Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

A ARTE DA FÁBRICA DAS NAUS

Fernando Oliveira: Um Humanista Genial. Carlos Morais, ed. Universidade de Aveiro 2009

This article presents an analysis of the construction processes described in Livro da Fábrica da Naus de Fernando by Oliveira and their validity in understanding the construction techniques of the sixteenth century

A ARTE DA FÁBRICA DAS NAUS Tiago Fraga, António Teixeira, Adolfo Silveira Martins (CIDMAR – Centro de Investigação e de Desenvolvimento do Mar do IIPUAL ( Instituto de Investigação Pluridisciplinar da Universidade Autónoma de Lisboa) Sumário Projecto de estudo, que promove a reflexão sobre os processos de construção naval, descritos no Livro da Fábrica das Naus de Fernando de Oliveira e da sua validade para o conhecimento das técnicas construtivas do século XVI. Summary This article presents a analysis of the construction processes described in Livro da Fabrica das Naus de Fernando de Oliveira and their validity in understanding the construction technique of the sixteenth century Palavras chave Construção naval, arqueologia náutica, reconstrução virtual, nau da Índia, Fernando de Oliveira Keywords Naval shipbuilding, nautical archaeology, virtual reconstruction, Indiamen, Fernando de Oliveira Portugal nos finais do século XV, meados do séc. XVI, respondeu ao estímulo da descoberta de novos mundos. Protagonizou a empresa do conhecimento da navegação oceânica e da construção naval que subsequentemente decorre e evolui numa corrente de alta tecnologia que colmata sucessivamente as necessidades criadas pelo movimento da expansão ultramarina. Mestres construtores, que se perderam na escuridão do tempo, alguns referenciados por Sousa Viterbo (1890), souberam delegar de geração em geração, a arte da Fabrica das Naus. Fernando de Oliveira foi o primeiro teorizador desse saber da experiência feito, ao compilar e delegar esse conhecimento, que hoje inquirimos na perspectiva de melhor entendermos os processos de construção naval antiga. A vida de Oliveira teria sido uma das mais atribuladas do seu tempo. Foi filólogo, clérigo, cronista, professor, piloto, soldado e sobretudo um grande aventureiro. O cariz 1 da personalidade de Oliveira, reflecte(se aqui pela expressão de D. Pedro que lhe chama um «homem muito desassossegado». Como tratadista em construção naval, escreveu a Ars áutica, seguida do Livro da Fábrica das Naus. A Ars autica, editada em latim em 1570, encontra(se hoje depositada na Biblioteca de Leiden, na Holanda. Trata(se de uma obra de difícil leitura, confusa, no entanto de excelente qualidade, não só pela informação compilada, até então dispersa por alguns elementares regimentos para uso exclusivo dos mestres de construção, como pelos desenhos técnicos que apresenta. O Padre Fernando de Oliveira na obra o Livro da Fábrica das Naus, elaborado entre os anos de 1570 e 1580 e editado apenas em 1898, por Henrique Lopes de Mendonça (1898), pretendeu atingir a exaustão do conhecimento da arte de construção naval do seu tempo, não só referindo(se à arquitectura dimensionada do navio, como salientando toda a problemática complementar. Propõe(se então Oliveira (...) tratar premeyro das madeyras accõmodadas para a fabrica naual, e de suas qualidades: & do tempo em que deuem ser colhidas, & per que modo. Despoys trata dos achegos […] Despoys das medidas, & symetria das naos[…] & de seus aparelhos[…] & do modo, & engenhos de uarar, & lançar as naos(...).