RESENHA LITERÁRIA
OBRA: OLIVEIRA Jr., José A. de (org). O Novo em Direito
e Política. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1977.
Sérgio Cademartori 1
O ESTADO DE DIREITO SOB NOVO PRISMA
Como pensar-se o novo em Direito e Política? O Direito e a Política apresentam-se hoje sob novas formas que impelem a uma reflexão renovada sobre os mesmos, ou permanecem eles com as mesmas estruturas que a tradição conhece, e, dada
a profundidade desses temas, é sempre legítima uma nova indagação sobre eles? Dito
de outra forma, trata-se de novos objetos de reflexão ou novas reflexões sobre velhos
temas?
O poder é ainda e de uma vez pura sempre o poder, em suas várias manifestações (dominação política, ideológica ou económica). Em sua tmmi Tentação na
esfera pública, o poder político, entendido como a posse de instrumentos aptos a
fazer valer a vontade de um grupo sobre toda a sociedade, está em contínua mudança
e é ainda o mesmo, numa longa aufhebung de hegelianas ressonâncias.
De seu lado, o Direito assume na contemporaneidade formas difusas de
descentralização, eis que vemos ganhar força procedimentos inoficiais de resoluções
de conflitos, marcados aqueles de um lado pela lógica do grande capital autonomizado
de formas estatais, e de outro pela necessidade social de eliminação de situações de
incerteza jurídica trazidas pela morosidade do aparato estatal.
Pairando sobre todas essas questões, aprecia-se um rápido e aparentemente
inexorável processo de desvanecimento ou fragilização da soberania dos diferentes
Estados, que tem como consequência, de um lado o deslocamento da sede do poder
para instâncias supra-estatais (em favor do grande capital ou de blocos transnacionais)
e de outro (consequência do primeiro), uma paulatina absorção dos ordenamentos
positivos por um supe-rordenamento a nível mundial.
Nesse contexto, e retomando as indagações iniciais, é legítimo ainda perguntar-se
sobre a possível continuidade dos velhos modelos? O Novo em Direito e Política , obra
objeto desta resenha, parece atravessada por essa preocupação. Organizado por José
1
Prof. Msc.
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Alcebíades de Oliveira Jr., esse livro recolhe contribuições de alguns dos maiores
pensadores desses temas na atualidade, tais como Bobbio, Alexy, Ferrajoli, López
Calera e outros, no âmbito europeu, ao lado dos mais legítimos representantes do
pensamento de ponta em termos de pesquisa jurídica no Brasil: Leonel Rocha, Luis
Warat, Nilson Borges, Oliveira Jr. e Tércio Sampaio Ferraz Jr.
Dentre tantos brilhantes ensaios estampados na obra, parece-me que o de
Luigi Ferrajoli, O Direito como Sistema de Garantias é o que melhor ilustra a necessidade de revisitar os institutos clássicos, eis que, a meu ver, o projeto do velho Estado
de Direito ainda não esgotou suas possibilidades de assegurar a satisfação das necessidades da pessoa e da sociedade.
De fato, para Ferrajoli, o Estado de Direito é antes de mais um aparato político-jurídico limitado pelo Direito, que deve ser defendido de decisões de maiorias
eventuais que, em nome de um desvirtuado princípio democrático que vê essas maiorias como fonte de legitimação de todas as decisões vinculantes para toda a sociedade, apresenta sempre o risco de avassalar os direitos fundamentais das pessoas.
Assim, o modelo de Estado de Direito postulado pelo Garantismo (teoria abraçada
pelo autor), impõe proibições - quanto às liberdades - e prestações, no que respeita
aos direitos sociais, ao Estado Real de Direito, que, sob pena de violenta
deslegitimação, deve satisfazer as aspirações de liberdade e aumento de bem-estar da
sociedade, eis que foi criado pela mesma com essa finalidade. Consequentemente, a
filosofia política subjacente ao modelo propugna que o Estado de Direito deve colocar todos os seus poderes e funções a serviço da garantia e implementação dos
direitos fundamentais. Autoconfessada teoria positivista crítica, rejeita qualquer tentativa de ser rotulada como jusnaturalista, já que assume como objeto de estudo uma
forma estatal de direito, conformada pela máxima auctoritas non veritas facit legem e
por uma forma jurídica de Estado (caracterizada pelo princípio da legalidade). Contudo, leva em conta a existência de valores tanto internos ao ordenamento - aqueles
plasmados nas declarações de direitos fundamentais -quanto externos, que são aqueles
nos quais se ancora a legitimidade do Estado de Direito, tais como a dignidade humana e a superioridade axiológica da sociedade em relação ao Estado.
