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DOSSIÊ
Sociologias, Porto Alegre, ano 15, no 33, mai./ago. 2013, p. 170-203
O Primado do Reconhecimento
sobre a Redistribuição: a origem
dos conflitos sociais a partir da
teoria de Axel Honneth
Nadia Lucia FuhrmaNN*
Resumo
O artigo tem por objetivo precípuo socializar o estudo empreendido na
Teoria do Reconhecimento, do sociólogo e filósofo alemão Axel Honneth, em estágio pós-doutoral no Núcleo de Pesquisa “Violência e Cidadania”, no Programa
de Pós-graduação em Sociologia, da UFRGS, no período 2010-2011. A meta foi
articular a pesquisa teórica sobre o “reconhecimento intersubjetivo e social” com
uma investigação empírica qualitativa sobre as origens do fenômeno de rualização
infanto-juvenil, no meio urbano. A hipótese preconizou o primado do reconhecimento negado a crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social, em detrimento de condições econômicas desfavoráveis, como causa da migração para
a vida nas ruas e da ocorrência dos múltiplos conflitos sociais deflagrados por essa
condição. A pesquisa de campo foi realizada em parceria com duas instituições
assistenciais de Porto Alegre, que oferecem o Serviço de Apoio Socioeducativo
(SASE), conveniadas com a prefeitura municipal. Os resultados corroboraram a
hipótese de que as políticas públicas de distribuição de renda desarticuladas das
práticas assistenciais e educativas não contribuem para arrefecer as conflitualidades urbanas. Nesse sentido, o Programa SASE, voltado ao atendimento de crianças e jovens das classes populares que vivenciam diuturnamente a desestrutura-
Socióloga e Doutora em Serviço Social. Doutorado sanduíche na Universität-Kassel, Alemanha. Pós-doutorado no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (Brasil). E-mail: fuhrmann.nadia@gmail.com.
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ção familiar, o abandono afetivo, moral, intelectual e o desprezo social, contribui
para o fortalecimento das três dimensões do reconhecimento: o amor, o direito
e a estima social, reintegrando o público alvo ao núcleo familiar e à sociedade.
Palavras-chave: Teoria do Reconhecimento. Conflitualidades. Rualização. SASE.
The primacy of recognition over redistribution: the origin of
social conflicts in Honnethian theory
Abstract
The article’s main purpose is to socialize the study undertaken in the Theory
of Recognition of the German sociologist and philosopher Axel Honneth, in a postdoctoral Research Center on “Violence and Citizenship” in the Graduate Program
in Sociology, from UFRGS, in 2010-2011 period. The goal was to articulate the theoretical research about the “intersubjective and social recognition” with a qualitative
empirical research on the origins of the phenomenon of street-living children and
youth in urban areas. The hypothesis proposed the primacy of recognition denied to
children and youth in situations of social vulnerability in contrast to the argument of
unfavorable economic conditions as a main cause of migration to the street life and
the occurrence of multiple social conflicts started by this condition. The field research was conducted in partnership with two assistential institutions in Porto Alegre,
which offer the Social Educational Support, in agreement with the city government.
The results corroborate our hypothesis by showing the inadequacy of public policies on income distribution and social inclusion implemented in a disjointed front
of assistential and educational practices, that doesn’t contribute alone to decrease
urban conflictualities. In this sense, the SASE program, aimed at assisting children
and young people from lower classes who experience daily family disintegration,
affective abandonment, moral, intellectual and social contempt, contributes to the
strengthening of the three dimensions of recognition: love, law and social esteem,
reinstating these people to families and society.
Key-words: Theory of Recognition - conflictualities – street-living - Social Educational Support
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1 Introdução
A
complexidade das relações, interações e ações sociais,
a partir dos últimos 30 anos, tem forçado contundentemente os cientistas sociais a reconstruírem grande parte
do seu conhecimento acumulado durante séculos. O labor sociológico, em tempos de hipermodernidade, cada
vez mais, tem privilegiado as práticas e intervenções sociais em oposição à
postura secular de observação, explicação e elaboração de conhecimento. Hodiernamente, a sociologia está totalmente em consonância com
a cotidianidade humana, colaborando, em especial, com soluções para
a diversidade das patologias sociais oriundas dessa complexificação das
relações humano-sociais. Só assim, ela tem cumprido com eficiência seu
papel enquanto ciência da sociedade. Tavares dos Santos (2005, p. 220221) exemplifica essa premissa quando escreve que:
as transformações sociais e as urgências da vida coletiva
fazem com que os grupos sociais peçam saberes sociológicos para explicar os processos sociais e históricos (...) as
novas questões sociais constituem um vasto campo de interrogações à prática sociológica (Tavares dos Santos, 2005,
p. 220-221).
Dentre as múltiplas urgências que permeiam a sociedade contemporânea, as lutas e os conflitos urbanos têm sido um dos maiores desafios
para a Sociologia, todavia, tardiamente estudados com profundidade por
esta no Brasil. Segundo Misse (2006), a temática sobre as violências começa a ser sistematicamente investigada pela Sociologia brasileira a partir
da década de 1970.
Há vinte anos publicava-se no Rio de Janeiro uma pesquisa pioneira de que participei “Delinquência Juvenil na
Guanabara: uma introdução sociológica”. Lembro-me que
quando começamos, em 1971, não havia praticamente
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nada na sociologia brasileira sobre o assunto, nem mesmo
sobre a questão que hoje é tratada como “violência urbana”, ”criminalidade”, etc. O interesse por essa temática era
igualmente nulo na antropologia e historiografia, e as raras
incursões no assunto, encontráveis à época, restringiam-se
a abordagens provenientes das áreas de Educação e Serviço
Social (Misse, 2006, p. 1).
O que parece positivo é uma tendência atual de múltiplos estudos
que permitem conhecer o fenômeno sob os mais diversos ângulos, num
movimento de complementaridade. Neste aspecto, Tavares dos Santos
(2011, p. 413) lembra que essa empreitada necessita de um olhar sociológico transdisciplinar. Também Saramago diria que (...) para realmente
conhecer as coisas, há que dar- lhes a volta, dar-lhes a volta toda. O certame é desenvolver um conceito aproximado de “conflitos sociais contemporâneos” a partir da necessária transversalidade disciplinar.
Trata-se, contudo, neste artigo, da socialização dos procedimentos
metodológicos e de resultados parciais de um estudo empreendido no
Núcleo de Pesquisa “Violência e Cidadania”, dentro do Programa de Pósgraduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
no período entre 2010 e 2011, com apoio do CNPq. O tema investigado
trata da rualização de crianças e jovens e as múltiplas formas de violência
a que esses estão expostos, um fenômeno com incidência expressiva na
capital rio-grandense. Estudos sobre esse objeto já foram realizados no
Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFRGS, porém, priorizando os dados quantitativos, de modo que este tem como particularidade
o uso exclusivo de procedimentos metodológicos qualitativos e como
sustentação teórica a Teoria do Reconhecimento Intersubjetivo e Social
do sociólogo e filósofo alemão Axel Honneth. Ainda parece adequado
ressaltar a importante produção de conhecimento realizada pelos pesquisadores do Núcleo de Pesquisa “Violência e Cidadania”, em 20 anos de
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atividade na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, subsídio fundamental para a realização deste trabalho.