(p.57, l. 12)1 O Livro da Fábrica das Naus, recolhido na Biblioteca Nacional de Lisboa, compõe(se de um Prólogo e nove capítulos sobretudo dedicados à arte da construção naval. No prólogo, o autor justifica a sua obra acentuando que «(…)os nauios são necessários pera a arte da nauegação, & a nauegação pera a gente desta terra de Portugal» (p.55, l. 8). O segundo e o terceiro capítulos tratam exclusivamente do tipo de madeiras, a sua melhor aplicação às diferentes partes do navio e do tempo, em que as árvores devem ser cortadas, para que reúnam as melhores características para a construção. Fala(nos do sobreiro, cuja madeira é forte e dura para o cavername e do pinheiro para o tabuado. O azinho e o carrasco para o substituir, como também do abeto, do cedro, do cipreste para outras finalidades. O quarto capítulo trata dos pregos, estopa, breu, alcatrão, sebo, resina, da sua qualidade e aplicação. No quinto, distingue os diferentes tipos de navios, salientando a nau, a galé, o galeão e a caravela. A proporção dos navios de carga é 1 No interesse da clareza de leitura, as citações referentes ao Livro da Fabrica das Naus indicam o número da página e a linha de início correspondente. As mesmas referem(se à transcrição do texto da edição fac(similada da Academia de Marinha (Oliveira, 1991) 2 tratada no oitavo capítulo, caracterizando(os pela necessidade de serem «(...) fortes, ueleiras, & de bom porte» (p.83, l. 18). Na construção do navio, dever(se(á exigir boa simetria e proporcionalidade. Segundo nos dita Oliveira, é da implantação da quilha que dependem estas características, porque com ela estão correlacionadas todas as outras partes do navio, como as proporções da largura, altura, fundo, graminhos, lançamentos e boca. O Padre Fernando de Oliveira tratou da traça da quilha, sobrequilha, lançamento de proa e popa, roda de proa, cadaste, mestras, graminhos, almogamas, côvado, e de todas as outras componentes de um navio redondo, matéria que aqui comentamos. Consubstanciando a análise sobre os estudos científicos já elaborados, sobre a informação registada na Fabrica das Naus, surpreende(nos que os respectivos resultados nunca tenham levado à materialização de um navio, sustentado em exclusividade na obra de Oliveira, criando assim a dúvida, se será possível a sua concretização. Foi este o principal objecto do nosso estudo, quando fundamentados exclusivamente no registo da Fábrica das Naus, desenvolvemos o projecto de reconstrução virtual da nau de Oliveira, que demonstramos. O sistema de medidas Necessário foi prioritariamente, definir a correlação entre o sistema internacional de medidas e o sistema de medição do século XVI. Oliveira (1580) define a construção da nau em rumos e em palmos de goa, quando escreve o seguinte: « [Rumo] significa espaço de seys palmos, tomados ao longo da nao, que he espaço em que se pode alojar hum tonel […] os palmos não são todos yguaes, quero tambem dizer, quantas maneyras ha de palmos, & qual delles serue nesta fabrica. As mays acostumadas são tres: hũa da geometria […] Outra he o palmo comũ, a q algũs chamão redõdo, que he quãto alcança toda a mão do homẽ estendida, desda põta do dedo mays pequeno, atee a cabeça do polegar. A terceira he mayor, por que alem de estender toda a mão, como dixe, tem mays, que uira o dedo polegar de costas atee a premeyra junta. Este se chama palmo de goa, & por elle se medẽ os rumos, & goas, & toda esta nossa fabrica.» (p.88, l. 1). A dificuldade surge ao determinar os valores actuais para este sistema de medidas. Vários autores apresentam valores diferentes para o rumo e para os diversos palmos, dependente das fontes consultadas, das experiências feitas ou da interpretação que fazem dos textos coevos; porém, (Martins, 2001:110) e (Castro, 2001:219,222) apresentam, por razões diferentes, um valor de 1.536m para o rumo. Adoptamos assim, 3 nesta reconstrução, o rumo igual a 1.536m, o palmo de goa (um sexto de um rumo) igual a 0.256m e a polegada (um sexagésimo de um rumo) igual 0.0256m.2 Gramática construtiva e proporções A gramática construtiva deste navio, entendida como a ordem pelo qual são colocadas as peças e as suas inter(relações, determina que o tipo de construção adoptado na Fábrica das Naus pertence ao processo de construção “esqueleto primeiro”, isto é, são definidos, como elementos estruturais e activos a ossatura do navio (Tabela 1). Tabela 1 Lista das diversas peças mencionadas. .