DOSSIÊ
Rodrigo de Freitas Costa
O TEATRO DE RUA E SUA EXPRESSÃO POLÍTICA: OS PRIMEIROS ANOS DO GRUPO GALPÃO
DE BELO HORIZONTE (1982 - 1990)
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STREET THEATER AND ITS POLITICAL EXPRESSION: THE FIRST YEARS OF GRUPO GALPÃO
FROM BELO HORIZONTE (1982 - 1990)
Rodrigo de Freitas Costa2
Recebido em: 30 de setembro de 2020.
Aprovado em: 24 de novembro de 2020.
https://doi.org/10.46401/ardh.2020.v12.12159
RESUMO: A partir das reflexões sobre a artes brasileiras produzidas no período posterior à Ditadura Militar, este artigo apresenta
questões sobre o processo de formação do
Grupo Galpão, coletivo teatral formado em
Belo Horizonte no início da década de 1980,
responsável por reconhecidos espetáculos de
rua e importantes encenações de textos clássicos da dramaturgia ocidental. Para tanto,
nosso foco será no ambiente da década de
1980 procurando compreender a importância
do teatro de rua naquele contexto, as opções
estéticas realizadas pelos atores e, por fim,
os debates temáticos oriundos das primeiras
peças do grupo.
ABSTRACT: Based on reflections about
Brazilian arts produced after the Military
Dictatorship, this article presentes questions about the process of formation of
Grupo Galpão, a theater colletive formed
in Belo Horizonte in the early 1980s, responsible for recognized street plays and
important encenations of classical texts of
western dramaturgy. Therefore, we will
focus on the environment of the 1980s,
trying to understand the importance of
street theater in that contexto, the aesthetic options made by the authors, finally,
the thematic debates arising from the first
plays of Golpão.
Palavras-chave: Grupo Galpão; Teatro de
Rua; Democracia; Debate político.
Keywords: Grupo Galpão; Street
Theater; Democracy; Public Debate.
1 Este texto foi produzido a partir do projeto de pesquisa “O Grupo Galpão de Belo Horizonte (1982-2017): a história pelo viés popular e o repertório dramático clássico”, financiado pelo Edital 001/2018 de Demanda Universal da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de Minas Gerais – FAPEMIG.
2 Professor Associado do Departamento de História da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (Uberaba-MG), professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia e membro da Rede de Pesquisa em
História e Culturas no Mundo Contemporâneo. E-mail: rodrigo.costa@uftm.edu.br.
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Pensar o teatro a partir de descrições do que acontece em cena, ignorando o que a existência,
a forma, o lugar, o volume desta cena devem a uma construção – que não é universal e não
é óbvia – é pensar o teatro esquecendo a política que o ordena – a prescrição, a convocação
política que o põe em cena.
Dénis Guénoun
Depois trinta e cinco anos do fim da Ditadura Militar, o Brasil se vê diante de dilemas renovados
quando o assunto envolve o binômio autoritarismo e política. Além das violências cotidianas que não
podem ser naturalizadas, hoje temos convivido com declarações públicas ríspidas e antidemocráticas de representantes do Estado que encontram apoio em ampla parcela da população.
Este texto parte da constatação de que a violência política brasileira precisa ser sempre denunciada, contestada e desnaturalizada. Para tanto, entendemos que as artes ocupam papel importante
como força contestatória e reflexiva. Não por acaso, somente nos últimos dois anos no Brasil o Ministério da Cultura foi extinto, artistas diversos estão sendo atacados, políticas públicas de fomento
às artes estão sendo criminalizadas e, pouco a pouco, a liberdade de expressão vem sendo interrompida. Como pensar sobre essa situação do ponto de vista da produção teatral brasileira recente?
Como o teatro pode nos ajudar a refletir a respeito da complexidade em que vivemos?
Ao buscar as linhas de convergências entre passado e presente, podemos minimamente entender como artistas do nosso passado recente se colocaram contra o arbítrio e fizeram do ofício artístico uma forma de ser e estar no mundo e também de se contrapor aos autoritarismos. Com isso,
estaremos recuperando as experiências do passado e suas perspectivas de futuro em uma época
em que muitas mentes e corpos duvidavam da capacidade de transformação das mazelas que hoje,
infelizmente, são reafirmadas.
Entre a multiplicidade de ações no campo teatral recente, o nosso recorte neste texto recai
sobre o trabalho desenvolvido pelo Grupo Galpão, de Belo Horizonte, mais especificamente sobre
o teatro produzido por esse coletivo teatral ao longo da década de 1980. Sendo assim, dividimos o
texto em três partes, onde inicialmente trataremos da formação do Galpão e suas escolhas artísticas
no interior das artes cênicas; depois realizaremos algumas considerações sobre os aspetos políticos
que o teatro de rua carrega e, por fim, apresentaremos algumas considerações sobre as primeiras
peças encenadas pelo grupo no centro da capital mineira. Esse percurso narrativo e interpretativo
tem sentido porque buscamos, através dele, apontar o espaço de experiência do grupo teatral e
suas respostas estéticas em uma época de retomada do debate democrático no Brasil após anos de
política autoritária levada à cabo pelos militares.