O tema “irresidência infanto-juvenil” é deveras amplo, carecendo
de um recorte da própria matéria aliado à delimitação geográfica e espacial do objeto. Como acima já sublinhado, o fenômeno é competente e
recorrentemente abordado pela Sociologia brasileira, de forma que, considerando a premissa científica da originalidade necessária para o mérito
de novas pesquisas, privilegiamos uma perspectiva de caráter qualitativo, aliando o estudo teórico às investigações empíricas do objeto, com
pretensão secundária a uma intervenção assistemática. Por intervenção
assistemática, entendemos a pesquisa de campo em relação direta com
os sujeitos pesquisados, podendo tal conexão resultar em uma pesquisa
ativadora da consciência. Isso ocorre, na medida em que se desenvolve
um diálogo entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa. Os últimos, ao
falarem de seu cotidiano, passam a refletir sobre ele. Por sua vez, obter
uma resposta relativa aos resultados de uma pesquisa ativadora só poderia
ser auferido num segundo plano da investigação, a depender de um prazo para a reflexão sobre a experiência do encontro entre o pesquisador e
os sujeitos pesquisados.
Em relação à fundamentação teórica, houve uma revisão da obra de
Axel Honneth, a partir da qual, talhamos um projeto cuja hipótese principal considerou que o recrudescimento da violência e dos conflitos urbanos envolvendo crianças e adolescentes tinha como principal causa falhas
no processo de formação do Reconhecimento Intersubjetivo e Social que
supõe o fortalecimento das esferas psico-políticas-sociais representadas
pelo amor, pelo direito e pela estima social. A exclusão e a vulnerabilidade social, motivos principais da rualização de crianças e jovens, não
estariam relacionadas isoladamente à inópia material, mas a ausência de
reconhecimento intersubjetivo e social. Dito de outra forma, seriam as
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experiências de não reconhecimento social as principais causas de “irresidência” e dos conflitos urbanos, envolvendo o segmento infanto-juvenil.
A investigação, porém, não privilegiou o que se convencionou chamar de situação de “rua moradia” ou de “rua sobrevivência”, mas procurou desvendar as estratégias político-sociais que estariam colaborando na
minimização ou quiçá na erradicação do fenômeno antes mesmo de sua
efetivação e consequências. De imediato, o estudo sobre a alternativa da
institucionalização, não raramente empregada para retirar tal segmento
das ruas, foi descartado. A pesquisa alumiou o campo da prevenção, que,
neste caso, ocorre por meio de programas públicos assistenciais já existentes. Esses programas se dedicam às atividades de ensino não formal,
cujo conteúdo pauta o cuidado afetivo, a formação cognitiva e moral,
também o fortalecimento do amor-próprio e da autoestima. Tais práticas
pedagógicas, em sua continuidade, parecem contribuir no arrefecimento
das vulnerabilidades dessas crianças e jovens, abrandando as situações de
“rualização” e de conflitos.
Nesse sentido, o fio condutor subjacente à explicação de tal fenômeno sociológico desde um enfoque não materialista, assim como
a experimentação da hipótese contemplaram, de um lado, a Teoria do
Reconhecimento de Axel Honneth e, de outro, os procedimentos metodológicos amparados nas técnicas e instrumentais da investigação qualitativa. Isto é, a interpretação das narrativas biográficas dos sujeitos profissionais e beneficiários da política assistencial conhecida como Serviço de
Apoio Socioeducativo (SASE), voltada para uma educação não formal de
crianças e jovens das classes populares.
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2 As Etapas do Processo Metodológico
Para desenvolver o estudo, elegemos como metodologia o modelo
de investigação qualitativa de Lessard-Hébert e coautores (2005). Segundo esses, uma pesquisa qualitativa reivindica a construção de quatro polos, a saber: um polo epistemológico, que torna clara a visão de mundo
do investigador, por meio do discurso empregado por ele ao nomear o
seu objeto; um polo teórico, que propicia a definição dos conceitos e a
testagem da hipótese; um polo técnico, que corresponde à feitura dos
instrumentos e técnicas de coleta e análise do material da investigação;
certamente essa é a instância de articulação das explicações sobre o objeto percepcionado com a realidade vivida; e, por fim, um polo morfológico ou comunicativo, que prevê os meios de socialização dos resultados
da investigação, ou seja, a organização, apresentação e exposição dos
resultados.
Por tratar-se de pesquisa qualitativa, os caminhos percorridos para a
realização do estudo carecem de pormenorizada descrição. O polo epistemológico, como ponto de partida, privilegiou a hermenêutica filosófica
por se constituir em um desses esteios para as pesquisas que buscam o significado e o sentido das atividades do homem. O hermeneuta toma para
si a tarefa de buscar a verdade por meio da pré-compreensão da história e
da cultura dos sujeitos e do diálogo argumentativo com estes por meio da
linguagem. São duas fases indissociáveis da investigação. A hermenêutica
parte do princípio de que não há sujeito sem pré-conceito. O investigador
tem a consciência de que o prejuízo sobre os objetos é imanente ao ser
humano. Por isso, o conhecimento autêntico das manifestações humanas
não pode ocorrer sem a comunicação. Na conversação é que se dissipam
os preconceitos. Por meio da conversa é que o investigador desvenda as
significações da produção e da prática humana.
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Certamente, a frase mais conhecida de Gadamer é o ser que pode
ser compreendido é linguagem (1990, p. 478). Isso significa que o mundo
que podemos apreender só se desvenda no bojo de conteúdos linguísticos. Lawn (2007, p. 113) diz que Gadamer contestaria qualquer opinião
sobre o entendimento que pressupõe algo não linguístico. Aquilo que não
pode ser expresso por palavras só poderá ser parcialmente compreendido. Isso porque a linguagem não se constitui em instrumento passível de
manipulação – e é no diálogo desvendada. Gadamer não nega a existência das manifestações humanas alinguísticas, o não dito, porém, esse não
pode explicar e entender totalmente o ser (Lawn, 2007, p. 112).
Em complementação, para construir o polo teórico, buscamos referências na obra de Axel Honneth. Objetivamos extrair dos escritos desse
autor os fundamentos de compreensão, interpretação e intervenção para
o fenômeno da “rualização” de crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social, articulando-os com uma pesquisa empírica. Esta teve o
propósito de verificar a contribuição do Serviço de Apoio Socioeducativo
(SASE), da prefeitura de Porto Alegre, no processo de resgate do reconhecimento intersubjetivo do público-alvo, e uma potencial contribuição no
retrocesso da “irresidência” e de conflitualidades envolvendo o segmento
infanto-juvenil.
A criança de rua é definida pelas Nações Unidas como “qualquer
menino ou menina para quem a rua tornou-se moradia habitual e/ou fonte de sobrevivência; e que não tem a proteção, supervisão ou orientação
adequada de um adulto responsável” (Lusk e Mason, 1993, p. 157). Consideramos como criança aquela que possui entre 0 e 12 anos (incompletos), e adolescente (jovens) o que tem entre 12 e 18 anos (incompletos),
conforme inscrito no Estatuto da Criança e do Adolescente (Sabatovski;
Fontoura, 2010). Portanto, entendemos por “crianças e adolescentes em
situação de rua” aqueles que são identificados pela sociedade, pelas ins-
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tituições governamentais e pelas organizações sociais dentro dos parâmetros acima definidos.