º Peça Pág. 1 Quilha 90 2 Lançamento da Proa (Roda de Proa) 90(1 3 Cadaste 91 4 Gio 92 5 Coraes e sobrequilha 93 6 Fundo/Plão/ Cavernas Mestras 94 7 Almogamas 95 8 Regel / Delgado e enchimentos 100 9 Braços 106 10 Hastes 107 11 Buçardas 111 12 Reversados 112 13 Latas 113 14 Rede 115 15 Antrecostos 117 16 Costado 117 17 Sobrecostado 117 18 Cintas 118 19 Escoas 118 20 Dragas 118 A partir das medidas da primeira peça, a quilha, dimensionam(se quase todas as restantes peças da nau. Oliveira justifica o método pelo seguinte: 2 Abrevia(se no restante corpo de texto palmo de goa (pg), rumo (r) 4 (…) cada membro ha de responder aa sua certa parte em boa & cõueniente proporção, & todas ellas hão de concertar hũas com outras. Esta certa parte na fabrica das naos de carrega, he a quilha. A esta se referem a largura, & altura da nao, & o fũdo, & graminhos, & lançamentos, & boca, & outras partes principaes de que todas as mays pendem. Per esta se comprende camanha, & de que porte ha de ser a nao: por que sabida a longura da quilha, sabese quão larga, & quão alta alta ha de ser, & quãto ha de lançar pera proa, & pera popa, & o que pode levar pouco mays ou menos (… ) (p.86, l. 20). Processo de construção O processo de construção baseia(se numa nau de seiscentos tonéis definida por uma quilha de dezoito rumos. Colocada a quilha, Oliveira inicia a descrição de como posicionar as rodas de proa e popa, principiando pelos lançamentos. Alem da quilha, pera mays fremosura, & proueyto, se estendem os nauios pera a proa, & popa algũa cousa pouca (…) A estes acrecentamẽtos chamão os nosso carpẽteyros lançamẽtos.( p.90, l. 19) Para a proa, determinada por uma curva, Oliveira estabelece o lançamento do seguinte modo: Sobre a cabeça da quilha aleuantão hũa linha dereyta, & perpendicular, de feyção que faz esquadria dereyta co a quilha […]. Esta linha assy leuantada estaraa queda & fixa: & na sua cabeça em cima atarão outra tão longa comeella, com hũa das pontas solta, pera que possão andar co ella derredor como compasso: & chamão. rol.. a esta que anda. Co este rol andão da cabeça da quilha parauante sobindo em roda atee chegar ao liuel da cabeça da perpendicular, onde acaba de fazer hum quadrante de circulo. O qual quadrante faz a milhor forma de proa (…)(p.90, l. 31) Regista assim que, para um navio de dezoito rumos de quilha, a perpendicular onde se baseia o lançamento é de 36pg (9.22m), sendo contudo o lançamento da roda da proa de acordo com a função ou intenção do construtor. Oliveira desenha como proposta três lançamentos de proa com um rumo (1.54m) de intervalo, o que coloca o lançamento da proa entre os 33pg (8.45m) e 39pg (9.98m), pelo que optámos pelo valor do «meo» ou 9.22 m (fig.1). 5 Fig. 1. Lançamentos Quanto à popa, o seu lançamento diverge deste. Oliveira descreve que os lançamentos mais usados são perto de um quinto da altura do cadaste; todavia, alguns autores apontam para um quarto da sua altura, (altura igual a um terço da quilha), respectivamente valores entre 2.048m e 2.304m. Contudo, na sua perspectiva, afirma que o melhor resultado é o obtido pelo processo geométrico, do qual resulta um ângulo de inclinação igual a 102.55º e num lançamento do cadaste de 2.058m para uma quilha de dezoito rumos. Notamos curiosamente, que Oliveira coloca a altura do cadaste ligeiramente inferior a um terço do comprimento da quilha para que, com a colocação do gio, o conjunto fique ao nível do convés, exactamente à altura de um terço do comprimento da quilha. 3 Oliveira nestes três passos, quilha, roda de proa e cadaste determina a estrutura longitudinal do navio, a primeira a estabelecer. Segue(se a definição da forma transversal. Começa(se pelo gio, elemento estruturante da popa do navio, que define a largura e a forma do painel de popa e consequentemente, nesse espaço toda a linha, da querena. Para o autor da Fábrica das Naus, o gio tem a largura de metade da boca, 24pg (6.144m). A sua espessura obtém(se pela diferença entre o extremo do cadaste e a linha do convés, neste caso, cerca de um palmo (0.23m). 