O processo de formação do Grupo Galpão e suas perspectivas artísticas
Atualmente, o Galpão é um dos grupos de teatro de rua mais conhecido no Brasil, com amplo
reconhecimento de crítica e com mais de quarenta prêmios no currículo. Formado em 1982 pelos
atores Teuda Bara, Eduardo Moreira, Antonio Edson, Wanda Fernandes e Fernando Linares, o grupo
cresceu ao longo do tempo, realizou projetos com diferentes encenadores, construiu uma carreira
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sólida, encenou diversos espetáculos e hoje conta com um amplo espaço de fomento ao teatro e às
artes na cidade de Belo Horizonte, o Galpão Cine Horto.
O encontro dos atores que formaram o Grupo foi possível após a realização de uma oficina de
teatro promovida pelo Goethe Instituit, no Teatro Marília (Belo Horizonte), com dois integrantes do
Teatro Livre de Munique, Kurt Bildstein e George Froscher, no início da década de 1980.
Naquele momento, enquanto os atores que fundaram o Galpão estavam na faixa dos vinte
anos, o Brasil vivia um processo intenso de discussão de retomada dos direitos civis castrados pelos
militares desde o golpe de 1964. É de conhecimento amplo o fato de que as artes sofreram severas
restrições durante a Ditadura Militar. Além do mais, o país na década de 1980 carregava traços bem
distintos daqueles que possuía nos idos de 1960. No campo cultural, aconteceram guinadas profundas relacionadas à consolidação da cultura de massas no país sobretudo por meio do processo
de difusão do sinal de televisão para todo o território nacional. Ao mesmo tempo, características
educacionais que interferem no processo de fruição artística também ocorreram de maneira contundente, especialmente após a reforma universitária realizada pelo Estado autoritário por meio da
parceria MEC-USAID.
Passado esse período de mudanças profundas, no final da década de 1980, o crítico Yan Michalski (1994) fez um importante balanço sobre a produção teatral brasileira após abertura política
no Brasil. Ele reconheceu que durante o arbítrio houve intenso trabalho criativo nos palcos e na
dramaturgia e que muitos estudiosos acreditavam que o fim da Ditadura significaria uma maior explosão criativa teatral, o que não aconteceu. A leitura que o autor faz da realidade da época aponta
para os problemas vividos pelo teatro diante da sociedade inaugurada pelos militares depois de mais
de vinte anos de realocação das forças econômicas e políticas no país. Por exemplo, o público de
teatro mudou com a proliferação da televisão, os códigos de fruição das artes cênicas se alteraram,
a carreira de ator também passou a ser valorizada de forma distinta e a política cultural da Ditadura
acabou desestimulando os coletivos teatrais.
As considerações de Michalski são importantes porque escrevendo no calor dos acontecimentos de 1980 apontam para um quadro complexo de mudanças culturais substanciais ao passo que
tem como parâmetro teatral o que ocorreu ao longo das décadas de 1960 e 1970, especialmente
nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Nesse contexto, ele afirma que
O acirramento de um espírito individualista, um dos motivos básicos para o virtual desaparecimento do trabalho grupal a longo prazo, é evidentemente uma herança do sistema de valores
ontem glorificado pelos governos e pelos meios de comunicação de massa a ele submissos,
e que hoje continua sendo idealizado por uma mentalidade vigente baseada no culto do
bem-estar material, do prestígio pessoal, da valorização do indivíduo pelo prisma das leis do
consumo. O fenômeno ultrapassa de longe o âmbito da vida teatral, mas assume dentro desse
âmbito configurações de grande peso, e responde em boa parte pelo vazio de valores em que
o teatro hoje se debate (MICHALSKI, 1994, p. 116)
Essa análise é coerente por apontar as mudanças que ocorriam naquele momento, porém “o
vazio de valores” não era uma tônica e não pode ser generalizado. O surgimento do Galpão demonstra essa tendência, o que não quer dizer que os atores do grupo não tiveram que lidar com as
dificuldades que a época impunha e que o próprio crítico Michalski ressaltou. Elas existiam e avivam
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a importância do coletivo de atores de Belo Horizonte que fazia do ato teatral uma forma de resistência em meio à transição da ditatura para a democracia.
No processo de rememoração dos atores, o momento de formação do grupo é sempre lembrado a partir das dificuldades que a época impunha. Eduardo Moreira, ao refletir sobre a trajetória do
Galpão, lembra que o coletivo possui aguçado espírito de mudança e transformação, conforme as
necessidades históricas e desafios estéticos e artísticos de cada momento.