Pela própria complexidade imanente do fenômeno, reiteramos que
o mesmo exige conhecimentos e respostas de cunho interdisciplinar. Assim, novas abordagens teóricas podem vir a ser importantes contribuições
e, dentre essas, a de Axel Honneth tem chamado atenção especial no
meio acadêmico brasileiro. A denominada Teoria do Reconhecimento
Intersubjetivo e Social se fundamenta nos estudos da formação da identidade, realizados por George Herbert Mead (1863- 1931), e nas premissas universais de reconhecimento social de Georg W. Friedrich Hegel
(1770- 1831). Segundo Honneth, o desenvolvimento teórico da noção
de Reconhecimento ficou no nível do idealismo em Hegel, enquanto a
contribuição de Mead possibilitou a compreensão empírica da questão
do Reconhecimento intersubjetivo dos indivíduos. Portanto, para compor
sua teoria, Honneth se vale (1) da noção hegeliana original, que entende
a luta por respeito e reconhecimento intersubjetivo como a origem dos
conflitos sociais e (2) a afirmação de Mead de que a identidade dos sujeitos está vinculada à experiência do reconhecimento intersubjetivo. No
entanto, diz Honneth, nem Hegel, nem Mead foram capazes de explicar
as formas de desrespeito que tornam a experiência do não reconhecimento o motor para os conflitos sociais. De forma geral, a tese central
de Honneth aponta que a identidade dos indivíduos se determina em um
processo intersubjetivo mediado pelo mecanismo do reconhecimento. A
busca pelo reconhecimento é imanente a todo o ser humano, desde o
seu nascimento, e se realiza efetivamente através das dimensões do amor,
do direito e da solidariedade. A ausência de reconhecimento intersubjetivo e social corresponde à verdadeira origem dos conflitos sociais, tese
oposta às que propõem a precariedade econômica como causa principal
da violência e dos desajustes sociais, apontando como solução a mera
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redistribuição de recursos materiais. Para Honneth, inversamente, são as
experiências de ausência de afeto na primeira infância e a humilhação e
invisibilidade social geradoras dos impulsos agressivos e sentimentos de
vingança, contra si mesmo e/ou contra a sociedade.
A formação de uma identidade prática socialmente sadia deriva do
desenvolvimento humano amparado numa esfera emotiva positiva (confiança em si mesmo adquirida na infância na relação com a mãe e/ou
cuidadores); noutra esfera de estima, dentro da sua comunidade (porque
sem a solidariedade estaria o sujeito exposto à degradação social) e, por
fim, em uma esfera jurídica (relacionada ao autorrespeito enquanto sujeito de direitos e deveres). A ausência dessa estrutura de reconhecimento,
segundo Honneth, desencadeia o aviltamento do indivíduo e a deflagração dos desajustes e patologias sociais (Honneth, 2009).
Honneth (2009b, p. 24-30) explicita as três formas de menosprezo
as quais os sujeitos estão expostos na vida em sociedade e apresenta os
modelos correspondentes de reconhecimento. Assim, a primeira experiência de humilhação que um indivíduo pode sofrer se refere à negligência, tortura e violação de direitos. A forma mais básica do não reconhecimento é a negação do afeto e do respeito. A consequência é
a insegurança emocional e física, uma fratura na autoconfiança que se
constitui na premissa psíquica para o desenvolvimento de todas as demais
formas de autoestima. A segunda forma de menosprezo se refere à privação de direitos e à exclusão social. Neste caso o indivíduo é humilhado
socialmente, por não ter garantidos os seus direitos e ter ignorado seus
deveres. O direito assegura ao homem/mulher uma ampliação das suas
liberdades individuais, independentemente da classe social a que pertença, arrefecendo as desigualdades e promovendo o autorrespeito. Os impedimentos para o pleno exercício da cidadania resultam na invisibilidade
social do indivíduo. Assim, o terceiro tipo de menosprezo é a degradação
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social – quando o indivíduo não obtém da sua comunidade a aprovação
solidária e a apreciação das capacidades e formas de vida desenvolvidas
individualmente (Honneth, 2009b, p. 28). O sujeito que não obtiver a
aprovação intersubjetiva e social do seu modo de vida, se ele não se sente
valorizado pelo seu grupo de convivência familiar e institucional, ele não
desenvolve o sentimento de autoestima necessário para o convívio em
sociedade. São estes três modelos de reconhecimento, segundo o autor,
que estabelecem as condições formais de interação através das quais os
homens/mulheres podem ver garantida a sua dignidade ou integridade.
Dito de outra forma, a ausência desses três modelos de reconhecimento
comprometem a autoconfiança, o autorrespeito e a autoestima, sem os
quais os sujeitos não se realizam social e individualmente de forma plena.
A busca pelo reconhecimento negado ocorre, então, através da revolta,
das pressões e da violência, originando os conflitos individuais e sociais.
Seguindo a linha argumentativa de Honneth, as patologias sociais se
desenvolvem em ambientes socialmente injustos, mas que não se originam de circunstâncias materiais; ao contrário, quando alguns indivíduos
ou todos de uma determinada sociedade não conseguem compreender
de modo adequado práticas e normas do reconhecimento, só então se
pode falar efetivamente em patologia social (Honneth, 2011, p. 156). A
inadaptação às normas sociais, de modo geral, se apresenta na forma de
comportamentos de risco, violências e conflitos urbanos, intolerâncias,
exclusão e degradação social.
Visto isso, na sequência, o polo técnico compreendeu todo o processo de construção metodológica da investigação. Para fins de tratamento mais organizado, a partir da conclusão do projeto com suas partes
constitutivas alinhavadas, partimos para os estágios da operacionalização.
Esta incluiu as seguintes tarefas, não necessariamente em ordem consecutiva: levantamento bibliográfico, documental e virtual sobre o tema;
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levantamento de dados e informações junto à Fundação de Assistência
Social e Cidadania de Porto Alegre e duas Instituições que oferecem o
SASE, doravante denominadas Instituição A e Instituição B; construção
dos instrumentos de coleta de informações: roteiros para os grupos focais;
depoimentos (entrevistas semiestruturadas) para profissionais envolvidos
com o SASE; depoimentos (entrevista semiestruturada) para alunos participantes e egressos do SASE; organização de grupos focais com os alunos
participantes e egressos do SASE com o fim de corroborar/complementar
as entrevistas individuais; organização e análise do material primário, secundário e narrativo. Os sujeitos da pesquisa foram os coordenadores do
Programa SASE (dois), os alunos participantes do Programa SASE (treze),
os egressos do SASE (nove), profissionais (quatro) e educadores sociais
(quatro), num total de 34 entrevistados. Quando se fala em profissionais,
estamos nos referindo aos envolvidos profissionalmente no Projeto SASE,
como psicólogos, assistentes sociais e pedagogos. Os alunos participantes foram crianças e adolescentes (06 a 14 anos) inscritos no SASE. As
entrevistas com crianças de 06 a 12 anos foram realizadas na presença
de responsável da Instituição (educadores sociais ou coordenadores). Os
egressos foram adolescentes maiores de 14 anos já desligados do Programa. Isto porque se pretendeu verificar a trajetória pessoal posterior
e a influência do Serviço na vida desses jovens. Os Grupos Focais foram
necessários para que pudéssemos obter informações de caráter qualitativo em profundidade. A inserção da técnica dos grupos focais em uma
abordagem qualitativa permite, também, a construção do conhecimento
para o próprio sujeito participante que percebe algo sobre o qual ele tem
uma familiaridade. Pode despertar, portanto, no informante, o desejo de
conhecer a própria realidade e mais sobre si mesmo. Assim, a investigação qualitativa que utiliza a técnica de Grupos Focais pode ser entendida
como uma pesquisa ativadora, ou seja, a própria pesquisa pode ativar
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o processo de reflexão e de mudança nos sujeitos envolvidos no estudo. Dos Grupos Focais, fizeram parte somente os alunos participantes do
SASE e os egressos. No caso de material fotográfico, as crianças receberam
máscaras de super-heróis e óculos de brinquedo para evitar o borrão no
rosto, obrigatório para não identificação. Optamos por não fotografar os
adolescentes porque alguns cumpriam medidas socioeducativas em meio
aberto e outros conviviam em comunidades extremamente violentas, inclusive envolvendo o tráfico de drogas. Provavelmente, ao fotografá-los,
mesmo com artifício de mácula, haveria de influenciar a espontaneidade
das respostas.