O Garantismo apresenta-se como uma teoria que coloca o Estado de Direito,
munido das garantias liberais e sociais como necessário complemento da democracia (política e formal). Com efeito, enquanto a regra da democracia formal (princípio da maioria) dispõe
sobre quem decide e como se decide, estruturando assim o processo de decisão, o princípio
do Estado de Direito, ao ver o poder como limitado, circunscreve a esfera do indeeidível,
pois a máxima do Estado de Direito em sua dimensão liberal é nem sobre tudo se pode
decidir (no que diz com as liberdades, garantidas pelas cláusulas pétreas), enquanto em
sua dimensão social a regra é: nem sobre tudo se pode deixar de decidir, ou seja, o
Estado de Direito tem a inarredávcl tarefa de garantir os direitos sociais, missão a ele
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atribuída pelo constituinte ao declarar esses direitos como fundamentais. Isto leva o
Garantismo a uma redefinição da democracia, concebendo-a em sua dimensão substancial como o Estado de Direito dotado do conjunto de garantias, tanto liberais
como sociais.
Como se vê, essa teoria demonstra aptidão suficiente para: a) apresentar um
modelo de Estado de Direito que serve de paradigma para medir a deslegitimação dos
Estados de Direito (reais) da atualidade; b) reivindicar para a ciência jurídica um
papel crítico e despido de sua falsa neutralidade; e c) denunciar como equivocada e
atentatória ao Estado de Direito a atitude de alguns juízes (e ainda os há) que se autoproclamam "escravos da lei" sem atentar para o fato de que a mesma, muitas vezes,
contraria frontalmente a Constituição.
Em consequência, parece-me que essa teoria vêm reforçar a tarefa de enfrentar o principal desafio da teoria jurídica contemporânea, qual seja o de colaborar na
construção de mecanismos de implementação das garantias, principalmente daquelas sociais, denunciando as lacunas surgidas no ordenamento pela falta de normas
infra-constitucionais regulamentadoras das mesmas e que possibilitem assim a sua
jurisdicionalidade (ou seja, a sua dedu-tibilidade em sede judicial).
Obviamente, essa tarefa não é somente jurídica, mas também (principalmente?) política, pois é neste campo das lutas sociais que deve continuar a tlesenvolverse a "luta pelo direito". Mas não podemos desconhecer que as tarefas do teórico e do
operador jurídico são importantes no avanço das reivindicações sociais.
Obra: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A Ilusão de Segurança Jurídica: Do Controle da Violência à Violência do
Controle Penal. Porto Alegre, Livraria/Editora do Advogado, 1997, 335 pp.
Márcia Aguiar Arend 2
A eficácia invertida do Direito Penal e de sua Dogmática na contenção da
criminalidade.
Um dos principais repórteres da sesqui-centenária revista
Scientific American, John Horgan, lançou, em julho do ano passado,
o livro The End of Science (O Fim da Ciência), dizendo, em síntese,
2
Mestranda do CPG/UFSC
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que de agora em diante, os pesquisadores vão se limitar a detalhar as grandes descobertas do passado.
A comunidade científica internacional reagiu, e com razão, afinal basta olharmos para as dificuldades e desafios de todos os ramos científicos e teremos a comprovação de que, efetivamente, não entendemos muito de quase nada, sequer da
química dos nossos afetos e emoções, dos impulsos aceitos e dos repudiados pela
sociedade na qual vivemos.