Penso que tal espírito foi moldado desde a fundação do grupo e a formação de seus atores, no
encontro com os diretores alemães do “Teatro Livre de Munique”. Isso porque, levar o teatro
para a rua, no Brasil, em 1982, significava uma ruptura com o “status quo” de uma sociedade
cuja expressão artística estava coibida e confinada por dezoito anos de falta de liberdade e
perseguições políticas. (MOREIRA, 2013, p. 117)
Além do agrupamento de atores em torno de um projeto teatral comum, se percebe a opção
pelo teatro de rua como escolha de ordem estética e política em uma época de redimensionamentos
sociais no Brasil.
Os debates e entendimentos sobre as noções de liberdade de expressão ou de criação artística
faziam parte não só da história política do Brasil, mas de um movimento social que se intensificava entre nós pelos ventos da distensão política. Em edição comemorativa dos 15 anos do Galpão,
Carlos Antônio Leite Brandão rememora a formação do grupo mobilizando todo um repertório de
referências internacionais dos anos de 1960 e 1970 para realçar a liberdade que se apresentava aos
atores de Belo Horizonte em 1982.
A atmosfera em que formávamos nosso espírito ansiava por uma liberdade difusa e impregnava-se de energia e rebeldia. Nos anos [19]70 ainda repercutiam os ecos do movimento
hippie, de maio de 68, do avanço do socialismo e da contestação nos planos cultural, artístico
e político. Assistindo àqueles espetáculos, eu começava a me interessar pelo teatro, enquanto
de outro lado modelava-se a vocação dos futuros integrantes da trupe: Teuda Bara, Eduardo
Moreira, Wanda Ferdandes e Antônio Edson (Toninho) – além de Fernando Linares, fundador
e participante dos primeiros espetáculos do grupo. Foi no período das oficinas de teatro,
promovidas pelo Goethe Institut, no Teatro Marília, com Kurt Bildstein e George Froscher, dos
membros do Teatro Livre de Munique, que Eduardo, meu amigo de colégio, me disse ter decidido dedicar sua vida ao teatro. Tínhamos cerca de vinte anos. Confesso que achei a opção
meio louca, pois para mim fazer teatro era apenas uma experiência alternativa sobre a qual
não valia a pena ter grande empenho. Creio que João Machado, com quem a maior parte de
nós fizera as primeiras investidas teatrais, e Chico Pelúcio, futuro integrante do grupo e participante dessas experiências juvenis, também não tinham grandes convicções sobre isso. Era
um receio, não só do ponto de vista político, mas sobretudo do ponto de vista profissional.
Parecia-me, realmente, uma loucura. (BRANDÃO, 1999, p. 18)
Outro aspecto importante na fala de Brandão é a referência de que o fazer teatral se apresentava para ele como uma “experiência alternativa” não só do ponto de vista político, mas também
profissional. Nesse ponto, existentes convergências importantes com o diagnóstico de Michalski
sobre as transformações que Ditatura empreendeu entre nós. É claro que havia importante dose de
liberdade e ousadia de jovens que naquele momento resolviam montar um coletivo teatral, porém
esse ato também demonstra que existiam possibilidades criativas que precisavam ser pensadas
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frente às transformações da época.
A estética do teatro de rua como opção artística para o Galpão não surgiu por acaso. Se por
um lado existe o contato com atores do Teatro Livre de Munique e a ânsia da juventude pela liberdade de expressão política e artística, por outro, há a necessidade de dialogar com um público
diferente, provavelmente marcado pela forma expressiva da televisão, pela crise econômica e pelo
desestímulo de anos de políticas públicas contrárias à formação cultural. Além disso, há o elemento
regional, uma vez que no Brasil a produção artística é muito localizada em algumas regiões, como
o eixo Rio-São Paulo. Como atingir o público de Belo Horizonte no início da década de 1980? Sem
plateia não há expressão teatral e os desafios que a década de 1980 inaugurava passavam por todas
essas variáveis.
Hoje, depois de três décadas e com o sucesso que o grupo alcançou, tendemos a olhar para
o momento de criação do Galpão sem se atentar bem para os desafios que estavam colocados à
época. Eles não eram pequenos e não é bom que sejam encarados apenas pelo ímpeto criativo
de jovens atores que, mal ou bem, sabiam as dificuldades que enfrentavam. Teuda Bara, Eduardo
Moreira, Wanda Fernandes, Antônio Edson e outros tinham consciência da época em que viviam e
é por isso que optam pelo teatro de rua. Sem políticas de financiamento público das artes, com o
fortalecimento dos meios de comunicação de massa, com o empobrecimento financeiro e cultural da
população promovido pelos militares, com a carreira de ator significando para a maioria dos jovens
uma forma de acesso ao mundo televisivo e, além disso, fora dos grandes eixos de produção de arte
e cultura no Brasil, o teatro de rua surgia como uma possibilidade para a prática teatral. E assim foi.