3 Oliveira (p. 91, l.28), diz(nos que «(…) por que o gio que estaa sobrelle, ha de ficar ygual do conues, & abaixo da roda (…)» 6 No processo de construção e após o posicionamento do gio, segue(se a colocação das cavernas mestras. Para o navio de 18 rumos. Oliveira sugere que sejam em número de três 4 . A localização longitudinal da caverna mestra central será a um oitavo do comprimento da quilha, avante do seu meio, o que equivale a dois rumos e um palmo e meio (345.6 cm). Curiosamente, coloca a caverna mestra cerca 1/2 pg (12cm) a ré do ponto médio do comprimento roda a roda.5 Ora, se alinharmos esta caverna pela face anterior e não pelo seu centro como é usual, encontramos a sua linha média exactamente a meio do comprimento roda a roda. Demasiada coincidência para não ser essa a intenção do autor. Foi essa a nossa opção. Oliveira, determina ainda, para além das mestras, o número de cavernas de conta (cavernas cuja forma é determinada através de um algoritmo), estabelecendo que o número de cavernas a ré e a vante das mestras é igual ao número de rumos da quilha (18 rumos), «(…) & não mays, mas antes menos (…)». (p.95, l. 26) Daí resultam 18 cavernas a ré, três mestras e 18 a vante, num total de 39. Se seguirmos a primitiva versão do texto, sob folio colado, verifica(se que Oliveira diz que, «…entrarão neste número as almogamas e mais as mestras, as que forem mais que hũa.» (Domingues, 2004:160(161), o que implicaria remover uma caverna de conta, por cada mestra não central. Daria um total de 17 + 3 + 17 =37. No desenho do levantamento do navio, vemos uma só caverna mestra e 18 cavernas a vante e a ré, estas graminhadas, pois apresentam levantamento, num total de 18 + 1 + 18 = 37 cavernas. Já o desenho do recolhimento tem três cavernas mestras (sem recolhimento) e 18 cavernas graminhadas a vante e a ré o que perfaz 18 + 3 + 18 = 39 cavernas. Desta situação concluímos que existe alguma divergência entre o que está escrito e o que está desenhado e mesmo entre os desenhos. A opção tomada, por nos parecer que é a que melhor se identifica com a coerência estrutural do navio, foi a de considerar três mestras e 18 graminhadas a vante e a ré. A evolução da forma do navio nestas cavernas é dada por algoritmo traduzido por um método geométrico intitulado graminho, que determina o levantamento e recolhimento 4 O que se verifica no caso da presumível Nossa Senhora das Mártires (Castro, 2002: 345) 5 Tomas Vacas ([s.d.] )no seu relatório diz que a posição da caverna mestra acaba exactamente no mesmo local que a meia nau. 7 dos pontos do côvado e o recolhimento das extremidade das hastes, acompanhado do ajustamento dos raios dos arcos dos braços. Graminho Para calcular o recolhimento e o levantamento das cavernas de conta o Padre Oliveira utiliza um tipo de graminho, o graminho de besta ou de mezaluna. É preciso notar que Oliveira descreve três tipos de graminho, mas diz só confiar no de mezaluna. Os trabalhos de Castro (2007) demonstram que os resultados dos graminhos diferem entre cada tipo, mesmo partindo de medidas de base iguais. O graminho de Oliveira é aplicado dividindo a compartida pelo número de cavernas de conta, dado pelo número de rumos do comprimento da quilha. Resulta em 18 fracções. O comprimento do graminho em si é definido pelo valor do par, cabendo ao par a espessura de uma caverna mais o seu vão. O par de Oliveira é de dois palmos como ele indica «(…) que hũ uão com sua costa, ou madeyra, tenhão ambos juntamẽte dous palmos de goa; por que por tanto se chama hum par (…)». (p. 117, l. 13) Oliveira define para os graminhos de levantamento que o da popa é igual a um duodécimo da longura e o da proa tem deste, menos um terço. É interessante notar que este valor para o par de uma nau destas dimensões, não seria a única opção dos construtores. A única fonte arqueológica, até hoje conhecida para o par, é a de uma nau presumivelmente das mesmas dimensões que a descrita por Oliveira, a Nossa Senhora dos Mártires (Castro, 2002). Este navio tinha em média um par de 47cm (25cm para as cavernas e 22cm para o vão). Curiosamente, Castro (2002:208) baseado nestes valores apresenta uma compartida de um par e meio para o levantamento da popa (69.2cm) e um levantamento de um par (46.2cm) para a proa. A única reconstrução virtual efectuada, foi baseada nesta jazida. Aqui o graminho foi baseado num par de 47.667cm (Vacas, s.d.: 7). No decorrer deste processo e definido o par, iniciámos o levantamento do fundo das cavernas graminhadas (fig.2.) Sabendo que as mestras não levantam e que as restantes até a almogama seguem o graminho, a da popa levanta um par e meio (76.8cm) e a da proa levanta um par (51.2cm). 