Tudo ainda reclama saber e conhecimento, sobretudo na difícil seara das
relações dos homens entre si, seus conflitos e contrariedades com as ordens
estabelecidas. Sombras pesadas ainda pairam sobre os saberes, amordaçando a compreensão dos fenómenos sociais, dando-lhes feições sincronizadas com o interesse
dos que dominam a sociedade e replicando rotinas que não servem para o avançar,
apenas para produzir as dificuldades e diferenças sociais, expo-nenciando e
agudizando as forças geradoras dos próprios conflitos. A obra de Vera Regina Pereira
de Andrade realiza exatamente a hercúlea investigação das teorias que foram modelando os perfis dos saberes ligados ao controle formal das condutas dos indivíduos,
ou seja, que estabeleceram os marcos determinantes da chamada Ciência penal, cuja
racionalidade funcional assentava-se e assim ainda continua, no binómio controle
legal das condutas e segurança jurídica, e aos poucos, para que se possa, inclusive,
apreciar a magnitude e devoção da pesquisadora ao maravilhoso trabalho que agora
nos entrega, vai apresentando os contrastes entre a programação normativa e a
metaprogramação dogmática do Direito Penal, com a operacionalidade do sistema
penal, enquanto conjunto de ações e decisões que visam assegurar igualdade, segurança e justiça.
O prodigioso resultado das investigações da Professora Vera Regina Pereira
de Andrade serve para reafirmar, sobretudo na área do Direito Penal, que há muito a
descobrir e a construir, e que a produção científica é, efetivamente, inesgotável,
como inesgotáveis são as ambiguidades e equívocos dos homens na construção das
estruturas sociais. Sabemos que a produção de uma ideologia legitimadora do poder
penal, baseada no princípio da legalidade, acompanha, desde o começo, a história do
Direito Penal. Mas o que sobreveio foi justamente a história dos seus défi-cits, ou
seja, a incapacidade de realizar a proposta legitimadora e tornar o viver coletivo livre,
ou mais imune às con-flituosidades que o sistema define e trata como delitos.
Essa fenomenologia é esmiuçada, rastreada e exposta com maestria em quatro capítulos pela autora que, desta forma, desnuda os históricos e variados discursos de eficiência e garantias com que as diversas correntes e doutrinas "ilusionaram
as gentes" e estruturaram ideologias e sistemas punitivos.
Não se trata, portanto, de uma obra apenas para juristas e estudantes das Ciências jurídicas. Ela ultrapassa esses limites, sendo pontual e definitiva para todos aqueles
que almejam recolher subsídios para análises e compreensão do gigantesco horizonte de
incertezas, injustiças e expectativas sobre a forniu de realizar o controle penal das socie-
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dades, focando aspectos que os doutri-nadores do Direito Penal, amarrados na
prevalência da Dogmática Penal, fur-tam-se a analisar.
Desta forma, é de leitura indispensável para aqueles que buscam compreender porque o Direito tanto promete e tão pouco realiza em termos de contenção do
impulso criminoso, servindo para comprovar que o objetivo maior, su-bliminarmente
inserto no discurso da dogmática que fundamenta o Direito Penal é, lamentavelmente, reproduzir o conflito e não o restringir. O leitor é contemplado, logo no Io capítulo,
com uma surpreendente e meticulosa pesquisa, podendo acessar as teorias e ideologias que, ao longo dos tempos, foram tecendo a Dogmática Jurídico-Penal e a
Criminologia. No capítulo seguinte, a Professora Vera Regina reconstrói a específica
identidade da Dogmática, incursionando pela génese e desenvolvimento do sistema
da teoria do delito par^a extratar, daí, as promessas por ela feitas na modernidade.
Finaliza o capítulo com uma abordagem das criticas mais expressivas que historicamente têm sido dirigidas ao dogmatismo.