É claro que apenas a prática do teatro de rua e a vontade de mergulhar no mundo das artes
cênicas não resolveriam os problemas daqueles jovens atores e muito menos dariam base para que
eles formassem, anos depois, um grupo profissional de teatro. O que ocorreu a partir de 1982 foi,
de fato, o início de um processo que envolveu caminhos variados, encontros profissionais e artísticos
importantes e possibilidades criativas diferentes. Em outros termos, o grupo foi se formando pouco
a pouco, dialogando e enfrentando as dificuldades de cada época, repensando o projeto de contato
com o público e encontrando meios para que fosse possível produzir teatro frente à inteiramente
nova realidade nacional. Em suma, o Grupo Galpão de Belo Horizonte surge como uma proposta
cênica, se desenvolve como um projeto e se faz constantemente em diálogo com a complexidade
de cada momento histórico que vivencia. Nesse caminhar, existem doses importantes de um refazer
constante, num longo processo que o próprio Eduardo Moreira gosta de chamar de dialético. Realçado esse ponto, pode-se dizer que um dos maiores acertos do grupo foi a opção pela estética e a
potencialidade do teatro de rua.
A rua representava muito para uma sociedade que desde 1964 se viu confinada no espaço
privado. Em termos de ação política, a Ditadura Militar reprimiu constantemente as ações coletivas nos espaços públicos. Em termos educacionais, a reforma realizada pelos militares reforçou a
ótica individual e o mérito por meio do enfraquecimento das humanidades e valorização de cursos
técnicos e profissionalizantes. Do ponto de vista cultural, as propostas artísticas sustentadas pela
coletividade ou pelo encontro de pessoas foram desvalorizadas. A partir da década de 1980, a rua
começou representar muito mais que um espaço de passagem, ela se tornou para aqueles jovens
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atores um local de encontro, diálogo e interação. O teatro de rua, que nunca deixou de existir no
Brasil, foi naquele contexto uma escolha estética e política para a existência do Galpão.
A força das ruas pode ser percebida pelo número de espetáculo que o grupo montou ao longo dos anos 1980: “E a noiva não quer casar...” (1982 – direção de Fernando Linares), “De olhos
fechados” (1983 – direção de Fernando Linares), “Ó prô cê vê na ponta do pé” (1984 – direção de
Fernando Linares e Eduardo Moreira), “Arlequim servidor de tantos amores” (1985 – direção de
Fernando Linares), “A comédia da esposa muda” (1986 – direção de Paulinho Polika), “Triunfo: um
delírio barroco” (1986 – direção de Carmen Paternostro), “Foi por amor...” (1987 – direção de Antonio Edson) e “Corra enquanto é tempo” (1988 – direção de Eid Ribeiro). Porém, mais importante do
que citar todos esses espetáculos, é compreender a dimensão política que o teatro e a rua carregam
e a potência que surge dessa convergência.
Teatro de rua como condicionante política
O teatro, tanto do ponto de vista formal quanto de conteúdo, é desde seu surgimento um espaço de encontro, de aproximações de propostas e de (re)formulação das múltiplas relações entre
indivíduos e sociedade. Isso significa que o ato teatral, entendido a partir de sua ampla variedade
histórica, é por natureza um ato de formação cidadã e democrática, além de não deixar de ser um
espaço de “potência da utopia”. Obviamente que com o teatro de rua isso também ocorre e, conforme a proposta cênica, pode até ser potencializado.
Para tanto, é preciso entender que o teatro de rua não se resume a discussões somente sobre
espaço cênico, mas compreende também questões de linguagem própria, as quais estão diretamente relacionadas com os redimensionamentos contemporâneos sobre as noções de “cidade” e “arte
teatral”.
No campo acadêmico, as discussões sobre cidade envolvem inúmeras áreas do conhecimento
que têm contribuído bastante para os debates sobre expressões artísticas inseridas no espaço urbano. Partindo da história, passando pela sociologia, antropologia, filosofia, geografia e teoria da
comunicação, entre outras, encontramos hoje uma boa quantidade de discussões que podem nos
ajudar a refletir sobre a importância do teatro de rua no Brasil da década de 19803.
O uso do termo “fenômeno urbano” por diversos autores tem ajudado a compreender a cidade
e seus espaços – ruas, praças, quadras de esportes, calçadas, estações de ônibus e metrô etc – não
apenas como ambientes de passagem em meio ao turbilhão de trabalho do mundo contemporâneo.
Os encontros entre diferentes pessoas ocorrem, apesar de muitas vezes fugazes, devem ser entendidos como possíveis e, portanto, capazes de aguçar os olhares, repensar os sentidos e fomentar
novas sensibilidades.
Do ponto de vista da reflexão acadêmica, o trabalho desenvolvido pelo pensador francês Henri
Lefebvre no livro com o sugestivo título O direito à cidade, originalmente publicado em 1968, traz
inúmeras contribuições quando o objetivo é pensar a produção e transformação do espaço urbano.
3 De maneira geral, podemos lembrar aqui as pesquisas já clássicas desenvolvidas por Michel de Certeau, Michel Maffesoli, David
Harvey, Milton Santos, Marc Augé, Fredric Jameson, entre outros.
