2 - O mito fáustico em Espronceda e Álvares de Azevedo
Maira Angélica Pandolfi
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PANDOLFI, M. A. O mito fáustico em Espronceda e Álvares de Azevedo. In:
Leituras e releituras românticas: José de Espronceda e Álvares de Azevedo
[online]. São Paulo: Editora Unesp, 2019, pp. 75-149. ISBN: 978-85-9546336-3. https://doi.org/10.7476/9788595463363.0003 .
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O MITO FÁUSTICO EM ESPRONCEDA E
ÁLVARES DE AZEVEDO
Considerações sobre o mito e o herói mítico
O termo mito é empregado atualmente, dentre outros usos
populares, como sinônimo de “ideia falsa, sem correspondente na
realidade” (Ferreira, 1975, p.931). No entanto, esse emprego denota, segundo Bierlein (2004, p.332), apoiando-se em Franz Boas, que
o racionalismo, ao ser aceito como uma forma final de pensamento,
teria levado as pessoas modernas ao raciocínio puramente causal, banindo a crença no sobrenatural e popularizando a palavra mito como
pura ficção. Bierlein (ibidem, p.314), seguindo as ideias defendidas
por Paul Ricoeur, procura explicar a abrangência da palavra mito
assinalando que
Mytos é uma palavra grega de onde derivamos a moderna palavra
mito. Originalmente, ela possuía a conotação de algo certo e final,
não aberto a debate, aceito de modo generalizado (verbete “mito” na
Encyclopaedia Britannica). Logos, por sua vez, era o termo comum
grego para a “palavra”, e era algo que podia ser debatido, ou discutido. A passagem de mythos para logos, então, é a passagem de uma
visão de mundo baseada em um mito aceito universalmente para a
especulação filosófica sobre o lugar do ser humano no universo.
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MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
Tais ideias de Ricoeur, segundo Bierlein, seriam uma tentativa
de interseção entre a filosofia existencialista e a interpretação do
mito, assinalando uma mudança na qual a palavra mito deixou de
designar uma verdade acabada e passou a ser aceita como uma ideia
aberta à discussão. De um estágio a outro, o mito deixou de transmitir segurança ao homem, que se transformou em uma criatura frágil.
O vazio deixado pela falta de segurança passa, então, a ser preenchido pelo sentimento. Assim, o mito, na medida em que é sentido,
transforma-se em realidade.
Na Nova Enciclopédia Barsa (1997, v.10, p.85-6), a palavra mito
é definida como “uma narrativa tradicional de conteúdo religioso,
que procura explicar os principais acontecimentos da vida por meio
do sobrenatural”. No entanto, no mesmo verbete, ao apresentar a
natureza do mito e suas relações com a sociedade, a religião, a psicologia e a arte, procura-se distinguir o religioso da mensagem transmitida pelo mito. Enquanto a primeira é mais restrita, exigindo do
homem um determinado comportamento perante Deus e o sagrado,
a segunda é mais abrangente e apresenta conteúdos religiosos, pré-científicos, folclóricos e anedóticos, aceitos de forma mais espontânea e acrítica.
Nas relações entre mito e razão, muitos são os estudiosos que
consideram o mito como um estágio menos evoluído do pensamento
racional. Outros, contudo, não partilham dessa opinião e entendem
o mito como algo complementar ao pensamento racional, apontando
sua presença em muitas manifestações contemporâneas, sobretudo
na arte. Assim, ao lado da tendência à desmitologização, acredita-se em outra tendência que consiste na criação de novos mitos ou
recriação de novas formas simbólicas de temas míticos tradicionais
(ibidem, p.90).
Jung et al. (1964, p.95-6) assinalam que o aumento gradativo do
conhecimento científico trouxe sérias consequências para o processo
de humanização do mundo, acarretando uma cisão entre o homem
e a natureza. As crenças primitivas do homem, alimentadas por
uma intensa carga emocional, foram sendo substituídas por um
racionalismo frio que aos poucos foi minando o valor simbólico dos
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fenômenos naturais e sua carga emotiva. Nos tempos modernos, os
psicólogos se encarregaram de interpretar a simbologia produzida
pelo inconsciente do homem, no qual acreditam que a carga emocional de seu antigo primitivismo teria se armazenado e passara, posteriormente, a se manifestar a nível consciente por meio dos símbolos
que afloram em seus sonhos. Esses símbolos, que funcionam como
uma ponte de imagem e emoção ligando o homem à natureza, são
considerados arquétipos.
Ernst Cassirer (1972, p.22), em Linguagem e mito, aponta que “o
mito, a arte, a linguagem e a ciência aparecem como símbolos: não no
sentido de que designam na forma de imagem, na alegoria indicadora e explicadora, um real existente, mas sim, no sentido de que cada
uma delas gera e parteja seu próprio mundo significativo”. Ao tentar
explicar essa ideia, mais adiante, Cassirer utiliza-se da metáfora dos
órgãos, identificando a linguagem, o mito, a arte e a ciência com os
órgãos de um mesmo corpo. Desse modo, por meio desses órgãos
que são formas simbólicas, o real converte-se em objeto de captação
intelectual e torna-se visível ao homem.
Cassirer (ibidem, p.33) retoma Hermann Usener que, ao estudar
a nomenclatura dos deuses em suas investigações histórico-linguísticas e religiosas, distingue três fases principais de desenvolvimento
na formação do pensamento mítico. Usener denominou a mais
antiga de “deuses momentâneos”, que podem ser considerados
antecedentes daqueles que, mais tarde, personificariam as forças da
natureza. Os “deuses momentâneos” surgiam e desapareciam com a
mesma facilidade e se erigiam a partir dos sentimentos e impressões
humanas vivenciadas pelos sujeitos em um momento único.
Na medida em que o homem começa a interagir mais com o seu
meio, desenvolvendo atividades repetitivas dentro de uma certa periodicidade, surgem os denominados “deuses especiais”, que se referem, principalmente, a cada atividade laboral praticada pelo homem
e na qual ele invoca o deus correspondente para obter êxito. Somente
após esse estágio o pensamento mítico-religioso alcançaria a plenitude na “conformação dos deuses pessoais”, que são deuses capazes de
agir e sofrer como uma criatura humana. Merece atenção o fato de que
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Usener extraiu quase todo seu material comprobatório da história das
religiões grega e romana, mas Cassirer assinala a importância que o
método linguístico utilizado por ele pode trazer para a investigação
sobre as fases do pensamento mítico em diversas culturas.
Na mesma linha de pensamento proposta por Usener podemos
situar também outro estudioso alemão, Karl Jaspers (1883-1969),
que, segundo Bierlein (2004, p.315-6), preocupou-se em entender
o motivo pelo qual num determinado período da história e em diferentes locais o homem deixou de ser politeísta e passou a falar de
Deus como uma força unificada. Essa evolução, na visão de Jaspers,
procedia de um intenso racionalismo que passou a lutar contra o
mito e resultou na transformação de sua função e no aparecimento
de outros mitos com uma roupagem mais moderna.
Outra contribuição importante para o estudo do mito veio de
Émile Durkheim, sociólogo francês do século XIX, que enfocou o
poder do mito no sentido de fazer com que o comportamento de um
indivíduo se conforme com o seu grupo. Sua teoria revela o poder
do mito na construção de identidades nacionais e como agente moralizador. Além disso, suas colocações acerca do consciente coletivo
como uma fonte de memória comum a toda humanidade refletiram-se, segundo Bierlein (ibidem, p.291-2), nas interpretações de Carl
Jung e Joseph Campbell e na escola estruturalista de Lévi-Strauss.
Em oposição à ideia de consciente coletivo, Freud acreditava que
as imagens oníricas eram produtos do inconsciente individual e o paralelo entre os mitos poderia ser explicado, segundo ele, pelo fato de
haver sempre um pai e uma mãe em todas as culturas. Carl Gustav
Jung, por sua parte, se opôs ao conceito freudiano de inconsciente
individual como produtor de imagens míticas, defendendo a ideia
de “inconsciente coletivo” como o grande armazenador dos roteiros
de nossos sonhos e mitos.
Bierlein (ibidem, p.506) refere-se ao conceito de arquétipo desenvolvido por Jung identificando-o com os personagens de nossos
sonhos e assinalando que tanto Jung quanto Campbell apontam o
“herói” como um arquétipo comum a todos os mitos heroicos paralelos. O conceito de “arquétipo”, na psicologia junguiana, refere-se
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a determinadas formas presentes na psique e que estão em toda parte
a qualquer tempo.
Em “Os mitos antigos e o homem moderno”, Joseph L. Henderson (1964, p.110) refere-se aos mitos em que se destaca a figura
do herói com variações em seus detalhes, mas semelhanças em sua
estrutura. Esse dado significa que tais mitos “guardam uma forma
universal mesmo quando desenvolvidos por grupos ou indivíduos
sem qualquer contato entre si [...]”. Sobre esse aspecto, é interessante observar a transcrição que Bierlein apresenta de um texto de
Victor Hugo retirado de The Modern Tradition, editado por Richard
Ellmann e Charles Feidelson, Jr. Nesse texto, Bierlein (2004, p.307)
aponta para as similaridades entre o conceito de Jung de arquétipo
e a descrição de Victor Hugo dos “tipos” recorrentes na literatura:
[...] o tipo vive. Se ele fosse apenas uma abstração, os homens não o
reconheceriam, e permitiriam que esta sombra seguisse seu próprio
caminho. A tragédia chamada de “clássica” cria fantasmas; o drama
cria tipos vivos. Uma lição que é um homem; um mito com uma
face humana tão plástica que parece olhar para você do espelho;
uma parábola que o cutuca... os tipos são casos previstos por Deus;
o gênio os concretiza. Parece que Deus prefere ensinar uma lição
através do homem, para inspirar confiança. O poeta caminha na rua
com homens vivos; ele os escuta. Daí a eficácia dos tipos. O homem
é uma premissa, o tipo, uma conclusão; Deus cria o fenômeno, o
gênio o nomeia.
Os tipos vêm e vão em um nível comum na Arte e na Natureza;
eles são os ideais realizados. O bem e o mal do homem estão nessas
figuras. A partir de cada uma delas nasce, nos olhos do pensador,
uma humanidade.
A descrição que Victor Hugo faz dos “tipos” na literatura evidencia uma estreita relação com o conceito junguiano de arquétipo na
medida em que ambos se apresentam, ao mesmo tempo, como imagem e emoção. Tanto o arquétipo quanto o “tipo” somente ganham
significado ao representar o aspecto particular e o geral de cada ser
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humano, aquilo que nos possibilita estabelecer uma identidade particular e coletiva.
Por volta de 1900, surgiram vários estudos comparados a respeito de religião e mitologia que resultaram em duas abordagens distintas a respeito de mitos e culturas, discutidas ainda hoje. A primeira é
a da difusão, na qual os mitos teriam surgido em alguns locais, como a
Índia, e sido espalhados posteriormente entre diferentes culturas. A
segunda, chamada psicológica, considera os elementos nucleares dos
mitos como produtos da psique humana (ibidem, p.285).
No âmbito literário, a psicologia junguiana e seu conceito de
arquétipo coadunam-se, em parte, com um dos conceitos de “supranacionalidade” esboçado por Guillén (1985, p.93) e contribui
sobremaneira para a interpretação do mito e seus símbolos. Guillén
nos apresenta três modelos de “supranacionalidade” com os quais
trabalha o estudioso de Literatura Comparada. O primeiro relaciona-se ao estudo dos fenômenos que implicam internacionalidade por
meio de contatos genéticos ou premissas culturais comuns, como um
determinado estilo literário recorrente em uma época específica. É o
caso do romance picaresco ou do tema de Don Juan (ibidem, p.93).
O segundo modelo de supranacionalidade diz respeito àqueles
fenômenos ou processos geneticamente independentes mas com
implicações sócio-históricas semelhantes, como o desenvolvimento
do romance europeu no século XVIII e no século XVII japonês em
decorrência do aparecimento de um novo público leitor burguês
(ibidem, p 94).
O terceiro modelo baseia-se nos princípios de teoria literária que
propiciam a composição de conjuntos supranacionais de fenômenos
geneticamente independentes. Nesse caso estaria Don Juan, que não
passa de uma variedade europeia de um arquétipo universal do tipo
mulherengo que se manifesta nas mais variadas culturas. Porém,
por mais ampla que possa parecer a noção de arquétipo, convém
fazer uma ressalva ao tratarmos de narrativas literárias, pois como
toda narrativa tem um início, sempre que pensarmos em Don Juan
nos remeteremos a um Don Juan europeu, espanhol e até sevilhano,
como nos adverte Guillén (ibidem, p.111).
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Ao tratar das questões concernentes à supranacionalidade, Guillén (ibidem, p.109) aponta para a importância de levar em conta os
modelos por ele apresentados quando deparamos com o estudo de
um determinado tema. Dos contatos genéticos expostos no primeiro
modelo ao universalismo do terceiro é possível verificar uma busca
por conjuntos ultralocais que revelem coerência e unidade.
Os três modelos de supranacionalidade apresentados por Guillén
retratam ainda a tensão explicitada anteriormente entre as teorias sobre
os mitos paralelos, a da difusão e a psicológica, apresentadas por Bierlein (2004). Ambas tocam numa questão fundamental para o comparatista: os limites nem sempre precisos entre o local e o universal.
O mito do herói está presente em diversas culturas, do Ocidente
ao Oriente, desde os tempos mais remotos. Em quase todos os mitos
em que se destaca a figura do herói surgem alguns elementos recorrentes que compõem a sua trajetória. Em geral, referem-se a sua
rápida notoriedade e seus poderes sobre-humanos, a sua coragem,
formosura, destreza e inteligência.
Ao tratar da dimensão psicológica desse tipo de mito, Henderson (1964, p.112) chama a atenção para a constante presença de
guardiões e tutores que atribuem poderes sobrenaturais ao herói,
contribuindo, assim, para sua ascensão e notoriedade. Essa característica do mito constitui uma via importante para a compreensão do
desejo de superação do herói das limitações humanas e, por isso, as
divindades que o auxiliam são interpretadas como “representações
simbólicas da psique total”.
Outro aspecto importante apontado pelo estudioso é o fato de
que o mito do herói consiste essencialmente em um mito de formação do ego no qual podemos visualizar as etapas de evolução da personalidade. Sobre esse aspecto, Henderson (1964, p.112) menciona
o estudo do dr. Paul Radin, O ciclo heroico do Winnebagos (1948),
que constatou quatro ciclos na evolução do mito do herói na tribo
dos índios norte-americanos Winnebagos. A esses ciclos ele chamou
de ciclo Trickster, ciclo Hare, ciclo Red Horn e ciclo Twin.
O primeiro ciclo, Trickster, corresponde ao período mais instintivo, de mentalidade infantil e no qual o herói procura satisfazer
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os seus apetites mais elementares, agindo de forma cruel, cínica e
insensível. Já o ciclo Hare corresponde à notoriedade intelectual do
herói, que passa a uma fase de completo domínio sobre seus instintos. O ciclo Red Horn incorpora a figura do tutor ou guardião que
auxilia o herói em suas batalhas. É nesse ciclo que os poderes sobre-humanos do herói se manifestam.
O último ciclo, Twin, é o da representação do duplo, ou seja, são
duas crianças que simbolizam os dois lados da natureza humana: um
deles é passivo e brando e o outro é dinâmico e rebelde. Em algumas
histórias, um dos lados representa o homem introvertido e reflexivo e
o outro o extrovertido, de ação e capaz de grandes feitos. Convém ressaltar, ainda, que esse é o ciclo mais forte dos heróis e no qual eles são
dominados por um orgulho cego, a hybris. Somente a morte pode detê-los e, então, ela surge como castigo para a hybris. Esse tema é, segundo
Henderson (1964, p.112-4), bastante recorrente na mitologia europeia.
A riqueza dos quatro ciclos apresentados por Radin reside no
fato de podermos facilmente estabelecer uma analogia entre eles e os
mitos modernos do herói, especialmente, no tocante ao mito fáustico. Este mito, em seu ponto fulcral, pode ser comparado ao ciclo de
Red Horn já que é nesse ciclo que o herói, por meio de seu tutor, recebe os poderes sobre-humanos. Contudo, no mito fáustico, o tutor
simboliza a “sombra”, conceito que ocupa, segundo Henderson, um
lugar privilegiado na psicologia analítica. Como exemplo, o estudioso assinala que no Fausto de Goethe, em vez de vencer a sombra,
tal como no mito tradicional do herói, este sucumbe a ela e, assim,
Fausto aceita o desafio de Mefistófeles (ibidem, p.120).
A representação do duplo, manifestada no ciclo de Twin, também nos remete ao contraste entre dois tipos de heróis que serão
posteriormente analisados: o herói byroniano e o herói fáustico. O
protótipo do herói byroniano, que salta das páginas de Childe Harold, assemelha-se a um dos duplos do ciclo de Twin pelo seu caráter
reflexivo e misantropo em contraste com o herói de ação, representado pelo mito fáustico.
A experiência do duplo, retratada no ciclo de Twin, aproxima-se
muito da manifestação do duplo na literatura romântica visto que
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encarna o conflito e a tensão dos opostos que, paradoxalmente, são
também complementares. Por essa razão, o duplo pode ser interpretado como a parte esquecida do mesmo ser, o lado antirracional,
aquele que convida Fausto a um retorno à sua tempestuosa natureza.
Após um período em que a razão foi a única e principal deusa no
panteão moderno, o Romantismo surge como um movimento propenso a restabelecer a ponte entre a razão e o inconsciente, resgatando a simbologia que este guarda da antiga comunhão entre o homem
e a natureza. Na medida em que o Romantismo procura revelar a
identidade do ser, em toda sua complexidade, ele se caracteriza,
sobretudo, como um retrato da desarmonia instaurada após a perda
da totalidade. Arenberg (apud Bravo, 2000, p.263), dentro de uma
perspectiva junguiana, “faz uma aproximação entre a confrontação
com o duplo, que se conclui por um processo de morte/ressurreição
nos românticos e a concepção dos ritos de passagem do xamanismo;
para ela os românticos estão em busca de uma nova mitologia, fundada também na iniciação”.
O mito fáustico é um dos temas mais recorrentes no Romantismo
quando se deseja evidenciar o conflito com o duplo, e este se traduz,
quase sempre, no sacrifício do herói, que acaba cedendo às exigências da “sombra”. O ritual assinalado por Arenberg, que alude ao
processo de morte e ressurreição nos românticos, evidencia-se no
Fausto de Goethe, na cena da cozinha da bruxa, passagem em que
Fausto bebe a poção rejuvenescedora que a bruxa, cheia de cerimônias, lhe oferece. É essa cena que simboliza a morte do Fausto velho,
prenunciada desde a primeira parte da obra de Goethe quando, em
seu gabinete, Fausto sente-se cansado e deseja a morte mas é interrompido por um coro de anjos. O coro anunciava a Páscoa, ou seja,
a ressurreição de Cristo, que também alude a uma posterior ressurreição de Fausto.
