “desautomatização da linguagem”, por exemplo, assim como da Escola de Frankfurt, em especial a defesa adorniana da imanência da obra, sem renúncia à historicidade plasmada na linguagem. Acreditamos que tais contribuições, ligadas a novas abordagens também aqui contempladas, continuam de fundamental importância para os estudos da contemporaneidade. Como princípio norteador de Antonio Candido, por exemplo, para que as abordagens críticas não caiam no sociologismo, a noção de que o externo se torna interno, uma vez priorizada, concebe a sociolo¸º²¶²¹ºÄÅÀúÀ¸Ã²ȱ²´À¾ÀµºÄ´ºÁ½º¿²Ä²Æɺ½º²Ã¶ÄʁÆź½ºË²µ²Ä´À¾À¾¶ºÀʁ¿ÓÀ´À¾Àȱ¾ʇ Esse procedimento nos ensina a insistir na busca do elemento social na literatura como ´À¾ÁÀ¿¶¿Å¶º¿ÅÃă¿Ä¶´ÀµÀÄŶÉÅÀÄʁ²Ķúµ¶¿Åºȱ´²µÀ¿ÓÀ´À¾Àº½ÆÄÅòèÓÀµ²ÄÀ³Ã²Äʁ mas como categoria analítica e explicativa da própria elaboração artística. Assim, ainda que o realismo de um texto tenha a pretensão de observar e transpor o mundo, com 10 11 1 ¶ÁöĶ¿Å²èĢ¶Äµ²ǺÀ½í¿´º² ¿²µÃ²¾²ÅÆøº²ÅÃ͸º´²¶ÄƲÄ Á²ÃÀµºË²èĢ¶Ä¿ÀµÃ²¾² ÁĜÄʉ¾Àµ¶Ã¿Àµ¶²ÆÅÀú² ·¶¾º¿º¿²ʃÀŶ²ÅÃÀµ¶²Æ½² À¸¶½´À¿ÅòÀʖ¶Ã´¶Áź´ăµºÀʗ Sandra Luna Juliana Luna Freire 12 ò¸ìµº²¶ǺÀ½í¿´º²ʃ·Æ¿µ²¾¶¿ÅÀĵÀµÃ²¾²ÅÃ͸º´À As relações entre a dramaturgia trágica e a violência remetem às origens do teatro clássico. Embora a tragicidade encenada nas arenas gregas apareça na tradição crítica associada a noções de destino e fatalidade, o drama trágico jamais pôde prescindir de ações humanas para a perpetração das catástrofes que consubstanciam as tragédias. Ainda que as intervenções dos deuses nas tramas conferissem às antigas tragédias sua aura metafísica, a violência física fazia-se determinante ao pathos trágico que engendrava a katharsis, mesmo que as terríveis cenas de sangue e morte fossem ocultadas das vistas dos espectadores, como costumava ocorrer na tradição grega. A intricada associação entre tragédia e violência levou René Girard (A violência e o sagrado, 2008) a vislumbrar, na sintaxe originária do gênero, a dívida das tragédias ²ÀÄúÅÀÄIJ´Ãºȱ´º²ºÄʇ¾³ÀòÄƳ¾¶Åºµ²²´À¾Á½¶ÉÀÄÁÃÀ´¶ÄÄÀĵ¶¶ÄŶź˲èÓÀʁ²Åò¸ìµº²Ķú²ʁ²Àȱ¾¶²À´²³Àʁ²Ŷ²Åò½ºË²èÓÀµÀʖIJ´Ãº·ă´ºÀʗµÀ¹¶ÃĜºÀƵ²¹¶ÃÀă¿²ʁ´Æ»²Ä ¾ÀÃŶÄöÁöĶ¿Å²¾µ¶Ä·¶´¹ÀÄÂƶĶ»ÆÄźȱ´²¾Á¶½Àʖ³¶¾ʗµ²Àõ¶¾ʇÀ¾À¿ÀÄúÅÀÄ IJ´Ãºȱ´º²ºÄʁÀ¹¶ÃĜºÅÃ͸º´À²ÄÄƾ¶À½Æ¸²Ãµ²Âƶ½¶´Æ»²¶½º¾º¿²èÓÀÀÆÁÆ¿ºèÓÀ¶ÄŲ³¶½¶´¶²Á²Ã²¸¶¾µ²ǺÀ½í¿´º²ʁÁÀ¿µÀȱ¾Ìµ¶ÄÀõ¶¾ʇ Ressalte-se que, no entender de Girard (2008), a violência, intestina ao humano, é contagiosa e imparável, propaga-se com voracidade e apenas se resolve ao encontrar uma vítima. Nas sociedades arcaicas, desprovidas de um sistema judiciário, a exacerbação da violência no seio da comunidade resultava em uma crise societal que ÄÀ¾¶¿Å¶¶Ã²²Á½²´²µ²´À¾²º¾À½²èÓÀúÅƲ½ăÄź´²µ¶ƾIJ´Ãºȱ´²µÀʇ¾³Àò¿¶¿¹Æ¾² ö½²èÓÀ´²ÆIJ½¹ÀÆǶÄĶ¶¿Åö²Çăź¾²IJ´Ãºȱ´º²½¶²Àú¸¶¾µ²µ¶ÄÀõ¶¾ʁ²º¿Ä¶ÃèÓÀ da divindade no rito legitimava o sentido sagrado do sacrifício e isso abonava a arbiÅòú¶µ²µ¶µ²¶Ä´À½¹²µÀÄIJ´Ãºȱ´²µÀÄʁÂƶ¶Ã²¾Ķ¾Áöʁ¿ÓÀÁÀò´²ÄÀʁÁÀÃŲµÀöĵ¶ “marcas vitimárias” – órfãos, estrangeiros, andarilhos, mendigos, precisamente aqueles e aquelas cujas mortes não ensejariam vingança. Nas fábulas infantis, a arbitrariedade do sacrifício como condição à paragem da violência é ironicamente simbolizada pela pedra que se oferta ao ogro para aplacar sua ira. Nas tragédias, é o herói quem ocupa o centro da arena trágica e sua destruição será percebida como mecanismo de restauração da “ordem”, já que sua eliminação ou ÁÆ¿ºèÓÀÁĢ¶ȱ¾²ÀÄ´À¿ȷºÅÀÄ´À¿ÄźÅÆźÇÀĵ²Åò¾²ʇ¿ÅöŲ¿ÅÀʁ²¶½¶ºèÓÀµÀ¹¶ÃĜºÌ ´À¿µºèÓÀµ¶ʖIJ´Ãºȱ´²µÀʗ¿ÀµÃ²¾²¿ÓÀĶÃ;¶¿ÀIJóºÅÃÍú²µÀÂƶ²Ä¾ÀÃŶĽ¶Ç²µ²Ä²¶·¶ºÅÀ¿ÀÄúÅÀÄIJ´Ãºȱ´º²ºÄʁ´À¿´½Æº ºÃ²ÃµʯЀϾϾІʰʇ É importante considerar que a ação trágica, estruturadacom base em uma l󸺴²´²ÆIJ½ÂƶµÃ²¾²ÅºË²²Åò»¶ÅĜú²µÀ¹¶ÃĜº´À¾À¶ºÉÀµÀÆ¿ºÇ¶ÃÄÀȱ´´ºÀ¿²½ʁŶ¿µ¶² µºÄÁ¶ÃIJÃÀÆ´²¾Æȷ²Ã¶ÄIJ²Ã³ºÅòú¶µ²µ¶µ²ÄÀ½ÆèÓÀÅÃ͸º´²ʁÁÀöɶ¾Á½Àʁº¿µº´º²¿µÀ na trama um “erro trágico” (hamartia) cometido pelo personagem heroico e que se faz ºµ¶¿Åºȱ´²Ã´À¾À¶½¶¾¶¿ÅÀµÃ²¾Íź´ÀÂƶÁÃÀÇÀ´²ʁµºÃ¶Å²Àƺ¿µºÃ¶Å²¾¶¿Å¶ʁ²´²ÅÍÄÅÃÀ·¶ÂƶÀ²³²Å¶ʇÀ¶¿Å²¿ÅÀʁ´À¾À³¶¾ǺÆ ºÃ²Ãµʁ²ÁÃĜÁú²µº¾¶¿ÄÓÀ´À¿ȷºÅÆÀIJ das tramas trágicas evidencia uma crise societal em curso, na qual reinam por toda parte a desordem e a violência. Não fosse pela arbitrariedade da construção estética da ação, centralizada na trajetória do herói e enfatizando o que convém para indiciar o 13 protagonista, tornando-o, ao mesmo tempo, agente e paciente do pathos trágico, não seria fácil discernir na rede de inter-relações sociais constitutivas do mythos as causas originárias das desordens que nas tragédias clamam por um desfecho trágico. Embora não seja nosso propósito aprofundar leituras críticas dos antigos textos trágicos, importa-nos, entretanto, ressaltar que a violência perpetrada nas tragédias não deve ser lida sob a óptica da ação individual, sem que se considere a tessitura da trama em sua completude. O próprio Aristóteles na Poética insistia em que não é o ethos, mas o mythos, a “alma da tragédia”. E o mythos, dizia o estagirita, é a composição dos atos. Sob esse prisma, vale a pena ouvir Raymond Williams (Tragédia Moderna, 2002) sobre a necessidade de se fazer uma leitura descentrada da ação trágica, justamente porque, para este autor, tragédia não é aquilo que acontece ao herói, mas ʖ²Âƺ½ÀÂƶ²´À¿Å¶´¶ÁÀþ¶ºÀµÀ¹¶ÃĜºʗʯÁʇІϾʰʇ ÄÄÀĺ¸¿ºȱ´²Âƶʁ²À½²¿è²ÃʉĶ´À¿ÅòÀ Æ¿ºÇ¶ÃÄÀ´À¿ȷºÅÆÀÄÀʁÀ¹¶ÃĜº¶Çºµ¶¿´º²²Ŷº²µ¶º¿Åú¸²Ä¿²ÂƲ½ì¶¿Ã¶µ²µÀ¶º¿ÄŲµÀ² reagir tragicamente. Neste sentido, aquilo a que se costuma referenciar como “ordem”, no universo das tragédias, é, no entender de Raymond Williams, fundamentalmente, “desordem”.  ²èÓÀ ÅÃ͸º´² ¿ÓÀ Ķ µ¶ȱ¿ºÃº²ʁ ÁÀÃŲ¿ÅÀʁ ´À¾À Åò¿Ä¸Ã¶ÄÄÓÀ Ì Àõ¶¾ʁ ¾²Ä como reação à desordem. Sob essa perspectiva, o sofrimento (ou o “sacrifício”, no dizer de Girard) das personagens trágicas adquire, para Raymond Williams, sentido revolucionário, instigando-nos a atentar criticamente para a dimensão social que estrutura ÀÄ´À¿ȷºÅÀĵò¾Íź´ÀÄ¿ÀÄŶÉÅÀÄÅÃ͸º´ÀÄʇÂƺDz½¶Ãº²²Á¶¿²¶ÇÀ´²Ã²ÈÄÀ¿ʯϿЇЅІʰʁ Á²Ã²Âƶ¾²²èÓÀµÃ²¾Íź´²ʁĶ»²¿²Åò¸ìµº²²¿Åº¸²ÀÆ¿ÀµÃ²¾²¾Àµ¶Ã¿Àʁµ¶ȱ¿¶ʉĶ ¶Ķµ¶Ä¶¿ÇÀ½Ç¶²ÅòÇìĵ¶´À¿ȷºÅÀÄÄÀ´º²ºÄʁ´À¿ȷºÅÀÄÂƶÁÀĺ´ºÀ¿²¾Á¶ÄÄÀ²Ä´À¿Åò pessoas, indivíduos contra grupos, grupos contra outros grupos, indivíduos ou grupos contra forças sociaisou naturais. Não surpreende que nesse universo dramático º¿¶ÇºÅ²Ç¶½¾¶¿Å¶´À¿ȷºÅÆÀÄÀ²ǺÀ½í¿´º²²ÄÄƾ²¿²´¶¿²²Ä¾²ºÄDzú²µ²Ä·Àþ²Äµ¶ representação estética. ¶ÁöĶ¿Å²èĢ¶Äµ²ǺÀ½í¿´º²¿²µÃ²¾²ÅÆøº²ÅÃ͸º´² A história da dramaturgia trágica no ocidente poderia ser reescrita com base nas diversas convenções estéticas voltadas à representação da violência nos textos dramáticos que se tornaram canônicos. Se, como dissemos, os gregos subtraíam aos olhos dos espectadores as cenas de sangue e morte, sonegando a encenação dos recorrentes suicídios, enforcamentos, assassinatos por armas cortantes e outros gestos violentos Âƶ´À¿ȱ¸ÆòDz¾²Ä´²ÅÍÄÅÃÀ·¶Ä¶¾ÄƲÄÅò¸ìµº²ÄʁºÄÄÀÁ²Ã¶´º²µ¶Ç¶ÃʉĶÌÄ´À¿µºèĢ¶Ä ¶ÄÁ¶´ăȱ´²Ä µÀÄ Ŷ²ÅÃÀÄ ¸Ã¶¸ÀÄʁ Âƶʁ Ķ¿µÀ ²³¶ÃÅÀÄʁ ´À¾ ÀÄ ¶ÄÁ¶ÅʹƽÀÄ À´ÀÃö¿µÀ Ì ½Æ˵Àµº²ʁµºȱ´Æ½Å²Ç²¾²¶¿´¶¿²èÓÀǶÃÀÄÄă¾º½µ¶ÄIJǺÀ½í¿´º²·ăĺ´²¿Æ¾²²ÃŶÂƶ clamava por seriedade e elevação estética, características fundamentais da tragédia enquanto gênero, dramático e teatral. Para impedir que o trágico resvalasse para o cômico, a violência física no teatro grego ocorria por trás da cena (skené) e era depois relatada por alguma testemunha, enquanto o corpo já inerte – mutilado, ensanguentado – era exposto na arena, carregadopor meio de uma espécie de carrinho de rolimã (ekkuklema). 