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Vida

2015, Veritas (Porto Alegre)

Veritas Revista de Filosofia da PUCRS ISSN 0042-3955 e-ISSN 1984-6746 Porto Alegre, v. 60, n. 2, maio-ago. 2015, p. 264-286 http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/veritas : http://dx.doi.org/10.15448/1984-6746.2015.2.22005 FilosoFias da Biologia Vida Life *Georges Canguilhem **Tradução: Gabriela M. Jaquet Resumo: Em 1973, Georges Canguilhem publica, na Encyclopédie Universalis, um extenso verbete histórico do conceito “Vida” na biologia e nas ciências da vida. A seguinte tradução do verbete é baseada na segunda edição, reimpressão publicada em 1989, nas páginas 546-553. Palavras-chave: Vida. Biologia. Animal. Le Vivant (O Vivo). Organismo. Abstract: In 1973, Georges Canguilhem published a detailed historical entry on the concept of “Life” in biology and the life sciences for the French-language Encyclopédie Universalis. The following translation in Portuguese of the encyclopedia entry is based on the second edition, a reprint of the first, published in 1989, on pages 546-553. Keywords: Life. Biology. Animal. Le Vivant (The Living). Organism. ** 1904-1995. Inspecteur Général de Philosophie (1948-55). Professor na Sorbonne e Diretor do Institut d’Histoire des Sciences et des Techniques de l’Université de Paris a partir de 1955. Em 1971, Professor Émérito da Sorbonne. Em 1983, recebeu a Medalha de Sarton; e em 1987 a Médaille d’or do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). Referência completa do artigo original: “Vie”, Encyclopaedia universalis, 23 (2e édition, Paris: Encyclopaedia Universalis France, 1989), p. 546-53. ** Mestranda CNPq, Programa de Pós-Graduação em História, UFRGS. <gabrielajaquet@ hotmail.com>. Este artigo está licenciado sob forma de uma licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que a publicação original seja corretamente citada. http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR G. Canguilhem – Vida “Quem sabe se a primeira noção de biologia que o homem pode formar não é esta: é possível dar a morte”. Esta reflexão de Valéry em seu Discours aux chirurgiens (1938) vai mais longe do que sua destinação primeira. Talvez não seja possível, ainda hoje, ultrapassar esta primeira noção: é vivo (vivant), é objeto do conhecimento biológico, todo dado da experiência de que podemos descrever uma história compreendida entre seu nascimento e sua morte. Mas o que é precisamente a vida de um vivo, além da coleção de atributos próprios para resumir a história deste ser nascido mortal? Se se trata de uma causa, por que sua causalidade é estritamente limitada no tempo? Se se trata de um efeito, por que ele é gerador, para aquele dentre os vivos que se interroga sobre sua natureza, da consciência ilusória de uma força ou de um poder? Em La Logique du vivant (1972), François Jacob escreveu: “Não interrogamos mais a vida hoje nos laboratórios”. Se é verdade que a vida não é mais um objeto de interrogação, é também verdade que ela não o fora sempre. Há um nascimento – ou uma aparição – do conceito de vida no século XIX, atestada pela multiplicação de artigos nos dicionários e enciclopédias científicas e filosóficas. Um breve histórico da aparição deste conceito não é supérfluo. A gênese do conceito O primeiro esboço de uma definição geral da vida se encontra em Aristóteles. “Entre os corpos naturais [i.e. não fabricados pelo homem] alguns possuem a vida e outros não a possuem. Nós entendemos por vida o fato de se nutrir, de crescer, e de se degradar por si mesmo” (De l’âme, II, 1). E, mais adiante, Aristóteles diz que a vida é aquilo pelo que o corpo animado difere do inanimado. Mas o termo de vida, como aquele de alma, é passível de muitas acepções. É suficiente, no entanto, que uma dentre elas convenha a tal objeto de nossa experiência “para que nós afirmemos que ele vive” (II, 2). A vegetação ou vegetalidade representa o mínimo de expressão das funções da alma. Fora disso, não há vida. Não existe forma mais rica de vida que não a suponha como sua condição necessária (II, 3). A identificação das noções de vida e de animação e, por conseguinte, a distinção da vida e da matéria, na medida em que a alma-vida é a forma ou o ato do corpo natural vivo, constituem uma concepção da vida tão vivaz, através dos séculos, quanto o fora a filosofia aristotélica. Todas as filosofias médicas que, até o começo do século XIX, tiveram a vida por um princípio ora original, ora confundido com a alma, essencialmente diferente da matéria, fazendo exceções às suas leis, foram diretamente ou indiretamente devedoras desta parte do sistema aristotélico que podemos chamar indiferentemente de biologia ou psicologia. Veritas | Porto Alegre, v. 60, n. 2, maio-ago. 2015, p. 264-286 265 G. Canguilhem – Vida Mas a filosofia de Aristóteles é igualmente responsável, e isto até o final do século XVIII, por um método de estudo dos seres vivos, especialmente dos animais e de suas propriedades, que consiste em classificá-los, em distribuí-los em um quadro de semelhanças e de diferenças, segundo suas partes – ou seja, seus órgãos –, suas ações ou funções, seus modos de vida. De forma que, de fato, Aristóteles instaurou nos naturalistas uma maneira de perceber as formas vivas que eclipsava a interrogação sobre a natureza da vida sob a preocupação de planificar, sem lacunas e sem redundâncias, os produtos observáveis de um poder plástico que não colocava, quanto a ele, nenhum problema. É a razão pela qual procuramos em vão nos naturalistas da idade clássica, como Buffon ou Linné, aquilo que poderíamos chamar de uma definição da vida, como modo de existência específico dos seres que eles descrevem e classificam. Na idade clássica, a interrogação sobre a vida é antes questão de médicos que de naturalistas, ela é necessariamente ligada à interrogação sobre a natureza da saúde, que é o modo normal de vida do qual, a partir do século XVII, a fisiologia, no sentido estrito do termo, constituirá estudo. Se acontece que nos interrogamos sobre a vida, é antes para determinar-lhe os signos ou as marcas de reconhecimento, para fixar os critérios do estado vivo, do que para procurar o que é essencialmente este poder singular da natureza. Um filósofo-médico, John Locke, escreve em 1690: “Não há termo mais comum do que o de vida, e não encontraríamos poucas pessoas que não tomariam por uma afronta se lhes perguntássemos o que eles entendem por esta palavra. No entanto, se é verdade que colocamos em questão se uma planta que está já formada na semente possui vida, se a galinha em um ovo que ainda não foi chocado, ou um homem em estado de falência, sem sentimento ou movimento, está em vida ou não, é fácil perceber que uma ideia clara, distinta e determinada, não acompanha sempre o uso de uma palavra tão conhecida como a de vida” (Essai philosophique concernant l’entendement humain, III, x, 22). É ainda sob a relação de signos perceptíveis da vida que Kant começou a dissertar sobre relações da matéria morta (inerte) e os princípios espontâneos de animação desta mesma matéria. “Mas dentre os membros da natureza quais são aqueles aos quais a vida se estende e quais são os graus de vida que confinam à sua inteira supressão, talvez seja sempre impossível de decidir de forma certa” (Rêves d’um visionnaire, 1976, II). É um médico alemão, Georges-Ernest Stahl (1660-1734) quem mais trabalhou para impor uma teoria da vida como fundamento indispensável ao pensamento e à prática médica. Stahl é o médico que mais abundantemente utilizou o termo de vida. Se o médico ignora qual é o fim, a destinação das funções vitais, como ele poderá dar um sentido 266 Veritas | Porto Alegre, v. 60, n. 