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Esse autor nos aponta para uma “escrita urbana” que se constitui a partir de direitos básicos como
liberdade, direito à habitação, individualização na socialização e principalmente atividade participante por meio de encontros. Ao ratificarmos esse posicionamento, valorizamos e potencializamos
a produção artística ocorrida nos ambientes públicos das cidades.
De acordo com Lefebvre:
A reflexão teórica se vê obrigada a redefinir as formas, funções, estruturas da cidade (econômicas, políticas, culturais etc.), bem como as necessidades sociais inerentes à sociedade
urbana. [...] As necessidades sociais têm um fundamento antropológico; opostas complementares, compreendem a necessidade de segurança e de abertura, a necessidade de certeza e
a necessidade de aventura, a da organização do trabalho e a do jogo, as necessidades de
previsibilidade e do imprevisto, de unidade e de diferença, de isolamento e de encontro, de
trocas e de investimentos, de independência (e mesmo de solidão) e de comunicação, de
imediaticidade e de perspectiva a longo prazo. O ser humano tem também a necessidade de
acumular energias e a necessidade de gastá-las no jogo. Tem necessidade de ver, de ouvir, de
tocar, de degustar, e a necessidade de reunir essas percepções num “mundo”. As essas necessidades antropológicas socialmente elaboradas (isto é, ora separadas, ora reunidas, aqui comprimidas e ali hipertrofiadas) acrescentam-se necessidades específicas, que não satisfazem os
equipamentos comerciais e culturais que são mais ou menos parcimoniosamente levados em
consideração pelos urbanistas. Trata-se da necessidade de uma atividade criadora, de obra (e
não apenas de produtos e de bens materiais consumíveis), necessidades de informação, de
simbolismo, de imaginário, de atividades lúdicas. Através dessas necessidades especificadas
vive e sobrevive um desejo fundamental, do qual o jogo, a sexualidade, os atos corporais tais
como o esporte, a atividade criadora, a arte e o conhecimento são manifestações particulares
e momentos, que superam mais ou menos a divisão parcelar dos trabalhos. Enfim, a necessidade da cidade e da vida urbana só se exprime livremente nas perspectivas que tentam aqui
se isolar e abrir os horizontes. As necessidades urbanas específicas não seriam necessidades
de lugares qualificados, lugares de simultaneidade e de encontros, lugares onde a troca não
seria tomada pelo valor de troca, pelo comércio e pelo lucro? Não seria também a necessidade
de um tempo desses encontros, dessas trocas? (LEFEBVRE, 2001, p. 105-106)
É importante pensar que esse tipo de reflexão surgiu no diapasão das releituras sociológicas
do final do século XX, em especial durante, e também logo após, os acontecimentos dos anos de
1960 na França e em partes do continente europeu e americano. As noções de liberdade que emanam dos depoimentos dos atores que formaram o Galpão nos anos 1980 permitiram reflexões que
indicam a necessidade de repensar o espaço urbano, o que denota uma confluência de percepções
e interesses voltados para a composição de estruturas sociais e organizações artísticas capazes de
resistir às diferentes lógicas do mundo da exploração. Se tomarmos as considerações do pensador
francês em conjunto com as exposições dos atores do Galpão sobre os anos de 1980, é perceptível a
confluência de ideias e a noção de um ideal de sociedade fundado em bases libertárias e contrárias
à expropriação, à violência e ao autoritarismo.
Apesar da complexidade desse debate que obviamente não se esgota nas páginas do livro de
Henri Lefebvre, os aspectos até aqui ressaltados nos ajudam a compreender que a arte produzida
nas ruas pode ser a expressão do direito de produção artística de indivíduos que vivem em coletividade. Além disso, a fruição desse tipo de arte é uma forma do direito à cidade, à humanidade e,
claro, à cidadania. Nesse ponto, produção e fruição/recepção artísticas fazem parte do processo da
coletividade que o Estado Moderno tanto ressalta em seus preceitos básicos. Sendo assim, a linguagem teatral potencializa o “direito à cidade” e afina o diálogo democrático e cidadão.
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É claro que esse tipo de reflexão é possível porque ela carrega uma expansão sobre o entendimento da noção de arte e de encontro entre pessoas nos espaços públicos, a ponto de podermos
falar em “arte pública”. Conforme consta nas reflexões de Turle e Trindade (2016), essa expressão
surgiu inicialmente no ambiente da crítica das artes visuais nos anos de 1970 e, ao longo do tempo,
passou a ser usada no campo teatral, em especial pelo diretor e ator Amir Haddad no início dos anos
2000, fundador de um dos mais importantes grupo de teatro de rua do Brasil, o Tá na Rua.
Para o teatro, a “arte pública” se caracteriza como ação. A proposta cênica interage com o
entorno, com a arquitetura, com o movimento de pedestres e carros nas ruas, com os passantes e
comerciantes das praças públicas. Ela é capaz de dar novos sentidos aos espaços revitalizando-os e
promovendo novas formas de interação das pessoas com o ambiente.