14 ĵºȱ´Æ½µ²µ¶Äµ¶¶¿´¶¿²Ã²ǺÀ½í¿´º²·ăĺ´²¿ÀÄŶ²ÅÃÀĵ²²¿Åº¸Æºµ²µ¶öÄpondem ainda hoje pelas frequentes alusões dos críticos à pouca probabilidade de terem sido as tragédias de Sêneca produzidas para a cena. Sendo Sêneca um mestre em dramatizar a violência física, suas tragédias se encerram em catástrofes aterradoras e nada em seus textos sugere que as cenas de sangue e morte devessem ser subtraídas ²ÀÄÀ½¹Àĵ²ö´¶ÁèÓÀŶ²Åò½ʇÄƲ¶µ¶º²ʁÁÀöɶ¾Á½Àʁ¾²Å²ƾµÀÄȱ½¹ÀÄÌǺÄŲ dos espectadores, enquanto arrasta a outra criança para ser morta diante de Jasão, tudo isso sob os olhares do público, se é que realmente o teatro latino levou essa peça à encenação. Seja como for, séculos depois, o teatro renascentista, que teve as tragédias de Sêneca por modelares, encontrou meios de encenar nos palcos da modernidade o horror das tragédias, de maneira que célebres dramaturgos dos tempos modernos, dentre eles, Shakespeare, devem ao tragediógrafo latino muito do gosto pela exibição ¶ÉÁ½ă´ºÅ²µ²ǺÀ½í¿´º²·ăĺ´²ʁ¶¾³Àò¿ÓÀĶÁÀÄIJÅú³ÆŲòÁ¶¿²Ä̺¿ȷÆí¿´º²µ¶í¿¶´² essa convenção teatral, considerando-se que a historicidade será sempre um elemento µ¶ȱ¿ºµÀõ²Ä´À¿Ç¶¿èĢ¶Ä²ÃÅăÄź´²ÄÂƶĶÁ¶ÃÁ¶ÅƲ¾ʇÀ´²ÄÀµÀµÃ²¾²¶½ºÄ²³¶Å²¿Àʁ não se pode esquecer que o mesmo público que ia ao teatro comparecia a execuções públicas, de maneira que, na Londres dos séculos XVI e XVII, por exemplo, não faltavam oportunidades para que se assistisse a enforcamentos ou decapitações em praça pública. Não surpreende que o teatro renascentista inglês responda a essa predisposição da recepção para a degustação prazerosa de cenas de extremada violência física. À´ÀÃöõÀÄÄì´Æ½ÀÄʁ²º¿ȷ¶ÉÓÀ¶ÄÅìź´²ÂƶʁÄÀ³º¿ȷÆí¿´º²µ²ÄöÇÀ½ÆèĢ¶Ä liberais no ocidente, transformaria a tragédia em drama burguês, produziu mudanças severas na representação da violência nos palcos trágicos. Os gestos convulsivos que caracterizavam a violência física nas grandes tragédias eram condizentes com a retórica elevada dos reis, príncipes e nobres que protagonizavam suas tramas. Quando o teatro trágico se “rebaixa” e se faz drama burguês, ou drama social, extingue-se a chamada “cláusula dos Estados” – a convenção que restringia o heroísmo trágico aos representantes da nobreza – , e o protagonismo das peças passa a ser concedido a homens e mulheres comuns. Nesse novo gênero dramático e teatral, a elevada linguagem ÁÀìź´²µ²ÄÅò¸ìµº²ÄĶÅÀÿ²ÁÃÀIJº´²ʇ²¾³ì¾²¾ÀÃŶĶ¾Àµºȱ´²ʁĶʖö³²ºÉ²ʗʁĶ aquieta, assumindo novas conotações de tragicidade, não raramente cedendo lugar a mortes simbólicas, como a desonra, a falência moral ou material, o banimento social, a ½ÀÆ´Æòʇ ÄÄÀ¿ÓÀĺ¸¿ºȱ´²Âƶ²ÄIJÄĺ¿²ÅÀĶÄƺ´ăµºÀÄŶ¿¹²¾ĺµÀ¶É´½ÆăµÀĵ²´¶¿² trágica, apenas os novos tempos fazem incidir conotações mais condizentes com a historicidade implicada na representação mimética da ordem\desordem da vida burguesa. Considerando o peso dos contextos históricos na feitura dos dramas sociais, não faltará inspiração aos dramaturgos para representarem formas mais contemporâneas, reais ou simbólicas, de matar ou morrer. Ibsen faz Nora bater a porta de sua Casa de Bonecas,²³²¿µÀ¿²¿µÀ¾²ÃºµÀ¶ȱ½¹ÀIJÀȱ¿²½µÀµÃ²¾²ʇ¶¿¶ÄĶ¶º½½º²¾Äʁ¶¾Um Bonde Chamado Desejo, concede a Blanche DuBois a eternização de suas fantasias na loucura, que não deixa de ser morte em vida. Eugene O’Neill, em O luto assenta em Electra, uma releitura da Oresteia de Ésquilo, “higieniza” o banho de sangue dado pela Clitemnestra grega ao apunhalar seu esposo Agamemnon, fazendo com que Christine assassine Manon recusando-se a lhe entregar as pílulas que o poderiam livrar do ataque cardíaco que o fulmina em cena. Tudo isso nos diz que a história das representações da violência no teatro trágico tem muito a nos contar sobre a história da nossa 15 própria civilização. O drama social adquire estatuto modelar no ocidente no século XIX e, sob inȷÆí¿´º²µÀŶ²ÅÃÀµ¶ ³Ä¶¿ʁŲ½Ç¶ËÀ¾²ºÄº¿ȷƶ¿Å¶µÀĵò¾²ÅÆøÀľÀµ¶Ã¿ÀIJµ²Ã continuidade ao que Raymond Williams chamou de “Forma Geral” da dramaturgia trágica, o século XX viria a produzir um amplo espectro de peças representativas da dor e do sofrimento humanos resultantes das mazelas da vida social no mundo bur¸ÆíÄʇí¿·²Ä¶½²¿è²µ²ÄÀ³Ã¶ÀÄ´À¿ȷºÅÀÄÄÀ´º²ºÄ´À¾À´²ÆIJµÀöĵ²Åò¸º´ºµ²µ¶¿¶ÄIJ forma modelar de drama evidencia que mesmo as crises existenciais mais profundas experimentadas em cena pelos personagens resultam de suas interações sociais. Com isso, essa tradição dramática alcança um forte pendor para a crítica social e embora haja uma vertente teórica que negue a esses dramas sociais o estatuto de “tragédias”, como o faz, por exemplo, George Steiner, em A morte da tragédia (2006), outras concepções teóricas reconhecem que o teatro trágico sempre foi mutável, sempre pautouʉĶ¶¾´À¿ȷºÅÀÄÄÀ´º²ºÄ²½º¿¹²µÀIJÀÄĶÆÄ´À¿Å¶ÉÅÀĹºÄÅĜú´ÀĶʁÁÀÃŲ¿ÅÀʁ´²Å¶¸Àú˲¾ÀµÃ²¾²ÄÀ´º²½´À¾ÀʖÅò¸ìµº²¾Àµ¶Ã¿²ʗʁ¿²µ¶ȱ¿ºèÓÀ·Àþƽ²µ²ÁÀòʾÀ¿µ Williams (2002). ¿ȷ¶ÉĢ¶ÄµÀÅÃ͸º´À¿²Ǻòµ²Á²Ã²²ÁĜÄʉ¾Àµ¶Ã¿ºµ²µ¶ Essa revisão crítica das formas historicizadas de representação da violência na ÅòµºèÓÀµÃ²¾Íź´²¶ÄƲ²Áö¶¿ÄÓÀ¶¾ö½²èÓÀ²´À¿ȷºÅÀÄÄÀ´º²ºÄ¿ÀÄÁ¶Ã¾ºÅ¶²ȱþ²Ã algo que interessa diretamente ao estudo da dramaturgia contemporânea. Para melhor ¶¾³²Ä²Ã¿ÀÄIJÄöȷ¶ÉĢ¶Äʁµ¶Ç¶¾ÀÄ´À¿Äºµ¶Ã²ÃÂƶʁµ¶Äµ¶²ÄÀú¸¶¿Ä´½ÍÄĺ´²Ä²Å쾶ados do século XX, a despeito das marcantes distinções que evidenciamos no tocante à representação da violência e ao tratamento concedido à tragicidade no cânone teatral no ocidente, o gravitas permaneceu por séculos associado ao trágico. Em toda essa tradição que revisitamos, o pathos trágico sempre esteve associado a um tratamento respeitoso, grave, elevado, do sofrimento humano, mesmo em dramas cujos protago¿ºÄŲIJÁ²Ã¶´¶¾ʖö³²ºÉ²µÀÄʗÄÀ´º²½¾¶¿Å¶ʇ ÄÄÀ¿ÓÀĺ¸¿ºȱ´²Âƶ²ÄÅò¸ìµº²Äʁ²¿Åº¸²Ä ou modernas, não acolhessem a comicidade, o humor, a ironia, mas as tiradas cômicas não incidiam diretamente sobre o ethos ou sobre o pathos trágico, eram apenas inserções de situações ou alusões risíveis, nesgas para a experimentação do que os críticos de Shakespeare chamaram de “alívio cômico”, cenas leves enxertadas na trama trágica, cujo arcabouço, no entanto, permanecia na esfera das artes sérias e elevadas. Por volta de meados do século XX, no entanto, outras opções estéticas se materializam na cena teatral, dentre as quais poderíamos destacar as contribuições advindas do Teatro do Absurdo, de Beckett e Ionesco, do Teatro Épico, de Brecht, e do Teatro da Crueldade, de Artaud. Em linhas muito gerais poderíamos dizer que a partir dessas º¿ȷÆí¿´º²Äʁ¿ÀDzÄ·Àþ²Äµ¶ÅòŲ¾¶¿ÅÀµÀÅÃ͸º´ÀÁ²ÄIJ¾²º¿´ºµºÃ¿²µÃ²¾²ÅÆøº²¶ as décadas seguintes serão pródigas em recusar o tratamento convencionalmente sério e respeitoso que, durante séculos, foi concedido à tragicidade no drama. ÄIJÄ¿ÀDzĺ¿ȷ¶ÉĢ¶Ä·Àþ²ºÄÂƶÄÀ³Ã¶²Åò¸º´ºµ²µ¶º¿´ºµ¶¾ʁÀ³Çº²¾¶¿Å¶ʁ não podem ser desconectadas da historicidade que contextualiza as peças. Aqui caberia 16 ³¶¾¶ÇÀ´²Ã²µ¶ȱ¿ºèÓÀµ¶²Ê¾À¿µº½½º²¾ÄʯЀϾϾЀʰÄÀ³Ã¶ÀÂƶ¶½¶´¹²¾ÀƵ¶ʖ¶Ätrutura de sentimento”, espécie de emergência de formas criativas que compartilham características assemelhadas por serem resultantes de certa predisposição geracional para perceber agitações ou perturbações nas ordens e valores hegemônicos manifestos e a esses distúrbios na vida política, social, cultural conferir feições estéticas. Como bem diz o autor, conferindo à historicidade seu papel na história das artes: novos conteúdos se precipitam em novas formas. No que diz respeito ao século XX, vejamos o que escreveu Marvin Carlson acerca da percepção pelo teatro das catástrofes resultantes de um processo civilizatório que apregoava a hegemonia dos saberes, da ciência, do progresso intelectual da humanidade e culminou em duas Grandes Guerras e outras tantas aberrações: A falta de sentido ou a aparente malevolência do universo, o horror da guerra moderna e a ameaça de destruièÓÀ²Åĝ¾º´²ȱ˶ò¾Âƶ¾ÆºÅÀÄŶĜú´ÀÄʁ²ÁĜIJ¶¸Æ¿µ² ƶÃòÆ¿µº²½ʁĶ¿ÅºÄĶ¾ÂƶÀźÁÀµ¶¶ÉƽŲèÓÀ proporcionado pela tragédia, mesmo a mais sombria [...], já não era atingível. Voltaram-se de preferência para a comédia negra ou a comédia com implicações ÅÃ͸º´²Äʁʳʇʇʇʴ¸í¿¶ÃÀ¾²ºÄ²µ¶ÂƲµÀÌ´À¿Ä´ºí¿´º²¾Àµ¶Ã¿²ʇʯʁϿЇЇЅʁÁʇЂЀЇʰ Dentre os autores referidos por Carlson, como representativos desse desen´²¿Å²¾¶¿ÅÀµÀ¾Æ¿µÀ²ĶÃöȷ¶ÅºµÀ¿ÀŶ²ÅÃÀʁDz½¶²Á¶¿²´À¿·¶ÃºÃÀÂƶµºË ú¶µÃº´¹ Duerrenmatt em seu texto Problemas do TeatroʁÁƳ½º´²µÀ¶¾ϿЇЃЂʇƶÃö¿¾²ÅÅ¿ÓÀ nega a possibilidade de permanência do elemento trágico na dramaturgia