2, maio-ago. 2015, p. 264-286 G. Canguilhem – Vida à sua intervenção? O que confere vida, ou seja, o movimento dirigido, finalizado, sem o qual a máquina corporal se decompõe, é a alma. Os corpos vivos são corpos compostos, constantemente ameaçados de uma rápida dissolução e de uma fácil corrupção, e, no entanto, são dotados de uma disposição contrária e oposta à corrupção. O princípio de conservação, de autocracia da natureza viva, não pode ser passivo, material. A evidência especificamente médica, é a autoconservação do vivo (vivant). Esta evidência funda a Theoria medica vera (1708). Alguns, tendo lido Stahl, que renunciarão à identificação da vida e da alma, não esquecerão no entanto a força com a qual ele definiu a vida como poder de suspender temporariamente um destino de corruptibilidade. Em termos menos carregados de metafísica, Bichat começou suas Recherches physiologiques sur la vie et la mort (1800) com a célebre fórmula: “A vida é o conjunto de funções que resiste à morte”. Definindo a vida por um conflito entre um corpo composto de tecidos de estrutura e de propriedades específicas (elasticidade, contractilidade, sensibilidade) e um ambiente ou um meio – como diria Auguste Comte um pouco mais tarde – em que se exprimem leis indiferentes às exigências próprias do vivo, Bichat se apresentava como um Stahl purgado de teologia. Esta purgação fora em parte obra da escola médica de Montpellier, e singularmente de P. J. Barthez. Os Nouveaux Éléments de la science de l’homme (1778) são um tratado de fisiologia vitalista. “Eu provarei que o Princípio vital deve ser concebido por ideias distintas daquelas que temos do Corpo e da Alma; e mesmo que nós ignoramos se este princípio é uma substância, ou somente um modo do corpo humano vivo”. Mesmo se Barthez possui grandes reservas sobre a forma como A. von Haller compreendeu a fisiologia, é certo que a refutação dos princípios da fisiologia mecânica pela observação dos fenômenos de irritabilidade muscular e de sensibilidade nervosa, tidos por irredutíveis a efeitos de ordem simplesmente mecânica ou física, teve um papel importante na elaboração, por La Caze e Bordeu, de uma doutrina de escola na qual Barthez se inspirou mais do que ele quis admitir. No ano da morte de Bichat, em 1802, o termo biologia fora utilizado pela primeira vez, e simultaneamente, na Alemanha por G. R. Treviranus, e na França por Lamarck (em Hydrogéologie), para reivindicar um status de independência próprio à ciência da vida. Se Lamarck se propôs, durante tanto tempo, a escrever um tratado intitulado Biologia, é porque, desde muito cedo em seu ensino do Muséum, ele propunha uma teoria da vida. O que é “essencial à existência da vida em um corpo” deve ser procurado no exame dos organismos mais simples. Uma organização complicada requer órgãos ao mesmo tempo especializados e interdependentes, mas que não estão necessariamente ligados “à existência da vida em qualquer Veritas | Porto Alegre, v. 60, n. 2, maio-ago. 2015, p. 264-286 267 G. Canguilhem – Vida corpo vivo”. Sob este aspecto, o ensino de Lamarck não contradizia aquele de Cuvier, que se gabava, em sua concepção pessoal de anatomia comparada, de ter tornado possível a dissociação das funções gerais da vida dos modos de exercício especiais que lhe impõe, nestes ou naqueles vivos, a posse destes ou daqueles órgãos (“Lettre à Lacépède”, em Anatomie comparée, III, 1805). Mas Lamarck concebe a vida como a acumulação e interiorização contínuas e progressivas de movimentos de fluídos em sólidos, sob a forma inicial de um tecido celular, “matriz na qual toda organização foi formada”. Assim a vida, cujas origens naturais devem ser procuradas na matéria e no movimento, nos revela seu poder original pela sucessão ordenada de seus efeitos, a série dos vivos, de que ela complexificou gradualmente a organização, e de que multiplicou as faculdades (Recherches sur l’organisation des corps vivants, 1802). Ainda que morrer seja do destino de cada indivíduo, a vida parece, com o tempo, e sob os aspectos mais eminentes da animalidade, ter tomado distância do estado de passividade e de inércia dos corpos brutos, a partir de um primeiro “ato de vitalização”, efeito do calor, “esta alma material dos corpos vivos” (Philosophie zoologique, 1809, II, VI). Podemos qualificar de materialista a teoria lamarckiana da vida à condição de esquecer que, para Lamarck, “todas as matérias compostas, brutas ou inorgânicas, que observamos na natureza” são resíduos da decomposição dos corpos vivos, os únicos capazes, porque vivos, de produzir as sínteses químicas. Bem diferente é a concepção de Cuvier. A vida e a morte não estão opostas em um tipo de relação polêmica, como em Lamarck, em Bichat, ou em Stahl, mas compostas nos modos de vida, exprimindo a compatibilidade de organizações internas, rigorosamente especializadas, com as condições gerais de existência. “A vida é um turbilhão contínuo cuja direção, complexa como é, permanece constante, bem como a espécie de moléculas que estão nele envolvidas, mas não as moléculas individuais; ao contrário, a matéria atual do corpo vivo logo não será mais acionada, e, no entanto, ela é depositária da força que fará com que a matéria futura se movimente no mesmo sentido que ela. Assim a forma destes corpos é mais essencial que sua matéria, uma vez que esta se modifica sem parar enquanto a outra se conserva” (Histoire des progrès des sciences naturelles depuis 1789 jusqu’à ce jour, 1810). Percebemos onde se entrelaça a relação entre o vivo e a morte. “É fazer-se uma falsa ideia [da vida] considerá-la uma simples ligação que reteria juntos os elementos do corpo vivo, enquanto que ela é, ao contrário, uma mola que os move e os transporta sem parar: estes elementos não conservam, nem por um instante, as mesmas relações e as mesmas conexões, ou, em outros termos, o corpo vivo não mantém o mesmo estado e a 268 Veritas | Porto Alegre, v. 60, n. 2, maio-ago. 2015, p. 264-286 G. Canguilhem – Vida mesma composição; quanto mais sua vida é ativa, mais suas trocas e suas metamorfoses são contínuas; e o momento indivisível de repouso absoluto, que chamamos morte completa, é apenas o precursor de novos movimentos de putrefação. É aqui que começa o emprego razoável do termo de forças vitais...” (ibid). A morte está presente na vida, não só como trama universal, mas também como prazo inelutável de suas formações diversamente organizadas, de forma coerente ao mesmo tempo que frágil. Doravante, graças à revolução conceitual e metodológica que os trabalhos de naturalistas como Lamarck e Cuvier provocaram, ainda que de forma diferente, na representação do mundo dos vivos, as teorias da vida ganharam espaço, logicamente, no ensino de fisiologistas que acreditaram ter exorcizado, pelo método experimental, o espectro da metafísica. É assim que o Handbuch der Physiologie des Menschen (18331834) de Johannes Muller trata, em seus prolegômenos, do organismo e da vida, essência da organização vital, assim como do organismo animal e da vida animal. É por isso que Claude Bernard, cujo Cahier de notes conservou o traçado do percurso intelectual durante o período mais fértil de sua carreira (1850-1860), não cessou de questionar-se tanto sobre a vida quanto sobre o problema fundamental de uma biologia geral, questionamento cujas conclusões nuançadas são expostas em Leçons sur les phénomènes de la vie communs aux animaux et aux végétaux (1878; particularmente as três primeiras lições), mais sistematicamente que na Introduction à l’étude de la médecine expérimentale (1865). Sabemos que a teoria bernardiana da vida consiste em fornecer uma explicação coordenada de duas fórmulas voluntariamente contrastadas: a vida é a