O material coletado das entrevistas e dos Grupos Focais foi submetido à análise do software NVIVO 8, que se constitui numa ferramenta
computadorizada de auxílio à realização de estudos qualitativos, com informações não estruturadas. Concomitante com o resultado do programa
informatizado, o material empírico foi submetido à codificação interpretativa dentro de uma orientação hermenêutica e não técnica, também
compreendida a partir da percepção do horizonte cultural dos entrevistados. Assim, o resultado final, sempre numa perspectiva limitada e parcial
diante da totalidade dos demais estudos já empreendidos sobre o tema,
foi fruto da mediação entre a Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth e as informações empíricas buscadas nas narrativas dos depoentes.
A anonimização foi adotada para a não identificação das instituições pesquisadas e dos sujeitos da pesquisa, no entanto, o contexto e os sentidos
foram preservados.
O material empírico foi coletado junto a duas instituições beneficentes de Porto alegre, conveniadas com a FASC, doravante denominadas
de instituição A e instituição B. A instituição A teve origem na década de
1950, idealizada por uma assistente social que obteve apoio e parceria
do Juizado de Menores, da Santa Casa de Misericórdia e do Curso de
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Serviço Social da PUCRS. O objetivo inicial foi amparar e educar adolescentes grávidas e seus filhos, abandonados pela família e pelo Estado,
numa época em que mães solteiras e filhos bastardos eram estigmatizados
pelo núcleo familiar. Com o passar do tempo, a Instituição foi ampliando
suas atividades assistenciais, sempre voltadas para o segmento infanto-juvenil em situação de vulnerabilidade. Atualmente, conta com os serviços
de abrigo em turno integral para um público com idades entre 09 e 18
anos incompletos, oriundo de situações sociais precárias, onde as crianças
e adolescentes recebem atendimento psicológico, médico, educativo e
profissionalizante. Conta, também, com 80 vagas anuais para a educação
infantil e uma Casa Lar que oferece acolhimento para a demanda dos
conselhos tutelares. Em especial, oferece o programa SASE, em parceria
com a Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC).
No seu Plano de Ação 2011, conceitua o SASE como um espaço de
proteção, de socialização, desenvolvimento pessoal, social e cognitivo.
Oferece 80 vagas para crianças e jovens com idade entre 06 e 15 anos,
no turno inverso ao da escola curricular. São cinco turmas, três no turno
da manhã e duas no turno da tarde com, no máximo, 16 alunos por sala
de aula. Dentre os critérios para ser usuário do Serviço, constam uma situação familiar ou pessoal de vulnerabilidade social, afetiva ou emocional
bem como pertencer a um núcleo familiar com precário acesso à renda
e a serviços públicos. As famílias devem estar inscritas em programas do
governo do tipo bolsa família, abrigos, programa de erradicação do trabalho infantil, entre outros. Os recursos humanos para o SASE são compostos por uma coordenadora pedagógica com nível superior em pedagogia,
quatro educadores com nível médio (sem exigência de especialidade pedagógica específica), uma auxiliar de escritório, uma cozinheira, e um
profissional de serviços gerais. A Instituição aceita pessoas voluntárias para
a realização de atividades lúdicas e esportivas com as crianças e jovens.
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Oferece um espaço físico que disponibiliza três salas para o atendimento,
uma sala de informática, uma biblioteca e uma cozinha equipada. Possui
uma área ao ar livre para atividades lúdicas e esportivas. Dos objetivos
específicos da Instituição A, destacamos o de desenvolver bons hábitos e
atitudes; conhecer, praticar e defender os direitos fundamentais da pessoa
humana: a vida, os meios de mantê-la com dignidade, na fraternidade e
no bem comum; participar de forma consciente no mundo em que vive,
assumindo um posicionamento autônomo diante dos fatos e situações;
desenvolver a capacidade de trabalhar em grupo; estimular a prática da
cidadania e vivência de valores éticos; desenvolver oficinas lúdicas e significativas para que as crianças e adolescentes possam fazer uma reflexão
sobre o mundo em que vivem e se tornem agentes de solidariedade e cidadania; contribuir para a inserção, reinserção e permanência na escola e
complementar as ações da família na proteção e desenvolvimento dessas
crianças e desses adolescentes. O serviço procura dar uma formação ampla, não fundamentada na transmissão de conhecimentos formais ou na
aquisição de valores individuais dos alunos, mas busca numa construção
integrada e dinâmica das suas atividades, dialogar com as contradições
do cotidiano, enfatizar a proatividade dos comportamentos coletivos no
processo de mudança e da transformação social.
Em relação ao conteúdo pedagógico, as aulas contemplam um período para o reforço e o tema curricular. Todavia, não há conteúdo programático predefinido, mas os educadores têm por orientação trabalhar com
os seguintes temas: meio ambiente; sexualidade; esporte; crescimento
social e educacional; vida saudável; educação para o trânsito e linguagem
digital. O trabalho é executado preferencialmente no formato de oficinas,
organizado com apoio pedagógico, oficina de leitura, oficina de artes manuais, oficina de esporte e saúde, oficina de recreação livre e dirigida, grupos de socialização e oficina de informática. As atividades assistemáticas
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contam com visitas a museus; arquivo histórico; teatro; cinema; integração com outros SASEs e escolas; parques; praças; Usina do Gasômetro;
Casa de Cultura Mario Quintana, entre outros. No intuito de aprimorar
o Serviço e qualificar o atendimento às crianças, a Instituição A promove
mensalmente reunião com a família das crianças e adolescentes, em que
pese, a presença de familiares não se mostrar assídua; reunião com a
equipe e avaliação tanto dos educandos quanto dos educadores. Segundo a própria entidade, o impacto social esperado através desse trabalho é
que tais crianças e adolescentes se reconheçam como sujeitos de direitos
e deveres e que desenvolvam a autoestima necessária para conviver em
harmonia em diferentes grupos sociais, desenvolvendo habilidades como
a criatividade, autonomia e responsabilidade.
Já a Instituição B teve origem no fim dos anos 1970, idealizada pelos
freis franciscanos. O objetivo inicial foi oferecer acolhimento às crianças
de uma comunidade periférica da capital, enquanto seus pais, a maioria
oriunda do êxodo rural, cumpriam sua jornada de trabalho semanal. Ainda nesta década e na seguinte, estabeleceu importante parceria com duas
instituições assistenciais alemãs, o que exigiu uma reordenação na gestão
e nos métodos de intervenção, bem como a ampliação dos seus serviços,
programas e projetos.
Depois de promulgada a Constituição de 1988, a assistência social,
conjuntamente com a Previdência e a Saúde, passa a compor o tripé da
Seguridade Social brasileira. Para as entidades filantrópicas dessa época,
que se mantinham praticamente com recursos privados e doações, o reconhecimento legal da assistência social permitiu um avanço significativo nas
atividades e prestação de serviços. Isso porque, desde então, a assistência
social, enquanto política pública passou a ter o compromisso de planejar,
organizar e executar serviços e programas assistenciais, e os realiza, prioritariamente, conveniada com as entidades de beneficência. Assim, desde os
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anos 1980, a instituição B vem prestando serviços na área da assistência e
educação para crianças e jovens em convênio também com o poder público, oferecendo, entre outros, o Serviço de Apoio Socioeducativo (SASE),
conveniado com a FASC, da prefeitura de Porto Alegre.