8 Fig. 2 Graminhos levantamento de proa e popa Oliveira define o fundo como o espaço entre as almogamas, de côvado a côvado e por plão como o fundo das cavernas mestras. É no plão que o fundo atinge a sua maior dimensão, de um terço a um meio da boca do navio. Neste caso o plão tem 18pg (um terço da boca) e nas almogamas o fundo é 12pg, decorrendo um recolhimento de 3pg por banda, equivalente a um terço do fundo. 9 Fig.3 – Graminho recolhimento Sobre a forma a dar às cavernas, Oliveira define o seguinte método: (…)Chamão couado onde a cauerna começa a fazer uolta para cima. A qual uolta ha de fazer em redondo, & não em canto dereyto: ,digo dereyto, de linhas dereytas posto que seja obtuso, ou rombo, quanto quer que seja. Por que ainda que assy possa seruir, não faz tão boa obra, nem serue tão bem, como redondo: por mũtas rezões. O redondo he mays capaz, & mays espedido, e parece milhor. Do couado para cima chamão braço. Este também ha de uoltar em redondo, pellas mesmas rezões: & do seu couado há de começar a fazer a sua uolta, de maneyra, que a uolta dambos seja hũa mesma, feyta com hum rol, & sobre hum mesmo centro: de tal modo, que desdo couado uaa o braço tendo forma circular. A qual teraa, atee o liuel das três quartas da altura: & da hy sobiraa mays dereyto, atee o convés, a quarta parte que lhe fica. Digo, qu por quanto os arcos dos braços não deuem chegar atee o conues na forma. & curso da circunferẽ que trazẽ de bayxo, he necessário, que subão aquella quarta mays dereytos,, para abrirem a boca do nauio em toda a largura que lhe acostumão dar. Por que se correrem atee o cõues na forma do circolo que trazem, meterão munto pera dentro, & farão a boca estreyta. Os centro dos circolos de que se hão de fazer os braços das cauernas, hão de estar a bayxo do conues hum terço da sua altura. […] & a terça parte são doze palmos, & tantos abayxo do conues hão de estar os centros dos braços, sobre os quaes se ha de lançar o rol desdo couado atee as tres quartas de altura.» (p.106, l. 5) Método este, que permite determinar as curvas, como se regista na figura seguinte. 10 Fig.4 Curvas com fundo e hastes Vejamos agora a construção das hastes que descreve no seguinte modo. «E da hy, como fica dicto, sobirão os braços atee o conues algum pouco mays dereytos, não a prumo, mas encostados tamalaues, quãto uão buscar a largura da boca»(p.106, l. 26) Porém, no cômputo dos três processos para a obtenção do fundo, braços e hastes, o resultado obtido não resulta em secções uniformes ou aceitáveis para a sua materialização. Uma deformação pronunciada, não desejável, é assinalada nos pontos de união das linhas do fundo, com as curvas dos braços e destas com as hastes. O porquê desta resolução deve(se a que Oliveira, ao contrário de outros tratadistas, não explica como criar o fundo de modo a resolver o seu ajustamento. Também na descrição das hastes, Oliveira é bastante vago e contraditório. Diz(nos que estas «(…) sobem hum pouco dereytos [...] por que as hastes das lanças, ou quaesquer outras cousas são direytas (…)»(p.106, l. 30), mas desenha(as curvas. Quando tentamos expandir as curvas dos braços ajustando(as ao ponto em cada secção onde se determina o seu fim, resultam linhas que efectivamente se adaptam aos contornos das curvas dos braços, mas 11 promovem as hastes em contracurva. Não desejável, nesta zona do casco, nem tão pouco o é indicado por Oliveira. Se seguirmos objectivamente o que Oliveira dita, ou seja, colocarmos linhas direitas, obtemos essa diferença na junção entre as curvas dos braços e as hastes, imperceptível e não relevante no desenho, mas sem dúvida de dificuldade acrescida, para qualquer mestre de ribeira. Mantivemos inalterado o fundo com curvas não directamente ajustáveis às curvas dos corpos das balizas, já que este tipo de navio aparenta ter por raiz a