No capítulo terceiro, encontra-se a descrição detalhada dos impulsos desconstrutores do sistema penal que se fizeram sentir na década de 60 do nosso século,
e que, na verdade, são contemporâneos da crise do Estado-Providência nas chamadas sociedades de capitalismo avançado.As descons-truções fundamentais são
minudente-incntc apresentadas, permitindo-nos relacionar a desconstrução marxista, a fmicaultiana, a interacionista do labe-llmj" approach e a desconstrução
abolicionista, com a superação do paradigma etiológico que vai instaurar uma efetiva
revolução no saber criminológico, pelo abandono do referente etiológico que sustentava o seu estatuto científico desde o século XIX. Nítida a descrição das mutações operadas na Criminologia pela assimilação do paradigma da reação social, cujas
origens dimanam da fértil influência ocorrida na Sociologia pela obsolescência do
discurso funcionalista. Ao final deste capítulo fica evidente que a melhor forma de se
extratar a linha evolutiva do Direito Penal é através da relação histórico-transformadora
assentada no binómio "barbárie/ humanismo". Evolução que, entretanto, não abandonou a rigidez da normatização, e que, por isso mesmo, convive com a tirania da
seletividade instalada no interior da norma e nos selfs dos intérpretes, fazendo do
sistema penal um sistema classista, reprodutor do sistema social, recepcionando,
integralmente, as desigualdades e as injustiças, reproduzindo, por consequência, as
diferenças e a insegurança.
O quarto capítulo é, em síntese, a análise contrastativa das promessas da
Dogmática Penal (dever-ser) com a operacionalidade do sistema da justiça penal,
induzindo de forma muito clara e didática à compreensão da identidade funcional
da própria Dogmática. . Aqui a marca firme de um trabalho científico realmente
vigoroso, porque absolutamente diverso de tudo o que já se falou sobre a Dogmática
Penal, e ainda por permitir a iniciação do leitor à percepção das simulações de
eficácia que perseguem o Direito Penal e o sistema que por ele é conduzido e ge-
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renciado e que , além de não se prestar para a controlar a violência, sempre a reproduz.
Seguindo a historiografia de Foucault, vê-se que a lógica orientadora do
sistema penal é, ainda, replicar a diferenciação e a seletividade dos que serão sujeitos
delinquentes.
O moderno saber penal - clássico, dogmático e criminoíógico- perfeitamente
adaptado ao mundo do poder, reproduz, com eficiência, o poder , não havendo qualquer confronto entre a Dogmática e a Criminologia, pois enquanto a primeira debruça-se sobre a prevalência da garantia da codificação do fato, a segunda se escuda na
garantia da individualização do autor e das penas a ele atribuídas.
A magnitude da programação penal, se confrontada com a capacidade
operacional do sistema penal, incrementa a seletividade estrutural das condutas
criminalizadas e dos delinquentes, sendo que as nódoas das conotações sociais
sobre os autores dos crimes, que o sistema prefere criminalizar, irão garantir a manutenção da mesma seletividade. O alentado estudo demonstra e indica as razões pelas
quais a .pobreza povoa as prisões do mundo, indicando os caminhos que vinculam o
status social ao etiquetamento de criminoso, desobnu-bilando a farsa de que a justiça penal é equitativamente distribuída. Comprova-se assim, que a clientela do sistema penal é constituída de pobres, não porque tenham mais tendência a delinquir, mas
porque têm maiores chances de serem etiquetados como criminosos. Transita-se para
as conclusões do volume com a certeza de que se está diante de uma produção
científica explicitamente inovadora porque rompe com a compartimentação contumaz
dos tradicionais doutrinadores penais, pro° movendo, com acentuado rigor analítico,
a inspeção e o desnudamento dos antagonismos e ambivalências que convivem no
interior do sistema penal. A Dogmática viola as suas promessas de garantia, mas
propala sua capacidade de conter a violência que nunca vimos diminuir. E é essa
ilusão de segurança que acaba por realimentar o discurso e sentimento de
indispensabilidade do Direito Penal, de modo que os fracassos da Dogmática Penal,
ao invés de auxiliarem na sua reformulação, acabam sempre justificando a sua continuidade e prevalência. A tese fundamental Q originalmente sustentada é, pois, a de
que ao invés de uma separação, há uma profunda conexão funcional entre Dogmática
Penal e realidade social. O que ocorre é que ela cumpre não apenas funções diferentes, mas inversas às de igualdade e segurança jurídica prometidas em seu discurso
oficial, fenómeno a que autora denomina "eficácia invertida". E é esta que explica sua
marcada vigência histórica.