Na visão da Instituição B, o SASE tem por meta contribuir na efetivação da proteção básica e integral de crianças e jovens, como preconiza
a legislação brasileira. Assim, busca mobilizar seus esforços em prol da
inclusão social e da plena cidadania do público que atende. Conforme o
projeto pedagógico da instituição B:
a ação pedagógica engendrada visa alcançar meios de
desenvolver nos sujeitos o desejo, a capacidade de sonhar e
acreditar em suas capacidades, respeitando seus limites, de
maneira crítica e reflexiva, sugere essa ação pedagógica a
participação de todos os envolvidos em todas as suas fases de
execução, desde o planejamento até os espaços de avaliação
e repactuações. Oportunizar a participação dos educandos, o
fortalecimento do núcleo familiar, a convivência comunitária e
a construção de projetos de vida pessoal e social também são
objetivos da ação pedagógica. (PPP-SASE, 2011).
A Instituição B oferece 286 vagas por ano para crianças e adolescentes na faixa etária entre 06 e 14 anos, que residam no território da
comunidade e estejam em situação de vulnerabilidade social, familiar ou
afetiva. As crianças e adolescentes frequentam o Programa no turno inverso ao da escola regular, nos períodos manhã e tarde. As atividades
compreendem oficinas pedagógicas (reforço no conteúdo escolar), oficinas de música, desporto, de flauta, meio-ambiente, artesanato, aulas de
dança, vídeo, culinária, violão e oficina de leitura. O número de oficinas
realizadas chega a 4320 por ano.
O programa SASE conta com uma equipe de 06 educadores sociais
(com curso superior), 02 coordenadores pedagógicos, 03 cozinheiras, 02
ajudantes gerais, 01 oficineiro, num total de 14 profissionais mantidos com
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recursos da FASC e outras fontes da própria instituição. Para além do acolhimento do público infanto-juvenil, também oferece suporte para as famílias
através de uma equipe multiprofissional, que contempla pessoal da área
de psicologia, pedagogia, assistência social e sociologia. Para exemplificar a
rotina diária do SASE na referida Instituição, nos valemos das atividades do
projeto SASE III, voltado para o público entre 12 e 14 anos. A rotina diária
se divide nas seguintes ações e atividades matutinas: café, escovação; acolhida na sala e “rodinha”, para trocas de ideias, rotina pedagógica, avaliação
e finalização, recreação e almoço. No turno da tarde, as atividades compreendem o almoço, escovação, acolhida na sala e “rodinha” para troca de
ideias, rotina pedagógica, avaliação e finalização, recreação e lanche.
Cada educador social tem liberdade para construir o projeto pedagógico das suas turmas, levando em consideração os objetivos do Projeto
Político Pedagógico da Instituição. Especificamente para o SASE III, a rotina pedagógica conta com a construção do portfólio individual de cada
criança (eixo da comunicação e linguagem) desenvolvido por meio da
construção textual, leitura de contos e lendas, teatro com roteiro escrito,
debates, expressão das emoções (desenhos, poemas, músicas, etc.); jogos
de mesa (eixo do raciocínio lógico matemático) – jogo de dama, ludo,
xadrez, moinho, etc.; atividades lúdicas e esportivas (eixo da expressão
corporal) – esporte na cancha (futebol, basquete e vôlei), yoga, dinâmicas de grupo, jogos lúdicos e dança; meio ambiente (eixo da exploração
espacial) – visitas pelo bairro, na casa das crianças, visitas pelos pontos turísticos da capital, produção de horta para consumo dos educandos, etc.;
espiritualização – (eixo das atitudes pessoais e sociais) – estudo do sagrado, meditação, atividades de prática do bem, solidariedade, oração e
canto, valores humanos. As atividades são distribuídas durante a semana.
A partir da descrição das duas instituições pesquisadas é possível
inferir que seus objetivos e atividades educacionais, voltadas às crianças
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sujeitas às mais diversas vulnerabilidades sociais e psicológicas, buscam o
resgate da autoestima do público alvo. A pedagogia do SASE se insere no
modelo da educação não formal e, portanto, ainda sem parâmetros curriculares definidos pela legislação educacional brasileira. Assim, a FASC,
no caso de Porto Alegre, mas também nos demais municípios brasileiros,
exige apenas uma contrapartida contratual quanto ao espaço físico e material, um mínimo de recursos humanos para o atendimento de cada grupo com 25 crianças, educadores com ensino médio, e recursos pedagógicos sem especificação clara de quantidade. O conteúdo das atividades,
ações e conhecimentos teóricos e a contratação de educadores sociais
especializados ficam a cargo da instituição e dependem da visão sobre
a qualificação do programa e de recursos financeiros de outra origem. A
inespecificidade no que se refere ao conteúdo e às atividades do programa acaba por alterar seus resultados qualitativos. Até certo ponto, isso significa que crianças e adolescentes têm recebido atendimento e conteúdos
diferenciados de acordo com a instituição que frequentam, sem opção de
escolha, pois o serviço é territorializado por regiões da cidade.
No entanto, mesmo sinalizados os pontos frágeis do Programa,
como a ausência de normatização das atividades e conteúdos pedagógicos, precária formação dos educadores sociais e embrionária fiscalização
governamental, tudo indica que o SASE, através de seus objetivos, resgata
a valorização pessoal e auxilia na construção da cidadania. Destarte, tal
política está umbilicalmente ligada ao processo de reconhecimento intersubjetivo e social e, portanto, ao retrocesso da violência difusa envolvendo crianças e jovens das classes populares. Nada obstante, o Serviço
de Apoio Socioeducativo se encontra ainda em fase de ajustamentos e,
portanto, demanda um lapso temporal para averiguação dos efeitos concretos no que se refere aos seus objetivos.
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3 Pistas
Tanto o material teórico quanto o empírico coletados apontam para
o Serviço de Apoio Socioeducativo em meio aberto (SASE) como importante espaço institucional e pedagógico de prevenção da “rualização”,
dos conflitos e das ações de violência social, envolvendo crianças e adolescentes urbanos expostos a situações de risco. Obtém-se tal panorama
a partir dos próprios objetivos do Programa, acima já desenvolvidos, e
dos depoimentos dos profissionais das instituições pesquisadas. Ao que
indicam as falas dos depoentes da pesquisa, há uma percepção de que os
eventos de violência, conflitos e riscos envolvendo o segmento infantojuvenil têm sua origem no âmbito intrafamiliar e recrudescem quando
não há apoio comunitário e políticas públicas adequadas. Tal compreensão, sem ter origem num estudo propriamente especulativo-conceitualteórico, depreende-se mais da prática das atividades cotidianas desses
profissionais, desenvolvidas no âmbito do SASE. Em virtude da abrangência dos dados coletados, propomos apresentar, no momento, apenas dois
dos pontos importantes que apareceram na análise e na interpretação dos
respectivos códigos descritivos.