No Macário de Álvares de Azevedo, este sacrifício é simbolicamente retratado quando Satã leva o jovem estudante ao cemitério,
o faz deitar sobre um túmulo e sonhar. O herói fáustico de Espronceda, em Diablo mundo, também tem seu início a partir do ritual de
morte/ressurreição que ocorre quando o velho poeta dorme e acorda
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como Adán, o homem primordial, que nasce condenado ao conflito
com o duplo. Embora não haja um companheiro de viagem objetivo,
como Mefistófeles no Fausto ou Satã em Macário, o jovem Adán
é constantemente guiado pelos seus impulsos, pela sede de conhecimento e poder, não aceitando os limites impostos pela sociedade
e deixando-se levar pela sede do infinito, pelo desejo eternamente
insatisfeito do duplo que pulsa em seu interior.
A síntese da evolução do mito do duplo no Ocidente apresentada
por Bravo (2000, p.263-4) aponta para uma estreita relação entre
este mito e o pensamento acerca da subjetividade em voga no século
XVII. Antes desse período, o mito do duplo voltava-se para a unidade, ou melhor, a semelhança, simbolizando dois lados idênticos.
No entanto, com o advento do Iluminismo, o homem passa, a partir
do século XVII, a ocupar o lugar de Deus, e o duplo, feito à imagem
e semelhança de Deus, desdobra-se no interior do próprio homem
de forma conflituosa e heterogênea. São exemplos desse novo duplo
que se choca e, ao mesmo tempo, se complementa os célebres personagens que surgem a partir do século XVII, como Dom Quixote
e Sancho Pança, Don Juan e o conflito entre seu “eu” com o “eu
social”, bem como Fausto e Mefistófeles.
Em sua obra sobre os Mitos do individualismo moderno, Ian
Watt (1997, p.128) menciona o clássico estudo de Jacob Burckhardt
sobre a cultura do Renascimento na Itália, considerado como um
dos pioneiros nas discussões sobre os termos “indivíduo” e “individualidade”. Para Burckhardt, antes do Renascimento o homem se
reconhecia como parte de um coletivo, uma raça, um povo ou uma
família. Contudo, a partir de então, o estudioso observa uma mudança significativa no tocante à sensibilidade cada vez mais aflorada
para o desenvolvimento de atividades artísticas e eruditas e nas quais
o homem busca o seu autoaperfeiçoamento e procura mostrar sua
individualidade.
Watt assinala também que Fausto, Dom Quixote e Don Juan são
frutos do individualismo renascentista e, por essa razão, apresentam
um ego exorbitante, fazendo suas escolhas com inteira liberdade e
sem se preocupar muito com a reação de uma sociedade dominada
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pela ideologia da Contrarreforma. Todos eles se transformam em indivíduos marginais, errantes e em constante conflito com o mundo,
auxiliados por criados que, além de configurar um duplo, também
contribuem para enaltecer o ego exacerbado dos três.
A propósito desse tema, cabe lembrar as colocações de Watt
(ibidem, p.133) acerca de um forte grau de misoginia na formação da
cultura moderna em contraste com o pensamento pré-renascentista.
Ao examinar os mitos de Fausto, do Quixote e de Don Juan, o pesquisador observa que todos os criados que acompanham os heróis
são do sexo masculino. Para Watt, um dos pontos a ser considerado
na análise da exclusão feminina do panteão dos mitos modernos
encontra-se na maneira com que a tradição cristã se desenvolveu
durante e depois do Renascimento. Johann Jakob Bachofen e Robert
Graves dedicaram parte de seus estudos a esse tema e observaram
que as mitologias grega e romana apontam para a existência passada
de um matriarcado que teria sido suplantado por um patriarcado
(Bierlein, 2004, p.287).
No âmbito religioso, a representação de um duplo conflitante
ganha sua plena grandiosidade na figura do Anticristo, sobretudo
após as reformas promovidas pela Igreja Católica. De acordo com
Nogueira (1986, p.66), o Anticristo “era a contrapartida maligna
do Cristo. Este era todo bondade e luz – o Salvador; o outro, todo
maldade e escuridão – o Destruidor. Um nascido de uma virgem;
o outro de uma prostituta”. Todas as incessantes ações da Igreja em
prol da salvação do homem ganhavam, assim, uma importância cada
vez maior na medida em que se acentuava ainda mais a influência do
Maligno sobre a humanidade.
O Romantismo, então, realizará a apoteose do Demônio, que se
transforma em companheiro de viagem do homem, contribuindo
para a dinamização dele na busca de sua identidade. Satã, símbolo
de rebeldia, esperteza e zombaria, é identificado com o herói moderno, que se converte em um poderoso titã. Ambos, o homem e Satã,
se unem para confrontar Deus, que desde a queda os condenou ao
sofrimento. O grande triunfo do herói moderno passa a ser, desde
então, a superação da morte, simbolizada na figura do Diabo, seu
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novo tutor. Ao almejar a superação da morte, o herói romântico
necessita aliar-se à “sombra”, ao “Diabo”, ou, segundo a psicologia
junguiana, voltar-se para a natureza perdida de seu estágio primitivo
por meio do conhecimento da força irracional armazenada na obscuridade de seu “inconsciente”. Daí que se verifica o ritual de iniciação
marcado pela morte/ressurreição de que nos falara Arenberg e que
parece prefigurar um modelo moderno para o mito do herói.
Longe de ser totalmente original, este novo modelo, que passa
a incorporar o mito moderno do herói, nos remete a um precedente
distante na insurgente figura de Sísifo, o herói rebelde da literatura
grega que se revolta contra os deuses e, com sua astúcia, consegue
superar a própria morte. O mito de Sísifo pode ser considerado
como um protótipo do herói que consegue transcender a morte e,
nesse sentido, aproximar-se dos heróis modernos retratados no mito
fáustico ou no mito do herói byroniano. É necessário, porém, atentar
para uma significativa diferença entre Sísifo e o herói moderno, visto
que o primeiro luta por um benefício coletivo ao passo que o segundo luta por encontrar sua própria identidade a partir da convivência,
ainda que conflitante, com seu duplo.
Segundo Albert Camus, citado por Bierlein (2004, p.210), Sísifo
é o “herói absurdo”, representação da existência sem sentido, do
esforço inútil. Camus nos chama a atenção para a consciência da
personagem em relação à sua própria tragédia e à impossibilidade da
esperança de mudança em seu destino. Paradoxalmente a consciência da tragédia, que deveria constituir a tristeza e a tortura de Sísifo, é
interpretada por Camus como superação e vitória, levando-o à hipótese de que a descida de Sísifo para empurrar a rocha também pode
ser executada com alegria, ou melhor, ironia, já que Camus conclui
que “não há destino que não possa ser vencido pela zombaria”.
Vemos, assim, nessa afirmação de Camus, o riso irônico do herói
romântico que enfrenta o seu destino trágico consciente do absurdo
de sua existência. A consciência da tragédia humana e sua aceitação
constituem para Camus a vitória e o controle sobre o destino, devendo bastar ao homem a satisfação com sua incessante luta individual
rumo às alturas.
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A inconclusão que caracteriza grande parte das narrativas românticas parece traduzir essa incessante busca do homem rumo
ao infinito, apesar da tragicidade da vida. É assim que se revela a
perplexidade do olhar curioso de Macário quando Satã, no final do
drama, o conduz à uma taverna e o faz espiar uma orgia pela janela:
Satã: Paremos aqui. Espia nessa janela.
Macário: Eu vejo-os. É uma sala fumacenta. À roda da mesa
estão sentados cinco homens ébrios. Os mais revolvem-se no chão.
Dormem ali mulheres desgrenhadas, umas lívidas, outras vermelhas... Que noite!
Satã: Que vida! Não é assim? Pois bem! Escuta, Macário. Há homens para quem essa vida é mais suave que a outra. O vinho é como
o ópio, é o Letes do esquecimento... A embriaguez é como a morte...
Macário: Cala-te. Ouçamos. (Azevedo, 2000, p.562)
Este episódio final do drama de Álvares de Azevedo é precedido
pela descoberta de Macário da morte de Penseroso que, segundo
Antonio Candido, representa o “Álvares de Azevedo sentimental,
crente, estudioso e nacionalista” que se contrapõe a Macário, o
“Álvares de Azevedo byroniano, ateu, desregrado, irreverente e
universal” (ibidem, p.92). A curiosidade de Macário ao espiar pela
janela traduz a sede de conhecimento que impulsiona o herói romântico conduzido por Satã, o grande responsável por revelar a esse
herói que é possível encontrar prazer no absurdo da vida e continuar,
como Sísifo, empurrando a nossa pedra com um sorriso zombeteiro
nos lábios.
A consciência do absurdo é que torna o herói trágico e esse aspecto é mais acentuado na obra de Álvares de Azevedo que na de
Espronceda. O herói fáustico de Espronceda em Diablo mundo, ao
contrário de Macário, é um herói alienado, que não consegue aceitar
a tragédia da morte. Assim, no final de Diablo mundo, podemos
perceber nas palavras da mãe de uma jovem morta, que Adán tenta
consolar, a impressão de alienação que a senhora tem em relação ao
herói quando este expressa sua crença em um Deus misericordioso:
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MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
¿Quien eres tú que a descifrar
no acierto, Joven, de tus
palabras el sentido?
¿Cómo presumes tú dar vida a un muerto,
Ni hablar con Dios, si el juicio no has perdido?
¡Si en medio a tu lenguaje y
desconcierto No respirara un
corazón herido,
¡Creyera acaso que con burla
impía
Viniste aquí a mofar de mi agonía...! (Espronceda, 1954, p.147-8)
A mesma atitude alienada de Adán surge também como característica do herói byroniano de Espronceda em Sancho Saldaña o El
castellano de Cuéllar que resulta, no final do romance, na loucura de
Sancho. Ele representa o herói dilacerado que não consegue resolver
o conflito entre o eu social e o eu de desejo que habita dentro dele e,
por isso, acaba sofrendo a agonia da loucura, da alienação. No Fausto
de Goethe (1991, p.64), o herói já alertara Wagner do perigo que representa a busca pelo conhecimento do duplo que habita em cada um:
Apenas tens consciência de um
anseio; A conhecer o outro, oh,
nunca aprendas! Vivem-me
duas almas, ah! no seio,
Querem trilhar em tudo
opostas sendas; Uma se agarra,
com sensual enleio
É órgãos de ferro, ao mundo e
à matéria; A outra, soltando à
força o térreo freio,
De nobres manes busca a plaga etérea.
Tanto o Fausto de Goethe como o herói byroniano de Espronceda, Sancho Saldaña, perseguem um instante de plenitude que
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colocaria fim ao dilaceramento do eu. Ambos podem ser caracterizados como parte de uma contradição vivenciada pelo duplo na qual
mesmo praticando o mal sempre se almeja o bem.
A construção do Fausto lendário
Embora não haja dúvidas de que um personagem histórico
Fausto tenha vivido na Alemanha entre os anos de 1480 e 1540 e que
atendia pelo nome de Johann Georg Faust ou Faustus, a reconstituição de sua real dimensão histórica ainda é motivo de várias controvérsias, visto que não existem muitos documentos a seu respeito.
Watt (1997, p.19) aponta somente treze referências contemporâneas
a Fausto, dentre elas, “cartas de eruditos adversários, registros
públicos diversos, elogios de clientes satisfeitos, testemunhos memorialísticos neutros e reações de inimigos pertencentes ao clero
protestante”. Nas fontes que remetem ao Fausto histórico abundam
em especulações acerca de seu caráter, e o fato de ele ter se tornado
uma figura lendária contribui ainda mais para dificultar o conhecimento dos limites entre o que pode ser considerado fato e o que seria
apenas fruto da imaginação de seus autores.
Mason (1989), assinala três etapas que marcam a origem e a
evolução do mito fáustico: o Fausto histórico, o Fausto lendário e o
Fausto literário. A primeira consiste num conjunto de fontes históricas que vão desde recibos que atestam a atuação de Fausto como
astrólogo até cartas de autoridades municipais que pedem a expulsão ou a proibição da entrada de Fausto em determinadas cidades
alemãs. Era ele, sem dúvida, uma pessoa excêntrica e seria chamado
hoje de “charlatão” ou “embusteiro”, mas, na época, poderia ser
confundido também com filósofo, astrólogo, alquimista, nigromante e até doutor. Este título, que era atribuído geralmente aos teólogos
ou praticantes da medicina (ibidem, p.29), não significava, contudo,
que Fausto gozasse de boa reputação. Muito ao contrário, ele era
alvo de constantes ataques de seus contemporâneos que o acusavam
de compactuar com o demônio.
90
MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
Contemporâneo a Lutero (1483-1546) e a Copérnico (14731543), o Fausto histórico viveu em uma época de profundas mudanças e grandes agitações sociais que marcaram, sobretudo, o campo
religioso com um inigualável temor ao Demônio.
Ao traçar a trajetória da figura do Demônio através dos tempos, Nogueira (1986, p.73) afirma que em nenhum outro momento da história o Diabo foi tão temido e popular quanto no
Renascimento. No entanto, nem sempre havia sido assim, pois
a literatura do Antigo Testamento contém poucas referências a
espíritos do mal (ibidem, p.6). O Demônio começa a ganhar contornos mais definidos a partir do século XIII quando deixa de ser
uma criatura simplesmente maléfica, provocadora de calamidades e
epidemias, e ganha uma dimensão muito mais ampla na mente dos
cristãos. É durante esse período que o Demônio se agiganta e passa a
possuir a alma e o desejo dos homens, manifestando-se sob os mais
variados disfarces.
A Idade Média havia condenado ao passado todo o conhecimento
da Antiguidade Clássica, mas com o despertar do Renascimento este
conhecimento foi redescoberto. Junto ao conhecimento humanístico
deixado pelos gregos surgiu também um enorme interesse pelos antigos escritos sobre magia. O Corpus hermeticum, conjunto de textos
sobre astrologia e teologia dos primeiros séculos da era cristã, foi
traduzido para o italiano em 1471 por Marsilio Ficino (Watt, 1997,
p.20). Tais textos despertaram a curiosidade dos eruditos para a leitura das diferentes visões cosmológicas e tratados de magia. Bergier
(1971, p.19) afirma que a partir do século V são agregados ao Corpus
hermeticum outros textos que fazem referência ao Livro de Toth e ao
extraordinário poder de antigas civilizações na criação de deuses bons
e maus. Assinala, ainda, que Santo Agostinho e outros teólogos e
filósofos se interessaram por eles. Santo Tomás de Aquino, ao apoiar-se nas ideias de Santo Agostinho, que condenou veementemente os
tratados de magia, valorizou largamente o poder do demônio sobre os
homens, propagando o debate entre o Bem e o Mal.
Mason (1989, p.27), ao traçar a figura do Fausto histórico,
aponta uma carta datada de 20 de agosto de 1507, escrita pelo abade
LEITURAS E RELEITURAS ROMÂNTICAS
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Johannes Trithemius ao matemático Johann Wirdung, como uma
das referências mais importantes e completas sobre Fausto. Watt
(1997, p.20) também se refere a esta carta que considerava Fausto
como um grande canastrão que se intitulava o líder dos nigromantes.
As declarações de Trithemius, apresentadas tanto por Mason quanto por Watt, revelam que a vida de Fausto foi marcada por uma série
de intrigas e rivalidades ocasionadas em decorrência de sua relação
com a magia, fato que fomentou constantes ataques de humanistas
e luteranos. Estes últimos, segundo Watt (ibidem, p.31), consideravam que Fausto realmente detinha poderes que o colocavam em
constante contato com o Demônio. Trithemius e os humanistas, ao
contrário, duvidavam desse poder e consideravam-no um embusteiro. Em relação a essas duas visões, prevaleceu a tradição luterana que
contribuiu, assim, para a invenção do pacto e sua danação, transformando o Fausto histórico em uma figura mitológica à serviço da
ideologia da Contrarreforma.
Os documentos históricos comprovam, de fato, que Fausto
teve uma vida errante e que teria vivido longo tempo de pequenos
expedientes que ora o consagravam como um mágico profissional,
ora o tornavam uma figura repudiada, suspeita de charlatanice. Seu
título de doutor seria, segundo os estudiosos do mito (ibidem, p.24;
Mason, 1989, p.29), mais uma estratégia de promoção pessoal do
que legítimo, já que ele se dizia portador de muitos conhecimentos,
inclusive de filósofos da Antiguidade como Platão e Aristóteles.
Talvez ele tenha lecionado em alguma universidade, mas não
existem provas documentais de que tenha concluído algum curso
universitário. Gleiser (1997, p.101) assinala que por volta de 1500
existiam aproximadamente oitenta universidades na Europa e que
Copérnico foi estudar na Universidade de Cracóvia, “que gozava
de boa reputação em astronomia”. Na tradição lendária de Fausto é
comum encontrarmos referências a ele como estudante de magia em
Cracóvia, e essas referências tendem a confundir a real compreensão
do Fausto histórico.
A intransigência (sobretudo luterana) com os adeptos da magia
criou em torno de Fausto uma imagem lendária de sua morte, que
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MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
acabou sendo associada à tradição de Simão, o Mago, e seu fim trágico por obra do Demônio (Watt, 1997, p.31). As fontes documentais
parecem indicar que ele teve morte violenta em Staufen, fato que
teria contribuído ainda mais para reforçar a lenda da danação que
começou a circular logo após seu falecimento.
De acordo com Mason (1989, p.30), a morte violenta do Fausto
histórico em 1540 teria ocorrido em consequência de uma explosão
em seus experimentos alquímicos. Em outras fontes, como o Dicionário de mitos literários (Faivre, 2000, p.334), considera-se que
Fausto deve ter morrido degolado de forma cruel e esse fim teria
impressionado as imaginações da época, que logo o atribuíram ao
diabo. Essas especulações acerca do verdadeiro motivo que teria
causado a morte de Fausto o colocam ao lado de duas tendências que
acabaram se fundindo no Renascimento: o misticismo medieval e o
conhecimento racional emergente.
O avanço do pensamento científico não significou um destronamento do Demônio e todo o misticismo que o permeia. Ao contrário
disso, a Igreja católica procurou incutir um temor cada vez maior em
relação ao Diabo, já que desde fins do século XIII ela passara a receber um aumento gradativo de críticas aos dogmas sobre os quais se
apoiava (Novinsky, 1994, p.10). Desde que a Inquisição havia sido
instaurada em 1229, pelo papa Gregório IX, a Europa vivia um conturbado período de perseguição aos hereges, sobretudo aqueles que
praticavam a magia. O Fausto histórico parece incluir-se nessa tradição herética justamente por haver exercido a profissão de mágico.
Watt (1997, p.20) afirma que para uma compreensão mais completa do mito de Fausto é necessário recorrer à história da magia. De
fato, o mito fáustico, em sua estreita relação com a história da magia,
pode ser pensado como parte integrante de uma tradição de mitos
que retratam uma verdadeira conspiração contra os que ousaram
perscrutar o saber oculto. A danação, se interpretada como condenação à curiosidade intelectual de Fausto, remonta, na história da
magia, ao mito de um dos mais antigos livros da civilização que se
denominou Livro de Toth e que curiosamente já foi queimado várias
vezes ao longo da história, mas sempre reaparece em algum lugar.