criação (1865), a vida é a morte (1875). Tendo adquirido no século XIX o status de uma questão de caráter eminentemente científico, “o que é a vida?” tornou-se uma interrogação a que nem mesmo o físico desdenha tentar encontrar uma resposta (Schrodinger, What Is Life? 1947), ainda que um bioquímico ache a questão mal colocada (E. Kahane, La vie n’existe pas, 1962). Aqui termina o histórico da aparição do conceito de vida no campo da cultura científica. Sua dívida é grande para com Michel Foucault (Les Mots et les choses, 1966, VIII). Os obstáculos ao conhecimento científico da vida É à obra de Gaston Bachelard que a epistemologia francesa deve o interesse que dedica, em geral, à origem e ao funcionamento dos obstáculos ao conhecimento. Esboçando os princípios de uma psicanálise do conhecimento objetivo, Bachelard, se não propôs ele mesmo, ao menos Veritas | Porto Alegre, v. 60, n. 2, maio-ago. 2015, p. 264-286 269 G. Canguilhem – Vida sugeriu a ideia de que não existe para o conhecimento objetos complexos em si, mas sim objetos de complexos. A questão dos obstáculos não se coloca nem para o empirismo nem para o racionalismo clássico. Para o empirista, nossos sentidos são receptores. Ele desconhece o fato de que os sentidos são também produtores de qualidades. Para o racionalista, o conhecimento deprecia a sensibilidade, de uma vez por todas. Quando o intelecto é reencontrado em sua pureza, não podemos mais perdê-lo. Ao contrário, para a antropologia contemporânea, instruída pela psicanálise e pela etnografia, não podemos considerar os obstáculos à ciência de outra forma que como imposições obsessionais que um paleopsiquismo impõe prévia e indistintamente aos projetos de pesquisa de um pensamento curioso e dócil. É então o sentido da presença obsedante de valores estranhos ao conhecimento, no ato inicial deste mesmo conhecimento, que deve ser salientado no caso do conhecimento da vida. Podemos em uma palavra dizer que, mesmo se o conhecimento objetivo, sendo ação humana, é finalmente um trabalho do vivo, seu postulado, ou sua condição primeira de possibilidade, consiste na negação sistemática, em todo objeto ao qual ela se aplica, da realidade das qualidades que o vivo humano identifica com a vida, a partir da consciência que ele possui do que é, para ele, viver. Viver, é valorizar os objetos e as circunstâncias de sua experiência, é preferir e excluir meios, situações, movimentos. A vida é o contrário de uma relação de indiferença com o meio. Bichat o notou com muita perspicácia: “Há duas coisas nos fenômenos da vida: o estado de saúde, e aquele de doença; daí duas ciências distintas, a psicologia [...], a patologia. A história dos fenômenos nos quais as forças vitais possuem seu tipo natural nos leva, como conseqüência, àquela dos fenômenos em que estas forças estão alteradas. Nas ciências físicas, só existe a primeira história, nunca encontramos a segunda” (Introdução à Anatomie générale appliquée à la physiologie et à la médecine, 1801). Quanto ao conhecimento, ele nega as desigualdades axiológicas que a vida introduz nas relações dos objetos entre si; ele mede, ou seja, determina, seus objetos pela relação de uns com os outros, sem privilégio de referência e de referido. Seu primeiro sucesso histórico principal foi a mecânica fundada sobre o princípio de inércia, pela subtração do movimento da matéria ao poder executivo da vida. Inércia é inatividade e indiferença. Concebemos então tranquilamente que a extensão à vida dos métodos de conhecimento da matéria tenha encontrado, até nossos dias, resistências renovadas, que não exprimiam sempre unicamente uma repugnância de natureza afetiva, mas às vezes a recusa refletida de uma esperança paradoxal, aquela de explicar um poder através de conceitos e de leis inicialmente formadas a partir de hipóteses que o negam. 270 Veritas | Porto Alegre, v. 60, n. 2, maio-ago. 2015, p. 264-286 G. Canguilhem – Vida Quando quis fazer uma “psicanálise da vida”, Bachelard escreveu Lautréamont (1939), no qual ele mostra que os primeiros esforços da objetividade científica para retificar o realismo ingênuo da animalidade não escaparam “à sedução primeira do complexo de Lautréamont”. Em um golpe de maestria, Bachelard, que, no entanto, não deu lugar em seus escritos à filosofia biológica, descobriu em Les Chants de Maldoror em quê consiste o obstáculo primordial à inteligência do objeto biológico: o desejo de metamorfose. A ideia de metamorfose é sem dúvida o índice mais concreto da sobredeterminação do objeto biológico, se por isto entendermos o fato, para tal objeto ou tal comportamento, de servir de substituto a um grande número de objetos ou de atos proibidos. Esta sobredeterminação concerne, aliás, mais à animalidade que à vegetalidade. O pensamento arcaico e o pensamento primitivo fizeram e fazem um uso massivo e constante da metamorfose, da conversão de formas animais específicas umas nas outras. Isto, evidentemente, não tem nada a ver com um pensamento transformista, porque o transformismo implica uma orientação pela causalidade, enquanto que a metamorfose é possível em qualquer sentido. Por detrás da imaginação da metamorfose, se deve perceber o desejo insatisfeito de um poder ilimitado de realização do desejo. O animal no qual o homem sonha em se metamorfosear é o delegado pelo homem para o sucesso de um ato que um obstáculo natural ou uma censura social o impede de executar. Poucos animais totens não apresentam alguma qualidade desejável pelo homem. Em seus sonhos de metamorfoses, o homem se identifica com todas as possibilidades, com todas as liberdades supostas da animalidade. Como diz Bachelard: “O homem aparece então como uma soma das possibilidades vitais, como um superanimal”. Mas é imediatamente sensível que um tal vetor da imaginação está em oposição direta às exigências de um conhecimento metódico dos seres vivos: classificação, determinação de constantes funcionais, de leis da hereditariedade. Um daqueles que, por razões mais poéticas do que científicas, tentaram importar para a botânica a ideia de metamorfose, escreveu, no entanto: “A ideia de metamorfose é um maravilhoso mas perigoso dom do Alto. Ela resulta no amorfismo, ela destrói o saber, ela o dissolve” (Goethe, Essai sur la métamorphose des plantes, 1790). Não parece arbitrário detectar na interrogação persistente relativa às origens da vida e nas diferentes versões da tese das gerações espontâneas a presença latente de uma outra sobredeterminação afetiva. Hoje, quem não sabe – e não diz – que a questão da geração é tanto mais fascinante para o indivíduo humano sexuado quanto ela é censurada, mais ainda que dissimulada, pela sociedade. A fabulação infantil sobre Veritas | Porto Alegre, v. 60, n. 2, maio-ago. 2015, p. 264-286 271 G. Canguilhem – Vida o assunto exprime o caráter ao mesmo tempo importante e misterioso do nascimento. Ainda que vários historiadores da biologia, quando eles tratam das origens da vida, atribuam, com toda simplicidade, à ausência de provas ou à insuficiência de provas negativas as crenças sucessivas na espontaneidade de gerações de vivos a partir da matéria, podemos nos perguntar se este não seria um desejo nostálgico de geração espontânea, um mito em suma, que seria o fundo positivo desta teoria. Sabemos que um discípulo dissidente de Freud, Otto Rank, em Le Traumatisme de la naissance (1924), sustentou a ideia de que a separação brutal da criança do meio placentário é a origem e o modelo de toda angústia, e que os mitos de negação, ou seja, de recusa, do nascimento, nos dão a confirmação disto. Seu estudo sobre Le Mythe de la naissance du héros, quanto à formação de homens recusando sua etapa embrionária, se dá por um argumento