construção de fundo chato (fig.4). Sabemos, contudo por outros autores, que existiam métodos de ajustamento do fundo às curvaturas e estranhamos a sua ausência em Oliveira. Outro dos problemas decorrentes da leitura interpretativa do Livro da Fabrica das Naus, respeita ao processo de construção das extremidades do navio, isto é, a construção das cavernas que preenchem o espaço entre a almogama de vante e a roda de proa, intituladas buçardas e o espaço entre almogama de ré e o cadaste, intituladas reversados. Oliveira fornece(nos algumas pistas de como as fazer. Começa por se referir ao levantamento do fundo das cavernas de enchimento definido na popa, pelo regel (linha recta que parte do fundo da última almogama até um terço da altura do cadaste), onde se encontra o coral de popa. Na proa determina que o levantamento não se dá por linha recta, mas em arco, à feição da roda e do coral de proa, que termina também a um terço da altura da roda (fig.5). «Das almogamas para fora, assy para a proa como para popa, não sobe o porão do nauio pella regra dos grãminhos: mas na parte da popa sobe per hũa linha, q uay dereyta da cabeça do gramminho atee a terça parte, ou ametade da altura do codaste, a que chamão regel.[…] Da parte da proa sobe per cima do enchimẽto, não per linha dereyta como na popa, mas em arco aa feyção da roda (…)»(p.100, l. 12). 12 Fig.5 Regel e enchimentos proa Na boca, da almogama de ré até à popa, o recolhimento será de 3r (4,6m), resultado obtido recolhendo três oitavos da boca do navio (Boca – um oitavo da boca – Gio) «(…) E da hi pêra popa recolheraa três oytauas que são três rumos, ametade de cada parte (…)» (p.113, l. 12). Da proa recolhe 7r (10.75m), que corresponde à parte restante do recolhimento da respectiva almogama. «(…) Da parte da proa, da almogama atee a roda tem pera recolher todo o resto que fica do recolhimento da almogama, que são sete oytauas (…)» (p.113, l. 15) Oliveira, diz(nos ainda que alguns mestres utilizam armadouras para traçar estes recolhimentos, aconselhando contudo a utilização de graminhos, em particular à proa «(…) Mas o meu parecer he, que todos se fação gramminhados, em especial este de proa (…)» (p.113, l. 21). Fig.6 Graminhos boca dos enchimentos 13 Segue(se a informação de que as cavernas de enchimento até um terço de altura da roda são em “cantos agudos”. Na altura restante, assumem forma ovalada. Ao desenharmos, verificamos que estas instruções não são suficientes para a obtenção de curvas que se ajustem às cavernas graminhadas. Ao combinarmos os resultados das três, obtemos extremidades que não seria possível materializar em cavernas e em tabuado. Perante esta indefinição e insuficiência da descrição, a opção foi seguir um método que permitisse uma ligeira correcção nestas zonas do navio. Para a popa, optámos por desenhar uma linha de água a um terço da altura e outra à altura da boca; duas secções que representam, respectivamente, a caverna a seguir à almogama e a última caverna de enchimento, conforme instruções de Oliveira. A partir destas secções e linhas de água, criámos mais três linhas adicionais (Passo 2, fig.7). Da combinação das secções e das linhas de água surgiram as restantes secções (fig.7). Fig.7 figura dos passos 1(2(3(4 14 Ao estudar a popa, sente(se com nitidez a dificuldade em materializar tanto em desenho, como em madeira uma nau da Índia, segundo as instruções de Oliveira, nomeadamente porque define o regel como uma linha recta e demonstra(o no plano do levantamento, mas não nos diz como essa curva vai proceder na vista de topo. A nossa única opção foi aplicar a curva do fundo das graminhadas ao regel, de onde se obteve a seguinte curva (fig.8). Fig.8 figura da curva do regel Oliveira informa(nos, que até um terço da altura do convés, as buçardas e reversados são “em cantos agudos” o que nos dá um segundo ponto por onde as curvas, que representam as cavernas de enchimento, tem obrigatoriamente que passar. Um terceiro ponto encontra(se definido nas instruções do graminho da boca da popa. Porém estes três pontos são insuficientes para determinar uma curvatura que alinhe com o conjunto das cavernas graminhadas. Noutro sentido, três pontos apenas, geram possibilidades infinitas de variação de curvas, e se as sujeitarmos ao critério da resistência das madeiras, obtêm(se modelos improváveis de navegabilidade. (fig.9). 