LEITURAS E RELEITURAS ROMÂNTICAS
93
Segundo Bergier (1971, p.17), esse livro alude à história de
uma civilização pré-egípcia, na qual Toth surge na mitologia como
uma divindade egípcia com cabeça de Íbis e carrega uma pluma e
uma palheta. Ele é considerado o pai da escrita e seu livro figura
como um dos mais antigos de que se tem notícia, conferindo consideráveis poderes aos seus detentores. Bergier (ibidem, p.18-9)
assinala que no ano de 360 a.C. o Livro de Toth foi solenemente
destruído, e a partir de 300 a.C. Toth é identificado com Hermes
Trismegisto, o fundador da alquimia. Acrescenta ainda que “todo
mágico que se respeite, em particular na Alexandria, pretende
possuir o Livro de Toth, mas nunca se viu aparecer o próprio livro:
cada vez que um mágico gloria-se de possui-lo, um acidente interrompe sua carreira”.
Segundo a lenda do príncipe Nefer-Ka-Ptah, que Bergier menciona ter lido em The Wisdom of the Egyptians (1928), de Brian
Brown, o Livro de Toth foi encontrado por Nefer-Ka-Ptah com a
ajuda de um mágico. O livro estava no fundo de um rio, em um lugar protegido por escorpiões e por uma serpente imortal. Após ler a
primeira página, o príncipe compreendeu todo o mistério da criação
e decidiu registrar tudo o que lera em um papiro, lavá-lo com cerveja
e beber a cerveja para que, assim, todo o saber do grande mágico
ficasse nele. Contudo, Toth voltou do reino dos mortos e vingou-se
terrivelmente de Nefer-Ka-Ptah, exterminando-o e toda sua família.
Antoine Faivre, em seu Dicionário de mitos literários (2000,
p.448-65), apresenta-nos toda a trajetória da figura mitológica de
Hermes Trimegisto ou Mercúrio associado à figura de Toth. A
Hermes Trismegisto se atribuiu a autoria de uma série de livros,
sob a denominação geral de Hermética, consagrados à astrologia,
à alquimia e à teosofia, dando origem à tradição de associá-lo aos
livros esotéricos e de considerá-lo o fundador da alquimia. A história da alquimia tem suas origens na cultura grega, que desaparece
no século VI e é retomada pelos árabes nos séculos VII e VIII. Somente no século XII, a partir das traduções dos textos árabes para
o latim, é que a alquimia eclode na Europa. Os mais famosos textos
herméticos dos primeiros séculos da era cristã, reunidos no Corpus
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MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
hermeticum, popularizam ainda mais a figura de Hermes/Mercúrio
na época de Fausto.
Em Psicologia e alquimia (1994, p.75-6), Jung refere-se à ideia
de duplicidade que pairou sobre Hermes-Mercúrio na época pós-clássica, quando os deuses greco-romanos são banidos pelo universo cristão, que envia uma parte desses deuses aos astros distantes e
transforma a outra parte em seres demoníacos:
Enquanto planeta Mercúrio ele é o mais próximo do sol, o que
indica também sua maior afinidade com o ouro. Enquanto metal,
o mercúrio dissolve o ouro e apaga seu brilho solar. Durante toda
a Idade Média constituiu o objeto misterioso da especulação dos
filósofos da natureza: ora era um espírito serviçal e útil [...] ora era o
servus ou cervus fugitivus (o escravo ou o cervo fugitivo), um duende
que levava os alquimistas ao desespero, evasivo, enganador e trocista, multiplicidade de atributos que tinha em comum com o diabo
[...]. Na hierarquia alquímica dos deuses, ele é o mais baixo, como
prima materia, e o mais alto, como lapis philosophoru.
Assim, Hermes-Mercúrio pode ser considerado como o símbolo do grande agente transformador na obra alquímica, é o deus da
revelação e do princípio da vida que, por sua plasticidade, chega a
ser associado, ao mesmo tempo, tanto ao diabo trocista quanto ao
psicopompo ou condutor de almas, que se assemelha a Cristo, como assinalou também Faivre (2000, p.453) ao dissertar sobre suas
metamorfoses na alta Idade Média. Faivre assinala, ainda, que a
redescoberta de Hermes-Mercúrio no século XVI é acompanhada
de Hermes Trimegisto, que comporá o campo doutrinário do esoterismo, ao qual se filia o Fausto histórico. Dessa forma, todo esse
universo lendário que se forma em torno da figura de Fausto e a história de sua danação encontra-se intimamente associado à história da
alquimia, já que esta, segundo Jung (1994, p.44), “movia-se de fato
sempre no limite da heresia e era proibida pela Igreja”.
Dessa forma, a construção do Fausto lendário remonta à história
do cristianismo e a todo o processo de construção do Diabo e de uma
LEITURAS E RELEITURAS ROMÂNTICAS
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pedagogia do medo que foi levada a cabo pelos teólogos da Igreja Católica a partir do século XII. A ambiguidade anteriormente referida
em relação ao mito de Hermes-Mercúrio alude à história do Diabo
presente na tradição hebraica que se encontra no Antigo Testamento
em que os espíritos, tanto do Bem quanto do Mal, refletiam a vontade de Deus (Nogueira, 1986, p.8).
A cisão entre dois mundos, o do Bem e o do Mal, resulta na divisão
de governantes para cada um deles, Deus e o Diabo, respectivamente.
Assim, torna-se necessária uma rígida diferenciação entre ambos
que surgirá na criação de um conjunto sistematizado de ideias que
imprimirão a cara do Diabo como um “tipo” identificável. Esse
conjunto sistematizado de doutrinas a respeito do Diabo assenta-se,
especialmente, sobre uma única ideia que se caracteriza como o veículo que conduz o homem à danação: o desejo. O desejo é a condição
primeira para que o demônio possa se manifestar e se apossar da
alma humana e, por meio deste, esboça-se toda uma demonologia.
De acordo com Nogueira (ibidem, p.54), ninguém mais possuía
tanta aptidão para a dramaturgia quanto o demônio, uma vez que
este “podia aparecer como um homem galante, ou como uma bela
mulher [...]. Satã era um ator tão brilhante que se dizia ter ele aparecido a São Martinho personificando Cristo [...]”.
Junto a esse corpo de doutrinas que desenhava um demônio infinitamente astuto surgia também toda uma iconografia que acabou
conferindo proporções gigantescas e bestiais ao Diabo medieval:
O grande modelo que influenciou toda uma iconografia diabólica
foram as clássicas imagens de Pã e dos sátiros: criaturas meio homem,
meio bode, com chifres, cascos partidos, olhos oblíquos e orelhas
pontiagudas. A essa combinação a imaginação cristã acrescenta um
ingrediente essencial: as asas de um anjo. Contudo, como se tratava
de anjos caídos, as asas não poderiam ser de um pássaro que voa à
luz do dia, e sim as de um morcego, que ama as trevas e, de um modo
absolutamente diabólico, vive de cabeça para baixo. (ibidem, p.58)
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MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
Além da riqueza de detalhes que a demonologia cristã foi buscar no paganismo, Nogueira nos informa acerca do apetite sexual
desenfreado e da hostilidade à ordem instituída que a acompanham. Essas características são precursoras da caracterização que
Tirso de Molina daria a Don Juan no século XVII, personagem que
sofreria, como Fausto, o castigo da danação imposto pelas reformas
religiosas.
Não menos sugestiva é a ideia de um diabo coxo que teria se machucado quando foi precipitado dos céus. Esta característica acabaria, direta ou indiretamente, sendo associada, no Romantismo, aos
lendários retratos de Byron, devido à sua famosa deformidade no
pé. Além disso, sua imagem demoníaca foi reforçada também pelos
inúmeros escândalos de sua vida amorosa, que aludiam a uma suposta relação incestuosa com sua irmã, fato que acabou estendendo a
deformidade física a uma deformidade de caráter.
As variadas formas de animais, como o bode e o cão, ocupam um
lugar de destaque na caracterização folclórica e popular do Diabo,
dando origem a uma simbologia que atravessa os séculos e que coexiste com diferentes formas que o diabo adquire na modernidade.
No Fausto de Goethe (1991, p.78), uma das primeiras aparições
do Diabo remonta à tradição folclórica e este surge na forma de um
cão flamejante que se agiganta e se torna semelhante a um hipopótamo para, posteriormente, reaparecer sob a forma moderna de
um “escolar extendendo” e também como um “nobre fidalgote”,
coberto por “rubras vestes de veludo” e “capa de rígido cetim”. De
acordo com Haroldo de Campos (1981, p.83) o motivo do demônio
metamorfoseado num cão flamejante acabou encontrando eco no romance gótico, ressurgindo, por exemplo, no Drácula (1897) de Bram
Stoker e no Doktor Faustus, de Thomas Mann.
Assim ocorre também com o Satã de Álvares de Azevedo, que
pode ser, ao mesmo tempo, um cão, um belo rapaz ou uma cabra.
O diabo está em toda parte e sob todas as formas, tal como os inúmeros personagens que compõem Sancho Saldaña o El castellano de
Cuéllar, de Espronceda, no qual as personagens que convivem diretamente com Sancho aludem a uma legião de demônios disfarçados
LEITURAS E RELEITURAS ROMÂNTICAS
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que se alimentam do desejo perverso e desenfreado desse herói byroniano do autor.
O grande drama cristão a ser enfrentado a partir do século XIV
será a crença difundida sobre o fim dos tempos que desencadeia o
que Mason (1989, p.23) chamou de questão central do Fausto de
Goethe e que se resume “na resposta à pergunta se o homem entregue a seu livre arbítrio e exposto às atrações do pecado conserva
afinal sua bondade inata e consegue salvar-se”.
A ideia da catástrofe final associada à culpa de entregar-se ao
demônio constitui um conflito permanente que se acentua no Renascimento e perpassa todo o Romantismo com o surgimento de
uma infinidade de narrativas que, apoiando-se no tecido fáustico,
recebem a classificação dada por Ferreira (1995, p.102) de Faustos
da salvação, que são as narrativas nas quais o demônio é logrado,
e os Faustos da danação, que remontam ao contexto luterano e ao
Volksbuch das narrativas nas quais o diabo vence o homem. Essas
duas dinâmicas do tecido fáustico convivem, por sua vez, com duas
imagens do Diabo que surgem em ambas, ou seja, aquele erudito
que desponta no Século das Luzes e salta das enciclopédias para
as páginas literárias, disfarçado com suas luvas de pelica e calças
à inglesa, e o outro, seu predecessor, o bufão, bestial e zombeteiro
diabo popular – o primeiro, segundo Nogueira (1986, p.76) muito
mais aterrorizante do que o segundo que pode ser, inclusive, facilmente enganado.
Câmara Cascudo (2001, p.195) assinala que os poderes e hábitos
demoníacos, no Brasil, são idênticos aos europeus, com suas histórias de tentações e logros oriundas, na maior parte, de Portugal.
Menciona, também, que no século XVI a presença do diabo foi oficialmente proclamada no Brasil e que na literatura oral o diabo é personagem inevitavelmente derrotada, fazendo surgir, na classificação
brasileira do conto popular, o ciclo do demônio logrado.
As histórias lendárias do doutor Fausto tiveram origem, segundo Mason (1989, p.33), a partir de traços do Fausto histórico
que foram fundidos com lendas e atributos de outros personagens
míticos ou reais. Essas histórias passaram a circular em forma de
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MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
livros populares, semelhantes à literatura de cordel, denominados
Volksbücher. A primeira narrativa que conseguiu reunir essas lendas
faustianas em um livro surgiu em Frankfurt, em 1587, sob o título
completo de
Historia do Doutor Johann Faust o célebre mago e nigromante,
como ele se vendeu ao Diabo por um período fixado, as estranhas
aventuras que viveu nesse entretempo, alguns atos de magia que
praticou, até o momento em que finalmente recebeu a merecida paga. Extraída na maior parte dos seus escritos póstumos, recolhidos
e impressos para servirem como horrível precedente, abominável
exemplo e sincera advertência a todas as pessoas presunçosas, curiosas e ímpias. (Watt, 1997, p.34)
Esse livro, anônimo, foi editado por Johann Spies e tornou-se
conhecido como Faustbuch. Sua primeira edição compõe-se de 68
capítulos que apresentam Fausto como filho de um humilde camponês que teria vivido sob os cuidados de um tio rico que o enviara a
Wittenberg para estudar Teologia.
De acordo com Dabezies (2000, p.335), o Faustbuch apresenta
o pacto de 24 anos de Fausto com o demônio, período no qual o
doutor pôde desfrutar de todas as magias e prazeres que desejou até
culminar em sua morte trágica. Acrescenta, ainda, que é possível
visualizar três partes distintas nessa narrativa: a primeira composta
de um tom moralizante que envereda, na segunda parte, por uma
geografia até certo ponto “antiquada e perempta”, na opinião do crítico, para chegar, na terceira parte, à reprodução de anedotas sobre as
farsas e os lances de magia de Fausto e terminar de uma forma ainda
mais dramática do que o início moralizante. A fórmula de “fazer rir
e meter medo” resultou no sucesso da narrativa que durante dois
séculos foi frequentemente reeditada nas mais diversas línguas como
holandês, inglês, francês, dinamarquês e tcheco.
O Faustbuch editado por Spies consegue conciliar duas tendências que predominaram como parte dos juízos de valor sobre
o Fausto histórico, oriundas dos humanistas e luteranos e que
LEITURAS E RELEITURAS ROMÂNTICAS
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remontam a uma tradição que se originou, sobretudo, da famosa
carta de Trithemius (Watt, 1997, p.31). Os luteranos difundiram
a crença nos poderes de Fausto e seu pacto com o Demônio, ao
passo que Trithemius e os humanistas duvidavam de tais poderes
e enfatizavam o lado embusteiro de Fausto. A síntese da narrativa
do Faustbuch apresentada por Mason (1989, p.33) reflete essas duas
tendências:
Na primeira parte do livro, Fausto aparece na floresta, como médico, e invoca o demônio. Segue-se um pacto assinado com sangue,
limitado a um espaço de tempo de 24 anos.
Na Segunda parte, Fausto torna-se astrônomo e formula a Mefisto todo tipo de perguntas a respeito do céu e da criação do mundo.
Fausto é levado pelos ares durante um ano e meio e vê quase todos os
países da Europa, pensando ter chegado ao Paraíso.
Nas partes finais do Volksbuch, Fausto encontra, em Innsbruck,
o imperador Carlos V, que lhe solicita a invocação de Alexandre o
Grande, o que Fausto consegue.
A maior novidade do Faustbuch em relação às lendárias histórias
fáusticas que o precederam consiste, segundo Watt (1997, p.32),
na oficialização da lenda e sua ênfase na legalização do pacto entre
Fausto e o Diabo firmado com sangue, fato que desde o início o
apresenta como um homem sem futuro.
Segundo Watt (ibidem), dos relatos que contribuíram para a
formação de uma ideia mais ou menos clara a respeito da atuação do
Fausto histórico como homem errante que viveu, em grande parte,
de suas atividades como astrólogo, mágico, vidente e nigromante
até as lendárias histórias que lhe atribuíram um fim trágico como
resultado de um pacto firmado com o demônio, torna-se evidente
a responsabilidade individual na salvação ou danação da alma.
De um lado, a ousadia de um homem que se aventura no campo
da heresia defendendo o acesso ao conhecimento por meio de vias
opostas àquelas abraçadas pela Igreja Católica já nos revela um ego
exorbitante, característico dos heróis literários que surgem nesse
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MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
momento, tal como Dom Quixote e Don Juan. De outro lado, a
ideia central que vai de encontro ao individualismo renascentista
do Fausto histórico e marca a sua passagem para a lenda: a danação
eterna. Pagar com a própria vida a escolha individual de vivenciar os
prazeres terrenos constitui a incorporação de uma ideologia na qual
todo prazer se reverte em dor e na qual a aventura religiosa realiza-se
como uma experiência individual em que cada um torna-se responsável pela salvação ou condenação de sua alma.
As histórias de danação percorreram um longo período que
abrange a passagem do Fausto lendário do Faustbuch ao Fausto literário de Marlowe em seu drama intitulado The Tragical History of
Dr. Faustus, encenado em Londres pouco depois de 1590, de acordo
com Dabezies (2000, p.335). Mason (1989, p.36), por sua parte, reitera que o primeiro autor faustiano inglês foi Christopher Marlowe e
que a publicação do citado drama data de 1589.
Já Watt (1997, p.41) assinala que há indícios de que a história
de Fausto chegou à Inglaterra por volta de 1572, antes mesmo da
publicação do Faustbuch, em 1587, e que em 1592 surgiu um Faust
Book inglês que teria servido como fonte principal da qual Marlowe
extraiu a maioria dos elementos de sua peça The Tragical History of
the Life and Death of Doctor Faustus, escrita, segundo ele, naquele
mesmo ano de 1592.
A grande contribuição de Marlowe foi ter sido o pioneiro na
transposição do mito fáustico e sua trágica versão para a literatura,
especialmente para o drama, numa época em que predominava o
teatro elizabetano. O grande diferencial de sua peça em relação às
versões lendárias do Faustbuch foi ter reduzido ao máximo a faceta
de mago embusteiro de Fausto para enfatizar sua faceta intelectual,
ressaltando, assim, o espírito renascentista da busca incessante pelo
conhecimento. Apesar da ênfase dada por Marlowe na tradição
intelectual do individualismo setecentista ao caracterizar o herói
fáustico, ele não descarta, em sua peça, as consequências punitivas
da ideologia contrarreformista e tampouco se desfaz da crença na
imortalidade da alma que leva Fausto à danação eterna e perpetua,
assim, a tradição luterana dos Faustos de danação.
LEITURAS E RELEITURAS ROMÂNTICAS
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Seria preciso esperar até 1759 para que o dramaturgo alemão
Gotthold Ephraim Lessing promovesse uma verdadeira guinada no
desenlace de Fausto e o conduzisse à salvação, de acordo com Mason
(1989, p.43). Para Debazies (2000, p.336), são os jovens precursores
do Romantismo, como Maler Müller em 1776-1778 e Klinger em
1791 que trilharão a senda aberta por Lessing e consagrarão um tipo
novo de Fausto “feito à sua imagem, um titã em revolta contra este
mundo malfeito, um individualista suficientemente audacioso para
desafiar a moralidade, a sociedade, a religião, e para concluir uma
aliança com o demônio”.
O Fausto de Goethe
Apesar das diversas experiências operadas no tecido fáustico ele
somente sofreria uma mudança significativa, desde Marlowe, na
publicação do Fausto de Goethe, obra cuja elaboração estendeu-se
durante toda a vida do poeta.
Na síntese biográfica de Theodor (1991, p.4-5) a uma das edições
do Fausto de Goethe, o estudioso assinala que o poeta “leu todos os
relatos acessíveis, relativos ao Fausto, desde o Livro popular até as
histórias que, anonimamente, se encontravam em circulação [...]”.
Salienta, ainda, que ao referir-se às fontes de sua obra, Goethe “relembra geralmente o teatro de títeres, através do qual tomou conhecimento da versão dramática do Fausto [...]”.
