GÊNERO E MEMÓRIA:
ALGUMAS REFLEXÕES
Adriana Facina e Rachel Soihet
As contribuições recíprocas decorrentes da explosão do feminismo e das transformações na historiografia, a partir da década de 1960, foram fundamentais na
emergência da história das mulheres. Articuladas ao crescimento da antropologia,
as contribuições da história social, da história das mentalidades e, posteriormente,
da história cultural tiveram papel decisivo no processo de ascensão das mulheres à
condição de objeto e sujeito da história. Fato relevante, se considerarmos a despreocupação da historiografia dominante, herdeira do Iluminismo, com a participação
diferenciada dos dois sexos, já que polarizada em um sujeito humano universal.
Mas não foram poucos os problemas que se apresentaram com relação a tal
estado de coisas. Um grupo interdisciplinar de pesquisadoras francesas reuniu em
célebre artigo tais inquietações, destacando o grave perigo de um isolamento intelectual daquelas que se dedicavam à história das mulheres. Essas pesquisadoras
ressaltam a tendência da história das mulheres de constituir-se num gueto, pois esta
permanecia, em sua maior parte, como trabalho das mulheres, tolerado ou marginalizado, mas sem controle sobre os rumos da história como um todo (FARGE et al.,
2000, p. 9). A fim de superar a situação, buscando tornar a história das mulheres
parte integrante e significativa da disciplina histórica, acentuam a importância de se
refinar conceitos e fazem uma crítica à produção realizada nesse campo. Com esse
objetivo, nela apontam uma série de fragilidades: uma predileção excessiva pelo
estudo do corpo, da sexualidade, da maternidade, da fisiologia feminina e das profissões próximas de uma “natureza” feminina; a presença constante da dialética da
dominação e da opressão nesses estudos não passava do enunciado tautológico, já
que eles não continham a tentativa de análise das mediações específicas pelas quais
essa dominação é exercida, no tempo e no espaço e, acrescento, nem tão pouco se
processava a resistência a essa dominação; a inflação de estudos sobre os discursos
normativos, pouco levando em conta as práticas sociais e os modos de resistência a
esses discursos, o que, algumas vezes, induz a uma espécie de fascínio pela infelicidade; o desconhecimento da história do feminismo e de sua articulação com a história política e social e a falta de reflexão metodológica e sobretudo teórica.
Em fins da mesma década, a historiadora norte-americana Joan Scott trazia à
tona preocupações similares, ao mesmo tempo que enfatizava a importância da
categoria gênero, não mencionada no artigo acima citado, embora as idéias expressas para sua operacionalização ali estivessem presentes. Lembremos que gênero
emerge, na década de 1970, como o termo usado para teorizar a questão da diferença sexual. Foi inicialmente utilizado pelas feministas americanas, sendo inúmeras
as suas contribuições: a ênfase no caráter fundamentalmente social e cultural das
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distinções baseadas no sexo, afastando o fantasma da naturalização; a precisão
emprestada à idéia de assimetria e de hierarquia nas relações entre homens e mulheres, incorporando a dimensão das relações de poder; o relevo conferido ao aspecto
relacional entre as mulheres e os homens, ou seja, ao fato de que nenhuma compreensão de qualquer um dos dois poderia existir através de um estudo que os considerasse totalmente em separado, aspecto essencial para “descobrir a amplitude dos
papéis sexuais e do simbolismo sexual nas várias sociedades e épocas, achar qual o
seu sentido e como funcionavam para manter a ordem social e para mudá-la” (SCOTT,
1991, p. 1-2). Acrescente-se ainda a significação emprestada pelos estudos referidos à articulação do gênero com a classe e a raça/etnia. Interesse indicativo não
apenas do compromisso com a inclusão da fala dos oprimidos, como da convicção
de que as desigualdades de poder se organizam, no mínimo, conforme esses três
eixos.