São conclusões de Vera Andrade, nesta perspectiva, que "(...)-ao invés de
uma racionalização decisória para a gestação da igualdade e segurança jurídica, ela
tem concorrido para a racionalização tia seletividade decisória , ao mesmo tempo em
que posto em circulação social 'sinais' de punição perfeitamente ajuntados: a 'ilusão'
de segurança jurídica, cuja eficácia simbólica tem cumprido efeitos fundamentais de
legitimação do sistema penal."(p. 312)
Desta forma, " a 'perversão inaliíaitul1 e o paradoxo da Dogmática Penal na
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modernidade consiste assim em que ela transita da promessa de controle da violência
à captura e co-participação na violência do controle penal e sua vocação pautadora
humanista aparece colonizada e submersa por sua vocação técnica e legitimadora."(P314) A densidade da obra é compensada, por sua vez, pela perfeita estruturação
metodológica, que vai induzindo o leitor a compreender não apenas como as garantias do sistema penal são absolutamente vulneráveis, mas, ao mesmo tempo, como a
Dogmática não tem poder nem condições de alterar a seleti-vidade e arbitrariedade
próprias do sistema, já que não interpela a contenção da violência estrutural da
sociedade.
O seu extraordinário estudo, está também impregnado de uma firme e aprimorada abordagem crítica do Estado que organiza, através da lei penal, o seu constante desrespeito às bases principi-ológicas estruturadoras e condutoras da própria
Dogmática Penal, produzindo discursos segmentados e fragmentados para refundir a
crença na possibilidade de se erradicar a violência patrocinada e produzida pelo
Estado. Convida, enfim, à reconstrução de um novo modelo integrado de Ciência
Penal que, reconhecendo e superando a fragilidade do garantismo abstrato da
Dogmática Penal, caminhe no sentido de um "garantismo crítico e criminolo-gicamente
fundado." Há, desta forma, muita Ciência a produzir.
Do fluxo e refluxo dessa estrutura di-Icmática sobre a qual a Dra. Vera Regina
Pereira de Andrade hauriu os seus intcrrogantes e sobre os quais se debruçou, emergiu esta fortalecida produção intelectual, que acaba comprovando que as pessoas
carregam para onde quer que possam ir, seja física ou mentalmente, as suas crenças,
deixando as suas marcas.
A obra agora dada a conhecer ostenta, como sua autora, o signo da
fraternidade. Nós só temos a agradecer.
OBRA: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Dogmática Jurídica - Escorço de sua Configuração e Identidade. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 1996.
Quitéria Tamanini Vieira Peres 3
A OBRA E SUA APRESENTAÇÃO: ALGUMAS SINGELAS PALAVRAS
Revisitar conceitos e explorar atentamente um contingente de dogmas arraigados ao longo da consolidação da cultura jurídica, para, a partir de sua análise
crítica, viabilizar consciente reflexão que passa, indeclinavelmente, pela investigação
dos pressupostos que determinam a configuração e identidade
3
Mestranda - UFSC
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da dogmática jurídica. Desenvolver tal raciocínio sem perder de vista o estudo das
heranças - jurisprudencial, exegética e sistemática - que marcam o paradigma dogmático
de ciência jurídica e, finalmente, analisar o papel desempenhado pelo positivismo
que, pretendendo servir como matriz epistemológica do paradigma dogmático de ciência jurídica, representou a busca da existência de uma maneira científica de proceder, fora da qual aquela não haveria.
Urge, pois, trilhar este instigante caminho, repleto de armadilhas e pouco
conhecidos atalhos, que foi destemida e brilhantemente desbravado pela Doutora
Vera Regina Pereira de Andrade, Professora dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, ao longo dos estudos que tem
desenvolvido -conhecida que é sua expressiva atuação nos meios académico e jurídico de todo o país - em especial por ocasião da elaboração de sua tese de doutoramento,
parte dela retratada na obra Dogmática Jurídica - Escorço de Sua Configuração e
Identidade, lançada pela Editora Livraria do Advogado. Para tanto, há que se fazer
uma leitura não apenas atenta, como isenta e desa-correntada dos grilhões a que nos
forjam as ideias pré-concebidas como certas, independentemente de seu conteúdo.