Goethe começou a escrever seu Fausto em 1769 e em 1790 publicou seus primeiros escritos sob o título Um fragmento. Segundo
Theodor, até a publicação do Fragmento, Goethe ainda não havia tomado conhecimento de a história trágica do Dr. Fausto, de Marlowe,
que só conheceria em 1818, de acordo com relatos do próprio Goethe
em seus Diários.
É importante destacar as diversas fases pelas quais a obra mais
célebre de Goethe passou, já que ela foi ganhando contornos mais
definidos ao longo de toda a vida do poeta, que transcorreu de 1749
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MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
a 1832. Eis, então, a primeira etapa de sua elaboração e publicação
relatada por Theodor (1991, p.6):
Em 1775, Goethe se mudara para Weimar, trazendo na bagagem parte considerável do drama, que apresentou em várias
reuniões. Uma admiradora, especialmente entusiasta, Luise von
Göchhausen, copiou por inteiro os manuscritos, prestando assim
relevante serviço à pesquisa. Os originais não foram conservados,
pois Goethe os modificou, recortou e colou em tiras sobre outras
concepções, mas, em 1887, quando o poeta já havia morrido há 55
anos, foi descoberta a mencionada cópia de Luise von Göchhausen,
publicada sob o título de Fausto primitivo (Urfaust). Eis a primeira
feição do Fausto, tal como hoje conhecida, e o êxito alcançado pelo
Fausto primitivo, tanto em forma dramática como em feição de livro
foi absolutamente estrondoso. As cenas ali reunidas encontraram-se
profundamente revistas e acrescidas das cenas “Cozinha da bruxa” e
“Floresta e gruta”, na publicação do Fragmento, de 1790.
Após um intervalo de sete anos Goethe volta a ocupar-se do
Fausto e entre 1798 e 1800 surge o “Prólogo no teatro” e, logo, o
“Prólogo no Céu”. Este último contém a ideia de salvação do Fausto
que se daria na conclusão do drama. Em 1806 ele conseguiu terminar a Primeira parte, publicada em 1808, e somente em 1827 e 1828
publicou alguns segmentos da Segunda parte. Esta também passou a
integrar a Tragédia, publicada postumamente, em 1833.
O fato de trabalhar o mito fáustico durante toda sua vida permitiu a Goethe dar-lhe contornos tão particulares que, ao mesmo
tempo em que sua obra remonta ao Faustbuch, à peça de Marlowe
e a outras adaptações populares com as quais teve contato, também
consegue introduzir variações no mito que acabaram repercutindo
profundamente na tradição fáustica posterior, especialmente entre
os poetas românticos do século XIX.
É sabido que Goethe manteve uma larga correspondência com
Byron e que este se tornou um entusiasmado admirador de sua
obra. Segundo Mason (1989, p.53), Byron teria escrito seu drama
LEITURAS E RELEITURAS ROMÂNTICAS
103
Manfredo inspirado no Fausto. De fato, este poema dramático de Byron, publicado em 1817, apresenta uma estreita relação com a temática faustiana. Seu protagonista, o conde Manfredo, detém poderes
semelhantes aos de Fausto e, por isso, consegue invocar vários espíritos. Embora Manfredo expresse alguns elementos fáusticos, como o
fastio que o protagonista manifesta no tocante à inutilidade do conhecimento livresco, das ciências e da filosofia, há muita dessemelhança
em relação ao herói fáustico em sua totalidade. Em primeiro lugar, é
evidente a vestimenta do herói byroniano em Manfredo, aquele ser
cético e meditabundo que, ao contrário de Fausto, não acredita nos
prazeres que a vida ainda pode lhe proporcionar e deseja ardentemente unir-se à morte, ao esquecimento de suas amargas experiências.
Assim, Byron promove uma completa inversão de valores no tecido
fáustico na medida em que seu herói encara a vida como sua danação
e a morte como sua salvação, despojando-se totalmente da crença na
imortalidade da alma e, consequentemente, da danação eterna. Daí as
últimas palavras do conde Manfredo ao abade: “Velho homem! Não é
tão difícil morrer” (apud Pujals, 1951, p.110, tradução nossa).
Com exceção de algumas viagens à Itália, Goethe passou a maior
parte de sua existência no principado de Weimar, grande centro
cultural de sua época, onde exerceu diversas atividades administrativas e ocupou alguns cargos políticos. Cultivou a amizade das
mais célebres personalidades do mundo inteiro, tanto na literatura
quanto na filosofia e na música. Foi discípulo e admirador de Herder, grande amigo de Schiller e Byron e chegou a influenciar grandes gênios da música como Beethoven. Ao longo de seus 83 anos,
pôde testemunhar vários acontecimentos históricos que marcaram
a humanidade, como “as grandes transformações sociais decorrentes da Revolução Industrial, das invenções da máquina a vapor, da
locomotiva e do progresso científico e tecnológico”, de acordo com
Mason (1989, p.47).
Filho de família abastada, Goethe pôde gozar de uma excelente
iniciação intelectual e artística, chegando a concluir no ano de 1771,
em Estrasburgo, a faculdade de Direito. No âmbito literário, produziu uma vasta e diversificada obra composta de poemas, dramas,
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MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
romances, ensaios e trabalhos científicos. Mason (ibidem, p.51)
menciona que o gosto pela Antiguidade Clássica, Homero e Shakespeare constituiu “o substrato básico de suas criações”.
Ao recorrer à recepção crítica do Fausto de Goethe deparamos
constantemente com a afirmação de que a Segunda parte é ainda
pouco lida e de difícil compreensão. De acordo com Mason (ibidem,
p.57) “a compreensão do Fausto II é muito difícil sem um estudo
aprofundado e o auxílio de comentários e explicações especializadas,
tais são as mudanças de cenário e as alusões mitológicas às quais
recorre Goethe”. Watt (1997, p.201-2) também é categórico ao assinalar que “a Parte II é muitíssimo diferente da anterior, tanto no
estilo quanto no conteúdo” e acrescenta:
Há muitas diferenças de estilo e conteúdo entre as duas partes.
O foco central da Parte I é o amor de Fausto e Margarida, um drama doméstico e realista, do tipo aprovado pelos escritores do Sturm
und Drang; já a Parte II é construída com técnicas bem diversas,
abrangência maior e interesses muito mais amplos. Fausto II
passa-se muito mais no Grande do que no Pequeno Mundo – com
ações que se desenrolam na Grécia e na Alemanha, abarcando um
período de aproximadamente trinta séculos. Sem esquecer que
muitas de suas cenas admitem a presença de figuras alegóricas
ou mais ou menos abstratas, destinadas a aparecer apenas uma
ou duas vezes. Na maioria, tais cenas são líricas, e não narrativas; e algumas não têm relação direta nem com Fausto nem com
Mefistófeles.
De um modo geral, os críticos atribuem a disparidade entre a Primeira e a Segunda parte do Fausto ao longo espaço de tempo em que a
obra foi elaborada, além da influência classicista que Goethe passou
a incorporar, cada vez mais, após sua estada na Itália e que acabou se
revelando de forma mais acentuada no Fausto II.
Ao tratar sobre a “Popularização do Fausto de Goethe”, Ferreira
(1995, p.103) menciona que o Primeiro Fausto foi o mais traduzido
e divulgado graças à clareza de seu enredo e à sua dramaticidade. O
LEITURAS E RELEITURAS ROMÂNTICAS
105
Segundo Fausto, de “complexas e obscuras passagens”, ainda segundo Ferreira, sempre teve menor circulação. A estudiosa comenta,
ainda, que a justificativa dos tradutores ao privilegiarem o Primeiro
Fausto reside, especialmente, no fato de apontarem no Segundo
Fausto um lirismo complicado e uma filosofia transcendente que
dificultavam a compreensão popular e a adaptação do drama para
outras formas de linguagem.
O Primeiro Fausto apresenta, dessa forma, um esquema de enredo bem definido ao iniciar-se com o “Prólogo no teatro” e, a seguir, o
“Prólogo no céu”, que retrata a aposta entre o Senhor e Mefistófeles,
cada um representando as faces do Bem e do Mal, respectivamente.
A aposta do Senhor consiste em dar total liberdade a Mefistófeles
para que este tente desviar Fausto para o lado obscuro. Contudo, a
fala do Altíssimo deixa antever que, mesmo cedendo à “sombra”, o
homem que aspira ao bem sempre triunfa no final:
Pois bem, por tua conta o
deixo! Subtrai essa alma à
sua inata fonte, E leva-a,
se a atraíres pra teu eixo,
Contigo abaixo a tua
ponte.
Mas, vem, depois, confuso confessar
Que o homem de bem, na aspiração que, obscura, o
anima, Da trilha certa se acha sempre a par.
(Goethe, 1991, p.38)
Nessa passagem já se antecipa a salvação final de Fausto, episódio que dará início a um novo ciclo do mito fáustico em oposição à
tradição do Faustbuch que enfatizava a danação do protagonista. Nos
próximos episódios do drama, Goethe acaba inserindo as características elementares de seu herói que, primeiramente, nos revelam
sua desilusão face ao conhecimento adquirido nos livros, além de
lamentar a falta de convívio social que lhe proporcionasse a experiência acerca dos prazeres do homem comum. Nesse momento,
106
MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
Mefistófeles surge no cenário como uma esperança para que Fausto
pudesse ter, ainda, uma oportunidade de viver o que, talvez por covardia, não vivera antes:
Não penso em alegrias, já to disse.
Entrego-me ao delírio, ao mais
cruciante gozo, Ao fértil dissabor
como ao ódio amoroso.
Meu peito, da ânsia do
saber curado, A dor
nenhuma fugirá do mundo,
E o que a toda humanidade
é doado, Quero gozar no
próprio Eu, a fundo,
Com a alma lhe colher o vil e o mais
perfeito, Juntar-lhe a dor e o
bem-estar no peito,
E, destarte, ao seu Ser ampliar meu próprio Ser,
E, com ela, afinal, também eu perecer. (ibidem, p.85)
As características principais do Fausto de Goethe vão, assim,
tomando forma e o mito se renova, uma vez que o herói fáustico de
Goethe não almeja o conhecimento da magia e a fama que buscava o
Fausto da lenda, mas apenas gozar plenamente as alegrias e tristezas
do homem comum que ele não fora. Esse medo de interagir com o
mundo empírico é rompido definitivamente a partir do pacto com
Mefistófeles que, mais do que gênio do mal, representa a própria
natureza do ser isenta de “amarras sociais” e liberta de toda “moral”.
Ao aceitar Mefistófeles como seu cicerone nessa nova aventura à
qual Fausto se propõe, este último dá início a uma verdadeira batalha com o seu duplo.
Fausto está cansado de conjecturas e quer ser um homem de
ação. No entanto, é possível identificar nele certa resistência em
integrar-se ao populacho e que revela um sentimento de classe. É
o que se observa, por exemplo, na Taverna de Auerbach, quando
LEITURAS E RELEITURAS ROMÂNTICAS
107
Mefistófeles tenta aproximar Fausto dos homens ébrios e este contesta: “convinha, acho, irmo-nos agora” (ibidem, p.107). A mesma
atitude de querer apartar-se é manifestada, também, na cena em que
Mefistófeles o leva à cozinha da bruxa: “Por que há de ser aquela velha? / Tu mesmo o líquido me aprontes!” (ibidem, p.112). Assim se
mostra também na Noite de Valpúrgis, pois enquanto Mefistófeles
se diverte à larga dançando com as bruxas, Fausto logo se enoja:
Mefistófeles:
(A Fausto, que saiu da dança)
Por que é que larga a formosa jovem
Que à dança achava o
suave canto?
Fausto:
Ui! lhe pulou da boca, entanto
Um rato vermelhinho e vil. (ibidem, p.186)
Um dos elementos fáusticos centrais que move o protagonista do
Faustbuch ao pacto refere-se à sua sede de conhecimento e à crença
de que a magia constitui uma via de acesso a um saber oculto que
a razão não alcança. Em Goethe, na Primeira parte do Fausto, logo
após a aparição do gênio, o mestre encontra-se em seu quarto quando Wagner, seu assistente, bate à porta. Os dois, mestre e assistente,
começam a discutir questões como a aquisição e transmissão do conhecimento e, nesse episódio, a fala de Fausto a Wagner soa como a
de um autêntico poeta romântico em defesa da emoção:
Mas, nunca falareis a um outro
coração, Se o próprio vos não
inspirar.
[...]
Não seja um parvo de
sons ocos! Falam o
juízo e o são conceito
Por si, com artifícios
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MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
poucos;
E, se dizerdes algo vos é dado,
Deveis caçar vão palavreado? (ibidem, p.47)
De acordo com Ferreira, nenhuma das versões populares do
Fausto, inclusive as cinematográficas, dispensam o diálogo entre
Fausto e Wagner acima referido que, segundo a mesma autora, pode
ser comparado ao diálogo entre o mestre e o aprendiz afoito do Livro
de São Cipriano.
O diálogo entre Fausto e Wagner continua na cena seguinte, logo
após Fausto tentar o suicídio com uma taça de veneno e ter sido impedido de cometer tal intento graças à interrupção de um coro de anjos
que o faz recordar de sua infância. Durante o passeio, Wagner expressa um certo sentimento de classe que o impede de integrar-se ao povo,
como já havíamos observado em algumas falas de Fausto. Assim, ao
saírem às ruas no dia de Páscoa, entre a multidão, Wagner comenta:
Senhor doutor, passear
convosco, É proveitoso
e é honraria;
Mas, sendo adverso a todo
bruto e tosco, A sós, aqui, eu
não me atreveria.
Os gritos, jogos, a palrice,
São sons que da funda alma
odeio; Bramam como se o
inferno os impelisse,
E dizem que é canção, recreio. (ibidem, p.59-60)
A fala de Wagner ao escutar as canções folclóricas do povo alude
ao contraste entre a cultura erudita, na qual se insere, e a cultura
popular. A atuação de Fausto ao dirigir-se com Wagner até o povo,
no Domingo de Páscoa, remete alegoricamente ao nascimento de um
novo Fausto, aberto a novas experiências, e demonstra o quanto ele
estava farto do conhecimento acadêmico e de estar trancafiado em
LEITURAS E RELEITURAS ROMÂNTICAS
109
seu quarto gótico e escuro, túmulo do saber que ele deixava para ir
ao encontro da cultura popular e das experiências do homem simples
por meio de seu guia, Mefistófeles, cuja aparição se dá nesse mesmo
episódio sob a forma do diabo popular, ou seja, metamorfoseado
num cão.
Wagner, por contraste, representa o Fausto do passado, preso
à ilusão de que a sabedoria dos livros poderia responder a todas as
inquietações do homem:
De horas estranhas tenho
sido a presa, Mas jamais de
ânsias desta natureza. Cansa
o ver lagos, campos, o
pinhal, As asas da ave não
são minha escolha. Melhor
nos leva o gozo espiritual
De livro em livro, folha em folha!
Noites de inverno, então, se enchem de
encanto, Ditosa vida aquece-nos o
abrigo;
E se abres ainda um pergaminho santo,
Todo o céu desce a ter contigo. (ibidem, p.64)
Esses primeiros episódios em que Fausto tenta transmitir a
Wagner sua nova concepção acerca do conhecimento, sair em meio
à multidão e extasiar-se com a natureza parecem antecipar a dupla
Mefistófeles/Fausto que passa a dominar as próximas cenas. Mefistófeles, “que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria”
(ibidem, p.71), entra em cena e firma um pacto com Fausto assinado
com uma gota de sangue. Esse momento, tão temido e ritualisticamente levado a sério pelo Fausto da lenda, torna-se motivo de
galhofa para o Fausto de Goethe que nem mesmo acredita que possa
existir “algum embaixo” e algum “em cima” (ibidem, p.82). Assim,
entrega-se Fausto a viver intensamente o efêmero momento ao lado
de Mefistófeles que lhe mostra a alegria dos ébrios frequentadores da
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MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
Taverna de Auerbach, lugar em que Goethe reproduz uma anedota
da versão lendária do Fausto, na qual Mefistófeles dá demonstrações
de seu caráter zombeteiro criando ilusões que fazem com que os taverneiros vejam apetitosos cachos de uva no nariz do companheiro.
O próximo passo a ser dado por Fausto e Mefistófeles será visitar
“A cozinha da bruxa”, cena em que surge o Fausto rejuvenescido. A
bruxa recebe uma caracterização popular e apresenta-se como uma
velha, com seu caldeirão, cercada de animais repugnantes. A essa caracterização medieval Goethe contrapõe o diabo moderno, sem “garras, chifres ou rabo”, que consegue enganar até mesmo a feiticeira.
A bruxa, portando dons sobrenaturais, desempenha no drama de
Goethe a função de despertar a anima de Fausto, termo junguiano
que significa elemento feminino da psique masculina a que Goethe
chamou o “eterno feminino”. De acordo com a análise da dra. Franz
(apud Jung et al., 1964, p.177), a “anima é a personificação de todas
as tendências psicológicas femininas na psique do homem – os humores e sentimentos instáveis, as intuições proféticas, a receptividade
ao irracional, a capacidade de amar, a sensibilidade à natureza e, por
fim, mas nem por isso menos importante, o relacionamento com o
inconsciente”. Goethe descreve todo um ritual executado pela bruxa
para a invocação simbólica da anima no qual a feiticeira e Mefistófeles obrigam Fausto a entrar em um círculo.
Em sua interpretação dos símbolos oníricos como forma de conhecer os processos do inconsciente, Jung (1994, p.62) assinala que
“traçar um círculo protetor é um antigo recurso usado por todos que
se propõem a realizar um projeto estranho e secreto”. É, portanto,
sob a proteção do círculo que a feiticeira consegue delimitar o seu
território sagrado e invocar a anima. Ainda na concepção junguiana,
a significação prática da anima é servir como guia e mediadora do
mundo interior e é justamente esse papel que ela desempenhará em
relação ao conflito entre Fausto e Mefistófeles.
Margarida, uma jovem humilde e religiosa que Fausto passa a
amar após o despertar de sua anima, exerce no drama a função de
mediadora entre as forças contraditórias que habitam em Fausto
a fim de despertá-lo para os malefícios causados pelo domínio da
LEITURAS E RELEITURAS ROMÂNTICAS
111
sombra, ou seja, do demônio. Em razão disso, Mefistófeles passa a
usar Fausto como instrumento para a destruição de Margarida ao
mesmo tempo que finge uma situação contrária.