contemporânea, apenas considera não mais ser possível a pura tragédia e isso por vários motivos, dentre os quais, as perdas de referências que possibilitariam o tratamento sério e circunstanciado do trágico: ¾Æ¿µÀµ¶¹À»¶ʁµÀ¾ÀµÀ´À¾ÀĶ¿ÀIJÁöĶ¿Å²ʁµºȱ´º½¾¶¿Å¶Ķµ¶ºÉ²¶¿·Àþ²Ã¿ÀľÀ½µ¶ÄµÀµÃ²¾²¹ºÄÅĜú´ÀÄ´¹º½½¶Ãº²¿Àʁĺ¾Á½¶Ä¾¶¿Å¶Á¶½À·²ÅÀµ¶¿¶½¶¿ÓÀ ¾²ºÄ ¶¿´À¿ÅòþÀÄ ¹¶ÃĜºÄ ÅÃ͸º´ÀÄʁ ¾²Ä ÅÓÀʉÄÀ¾¶¿Å¶ Åò¸ìµº²Äʁ¶¿´¶¿²µ²ÄÁÀô²Ã¿º´¶ºÃÀÄÆ¿ºÇ¶ÃIJºÄ¶¶É¶´ÆŲµ²ÄÁÀþÍÂƺ¿²Äµ¶¾À¶ÃʇÓÀĶÁÀµ¶¾¾²ºÄ·²Ë¶Ã ʖ²½½¶¿ÄŶº¿Äʗ²Á²ÃźÃµ¶ ºÅ½¶Ã¶µ¶Åͽº¿ʇÁÀµ¶Ãµ¶ÄŲĵƲÄȱ¸ÆòÄìÅÓÀ¸º¸²¿Å¶Ä´ÀÂƶ¶½²ÄÁÃĜÁú²Ä²º¿µ² ´À¿ÄźÅƶ¾¶Ç¶¿ÅƲºÄ¶¶Çºµ¶¿Å¶Ä·Àþ²Äµ¶¶ÉÁöÄÄÓÀ de tal poder. Além disso, a desgraça vinculada especial¾¶¿Å¶²ÀÁú¾¶ºÃÀʁ¶³²ÄŲ¿Å¶²ÀĶ¸Æ¿µÀʁò¾ºȱ´ÀÆʉĶ demais e tornou o mundo confuso, violento, mecânico e ·Ã¶Âƶ¿Å¶¾¶¿Å¶²³ÄÀ½ÆŲ¾¶¿Å¶µ¶ÄźÅÆăµÀµ¶Ķ¿ÅºµÀʇ poder de Wallenstein ainda era um poder visível; entreŲ¿ÅÀʁÀÁÀµ¶Ãµ¶¹À»¶Àì²Á¶¿²Ä¶¾Á¶Âƶ¿²¶Ä´²½²ʁ²ÄĶ¾¶½¹²¿µÀʉĶ²ƾº´¶³¶Ã¸ʁ¶¾Âƶ²¾²ºÀÃÁ²ÃŶÁ¶Ã¾²¿¶´¶²·Æ¿µ²µ²¿À²¿ĝ¿º¾Àʁ¿À²³ÄÅòÅÀʇµÃ²¾²µ¶ 17 ´¹º½½¶ÃÁöÄÄÆÁĢ¶ƾ¾Æ¿µÀŲ¿¸ăǶ½ʁƾ²Ƕõ²µ¶ºÃ² ação do Estado, como de resto também a tragédia grega. ºÄăǶ½¿²²ÃŶìÄÀ¾¶¿Å¶²Âƺ½ÀÂƶÁÀµ¶Ķò³²Ã´²µÀ Á¶½²ǺÄÓÀʇÄŲµÀ¹Àµº¶Ã¿Àʁ´À¿ÅƵÀʁȱ´Àƺ¿²Áö¶¿sível, anônimo, burocrático, e isto vale não apenas para Moscou ou para Washington, mas também para Berna. ÅƲ½¾¶¿Å¶ʁ ²Ä ²èĢ¶Ä ¶ÄŲŲºÄ ÄÓÀ »À¸ÀÄ IJÅăú´ÀÄʁ Âƶ vieram depois, e seguem as tragédias consumadas em silêncio. Faltam os verdadeiros representantes e os heÃĜºÄÅÃ͸º´ÀÄ¿ÓÀÅí¾¿À¾¶ʇʯЀϾϾЅʁÁʇІЃʉІЄʰ Impressiona como, já em meados do século XX, Duerrenmatt tenha atentado para as causas da irreverência que recairia sobre a dramaturgia trágica nas décadas posteriores. Em suas palavras, diante da desarrumação do mundo contemporâneo, somente a comédia estaria apta a expressar a tragicidade: A tragédia, por ser o gênero artístico mais rígido, pressupõe um mundo enformado. A comédia [...] pressupõe um mundo desenformado, em mudança, em revolução, um mundo em arrumação, como o nosso. [...] A tragédia pressupõe culpa, necessidade, moderação, ´À¿ÅÃÀ½¶ʁ öÄÁÀ¿Ä²³º½ºµ²µ¶ʇ ² ´À¿·ÆÄÓÀ öº¿²¿Å¶ ¶¾ nosso século [século XX], nesta desordem da raça bran´²ʁ¿ÓÀ¶ÉºÄŶ¾¾²ºÄ´Æ½Á²µÀĶŲ¾³ì¾¿ÓÀ¶ÉºÄŶ¾ ¾²ºÄ öÄÁÀ¿ÄÍǶºÄʇ º¿¸Æì¾ ÁÀµ¶ ÀÆ Âƶà ´À¿Åú³ÆºÃ µ¶²½¸Æ¾¾ÀµÀ¶¾ÁÃÀ½µÀÂƶÂƶÃÂƶĶ»²ʇƵÀì ²ÃòÄŲµÀ¶ȱ´²ÄÆÄÁ¶¿ÄÀ¿Æ¾òÄŶ½ÀÂƲ½ÂƶÃʇÀÿ²mo-nos coletivamente culpados, coletivamente encarcerados nos pecados de nossos pais e de nossos anteÁ²ÄIJµÀÄʇ À¾ÀÄ ²Á¶¿²Ä ȱ½¹ÀÄ µ¶ ȱ½¹ÀÄʇ ÄŶ ì ¿ÀÄÄÀ ²Ë²Ãʁ¿ÓÀ¿ÀÄIJ´Æ½Á²ʃ²´Æ½Á²¶ÉºÄŶÄÀ¾¶¿Å¶´À¾À·²ÅÀ Á¶ÄÄÀ²½ʁ´À¾À²ÅÀö½º¸ºÀÄÀʇ¿ĜÄ´À¿Çì¾²Á¶¿²Ä²´À¾ìµº²ʯЀϾϾЅʁÁʇІЅʉІЇʰ As palavras de Duerrenmatt podem ser vistas como emblemáticas no tocante Ìĵºȱ´Æ½µ²µ¶Ä¶¿·Ã¶¿Å²µ²ÄÁ¶½ÀŶ²ÅÃÀµ²Ķ¸Æ¿µ²¾¶Å²µ¶µÀÄì´Æ½À¿ÀÂƶöÄÁ¶ºta à dramatização de tragédias representativas do seu próprio tempo. Seja como for, não apenas o teatro, mas distintas formas de expressão estética em circulação na contemporaneidade optaram não apenas pelo cômico, mas também pela ironia, pela par󵺲ʁÁ¶½ÀÁ²Äź´¹¶ʁö´ÆÃÄÀIJÁÅÀIJº¿µº´º²Ã´ÃºÅº´²¾¶¿Å¶²Âƺ½ÀÂƶÀÄ²ÃźÄŲÄȷ²¸Ã²¾ como a “estrutura de sentimento” resultante das contradições do tempo presente. ²ÃĜµº²¶ºÃÀ¿º²¿²µÃ²¾²ÅÆøº²ÁĜÄʉ¾Àµ¶Ã¿² O recurso à parodização na contemporaneidade tem sido tão recorrente, que Linda Hutcheon (2002) propõe ter a paródia alcançado estatuto de gênero, impon18 do-se na arte e na cultura atual como uma espécie de “modus operandi” discursivo, uma forma potente de revisão crítica do já visto, já dito, que, por via paródica, se faz desconstruído, denunciado, deformado, desdito. Não são pouco os teorizadores que se debruçam sobre a arte na condição pós-moderna e a dimensão irônica e paródica recorrente na estética contemporânea À´ÆÁ²À´¶¿ÅÃÀµ²Äöȷ¶ÉĢ¶Ä¶µ¶³²Å¶Ä¶¿·Ã¶¿Å²µÀÄÁÀöÄĶIJÆÅÀöÄʇ²ÄÁ²½²Çòĵ¶ Hutcheon: Muitos dos desacordos acerca da avaliação das estrat鸺²ÄÁĜÄʉ¾Àµ¶Ã¿²ÄÁÀµ¶¾ĶÃǺÄÅÀÄ´À¾ÀÀöÄƽŲµÀ µ¶ƾ²ö´ÆIJ̵ÆÁ½º´ºµ²µ¶µ²ÁÀ½ăź´²µ¶öÁöĶ¿Å²èÓÀµÀµºÄ´ÆÃÄÀÁĜÄʉ¾Àµ¶Ã¿Àʇ²Ã²½²¿º½µ¶ʁ²ºÃÀ¿º² ì ƾ² ´²Ã²´Å¶ÃăÄź´² ÁÀĺźDz ¶ µ¶ȱ¿ºµÀò µÀ ÁĜÄʉ¾Àµ¶Ã¿Àʂ Á²Ã² ¶ÃÃÊ ²¸½¶ÅÀ¿ʁ ² ºÃÀ¿º² ì À Âƶ ´À¿µ¶¿² ÀÁĜÄʉ¾Àµ¶Ã¿ºÄ¾À²ÀÅúǺ²½¶²À¼ºÅÄ´¹ʇ²Ã²²½¸Æ¿Äʁ² º¾Á½º´²èÓÀº¿¶ÇºÅÍǶ½µÀÁĜÄʉ¾Àµ¶Ã¿ºÄ¾À¿Àµ¶³²Å¶¶¿Åö²ÃŶ¶½¶Ç²µ²¶´Æ½ÅÆòµ¶¾²ÄIJìĺ¸¿ºȱ´²ÅºÇÀʂÁ²Ã² ÀÆÅÃÀÄʁì½²¾¶¿ÅÍǶ½ʇ²Ã²ʇ ʇ³Ã²¾Äʳʇʇʇʴʁ²Äʒº¿µ¶Å¶Ã¾º¿²èĢ¶Äº¿ÄÀ½łÇ¶ºÄʓÁ¶½²ÄÂƲºÄ¶½¶ÁÃĜÁúÀµ¶ȱ¿¶À ÁĜÄʉ¾Àµ¶Ã¿À ¶ÄÅÓÀ º¾Á½º´ºÅ²¾¶¿Å¶ ö½²´ºÀ¿²µ²Ä Ì ·²½Å²µ¶Ķ¿ÅºµÀ¶Ìµ¶¾À½ºèÓÀµÀÄ·Æ¿µ²¾¶¿ÅÀĴƽÅÆòºÄʁ ¶¿ÂƲ¿ÅÀ Á²Ã² ¹²³ ²ÄIJ¿ ¶ÄIJÄ ¾¶Ä¾²Ä º¿µ¶Å¶Ã¾º¿²èĢ¶Ä ÄÓÀ Á²ÃŶ µ¶ ƾ ʒ²¾Á½À µ¶Ä¶»À öǺĺÀ¿ºÄŲ ¿À ¾Æ¿µÀÀ´ºµ¶¿Å²½ʁµ¶Ä¶ÄŲ³º½ºË²¿µÀʤöʉ¶ÄŲ³º½ºË²¿µÀ´Ĝµº¸ÀÄʁ´Î¿À¿¶ÄʁÁÃÀ´¶µº¾¶¿ÅÀÄʁ´Ã¶¿è²Äʓʇʯ  ʁ ЀϾϾЀʁÁʇϿЅʉϿІʁÅòµÆèÓÀ¿ÀÄIJʰʇ A questão que se coloca como premente no tocante à recorrência da paródia na arte e na cultura contemporâneas seria, portanto, a discussão sobre as potencialidades dessas formas artísticas para a crítica. Se, conforme Jameson, o pós-modernismo corresponde à lógica cultural do capitalismo tardio, como poderia essa ²ÃŶÁĜÄʉ¾Àµ¶Ã¿²¶Ä´²Á²ÃÌ´ÀÀÁŲèÓÀʁÌöºȱ´²èÓÀʁ²ÀIJÁ¶½Àľ¶Ã´²µÀ½Ĝ¸º´ÀĶ²ÀÄ valores hegemônicos em circulação no próprio sistema que o engendra e que consome ÄƲÄÁÃÀµÆèĢ¶Äʎ¶¾µ¶ºÉ²Ãµ¶²Âƺ¶Ä´¶Ã²µºȱ´Æ½µ²µ¶µÀÁÃÀ³½¶¾²ÂƶĶÁÃÀÁĢ¶² º¿Ç¶Äź¸²Ãʁ ÆÅ´¹¶À¿²ȱþ²ʁ¶¿ÅöŲ¿ÅÀʁÂƶ²²¾³º¸Æºµ²µ¶¶²µÆÁ½º´ºµ²µ¶ÄÓÀ¾²Ã´²Ä por excelência dessa arte pós-moderna, convidando-nos a pensar que sua poética e sua política evocam a indecibilidade, isto é, revelam, ao mesmo tempo, sua potencialidade para a crítica social e, portanto, para a resistência contra-hegemônica, e também a consciência de pertencimento ao sistema e às tradições que insiste em parodiar, ironi˲Ãʇµ¶Ä²ȱÀµ²´Ãăź´²Ķú²¹À»¶öÄÁÀ¿µ¶Ã²¶ÄIJº¿µ¶´º³º½ºµ²µ¶ʁ²¶ÄIJ²¾³º¸Æºµ²µ¶ʇ No drama anglo-americano contemporâneo, a parodização, a ironia, a comicidade, mas também a caricatura, o excesso e o grotesco dominam a cena e provocam, ¿² öÁöĶ¿Å²èÓÀ µ² Åò¸º´ºµ²µ¶ʁ º¿ȷ¶ÉĢ¶Ä ¶ÄÅìź´²Ä ¾ÆºÅÀ ´À¿Çºµ²ÅºÇ²Ä ²À ¶É¶Ã´ă´ºÀ teórico. Ora, se o drama social se caracteriza, desde a sua origem, por enredar em sua mimesisµº¾¶¿ÄĢ¶Ä´À¿ȷºÅÆÀIJIJÄÄÀ´º²µ²Ä̵¶ÄʤÀõ¶¾ÄÀ´º²½¶ÂƶÁÃÀµÆ˶¾²ǺÀ- 19 lência trágica, seu forte pendor para a crítica social e política foi sempre característica marcante do gênero, mesmo quando suas formas deixaram o realismo e experimentaram outras concepções estéticas – expressionistas, impressionistas, simbolistas. A questão que ora se apresenta nos convida a teorizar sobre como se efetiva a permanência da função crítica dessas peças contemporâneas, considerando-se a “ambiguidade” inerente ao pós-modernismo. Como dramas sociais que parodiam formas tradicionais e valores hegemônicos, fazendo recair fortes cargas de ironia sobre as representações µ²µ¶ÄʤÀõ¶¾µ²Ǻµ²ÄÀ´º²½ʁ´²Ãº´²ÅÆò¿µÀ²ÁÃĜÁú²ö²½ºµ²µ¶Âƶ½¹¶ĶÃǶµ¶öferência e conduzindo o gênero para o domínio do cômico, do absurdo, do nonsense, poderiam ainda levar a efeito a função crítica associada ao gênero? Como se comporta a tragicidade nessas construções paródicas, irônicas, debochadas? ²ÃĜµº²ʁºÃÀ¿º²¶´Ãăź´²¿ÀŶ²ÅÃÀµ¶²Æ½²À¸¶½ʃŲ³ÆʁÅòƾ²¶Åò¸ìµº²¿²µ¶Äʤ Àõ¶¾ÄÀ´º²½¶¾How I Learned to Drive ʯϿЇЇЅʰ Muito se tem escrito na crítica feminista sobre as barreiras que se antepõem às ¾Æ½¹¶Ã¶ÄÂƲ¿µÀĶµ¶µº´²¾²µʤ¶Ä´Ã¶Ç¶Ã¶ÉÁ¶Ãºí¿´º²ÄʁÅòƾ²Ä¶µ¶Ä¶»ÀÄ·¶¾º¿º¿ÀÄʇ ²´À¿Åò¾ÓÀµ²µºȱ´Æ½µ²µ¶¶ÉÁ¶Ãº¾¶¿Å²µ²ÁÀþƺŲĵ¶Åò˶Ã̽ºÅ¶Ã²ÅÆòŶ¾²Ä-tabu, a dramaturga norte-americana Paula Vogel concede clara visibilidade ao tema µ²Á¶µÀȱ½º²¿²À³Ã²How I Learned to Drive ʯϿЇЇЅʰʇÀ³Ã²Á²ÃŶµ¶ƾµ¶Ä¶»ÀöǺsionista de abordar a questão do abuso sexual em um enquadramento complexo, que focaliza não apenas o contexto familiar, mas também esferas da vida social e política, ¶¿Ã¶µ²¿µÀÀŶ¾²¶¾ƾÆ¿ºÇ¶ÃÄÀȱ´´ºÀ¿²½´À¿ȷºÅÆÀÄÀ¿ÀÂƲ½º¿ÄźÅƺèĢ¶ÄʁDz½ÀöÄ e comportamentos contemporâneos aparecem mimetizados sob perspectivas paródicas impiedosas, desconstrutivas, demolidoras. A peça provocou grande repercussão à época de sua estreia e recebeu o Pulitzer Prize for Drama ¶¾ϿЇЇІʁ¶¾³ÀòŶ¿¹²µ¶morado mais de duas décadas para chegar à BroadwayʁÀÂƶ´À¿ȱ¸Æòʁµ¶²¿Å¶¾ÓÀʁ a censura prévia a que estão sujeitas certas produções