[...] à medida que avançamos na contemporaneidade e as fronteiras entre as diversas expressões da arte se dissipam, o termo arte pública deixa de ser um indicativo de pertencimento
da obra a determinado campo artístico em particular, tratando-se, antes, de um estado ou
situação em que a obra de arte se processa perante espectadores eventuais. (TURLE; TRINDADE, 2016, p 124-125)
A (inter)ação com a arte teatral aponta no caminho de Lefebvre de que o “direito à cidade” se
concretiza quando as pessoas se apropriam da que a cidade oferece. Assim, a obra de arte, a peça
teatral e o espetáculo deixam de ser um produto e tornam-se parte um processo, como lembram
Turle e Trindade, que se concretiza diante de eventuais espectadores/participantes. Estamos tratando, portanto, de uma linguagem própria do teatro de rua, da cultura urbana e da cidade como palco.
É importante frisar que esse debate está carregado da importância da discussão formal e como ela
é capaz de gerar redimensionamentos políticos e posicionamentos sociais4.
Ainda sobre o ambiente do teatro de rua é importante recuperar o caráter transgressor e lúdico
que a rua e o espaço público podem carregar. Ao refletir sobre o tema, André Carreira recupera a
noção de jogo teatral, deixando claro que na rua o jogo pode sair da esfera individual e subjetiva e
caminhar para a coletividade. Transição que, como já vimos inclusive nas proposições de Lefebvre,
estimula e fortifica a transgressão. Elemento central para a realização da crítica à normalização do
capital. Ao mesmo tempo, tal transgressão ocorre pelo (re)fazer artístico, pela (re)ocupação e (re)
ssignificação do espaço público5:
4 Creditar expressão política e transformadora à forma não é algo novo. No campo teatral, artistas importantes das vanguardas no
início do século XX apontaram para isso e potencializaram o debate formal com vistas às mudanças sociais. Talvez os casos mais
emblemáticos sejam o do encenador V. Meierhold o do dramaturgo e poeta Vladimir Maiakovski que, em diálogo com o cubofuturismo na Rússia pré revolucionária, bradaram aos homens de seu tempo que não há conteúdo revolucionário sem forma revolucionária. Não por acaso, muitas ações teatrais do “Outubro Teatral” ocorreram em praças públicas utilizando a linguagem das ruas, em
especial, das feiras de atração, tão comuns na época e de fácil acesso ao amplo público iletrado russo. Sobre esse tema, consultar:
COSTA, Rodrigo. O “tesouro revolucionário” e as ações cênicas de Meierhold: “Barraca da feira de atrações” (1906) e “O baile de
máscaras” (1917). In: PATRIOTA, Rosangela; RAMOS, Alcides Freire; VIEIRA, Thaís Leão. (Orgs.). Confrontos entre a História
e as Utopias ou o centenário da Revolução Russa. São Paulo: Liber Ars, 2019.
5 Johan Huizinga nos deixou importante obra onde as noções de jogo, ludicidade e transgressão são fundamentais ao homem, configurando inclusive o Homo Ludens.
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Ainda que se possa ver nas ruas manifestações artísticas que nada têm de transgressoras
– especialmente nos casos em que as instituições da cultura levam espetáculos de âmbitos
fechados aos palcos nas ruas, ou quando organismos oficiais de cultura realizam atividades
de rua – se pode dizer que essencialmente o teatro de rua transgride o princípio hierárquico espacial dentro do qual a sociedade burguesa enquadra as manifestações artísticas. As
intervenções espetaculares que propõe a desconstrução do discurso do espaço rigidamente
ordenado e da regulação legal do trânsito veicular e de pessoas, por exemplo, representam
sempre uma espécie de ruído com o qual a instituição busca conviver, mas sempre à força de
contradições (CARREIRA, 2007, p. 42)
Essa linha interpretativa pode ser percebida em outros autores que buscam compreender o
papel que o teatro ocupa na sociedade contemporânea. Em tempos onde o espaço virtual ganha
força e o encontro presencial torna-se menos frequente, inclusive no que diz respeito à produção de
conhecimento acadêmico, o teatro continua sempre nos lembrando da força do encontro e do caráter político intrínseco ao seu jogo. A realização de expressões teatrais nos espaços públicos (ruas,
praças, quadras, estações de trem) não só desconstroem os discursos rigidamente ordenados, como
bem diz Carreira, mas ressalta a força política das artes cênicas. Dênis Guénum, em A exibição das
palavras: uma ideia (política) do teatro, nos faz questão de lembrar o básico que, infelizmente, pode
ser facilmente esquecido:
O teatro é, portanto, uma atividade intrinsicamente política. Não em razão do que aí é mostrado ou debatido – embora tudo esteja ligado – mas, de maneira mais originária, antes de
qualquer conteúdo, pelo fato, pela natureza da reunião que o estabelece. O que é político, no
princípio do teatro, não é o representado, mas a representação: sua existência, sua constituição, “física”, por assim dizer, como assembleia, reunião pública, ajuntamento. O objeto da
assembleia não é indiferente: mas o político está em obra antes da colocação de qualquer objeto, pelo fato de os indivíduos se terem reunido, se terem aproximado publicamente, abertamente, e porque sua confluência é uma questão política – questão de circulação, fiscalização,
propaganda ou manutenção da ordem. (GUÈNUM, 2003, p.15)
A reunião de pessoas e a ressignificação da potência do espaço público ganham força com as
expressões teatrais de rua. Olhando por essa importante ótica, o teatro de rua em Belo Horizonte
feito pelo Galpão ao longo dos anos 1980 possui uma importância histórica e política nada desprezível. Ele sedimenta as bases para a formação do Grupo recuperando os caminhos da formação
cidadã por meio do teatro e ressalta o aspecto lúdico como elemento de transgressão.