O primeiro ponto que merece destaque remete à ênfase, dada pelos
profissionais que atuam junto às crianças e aos jovens do SASE, aos desajustes nas relações familiares como importante causa das conflitualidades
envolvendo esse segmento. Honneth (2009, p. 161), recorre aos estudos
do psicanalista austríaco René Spitz para sinalizar que a privação da dedicação materna leva a graves distúrbios no comportamento do bebê, mesmo quando a satisfação de todas as suas carências corporais está assegurada. Por sua vez, SPITZ (2004, p. 11-12) se pergunta por que os sociólogos
ignoram o fato de que, na relação mãe-filho, teriam a oportunidade de
observar o início e a evolução das relações sociais, por assim dizer, in statu
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nascendi. Segundo o autor, uma relação maternal puramente biológica,
sem vínculo afetivo, torna-se o modelo para as demais relações sociais do
indivíduo. Relativamente aos estudos de Spitz, o autor relata que as crianças, mesmo que tratadas adequadamente quanto aos aspectos corporais
como higiene, alimentação, cuidados médicos, entre outros, quando privadas do afeto materno apresentam declínio progressivo do quociente de
desenvolvimento, sintomas de depressão, tornando-se emocionalmente
carentes, mais agressivas e destrutivas.
Segundo dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), do Ministério da Saúde brasileiro, cerca de 40 mil casos de
violência doméstica contra crianças e adolescentes na faixa etária entre
01 e 19 anos foram registrados no Sistema Único de Saúde, em 2011. No
nível nacional, a faixa com maior índice de atendimento são as crianças
com menos de um ano de idade. Contudo, o mais preocupante é que
por baixo desse quantitativo visível, um enorme número de violências cotidianas nunca chega à luz pública (Waiselfisz, 2012, p. 62). A violência
intrafamiliar pode ser entendida como
toda a ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a
integridade física e psicológica ou a liberdade e o direito ao
pleno desenvolvimento de outro membro da família. Pode
ser cometida dentro ou fora de casa por algum membro
da família, incluindo pessoas que passam a assumir função
parental, ainda que sem laços de consanguinidade, e em
relação de poder à outra (Brasil, 2002, p. 15).
A negligência, o desrespeito e a falta de cuidado e afeto com as crianças e com os adolescentes por parte de suas famílias ficam evidentes na fala
dos entrevistados da pesquisa. A coordenadora pedagógica da Instituição A
relata o comportamento social das crianças atendidas pelo SASE:
Observamos a negligência familiar com as crianças muitas
vezes na fala, muitas vezes no comportamento, na maneira de se comportar, tem coisa que a gente acha errado e
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eles acham natural, por exemplo, furtar (...). Quando eles
chegam aqui, o que a gente mais vê são crianças negligenciadas, negligências que eu digo é que foram deixadas,
que viveram uma vida que tu nem sabe como, nem onde,
porque chegam completamente sem conhecimento ou um
conhecimento completamente distorcido da vida, de tudo.
Crianças que não tiveram contato com livros, não tiveram
contato com brincadeiras saudáveis, parece que estavam
numa caixinha fechada ou num mundo escuro só com coisas ruins, a gente meio que enxerga a maioria deles assim
(Coordenadora pedagógica da Instituição A).
O diretor pedagógico da instituição B enfatiza a dificuldade do trabalho cotidiano de resgate da autoestima de crianças e jovens, porque,
paradoxalmente, a teoria pedagógica é insuficiente frente às situações de
extrema vulnerabilidade enfrentadas por esses.
O perfil das crianças atendidas aqui é de múltiplas vulnerabilidades, ela é muito pobre e, via de regra, mora na periferia
da periferia, ela é uma criança que acessa muito pouco aos
bens e serviços. Tu andando na rua tu não vês a pobreza, ostensivamente falando, tu precisas descer os barrancos para os
dois lados pra enxergar os pobres, e daí elas têm problemas
de esgoto, saúde pública, com recolhimento de lixo, com
moradias inadequadas, moram em espaços normalmente
perigosos. Mas eu acho que o problema não é só material.
O grande problema tá na questão da educação das pessoas,
as pessoas foram educadas para serem pobres, as pessoas foram educadas para não terem ambição de quererem alguma
coisa para si, de quererem inclusive a sua educação. A grande
maioria dessas pessoas viveu em lugares onde a estima delas foi roubada, como não tem estima não tem desejo. No
entanto, são crianças extremamente inteligentes, uma capacidade de criar estratégias muito grandes porque vivendo na
rua, vivendo na drogadição, driblando a questão do pai que
é drogadito, a mãe que trabalha em situação, muitas vezes
complicada, eles aprendem também a driblar as dificuldades
da vida. São crianças que não é qualquer coisa que os abala
aparentemente (Diretor pedagógico da Instituição B).
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A instituição B também oferece o Programa Ação Rua, conveniado
com a prefeitura de Porto Alegre, cuja meta é a abordagem de crianças e
jovens em situação de rua e, se bem sucedida, a reinserção dos mesmos
nos respectivos núcleos familiares e/ou na rede institucional. No entendimento da coordenadora, é a falta de afeto o que movimenta uma criança a
buscar a rua, pra ela buscar a rua enquanto moradia é porque na sua casa
está muito mais grave, ela corre muito mais risco estando dentro de casa
do que na rua (Socióloga –Ação Rua – da Instituição B).
A questão da precariedade dos cuidados às crianças por parte de
suas famílias também foi recorrente nos depoimentos dos educadores sociais do SASE. Cabe aqui ilustrar com alguns depoimentos, como exemplo, os de duas educadoras da Instituição A:
a maioria das crianças os pais não se importam muito com
essas coisas de como tu sentas, com quem tu andas, que
horas tu entras, sabe - não tem muito essa coisa, é negligência mesmo. Eu observo isso pela forma como eles se expressam, pela forma que eles convivem com a gente tu vai
vendo que eles não tiveram essa orientação em casa, isso
tanto faz pra eles, eles não conhecem tais valores. Botam
apelido em tudo, riem da roupa e do calçado, pra eles tanto
faz sabe, amizade não tem muito, não tem aquela coisa é
meu colega eu vou ajudá-lo, parceria e tal, tem crianças
que não conseguem pensar no dia de amanhã. (Educadora
Social da Instituição A há quatro anos)
Minha maior dificuldade é a postura deles. Eu sou chata
porque eu digo pra eles que no momento que vocês saírem, convidarem vocês pra algum lugar, vocês têm postura,
sabem se comportar, não é só porque se ensina na escola,
não é só porque eu quero que vocês apreendam, é uma
coisa que vocês vão levar pra vida de vocês, imagina se vocês forem num restaurante, na casa de um amigo, como
vocês vão sentar pra comer, pra fazer um lanche, vocês não
são bicho e eu quero ter orgulho, eu adoro receber elogios
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porque vocês estão bem, eu digo pra eles. (Educadora da
Instituição A há um ano)
Ao mesmo tempo eu tenho que ter uma característica de
mãe, tenho que ter característica de educadora, eles tem
que me enxergar como educadora mas infelizmente a gente
faz sim o trabalho de mãe também, sabe, porque muitos
não têm as mães, não têm uma estrutura familiar, então a
gente precisa dar aquele carinho de mãe, dar aquele limite
de mãe, aquela brabeza de mãe, porque aqui a gente não
tem conteúdo pra seguir, prova, ponto pra tirar, não, então
aqui é o afeto, então tudo que a gente trabalha, os limites,
as conversas é tudo pelo respeito que um tem pelo outro,
eu pelos educando e eles por mim. (Educadora Social da
Instituição B há um ano).
Diante do exposto, é possível inferir que políticas sociais que contemplem soluções efetivas para o planejamento familiar, maternidade e paternidade consciente, poderiam ser formuladas e executadas, por exemplo,
no bojo das políticas de assistência, saúde e educação. Existem algumas
experiências pontuais bem sucedidas, porém, na maioria das vezes, o tema
é discutido em parcas campanhas publicitárias e oficinas comunitárias minimamente divulgadas e, por isso mesmo, com baixa frequência. Outro
ponto a ser incluído no debate são as gestações de jovens meninas, quase
sempre frutos da violência sexual intrafamiliar ou da deseducação para o
início das relações amorosas. Ocorre que sem a consciência e a responsabilidade necessárias para a constituição de um núcleo familiar protetivo,
a herança transgeracional do reconhecimento negado e da invisibilidade
subjetiva e social continuará atávica para as futuras gerações.