complementar da teoria. Sem pretender que todos os partidários do que chamamos a geração equívoca ou a heterogonia, fossem eles materialistas ou criacionistas, tivessem apenas colocado em forma de discurso um fantasma originário de seu inconsciente traumatizado, resta que a teoria da geração espontânea é uma sobrevalorização da vida. Na aversão pelo nascimento e pela gênese que não são, via de regra, que continuação e descendência, deve-se perceber um efeito do prestígio do original, do primordial. Se o vivo deve nascer e se ele só pode nascer do vivo, a vida é uma servidão. Mas, se o vivo pode ser declarado perfeito por uma ascensão sem ascendência, a vida é uma dominação. Mas existe uma outra espécie de obstáculo epistemológico em biologia, que podemos nomear obstáculo de interesse técnico. As práticas alimentares, a medicina e a farmácia, a pecuária e a agricultura, depois da caça, da pesca e da colheita, são as principais formas de relações que as diferentes sociedades humanas instituíram primeiramente entre os seres vivos. Lamarck repetiu diversas vezes que o interesse econômico, relativo ao uso de produtos vivos da natureza, precedeu o interesse filosófico, relativo ao conhecimento destes mesmos objetos. Mas ele não se colocou a questão de saber se o primeiro tipo de interesse não era para o segundo uma fonte permanente de perturbações. Talvez não assinalamos suficientemente quanto a utilização de um ser vivo difere da utilização de um objeto inerte. O homem fabricou ferramentas isolando, separando, nas matérias inertes, uma certa propriedade (por exemplo, dureza do metal para uma faca, uma lança; elasticidade da madeira para um arco, uma mola de armadilha). As técnicas do objeto inerte constituem, de qualquer forma, uma prática da abstração. Sem dúvida, o homem deve levar em conta ao mesmo tempo, junto da propriedade que ele utiliza, todas as outras propriedades da matéria em questão, – a ferrugem, por exemplo, para o ferro; mas sua engenhosidade consiste em neutralizá-los 272 Veritas | Porto Alegre, v. 60, n. 2, maio-ago. 2015, p. 264-286 G. Canguilhem – Vida relativamente ao emprego que ele faz, exclusivamente, da propriedade que lhe é útil. No entanto, para utilizar o ser vivo é preciso levá-lo em conta em sua totalidade, e assim o conservar. Quer se trate de alimentos ou de vestuário, as técnicas antigas, e mesmo as contemporâneas, de utilização dos produtos vegetais ou animais, não são técnicas analíticas. Podemos conceber, e tentamos obter em laboratório, através da cultura de tecidos ou de órgãos, produtos vivos dirigidos, equivalentes dos produtos espontâneos correspondentes. Mas enfim, mesmo nas criações pecuárias mais organizadas cientificamente, continuamos a confiar às galinhas o porte de seus ovários, às ovelhas o porte de seu tecido cutâneo lanífero, aos cavalos a circulação de seu sangue gerador de anticorpos imunizadores. É que outros vivos, diferentes do homem, interessaram o homem na medida em que operavam eles mesmos transformações físicas e químicas que geravam produtos que o homem não sabia fabricar através de suas técnicas analíticas, como a seda, o mel, o ópio, as féculas, as tinturas, os venenos. Assim como utilizar um produto vegetal, na alimentação ou na farmacopéia, é valorizar sua capacidade de síntese, primitivamente nomeada essência ou virtude, da mesma forma utilizar um poder animal (olfato do cachorro ou do porco trufeiro, visão do falcão, senso de orientação do pombo), é levar em conta o animal inteiro. Assim, não é necessário insistir sobre a força da inclinação que o uso da vida pelo vivo humano enraizou-se nele, pela qual toda tentativa de explicação analítica da vida se encontra previamente inconscientemente censurada. Seria fácil encontrar em vários textos da época da Renascença ou do século XVII traços desta censura obsessional. No entanto, parece mais convincente assinalá-los em época mais próxima em que, através dos trabalhos de Pasteur, as questões da origem e da natureza da vida foram levantadas em terreno em que agora sabemos que elas podem encontrar sua solução. François Dagognet (Méthode et doctrine dans l’oeuvre de Pascal, 1967) mostrou quais obstáculos as experiências e as análises de Pasteur concernentes à fermentação encontraram no espírito de biólogos ou ainda de bioquímicos, seus contemporâneos, que projetavam em suas explicações deste fenômeno imagens míticas fomentadas pelas técnicas milenares da fabricação do pão e do vinho. A vida como animação De fato, esquecemos, ao falar de animal, de animalidade ou de corpo inanimado, que todos estes termos são os vestígios da antiga identificação metafísica da vida e da alma e da identificação da alma com o sopro (anima anemos). Assim, o único vivo capaz do discurso sobre a vida acreditou falar da vida em geral ao falar da sua, como de uma Veritas | Porto Alegre, v. 60, n. 2, maio-ago. 2015, p. 264-286 273 G. Canguilhem – Vida respiração sem a qual ele mesmo, manifestamente, é incapaz não só da vida, mas da palavra. Se os filósofos gregos anteriores a Aristóteles, e Platão mais e melhor que todos, especularam sobre a essência e o destino da alma, é, no entanto, ao tratado aristotélico, De anima, que remonta a distinção tradicional da alma vegetativa ou nutritiva, faculdade de crescimento e de reprodução, da alma animal ou sensitiva, faculdade de sentir, de desejar e de mover-se, e da alma razoável ou pensante, faculdade de humanidade. Pouco importa aqui saber se Aristóteles concebeu estas três almas como entidades distintas ou somente como graus hierarquizados, em que o inferior pode existir sem o superior do qual ele é, no entanto, a condição indispensável de existência e de exercício. O importante é lembrar que psuchè significa, para os gregos, “sopro refrescante”, e que os judeus não possuíam uma ideia diferente da alma e da vida, como testemunha o trecho do Gênese: “O Eterno Deus forma o homem da poeira da terra, ele assopra em suas narinas um sopro de vida e o homem se torna um ser vivo”. Não seria necessário retomar a história das escolas de Alexandria, judaica com Philon, platônica com Plotin, cujos ensinamentos combinados com a predicação pauliniana (I Cor., XV) inspiraram os temas fundamentais da primeira doutrina cristã, concernente à vida, à morte, à salvação e à ressurreição. Até mesmo o termo de espírito (de spirare) deve ao ecletismo cultural das civilizações mediterrâneas sua capacidade polissêmica, sua ambigüidade, que a fez convir, tão bem em teologia, à terceira Pessoa da Trindade, quanto em medicina, à antecipação figurada do influxo nervoso, sob o nome de espírito vital e de espírito animal. A concepção da vida como animação da matéria, ainda que desgastada, principalmente a partir do século XVII, por concepções materialistas, ou simplesmente mecanistas, das funções próprias aos seres vivos, permaneceu vivaz, no entanto, até a metade do século XIX, sob forma de ideologia medico-filosófica, enquanto que ela havia cessado de aparecer como uma resposta objetivamente fundada à questão da natureza da vida. Pediremos a prova a um texto pouco conhecido e pouco utilizado, o Prefácio dos editores à décima terceira edição do Dictionnaire de médecine (1873), publicado pela J.