Os primeiros espetáculos do Galpão
A discussão sobre a força política do teatro feito na rua pelo Galpão ganha dimensões mais
claras quando percebemos os temas que perpassam alguns dos espetáculos realizados de 1982 até
o final da década.
Utilizando a estética circense e a linguagem da comédia, o espetáculo “E a noiva não quer casar”, dirigido por Fernando Linares em 1982, colocava nas ruas o enredo de uma moça que, apesar
de possuir inúmeros pretendentes, opta por não se casar e prefere dançar. O compromisso do casamento cede espaço para o prazer do corpo que dança. A escolha da moça transforma a cena em
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um grande carnaval, bem ao estilo das inversões que esta festa carrega. Levado ao público da Praça
Sete, centro de Belo Horizonte, todo espetáculo era feito em pernas de paus e os pretendentes da
noiva que não se casa eram malabaristas, mágicos e comedores de fogo.
Uma trupe de artistas que utilizava pernas de paus e lançava fogo pela boca certamente ressignificou o espaço da praça pública na época e permitiu com que muitas pessoas percebessem o
espaço público como ambiente de encontro. É interessante pensar que, nesse caso, a escolha formal do Galpão – estética circense e teatro de rua – certamente chamava mais a atenção do público
do que a escolha temática que envolve uma moça que se recusa a casar. Porém, uma vez que o público da rua se detém por algum tempo aguçado pela curiosidade da ação cênica, forma e conteúdo
se completam em um importante processo político de desnaturalização e revisão do cotidiano. Sem
querer entrar nas discussões políticas que envolvem o debate de gênero e o papel da mulher na
sociedade brasileira, podemos simplesmente lembrar que os mais de vinte anos dos governos militares foram importantes e até fundamentais para reafirmar os valores reacionários em relação ao
papel da mulher na sociedade. Sendo assim, o espetáculo como um todo – forma e conteúdo – atua
desde o início do Galpão no sentido das revisões do passado e (re)proposição do presente. É uma
forma de ação política promovida pelo grupo, inclusive no sentido do espírito libertário inaugurado
na onda das lutas dos direitos civis do final da década de 1960. Visto dessa forma, as considerações
de Henri Lefebvre ganham contornos importantes.
“De olhos fechados” (1983-1987) era um espetáculo infantil e que colocava em cena o universo de crianças que viviam em grandes cidades e que, por isso, precisavam criar novas formas
de brincar e interagir constantemente. No que diz respeito à reconfiguração da infância durante a
Ditadura Militar, a historiografia carece ainda de trabalhos. Mas, o espetáculo do Galpão apontava,
logo em 1983, para questões importantes sobre o universo infantil e o processo de formação em
uma sociedade que se modernizou rapidamente aprofundando as exclusões sociais. Certamente, os
meninos e meninas que viveram no início de 1960, ainda em um país fortemente agrário, eram muito diferentes dos que viveram suas infâncias nos anos de 1980, já marcados por novas formas de
sociabilidade, principalmente urbanas, e com outras referências culturais, muitas delas influenciadas
pelos meios de comunicação de massas.
Encenado a partir de improvisações, dialogando mais fortemente com a tradição circense e
a partir de uma grande caixa preta montada nas ruas, o espetáculo “Ó prô cê vê na ponta do pé”
(1984 – direção de Fernando Linares e Eduardo Moreira), lidava com inúmeros temas da época,
como por exemplo o poder do Estado constituído representado pelo personagem de um policial que
discutia com o personagem de um camelô. E até mesmo um político enganador e manipulador das
massas de eleitores tinha espaço no enredo do espetáculo. É perceptível que pelo riso e improviso
o grupo rearticulava o espaço da rua e continuava apontando para temas importantes e candentes
da época. Novamente as relações entre a estética teatral da rua com os temas do espetáculo apontam para o debate político da época. Há uma forte sensibilidade artística no Galpão que indicava o
refinamento do olhar sobre o tempo que atores e profissionais do grupo viviam.