15 Fig.9 Curvas não corrigidas Pelas mesmas razões, também os mestres da ribeira durante a construção, teriam necessariamente constatado a impossibilidade de colocar tábuas do forro entre a almogama e a primeira caverna de enchimento. A utilização das armadoras, seria a opção dos mestres da ribeira, para encontrar a solução para estes problemas? (fig.10). 16 Fig.10 figura do erro desta zona. Definida a ossatura, prossegue Oliveira com a caracterização dos pavimentos, não sem antes referir as latas, sobre as quais se apoiarão as cobertas, indicando as suas dimensões e distribuição. «(…) que atrauessão dhũs braços pêra os outros, sobre as quaes se lanção as cubertas.[…] ão soomẽte mays grossas, & fortes serão as latas dos nauios que requerem fortaleza, mas também serão mays bastas, & se for necessário, tantas quantos são os braços, ainda que não sejão tão grossas hũas como outras: por que abastaraa de duas em duas, &de três em três hũa mays grossa (…)(p.113, l. 29) Sobre as cobertas diz que estas fortificam a estrutura do navio, não devendo, contudo ser em número excessivo. «(…) não deuem ser tãtas, que pegem o nauio & estoruem a seruentia delle (…)»(p.114, l. 12) Novamente impera o sentido prático, apontando para uma altura mínima de 7pg. e máxima de 10pg. 17 «(…) O menos que deue hauer de espaço antre hũa & outra, são sete palmos de goa: no qual espaço pode caber hum homem de meãa estatura: & o mays, são dez dos mesmos palmos (…)» (p.114, l. 13). Seguidamente, indica as alturas mínimas e máximas para os diferentes pavimentos: Mínima Máxima Porão 13 pg 16 pg 1ª coberta 7 pg 10 pg 2ª coberta 7 pg 10pg Mareagem 6 pg 7 pg Fernando Oliveira, estabelece para uma nau de 3 cobertas uma altura compreendida entre 36pg e 42pg (6 e 7r). «(…) Por esta ordem os mayores nauios uem a ter tres cubertas: q he o mais acostumado: por que a mayor altura dhũa nao, he de seys atee sete rumos, que são de trinta & seys atee corenta & dous palmos (…)» (p.114, l. 21) Dentro destes limites e seguindo uma distribuição pelos diferentes pavimentos sugerida pelo autor, adoptou(se a que consta na tabela (fig.11): Pavimento Altura Porão 16 pg 1ªcoberta 9 pg 2ªcoberta 9 pg Madeiras (3) 2 pg Mareagem 6 pg Total 42 pg 18 Fig. 11 – Pavimentos Seguem(se os castelos de popa e de proa, a que Fernando Oliveira chama de «obras mortas» (p.120, l. 7) (fig.12). Fig. 12 Castelos Para o castelo de popa, aponta um constituído por dois pavimentos, a tolda e a alcáçova. Para a tolda indica um comprimento até metade do comprimento do convés, lançando para ré do gio a quinta parte deste comprimento 15 pg (3.84m). A altura é entre sete a 19 oito pg (1.79m a 2.05m). Por sua vez a alcáçova deverá ser mais «(…)mays baixa, & mays pequena que a tolda a metade, pouco mays ou menos.» (p.120, l. 19), resultando numa alcáçova com cerca de 44.5 pg (11.39m) de comprimento e 4pg (1.02m) de altura. Ambos os pavimentos do castelo da popa foram guarnecidos com uma borda de 1 goa de altura, como Fernando Oliveira diz «(…) ambas, terão borda de madeyra, hora seja de grades, hora de tauoas, ou paveses, aleuantado em altura de hũa goa pello menos, para emparo da gente, & guarda do fato (…)»(p.120, l. 20). No castelo de proa, Fernando Oliveira não é tão exaustivo ao indicar apenas para a habita os limites das suas dimensões: para o comprimento, metade da altura do convés 18pg (4.16m), e para a altura um terço da altura do convés 12pg (3.07m). Tudo o resto ficaria ao critério do mestre, respeitando contudo a forma triangular. O último ponto a salientar é a xareta, ou cobertura em rede da tolda e convés que servia de zona de passagem entre a alcáçova e o castelo de proa, para desocupar o convés para serviço do navio. Tratar(se(ia de uma regra, o convés estar desocupado de mercadoria e passageiros, suportando a xareta, os fardos e