artísticas, sobretudo as que se lançam contra valores e instituições hegemônicas, como é o caso da referida peça, que µ¶Ä²ȱ²¶µ¶¿Æ¿´º²·Æ¿µ²¾¶¿ÅÀÄ´²ÃÀÄ̺µ¶À½À¸º²µÀAmerican Way of Life. How I Learned to DriveʯϿЇЇЅʰʁ¶¾ÁÀÃÅƸÆíÄʁʖÀ¾À¶Æ²Áö¿µº²µºÃº¸ºÃʗʁ caracteriza-se como paródica já em sua opção por formatar a ação dramática com base em um manual de instruções sobre direção automobilística, cada uma das cenas da peça correspondendo a uma lição sobre como aprender a guiar um automóvel. A iniciação nas aulas de direção metaforiza, irônica e pateticamente, a iniciação da protagonista, Li’l Bit, na vida sexual. No papel de experimentado instrutor, o próprio tio da menina, Uncle Peck, sempre presente, gentil e carinhoso, na verdade, um substituto ŶÿÀµ²ȱ¸ÆòÁ²Å¶Ã¿²Âƶ·²½Å²Ì´Ãº²¿è²ʁ²À¾¶Ä¾ÀŶ¾ÁÀʁƾÁ¶ÃǶÃźµÀʁÂƶ¿ÓÀ perde oportunidade de levar a sobrinha ao colo para facilitar suas “aulas”, quando as perninhas curtas da menina de onze anos ainda sequer alcançavam os pedais do carro. Nada é simples, no entanto, nessa peça escrita por Paula Vogel, em cuja trama, instituiçõese valores da vida familiar, social e política se enredam de maneira a evidenciar que há algo de podre na comunidade parodicamente representada nesse universo ȱ´´ºÀ¿²½ʇÁÃĜÁúÀ¿´½¶¶´¼ʁÀ¶ÉÁ¶Ãº¶¿Å¶ʖº¿ÄÅÃÆÅÀÃʗʁ¿ÓÀìÄÀ¾¶¿Å¶ƾźÀ²¾ÀÃÀ- 20 samente cafajeste, mas também um veterano da Segunda Guerra, sofrendo de Desordem de Estresse Pós-Traumático e alcoolismo. Com isso já se pode adivinhar que as perversões de Uncle Peck respondem a uma história de vida pessoal, de maneira que, ¶¾³Àò²öÄÁÀ¿Ä²³º½ºµ²µ¶ÄÀ³Ã¶²ÁÃÍź´²µ²Á¶µÀȱ½º²ö´²º²ÄÀ³Ã¶²ÄƲÁ¶ÄÄÀ²ʁ¿ÓÀ ĶÁÀµ¶½¶ÃÄƲÄƳ»¶ÅºÇºµ²µ¶Ķ¿ÓÀ´À¾ÀöÄƽŲµÀµ¶ƾ²´À¿ȷÆí¿´º²µ¶´²ÆIJÄÂƶ ´À¿Ç¶Ã¸¶¾Á²Ã²ÄƲµ¶ʤ·Àþ²èÓÀµ¶´²ÃÍŶÃʇº¿µ²ÂƶÀµÃ²¾²Ķ»²ʁµ¶Äµ¶²ÄÄƲÄ Àú¸¶¿Ä¸Ã¶¸²Äʁ·Æ¿µ²¾¶¿Å²½¾¶¿Å¶µ¶ȱ¿ăǶ½¶¾ŶþÀĵ¶²èÓÀʁ¿ÓÀĶÁÀµ¶¶ÄÂƶ´¶Ã o papel do ethos dos protagonistas no que diz respeito às ações que praticam em cena. Nesse caso, vale a pena lembrar que o caráter de Uncle Peck na trama apresenta-se como o ethos de uma subjetividade descentrada, construída sob os auspícios de forças que o atormentam e que sobre ele atuam, o que faz do personagem, ao mesmo tempo, algoz e vítima, da sociedade e de si mesmo. Esse descentramento do sujeito tem sido característica marcante na literatura e no teatro pós-moderno, mas o tratamento soȱÄź´²µÀÂƶ²¶ÄIJÄƳ»¶ÅºÇºµ²µ¶¶Äź½¹²è²µ²´À¿´¶µ¶²Æ½²À¸¶½¾¶Ã¶´¶ĶýºµÀ´À¾ singular atenção, pois se faz determinante à modelagem crítica de sua dramaturgia. ²½Å²µºË¶ÃÂƶ²²èÓÀµ²Á¶è²Ŷ¾ö·¶Ã¶¿´º²ºÄ¹ºÄÅĜú´ÀÄ´½²ÃÀĶ¶ÄÁ¶´ºȱ´²µÀÄ ¿²Åò¾²ʇ²èÓÀ·Ã²¸¾¶¿Å²µ²Á¶Ã¾ºÅ¶¾Æµ²¿è²Äµ¶´¶¿ÍúÀÄʁ¶ÅÀµÀĶ½¶Äȱ¸Æò¾ ´À¾À²¾³º¶¿Å¶Ä¾²Ã´²¿Å¶Äµ²ÄÀ´º¶µ²µ¶²¾¶Ãº´²¿²µ²µì´²µ²µ¶ϿЇЄϾ¶ϿЇЅϾʃ¶ÄÅòdas suburbanas em Maryland, por onde a adolescente era “ensinada” a dirigir; a casa dos avós de Li’l Bit, onde se reuniam os membros da família; um restaurante, uma escola e um quarto de hotel, espaços representativos dos modos de vida na Carolina do Sul e, em sentido mais geral, da cultura norte-americana no período estabelecido como setting da ação. A rede de interações que convergem para produzir a dramaticidade e a tragicidade na trama evidencia que a sexualidade ocupa posição privilegiada dentre as muitas mazelas da vida social representadas parodicamente na cena. O próprio núcleo familiar de Li’l Bit ilustra, com tons de comicidade, a marcada conotação sexual das personas¶¾²èÓÀʇ¶ÄIJȱ¸ÆòèÓÀÁ²ÃĜµº´²µ¶ƾ²ÄÀ´º¶µ²µ¶·ÀÃŶ¾¶¿Å¶¶ÃÀź˲µ²ʁ os personagens são nomeados através de apelidos que remetem a características associadas às suas partes sexuais: Li’l Bit, por exemplo, refere-se ao tamanho minúsculo da vagina da menina ao nascer – e foi o próprio tio que tomou o bebê nas mãos, enquanto a família constatava, entre as pernas da recém nascida, “uma coisinha de nada” (little bit)ʇÓÀĶÁÀµ¶Ãº²²Âƺµ¶ºÉ²Ãµ¶¾¶¿´ºÀ¿²ÃÀÆÅòº¿ȷ¶ÉÓÀÁ²ÃĜµº´²ʁúÄăǶ½¶´²Ãº´²ta, implicada nesse apelido, que evoca“Lilibet”, a forma carinhosa pela qual o Rei GeÀø¶´¹²¾²Ç²²ÄƲȱ½¹²µ¶Äµ¶Á¶Âƶ¿²ʁ²²º¿¹²½ºË²³¶Å¹ʁ¿À¾¶¿À³Ã¶ʁµ¶Àú¸¶¾ ¹¶³Ã²º´²ʁ´Æ»²ĺ¸¿ºȱ´²èÓÀ¶Ã²²½¸À´À¾Àʖ¶Æ¶ÆÄìƾ»Æò¾¶¿ÅÀʗʇ¶´º·Ã²µÀ¶¾ suas implicações paródicas, o apelido da protagonista da peça se revela fortemente cômico, sarcástico, impiedoso, rebaixando e erotizando o apelido que se popularizou para Elizabeth, um nome amplamente popular. Além de Li’l Bit, os demais personagens também são nomeados em relação às suas genitálias: o avô será referido na peça como o Big Papa (Grande Vovô); a mãe é a Titless Wonder (Maravilha sem Peitos), o primo é Blue Balls (Bolas Azuis) e o tio é Uncle Peck (Tio Bicador). A iniciação sexual de Li’l Bit e os abusos dos quais se faz vítima acontecem, 21 portanto, em um drama social no qual o ambiente familiar é caracterizado como disfuncional e tóxico, com recorrentes agressões verbais, cenas de bullying e silêncios familiares permissivos sobre os abusos que ali ocorrem.Trata-se, portanto, de um ¶¿Ã¶µ²¾¶¿ÅÀȱ´´ºÀ¿²½¿ÀÂƲ½ ² µÃ²¾²Åº´ºµ²µ¶¶² Åò¸º´ºµ²µ¶ʁ ÅòŲµ²Ä ´À¾ºÃÀ¿º² e comicidade, decorrem de uma sociedade omissa, marcada por variadas formas de violência que impedem a formação de Li’l Bit como mulher de maneira positiva, construtiva. Não surpreende que ela se deixe amparar pelos braços fortes do seu Tio Peck e que consinta, em sua própria miséria emocional, com os carinhos que recebe do źÀÁ¶µĜȱ½À´À¾Àł¿º´Àʖ¶Ä´²Á¶ʗµ²·²¾ă½º²µºÄ·Æ¿´ºÀ¿²½ʇ¶¾³Ã¶¾ÀÄÂƶ¿´½¶¶´¼ fornece não apenas carinho, mas também segurança, afeto e prazer. Em determinado momento da trama ele dirá: “I don’t have sons. You’re the nearest to a son I’ll ever have – and I want to give you something. (...) when you’re in control of the car, just you and the machine and the road – that nobody can take from you. A power”1 (p. 58). É assim Âƶ¿´½¶¶´¼¶ÉÁ½º´²Ķƺ¿Å¶Ã¶ÄĶ¶¾µ²Ã²Ä²Æ½²Äµ¶µºÃ¶èÓÀ²ºÅºÅʁ¶ÄƲȱɲèÓÀ pelo prazer de dirigir não será destoante do sentimento mais geral dos norte-americanos em relação aos seus automóveis. Ao mesmo tempo que o tio é o mais próximo que temos de um adulto que se importava com a menina, ele não consegue estabelecer um vínculo saudável com a sobrinha sem o avanço das dependências do seu próprio desejo pervertido e de sua capacidade para criar situações de intimidade que gradualmente ÇÓÀÁÃÀ¸Ã¶µº¿µÀ²ÅìÀȱ¾µ²Á¶è²ʁµÃ²¾Íź´À¶ÅòƾÍź´ÀʁÁ²Ã²¶½²ʂÅÃ͸º´ÀʁÁ²Ã²¶½¶ʇ A peça é dividida por lições de direção e cada cena corresponde a uma “aula” que recebe títulos sugestivos, como: “Safety First: You and your Driver Education”, ou “Driving in First Gear”, “You and the Reverse Gear” 2. Para cada cena-lição, Vogel º¿ÄÅÃƺ ƾ² Ķ½¶èÓÀ ¾Æĺ´²½ µ² ìÁÀ´²ʁ Âƶ Dzº Ķ ¾Àµºȱ´²¿µÀʁ »Æ¿Å²¾¶¿Å¶ ´À¾ ÀÄ modelos de carro referidos nas falas, e acompanhando o desenvolvimento sexual da relação abusiva. A temporalidade embaralhada das cenas, fragmentação comum à arte pós-moderna, é parte da cuidadosa retórica textual da autora e serve a vários propósitos, operando no sentido de construir a escalada da ação em direção à dramaticidade e à tragicidade. É assim que o público vai recebendo recortes, retalhos de informações advindas de temporalidades diferentes que, aos poucos, desvelam os personagens e suas ações. Como se estivesse a montar um quebra-cabeças, a recepção se confronta com os impactos de cada nova cena que vai compondo a trama e elucidando os fatos ¿¶ÄĶÆ¿ºÇ¶ÃÄÀȱ´´ºÀ¿²½ʇÓÀ´ÆÄŲ½¶¾³Ã²ÃÂƶʁĶ¿µÀÀµÃ²¾²²²ÃŶµÀ¶Å¶Ã¿ÀÁöĶ¿Å¶ʁ¿ÓÀº¾ÁÀÃŲÂƲ¿µÀ²²èÓÀ²ÁöĶ¿Å²µ²ʤöÁöĶ¿Å²µ²¿²´¶¿²Ŷ¿¹²À´ÀÃúµÀʁ ¶½²ĶÁöĶ¿Åºȱ´²Ķ¾Áöµº²¿Å¶µÀÄÀ½¹ÀĵÀĶÄÁ¶´Å²µÀöĶ¿¶ÄIJÁöĶ¿Åºȱ´²èÓÀ contribui para provocar impactos na audiência. Nesse jogo retórico, a um só tempo, dramático e teatral, a dosagem das informações importa diretamente aos processos de construção do ethos retórico dos personagens e de uma ação que gravita em torno de um tema-tabu, de maneira que, por exemplo, o primeiro abuso, quando Li’l Bit tinha ²Á¶¿²ÄϿϿ²¿ÀÄʁÄĜ춿´¶¿²µÀ²Àȱ¾µ²Á¶è²ʇ²Ä´¶¿²ÄÂƶÀ²¿Å¶´¶µ¶¾ʁ²²Æµºí¿´º² Æ¿ÓÀŶ¿¹Àȱ½¹ÀÄʇÀ´íìÀ¾²ºÄÁÃĜɺ¾À²ƾȱ½¹ÀÂƶ¶Æ»²¾²ºÄŶöºʦ¶¶ÆÂƶÃÀŶµ²Ã²½¸ÀʇʯʇʇʇʰÂƲ¿µÀÇÀ´í está no controle de um carro, só você e a máquina na rua – ninguém pode tirar isso de você. Um poder. 