Na cena seguinte, denominada “Noite de Valpúrgis” ou “Sabá
das feiticeiras”, Fausto e Mefistófeles participam da grande festa
na qual se reúnem feiticeiros e feiticeiras e Fausto acaba dançando
com Lilith. Esta figura feminina está relacionada aos antigos mitos
babilônicos que a associam a uma espécie de demônio. Goethe, ao
apresentá-la pela boca de Mefistófeles, remete à tradição dos textos
bíblicos que se referem a Lilith como a primeira mulher de Adão e
que, após rebelar-se contra este último, foi considerada uma figura
vingativa e aterrorizante. É interessante observar que Lilith surge
no drama justamente na cena que antecipa a visão de Margarida na
prisão. Em um momento da dança, Fausto observa que um rato salta
da boca de Lilith e, por isso, decide deixá-la. A seguir, ele descreve
a Mefistófeles a visão que tem de Margarida acorrentada na prisão
e o demônio tenta persuadi-lo de que está sob efeito de um encantamento. Esse fato parece enquadrar-se bem em uma das linhas de
pesquisa sobre a significação de Lilith, apresentada por Couchaux
(2000, p.583):
Duas outras linhas de pesquisa permitem ainda completar a descrição de Lilith pelas possíveis aproximações de seu nome com a raiz
indo-europeia “la” (gritar, cantar), por um lado, e, por outro, com a
palavra grega law. De “la” deriva o sânscrito “lik” (lamber), assim
como um grande número de palavras relacionadas com a língua e
com os lábios: “Lippe” (alemão), “lippe” (francês), “labium” (latim);
Lilith devora os filhos, e seus lábios e sua boca são sempre enfatizados nas obras literárias posteriores. A palavra law, relacionada
igualmente com as palavras “lux” (latim), “luz” (espanhol), “light”
(inglês) e “Licht” (alemão), dá a ideia de luz, ou, mais precisamente,
de “ver com uma visão penetrante”, “ver à noite”, “libertar-se da
obscuridade”. Ora, certos textos literários fazem Lilith intervir numa estranha busca iniciática conduzida pelo herói.
112
MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
Considerada uma espécie de demônio e envolta de toda a simbologia descrita por Couchaux, podemos facilmente associar a aparição de Lilith na “Noite de Valpúrgis” com a libertação de Fausto
da obscuridade mefistofélica à qual se achava preso já que, após o
contato com Lilith, a luz da consciência é despertada em Fausto e ele
consegue “ver com uma visão penetrante” o que o demônio tentava
esconder ao levá-lo à “Noite de Valpúrgis”. Todo o mal causado a
Margarida e seu fim trágico foram revelados nessa noite em que
Fausto tem uma visão de Margarida acorrentada na prisão por haver
matado mãe e filho. A seguir, inicia-se uma verdadeira contenda
entre Fausto e Mefistófeles e este fato nos leva a perceber o triunfo
do lado bom da consciência de Fausto lutando contra o domínio cego
de seus instintos.
Fausto e Mefistófeles dirigem-se à prisão em que se encontrava
Margarida e tentam libertá-la. Contudo, ao avistar Mefistófeles,
Margarida se nega a seguir Fausto e decide entregar-se ao julgamento divino, salvar sua alma e pedir misericórdia a Deus pela alma de
seu amado.
Na segunda parte do drama deparamos, como já foi dito, com um
intrincado simbolismo que se opõe à fluidez e à clareza do enredo
presentes na primeira parte. Contudo, a aventura de Fausto e Mefistófeles continua e ambos surgem na corte do Imperador. Dentre
uma série de acontecimentos ocorridos ali, situa-se o famoso episódio da invocação de Helena e Páris, passagem que nos remete às façanhas nigromânticas do Fausto lendário em várias cortes europeias.
A propósito desse episódio, encontramos em Jung (1994, p.497)
uma interpretação bastante esclarecedora do complexo simbolismo
que o encerra, segundo a qual o Fausto de Goethe está “impregnado
de ideias alquímicas do começo ao fim”. Ele enfatiza a cena de Páris
e Helena como a mais representativa do drama fáustico e a interpreta
segundo o simbolismo presente na alquimia. A referida cena tem
início quando o imperador solicita a Fausto a visão de Páris e Helena
e ele se dispõe a contentá-lo. Para isso, Fausto recorre a Mefistófeles e
este lhe impõe como condição o cumprimento de uma árdua tarefa. Assim, Fausto, portando uma chave mágica entregue a ele por
LEITURAS E RELEITURAS ROMÂNTICAS
113
Mefistófeles, deveria encontrar o reino das Mães, situado em um
lugar no qual ficaria longo tempo vagando sozinho, uma espécie de
vazio. Ao encontrá-lo, com a ajuda da chave, Fausto deveria procurar um tripé no fundo de um abismo e trazê-lo a Mefistófeles. Ocorre, então, que ao deparar com Helena e encantar-se por sua beleza,
Fausto deseja ocupar o lugar de Páris e, assim, no momento em que
tenta agarrá-la, ocorre uma grande explosão.
Os episódios que se seguem retratam outras experiências efêmeras. É o caso, por exemplo, do Homúnculo, ser artificial criado em
laboratório por Wagner e que se dissolve nas águas do mar ao ter o
seu invólucro de cristal partido. Efêmera também é a união de Fausto e Helena, que ele retira do reino dos mortos e com quem tem um
filho, Eufórion. Ambos não sobrevivem muito tempo e logo Fausto
volta a gozar apenas da maléfica companhia de Mefistófeles, aquele
que praticando o mal atinge o bem.
A cena da aparição de Helena e Páris seria interpretada por um
alquimista medieval, segundo Jung, como a “coniunctio” do Sol e da
Lua. Fausto, ao deparar com a projeção do par, identifica-se com o
Sol e se apodera da Lua, no caso Helena, que também representa a
sua anima. Nesse sentido, Fausto, o alquimista, em vez de operar
a projeção, observando-a de fora, decide vivenciá-la. Como toda
obra alquímica visa à produção do incorruptível, ao vivenciar o
drama Fausto perde esse objetivo. Em consequência, a obra incorruptível não vinga e Eufóriun acaba sendo consumido em sua própria chama. Em outras palavras, o que Jung assinala é que o erro de
Fausto foi ter se identificado com o que deveria ser transformado.
Desse modo, a essência do drama fáustico reside, segundo Jung, no
fato de Fausto atribuir à consciência um conteúdo do inconsciente,
perdendo a capacidade de discernimento das coisas e tornando-se,
assim, um egocêntrico, ou seja, alguém que só tem consciência de
sua própria presença.
Jung (ibidem, p.500) tenta explicar, ainda, a origem do comportamento do herói fáustico como resultado de um processo histórico e
cultural e, assim, pergunta-se:
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MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
Mas a partir do iluminismo e da época do racionalismo científico, o que aconteceu com a alma? Ela fora identificada com a consciência. A alma tornou-se o que se sabia dela. Fora do eu, não existia.
Era inevitável pois a identificação do eu com os conteúdos retirados
da projeção. Acabara o tempo em que a alma ainda se encontrava
“fora do corpo” e imaginava essas “maiorias” (coisas maiores) não
captáveis pelo corpo. Assim, pois, os conteúdos outrora projetados
deveriam aparecer como algo pertencente à pessoa, isto é, como imagens fantasiosas do eu consciente. O fogo esfriou, transformando-se
em ar, o ar tornou-se o vento de Zarathustra e causou uma inflação
da consciência. Esta, pelo visto, só pôde ser dominada pelas mais
aterradoras catástrofes da civilização, ou seja, pelo dilúvio que os
deuses enviaram à humanidade pouco hospitaleira.
A partir dessa reflexão, Jung conclui que atribuir a morte de
Fausto apenas a uma necessidade que se deve às exigências de
época torna-se uma resposta insatisfatória. O estudo do simbolismo do sol (Jung, ibidem, p.836-40) apresenta-o como uma força
contraditória na medida em que pode, ao mesmo tempo, fecundar
e matar. Fausto retira Helena do Hades e a traz de volta à vida para
gerar e depois morrer. Desse modo, o fato de a “alternância vida-morte-renascimento” ser simbolizada pelo ciclo solar é reveladora,
segundo Mason (1989,p.73), da função de Fausto nesse episódio,
além de prenunciar sua salvação na última cena do drama, na qual
“a parte imortal de Fausto é levada para o alto pelos anjos, deixando
Mefistófeles lamentar sua derrota. Vozes elevam preces à Virgem,
pelo perdão de Fausto e, entre elas, está a de Gretchen [Margarida],
que o guiará a uma nova vida”.
O herói fáustico de Byron
Segundo Carpeaux (1987, p.1248), George Gordon Byron, William Shakespeare e Walter Scott são três escritores que dominaram
a literatura europeia da primeira metade do século XIX. Childe
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115
Harold’s Pilgrimage, obra lançada em 1812, não apenas garante popularidade imediata ao poeta inglês como apresenta também a imagem do herói byroniano, “o primeiro de uma longa série de heróis de
características muito semelhantes que desfilam interminavelmente
pelos trabalhos de Byron”, de acordo com Onédia Barboza (1974,
p.120). É um herói sombrio, melancólico e misterioso que vive perturbado pela culpa de um crime que cometeu no passado, um tipo
que, na opinião de Carpeaux (1987, p.1249), Byron manda para o
inferno no “sombrio drama lírico Manfred”. A esse longo poema
lírico-descritivo seguiram-se uma série de contos metrificados como
The Giaour, The Corsair, Lara, Parisina e outros que deram contornos cada vez mais nítidos ao herói byroniano.
Em Manfred, escrito entre 1816 e 1817, Onédia Barboza (1974,
p.227) aponta um herói que “é um misto de sábio e mágico (nitidamente inspirado no Fausto de Goethe), que procura, em vão, o
esquecimento para acalmar sua alma, torturada pelo remorso de um
grande pecado cometido”. Seguindo a trilha aberta com Manfred,
Byron deu continuidade à sua temática luciferiana em outros dois
dramas: Caim (1821) e Heaven and Earth (1823). Em Caim, o herói
tende a fundir algumas características do mito fáustico.
Manfred inicia-se com um monólogo do conde Manfred, à meia-noite, em uma galeria gótica. Essa personagem, assim como o Fausto de Goethe, é um intelectual melancólico e descrente no saber dos
livros. Além disso, refere-se a si mesmo como uma pessoa destemida, insensível e com poderes para invocar os espíritos. Decide, então,
invocar os espíritos que habitam o ar, a terra e o oceano, demonstrando não apenas suas qualidades de herói fáustico como também
algumas características próprias do herói byroniano ao considerar-se
vítima de uma maldição que faz dele um “inferno errante” (Byron,
1973, p.290).
A seguir, uma sequência de espíritos dispostos a satisfazer os desejos de Manfred surge à sua frente e este pede aos espíritos que lhe
deem o “esquecimento” de um dos “eus” que existe dentro dele. Os
espíritos, por sua vez, oferecem a Manfred todas as riquezas do mundo, mencionando que não têm o poder de dar-lhe o esquecimento,
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MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
mas que podem dar-lhe a morte. Manfred empolga-se com essa
ideia, mas os espíritos, que são imortais, tentam persuadi-lo a desejar outras coisas, como riquezas, poder e longos dias. Indignado com
os espíritos, ele desafia-os e pede que eles assumam alguma forma
concreta e, então, eles assumem a forma de uma bela mulher. Nesse
instante, extasiado diante da bela imagem feminina, tal como Fausto
ao ver Helena, Manfred tenta abraçar a imagem e esta desaparece.
Na sequência, o herói e ouve-se uma voz que profetiza um poder
destruidor, que está destinado a conviver com um coração desumano
e errando pela terra por longos dias sem repouso.
Na segunda cena, o herói surge, sozinho, meditando no alto de um
monte, onde manifesta todo seu panteísmo e o desejo de fundir-se à
natureza. Assim, decide suicidar-se atirando-se do monte, mas é salvo por um caçador. A seguir, aparece conversando com o caçador que
lhe salvou a vida e este percebe que Manfred é um homem de nobre
linhagem e convida-o a um brinde com vinho. O vinho, elemento que
remete alegoricamente ao sangue e a Pan, deus da orgia, alude ao seu
incestuoso amor (tema que perpassa a vida e a obra de Byron) e manifesta em Manfred um insuportável sentimento de culpa. Após ouvir
os lamentos de Manfred, o caçador passa a considerá-lo um louco. O
herói decide, então, seguir sua peregrinação e despede-se do caçador
pagando-lhe o generoso gesto com algumas moedas de ouro.
Na cena seguinte, Manfred surge em um vale, contemplando o
pôr do sol aos pés de uma cachoeira. Nesse cenário, o herói evoca a
fada dos Alpes, que surge à sua frente sob a forma de uma celestial
beleza. Ele conversa com esse espírito que se dirige a Manfred chamando-o de “homem de muitos pensamentos e atos bons e maus”
(ibidem, p.308). O herói, por sua vez, expõe à fada suas diferenças
em relação a outros seres humanos, sua misantropia, sua necessidade
de estar refletindo no cume dos montes, de vagar pela noite acompanhando o curso da lua, de escutar o trovão, bem como sua inclinação
para a magia. Também revela o quanto havia se impressionado com
uma imagem feminina que os espíritos lhe apresentaram e decide
que quer ser como um homem comum, um ser mortal. Em outro
momento o conde aparece, também, refletindo sobre o mal que
LEITURAS E RELEITURAS ROMÂNTICAS
117
causara à mulher que amou, aquela que se tornara a vítima de seus
pecados e que hoje se encontra morta enquanto ele vive.
No cume do monte Jungfrau ocorre, na terceira cena, uma interessante conversa em que aparece Nêmesis, espírito que comanda o
destino humano. Na quarta cena surge também Arimán, o soberano
entre os espíritos e ao qual todos se prostram, exceto Manfred. Este
solicita a Nêmesis que interceda junto a Arimán a fim de que seja
possível ter acesso ao reino dos mortos e trazer de volta Astarté, a
amante de Manfred. Quando a bela Astaré surge, Manfred pede que
ela o perdoe e que o condene, e a mulher profetiza o fim das angústias terrenas do conde.
Após a visão de Astarté, o herói recebe a visita de um abade que
revela os rumores que acusam Manfred de compactuar com forças
demoníacas. Assim, no decorrer da conversa, o abade tenta converter Manfred a voltar-se para a religião e este se enfurece e se despede
do abade sem deixar de ser cortês. Ao pressentir que seu fim está
próximo, Manfred contempla seu último pôr de sol e dirige-se à sua
torre, de onde evoca os espíritos. O abade insiste em falar novamente
com Manfred e, na torre, presencia a cena em que uma divindade
infernal vem buscar Manfred, a quem ele desafia e pede que volte
para o inferno. Suas últimas palavras ao abade antes de morrer são:
“Ancião, morrer não é tão difícil” (ibidem, p.342).
O drama Caim, inspirado no episódio bíblico da queda, no Gênesis, transforma Caim numa individualidade cheia de anseios fáusticos que se rebela contra o criador e aceita realizar um pacto com
Lúcifer e adorá-lo como seu senhor. Em troca, Caim pede a Lúcifer
que lhe revele os mistérios da vida e da morte e, assim, ambos partem
para uma viagem às regiões celestiais e depois sobre os abismos do
espaço até chegarem ao Hades, o reino dos mortos. Após essa viagem, a alma titânica de Caim retorna ainda mais inquieta e cética em
relação à vida e ao criador.
Abel, irmão de Caim, vem buscá-lo para a realização dos sacrifícios oferecidos a Deus. Caim, revoltado por não querer cultuar
Deus, mata seu irmão em uma briga. Adão expulsa Caim de seu lado
para sempre e este se aparta com sua mulher e filho.
118
MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
Leitura comparada: Espronceda e Álvares
de Azevedo
El diablo mundo representou, indubitavelmente, uma novidade
nas letras espanholas de seu tempo graças ao tratamento heterogêneo
que o autor concedeu aos 5.805 versos que o compõe. Apresenta uma
introdução e mais sete cantos em que se mesclam elegias amorosas e
quadros dramáticos, divagações filosóficas e crítica social, procedimentos que conseguem, ao mesmo tempo, corresponder às pretensões universalizantes do autor sem deixar de retratar o local, com todo
o coloquialismo da fala dos ciganos do bairro madrileno de Lavapiés.
É considerado um poema inacabado que contou com uma primeira publicação por fascículos, de 1840 a 1841, e outra em dois volumes
em 1841. Em sua recepção crítica, são mencionadas como fontes
inspiradoras de Espronceda o Fausto, de Goethe, Don Juan, Caim e
Manfred, de Byron, L’Ingénue, de Voltaire, Émile e Le contrat social,
de Rousseau, além de Victor Hugo, Musset e Ramón de la Cruz.
A semelhança com o Fausto, de Goethe, nota-se nas divagações
metafísicas de um velho poeta entediado que abre o poema. Segundo
Guillermo Carnero (1999, p.115), Espronceda pôde ler o Fausto em
uma tradução francesa de 1825. Adán, o protagonista de Diablo mundo aproxima-se, sob vários aspectos, da ambiguidade característica do
herói fáustico que é capaz, ao mesmo tempo, de almejar o bem de seu
próximo e também o destruir em prol da satisfação de seus incontroláveis desejos. Seu ego exacerbado prevalece sobre o outro e sobre o
grupo no qual, por mais que tente, jamais consegue inserir-se.
Guillermo Carnero (ibidem, p.118) destaca, também, a desenvoltura com que Espronceda trabalha diferentes linguagens como a
neoclássica, a romântica exacerbada ou coloquial. Essa combinação
resultou na grande importância de Diablo mundo para a evolução da
poesia espanhola contemporânea, passando por Campoamor e Bécquer até chegar no século XX.
Domingo Ynduráin (1992, p.64) aponta outra novidade em Diablo mundo que se refere à incursão pela literatura de cordel e o recorte
que escolheu, dentro dela, no tratamento do tema andaluz que trata
LEITURAS E RELEITURAS ROMÂNTICAS
119
de “majos” e “guapos”. A inserção desse tipo de literatura no poema
torna-se cada vez mais explícita nos quadros dramáticos presentes
no Canto V, ambientados no interior de uma taverna no bairro de
Lavapiés. Esta busca pelos temas populares é algo que, para Ynduráin, não se restringe ao Romantismo e pode ser encontrada, mais
recentemente, na obra de um Camilo José Cela.
O poema apresenta, em sua Introdução, um coro de demônios
que vêm perturbar a tranquilidade do ambiente em que se encontrava um poeta que fica transtornado com a profusão de sons que
ouve, como vozes humanas, ruídos de animais e relâmpagos, e que o
faz sentir todo o universo em turbilhão girar ao seu redor. Em meio
a essa confusão, o poeta vê surgir entre as chamas a gigantesca figura
de Lúcifer e, ao mesmo tempo, ouve-se uma voz que canta as ilusões
perdidas e dissemina o gérmen da dúvida, incitando-o a revoltar-se
contra Deus e a pensar nele como uma divindade cruel que abandonou seus filhos às desgraças do mundo.
As ações descritas no Canto I ocorrem à meia-noite, no momento
em que um poeta que lia fecha o livro e começa a refletir acerca da
inutilidade da ciência para desvendar os mistérios da vida e lamentar a efemeridade das coisas e da juventude. Manifesta, ao refletir,
anseios de ser jovem e imortal, mas logo se desilude ao lembrar
um famoso verso de Góngora: “tudo é fumaça, pó e vento”. Nesse
momento, o corpo do ancião é tomado por um súbito cansaço e ele
adormece. A seguir, uma imagem feminina entoa um canto de paz
e lhe beija os lábios, dando a eternidade ao ancião. O velho poeta
sente um leve torpor e logo desperta jovem e cheio de vida.