Um segundo ponto importante a se discutir sobre o SASE e seus
objetivos diz respeito aos processos pedagógicos. O Programa SASE, particularmente em Porto Alegre, iniciou suas atividades como política pública ligada à área da educação, funcionando por curto período como
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extraclasse. No fim dos anos 1990, foi integrado no bojo das políticas de
assistência social, e, a partir de então, vem sendo desenvolvido e aprimorado. Importante salientar que o SASE resistiu às mudanças de governo
e se tornou uma política social municipal permanente. Desde o final do
ano de 2009, está vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Social e
Assistência Social como um serviço de proteção social básica, financiado
pelo fundo de assistência social nacional e municipal. Flickinger (2010)
elucida essa questão rocambolesca quando diz que no Brasil,
a história da educação escolar dificilmente levou em consideração a autenticidade dos processos de formação não
formais, pensando muito mais no aperfeiçoamento da qualificação profissional para o trabalho, e no aumento da efetividade do ensino. Por sua vez, é a história do serviço social
que é marcada pelo trabalho em campos abertos e pouco
estruturados da sociedade. Desse modo, o serviço social
desde sempre vem dando importância às condições sociais
e políticas, determinadoras da vida daquelas camadas sociais que mais sentem os efeitos negativos do processo de
modernização (Flickinger, 2010, p. 198).
Na sequência, a Resolução do Conselho Nacional de Assistência
Social, CNAS n. 109, de 11 de novembro de 2009, aprovou a Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais, em conformidade com a Lei
Orgânica da Assistência Social (LOAS) e com o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), designando diretrizes mínimas para a implantação e
funcionamento do SASE. A partir dessa resolução, os serviços de apoio
socioeducativos em meio aberto passaram a ser normatizados nacionalmente pela Assistência Social e com uma nova denominação: Serviço
de Convivência e Fortalecimento de Vínculos. Na prática do serviço, a
alteração tem mais a ver com a necessidade de uma fonte de recursos
permanente para a manutenção do serviço do que propriamente com
uma proposta pedagógica.
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O SASE usa um modelo de ação híbrido, ancorado nos princípios
da educação social assistemática e nas atividades assistenciais, mas apresenta lacunas ainda não resolvidas quanto à padronização e avaliação das
atividades, aos conteúdos e à formação dos profissionais que nele atuam.
Isso fica evidenciado na fala das educadoras sociais da instituição A e
Instituição B:
eu tenho ensino médio e fiz vestibular para tecnólogo em
saúde da criança e do adolescente e daí tranquei e não voltei. E tenho vários cursos de capacitação na área da violência, alguns foram oferecidos nas instituições que eu trabalhava e outros eu fiz pela FASC. Eu tranquei a faculdade
na verdade foi por motivos financeiros, meu filho também
estava indo pra faculdade, daí passei dificuldades financeiras e não consegui. Com certeza a gente fica muito parada,
de vez em quando a gente tem que tá lendo, conversando, o
tempo vai passando e tu tens que ter o cuidado de não ficar
desatualizada, até a linguagem que a gente tem com eles, a
gente não pode vir pra cá e ficar nas oito horas de trabalho,
tem que olhar televisão, tem que ler, tem que saber o que
está acontecendo, tem que se atualizar, tem que trabalhar
o dia- a- dia deles, não é trabalhar só com livros, mas com
a bagagem deles. Eu aproveito muito a vivência deles. (Educadora Social da Instituição A).
Tenho licenciatura em Ciências Biológicas, depois eu fiz
especialização em educação ambiental e mestrado em
Educação Ambiental, e logo que eu terminei o mestrado
em Educação Ambiental eu comecei a trabalhar aqui. Eu
tenho formação como professora, trabalhei dois anos como
professora de ciências. Depois do mestrado meu primeiro
emprego foi como educadora social aqui nesta instituição.
Quando eu era pequena eu me lembro que na sexta série
a professora apresentou o estatuto, as leis e eu lia que toda
a criança tem direito à educação, eu lembro que eu lia e
dizia como que tem direito e eu vejo na rua, né, eu estudava em escola particular, e então eu me admirava com
aquelas crianças na minha idade na rua, fazendo coisas nas
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sinaleiras, então eu digo que aqui também é a realização de
um sonho que eu tive há muitos anos atrás de ajudar essas
crianças. Então, a minha formação foi vindo em direção à
educação eu acho por isso, né, de eu gostar tanto de trabalhar e aprender, e eu aprendo muito, estou aprendendo
aqui dia após dia a ser uma educadora social (Educadora
Social da Instituição B).
O verdadeiro potencial transformador do SASE está sendo malbaratado porque focaliza seu trabalho quase exclusivamente nas ações assistenciais. Na medida em que o Programa voltar suas práticas para um
modelo pedagógico orientado na educação social, usar métodos didáticos atrativos e adequados para as diferentes faixas etárias e buscar educadores qualificados e vocacionados, o objetivo de um impacto social positivo nos indicadores de vulnerabilidades, conflitualidades e transformação
social poderá ser mais facilmente alcançado. São condições necessárias
para isso uma valorização profissional e a qualificação dos educadores
sociais, através de formação específica e continuada, e a normatização do
currículo pedagógico. Fica clara, na fala das crianças e dos adolescentes
do SASE, a necessidade de readequar conteúdo e metodologia didática.
Eu gostava de fazer biscuit, e ir para o pátio brincar. Jogar
bola. Eu gostava de jogar futebol. Os passeios e a informática. Gostava das piscinas, mas eu não me lembro do nome
do lugar das piscinas, ah! Itapema Park. Eu gostava da praça
e dos passeios. Eu também, praça e passeio. Não gostava de
entrar pra sala de aula. Eu preferia ficar no pátio. Gostava
de desenhar e fazer brincadeiras. De melhor tinha o pátio.
As aulas de flauta era o que eu menos gostava, era chato,
mas participava só quem quisesse, eu não fazia, eu gostava
era dos passeios. Não gostava de entrar pra sala e escrever, a professora passava coisas sobre drogas, lá, a gente
reclamava pra ela. A gente tinha que escrever no colégio e
no curso também, né, tá louco, ela passava um monte de
coisa no quadro e a gente tinha que anotar. Melhor era a
praça e os passeios. Eu também achava ruim entrar pra sala
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e escrever um monte de coisas, tinha que escrever muito,
porque é chato, a gente poderia ficar brincando e tinha que
ficar discutindo assuntos de adolescentes. Pra mim o SASE
é ficar brincando no pátio, não tem idade pra discutir isso.
(Fragmentos de falas dos adolescentes egressos da Instituição B, via grupo focal).
Eu gosto de fazer os temas da escola e gosto de fazer relaxamento, mexer os dedos, mexer o corpo devagar, fazer
massagem um no outro. Eu gosto de brincar no pátio, gosto
de fazer relaxamento e os temas. Eu gosto de jogar “três corta”, e eu gosto da tia, gosto também de quebra-cabeças. Eu
gosto também de ler, a gente que pega os livrinhos e lemos
– cada um pega um e lê. Eu gosto também do artesanato,
toda a segunda a gente têm aula de arte. A gente faz coisas
com biscuit e faz também uns vidrinhos. Sobraram uns vidrinhos, seriam pras mães, mas algumas mães não vieram.