-B. Baillière por dois médicos de tendência positivista, Émile Littré, autor do célebre Dictionnaire de la langue française, e Charles Robin, professor de histologia na faculdade de medicina de Paris. Este prefácio é a resposta tanto a uma reivindicação de propriedade de um título de obra quanto uma discussão sobre a liberdade de ensino ocorrida no Senado (1868). O Dictionnaire de médecine em questão era a reformulação, desde 1855, do Dictionnaire de P. H. Nysten (1814), ele mesmo sucessor revisado e aumentado do Dictionnaire de médecine de J. Capuron (1806). Os 274 Veritas | Porto Alegre, v. 60, n. 2, maio-ago. 2015, p. 264-286 G. Canguilhem – Vida editores ressaltam a diferença entre o materialismo, do qual se acusa os autores, e o positivismo, que reclamavam para si mesmos; com esta finalidade eles reproduzem as diferentes definições dos termos: alma, espírito, homem, morte, propostos entre 1806 (Capuron) e 1865 (Littré e Robin). Em 1806, a alma é definida: “Princípio interno de todas as operações dos corpos vivos; mais particularmente do princípio da vida no vegetal e no animal. A alma é simplesmente vegetativa nas plantas e sensitiva nos animais; mas ela é simples e ativa, razoável e imortal no homem”. Em 1855, encontramos outra definição: “Termo que, em biologia, exprime, considerado anatomicamente, o conjunto das funções do cérebro e da medula espinhal e, considerado psicologicamente, o conjunto das funções da sensibilidade encefálica, ou seja, a percepção tanto dos objetos exteriores quanto dos objetos interiores; a soma das necessidades, das inclinações que servem à conservação do indivíduo e da espécie, e às relações com os outros seres; as aptidões que constituem a imaginação, a linguagem, a expressão; as faculdades que formam a compreensão; a vontade, e finalmente o poder de fazer funcionar o sistema muscular e de agir assim sobre o mundo exterior”. Em 1863, esta definição era objeto de uma violenta crítica por parte de E. Chauffard, confundindo na mesma reprovação, por um lado Littré e Robin, e por outro Ludwig Buchner (Kraft und Stoff, 1855), grande figura, na época, do materialismo na Alemanha. Chauffard celebrava “a indissolúvel aliança da medicina e da filosofia”, e se entusiasmava ao fundar “a noção do ser real e vivo” sobre “a razão humana que se sente causa e força” (De la philosophie dite positive dans ses rapports avec la médecine). Dois anos depois, Claude Bernard escrevia: “Para o experimentador fisiologista, não poderia haver nem espiritualismo, nem materialismo [...] O fisiologista e o médico não devem imaginar que eles devem pesquisar a causa da vida ou a essência das doenças” (Introduction à l’étude de la médecine expérimentale, II, I). A vida como mecanismo Ao final do Traité de l’homme (1633, mas publicado somente em 16621664), Descartes escreve: “Desejo que considerem que estas funções seguem todas naturalmente, nesta Máquina, à única disposição de seus órgãos, nem mais nem menos do que fazem os movimentos de um relógio ou outro autômato, de seus contrapesos e de suas rodas; de maneira que não se deve nela conceber nenhuma outra Alma vegetativa ou sensitiva, nem nenhum outro princípio de movimento ou de vida que seu sangue e seus espíritos agitados pelo calor do fogo que queima continuamente em seu coração e que possui a mesma natureza que todos os fogos que Veritas | Porto Alegre, v. 60, n. 2, maio-ago. 2015, p. 264-286 275 G. Canguilhem – Vida estão nos corpos inanimados”. É bastante conhecido que a identificação feita por Descartes entre o animal (o homem físico ou fisiológico) e o autômato maquinado e maquinal é o revés da identificação da alma ao pensamento (“Há em nós somente uma alma e esta alma não possui em si nenhuma diversidade de partes...”, Traité des passions, art. 47, 1649) e da distinção substancial da alma indivisível e da matéria extensa. Se o Traité de l’homme pôde, ainda melhor que o resumo que nos fornecia em 1637, em sua quinta parte, o Discours de la méthode, servir de manifesto por uma fisiologia animal purificada de toda referência a um princípio de animação é porque, neste intermédio, a descoberta por W. Harvey da circulação do sangue e a publicação de Exercitatio anatomica de motu cordis et sanguinis in animalibus (1628) haviam proposto um exemplo de explicação hidrodinâmica de uma função da vida que vários médicos, principalmente na Itália e na Alemanha, fizeram esforços para imitar, sob forma de projetos de modelos artificiais, para explicar outras funções como a contração muscular, ou como o equilíbrio do peixe na água. Na realidade, os alunos e discípulos de Galileu na Accadémia del Cimento, J. A. Borelli (De motu animalium, 1680-1681), F. Redi, M. Malpighi, haviam efetivamente tentado aplicar em fisiologia o ensino de Galileu de mecânica e de hidráulica, enquanto Descartes se satisfizera com um programa heurístico mais intencional que operatório. Se é racional procurar a explicação das funções de um órgão, tal como o olho, ou de um aparelho tal como o coração e os vasos, através da construção, em esquema ou em maquete, daquilo que chamamos desde então de modelos mecânicos, como os iatromecânicos (ou iatromatemáticos) dos séculos XVII e XVIII tentaram para a contração muscular, para a digestão, para a secreção glandular, pelo contrário, à prova dos fatos, se mostra impossível explicar somente pelas leis da mecânica galileana ou cartesiana a formação gerativa de órgãos ou de aparelhos cuja coordenação funcional é precisamente o que compreendemos pela vida do vivo. Em suma, o mecanismo é a teoria do funcionamento das máquinas construídas, vivas ou não, mas não da construção das máquinas. Na prática, o mecanismo se mostrou inoperante em embriologia. O uso do microscópio, que se difundiu na segunda metade do século XVII, permitiu a observação dos germes de vivos, ou de vivos nos primeiros estágios de seu desenvolvimento. Mas a observação, por J. Swammerdam, de metamorfoses de insetos, ou a descoberta, por A. van Leeuwenhoek, do espermatozóide, foram inicialmente apresentadas como confirmações de uma concepção especulativa da geração, vegetal ou animal, segundo a qual a semente, ou o ovo, ou ainda o animálculo espermático contêm, pré-formado em uma miniatura que ilumina a ampliação ótica, um ser 276 Veritas | Porto Alegre, v. 60, n. 2, maio-ago. 2015, p. 264-286 G. Canguilhem – Vida que sua evolução levará às suas dimensões de adulto. A observação microscópica que mais ajudou a validar esta teoria é incontestavelmente aquela de Malpighi, relativa à figura inicial de uma gema de ovo de galinha, erroneamente tido como não chocado (De formatione pulli in ovo, 1669). Podemos pensar que o mecanismo professado por Malpighi estruturou inconscientemente sua visão dos fenômenos. Que o queiramos ou não, atrás de toda máquina se perfilava um maquinista, ou seja, na linguagem da época, um construtor. As máquinas vivas postulavam seu maquinista e este postulado conduzia a um Summus Opifex, a Deus. Era então lógico supor que a fabricação das máquinas vivas fora uma operação inicial única, e que, por conseqüência, todos os germes de todos os vivos pré-formados, passados, presentes e futuros, estavam encaixados uns nos outros. Nestas condições, a sucessão dos vivos é uma história apenas aparentemente, já que um nascimento não é, na realidade, outra coisa que um desempacotamento. Quando as observações, menos previstas ou mais engenhosas, reativaram, reformando-a, uma velha interpretação do crescimento embrionário pelo fenômeno da epigênese, ou seja, da aparição sucessiva de formações anatômicas não deriváveis geometricamente de formações antecedentes (C. F. Wolf, Theoria generationis, 1759; De formatione intestinorum, 17681769), a embriologia moderna se instituiu como uma ciência capaz de encorajar a fisiologia a se liberar da fascinação do mecanismo. A multiplicação das observações de microscopistas, naturalistas, médicos, ou curiosos da natureza, contribuiu, no entanto, para o descrédito do mecanismo por um efeito diferente, ainda que paralelo. A estrutura íntima e escondida das partes do vegetal ou do animal pouco a pouco apareceu como prodigiosamente complicada em relação à sua estrutura