Noutras palavras, há que se permitir, por prévio, a discussão dos dogmas e, com eles,
da dogmática propriamente dita, bem como da tarefa e funções para as quais efetivamente se presta. Aliás, com muita propriedade, assinalou Luiza Helena MOLL ao
prefaciar a obra, que muito se fala, quase que corriqueiramente, nos bastidores jurídicos, em dogmática jurídica, sendo que, contudo, pouco se sabe acerca de In "(...)
quando se tem em vista respondei a indagações centrais sobre as condições de
possibilidade (a historicidade, LI ideologia, a generalidade em nome da abstração) de
produção do conhecimento do Direito enquanto ciência jurídica."
Todavia, esta lacuna explícita na lile-ratura jurídica não poderia prevalecer,
notadamente quando as novas discus-soes sociológicas anunciam as preocu" pações
que se alinhavam no limiar do terceiro milénio, as quais requerem o mínimo instrumental epistemológico capaz de nos escudar em face do inevitável estilhaçamento de
dogmas e consequente revisão de conceitos, mui (OH deles havidos incondicionalmente como incontestáveis, inobstante a verdade cm que os mesmos supostamente
se fundam nunca tenha sido questionada pcloH que os aplicam, quer seja em trabalhos académicos, em petições e contestações, em pareceres ministeriais, em sentenças ou acórdãos. Uma breve ilação extraída da ohm Dogmática Jurídica - Escorço de
Sun Configuração e Identidade é suficiente para retratar o senso crítico que permeia
toda a reflexão atenta e lucidamenle desenvolvida, a saber: "Partindo assim da interpretação das normas jurídicas produzidas pelo legislador (material normativo) e
reconhendo-as individualmente na construção sistemática do Direito, a Dogmática
Jurídica conseivn e desenvolve um sistema de coneHlnri que, resultando congruente
com as normas, teria a função de garantir a maior uniformização e previsibilidade
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(certeza) possível das decisões judiciais e, consequentemente, uma aplicação igualitária (decisões iguais para casos iguais) do Direito que, subtraída à arbitrariedade,
garante essencialmente a segurança jurídica. Trata-se de programar, orientar, pautar
ou preparar as decisões judiciais e, nesta mesma orientação, racionalizá-las para a
gestação da segurança jurídica; o que significa não apenas possibilitar as condições
para a decidibilidade, mas para decisões judiciais calculáveis, equitativas e seguras."
(1996, p. 79)
Resta questionar, todavia, se preocupar-se-á, a dogmática jurídica, em proteger com efetividade os bens e interesses de todos, indistintamente. Inclusive daquele que, tal qual uma aranha pequena, não conseguiu desvencilhar-se da rede
confeccionada por seus próprios pares? Terá o menino de rua, oprimido em seu anonimato, alimentadas suas esperanças pela tranquila certeza de que um dos objetivos
fundamentais da República em que vive é erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais? Até quando prevalecerá a máxima de
que a desigualdade das circunstâncias explica a diversidade das decisões, servindo
tal critério de pseudo-igualdade para justificar a apropriação da versão da dogmática
que mais convenha aos interesses da minoria dominante? A tais indagações, por
absoluto, não pretende a obra responder. Pretende, isto sim, oferecer subsídios à
reflexão, que por sua vez dará lugar a crítica, a qual, por ser incompatível com a
alienação, quiçá dê lugar até mesmo a RUPTURA.
A OBRA E O ITINERÁRIO DE SEU RACIOCÍNIO: ALGUMAS PRECIOSAS PISTAS
Após breve e percuciente introdução ao tema, objeto da investigação, a
autora, Prof-. Dr-. Vera Regina Pereira de ANDRADE, inaugura seu raciocínio privilegiando a abordagem das heranças que marcam o paradigma dogmático de ciência
jurídica, quais sejam, a jurisprudencial (romana), a exegética (medieval) e a sistemática (moderna). A primeira, também denominada jurisprudência, caracterizava-se por
um modo peculiar de pensar os problemas sob a forma de conflitos a serem resolvidos por decisão de autoridade, apro-priando-se, para tanto, de fórmulas doutrinárias
genéricas, com o que o Direito assume muito mais o perfil de um programa decisório
do que, propriamente, de luta entre o bem e o mal. A segunda herança, da idade
medieval, proveniente da tradição exegética, introduz no pensamento jurídico a característica da dogmaticidade, o que faz sem extinguir o pensamento prudencial romano. Ao redefini-lo, dá lugar a uma combinação entre prudência e dogmática, gerando
a conclusão de que "a prudência se faz dogmática"(1996, p. 33). Com o jusnaturalismo
racionalista da era moderna, vem a lume a terceira grande herança que irá marcar o
paradigma dogmático, cujo fio condutor interligará o pensamento jurídico ao sistemático. Assim, a crença nos textos romanos foi substituída pela crença nos princípios
da razão que passam a ser apreciados de modo a viabilizar sua aplicação sistemática.