mercadorias que não coubessem nas cobertas? Neste sentido é nossa proposta também a construção de uma xareta, que normalmente passa despercebida nos trabalhos de investigação (fig. 13). Fig. 13 – Xareta Oliveira, refere no seu livro mais componentes estruturantes, nomeadamente cintas, escoas e dragas. Todavia entendemos que informação desta natureza, por não interferir 20 na forma do navio ou na sua performance construtiva, não deva ser incorporada neste estudo. Necessário seria, para construção de um plano de madeiras ou de um modelo virtual para teste. A partir dos dados que retiramos do Livro da Fábrica das Naus propomos o seguinte plano de linhas (fig.14 a 16). Fig.. 14 Plano de Linhas (Wireframe) 21 Fig.. 15 Plano de Linhas (Frontal) 22 Fig.. 16 Plano de Linhas (Topo e lateral) Terminado o processo de reconstituição virtual, concluímos pela leitura interpretativa que efectuamos ao Livro da Fábrica das Naus, de Fernando de Oliveira, que são omissas descrições de forma e ordenamento de estruturas, com função sobre conteúdo estrutural. Sobre a causa não nos compete aqui formular uma análise aprofundada, todavia devemos salientar algumas questões que nos parecem oportunas. Sabemos que a Arte da construção naval e todo o saber, foi transmitido de modo pessoal de mestre para aprendiz, ao longo de gerações de especialistas das ribeiras na costa portuguesa. Sabemos do sigilo ao tempo, sobre conhecimento destas matérias. Sabemos da ignorância à escrita dos homens da ribeira. Sabemos do mérito de Oliveira no registo da informação, mas também que este não foi um homem das ribeiras, mas um eminente sabedor das letras, da ciência e experimentado homem do mar. Nesta linha de reflexão interrogamo(nos se transmissão do conhecimento que levou Oliveira ao registo escrito, teria sido integralmente alcançada? Se o registo desse conhecimento teria sido objectivamente elaborado? Se os elementos estruturais ausentes de descrição 23 no texto, nomeadamente a curva do fundo, o processo e forma dos enchimentos para a proa e popa a partir das almogamas, se obtinham por procedimentos deixados ao critério do mestre, por intuição, experiência ou funcionalidade pretendida para o navio a construir? A obtenção do modelo virtual fez(se contudo por critérios rigorosos, baseado no que nos descreve Oliveira e naturalmente, sujeito à interpretação que fizemos desse registo. Não deixámos contudo, perante a ausência de procedimento de construção para os elementos já citados, de formular a nossa proposta, que aqui deixamos (fig.17). Fig.. 17 Reconstrução virtual da nau de Oliveira O legado de Fernando de Oliveira, é pois princípio e caminho para o conhecimento da construção naval. Foi ele que deu fala, a gerações de mestres construtores navais portugueses. Referências Bibliográficas: CASTRO, Luis Filipe M. V. (2001) The Pepper Wreck: A Portuguese Indiaman at the Mouth of the Tagus River. Texas A&M University. CASTRO, Luís Filipe M. V. (2007). Rising and Narrowing: 16th(Century Geometric Algorithms used to Design the Bottom of Ships in Portugal. IJNA, 36.1:148(154 DOMINGUES, Francisco Contente (2004) Os Navios do Mar Oceano. Teoria e empiria na arquitectura naval portuguesa dos séculos XVI e XVII, Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa. MARTINS, Adolfo Silveira (2001) A Arqueologia Portuguesa (Séculos XIII – XVI) Uma aproximação ao seu estudo ibérico, Lisboa, Universidade Autónoma de Lisboa. MENDONÇA, H. L. de (1898) O padre Fernando de Oliveira e a sua obra náutica. Memória compreendendo um estudo biográfico sobre o afamado gramático e nautógrafo e a primeira reprodução tipográfica do seu trabalho inédito Livro da Fábrica das aus. Lisboa: Academia Real das Ciências. 24 OLIVEIRA, F. (1580), Livro da Fábrica das aus, Biblioteca Nacional (Lisboa), reservados, cod. 3702. OLIVEIRA, F. (1991) O Livro da Fábrica das aus. Lisboa: Academia da Marinha. SOUSA VITERBO.1890. Trabalhos náutico dos portuguezes nos seculos XVI e XVII, Lisboa, Imprensa Nacional. VACAS, T. [s.d.] Relatório.”Reconstrução Virtual duma Nau Quinhentista” Original disponível FCT: Lisboa. 25