macroscópica, acessível à vista pelas técnicas de dissecação. A descoberta dos animálculos, desde então nomeados protistas, abriu o império dos vivos a profundezas inimagináveis. Enquanto que a mecânica do século XVII era uma teoria dos deslocamentos e dos choques, ou seja, uma ciência dos dados da vista e do tato, a anatomia microscópica desembocava em objetos para além do manifesto e do tangível, e podia se valer deste além estrutural para conceber um além deste primeiro além, e assim sucessivamente. O microscópio oferecia à imaginação de um infinito de complicações estruturais o poder de rivalizar com um novo cálculo, estranho à álgebra geométrica de Descartes, o cálculo do infinito. Nesta dupla razão de repudiar o mecanismo, Pascal e Leibniz se encontraram sem sabê-lo. Mas o segundo, à diferença do primeiro, soube fundar sobre suas críticas uma concepção dos seres vivos chamada a orientar decisivamente a biologia ainda por vir em direção à representação da vida como organização e organismo. “Assim cada corpo orgânico de Veritas | Porto Alegre, v. 60, n. 2, maio-ago. 2015, p. 264-286 277 G. Canguilhem – Vida um vivo é uma espécie de máquina divina, ou de um autômato natural, que supera infinitamente todos os autômatos artificiais. Porque uma máquina feita pela arte do homem não é máquina em cada uma de suas partes [...]. Mas as máquinas da natureza, ou seja, os corpos vivos, são ainda máquinas em suas menores partes até o infinito. É isto que faz a diferença entre a natureza e a arte, ou seja, entre a arte divina e a nossa” (Monadologie, 1714, 64). A vida como organização É mais uma vez a Aristóteles que é necessário fazer remontar o termo de corpo organizado. Um tal corpo é um corpo disposto para fornecer à alma os instrumentos ou os órgãos indispensáveis ao exercício de seus poderes. É por isso que, até o século XVII, o corpo organizado exemplar é o corpo animal. Nos perguntamos sobre a organização do vegetal, ainda que segundo Aristóteles as partes da planta sejam também órgãos, se bem que extremamente simples. O exame microscópico de preparações vegetais permitiu a generalização do conceito de organização, inspirando até analogias fantasiosas entre as estruturas e as funções vegetais e animais. R. Hooke (Micrographia, 1667), Malpighi (Anatome plantarum, 1675) e N. Grew (The Anatomy of Plants, 1682) descobriram a estrutura da casca, da madeira, da medula, distinguiram os tubos, os vasos e as fibras, compararam raízes, caules, folhas, frutos quanto à relação de suas membranas ou tecidos. O organon grego designa, todavia, tanto o instrumento do músico quanto a ferramenta do artesão. A assimilação do corpo orgânico humano a um órgão designa, no século XVII, mais que uma metáfora – mas não a mesma – em Descartes, Pascal, Bossuet (Traité de la connaissance de Dieu et de soi-même), Leibniz. A polivalência, biológica e musical, dos termos (organização, orgânico, organizar) se encontra até o século XIX no Dictionnaire de Littré. Para Descartes, o órgão orgânico funciona sem organista. Mas para Leibniz a unidade estrutural e funcional do órgão supõe o organista. Sem organizador, ou seja, sem alma, não há organizado ou orgânico. “Não chegaremos nunca a algo do qual possamos dizer: eis realmente um ser, exceto quando encontrarmos máquinas animadas cuja alma ou forma substancial possa tornar a unidade substancial independente da união exterior do toque” (Carta à Arnauld, 28 nov. 1886). Menos célebre, mas mais pedagógico, o médico Daniel Duncan escreve: “A Alma é este hábil organista que forma ele mesmo seus órgãos antes de os fazer tocar [...]. É um jogo peculiar que, nos órgãos inanimados, o organista é diferente do ar que ele neles empurra; ao passo que nos órgãos animados, o organista e o ar que os movimenta são uma só e 278 Veritas | Porto Alegre, v. 60, n. 2, maio-ago. 2015, p. 264-286 G. Canguilhem – Vida mesma coisa, quero dizer a alma, que é extremamente semelhante ao ar ou ao sopro” (Histoire de l’animal, ou la Connaissance du corps animé par la mécanique et par la chimie, 1686). A história do conceito de organismo, no século XVIII, se resume na pesquisa, por naturalistas, por médicos e por filósofos, de substitutos ou de equivalentes semânticos da alma, a fim de dar conta do fato, cada vez melhor estabelecido, da unidade funcional de um sistema de partes integrantes. Em um tal sistema as partes mantém entre si relações de reciprocidade, direta ou mediada, bem representadas pelo que chamamos hoje em dia de gráfico, fazendo com que, entendido rigorosamente, o termo de parte não mais convenha para designar os órgãos dos quais o organismo pode ser entendido como a totalidade mas não a soma. A leitura de Leibniz inspirou Charles Bonnet, tanto que as observações de Abraham Trembley sobre a reprodução dos pólipos por estaquia e suas próprias observações sobre a partenogênese dos pulgões foram confirmadas em sua hostilidade em relação ao mecanismo. “Ainda não consigo tornar a dificuldade suficientemente manifesta: ela não consiste apenas em fazer formar mecanicamente este ou aquele órgão, composto ele mesmo de tantas peças diferentes, ela consiste principalmente em explicar, unicamente pelas leis da mecânica, esta imensa quantidade de relações variadas que ligam tão estreitamente todas as partes orgânicas, e em virtude das quais elas conspiram todas para um mesmo objetivo geral, ou seja, formar esta unidade que nomeamos animal, este todo organizado que vive, cresce, sente, se move, se conserva, se reproduz” (“Quadro das considerações sobre os corpos organizados”, em La Palingénésie philosophique, 1769). Na Alemanha, no fim do século XVIII, o texto que mais contribuiu para inscrever o organismo no topo da lista dos conceitos da biologia do período romântico é a Critique du jugement (1790) de Kant. No artigo 65, Kant, sem utilizar as palavras de vida ou de vivo, analisa o conceito de ser organizado. Um tal ser é máquina em um sentido, mas não o é no que supõe uma energia formadora, organizadora de matérias que não a possuem, energia diferente da simples potência motriz. O corpo orgânico não é somente organizado, ele é auto-organizador. “Em um tal produto da natureza, cada parte, como só existe em virtude de todas as outras, é concebida também como existente para as outras e para o conjunto, ou seja, como instrumento (órgão); e tal não é suficiente [...], mas ela deve ser considerada como órgão que engendra os outros (e isto reciprocamente); ora, nenhum instrumento da arte pode ser assim, mas somente aqueles da natureza”. Na mesma época, o médico C. F. Kielmeyer, que Cuvier, estudante, havia encontrado como condiscípulo na Academia Caroline Veritas | Porto Alegre, v. 60, n. 2, maio-ago. 2015, p. 264-286 279 G. Canguilhem – Vida de Stuttgart, expôs em uma célebre conferência (Rapport des forces organiques dans la série des différentes organisations, 1793) as ideias diretrizes de um ensino da zoologia e da botânica que exerceu grande influência. O organismo é definido como sistema de órgãos em relação de reciprocidade circular; estes órgãos são determinados por suas ações, de modo que o organismo é mais um sistema de forças que um sistema de órgãos. Kielmeyer parece copiar Kant quando ele diz: “Cada um dos órgãos, nas modificações que ele sofre em cada instante, é a tal ponto função daquelas que sofrem seus vizinhos que ele parece ser causa e efeito das causas”. Compreendemos então o prestígio que possuíam as imagens do círculo e da esfera para os naturalistas românticos. O círculo configura a reciprocidade dos meios e dos fins ao nível dos órgãos. A esfera configura a totalidade, individual ou universal, das formas e das forças orgânicas. Na França, no início do século XIX, fora da biologia de Cuvier, mas não sem relação com ela, é a filosofia de Auguste Comte que expôs de maneira sistemática os elementos de uma teoria da organização viva (Cours de philosophie positive, III, 1838; lição XL-XLIV). Considerando que “a ideia de vida é realmente inseparável daquela de organização”, Comte define o organismo pelo consensus de funções “em associação regular e permanente com o conjunto dos outros”. Consensus é a tradução latina do grego sumpatheia. A simpatia, pela qual os estados e as ações das partes determinam uns aos outros pela comunicação sensitiva, é uma noção que Comte empresta, juntamente daquela de sinergia, de Barthez, que escreve: “A conservação da vida está ligada às simpatias dos órgãos, assim como o organismo o está às suas funções [...]