O Canto II é composto por 44 oitavas reais e foi considerado
por Espronceda (1954, p.99, tradução nossa) como um “desabafo
de meu coração; salte-o aquele que não o leia sem escrúpulo, pois
não está relacionado, de maneira alguma, ao poema”. Esse canto,
de caráter autobiográfico, foi dedicado a Teresa Mancha, que como
mencionamos havia se separado do escritor em 1837, vindo a falecer
em 1839, um ano antes da publicação de Diablo mundo.
No Canto III, o velho ancião desperta transformado no jovem
Adán, sem memória e desprovido de qualquer experiência de
120
MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
convívio em sociedade. Essa personagem acaba ferindo os convencionalismos sociais ao sair nu pelas ruas de Madrid sem imaginar,
em sua ingenuidade de “bom selvagem”, que estava transgredindo
as normas de conduta. A essa atitude inocente a sociedade responde
com repressão e perseguição, conduzindo Adán ao cárcere.
O Canto IV inicia-se com uma sátira à linguagem neoclássica
por meio de uma extensa e enfadonha descrição de um amanhecer.
Enfatiza o cárcere como a primeira escola de Adán, que tem como
tutor o tio Lucas, pai de Salada, a mulher que lhe acende as chamas
do desejo e o desperta para a experiência do primeiro amor. Ela consegue libertar Adán da prisão e este sai repleto dos ensinamentos de
tio Lucas acerca de como superar os obstáculos da vida fugindo do
sistema, ou melhor, pelas vias informais.
O Canto V possui uma estrutura diferenciada em relação aos
anteriores porque insere o leitor na taverna de Lavapiés, ambiente
dominado pela classe marginalizada dos ciganos e sua linguagem
repleta de jargão. Além disso, possui uma estrutura dramática que
se manifesta na profusão de falas dos frequentadores da taverna e no
tenso diálogo entre uma Salada apaixonada e um Adán indiferente,
que almeja apenas ascender socialmente ao ser tocado pela ambição
de viver como os ricos da corte. O segundo quadro dramático desse
canto apresenta a continuidade do diálogo entre os dois amantes, na
casa de Salada, onde Adán desperta de um sonho cheio de ambições
e logo decide partir em busca de riquezas por meios ilícitos. Movido
apenas pela ânsia de riquezas, ele abandona Salada, que se derrama
em lágrimas e lamentações, e entra para uma quadrilha de bandidos
dispostos a roubar a casa de uma nobre senhora.
O Canto VI apresenta Adán junto ao bando de ladrões roubando
a casa de uma nobre. No entanto, enquanto os outros se apoderam
dos objetos de valor, Adán se distrai admirando sua própria imagem
em um espelho e observa curioso um relógio. Ao perceber que a dama corria perigo, Adán coloca-se em sua defesa e afasta-se do bando,
mas devido aos gritos e à mobilização de pessoas no local, ele decide
fugir para proteger-se. Na próxima cena Adán surge caminhando
pelas ruas de Madrid e decide entrar em uma casa de prostituição.
LEITURAS E RELEITURAS ROMÂNTICAS
121
Ali, depara com uma mãe desesperada diante do cadáver da filha
de quinze anos. O herói tenta, em vão, consolar a pobre mulher
acreditando que pudesse reverter aquela situação irreversível. Ela se
comove com o gesto solidário de Adán mas o toma por louco.
O Canto VII é composto por dois fragmentos que foram publicados após a morte de Espronceda, em 1853, por Miguel de los Santos
Álvarez no Semanario Pintoresco Español. Eles versam sobre a lamentação da mãe do canto anterior. Além dos fragmentos do Canto
VII, há um episódio intitulado “El ángel y el poeta”, que apareceu
no número 1 de El Iris, de 7 de fevereiro de 1841.
Segundo Guillermo Carnero (1999, p.114), esse episódio pode
ser procedente de uma redação anterior à Introdução ou destinado
à ampliação desta, e apresenta o poeta como uma divindade que se
sente capaz de exceder a si mesma e atingir toda a glória e o saber que
almeja. Os desejos do poeta são lidos por um anjo que o encara como
descendente da linhagem de Caim. Essa colocação o poeta contesta
dizendo que suas inquietações e lamentos são provenientes de uma
dor universal.
Já o drama de Álvares de Azevedo inicia-se em uma estalagem
quando Macário, um jovem estudante de vinte anos, conversa com
um desconhecido. Os dois falam sobre poesia, mulheres, amor e outros
anseios. Macário é um estudante devasso e descrente que anseia conhecer o amor. Após longa conversa, o desconhecido apresenta-se como
o diabo e convida Macário para uma viagem na garupa de seu burro.
Satã faz uma descrição mórbida e devassa da cidade de São Paulo
e Macário mostra-se entusiasmado por conhecê-la, sobretudo as
mulheres. O diabo é irônico e zomba do entusiasmo de Macário:
“Tá! Tá! Tá – Que ladainha! Parece que já estás enamorado, meu
Dom Quixote, antes de ver as Dulcinéas!” (Azevedo, 2000, p.525).
Macário deseja desfrutar, em São Paulo, de uma vida devassa,
mas Satã o adverte dos perigos aos quais o jovem estará exposto:
“Bafurinheiras de infâmia dão em troca do gozo o veneno da sífilis”
(ibidem, p.526).
Os dois param para comer e Macário duvida por um instante de
se seu companheiro é, de fato, o diabo. Eles bebem vinho, fumam
122
MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
charutos e conversam sobre temas metafísicos. Macário aproveita
para revelar a Satã uma história que o impressionou: trata-se de uma
vagabunda que o levou a um casebre e com a qual ele sentiu estranhas
sensações ao tocar-lhe o corpo amolecido. No outro dia, quando retornou à casa da mulher com quem dormira, ficou sabendo que ela
havia morrido na mesma noite em que estiveram juntos. Satã aproveita a história de Macário para comentar a face obscura da vida, como a
morte, dizendo que é possível renascer dela como um homem novo.
Na cena seguinte, Satã convida Macário para ir ao cemitério e este
lhe pergunta se ele lhe proporcionará o sono da morte. Satã lhe garante
que o fará sonhar tão profundamente quanto a morte e, assim, leva-o
a um cemitério, deita-o sobre um túmulo e o faz sonhar. Ao despertar,
Macário, impressionado, conta que sonhara com uma mulher nua,
corpo de anjo, lívido, olhos vidrados, lábios brancos, unhas roxeadas
e cabelos loiros com reflexos brancos. Essa mulher apertava cadáveres
contra o peito, tinha todos os apetites lascivos de mulher mas não
podia amar, pois todos que ela tocava se transformavam em gelo.
Enquanto relata o sonho a Satã, este faz com que Macário ouça os gemidos de morte de sua mãe. Esse é um momento tenso entre os dois, e
Macário, enfurecido com Satã, pede que ele desapareça.
Após um longo contato com Satã, Macário acorda na estalagem e
encontra sua ceia intacta, as botas e o ponche, tudo como havia deixado e, por isso, pensa que tudo o que lhe ocorrera não tinha passado
de um sonho. Contudo, a taverneira mostra-lhe um pé de cabra e um
trilho queimado e diz que o diabo passou por ali.
O segundo episódio tem como cenário a Itália e Macário depara,
a princípio, com uma mulher louca que embala o filho morto, fato
que o leva a conclusão de que a ventura talvez esteja na insanidade. Após essa cena, Macário encontra Penseroso que, apaixonado,
medita observando a beleza da natureza e a riqueza do homem do
campo. Os dois conversam e Penseroso conta-lhe que sonhava com
o amor, enquanto Macário lhe responde que morrerá. Macário desfalece conversando com Penseroso e Satã aparece novamente para
carregá-lo. Ao perceber sua melancolia, Satã conta-lhe histórias de
amor para fazê-lo dormir e sai em busca de outras almas.
LEITURAS E RELEITURAS ROMÂNTICAS
123
Macário encontra Penseroso novamente e este volta a lamentar
o amor. Comovido, Macário tenta reanimá-lo, convidando-o para
uma orgia, mas Penseroso se recusa e diz que chegou a pensar em
suicídio. Penseroso lê um livro que Macário lhe empresta e contamina-se de ceticismo. Os dois encontram-se e conversam sobre poesia,
ceticismo e Deus. Penseroso, enfraquecido pelo ceticismo de Macário, decide morrer envenenado e, com ele, toda crença em Deus, na
poesia americana e no amor.
Na última cena, Satã leva Macário a uma orgia e os dois, olhando
pela janela de uma taverna, avistam cinco homens ébrios e mulheres
desgrenhadas, lívidas e vermelhas.
Numa época em que se cultuava a natureza tropical e o índio
como elementos identificadores do nacional, Álvares de Azevedo é
considerado uma voz dissonante pela maioria dos críticos oitocentistas, sobretudo devido ao diálogo que travou com poetas franceses,
ingleses ou alemães, não se prendendo exclusivamente aos moldes
clássicos vigentes e à imitação de poetas portugueses. Em razão de
seu cosmopolitismo e da influência do byronismo em sua prosa,
quase sempre ambientada em países estrangeiros, havia uma tendência na crítica do século XIX em ressaltar Álvares de Azevedo
apenas enquanto poeta lírico.
Ao acusar Álvares de Azevedo de “zombar da poesia americana”
em Macário, Joaquim Norberto de Sousa e Silva (apud Azevedo,
1873, p.59) apontava um dos aspectos que mais chamaria a atenção da crítica moderna na obra do poeta: a crítica que ele dirige aos
seus contemporâneos em razão da adesão aos ideais indianistas e
de exaltação da natureza como modelos exclusivos para a literatura
nacional. Embora prevalecessem as opiniões conservadoras que
rotulavam Álvares de Azevedo de poeta antinacional, Machado de
Assis ergueu-se para defender opinião oposta em seu artigo intitulado “Instinto de nacionalidade”, no qual assinala a imaturidade da
crítica brasileira ao considerar como nacionais somente os poetas
que versavam sobre temas locais, em especial o índio e a natureza.
Com o tempo, mudou-se o foco das preocupações críticas, e na
década de 1930, principalmente após a análise psicobiográfica que
124
MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
Mário de Andrade realizou da obra de Álvares de Azevedo em seu
ensaio “Amor e medo”, no qual a obra Macário, antes ofuscada
pela valorização exclusivista da poética, é considerada “genial” pelo
escritor modernista, pois nela explicita-se uma constante alusão às
figuras da mãe e da irmã. Essas figuras iam ao encontro das preocupações psicológicas de Andrade em relação ao poeta, pois a frequência com que essas imagens aparecem significa, para ele, uma espécie
de “fobia sexual” em Álvares de Azevedo.
Na Recepção crítica de Manuel Antônio Álvares de Azevedo (Pandolfi, 2000, p.56), tivemos a oportunidade de observar que “a partir
de 70, quando os estudos literários escritos pelo poeta passam a despertar o interesse dos críticos, a obra Macário também é retomada”.
A propósito, é importante salientar que desde 1959, em sua obra
Formação da Literatura Brasileira, Antonio Candido (v.2, p.190) já
apontava em Macário uma espécie de “suma literária do nosso poeta”, em que ele “exprime a sua teoria estética e a função que atribuía
à literatura, bem como a teoria erótica e a função que podemos, na
sua obra, atribuir ao amor como fuga e aspiração”.
No Prefácio de Macário, intitulado “Puff”, o próprio autor
menciona que seu drama “é apenas uma inspiração confusa – rápida – que realizei às pressas como um pintor febril e trêmulo”
(Azevedo, 2000, p.509). Assinala, assim, que seu drama não se
destina à cena e esse fato se revela na própria organização que ele
deu à estrutura do drama, dividido em dois episódios. O primeiro
é considerado mais linear, com começo, meio e fim, ao passo que o
segundo é bastante criticado pela composição confusa do enredo e
pelo seu aspecto inconcluso. Segundo Prado (1999, p.49),
“a peça” ou “fragmento de peça”, como a chamou, desmente todo
o equilíbrio clássico que Álvares de Azevedo expressa no Prefácio
“Puff”, onde menciona “alguma coisa entre o teatro inglês, o teatro
espanhol e o teatro grego”, casando, no mesmo texto, “a força das
paixões de Shakespeare [...], a imaginação de Calderón de La Barca
e Lope de Vega, e a simplicidade de Ésquilo e Eurípides”.
LEITURAS E RELEITURAS ROMÂNTICAS
125
Ao contrário disso, ressalta em Macário toda a indisciplina romântica que levou Antonio Candido (apud Azevedo, 2000, p.921)
a defini-la como “mistura de teatro, narração dialogada e diário
íntimo; no conjunto, e como estrutura, sem pé nem cabeça, mas
desprendendo, sobretudo na primeira parte, irresistível fascínio”.
As matrizes geradoras desse drama, apontadas pelo próprio
autor em seu prefácio, são as obras de Goethe, sobretudo o Fausto,
Shakespeare, Byron, Musset e Hoffmann. A esse respeito, em que
Musset é quase sempre citado como inspirador direto, vale destacar
o estudo de Faria (1970, p.115) que assinala a peça Aldo le Rimeur,
de George Sand, como uma nova fonte na qual Álvares de Azevedo
teria se inspirado ao escrever Macário. De acordo com a estudiosa,
a peça, publicada em 1833 na Revue des Deux Mondes, uma das
revistas mais importantes da França na época do Romantismo, teve
alguns trechos traduzidos por Álvares de Azevedo e comentados em
um trabalho de crítica. Maria Alice Faria menciona que Álvares de
Azevedo teria tirado dessa peça de Sand alguns aspectos da figura
feminina que tem pontos de contato com a noiva de Penseroso, além
de frases e situações que transcreveu com poucas diferenças.
No tocante ao mito fáustico, tanto Espronceda quanto Álvares
de Azevedo foram beber nas mesmas fontes literárias, sobretudo em
Goethe e Byron. Apesar da afinidade temática, seus autores procuram desenvolver, cada um ao seu modo, uma recriação do mito a
partir de elementos comuns à tradição fáustica e, ao mesmo tempo,
buscam inserir novas formas de representação de seus heróis de
acordo com as preocupações locais e peculiares a cada romantismo
e a cada autor.
O mito fáustico, trabalhado em Diablo mundo, revela-se na figura de um velho poeta que consegue despojar-se de sua memória,
receptáculo de experiências e desilusões, passando pela morte e renascendo na forma do jovem, desmemoriado e imortal Adán, nome
que alude ao homem primordial, “símbolo do pecado original, da
perversão do espírito, o uso absurdo da liberdade, a recusa a toda
dependência” (Chevalier, 1991, p.12). Em vez dessas características, Espronceda procura ressaltar, em seu Adán, a bondade e a
126
MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
ingenuidade, virtudes nas quais a crítica esproncediana enxerga as
teorias rousseaunianas do “bom selvagem”, a fim de demonstrar
que “a missão de Adán é descobrir, com a inocência de seu olhar, o
mal e a organização da sociedade” (Carnero, 1999, p.122, tradução
nossa). Verifica-se, assim, que o mito fáustico em Espronceda já
nasce forjado em harmonia com os ideais revolucionários do poeta,
que sempre acabam deixando em sua criação artística a marca indelével da crítica social:
Y aunque es su lengua rústica
y profana Y es su ademán de
jaque y pendenciero, Pura se
guarda aún su alma temprana
Como la luz del manantial
lucero,
Bate gentil, cual
mariposa ufana, El
corazón sus alas
placentero,
Que abrillantan aún los
polvos de oro De inocencia y
virtud breve tesoro.
Ni leyes sabe, ni conoce el
mundo, Sólo a su instinto
generoso atiende, Y aun
abismo de crímenes
inmundo
Cruza y el crimen por virtud
aprende. Y aquel pecho que es
noble sin segundo Y que el
valor y el entusiasmo
enciende Aplica al crimen la
virtud que alienta
Y puro es si criminal se ostenta. (Espronceda, 1954, p.117)
LEITURAS E RELEITURAS ROMÂNTICAS
127
A estrofe acima remete à estada de Adán no cárcere, lugar em
que desperta de sua inocência e conhece o dialeto “agitanado”
dos marginais, tornando-se um “jaque” e aprendendo a manejar o
“cuchillo”. Esse episódio tem a qualidade de contrastar não apenas a
iniquidade da sociedade com a inocência de Adán, como também a
superioridade inata da personagem em relação aos demais homens
comuns: “Y aunque además de jaque y pendenciero,/ Pura se guarda
su alma temprana,/ Como la luz del manantial lucero”. Apesar de
conviver com essa comunidade e aprender os seus valores, Adán
consegue manter inabaláveis as suas virtudes e esse fato lhe confere
certa superioridade em relação aos demais, típica da altivez e da
nobre linhagem que caracterizam o herói byroniano. Contudo, a
nobre linhagem de Adán, criado diretamente das mãos de Deus, não
anula a história de seu nome, no qual já se encontra implícita a ideia
de fatalidade, que também se manifesta, de maneira acentuada, na
obra de Byron.
A simbologia que está por trás do nome “Adán”, “Adam” ou
“Adão” já havia sido explicitada, segundo Jung, nos textos do século
III, atribuídos a Zózimo. Esses textos referem-se à letra A como
ascenso, como o ar; o D significa descenso, aquilo que declina; o M
indica o que está no meio dos corpos, o fogo mediador que faz amadurecer. Mais curiosa, ainda, é a alusão que o texto de Zózimo (apud
Jung, 1994, p.378) faz à presença do duplo em Adão:
O Adam carnal, em sua formação visível, chama-se Thoyth; o
homem espiritual que nele habita, contudo, tem um nome verdadeiro e outro pelo qual é chamado. O nome verdadeiro ainda não o
conheço. Somente Nikotheos, aquele que não pode ser encontrado,
o sabe. O nome é luz [...].
De acordo com a simbologia do nome “Adam” apresentada por
Zózimo, podemos inferir que o destino de Adán é errar, legando a
seus descendentes a maldição oriunda de sua transgressão, tal como
nos adverte o narrador de Diablo mundo:
128
MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
¿Quién dudará que el nombre es un
tormento? Todo el tiempo pasado
Va para siempre atado
Al nombre que conserva el
pensamiento Y trae a la
memoria
Un solo nombre, una doliente
historia. Hilo tal vez de la
madeja suelto;
En el nombre va envuelto
El despecho, el placer, las
ilusiones De cien
generaciones
Que su historia acabaron
Y cuyos nombres sólo nos
quedaron. Clavo de donde
cuelgan nuestras vidas En mil
jirones pálidos rompidas,
Que traen a la memoria
Cual rota enseña la pasada gloria:
Porque el nombre es el hombre
Y es su primer fatalidad su nombre,
Y en él encarna a su
existencia unido. Y en su
inmortal espíritu se infunde,
Y en su ser se confunde,
Y arranca su memoria
del olvido. Y viviendo de
ajena y propia vida,
Alma de los que fueron,
desprendida Juntase el
alma del que vive y lleva
Cual parte de su vida en su
memoria
La ajena vida y la pasada historia. (Espronceda, 1954, p.104)
LEITURAS E RELEITURAS ROMÂNTICAS
129
O desejo do poeta velho do início de Diablo mundo era despir-se
da experiência, o que simbolicamente não se cumpre ao renascer
como Adán, que remete à ideia de “arquétipo do pai e do ancestral:
é a imagem do ancião, de insondável sabedoria, proveniente de uma
longa e dolorosa experiência” (Jung apud Chevalier, 1991, p.13).