Eu gosto de fazer o tema. Sim, também gosto de “três corta”
e brincar no pátio, e da pracinha também. Gosto de andar
de balanço, brincar de “três corta” e desenhar. Eu gosto de
fazer os temas, brincar, ir pra pracinha e também de jogar
bola. Gosto do balanço, jogar futebol e “três corta” também. Eu gosto de vir para o SASE porque minha mãe não
deixa eu ficar muito na rua porque tem muito tráfico de
drogas alí na frente e quando eu não estou aqui eu fico na
minha tia. Nunca falto no SASE, eu prefiro vir pro SASE do
que ficar aprendendo coisa ruim na rua. Eu gosto de vir para
o SASE porque não tem ninguém pra eu ficar lá na vila. Eu
gosto de vir para o SASE porque se eu fico em casa minha
mãe me manda limpar a casa (risos de todos). Eu gosto de
vir para o SASE porque não tem ninguém em casa e eu fico
sozinha. (Fragmentos das falas de crianças participantes do
SASE na Instituição A, via grupo focal).
Sinalizamos, ainda que de forma sutil, um último ponto a ser repensado para a qualificação do Serviço. O acompanhamento dos egressos
por um período determinado, pela própria instituição de origem, quanto
ao acesso à educação continuada, inserção no mercado de trabalho e
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convívio comunitário e familiar, certamente se faz necessário. Cercar-se
dessas informações apontaria lacunas ainda não identificadas, e, à medida que saneadas, ampliariam os horizontes de possibilidades para novos
recursos e medidas institucionais de tal política pública, no que se refere
ao resgate do reconhecimento social e subjetivo de crianças e jovens em
situação de vulnerabilidades.
Para finalizar o estudo, seguindo a linha metodológica de LessardHébert e coautores (2005), o polo morfológico foi construído a partir das
informações coletadas e trabalhadas nos três polos anteriores. Mesmo
numa perspectiva hermenêutica, ainda que, inadvertidamente, se possa
imaginar ausência de métodos, ao contrário, trata-se de adequar a medida
ao objeto e fazer a devida distinção e uso da forma e do conteúdo. Nesse
diapasão, os resultados, sempre a considerar o fator inconcluso e transitório
dos mesmos, foram socializados em forma de relatório e artigos.
4 Reflexões finais
A partir dos resultados dessa investigação, considerada sua especificidade metodológica, a teoria do reconhecimento social e intersubjetivo
como fundamento para a compreensão do fenômeno de “irresidência”
infanto-juvenil e consequentes conflitos urbanos corroborou a hipótese
do não reconhecimento como causa importante da violência urbana envolvendo o segmento infanto-juvenil. Ao que tudo indica, parece que
compreender a causa da “rualização” de crianças e adolescentes e a consequente violência urbana pelo critério isolado da pobreza econômica é a
mais frágil e incompleta das interpretações. Na mesma trilha do presente
estudo, citamos o trabalho de Gratius & Valença (2011), que mostra as
diferentes perspectivas quanto à explicação da violência na cidade de
Caracas, capital da Venezuela. Desde 1999, o governo, cuja plataforma
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política se baseia na igualdade social, tenta explicar as raízes da violência
como consequência da pobreza, enquanto que, paradoxalmente, verifica-se o aumento dos conflitos urbanos mesmo depois de grande aporte
assistencial. O estudo demonstra que políticas assistencialistas desarticuladas das políticas de educação, direitos humanos e reforma policial não
logram êxito no combate aos conflitos e à violência urbana. De outro
lado, lembramos o caso da Alemanha. Apesar do crescente fluxo de recursos aplicados na assistência social, os índices de violência urbana têm
se mantido, excetuando-se algumas variantes, no mesmo patamar, relativamente a ultima década.
Nessa perspectiva é que Honneth entende que a deflagração dos
conflitos sociais se dá a partir das experiências humanas de menosprezo,
humilhação e discriminação e não meramente por questões econômicas.
Noutras palavras, o autor faz uma leitura em que, na atualidade, o mais
alto propósito de integrar um determinado grupo de reivindicação é encontrar um meio social de reconhecimento da valoração pessoal (Honneth, 2010c, p. 269). Tampouco, os sujeitos buscam meramente o reconhecimento jurídico, imposto e forçado, mas reivindicam a valorização social
livre, como sujeitos de direitos subjetivos (Honneth, 2010b, p. 56-58).
Quando sujeitos imbuídos do sentimento de raiva, que se manifesta reverberando mágoa, ressentimento e rancor, se deparam com o
sentimento coletivo de injustiça, então germina o propelente detonador
dos conflitos urbanos. De outro lado, Misse também alerta sobre a superficialidade da associação entre pobreza e violência urbana, quando
escreve que não é exatamente a pobreza que leva ao crime, mas pode
ser a revolta (Misse, 2006, p. 10). Na mesma linha, Tavares dos Santos e
Machado (2010) apontam as rupturas dos laços sociais e familiares que
fragilizam ou interrompem o vínculo entre o “eu e o outro”, como pontos
fundamentais para a compreensão das conflitualidades.
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Talvez uma característica atual do jovem adolescente seja a
incerteza da vida, assim como o exercício e a experiência da
violência representam uma ruptura do contrato social e dos
laços sociais, levando a fenômenos de ‘desfiliação’, quebrando as relações de alteridade e rasgando a ligação entre o eu e
o outro (Tavares dos Santos; Machado, 2010, p. 241).
Reiteramos que não foi meta desse artigo o debate e confrontação
entre teorias. Estamos cônscios das limitações apontadas pelos interlocutores críticos da teoria do não reconhecimento social. Todavia, não se
configuram mais em exceções as diagnoses não materialistas como causa
dos conflitos urbanos. Parte-se dessa assertiva, para abordar o SASE enquanto política assistencial básica, orientada por princípios morais, afetivos e pedagógicos específicos, voltada para o segmento infanto-juvenil
oriundo de famílias em situação de vulnerabilidade social, como um programa relevante, capaz de oportunizar o desenvolvimento humano-social
do público-alvo. O Programa, na sua essência, tem por meta oferecer as
ferramentas necessárias para o empoderamento pessoal, intelectual e político, através do resgate da autoestima, da consciência dos direitos e da
pertença social. No entanto, para melhor qualificá-lo, entendemos que tal
política suscita prescrever uma formação adequada para os profissionais da
equipe de educadores sociais, normatizar um currículo pedagógico comum
e aperfeiçoar os mecanismos de avaliação e de fiscalização, tornando-os
compulsórios para todas as instituições conveniadas ofertantes do SASE.
Com efeito, temas contemporâneos e complexos como o da violência urbana e das conflitualidades envolvendo crianças e jovens não se
esgotam, ao contrário, carecem sempre de mais investigações. Neste artigo, em especial, procuramos problematizar sobre as origens dos conflitos
sociais que cercam o segmento infanto-juvenil, particularmente a “rualização” e a violência gerada por ela. Diante da atual profusão das conflitualidades urbanas, é importante sinalizar que a sociologia do segundo
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milênio cumprirá sua missão quanto menos dicotomizar pensamento e
ação, e mais empreender o labor interdisciplinar, o agir e o comprometimento social. De fato, numa perspectiva sociológica factual, teorias simbióticas, como, por exemplo, a de Axel Honneth, têm muito a contribuir
para a consolidação de uma sociologia microssocial, onde a vida vivida,
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Recebido em: 19/03/2013
Aceite final: 08/07/2013