Novamente as discussões de âmbito privado dos indivíduos voltam para o centro do grupo
quando as relações matrimoniais são exploradas de um ponto de vista crítico por meio de “A comé-
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dia da esposa muda” (1986 – direção de Paulinho Polika). A falta de comunicação do casal Briguela
e da muda Vesúvia não é resolvida mesmo após ela passar por uma cirurgia e ser capaz de falar
normalmente. O marido não se sente correspondido pelas palavras de Vesúvia e se submete a uma
cirurgia para ficar surdo. O que acaba por ser uma solução plausível para o casal. Esse espetáculo
marcou o aprofundamento dos estudos do grupo sobre o teatro de rua e a Commedia Dell’Arte, o
que permitirá inúmeros outros espetáculos e o caminho para uma linguagem própria do Galpão.
Porém, de todos os espetáculos que o Grupo levou às ruas nos anos de 1980, certamente os
que possuem temática política mais explícita são: “Foi por amor...” (1987 – direção de Antonio Edson) e “Corra enquanto é tempo” (1988 – direção de Eid Ribeiro). O primeiro recupera assassinatos
de mulheres mineiras para denunciar o machismo frequente da sociedade brasileira que durante
anos deixou de punir agressores por meio da justificativa de “crime de honra”. Já o segundo, após o
grupo realizar estudos sobre personagens da Commedia Dell’Arte, coloca em cena o charlatanismo
de grupos religiosos que disputam espaços da rua com prostitutas e travestis.
Percebe-se novamente que o grupo, em seu contato com as ruas, sempre trouxe ao público,
que é formado por pessoas em movimento, temas caros a uma sociedade completamente alterada
se comparada com anos anteriores. Certamente, os grandes temas que fizeram parte da dramaturgia brasileira antes do golpe de 1964 não mais possuíam o mesmo apelo diante do público. Por
mais que colocar em cena a possibilidade revolucionária seja importante, em especial do ponto de
vista da crítica e da análise social, não havia ambiente para isso no Brasil dos anos 1980. Com a
utopia revolucionária em baixa, com o tradicional discurso da luta coletiva das esquerdas altamente
questionado, com a população acreditando cada vez mais em soluções individuais para problemas
coletivos, o Galpão foi atuando e percebendo temas complexos e que precisavam ser discutidos à
época. Passando pelo papel da mulher que opta por não se casar, por tantas outras que são agredidas e mortas por aqueles que se dizem companheiros, pelas relações conjugais que não se efetivam
do ponto de vista da igualdade, pela situação de crianças que precisam encontrar novas formas de
interação em uma sociedade urbanizada e profundamente clivada, pelos políticos que muito prometem e pouco fazem e pelo discurso religioso que disputa fieis em praça pública com prostitutas,
o Galpão abria não só um espaço importante para o fazer teatral nas ruas de Belo Horizonte, ele
percebia onde pulsava os problemas políticos daquela época. Assim, a estética do teatro de rua se
apresentava como um sismógrafo que apontava e permitia interpretar as sutis transformações que
os militares trouxeram para a sociedade brasileira. Não por acaso, nos anos posteriores o Galpão se
tornou tão conhecido e uma referência no Brasil e no mundo.
Por fim, gostaríamos de retomar as reflexões do crítico Yan Michalski com o escopo de afirmar que geralmente quando se espera o momento propício para a criação artística, pode-se correr
o risco de perder o pé dos meandros da própria realidade. As condições que permitiram a ampla
produção teatral brasileira dos anos 1960, principalmente durante a Ditadura Militar, mudaram. Os
governantes da época bem perceberam que não se altera um jogo de forças políticas apenas com
acordos de cúpula, para tanto a incisão no corpo social precisou ser mais profunda, principalmente
visto que o objetivo era desestimular a crítica. Os mais de vinte anos dos militares no poder serviram para que essa incisão fosse meticulosamente realizada e projetasse frutos nos anos seguintes.
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Porém, as artes, o pensamento reflexivo, as ciências humanas e a produção de conhecimentos
possuem a capacidade da resistência e da sobrevivência mesmo após as operações mais drásticas
na sociedade, e para perceber esse movimento é preciso novas lentes interpretativas e capacidade
de análise.
Se olharmos com atenção para os temas que o Galpão lançou em praça pública durante a
década de 1980, perceberemos em todos eles uma atualidade desconcertante. Depois de transcorridos trinta e cinco anos do período compreendido como democrático, os problemas permanecem
e ainda estão muito próximos de nós. Isso significa que o corte que os militares realizaram em
nosso corpo social foi profundo e vivemos cotidianamente as consequências dele. Porém, quando
esse corte precisa ser reafirmado hoje por meio de um governo autoritário e que possui lastro na
sociedade, novamente o dilema de Michalski faz sentido e pode ser recuperado criticamente. Porém
sempre é bom lembrar que não existem condições inteiramente propícias para as artes, o que há é
um ambiente contrário ao pensamento crítico e à arte de qualidade. Por isso mesmo, as ações de
grupos como o Galpão e tantos outros ainda existem para contestar o que muitos pensam que é
incontestável.
Referências
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