Após uma crença inicial numa possível identidade única entre as mulheres,
firmou-se a certeza na existência de múltiplas identidades. Decorreu, daí, a fragmentação de uma idéia universal de “mulheres”, por classe, raça, etnia, geração, sexualidade etc., associada a diferenças políticas sérias no seio do movimento feminista. A
categoria gênero, usada primeiro para analisar as diferenças entre os sexos, foi estendida à questão da “diferença dentro da diferença” (SCOTT, 1992, p. 87). A ênfase
dada por Scott à questão da “diferença”, associada a uma concepção própria do
pós-modernismo, foi considerada como uma ameaça ao feminismo por aquelas (es)
pesquisadoras (es) que permaneceram no campo da modernidade, alegando que
precipitaria a fragmentação de sua unidade. Por outro lado, numa posição equilibrada, uma teórica afirma que o discurso pós-moderno revela um lado positivo, pois
nele pode-se encontrar “um poderoso antídoto para as tendências totalizadoras, e
até mesmo intolerantes”, muitas vezes presentes no discurso tradicional. Mas não
deixa de alertar as feministas pós-modernas de que estas não podem desconhecer a
presença “da modernidade como um campo unificado do social, demandando um
esforço de identificação de denominadores comuns mais além das afirmações
particularistas” (SORJ, 1992, p. 21-22).
As mais fecundas de todas essas reflexões não excluem críticas à continuidade,
nos estudos de gênero, dos dualismos, especialmente, da divisão binária da humanidade, a partir das construções baseadas no sexo. Reflexões e pesquisas desenvolveram-se com a finalidade de ultrapassar tais impasses, questionando-se a utilização
de uma categoria “que tem como referência a diferença sexual quando as discussões
‘politicamente corretas’ parecem exigir, cada vez mais, privilegiar ‘outras marcas na
explicação das desigualdades’” (PISCITELLI, 1997, p. 65). Uma proposta seria partir
de uma perspectiva pluralista, considerando uma multiplicidade identitária (SWAIN,
2001, p. 91).
A polêmica entre Joan Scott e as historiadoras Louise Tilly e Eleni Varikas oferece um panorama da pluralidade de concepções acerca da questão do gênero. Evidencia também o embate mais amplo entre aquelas e aqueles ligadas (os) à tradição
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cultural do Iluminismo e aquelas (es) que a rejeitam e consideram a linguagem, o
discurso como instância constituinte da “realidade”. Nesses embates, pode-se constatar, ainda, aquelas (es) que valorizam a experiência sem deixar de reconhecer a
significação dos discursos. Ao reforçar a necessidade de se ultrapassar os usos descritivos do gênero, buscando a utilização de formulações teóricas, Scott afirma a impossibilidade de uma tal conceitualização efetuar-se no domínio da história social,
segundo ela, marcado pelo determinismo econômico. Salienta a necessidade de utilizar-se uma “epistemologia mais radical”, encontrada no âmbito do pós-estruturalismo, particularmente, em certas abordagens associadas a Michel Foucault e Jacques
Derrida. Abordagens essas capazes de fornecer ao feminismo uma perspectiva analítica poderosa, ou seja, os suportes necessários para a elaboração de uma “teoria
feminista” capaz de explicar a assimetria entre os sexos. Desse modo, propõe operar
com as noções de “diferença”, já mencionada, e de “desconstrução” como formas
de contestar os paradigmas tradicionais, visando demonstrar a fragilidade de conceitos considerados universais e generalizantes, que não se sustentam em face de uma
análise mais cuidadosa das relações entre os sexos. Por outro lado, historicizar essas
relações torna-se de enorme significação para a compreensão e explicação de como
se instalam as relações de poder que perpassam pela linguagem, pelos símbolos e
representações que instituem as estruturas normativas, moldam comportamentos e,
por conseqüência, as relações de gênero. Assim, segundo Scott, os estudos sobre
gênero devem apontar para a necessidade da rejeição do caráter fixo e permanente
da oposição binária “masculino versus feminino”, revertendo-se e deslocando-se a
construção hierárquica, em lugar de aceitá-la como óbvia importância de sua
historicização e “desconstrução” nos termos de Jacques Derrida – ou como estando
na natureza das coisas (SCOTT; TILLY; VARIKAS, 1994, p. 16).
Louise Tilly contrapõe-se à concepção de Scott, com o que concorda Eleni Varikas,
ao afirmar que a vontade política de conceder às mulheres o estatuto de sujeitos da
história contribuiu para o encontro das historiadoras feministas com as experiências
históricas das mulheres. E, para muitas, este encontro teve lugar no terreno da história social, do que resultaram análises notáveis de relações entre gênero e classes
sociais (SCOTT; TILLY; VARIKAS, 1994, p. 48). Desse modo, as censuras formuladas
por Joan Scott contra a história social quanto à marginalização das experiências
femininas, à redução do gênero a um subproduto das forças econômicas, à indiferença pela influência do gênero na constituição do sentido na cultura e na ideologia
política, foram o que desapareceu nas tentativas bem-sucedidas de re-escrita feminista da história à luz da história social (p. 74).
Também, Tilly e Varikas manifestam seu ceticismo quanto ao potencial de
epistemologias situadas no âmbito do pós-estruturalismo, que superestimam o peso
da coerção social para elaborar uma visão não determinista da história e uma visão
das mulheres como sujeitos da história. Nesse particular, ocorre-me uma das mais
ponderadas opiniões sobre o assunto: “se a linguagem constitui-se num dado ou
obstáculo inevitável, ela não é o começo e o fim de tudo. Assim, importa não substituir a tirania do logos por uma nova tirania”, ou seja, a da linguagem, do discurso
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(FALCON, 2000, p. 64). Varikas, porém, critica as restrições de Tilly ao que denomina
“uso mais literário e filosófico do gênero”, atentando para a importância de se refletir com mais precisão acerca da influência do paradigma lingüístico sobre a história
das mulheres. Varikas acentua a importância das abordagens no âmbito da história
das idéias e das mentalidades, que concederam um lugar privilegiado para a análise
das representações, dos discursos normativos, do imaginário coletivo; através das
quais se pôde observar o caráter histórico e mutante dos conteúdos do masculino e
do feminino, reconstruindo as múltiplas maneiras pelas quais as mulheres puderam
re-interpretar e re-elaborar suas significações. E os estudos feministas não precisaram esperar o pós-estruturalismo para sublinhar a importância das representações e
dos sistemas simbólicos na análise e na compreensão da construção do gênero e das
relações sociais que os sustentam (SCOTT; TILLY; VARIKAS, 1994, p. 70).
Scott ainda propõe a política como domínio de utilização do gênero para análise histórica. Justifica a escolha da política e do poder no seu sentido mais tradicional, ou seja, no que diz respeito ao governo e ao Estado-Nação. Especialmente porque a história política teria se constituído na trincheira de resistência à inclusão de
materiais ou de questões sobre as mulheres e o gênero, vistos como categoria de
oposição aos negócios sérios da verdadeira política. Acredita que o aprofundamento
da análise dos diversos usos do gênero para justificativa ou explicação de posições de
poder fará emergir uma nova história que oferecerá novas perspectivas às velhas
questões; redefinirá as antigas questões em termos novos – introduzindo, por exemplo, considerações sobre a família e a sexualidade no estudo da economia e da guerra –; tornará as mulheres visíveis como participantes ativas e estabelecerá uma distância analítica entre a linguagem aparentemente fixada no passado e a nossa própria
terminologia. Além do mais, essa nova história abrirá possibilidades para a reflexão
sobre as atuais estratégias feministas e o futuro utópico (SCOTT, 1991, p. 14).