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Tais heranças, segundo tese demonstrada ao longo do Capítulo 2, converteram-se na base sobre a qual se erigiu a Dogmática Jurídica que hoje se nos apresenta.
Adiante, no Capítulo 3, o positivismo é colocado em foco para onde convergem importantes reflexões em torno do princípio do cientificismo que lhe serve de
pedra angular, sendo então explicitados os elementos que revelam seu caráter de
matriz epistemológica do paradigma dogmático da Ciência Jurídica. Tomando-se em
conta que este paradigma guarda essencial vinculação com uma determinada estrutura histórica, é possível compreender porque a recepção da concepção positivista de
ciência pela Escola Histórica fez-se marcar na elaboração do modelo da Dogmática,
no seio da qual são abrigadas, além da ideia de história, a de sistema. A partir disso se
consolida então a concepção de que interpretar é reconstruir o pensamento contido
na lei. Na continuidade, a Dogmática Jurídica passa a contar com estudo que investiga tanto seu objeto e tarefa, como também o papel que desempenha enquanto ciência
prática, sem prejuízo de sua natureza teórica e descritiva. Assim, com o deslocamento
do objeto do saber jurídico da razão para a história e com o redimensionamento de
sua tarefa metódica que passa a centrar-se na construção jurídica, impõe-se o estudo
do processo de redefinição a que são submetidas as heranças outrora citadas, bem
como dos respectivos reflexos então oriundos - que é feito adiante com muita propriedade. Em seu Capítulo 4, ocupa-se dos efeitos que derivam da recepção do positivismo
jurídico pelo paradigma dogmático de ciência jurídica. ímpar abordagem á desenvolvida em torno da caracterização do positivismo, quer seja como uma forma de aproximação ao estudo do Direito, onde delimita a esfera do Direito enquanto objeto da
Ciência Jurídica; como teoria, vinculando o fenómeno jurídico ao Estado que assume
o monopólio da produção do Direito e do seu asseguramento coativo; ou, ainda,
como ideologia, prisma sob o qual decorre a identificação do Direito esta" tal com o
Direito justo que, por sua vez, repercute na identificação da Justiça com a justiça
legal. Consta, ainda, indispensável questionamento sobre o significado do dogmatismo
na Ciência Jurídica.
Por fim, preocupa-se a obra, no Capítulo 5, com o sentido da Dogmática
Jurídica como ciência prática reveladora de uma identidade funcional própria da racionalização e estabilização c, no capítulo subsequente, com a matriz política configurada no âmbito do listado moderno, sem olvidar ainda breve ponderação acerca da
função pedagógica fundamental por ela cumprida,
E, como não poderia deixar de ser, já que tão intrigantes reflexões não com
portariam mesmo tranquilas afirmações conclusivas, a autora brilhantemente encerra a obra problematizando seu próprio objeto da investigação, a Dogmática
Jurídica, em torno do que somam-se interrogações, dentre as quais a mais inquietante
parte da seguinte ponderação: "(...) se a Dogmatica fornece 'segurança jurídica' e, em
caso afirmativo, 'para que' ou 'para quem?" (1996, p. 114)
SEQÜÊNCIA 34, página 131
Todavia, a análise desta questão central constitui objeto de outra obra de
mesma autoria, recentemente publicada pela Editora Livraria do Advogado, sob o
título A Ilusão de Segurança Jurídica -Do Controle da Violência à Violência do Controle Penal.
E.T.: É preciso advertir o leitor de que a atenta leitura da obra Dogmática
Jurídica poderá conduzi-lo à conclusão não pela certeza - como seria previsível -mas
sim, pela ilusão da segurança jurídica, e, quem sabe, não apenas desta ...
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