2 “ Segurança em Primeiro Lugar: Você e sua Educação no Trânsito”, ou “Dirigindo na Primeira Marcha”, “Você e a marcha ré”. Ͽ 22 já testemunhou por vários ângulos o modus operandi do instrutor e a maneira como leva sua sobrinha-aluna a passear em um carro que também é adaptado para a cena, cortado ao meio, extirpado de sua parte frontal, de maneira a exibir os dois assentos dianteiros, deixando o tio-instrutor e a sobrinha-aprendiz sentados diante do público, ¶¿ÂƲ¿ÅÀÀÁ¶µĜȱ½À¾º¾¶ÅºË²Àµ¶Ä½ºË²Ãµ¶ÄƲľÓÀĶ¿Åö²ÄÁ²ÃŶĵÀ²ÆÅÀ¾ĜǶ½ʦ objeto altamente erotizado na cultura norte-americana – e o corpo de Li’l Bit, que se ·²Ëʁ²Äĺ¾ʁ²³ÆIJµ²¶¾Á½¶¿²ǺÄŲµ²²Æµºí¿´º²ʇƵÀºÄÄÀµºËµ²ÄÀȱÄź´²èÓÀ¶ÄÅìź´² da peça, que opta por uma linguagem cênica anti-realista, nem por isso desprovida de um forte sentido de realidade dramática. Dissemos que a peça parodia um manual de instruções sobre direção. Falta dizer que ela também parodia a própria tradição dramática e teatral. Na trama da peça, Á²ÃŶÄĺ¸¿ºȱ´²ÅºÇ²Äµ²²èÓÀȱ´²¾²´²Ã¸Àµ¶´ÀÃÀÄʉµ¶²µÀ½¶Ä´¶¿Å¶Äʁµ¶¹À¾¶¿Ä¶µ¶ mulheres. Na verdade, além dos dois personagens principais, Li’l Bit e Uncle Peck, todos os outros papéis são representados por essas instâncias corais, explicitamente descritas no texto como “vozes do coro grego”. Se considerarmos que, na tradição grega, o coro era a representação da voz da coletividade, ao apresentar os personagens – mãe, ²Çĝʁź²ʁ²Çĝʦ´À¾ÀÇÀ˶ĵÀ´ÀÃÀ¸Ã¶¸Àʁ²Æ½²À¸¶½źÁºȱ´²¶ÄIJÄpersonas, a elas concedendo representatividade coletiva. Ora, sendo essas personas-coros precisamente ²Âƶ½²ÄÂƶ´Ãº²¾²Á¶Ã¾ºÄĺǺµ²µ¶Âƶ¿²Åò¾²²ÆÅÀú˲²Á¶µÀȱ½º²ʁȱ´²´½²ÃÀÂƶÀÄ seus comportamentos e valores representam as instituições, parodizando não apenas o teatro grego, mas a vida social contemporânea e os “pequenos” crimes que se acumulam na rotina cotidiana: as agressões verbais, o bullying, os abusos de poder patriarcal, os excessos (e as carências) da sexualidade, tudo isso atravessado pela hipocrisia, pelo silêncio dos que consentem com os abusos, que seguem permitidos aos olhos da sociedade. Nesse sentido, as personas-coros na peça são, ao mesmo tempo, aqueles que perpetuam regras de comportamento socialmente aceitas, ainda que perversas, casos ¶¾Âƶȱ´²´½²Ã²²´Æ½ÅÆòµ²²Á²Ãí¿´º²ʁ¾²ºÄµÀÂƶƾ²ìź´²ÀƾÀò½·²¾º½º²ÃÀÆ social que pudesse salvaguardar o amadurecimento da menina e de sua sexualidade. Essas personas-coros marcam, portanto, parodicamente, na mesquinhez dos gestos e falas do cotidiano, a violência encoberta e a hipocrisia dos modos de vida contemporâneaem suas diversas instituições. Quando o coro grego feminino (como ¾Ó¶ʰ ¶¿Äº¿² ² ºʓ½ ºÅ ÄÀ³Ã¶ ´À¾À ʖ³¶³¶Ã ÄÀ´º²½¾¶¿Å¶ʗ ʯÁʇ ЀЇʰʁ ö´À¾¶¿µ²ʃ “A lady never gets sloppy—she may, however, get tipsy and a little gay”3ʯÁʇЀЇʰʇÀ¸À²µº²¿Å¶ʁ parodiando o célebre início do texto da Declaração de Independência dos Estados Unidos, aduz: “When in the course of human events it becomes necessary, go to a corner ÄŲ½½²¿µº¿Ä¶ÃÅŹ¶º¿µ¶É²¿µ¾ºµµ½¶ȱ¿¸¶ÃµÀÈ¿Ź¶ŹÃÀ²Å²½¾ÀÄÅÅÀŹ¶¶Áº¸½ÀÅźÄʇ Divulge your stomach contents by such persuasion, and then wait a few moments before rejoining your beau waiting for you at the table”4 (p. 33). A comicidade irônica da cena reside nos contrastes: induzida a beber pelo tio, que tenta seduzi-la em um restaurante, a jovem adolescente rememora em cena essas recomendações vazias da mãe sobre como beber socialmente e se portar como uma lady. Note- se,no conselho ¾²½²µÊ¿Æ¿´²ȱ´²³í³²µ²ʦ¶½²ÁÀµ¶ʁ¿À¶¿Å²¿ÅÀʁȱ´²ÃƾÁÀÆ´ÀÅÀ¿Å²¶ƾÁÀÆÂƺ¿¹À²½¶¸Ã¶ʇ Quando, no decorrer dos eventos humanos, for necessário, vá para o último banheiro e insira o seu dedo indicador e médio na garganta, até a epiglote. Esvazie o conteúdo do seu estômago com essa persuasão, e aguarde alguns minutos antes de reunir-se com o seu beau esperando à mesa 3 Ђ 23 da mãe, o uso do termo “beau” do francês, como uma fala engrandecida e trabalhada de uma classe média com ares de elevação social, tentativa de criar uma aura rebuscada típica dos manuais de comportamento americanos para as “boas moças”. A fala estilizada contrasta com a hipersexualização e a vulgaridade do comportamento e do discurso cotidiano da família, por exemplo, da avó, alertada para não mostrar os seios ̾¶Ä²ʯÁʇϿЇʰʂ²Ä·²½²ÄµÀ²ÇĝʁÂƶº¿ÅÃÀµÆ˲Ŷ¾Íź´²µÀĶÉÀ¶¾ÂƲ½ÂƶÃÀ´²ÄºÓÀʁ ²Å쾶ľÀ¶¿ÂƲ¿ÅÀÃÀƳ²ƾ³ºÄ´ÀºÅÀµ²´À˺¿¹²ʯÁʇЂЂʰʇÄĺ¾ʁ¶¿ÂƲ¿ÅÀʁÁÀÃƾ lado, Li’l Bit recebe instruções sobre a importância do bom comportamento feminino ʯÁ½ÍÄź´Àʁ ÄÆÁ¶Ãȱ´º²½ʁ ²Ãźȱ´ºÀÄÀʰʁ ÁÀà ÀÆÅÃÀ ½²µÀʁ ¶ÄIJÄ ö´À¾¶¿µ²èĢ¶Ä µÀ ´ÀÃÀʉ¾Ó¶ contrastam com o aspecto grotesco dos conselhos do coro-avô: “What does she need a college degree for? She’s got all the credentials she’ll need on her chest” (p. 21)5. Nas discussões sobre as relações entre casais, considerando-se a sexualidade do avô – Big Papa – como o “patriarca” da família, os dois coros femininos, (mãe e avó) traçam em suas falas imagens estereotipadas da sexualidade masculina como brutal e animalizada: “(As mother) It’s true. Men are like children. Just like little boys. (As Grandmother): Men are bulls! Big Bulls! (As Mother) Vulgar! (As Grandmother) Primitive! Hot!” ЄʯÁʇЂЄʰʇ O discurso, portanto, ressalta (e naturaliza) a animalização latente na sexualiµ²µ¶µÀ¹À¾¶¾ʁ»ÆÄźȱ´²¿µÀ¶ÄĶ´À¾ÁÀÃŲ¾¶¿ÅÀĶÉƲ½ºË²µÀµÀľ¶Ä¾ÀÄʁ¶¾³Àò defendendo a necessidade de que as mulheres lutem por serem ouvidas: “(As Mother) Just one thing a married woman needs to know how to use – the rolling pin or the broom”7 ʯÁʇЂЃʰʇ¾Ó¶µ¶ºʓ½ºÅ´¹¶¸²²ĶöÄĶ¿ÅºÃµ²·²½Å²µ¶²ÁÀºÀ¶ÄÅÃÆÅÆò½µ² família com respeito à sua própria relação com o ex-marido, o pai ausente da protagonista: “You could have helped me! You could have told me something about the facts of life!”8 (p. 52). Contudo, os abusos verbais no seio da vida familiar persistem, gravitando em torno da sexualidade e se tornando cada vez mais normatizados. ção com a qual a audiência é obrigada a lidar. ¾³Àò·²è²Á²ÃŶµ¶ÄĶ¿ł´½¶À·²¾º½º²Ãʁȱ´²´½²Ã²²·²½Å²µ¶º¿Åº¾ºµ²µ¶µ¶ºʓ½ ºÅ´À¾ÀÁÃĜÁúÀ´ÀÃÁÀʁ²Äĺ¾´À¾Àȱ´²Á²Å¶¿Å¶ÄƲº¿¸¶¿Æºµ²µ¶¶¾ö½²èÓÀ²¾ÆºÅÀ do que é dito em casa, sua ignorância em relação ao que ocorria ao seu redor. A voz narrativa na peça, que faz comentários à medida que a menina vai criando consciência da seriedade dos eventos que a cercam, dá testemunho do seu drama: “Even with my family background, I was sixteen or so before I realized that pedophilia did not mean people who loved to bicycle...”10 ʯÁʇϿІʰʇÂƶÄÅÓÀµ²´À¿Ä´ºí¿´º²ʯÀƵ²·²½Å²µ¶´Ànhecimento) da personagem acerca de sua própria condição de abusada sexualmente ȱ´²¾¶Å²·Àú˲µ²¿²´¶¿²öÁöĶ¿Å²ÅºÇ²µ²Áú¾¶ºÃ²º¿Ç¶Äźµ²µÀźÀʉÁ¶µĜȱ½ÀÄÀ³Ã¶² sobrinha, na qual o coro tem papel crucial, sendo esta a única cena na qual o coro representa a voz de Li’l Bit. A criança, em sua inocência, restringe-se ao silêncio na cena. Note-se, no entanto, que a própria tia sabia do comportamento do esposo e de sua fascinação pela sobrinha, de maneira que é sob o signo do consentimento familiar que ocorre o abuso sexual. A hipocrisia social revela-se na fala da esposa de Uncle Peck, após anos de abuso: “I’m no fool. I know what’s going on” 11 (p. 78). Aunt Mary, no entanto,desvia para Lil’ Bit a responsabilidade pelo assédio, a menina teria seduzido, manipulado o tio:“And I want to say this about my niece. She’s a sly one, that À¿¶ºÄʇ¹¶¼¿ÀÈĶɲ´Å½Êȹ²ÅŶʓĵÀº¿¸ʂŶʓÄÅȺÄŶµ¶´¼²ÃÀÆ¿µ¹¶Ã½ºÅŽ¶ȱ¿¸¶Ã and thinks it’s all a big secret (...) I’m a very patient woman. But I’d like my husband back” 12 (p. 78). Nas instruções cênicas, Vogel sugere a postura da personagem na performance: “Stage directions: (Female Greek Chorus checks her appearance, and with dignity comes to the front of the stage and sits down to talk to the audience)” 13 (p. 78). Percebam a expressão “with dignity”, já enfatizando que, mesmo na situação de conȷºÅÀº¿Å¶Ã¿Àʁ·²¾º½º²Ãʁ¶½²ĶÁÀÃŲ´À¾Àƾ²ʖ³À²¶ÄÁÀIJʗʁĶ¾´À¿·ÃÀ¿Å²ÃÀ¾²ÃºµÀʇ É crucial perceber que a crítica às ações do adulto da relação, ou até mesmo aos outros ²³ÆÄÀĵÀ¾²ÃºµÀʁì²ÆĶ¿Å¶ʇÀÂƶµºËöÄÁ¶ºÅÀÌÁ¶µÀȱ½º²ʁÀ¸¶½µºËÂƶ·²Ëº²Á²ÃŶ da sua intenção como dramaturga denunciar “a network of people enabling them”14 (Collins-Hughes, 2020). ¾ƾ²µ²Ä´¶¿²Ä¾²Ã´²¿Å¶Äµ²Åò¾²ʁʖϿЇЄЇʇA typical family dinner”9 , o tema, mais uma vez, é a sexualidade de Li’l Bit, assediada à mesa por piadas e comentários derrogatórios, vergonhosos, humilhantes, que costumam fazer todos os membros, exceto Uncle Peck. Isso o diferencia dos demais aos olhos de Li’l Bit. Assim, à medida que a família constantemente faz bullying, a presença digna e respeitável do tio se fortalece como o único familiar que a respeita, apoia e escuta de maneira séria, carinhosa, honesta. Essa dualidade do personagem como apoiador e abusador cria uma contradi- E como nada é simples nessa trama, que visa representar um drama no qual as Á¶ÄÄÀ²Äȱ¸Æò¾ʁ²À¾¶Ä¾ÀŶ¾ÁÀʁ´À¾À´Æ½Á²µ²Ä¶Çăź¾²Ä¶¾ö½²èÓÀ²ƾĺÄŶ¾² social degradado, note-se, a favor da compassividade de Aunt Mary perante o esposo, sua consciência de que Uncle Peck, marido gentil, dedicado, trabalhador, é, ele próprio, uma vítima: Para que ela precisa de um diploma de faculdade? Ela tem todas as credenciais que precisa nos peitos. (Como mãe) É verdade. Homens são como crianças. Como meninos pequenos. (Como avó): Homens são touros! Grandes touros! (Como mãe) Vulgares! (Como avó) Primitivos! Quentes! Ѕ (Como mãe) Só uma coisa que uma mulher casada precisa saber como usar – o rolo de pão ou a vassoura. Vocês poderiam ter me ajudado! Poderiam ter me ensinado algo sobre como é a vida! Ї ϿЇЄЇʇ¾ÅăÁº´À»²¿Å²Ãµ¶·²¾ă½º² ϿϾ 5 6 24 I know I’m lucky. The man works from dawn to dusk. And ¶Ä¾À´À¾À¾¶Æ¹ºÄÅĜú´À·²¾º½º²Ãʁ¶Æź¿¹²ϿЄ²¿Àľ²ºÄÀƾ¶¿ÀÄÂƲ¿µÀ¾¶µ¶º´À¿Å²ÂƶÁ¶µÀȱ½º²¿ÓÀĺ¸¿ºȱcava alguém que adorava pedalar na bicicleta... ϿϿ Eu não sou boba. Eu sei o que está acontecendo. ϿЀ E eu quero dizer isto sobre a minha sobrinha. Ela é muito esperta, aquela menina. Ela sabe exatamente o que ela está fazendo; ela conseguiu enrolar Peck no dedinho dela e pensa que é tudo um grande segredo (...) Eu sou uma mulher muito paciente. Mas eu quero meu marido de volta. ϿЁ Instruções cênicas: (Coro feminino confere a aparência, e com dignidade vem para a frente do placo e se senta para falar com os espectadores). 25 the overtime he does every year – my poor sister. She sits every Christmas when I come to dinner with a new stole, or diamonds, or tickets to Bermuda. I know he has troubles. And we don’t talk about them. I wonder, sometimes, what happened to him during the war. The men who fought World War II didn’t have “rap sessions” to talk about their feelings. Men in his generation were expected to be quiet about it and get on with their livesʯ ʁϿЇЇІʁÁʇЅЅʉЅІʰϿЃ É assim que Uncle Peck não se revela um vilão na trama, que nada tem de ¾²¿ºÂƶăÄŲʇźÀÁ¶µĜȱ½ÀìƾǶŶò¿Àµ¶¸Æ¶Ãòʁ¶¿Çº²µÀÁ¶½ÀÄŲµÀÁ²Ã²½ÆŲà ¶¾ƾµÀÄÁºÀöÄ´¶¿ÍúÀĵ¶ÄĶ´À¿ȷºÅÀ¾Æ¿µº²½ʦÀŶ²ÅÃÀµÀ²´ăȱ´ÀʁµÀÂƲ½ötornou derrotado pelos próprios traumas dos quais padece, o alcoolismo e o Estresse Pós-Traumático, obrigado a seguir a vida no seio familiar e social, sem qualquer amparo psicológico, como se os anos em contato com a morte pudessem ser simplesmente relevados, esquecidos, superados. Note-se, aqui, a crítica severa de Vogel à cultura bélica, aos efeitos que dela derivam e que incidem dramaticamente sobre a sociedade norte-americana, repercutindo traumas em novos traumas. Ainda a favor do sympathos que recai sobre Uncle Peck, não se pode esquecer seu desvelo, seu carinho extremado para com Li’l Bit, sendo frequentes os gestos do personagem nos quais as perversas táticas de seduzir se confundem com um profundoe doentio amor. Nas cenas de sedução, ele constantemente aguarda o consentimento dela: “nothing is going to happen between us until you want it to. Do you know that?” 16 ºʓ½ºÅöÄÁÀ¿µ¶²ȱþ²ÅºÇ²¾¶¿Å¶ʁ¶¶½¶¾²ºÄƾ²Ƕ˺¿ÄºÄŶʃ“Nothing is going to happen until you want it to. Do you want something to happen?” “I don’t know” 17 (p. 38, grifos nossos). Claro que, considerando-se a idade da menina e a maneira como Li’l Bit é fragilizada e desempoderada como sujeito, o cuidado de Uncle Peck em assegurar que haja consentimento dela para que possa se aproximar do seu corpo, embora seja uma estratégia perversa, no mínimo, dúbia, que indicia, ainda que de forma paciente e terna, seu desejo de realmente consumar o ato sexual assim que este for consentido, contrasta, no entanto, radicalmente, com os discursos de um entorno violento, agressivo. Entre um sedutor abusivo, mas afetuoso, terno, gentil, respeitoso, e uma família agressiva, disfuncional e abusiva, Li’l Bit é a grande vítima, absolutamente carente dos apoios institucionais necessários para protegê-la, de todos e de si mesma. Äö½²èĢ¶Ä¶ÃÀź˲µ²Ä¶¿ÅöÀźÀ¶²ÄÀ³Ãº¿¹²Á¶ÃµÆò¾ÁÀò¿ÀIJȱÀʇ¿´½¶ ¶´¼Á²Ã¶´¶ȱɲÃʉĶ¶¾ºʓ½ºÅʁÂƶDzºĶ·²Ë¶¿µÀʁ¿À´ÀÃöõÀŶ¾ÁÀ¶µ²Ä²Æ½²Äµ¶ ϿЂ Uma rede de pessoas que permitiam isso. CORO GREGO DE MULHERES (como Tia Mary): Eu sei que tenho sorte. O homem trabalha dia e noite. E as horas ¶ÉÅòÄÂƶ¶½¶·²ËÅÀµÀ²¿Àʦ¾º¿¹²ÁÀ³Ã¶ºÃ¾Óʇ½²ȱ´²Ķ¿Å²µ²²´²µ²²Å²½ʁ¶¿ÂƲ¿ÅÀ¶ÆǶ¿¹À»²¿Å²Ã´À¾ƾ²¿ÀDz estola, ou diamantes, ou com passagens para Bermuda. Eu sei que ele tem problemas. E não falamos sobre eles. Eu me pergunto, algumas vezes, o que aconteceu com ele durante a guerra. Os homens que lutaram na guerra não tinham sessões de análise para falarem de seus sentimentos. ÄÁ¶Ã²Ç²ʉĶµÀĹÀ¾¶¿Äµ¶ÄƲ¸¶Ã²èÓÀÂƶȱ´²ÄĶ¾Âƺ¶ÅÀĶ´À¿Åº¿Æ²ÄĶ¾²ÅÀ´²ÃÄƲÄǺµ²Äʇ ϿЄ Nada vai acontecer entre nós até que você queira. Você sabe disso? ϿЅ Nada vai acontecer até que você queira. Você quer que algo aconteça? ϿЃ 26 direção, menina-moça, moça feita, enquanto ele aguarda pacientemente que a sobri¿¹²´À¾Á½¶Å¶µ¶ËÀºÅÀ²¿ÀÄÁ²Ã²ÂƶÁÀÄIJȱ¿²½¾¶¿Å¶´À¿Äƾ²ÃÀ²ÅÀĶÉƲ½ÅÓÀ²¿Äº²µÀ¶²µº²µÀʇ¶ÄIJ¶ÄÁ¶Ã²Á¶½²¾²ºÀúµ²µ¶µÀĶÆÀ³»¶ÅÀµ¶µ¶Ä¶»Àʁ²ö½²èÓÀÁ¶µĜȱ½² Ķ´À¿´Ã¶ÅºË²Ç²¶¾ȷ¶ÃŶÄʁ´²Ãă´º²ÄʁĶµÆèĢ¶ÄǶó²ºÄʁ²½ºÍÄʁ¶ÉÅö¾²¾¶¿Å¶ÁÀìź´²Äʇ lirismo das falas de Uncle Peck sendo outro ingrediente que permite a romantização de sua perversão: “I will tell you, you can keep all the cathedrals of Europe. Just give me a second with these—these celestial orbs—(Peck bowls his head as if praying. But he is kissing her nipple. Li’l Bit, eyes still closed, rears back her head on the leather Buick car seat)”18 (p. 12-13). E se a poesia conduz a percepção do caráter de Uncle Peck aos domínios da elevação estética, seu voyeurismo¶ÄƲȱɲèÓÀÁ¶½À²ÆÅÀ¾ĜǶ½Á¶Ã¾ºÅ¶¾ ½¶ºÅÆòÄÁÀÃǶÃŶ¿Å¶ÄŶĜú´²Ä¾²ºÄ²·¶ºÅ²Ä̵¶¿ł¿´º²µ¶Ķƾ²´¹ºÄ¾Àʁöȷ¶ÉÀµ² sociedade na qual está inserido. Para melhor captarmos as implicações do olhar masculino de Uncle Peck sobre Li’l Bit na peça, vale a pena conferir o conceito de scopophiliaʁµ¶ȱ¿ºµÀÁÀòÆòƽvey no texto “Visual Pleasure and Narrative Cinema”ʯϿЇЅЃʰʁÂƶÅòËöȷ¶ÉĢ¶ÄÄÀ³Ã¶À ·¶¾º¿ºÄ¾À¶À´º¿¶¾²ʃÄ´ÀÁÀÁ¹º½º²ÁÀµ¶Ãº²Ķõ¶ȱ¿ºµÀ´À¾ÀÀµ¶Ä¶»ÀÁÀÃÀ³Ä¶ÃDzÃʁÀÆ o prazer estético de olhar algo (p. 835). A mirada masculina (“male gaze”ʰ쵶ȱ¿ºµ² ÁÀÃƽǶÊ´À¾À¶½¶¾¶¿ÅÀµ¶ȱ¿ºµÀõÀ²Á²Ã²ÅÀ´º¿¶¾²ÅÀ¸ÃÍȱ´ÀʁÁÀ¿µÀÀ¶ÄÁ¶´Å²µÀà na posição de sujeito masculino que observa (e domina) a mulher na tela, ao mesmo Ŷ¾ÁÀÂƶĶºµ¶¿Åºȱ´²´À¾ÀÁÃÀŲ¸À¿ºÄŲʯ¿À´º¿¶¾²µÀIJ¿ÀÄЃϾµ¶ À½½ÊÈÀÀµʁ ainda branco e homem). As mulheres do cinema dos anos 50 representavam o “to-be-looked-at-ness” 19, e a posição da câmera sempre se posicionava como “bearer of the look” ʯÁʇ ІЁЅʰʇ20 Em How I Learned to Drive, há uma cena em que Uncle Peck convida Li’l Bit a uma sessão de fotos, ele fazendo-se de fotógrafo. Essa cena do “Photo ShootʗÅòËÅÀµ²²µº¿Î¾º´²µ²º¿µłÄÅú²´º¿¶¾²ÅÀ¸ÃÍȱ´²¶µ¶öǺÄŲÄÁÀÿĝʁƾ subtexto constante na obra de Paula Vogel. Escondidos no porão de Uncle Peck, com um cenáriopara o qual a dramaturga sugere sejam realizadas no background projeções de imagens de modelos da Playboy, Peck, posicionado por trás das câmeras, se põe a ·ÀÅÀ¸Ã²·²Ã²ÄÀ³Ãº¿¹²ʁ¶¿ÅÓÀ´À¾ϿЁ²¿ÀÄʃ“Keep moving. Try arching your