O Adão primordial é a representação de todos os males na humanidade, aquele que simboliza a morte. No entanto, conforme
a doutrina cristã, surge um novo Adão na figura de Jesus Cristo,
que consegue realizar a fusão entre a esfera terrena, da qual nasce o
primeiro, e a esfera celeste, da qual vem o segundo, resultando no
“homem divinizado”. Esse segundo Adão é o que vem dinamizar
com o primeiro e “simboliza, portanto, tudo quanto havia de positivo no primeiro, e o eleva ao divino absoluto; simboliza a antítese de
tudo o que ele tinha de negativo, substituindo a certeza da morte pela
ressurreição” (ibidem, p.14).
Ao nascer puro e imortal, o Adán de Espronceda reúne as características do homem divinizado, representado pelo segundo Adão/
Jesus Cristo, e as fraquezas do primeiro Adão que, seduzido pela
serpente do mal, tenta igualar-se a Deus e é punido severamente.
Desse modo, a ausência da dupla homem/diabo, que caracteriza o
mito fáustico, não anula, no poema de Espronceda, o conflito com
o duplo que habita o interior de Adán, tal como nos revelam as suas
atitudes e a simbologia de seu nome, ainda que Espronceda tenha
tentado demonstrar, por meio da vestimenta rousseauniana atribuída a seu herói, que o diabo apenas se encontra no mundo.
Já a caracterização do herói fáustico de Álvares de Azevedo recebe uma roupagem bastante distinta daquela com que Espronceda
cobriu o seu Adán. Pode-se dizer que Macário é o oposto de Adán na
medida em que apresenta, desde o início, sua alma corrompida. Assim, ao conhecer o diabo, Macário orgulha-se de haver encontrado
seu parceiro ideal:
Macário:
Boa noite, Satã. (Deita-se. O desconhecido sai.) O diabo! Uma
boa fortuna! Há dez anos que eu ando para encontrar esse patife!
130
MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
Desta vez agarrei-o pela cauda! A maior desgraça deste mundo é ser
Fausto sem Mefistófeles... Olá, Satã! (Azevedo, 2000, p.522)
O mito fáustico, em sua versão alvareziana, também não tem
início com o ritual morte/ressurreição que caracteriza o confronto
com o duplo nos românticos. No Fausto de Goethe, o renascimento
de um Fausto decidido a sair de seu confinamento intelectual e viver as experiências do homem comum é simbolizado, no início do
drama, quando ele sai às ruas com seu assistente Wagner, num dia
de Páscoa, e depara com o demônio em forma de cão. A morte do
Fausto velho, apenas insinuada em Goethe, ocorre, de fato, em Diablo mundo. Na obra de Goethe, o desejo de Fausto resulta no pacto
com o diabo, mas em Espronceda não há sequer um pacto, embora
exista o desejo fáustico que é atendido por meio do sobrenatural e
que acarreta na morte do poeta e em seu renascimento como Adán.
Já em Macário não deparamos com um desejo de mudança
manifestado, inicialmente, pelo herói, que em vez de experiente e
maduro, surge na figura de um jovem e cético estudante, conduzido
pelo demônio e persuadido por este a experimentar a mudança. Por
essa razão, o ritual inicial de morte/ressurreição, simbolizado no
Fausto de Goethe e em Diablo mundo, apenas se manifesta no segundo episódio do drama de Álvares de Azevedo, quando Satã pede que
Macário se deite no túmulo para sonhar.
Em todas as obras, porém, o herói fáustico apresenta-se, inicialmente, como um homem desiludido com algo, um espírito
inquieto, um intelectual insatisfeito, sempre propenso a uma
busca, ainda que inconsciente como em Macário, seja pelo conhecimento, pelos prazeres, seja pelo amor e, sobretudo, pela totalidade
e equilíbrio de seu próprio “eu”. Daí o inevitável motivo da viagem
que sempre ocorre, na tradição do mito, a partir da manifestação do
desejo fáustico.
Em Macário, a grande novidade introduzida por Álvares de Azevedo consiste em percorrer o caminho inverso ao mito na medida em
que a manifestação do desejo parte, primeiramente, de Satã. Assim,
ao observar Macário contemplando a natureza, o diabo vê nele uma
LEITURAS E RELEITURAS ROMÂNTICAS
131
propensão à poesia e, em suas conversas com o herói, Satã descreve,
romanticamente, esse momento:
[...] Era na serra, no alto da serra. A tarde caía, os vapores azulados
do horizonte se escureciam. Um vento frio sacudia as folhas da montanha e vós contempláveis a tarde que caía. Além, nesse horizonte, o
mar como uma linha azul orlada de escuma e de areia – e no vale, como bando de gaivotas brancas sentadas num paul a cidade que algumas horas antes tínheis deixado. Daí vossos olhares se recolhiam aos
arvoredos que vos rodeavam, ao precipício cheio de flores azuladas
e vermelhas das trepadeiras, às torrentes que mugiam no fundo do
abismo, e defronte víeis aquela cachoeira imensa que espedaça suas
águas amareladas, numa chuva de escuma, nos rochedos negros do
seu leito. E olháveis tudo isso com um ar perfeitamente romântico.
Sois poeta? (ibidem, p.513)
Macário contesta a pergunta de Satã de forma brusca e insensível:
“Enganai-vos. Minha mula estava cansada. Sentei-me ali para descansá-la” (ibidem, p.513). Com esse propósito, Álvares de Azevedo
apresenta-nos um herói fáustico descrente e insensível à natureza,
mas muito interessado nas questões prosaicas de seu cotidiano como
o charuto, o vinho, as mulheres, o spleen. Assim, Satã vê em Macário
uma presa fácil para a realização de seu desejo que é transformá-lo
em um poeta romântico à moda byroniana: “Sois triste, moço... Palavra, que eu desejaria ver uma poesia vossa” (ibidem, p.517). Essa é
a primeira vez que o verbo desejar aparece no drama e, mesmo assim,
para expressar o anseio do diabo e não do herói fáustico. Este último
somente manifestará o seu desejo quando Satã pergunta-lhe o tipo
de mulher ideal para os seus amores:
Eu a quereria virgem n’alma como no corpo. Quereria que ela
nunca tivesse sentido a menor emoção por ninguém. Nem por um
primo, nem por um irmão... Que Deus a tivesse criado adormecida
n’alma até ver-me, como aquelas princesas encantadas dos contos
que uma fada adormecera por cem anos. Quereria que um anjo a
132
MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
cobrisse sempre com seu véu, e a banhasse todas as noites do seu
óleo divino para guardá-la santa! (ibidem, p.519-20)
Após a manifestação do desejo, Satã e Macário sentem-se motivados a partir para uma viagem e, então, montados num burro, eles
se dirigem à saturnal São Paulo. A viagem constitui um tópico essencial na estrutura do mito fáustico e “exprime um desejo profundo de
mudança interior, uma necessidade de experiências novas, mais do
que de um deslocamento físico” (Chevalier, 1991, p.952).
Ian Watt (1997, p.131), ao analisar o estilo de vida itinerante
adotado por Dom Quixote, Don Juan e Fausto, conclui que esses
heróis “são mais do que viajantes contumazes: são, em boa medida,
nômades solitários”.
Em Diablo mundo, a atitude de Adán em relação a Salada chega
a ser impiedosa ao se acentuar nele o desejo de ascender à nobreza.
Na medida em que o protagonista vai tomando consciência de seu
desejo, todas as suas relações tornam-se insignificantes diante de
seu objetivo, e não há nada que o impeça de partir para a sua viagem:
Mira, Salada, no sé
Si la acción que se
medita Es buena o
mala, ni entiendo
Qué es mal ni bien
todavía. Yo allá
voy. Cualquiera sea
El hecho, dicha o
desdicha Nos
traiga, yo he seguir
La inspiración que
me anima. ¿Acaso
he nacido yo
Para vivir en
continua
Agitación? ¿No
LEITURAS E RELEITURAS ROMÂNTICAS
133
podré Seguir a mi
fantasía Jamás?
No, Salada mía;
Glorias y triunfos
me pinta Mi
deseo; la fortuna
A mi anhelo
campo brinda
Donde cumplirlo.
Yo quiero Ver,
palpar cuanto
imagina
Mi mente; de una
ojeada Ver todo el
mundo que gira A
mi alrededor. Allí
luego Tú vendrás,
donde yo elija Un
sitio para los dos.
¡Oh! Si me
amaras, tú misma
Me llevarías. –¿Y
quién Habrá
jamás que me
impida Volar
donde yo desee?
¡Fuera injusto! Y
romperían Mis
manos, sí, las
cadenas
Que aprisionaran mis iras. (Espronceda, 1954, p.138)
A viagem de Adán em busca de sua ascensão social inicia-se no
Canto V e somente lhe parece possível tendo como ponto de partida o mundo da criminalidade, cujos ensinamentos ele adquiriu
134
MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
na prisão, sua primeira escola, junto ao bandido “tio Lucas”, seu
primeiro professor. No entanto, ao deparar com os objetos da casa
da nobre senhora que Adán e seu bando decidem assaltar, o protagonista esquece completamente de concluir seu intento. Dentre os
objetos que despertam a atenção de Adán destacam-se o relógio e
o espelho como as peças que excitam o herói a uma viagem ao interior de si e, consequentemente, ao confronto com seu duplo. Nesse
Canto, evidencia-se a falta de espírito de grupo em Adán e sua
indiferença em relação ao outro, ressaltada no momento em que os
assaltantes se assustam com o ruído de um relógio encontrado pelo
protagonista, ao passo que ele, encantado pelo objeto, diverte-se
como uma criança.
O confronto com seu duplo inicia-se com a introspecção que
lhe causa o relógio e ganha contornos mais explícitos quando Adán
defronta-se com duas pinturas, uma virgem e um fidalgo. Essas
imagens aludem ao duplo do herói que se constitui, por um lado, na
esfera espiritual e sublime, representada pela figura feminina, e, por
outro lado, na esfera terrena e voltada aos prazeres da carne, representada pelo fidalgo. Dessas figuras, a que mais incômodo lhe causa
é a do fidalgo, uma vez que ela desencadeia um processo de identificação com seu “eu” mais aviltado, a esfera terrena que alimenta o
desejo de pertencer à classe de prestígio e gozar de reconhecimento
social. Envolvido pela imagem do fidalgo, o herói decide tocá-la:
“Tocóle en fin e imaginó se luego / Que sombra nada más la imagen
era, / Y al irse despechado y con despego, / Lanzó al retrato una mirada fiera” (ibidem, p.141). É notória aqui a tomada de consciência
de Adán ao observar o retrato com desconfiança, vendo nele apenas
uma sombra. Assim, a imagem do fidalgo nada mais é que a sombra
da sociedade, símbolo da aparência e do prestígio social, que ele teme
e almeja ao mesmo tempo.
Apesar da consciência do duplo que o retrato desencadeia, ou
seja, o “eu” da essência e o “eu” de aparência, prevalece a alienação
deste último, que se expressa na cena narcísica em que o herói admira absorto a sua imagem refletida no espelho:
LEITURAS E RELEITURAS ROMÂNTICAS
135
Y volviendo la espalda vió
arrogante Un mancebo galán
que hacia él venía, De
negros ojos y gentil
semblante, Que al suyo
reparó se parecía;
Y sonrióse, y vió con
gusto extraño Su figura
airosísima allí dentro,
Que tan terso cristal de aquel
tamaño Nunca hasta entonces la
copió en su centro. Y alegre el
corazón miróse al punto,
De sí agradado, y reparó en
su traje, Y volviendo al
retrato cejijunto, Luego lo
comparó con su ropaje.
Y parecióle que mejor cayera
Aquel vestido en él que el
que tenía, Y mejor que su
daga considera
Aquella larga espada que ceñía. (ibidem, p.141)
Adán não consegue, portanto, anular seu “eu” alienado, que se
manifesta no desejo deste de igualar-se ao nobre retratado na pintura. Assim, por meio de seu herói fáustico, Espronceda realiza a crítica social aos valores burgueses que acabam reproduzindo indivíduos
semelhantes a Narciso, vivendo sob o culto da aparência e voltados
exclusivamente para si. Adán, ao submeter-se aos valores dessa sociedade, toma a sombra, ou seja, a aparência, como verdade. Dessa
maneira, torna-se difícil manter intacta sua alma pura na medida em
que lhe parece quase impossível renunciar à sombra vivendo entre
os homens.
136
MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
Do confronto com o duplo, estimulado pelos símbolos do mundo
objetivo com os quais Adán se defronta no Canto V, segue-se um
progresso significativo no processo de desalienação do herói indo
desaguar em seu encontro, no Canto VI, com a morte e com a figura
da mãe, símbolo de fecundidade e regeneração. Esse é o último canto
em que Espronceda nos mostra a viagem interior e exterior de seu
herói. Segundo Jung, a viagem “indica uma insatisfação que leva à
busca e à descoberta de novos horizontes” e significa, segundo ele,
uma busca pela mãe perdida (apud Chevalier, 1991, p.952). Nota-se, no Canto VI, que aquele Adán, indiferente à dor do outro e que
abandona Salada, transforma-se em um Adán sentimental e comovido com o sofrimento da mãe de uma prostituta que vela o cadáver de
sua filha. A morte que encerra a viagem de Adán representa, assim,
seu segundo nascimento, no qual se verifica uma expressiva mudança de valores no herói:
“¿Dónde, decidme, encontraré
yo fuego Que haga a esos ojos
recobrar su ardor? ¿Dónde las
aguas cuyo fértil riego Levante
fresca la marchita flor?”
Dijo así Adán con
entusiasmo tanto, Con tan
profunda fe, con tanto celo,
Que la vieja, a pesar de su
quebranto, Alzó a él los ojos
con curioso anhelo.
“–¡Pobre mozo, delira!
Si comprar esa vida pudiera.” (Espronceda, 1954, p.145)
O sofrimento do outro diante da tragédia da morte desperta
o espírito solidário em Adán e o faz refletir sobre a alienação e a
fragilidade dos valores que buscava no mundo ao ver que nada,
nem mesmo todas as riquezas juntas poderiam reverter aquele
LEITURAS E RELEITURAS ROMÂNTICAS
137
sofrido quadro que acabava de presenciar e diante do qual todos
se igualam.
Na temática faustiana, os heróis são, sobretudo, homens de ação,
movimentando-se a todo momento e estabelecendo todos os acordos possíveis em prol da satisfação dos desejos que os dominam. O
mecanismo condutor dessa ação se deve, tradicionalmente, à figura
do Diabo. Contudo, como ele não se constitui em companheiro de
carne e osso nas andanças de Adán, a chave para entender a presença diabólica na obra de Espronceda começa na interpretação de
seu próprio título. Para chegar ao sublime, o homem deverá viver
a tensão entre as duas esferas que Goethe assinalou de “choque dos
contrários”:
Tú me engendraste,
mortal, Y hasta me
distes un nombre;
Pusiste en mi tus
tormentos, En mi
alma tus rencores,
En mi mente tu
ansiedad, En mi
pecho tus
furores, En mi
labio tus
blasfemias E
impotentes
maldiciones; Me
erigiste en tu
verdugo, Me
tributaste
temores,
Y entre Dios y
yo partiste El
imperio de los
orbes. Y yo soy
138
MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
parte de ti,
Soy ese espíritu
insomne Que te
excita y te levanta
De tu nada a otras
regiones, Con
pensamientos de
ángel,
Con mezquindades de hombre. (ibidem, p.87)
Essa caracterização de Lúcifer, colocando-o como parte do próprio homem, dispensará em sua obra a famosa dupla Homem/Diabo
ou, no caso, Fausto/Mefistófeles. Assim, o choque dos contrários,
do sensível com o suprassensível, dar-se-á no interior da própria
personagem Adán, à semelhança do que já ocorrera com seu herói
byroniano Sancho Saldaña. Nesse sentido, o sentimento de poder
que é oferecido por Mefistófeles a Fausto e por Satã a Macário surge
em Adán como um instinto que brota do interior do protagonista
e que nos faz imaginar um demônio invisível influenciando suas
ações. O choque dos contrários em Diablo mundo revela-se, então,
no interior da própria personagem e no seu embate com o mundo.
Em Macário, o drama fáustico desenvolve-se por meio de uma
tríade: Satã, Macário e Penseroso. Satã representa o tutor, semelhante ao que Henderson apontou no ciclo Red Horn, e que desempenha
uma função importante no sentido de contribuir para que o herói supere suas limitações humanas. O choque dos contrários, que caracteriza o duplo, não ocorre no interior da personagem, como acontece
com Adán, mas se desdobra em dois personagens, Macário e Penseroso, que representam as “duas faces da mesma moeda”, de acordo
com a teoria estética adotada por Álvares de Azevedo na composição
de sua obra. Penseroso desempenha o papel de crente, nacionalista,
sentimental, e Macário, o byroniano, ateu, desregrado e universal.
Desde os primeiros diálogos entre Macário e Satã evidencia-se,
na psicologia do herói, o seu conflito com a figura feminina, fruto de
seu ceticismo:
LEITURAS E RELEITURAS ROMÂNTICAS
139
Macário:
Uma mulher! Todas elas são assim. As que não são assim por
fora o são por dentro. Algumas em falta de cabelos na cabeça os têm
no coração. As mulheres são como as espadas, às vezes a bainha é de
oiro e de esmalte, e a folha é ferrugenta.
O Desconhecido:
Falas como um descrido, como um saciado E contudo ainda tens
os beiços de criança! Quantos seios de mulher beijaste além do seio
de tua ama de leite? Quantos lábios além dos de tua irmã? (Azevedo,
2000, p.518)
Nesse primeiro contato com Satã, em que ele ainda é mencionado como desconhecido, surge em sua fala a menção ao conflito
que Mário de Andrade chamou de “fobia sexual” em Álvares de
Azevedo. A conclusão de Mário de Andrade deriva da constante
presença, na obra do poeta romântico, de imagens que sugerem
uma fixação na figura da mãe e da irmã. Nesse ensaio, o escritor
modernista aponta um tema bastante recorrente em toda a obra
do poeta, o tema do amor e do medo. Em sua análise do amor e da
caracterização dos tipos femininos, Mário de Andrade (apud Azevedo, 2000, p.57) conclui que “todas as mulheres que vêm na obra
de Álvares de Azevedo, se não consaguineamente assexuadas (mãe,
irmã), ou são virgens de quinze anos ou prostitutas, isto é, intangíveis ou desprezíveis”.