. Designo por esta palavra de sinergia uma confluência de ações simultâneas ou sucessivas de forças de diversos órgãos, confluência tal que estas ações constituem, por sua ordem de harmonia ou de sucessão, a forma própria de uma função da saúde ou de um gênero de doença” (Nouveaux Éléments de la science de l’homme, IX). Comte, sabemos, importa para a teoria do organismo social este conceito de consensus, e é na exposição da estática social que ele o retoma para retrabalhá-lo a fim de generalizá-lo. Consensus torna-se então sinônimo de solidariedade nos sistemas orgânicos, e Comte esboça uma série de graus do consensus orgânico, cujos efeitos são ainda mais estritos que ascendemos do vegetal ao animal e ao homem. A partir do momento em que consensus é identificado com solidariedade, não sabemos mais, do organismo ou da sociedade, qual deles é modelo, ou ao menos a metáfora, do outro. Nos enganaríamos ao atribuir somente à lassidão da linguagem filosófica a indeterminação do sentido da relação entre organismo e sociedade. Deve-se perceber, no plano de fundo, a persistência da 280 Veritas | Porto Alegre, v. 60, n. 2, maio-ago. 2015, p. 264-286 G. Canguilhem – Vida imagem tecnológica sempre vivaz desde os tratados aristotélicos. No início do século XIX, um conceito importado da economia política, o da divisão do trabalho, vem enriquecer a acepção do conceito de organismo. A primeira exposição desta transcrição metafórica deveu-se ao fisiologista comparatista Henri Milne-Edwards, no artigo “organização” do Dictionnaire classique des sciences naturelles (1827). O organismo sendo concebido como um tipo de ateliê ou de manufatura, torna-se lógico medir o aperfeiçoamento dos seres vivos pela diferenciação estrutural e pela especialização funcional crescente de suas partes, logo, por sua complexificação respectiva. Mas esta complexificação requer, em compensação, uma garantia de unidade e de individuação. A introdução da teoria celular na biologia, vegetal inicialmente (meados de 1825), animal em seguida (meados de 1840), devia necessariamente orientar a atenção em direção aos problemas de integração de individualidades elementares e de vidas particulares na individualidade totalizante de um organismo e em sua vida geral. Estes problemas de fisiologia geral são precisamente aqueles que Claude Bernard progressivamente privilegiou no curso de sua carreira de pesquisador e professor. Disto encontraremos a prova na nona de suas Leçons sur les phénomènes de la vie communs aux animaux et aux végétaux. O organismo é uma sociedade de células ou de organismos elementares ao mesmo tempo autônomos e subordinados. A especialização dos componentes é função da complexidade do conjunto. O efeito desta especialização coordenada é a criação, ao nível dos elementos, de um meio intersticial líquido que Claude Bernard nomeou “meio interior”, e que é a soma das condições físicas e químicas de toda vida celular. “Poderíamos expressar esta condição do aperfeiçoamento orgânico dizendo que ele consiste em uma diferenciação, cada vez mais acentuada, do trabalho preparatório à constituição do meio interior”. Bem sabemos que Claude Bernard foi um dos primeiros a colocar em evidência a constância deste meio interior, que sob o nome de secreção interna ele descobriu um mecanismo de regulação e de controle desta constância, desde então designada pelo termo de homeostasia. É nisto que consiste o aporte original e capital da fisiologia bernardiana à concepção moderna da organização viva. É porque a existência de um meio interior, de constância obtida pela compensação das diferenças ou perturbações, constitui para os organismos regulados uma garantia de independência relativa, face às variações ocorridas nas condições externas de sua existência. Claude Bernard preferia o termo de elasticidade para dar ideia do que ele pensava da vida orgânica. Talvez ele esquecesse que a máquina paradigma de sua época, a máquina a vapor, era provida de um regulador, quando ele escrevia: “Tratamos o organismo como uma máquina e temos razão, mas Veritas | Porto Alegre, v. 60, n. 2, maio-ago. 2015, p. 264-286 281 G. Canguilhem – Vida o consideramos como uma máquina mecânica fixa, imutável, encerrada nos limites de uma precisão matemática, e então erramos. O organismo é uma máquina orgânica, ou seja, uma máquina dotada de um mecanismo flexível, elástico, devido a procedimentos especiais orgânicos que são colocados em funcionamento sem, no entanto, derrogar as leis gerais da mecânica, da física e da química”. (Pensées. Notes détachées, publicadas em 1937). A vida como informação Se compreendemos por cibernética uma teoria geral das operações controladas, executadas por máquinas montadas de tal maneira que seus efeitos ou seus produtos estejam conformes a normas fixadas ou ajustadas a situações instáveis, acordaremos que seria normal que as regulações orgânicas, e sobretudo aquelas que o sistema nervoso assegura, tornem-se um dia o modelo destas máquinas das quais muitas eram tomadas por modelos destas regulações. Entre as máquinas a servo-mecanismo ou a homeostatos e os organismos, as relações de analogia são de duplo sentido. Ao conceito de ação recíproca das partes umas sobre as outras acrescentou-se o conceito de retroação (feed-back) ou de circuito de regulação. É por isso que a organização cibernética das máquinas artificiais e das máquinas naturais se dá em termos de teoria das comunicações, ou seja, de informação. Em um sistema de ligações em que a grandeza de um efeito é controlada por um detector de desvios a partir da taxa ou do optimum fixados, e onde a detecção determina por ação retrógrada uma modificação da quantidade da causa, o agente do controle e do comando intervém como portador de uma instrução comunicada pelo detector ao efetuador. Esta instrução opera por sua forma de sinal mais do que por sua força de impacto. A informação é uma mensagem de ordem em todos os sentidos do termo: estrutura coerente com função de chave, comando sem equívoco. Um organismo é então compreendido como um sistema biológico, sistema dinâmico aberto que defende seu equilíbrio, mantendo constantes perante e contra as perturbações que o afetam, ajustando, seja a um nível de manutenção, seja a uma performance a realizar, as relações que ele mantém com o meio de onde tira sua energia. Os trabalhos de C. E. Shannon (1948) sobre a teoria das comunicações e da informação, sobre as relações entre a teoria da informação e a termodinâmica, pareceram oferecer à filosofia biológica os elementos de uma resposta positiva à questão milenar da natureza e função da vida. O segundo princípio da termodinâmica, que explica a irreversibilidade das 282 Veritas | Porto Alegre, v. 60, n. 2, maio-ago. 2015, p. 264-286 G. Canguilhem – Vida transformações em um sistema isolado, por degradação da energia ou por crescimento da entropia, concerne aos objetos indiferentes à qualidade de