back on the stool, hands behind you, and throw your head back”ʯÁʇЅЁʰʇЀϿ Elogiando o corpo da ¾¶¿º¿²ʁÂƶÀ³Ä¶ÃDzÁÀÃÅÃÍĵ²Ä½¶¿Å¶Äʁ¿´½¶¶´¼öºÅ¶Ã²²À³»¶Åºȱ´²èÓÀµ²º¾²¸¶¾ de Li’l Bit, e tal era sua empolgação com a sessão de fotos, que já imagina poder dar continuidade a essa atividade. Em sua mente doentia, sempre tramando a captura do corpo de Li’l Bit nas armadilhas do seu olhar, a continuarem as sessões, dali a cinco ²¿ÀÄŶú²¾ÁÀÃÅ·Ĝ½ºÀÄǶõ²µ¶ºÃ²¾¶¿Å¶ÁÃÀȱÄĺÀ¿²ºÄʇ¶Ä¾À¶¾ÄƲº¿¸¶¿Æºµ²µ¶ʁ² menina implora para que suas fotos não sejam divulgadas. A resposta de Peck diz muito do seu desejo de apoderamento do corpo da sobrinha: “I swear to you. No one will. I’ll treasure this—that you are doing it only for me” 22 ʯÁʇЅЄʰʇ ϿІ ʖʯʇʇʇʰÁÀµ¶¾ȱ´²Ã´À¾ÅÀµ²Ä²Ä´²Å¶µÃ²ºÄµ²ÆÃÀÁ²ʇ¶¶¾ʉ¾¶ÄÀ¾¶¿Å¶ƾĶ¸Æ¿µÀ´À¾¶ÄŶÄʦ¶ÄŶÄÀó¶Ä´¶½¶Ätiais. (Peck baixa sua cabeça como se rezasse. Mas ele está beijando seu mamilo. Li’l Bit, olhos ainda fechados, recosta a cabeça no assento de couro do carro...) ϿЇ Capacidade de ser olhada 20 ÀÃŲµÀÃʯÀƵÀ¿Àʰµ²ǺÄÓÀʥŶÉÅÀʁÁƳ½º´²µÀ¶¾ϿЇЅЃʁ¿ÓÀµºÄ´Æź²²º¿µ²ÀÆÅòÄŶ¾Íź´²Äº¾Á½º´²µ²Ä¿²ÄÂƶÄtões identitárias, como raça, heteronormatividade, etnia, etc., uma revisão que a própria Mulvey realizou em meados dos anos 2000. ЀϿ Continue se movendo. Tente arquear as costas no tamborete, com as mãos nas costas, e jogue a cabeça para trás. 22 Eu juro. Ninguém vai ver. Eu guardarei como um tesouro—que você está fazendo só para mim. 23 ¶Ãº²³À¾ŶÃĽºµ¶Äµ¶·ÀÅÀ¸Ã²ȱ²Ä¶ÃĜź´²Äµ¶¾Æ½¹¶Ã¶Ä¶µ¶´²ÃÃÀÄ 27 Nas instruções dadas por Vogel para a montagem dessa cena acima descrita: “(…) it would be nice to have slides of erotic photographs of women and cars” 23 ʯÁʇЃЂʰʇ A força das imagens projetadas, além de remeterem ao gosto da arte pós-moµ¶Ã¿²Á¶½ÀľÀIJº´Àĵ¶ĺ¾Æ½²´ÃÀÄʁÄÓÀƾ²ö·¶Ãí¿´º²ÌȱɲèÓÀµ¶¿´½¶¶´¼¿À automóvel e nos equipamentos eletrônicos como ferramentas de interação com a sexualidade e o poder masculino sobre o corpo feminino. Li’l Bit ressalta a relação direta do fetiche masculino entre carro e corpo, referindo-se à paixão dos garotos pelos automóveis em “The Initiation into a Boy’s First Love”,24 desejo que surge “long after a mother’s tits, but before a woman’s breasts”25 (54). Indagado por Li’l Bit sobre por ÂƶÀ²ÆÅÀ¾ĜǶ½²Á²Ã¶´¶Á¶ÃÄÀ¿ºȱ´²µÀ´À¾ÁÃÀ¿À¾¶·¶¾º¿º¿À¶¾º¿¸½íÄʁ¿´½¶¶´¼ responde: “Good question. It doesn’t have to be a ‘she’- but when you close your eyes and think of someone who responds to your touch – someone who performs just for you and gives you what you ask for – I guess I always see a ‘she’”25 (59). Note-se que, em How I Learned to Drive, a própria criação de Vogel nos põe em uma posição desconfortável, ao criar uma linha tênue entre o desejo escopofílico de Uncle Peck e a perspectiva assumida pela recepção da peça, já que nós também, enÂƲ¿ÅÀ½¶ºÅÀöÄʤ¶ÄÁ¶´Å²µÀöÄʁÀ³Ä¶ÃDz¾Àĺʓ½ºÅʁŶÄŶ¾Æ¿¹²¾ÀÄÅÀµÀÄÀÄ²Ãź·ă´ºÀÄ usados por Uncle Peck para a sua sedução. A pensarmos, sob perspectivas da crítica feminista acima referida, acerca da brutalidade do abuso, faz muito sentido dramático perguntarmo-nos: será que conseguimos resistir à apropriação do corpo da menina? À¾ÀÀ½¹²¾ÀÄʎƶ¾À³Ä¶ÃDz¾ÀÄʎÀ¾ÀöĺÄź¾ÀIJƾ²´ÀÀÁŲèÓÀÄÆÁ¶Ãȱ´º²½µ² sexualidade de Li’l Bit? O discurso falocêntrico e patriarcal é tão constante na obra, que o desejo feminino permanece praticamente ausente do discurso. De fato, se considerarmos a temática do trauma e suas implicações para o corÁÀʁÀµºÄ´ÆÃÄÀµ¶ºʓ½ºÅʁ¿Àȱ¾µ²Á¶è²ʁ²Ãö¾²Å²²¿¶¸²èÓÀµ¶ÂƲ½ÂƶÃÁÀÄĺ³º½ºµ²µ¶ µ¶µ¶Ä¶»ÀʁÁÀÃÂƶÀÅòƾ²Á²Ã¶´¶´¶º·²ÃÀ´ÀÃÁÀ¶²¾¶¿Å¶µ²¾¶¿º¿²ʁÂƶµ¶ȱ¿¶Àµº² da sua primeira lição de direção como “(...) the last day I lived in my body” 26 ʯϿϾЂʰʇ A desconexão com o próprio corpo, como uma maneira pós-traumática de expelir a agressão, também é visível na cena do baile da escola, onde, de maneira caricaturesca, Li’l Bit descreve os seios como mecanismos (outra vez a máquina) que bipam e atraem os homens. ʖÀ¾¶Åº¾¶Ä ·¶¶½½º¼¶Ź¶Ä¶²½º¶¿½º·¶·Àô¶ÄʁŹ¶Ä¶ÅÈÀ¾ÀÆ¿µÄÀ·ȷ¶Ä¹ have grafted themselves onto my chest, and they’re using me until they can ‘propagate’ and take over the world”27 ʯЄЅʰʇ Íƾ²·²½Å²µ¶´À¿¶ÉÓÀ´À¾²Á²ÃŶµÀ´ÀÃÁÀÂƶ·Àº explorada – pelo tio, pelos colegas da escola. Não surpreende que ela se sinta tão deslocada, tão desajeitada diante da câmera. Como sentir esse corpo tão explorado, abusado por mãos alheias? Como se perceber como mulher e se recompor em sua inteireza? Seria importante evocarmos aqui a teorização sobre trauma formulada por ЀЂ Muito depois dos peitos da mãe, mas antes dos seios de uma mulher O último dia em que vivi no meu corpo. 25 Boa pergunta. Não tem que ser “ela” – mas quando eu fecho meus olhos e penso em alguém que responde ao meu toque – alguém que atua somente para você e te dá o que você pede – eu sempre a vejo como “ela”. 26 O último dia em que vivi no meu corpo. ЀЅ Às vezes eu sinto que essas forças alienígenas, estes dois montes de carne se enxertaram no meu peito, e agora estão me usando para se “propagar” e dominar o mundo. 26 28 Diana Taylor, em “Disappearing Acts” ʯϿЇЇЅʰʁŶÉÅÀ¿ÀÂƲ½²²ÆÅÀòµºÄ´ÆŶ²¿Àþ²lização de espetáculos públicos de violência. Em esferas públicas de aparente normalidade, performances de violência costumam cegar a população, gerando aquilo que Diana Taylor chama de “percepticídio”: “To see, without being able to do, disempowers absolutely. But seeing, without even admitting that one is seeing, further turns the violence of oneself. Percepticide blinds, maims, kills through the senses.” (p. 123 -124) Pode-se dizer que a obra de Vogel se lança contra o percepticídio. É evidente nos relatos dos impactos da peça sobre o público que a recepção não se deixa cegar pela violência que testemunha em cena: rememorando os efeitos de uma performance recente dessa obra de Paula Vogel, levada à cena em 2020, portanto, mais de vinte anos µ¶ÁÀºÄµ¶ÄƲ¶ÄÅöº²ʁ²¸ÀòÄÀ³²µºÃ¶èÓÀµ¶²Ã¼ÃÀ¼²Èʁ´À¾²ÃÊʉÀƺĶ²Ã¼¶Ã e David Morse, respectivamente, nos papéis de Li’l Bit e Uncle Peck, (NYTimes), os atores se dizem surpreendidos com o impacto da encenação sobre a audiência com respeito ao que Nancy Fraser chama de conexão do feminismo com a justiça social ʯЀϾϿЁʰʃ“The numbers of people who couldn’t leave after the show because they needed company — people who would just be in tears out there.” (COLLINS-HUGHES, 2020). Sabe-se que a armadilha da estetização da violência não existe somente na ´Æ½ÅÆòǺÄƲ½µ²ÄöǺÄŲÄÁÀÿÀ¸ÃÍȱ´²ÄÀÆ¿À²Á¶½ÀÌöÅĜú´²¾²Ä´Æ½º¿²µ²º¿µłÄÅú² automobilística, mencionados anteriormente. O percepticídio também é claro na cultura musical e não raramente produções da cultura pop sensualizam e erotizam precocemente as adolescentes. Para a cena do photo shot acima analisada, entrecortando as imagens de mulheres nuas, Paula Vogel não esquece de indicar uma seleção musical a ser usada nas montagens da peça, e essas músicas servem de backdrop para o corpo de Li’l Bit, que vai se movendo para agradar e seduzir a câmera, comandada pelo cobiçoso olhar de Uncle Peck: “For a thirteen year old, you have a body a twenty-year-old woman would die for” (72). 30 Quando a menina se revela tímida demais para se deixar fotografar, o tio insiste: “Pretend you’re in your room all alone on a Friday night with your mirror – and the music feels good—just move for me, Li’l Bit—” (p.72). Nesse momento, a música que Vogel sugere, no estilo Roy Orbinson, se quer “seductive with a beat” (p. 69): “anything you want, you got it!” 33 Mexer o corpo ao som da música para a câmera do tio é precisamente realizar o desejo escopofílico, voyeurístico, entregar-se à volúpia de Uncle Peck por possuir a sexualidade da sobrinha. E o fundo musical da peça, exclusivamente composto por “hits românticos”, normaliza um comportamento inadequado de atração sexual e beleza feminina apoiado pela indústria pop. Mencionamos, em seção precedente deste texto, que a ambiguidade se apresenta como marca por excelência da arte pós-moderna. Nesse sentido, caberia realçar Ver, sem ser capaz de atuar, desempodera absolutamente. Mas ver, sem nem admitir que está vendo, transforma ainda mais a violência em si mesmo. Percepticídio cega, mutila, mata através dos sentidos. ЀЇ ÂƲ¿Åºµ²µ¶µ¶Á¶ÄÄÀ²ÄÂƶ¿ÓÀ´À¿Ä¶¸Æº²¾µ¶ºÉ²ÃÀŶ²ÅÃÀµ¶ÁÀºÄµÀĹÀÈÁÀÃÂƶÁö´ºÄ²Ç²¾µ¶´À¾Á²¿¹º²ʦÁ¶Äsoas que continuariam chorando lá fora. 30 Para uma menina de treze anos, você tem um corpo de matar de inveja qualquer mulher de vinte. ЁϿ Finja que você está sozinha no seu quarto uma sexta à noite com seu espelho – e a música é boa – mexa-se para mim, Li’l Bit -32 Sedutora com ritmo. 