O artigo do crítico, no entanto, foi amplamente contestado pelos
estudiosos de Álvares de Azevedo, pois como assinala Alves (1998,
p.46), “juízos de valor como esses impedem que o crítico considere
os procedimentos não como fruto da intenção do poeta, mas como
uma suposta ausência de coerência organizativa presidindo a criação
artística”. Longe de sugerir qualquer patologia no homem Álvares
de Azevedo, a referência ao ensaio de Mário de Andrade nos interessa para apontar o tema do amor e do medo que, independente da
abordagem utilizada, consiste em um dos primeiros estudos sobre
esse tema na obra dos românticos da geração de Azevedo.
140
MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
O tema do amor e do medo tem uma importância bastante significativa em Macário para a compreensão da psicologia do herói
fáustico, uma vez que ele é responsável por desencadear o conflito
em uma das facetas de seu duplo, Penseroso. Não deixa de ser significativo o fato de Penseroso, apaixonado no início, deixar de sê-lo
após o contato com Macário, que o impregna de ceticismo e o leva ao
suicídio. O medo de amar é visivelmente manifestado por Penseroso
na cena em que ele, ao perceber que o amor está prestes a ser consumado com a italiana, decide fugir:
A italiana:
Por que o dizeis? Não vos prometi a minha mão? Por quem se
espera no altar? É por mim? Não, Penseroso, é pela vontade de teu
pai... Não te dei eu minha alma, assim como te darei meu corpo?
Penseroso:
Ó virgem! se acaso um só momento de tua vida tu consagraste
um suspiro ao desgraçado, se um só momento tu o amaste, – ah! que
Deus em paga desse instante te dê um infinito de ventura! (Azevedo,
2000, p.558)
A impossibilidade da realização amorosa entre Penseroso e
sua noiva contribui para prolongar a ideia idealizada do amor,
ou melhor, para a duração da ilusão do amor que se coaduna com
a concepção amorosa do herói fáustico de Álvares de Azevedo.
A ascensão ao infinito é a crença de Penseroso que representa a
fuga do real como uma das partes do código poético dual de Álvares
de Azevedo. A impossibilidade de realização amorosa, que Mário de
Andrade definiu como “medo de amar”, pode ser explicada, segundo a estética romântica, como o mencionado procedimento
artístico que Goethe batizou de “eterno feminino” e que “implica
uma ideia de transcendência, de elevação do espírito ao reino do
Absoluto” (Alves, 1998, p.83). Assim, diante da impossibilidade
de vivenciar esse ideal na realidade, o herói romântico o transporta
para a morte.
LEITURAS E RELEITURAS ROMÂNTICAS
141
O eterno feminino como aspiração do herói fáustico rumo ao
infinito é simbolizado pela figura de Helena no Fausto de Goethe,
por Astarté em Manfred de Byron e pela mulher etérea dos sonhos
de Macário. Nessas três obras podemos encontrar episódios semelhantes que refletem esse ideal. É o caso, por exemplo, da grande
explosão que ocorre quando Fausto tenta abraçar a figura de Helena
no momento em que esta é invocada a aparecer na corte do imperador. Para que o amor pudesse se consumar, Fausto tem que buscar
Helena no reino dos mortos e, mesmo assim, eles têm uma relação
muito efêmera.
Em Manfred, o conde impressiona-se com a imagem de uma bela
mulher enviada pelos espíritos que ele invocou, mas quando tenta
abraçá-la, a figura feminina desaparece. O conde, por sua vez, pede
aos espíritos que lhe tirem a vida e eles lhe enviam a imagem de sua
amada Astarté, que profetiza o fim de suas angústias. Após essa
profecia, o conde morre e esse fato sugere a possibilidade de consumação do amor no reino dos mortos.
No drama de Álvares de Azevedo, Satã propicia a Macário a
fuga da realidade por meio do sonho e, nesse sonho, o herói avista
uma mulher em forma de anjo, com todos os apetites lascivos, mas
que não pode amar, pois todos os que ela toca se gelam. Essa forma
feminina apenas se esfrega lascivamente em cadáveres e está sempre
com um sorriso amargo. Esta mulher, que representa o desejo carnal,
alude à impossibilidade de concretização do amor que, em sua concepção idealizante, não admite a relação sexual.
O medo de amar, tão característico da lírica azevediana, não se
manifesta na obra de Espronceda. Ao contrário, o que caracteriza
sua lírica é a desilusão que procede do amor consumado, bem como
a nostalgia do amor primeiro. O Canto II de Diablo mundo circunscreve um movimento de ascensão e queda que caracteriza o amor,
remetendo a uma constante imagem da lírica esproncediana, a da
“ilusión primera”, que transforma o objeto desejado em algo divino,
“manatial de purísima limpieza”, para depois convertê-lo em “torrente de color sombrio” ou “marchita rosa”. O que deveria ser um canto
ao amor parece soar como um canto à angústia humana em face à
142
MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
efemeridade das coisas, como se o “eu lírico” quisesse manifestar sua
indignação com a passagem do tempo fazendo a apologia da morte,
a única maneira de cessá-lo. A memória, carregada da desilusão do
amor, e o tempo, implacável destruidor das ilusões, transformam-se
nos maiores inimigos do eu lírico, convertendo esse canto na máxima
expressão do par romântico Amor e Morte: “¿Quién, quién pudiera
en infortunio tanto/ Envolver tu desdicha en el olvido,/ Disipar tu
dolor y recogerte/ En su seno de paz? ¡Sólo la muerte!” (Espronceda,
1954, p.101).
O Canto a Teresa é considerado pelo próprio autor como um
desabafo, sem conexão com o restante da obra. Contudo, verifica-se
nesse canto a síntese da trajetória que o herói fáustico percorre no
poema. Este vínculo diz respeito a uma época de inocência na qual
predomina o amor, e a passagem para a experiência, que coincide
com o término do amor. Essa última fase é análoga à peregrinação do
herói que permite a constituição e ampliação de sua visão de mundo.
O “eu lírico” do Canto a Teresa utiliza-se da ironia para distanciar-se criticamente do texto e analisar a passagem da ilusão do
amor à sua desilusão, que correspondem à fase da inocência e da experiência, respectivamente. Em sua análise, o “eu lírico” descobre
que amava a ilusão do amor e não o ser amado, concluindo, em um
tom de sarcástica ironia: “Truéquese en risa mi dolor profundo... /
Que haya un cadáver más, ¡qué importa al mundo!” (ibidem, p.102).
Com esses versos, o “eu lírico” encerra a sua dor por meio do riso
sarcástico, uma forma bastante byroniana de vingar-se da inevitável tragédia humana, e coloca em evidencia um dos pares mais
recorrentes na lírica romântica, o amor e a morte. No canto II de
Diablo mundo, Teresa simboliza o amor degradado, tal como Salada
ou Zoraida, a amante de Sancho Saldaña. Há, portanto, no Canto
a Teresa, a convicção de que a morte consiste na única saída para o
sofrimento dela:
Y tú, feliz, que hallastes en la
muerte Sombra a que
descansar en tu camino,
LEITURAS E RELEITURAS ROMÂNTICAS
143
Cuando llegabas mísera a
perderte
Y era llorar tu único destino;
Cuando en tu frente la
implacable suerte Grababa de
los réprobos el sino...
¡Feliz!, la muerte te arrancó del suelo,
Y otra vez ángel te volviste al cielo. (ibidem, p.101)
O conflito entre a ilusão e a desilusão que perpassa todo o Canto
II apenas se resolve com a morte, já que a mulher na terra é “anjo caído”, herdeira da maldição de Eva, que somente volta a ser sublime
na morte ao retornar às esferas suprassensíveis. Apesar dessa concepção de amor que já nasce predisposto a morrer, este sentimento
na obra de Espronceda é algo que sempre se repete a partir de uma
nova experiência, pois ao constituir-se como uma “ilusión primera”,
o amor, uma vez consumado, apenas requer um novo objeto de amor
para voltar a existir.
O tema do amor em Espronceda contribui, assim, para ressaltar
a tensão entre a ilusão e a desilusão, assim como a ingenuidade e a
experiência, tópicos essenciais de sua obra que convergem não apenas para a aspiração metafísica do poeta como também para a crítica
social que pretendia realizar.
O ambiente urbano, tanto em Diablo mundo quanto em Macário,
desponta como um ambiente noturno, em sombras, templo da perdição, e nunca dos sentimentos nobres, revelando o descompasso entre o homem romântico e o mundo. A cidade de Madri, retratada por
Espronceda em Diablo mundo está repleta do caráter andaluz, tematizando, assim, o conflito entre o periférico, no qual se inclui a classe
marginalizada dos ciganos (representada por Salada e a comunidade
na qual se insere) e a classe que detém o poder, almejada por Adán.
Contudo, devido à individualidade acentuada do protagonista, ele se
sente constantemente fora de lugar, já que o homem romântico será
essencialmente solitário, pois se sente abandonado por Deus e não
encontra refúgio nem mesmo no amor. Daí a identificação imediata
144
MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
de Adán com a mãe da prostituta morta, visto que ambos compartilham a mesma sensação de orfandade em relação ao criador que faz
com que Adán, tomado por um sentimento luciferiano que remete
ao Caim de Byron, vocifere ataques contra Deus: “El Dios ese, que
habita,/ Omnipotente, en la región del cielo,/ ¿Quién es que inunda
a veces de alegría,/ Y otras veces, cruel, con mano impía,/ Llena de
angustia y de dolor el suelo?” (Espronceda, 1954, p.146).
A voz narrativa do poema revela com fina ironia, no final do
Canto VI, a mescla entre o sagrado e o profano nas crendices populares ao comentar as orações da mãe da jovem morta em oposição
ao consolo proposto por Adán que pressupunha a submissão a um
único Deus:
La vieja en tanto levantó los ojos
Al techo, y murmuró luego
entre dientes Quizá sordas
palabras maldicientes,
O quizá una oración; el
más sufrido Suele echar en
olvido
A veces la paciencia, y darse
al diablo, Y usar por
desahogo
Refunfuñando como perro dogo
De algún blasfemador rudo
vocablo: Mas todo se
compone
Con un “Dios me perdone”
Que así mil veces yo
salí del paso Si falto de
paciencia juré acaso, Y
cierto, vive Dios, si no
jurara Que el diablo me
llevara;
Que cuando ahoga el pecho un
LEITURAS E RELEITURAS ROMÂNTICAS
sentimiento Y el ánimo se achica,
porque crezca
Y el corazón se ensanche y se
engrandezca No hay suspiro
mejor que un juramento,
Y aun es mejor
remedio Para
aliviar el tedio
Mezclarlo con humildes
oraciones, Como al son
blando de acordada lira La
voz de melancólicas
canciones Confundida
suspira;
Y así también se dobla la esperanza,
Que adonde falta Dios, el diablo
alcanza, Yo a cada cual en su
costumbre dejo, Que a nadie
doy consejo
Y así como el placer y la
tristeza Mezclados vagan
por el ancho mundo Y en su
cauce profundo
A un tiempo arrastran flores
y maleza, Así suelen también
mezclarse a veces
Maldiciones y preces,
Y yo tan sólo lo que observo
cuento, Y a fe no es culpa mía
Que la gente sea impía
Y mezcle a una oración un
juramento. Testigo aquella vieja
De la antigua conseja
Que a San Miguel dos velas
le ponía, Y dos al diablo
145
146
MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
que a sus pies estaba, Por
si el uno faltaba
Que remediase el otro su agonía. (ibidem, p.146-7)
Os comentários do narrador revelam o relativismo do espírito
romântico e seu caráter rebelde que não aceita a submissão à lógica
de uma única divindade a ordenar o mundo, preferindo sujeitar-se a
uma ordem em que predomina o conflito com o duplo.
Da mesma forma, os fragmentos do Canto VII perpetuam o lamento da mãe que perdeu a filha e que dedica o seu carinho maternal
a Adán como uma maneira de agradecer o seu amparo. Esse encontro do herói fáustico com a figura da mãe, símbolo da terra, alude a
um novo retorno às origens, à prima matéria com a qual Deus modelou Adão, a fim de que surja um herói mais crítico, liberto da sombra
que o prendia aos valores da sociedade burguesa e independente de
seu individualismo. São esses valores que dão ao romantismo de Espronceda um caráter revolucionário que se distingue dos demais romantismos comentados por Löwy (1990, p.16) como, por exemplo,
o passadista ou conservador, pois “é um ‘estado de natureza’, mais
ou menos típico em Rousseau ou em Fourier [...]”. Ao comparar a
sátira de Byron e a de Espronceda, Pujals (1951, p.417-8) ressalta
que o primeiro apresenta uma propensão à sátira individual, ao passo que o segundo a tem para a coletiva. Enquanto o inglês se dirige
ao ataque pessoal, o segundo ataca a política absolutista, a religião e
a sociedade.
Em vez da busca da mãe perdida, como assinala Jung (apud Chevalier, 1991, p.952) e que caracteriza a aspiração do herói fáustico de
Espronceda, em Macário o desejo de mudança parece aproximar-se do que Cirlot caracteriza como a fuga da mãe. Na concepção
junguiana, a anima de um homem é, em geral, determinada por sua
mãe. Ao comentar sobre o caráter negativo da anima no homem, a
dra. Franz (apud Jung et al., 1964, p.179) assinala que a manifestação da anima provoca rancor e pessimismo, tornando o homem
indiferente ao amor, fazendo-o assumir os aspectos mais violentos
da própria natureza.
LEITURAS E RELEITURAS ROMÂNTICAS
147
Liberar a anima é permitir que ela atue como guia para o mundo
interior, tal como o “eterno feminino” do Fausto de Goethe. Esse
aspecto é, curiosamente, como já narramos, retratado na obra de
Goethe no episódio que precede a aparição de Helena na corte, no
qual Mefistófeles entrega uma chave mágica a Fausto e solicita que
este desça até o reino das mães, figura que o diabo chama de “magno
arcano”. Essa descida, que pode simbolizar uma descida ao inconsciente, visa liberar um “tripé”, figura que alude ao equilíbrio entre
o duplo conflito da consciência. No reino das mães, Fausto deparará
com visões de todas as criaturas, tal como num sonho.
O sonho também ganha uma força tão especial no drama de Álvares de Azevedo que chega a dar a impressão de que todo o drama
não ocorreu senão no sonho de Macário. De acordo com Henderson
(1964, p.121), há um aspecto arquetípico no sonho que se refere ao
mistério da oferenda e do sacrifício humano. Macário, ao deitar-se
sobre o túmulo a mando de Satã, está oferecendo-se ao sacrifício
da morte para renascer, dessa experiência, como um homem novo.
Para que Satã atingisse seu objetivo de transformar Macário em um
poeta romântico foi necessário, primeiramente, liberar a sua anima
dos aspectos devoradores da fixação materna, ato simbolizado na
obra quando Macário, em seu sonho, ouve o gemido de morte de sua
mãe. Na psicologia junguiana, as etapas de formação do ego devem
passar, necessariamente, por essa fase de liberação da anima a fim
de que o homem possa, de fato, ter um relacionamento mais adulto
com a mulher. Segundo Henderson (ibidem, p.125) ao tratar do mito
do herói, a liberação da anima constitui um componente íntimo da
psique necessário à realização criadora verdadeira. Em seu sonho,
Macário visualiza a mulher como um anjo caído, que consiste em
uma imagem constante na obra dos românticos, como já vimos em
Espronceda. Assim, Macário menciona ao relatar seu sonho a Satã:
Vi muita coisa... Eram mil vozes que rebentavam do abismo, ardentes de blasfêmia! Das montanhas e dos vales da terra, das noites
de amor e das noites de agonia, dos leitos do noivado aos túmulos da
morte erguia-se uma voz que dizia: – Cristo sê maldito! Glória, três
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MAIRA ANGÉLICA PANDOLFI
vezes glória ao anjo do mal! – E as estrelas fugiam chorando, derramando suas lágrimas de fogo... E uma figura amarelenta beijava a
criação na fronte, – e esse beijo deixava uma nódoa eterna...
[...]
Macário:
[...] Que estrela é aquela que caiu do céu, que ai é esse que gemeu
nas brisas?
Satã:
É um filho que o pai enjeitou. É um anjo que desliza na terra.
Amanhã talvez o encontres. A pérola talvez se enfie num colar de
bagas impuras – talvez o diamante se engaste em cobre. Aposto
como daqui a um momento será uma mulher, daqui a um dia uma
santa Madalena! (Azevedo, 2000, p.534)
A viagem onírica que Satã proporcionara a Macário revela as
imagens de satanismo que compõem a veia romântica de Álvares
de Azevedo, identificando-se, perfeitamente, à psicogeografia dos
símbolos esboçada por Paul Diel (apud Chevalier, 1991, p.80):
[...] a superfície plana da terra representa o homem como ser consciente; o mundo subterrâneo, com seus demônios e seus monstros
ou divindades malevolentes, figura o subconsciente; os cumes mais
elevados, mais próximos do céu, são a imagem do supraconsciente.
Toda a terra se torna, assim, símbolo do consciente e de sua situação
de conflito, símbolo do desejo terrestre e de suas possibilidades de
sublimação e de perversão. É a arena dos conflitos da consciência no
ser humano.
O que Satã faz é levar Macário a uma viagem sem volta e, ao
liberar a sua anima, promove a fuga da mãe e sua morte simbólica:
“Não; não tenho mãe. Minha mãe não me embalará endoidecida
entre seus joelhos, pensando aquentar com sua febre de louca o
filho que dorme. Ninguém chorará. Não tenho mãe” (Azevedo,
2000, p.540). Nascem daí aterradoras imagens de seu romantismo,
o mundo subterrâneo de que nos fala Diel, com seus monstros e
LEITURAS E RELEITURAS ROMÂNTICAS
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divindades malevolentes. Nasce também um poeta ultrarromântico,
capaz de amar e morrer de amor, muito distinto do Macário misógino do primeiro episódio: “Ébrio sim – ébrio de amor – de prazer.
Aquela criança inocente embebedou-me de gozo. Que noite! Parece
que meu corpo desfalece. E minh’alma absorta de ternura só tem um
pensamento – morrer!” (ibidem, p.541).
O desejo de Satã se cumpre e o jovem descrente descobre seu
verdadeiro talento ao sair em defesa da poesia: “E o ceticismo não
tem poesia?... O que é a poesia, Penseroso? Não é porventura essa
comoção íntima de nossa alma com tudo que nos move as fibras mais
íntimas, com tudo que é belo e doloroso?...” (ibidem, p.548).
No drama fáustico de Álvares de Azevedo o diabo é o próprio
verbo, é a criação divina almejada pelos românticos que, no Brasil
desse escritor, se debatiam em defesa daquilo que acreditavam
expressar a verdadeira identidade da literatura brasileira. Nesse
contexto é que se deve entender a parte mais significativa da alegoria
trabalhada em Macário: a defesa de uma teoria estética proveniente
do romantismo europeu, mas que, no entanto, se aclimata em nosso
solo dando origem a uma expressão nova e original que ficou conhecida como o byronismo brasileiro. Em razão dessa aclimatação
é importante não esquecer da afirmação de Onédia Barboza (1974,
p.269) de que no byronismo brasileiro muito pouco restou de Byron,
principalmente na pena de Álvares de Azevedo, que o pintou como
um poeta “mais fúnebre e mais soturno do que realmente é”.