seus estados, inertes, mortos. O organismo que se nutre, cresce, regenera suas mutilações, reage às agressões, se cura espontaneamente de certas doenças, não está em luta contra o destino de desorganização universal proclamada pelo princípio de Carnot? A organização é ordem no seio da desordem? Manutenção de uma quantidade de informação proporcional à complexidade da estrutura? Em sua linguagem algorítmica própria, será que a teoria da informação não diria mais sobre a questão do vivo que Bergson em L’Évolution créatrice (1907, III)? A distância é grande e a diferença irredutível entre as teorias atuais da organização por informação e as ideias que tinham, por um lado, Claude Bernard sobre o desenvolvimento do organismo individual sob o império de uma “ideia diretriz” e, por outro, Bergson sobre a evolução das espécies na esteira do élan vital. Claude Bernard não fornecia nenhuma explicação sobre a evolução das espécies, Bergson não fornecia nenhuma explicação da estabilidade, da fiabilidade das estruturas vivas. O agrupamento das lições da biologia molecular e da genética determinou a formação de uma teoria unitária da construção química, do funcionamento regulado, da hereditariedade e das variações específicas por seleção natural, à qual a teoria da informação conferiu um rigor comparável àquele das teorias físicas. Mas permanece uma questão, no interior da teoria, e cujo status mesmo de questão não parece estar em via de ser ultrapassado: é aquela da origem da informação biológica. A. Lwoff ensina que a ordem biológica só pode nascer da ordem biológica, formulação contemporânea dos aforismos omne vivum ex vivo, omnis cellula e cellula. Como representar então a auto-organização inicial, se é verdade que a transmissão de informação supõe uma fonte de informação? Um filósofo, Raymond Ruyer, coloca a questão: “O acaso não pode determinar a razão do anti-acaso. A comunicação mecânica de informação por máquina não pode determinar a razão da informação ela mesma, já que a máquina só pode degradá-la, ou, no melhor dos casos, conservá-la”. Esta questão, os biólogos não a consideram insignificante. As teorias contemporâneas da origem da vida sobre a Terra procuram em uma evolução química a condição da evolução biológica. No quadro estrito da teoria da informação, um jovem biofísico, H. Atlan, propôs recentemente uma resposta engenhosa e difícil que ele nomeia “o princípio de ordem a partir de ruído” segundo o qual os sistemas auto-organizadores utilizam, para evoluir, o “ruído”, ou seja, as perturbações aleatórias do meio. O sentido da organização estaria na utilização do contrassenso? Mas por que sempre dois sentidos inversos? Veritas | Porto Alegre, v. 60, n. 2, maio-ago. 2015, p. 264-286 283 G. Canguilhem – Vida A vida e a morte Paradoxalmente, o que caracteriza o vivo é o fenômeno de usura progressiva e de cessação definitiva destas funções, mais que sua existência mesma. É sua morte que qualifica os indivíduos vivos no seio do mundo, é sua inevitabilidade que torna sensível a aparente exceção que eles instituem relativamente às coerções termodinâmicas. De maneira que a busca dos signos da morte é, no fundo, a busca invertida de um signo irrecusável da vida. A teoria de A. Weismann (1885) sobre a continuidade do plasma germinativo oposta à mortalidade de seu suporte somático, as técnicas de cultura de tecidos embrionários (Alexis Carrel, 1912), ou de cultura pura de bactérias, introduziram, na biologia geral, a noção de imortalidade potencial do vivo unicelular, mortal somente por acidente, e fizeram crer na ideia que o envelhecimento e a morte natural, ao termo de uma duração específica de vida, estão ligados à complexidade dos organismos altamente integrados. Em tais organismos, cada constituinte elementar está submetido a uma limitação de suas potencialidades, devido ao fato do exercício, pelos outros constituintes, de suas funções respectivas. Morrer é o privilégio, ou o resgate, ou em todo caso o destino, das máquinas naturais melhor reguladas, das mais homeostáticas. Considerada do ponto de vista da evolução das espécies, a morte é o fim da suspensão que a pressão da seleção acorda aos mutantes momentaneamente mais aptos a se situarem em um certo contexto ecológico. A morte abre vias, libera espaços, abre falaciosamente o futuro a formas imprevistas de vida para as quais a última hora também soará. Considerada do ponto de vista do indivíduo, a morte é um prazo inscrito em seu patrimônio genético, como se sua anulação e seu retorno à inércia, passado um determinado prazo, lhe fossem impostos como seu último dever. Podemos então nos perguntar por que uma teoria como aquela que Freud esboçou sob a denominação de “pulsão de morte” (Au-delà du principe de plaisir, 1920) encontrou tantas resistências. Esta ideia em Freud estava ligada a uma concepção energética da vida e do psiquismo. Se é verdade que o vivo é um sistema em desequilíbrio incessantemente compensado por empréstimos do exterior, se é verdade que a vida está em tensão com o meio inerte, o que há de estranho ou de contraditório na hipótese de um instinto de redução das tensões à zero, de uma tendência à morte? “Se nós admitirmos que o ser vivo só apareceu a partir dos objetos inanimados do qual ele é originário, devemos concluir que o instinto de morte se conforma à fórmula dada acima, segundo a qual todo instinto tende a restaurar um estado anterior”. Talvez a teoria freudiana 284 Veritas | Porto Alegre, v. 60, n. 2, maio-ago. 2015, p. 264-286 G. Canguilhem – Vida seria alvo de uma reconsideração, se em relação às conclusões dos trabalhos de Atlan: “O único projeto reconhecível de fato nos organismos vivos é a morte. Mas, devido à complexidade inicial desses organismos, perturbações capazes de afastá-los do estado de equilíbrio tem como conseqüência a aparição de uma complexidade ainda maior no processo mesmo de retorno ao equilíbrio” (“Mort ou vif?”, em L’Organisation biologique et la théorie de l’information, 1972). Restaria, em último lugar, compreender a razão e o sentido do desejo reacional de imortalidade, do sonho de sobrevivência – “tema de fabulação útil”, diz Bergson – próprio ao homem de certas culturas. Uma árvore morta, um pássaro morto, uma carniça: tantas vidas individuais abolidas sem consciência de seu destino de morte. O valor da vida, a vida como valor não se enraizaria no conhecimento de sua precariedade essencial? “A morte (ou sua alusão) torna os homens preciosos e patéticos. Eles emocionam por sua condição de fantasmas; cada ato que eles executam pode ser o último; nenhum rosto que não esteja no instante de se dissipar como um rosto de sonho. Tudo nos mortais possui o valor do irrecuperável e do aleatório” (J. L. Borges, L’Aleph, 1962). Referências ATLAN, H. L’Organisation biologique et la théorie de l’information. Paris: Hermann, 1972. BEADLE, G. & M. The Language of life. New York, 1966. BERNARD, C. Leçons sur les phénomènes de la vie communs aux animaux et aux végétaux. Paris, 1878, 2. éd. Paris: G. Canguilhem, Vrin, 1966. BRILLOUIN, L. Vie, matière et observation. Paris: A. Michel, 1959. DAGOGNET, F. Méthodes et doctrines dans l’oeuvre de Pasteur. Paris: P.U.F, 1967. ELSASSER, W. M. Atome et organisme. Nouvelle approche d’une biologie théorique (Atom and Organism. A New Approach to Theoretical Biology, 1966). Trad. P. Gavaudan. Paris, 1970. GILSON, É. D’Aristote à Darwin et retour. Essai sur quelques constantes de la biophilosophie. Paris: Vrin, 1971. 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Ipiranga, 6681 90619-900 Porto Alegre, RS, Brasil Data de recebimento: 30/09/15 Data de aceite: 30/10/15 286 Veritas | Porto Alegre, v. 60, n. 2, maio-ago. 2015, p. 264-286