33 Tudo que você quiser, vai ter! 28 29 ²º¿µ²¸²èÓÀÄÀ³Ã¶´À¾ÀÀµÃ²¾²µ¶²Æ½²À¸¶½ʁÁ½¶¿Àµ¶´¶¿²Äµ¶ĶµÆèÓÀÁ¶µĜȱ½²¶ permeado de abusos verbais e sexuais, poderia não exercer sobre o público o fascínio que o sexo e a violência costumam exercer. Como conseguiria a peça subverter a complacência, o consentimento social e o gozo da recepção em relação a esses fenômenos tão explorados pela mídia, produzindo, ao contrário, reações de recusa e de crítica ao percepticídio? Embora seja sempre muito arriscado e duvidoso lançar hipóteses sobre a recepção das artes, a dramaturgia trágica carrega consigo, na estrutura profunda do gênero, um elemento dramático altamente subversivo e que, nas tramas, costuma indicar, orientar os caminhos emocionais a serem seguidos pela recepção: o pathos. Outra característica da dramaturgia trágica que não pode ser esquecida é a dignidade dos personagens trágicos. Muito já se debateu sobre essa dignidade característica do teatro trágico. E ainda que a tradição dramática tenha se perpetuado através de formas diversas, atualizadas em relação aos mais distintos fatores implicados na série histórica, essa elevação estética, mais do que moral, associada às personas trágicas, ainda assegura que o sofrimento humano, suas dores, seus traumas, sejam percebidos com seriedade. Assim, ainda que a parodização recubra inúmeros aspectos da obra de Vogel aqui analisada, a conjunção de fatores que atormentam Uncle Peck – os traumas de guerra, o alcoolismo, o próprio distúrbio sexual que o faz abusar por anos de Li’l Bit, µºÅ²ÃÓÀÀÄÃƾÀĵ¶ÄƲÁÃĜÁú²µ¶Ä¸Ã²è²ʇÀº¿Çìĵ¶ǶÃȱ¿²½¾¶¿Å¶ö²½ºË²µÀĶÆ desejo perverso, de possuir sexualmente o corpo de Li’l Bit quando esta completasse dezoito anos, Peck se confronta com o veemente “não” da sobrinha. Tendo amadureciµÀ¶²Áö¿µºµÀÂƶƾÁ¶µĜȱ½À¿ÓÀì²½¸Æì¾Âƶ¸ÀÄŲµ¶³º´º´½¶Å²ʁºʓ½ºÅÁĢ¶ƾȱ¾ µ¶ȱ¿ºÅºÇÀ¿ÀÄÀ¿¹ÀµÀźÀʁÂƶĶ¶¿Åö¸²µ¶ǶË̳¶³ºµ²ʁµ¶ºÉ²¿µÀʉĶ¾ÀÃöòÀÄÁÀÆcos, de gole em gole. A comoção causada por esse pathos trágico é provocada pela próÁú²ºʓ½ºÅʁÂƶ¿²ÃòÀµ¶ȱ¿¹²¾¶¿ÅÀµ¶¶´¼ʃ“it took my uncle seven years to drink ¹º¾Ä¶½·ÅÀµ¶²Å¹ʇ ºÃÄŹ¶½ÀÄŹºÄ»À³ʁŹ¶¿¹ºÄȺ·¶ʁ²¿µȱ¿²½½Ê¹ºÄµÃºÇ¶ÃʓĽº´¶¿Ä¶ʗ(p. ЇІʰЁЂ. Aqui se manifesta o sympathos, o sofrer com o personagem que sofre, condição inescapável ao teatro trágico. Em um gesto de empatia, Li’l Bit ressalta a intensidade da conexão entre os dois e, em que pese o fato de ter sido a relação entre eles desde cedo abusiva, revela ao público o que se esconde sob a perversão do tio: “Who did it to you, Uncle Peck? How old were you? Were you eleven?”(p. 99)35. Embora nada redima Uncle Peck da responsabilidade pelas lições sexuais, a visão empática criada através do olhar bondoso e compassivo de Li’l Bit guia a recepção, ao mesmo tempo, em direção ao pathos trágico, e à percepção dos traumas resultantes da vida social, dentre eles, o seu próprio trauma, vivido e revivido nas repetidas lições de direção e reencenado muitas vezes diante dos olhos dos espectadores, convidados a experimentar a vocação do teatro para a reencenação dos traumas, dos tabus, do sofrimento humano. Como conclui Taylor, “Trauma expresses itself viscerally, through bodily symptoms, reenactments, and repeats”ʯЀϾϾЄʁÁʇϿЄЅЃʰ36. As performances de tons trágicos respondem de ¾²¿¶ºÃ²²ÆÅÀʉöȷ¶ÉºÇ²ÌÄö¶¿´¶¿²èĢ¶ÄµÀÅòƾ²¶ÌÄÄƲÄ·Àþ²Äµ¶²Åº¿¸ºÃÀ´ÀÃÁÀʁ ¶¾ÀÃÀÆĶŶ²¿ÀIJÅìÂƶ¾¶ÆźÀ¾ÀÃöÄĶµ¶³¶³¶Ãʇú¾¶ºÃÀÁ¶Ãµ¶ÆÀ¶¾Áö¸Àʁµ¶ÁÀºÄ²¶ÄÁÀIJ¶ʁȱ¿²½¾¶¿Å¶ʁ² carteira de motorista. 35 Quem fez isto com você, Tio Peck? Quantos anos você tinha? Eram onze anos que você tinha? 36 Traumas se expressa visceralmente, através de sintomas do corpo, reconstituições e repetições. ЁЅ ¾Ŷ²ÅÃÀ·ÀÃŶµ¶¾²ºÄÁ²Ã²ÁÅÀÈ¿ʳ²Á²ÃŶÄÆÁ¶ÃºÀöú´²µ²´ºµ²µ¶ʁ²º½¹²µ¶²¿¹²ÅŲ¿ʁÀ¿µ¶¶ÄÅͲÃÀ²µÈ²Êʴʇ ЁЂ 30 repetindo em cena, estilizada e parodicamente, as violências cotidianas, os abusos e as transgressões. Segundo a dramaturga Paula Vogel, apesar do grande impacto da obra sobre o público, a peça continua apresentando uma temática difícil de ser digerida. Na época das primeiras apresentações, o Village Voice descreveu a obra em um editorial como “A Theater Too Tough for Uptown” (COLLINS-HUGHES, 2020). A ambiguidade dos Ķ¿Åº¾¶¿ÅÀÄÂƶ²Åò¾²ÄÆÄ´ºÅ²¶¾ö½²èÓÀ²ÀÁ¶ÃÄÀ¿²¸¶¾Á¶µĜȱ½ÀÁ²Ã¶´¶ĶÃƾ² peça-chave para explicar o desconforto que a mesma provoca na recepção, instada a ´À¿Ä¶¿ÅºÃÂƶÀ²½¸À˵¶ºʓ½ºÅ첿ŶÄƾ²Çăź¾²µ²µ¶ÄʤÀõ¶¾ÄÀ´º²½ʇ Isso nos permite concluir a presente análise retomando as teorizações de GiòõÄÀ³Ã¶ĶÃÀ¸í¿¶ÃÀÅÃ͸º´ÀÁ²ÆŲµÀ¿²ö¶¿´¶¿²èÓÀµ¶ƾúÅÀIJ´Ãºȱ´º²½ʇƲÄ perspectivas, no entanto, se entrecruzam nesta peça e merecem ser elucidadas. Por um lado, enquanto drama social, como a peça representa um contexto histórico que remete explicitamente à Maryland dos anos 60, os gestos, os valores e os comportamentos viciosos, hipócritas, degradados expostos na cena sugerem que há algo de podre nessa sociedade mimetizada no teatro, o que condiz com a vocação do drama moderno para a crítica social. Por outro lado, nos limites da própria trama enquanto construto estético, À¶ºÉÀµ²²èÓÀʁ´¶¿Åò½ºË²µ²¿À´À¾¶Åº¾¶¿ÅÀµÀŲ³Æµ²Á¶µÀȱ½º²ʁŶ¿µ¶²ÁÃÀ»¶Å²ÃÄÀ³Ã¶¶ÄĶʖ¶ÃÃÀÅÃ͸º´Àʗ²ȱ¸ÆòèÓÀµÀ¾²½¾²ºÀÃÂƶÄÀ³Ã¶¶ÄĶÆ¿ºÇ¶ÃÄÀº¿´ºµ¶ʇ½¶ºÅÆra descentralizada da ação, no entanto, expõe, como dissemos acima, uma comunidade de valores e comportamentos degradados, com um acúmulo de erros, transgressões e violências que a todos contagia e se espraia em rede, normatizando-se por via das instituições: desde o Estado, com sua política de guerra; a sociedade e seus valores ma´¹ºÄŲÄʁ²Ãźȱ´ºÀÄÀÄʁ¹ºÁĜ´ÃºÅ²Äʂ²´Æ½ÅÆòʁ¶ÃÀź˲µ²´À¾ȱ¿Äµ¶²Á¶½À²À´À¿ÄƾÀʂ² família disfuncional; o bullying, como estado perene no cotidiano familiar, nada escapa Ìľ²Ë¶½²Äµ¶ƾŶ´ºµÀÄÀ´º²½²ÁÀµÃ¶´ºµÀ¶ÅƵÀ´À¿Ç¶Ã¸¶Á²Ã²¶Çºµ¶¿´º²Ã²µºȱ´Æ½dade de se localizar a gênese do mal nesse universo dramático. Daí a arbitrariedade do mythos trágico, que compactua com a necessidade de eleger alguém para o papel µ¶ʖIJ´Ãºȱ´²µÀʗʁ²½¸Æì¾Âƶ²ÄÄƾ²²´Æ½Á²¶²öÄÁÀ¿Ä²³º½ºµ²µ¶ÁÀÃƾ²µ¶ÄÀõ¶¾ que, em última instância, é coletiva. Na urdidura da ação em How I Learned to Drive, ¿ÓÀ¹ÍµłÇºµ²Äµ¶Âƶ²Á¶µÀȱ½º²µ¶¿´½¶¶´¼·²Ëö´²ºÃÄÀ³Ã¶¶½¶²´Æ½Á²¶²öÄÁÀ¿sabilidade pelo sofrimento causado a Li’l Bit, mas quem haverá de responder pelo seu próprio sofrimento? Pelos abusos sofridos em sua própria infância? Pelos traumas originados de sua participação na guerra? Por sua doença psíquica, que o torna vítima de ĺ¾¶Ä¾Àʎ¶»²´À¾À·ÀÃʁÀÄƺ´ăµºÀ½¶¿ÅÀµ¶¿´½¶¶´¼ʁ²ÁÆ¿ºèÓÀ²ÆÅÀʉº¿ȷº¸ºµ²Âƶ o mata aos poucos, apresenta-se como emblema atualizado da antiga solução pensada pelos gregos com a única resposta possível à condição trágica: quando nada mais há ÂƶĶÁÀÄIJ·²Ë¶Ã´À¿ÅòÀĵ¶ÆĶÄÂƶö¸¶¾²µ¶ÄʤÀõ¶¾ʁöÄŲ²º¿µ²²²ȱþ²èÓÀµ² dignidade humana, como a resposta possível à tragédia. Para além do seu próprio sofrimento, Lil’Bit parece reconhecer essa dignidade trágica do tio e o caráter injusto de sua morte-punição: “Quem fez isso com você, Uncle Peck? Quantos anos você tinha? ¿Ë¶ʎʗʯÁʇЇЇʁÅòµÆèÓÀ¿ÀÄIJʰʇ´À¾ÀÀÅòƾ²Ķ¶ÉÁöÄIJǺĴ¶Ã²½¾¶¿Å¶ʁ´À³Ã²¿µÀ do corpo reiteradas reencenações das violências sofridas, Lil’Bit aperta o cinto, checa o espelho retrovisor direito, depois o esquerdo, enquanto a projeção na cena faz surgir, no banco de trás do seu carro, o espírito de Uncle Peck. Ela o vê, sorri pra ele, e partem juntos, para mais um longo passeio que encerra a peça. 31 208