A análise de Scott é de extrema relevância, pois incorpora contribuições das
mais inovadoras tanto no terreno teórico quanto no do próprio conhecimento histórico. Considero, porém, que a partir do modelo de análise proposto, alguns elementos essenciais ao desvendamento da atuação concreta das mulheres tornam-se dificilmente perceptíveis. Importa, portanto, examinar contribuições de outras (os)
historiadoras (es), que, com esse objetivo, não se limitam a abordar o domínio público. Recorrem a outras esferas, como o cotidiano, no afã de trazer à tona as contribuições femininas. Para esclarecer tal ponto, retorno às pesquisadoras francesas,
acima focalizadas, de cuja análise cabe destacar o extremo refinamento, a acuidade
e relevância das questões levantadas. Acentuam a importância da história cultural e
das representações, dos debates etnológico e antropológico para que os estudos
sobre os papéis sexuais assumissem uma outra fisionomia, do que resultou, entre
outros, a abertura de novos campos de pesquisas. Dois desses campos destacam-se:
o da identificação de objetos, de lugares e de condutas femininas e aquele da inflexão
do par dominação masculina/opressão feminina que era, anteriormente, subjacente
a todo estudo sobre os papéis sexuais (FARGE et al., 2000, p. 10).
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Nessa perspectiva, ressaltam a necessidade de se buscar as mulheres nos domínios nos quais ocorria maior evidência de participação feminina, explicitando-se as
categorias do masculino e do feminino, via de regra, abafadas sob um neutralismo
sexual que, unicamente, beneficiava o mundo masculino. Os estudos sobre a sociabilidade feminina que deram lugar a importantes trabalhos sobre os locais de lavagem de roupa, o forno, o mercado, a casa, assim como os estudos sobre os tempos
marcantes da vida, tomando como objetos o nascimento, o casamento e a morte
são destacados por elas. Portanto, aqui se distanciam de Scott, pois ressaltam no
esforço de se buscar as mulheres como agente histórico a aproximação dos domínios nos quais ocorrem maiores evidências de participação feminina. Daí não se
aterem unicamente à esfera pública – objeto exclusivo, por largo tempo, do interesse
dos historiadores impregnados do positivismo e de condicionamentos sexistas. Explica-se, assim, a significação do privado e do cotidiano, nos quais emerge com toda
força a presença dos segmentos subalternos e das mulheres. Longe está o político,
porém, de estar ausente dessa esfera, na qual se desenvolvem múltiplas relações de
poder.
Por outro lado, contrapõem-se às abordagens reducionistas que buscam uma
única explicação para as relações entre os sexos, aquelas da dominação e da opressão, configuradas na supremacia masculina, sem considerar a complexidade da questão ou as formas de poder exclusivamente feminino. Admitir isso significaria esquecer os numerosos componentes recolhidos, de maneira pertinente, dos estudos
culturais. Nesse sentido, com base nos mencionados estudos sobre a sociedade rural
do século XIX, argumentam acerca do controle exercido pelas mulheres das práticas
destinadas a ajudar a comunidade inteira a passar da vida à morte, evidência de que
eram, igualmente, dotadas de poder “cuja análise deve reorientar o debate geral e
abrir novas interseções de leitura”. Evitar-se-ia, dessa forma, uma visão paralisante,
permitindo-se dar conta do conjunto movediço das muitas realidades. Além disso, o
foco nos poderes femininos constituir-se-ia numa conquista da mais elevada significação, não apenas marcando o enriquecimento de uma leitura da esfera privada em
termos de poder, mas também fornecendo uma análise da confrontação, real e simbólica, entre a vida privada e a vida pública.
Advertem as pesquisadoras que tais conclusões acerca dos poderes femininos
não devem, porém, dar lugar a enganos, em termos de uma perspectiva conciliadora, de justaposição de culturas, ao mesmo tempo plurais e complementares, esquecendo-se da violência e da desigualdade que marcam a relação entre os sexos. Inúmeros exemplos são apresentados, assinalando-se a presença da complementaridade
na divisão sexual das tarefas, o que não exclui uma hierarquização dos papéis exercidos por homens e mulheres. Recomendam, por isso, um esforço de rigor teórico, a
fim de se impedir o surgimento de novos estereótipos escondidos sob modernas
formulações. Assim, reiteram a existência da dominação masculina, instrumento indispensável para captar a lógica do conjunto de todas as relações sociais. Entretanto,
na perspectiva que adotam, a “dominação masculina” não é mais uma constante
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sobre a qual toda reflexão tropeçaria, mas a expressão de uma relação social desigual que pode desvendar engrenagens e marcar especificidades de diferentes sistemas históricos (FARGE et al., 2001, p. 17-18).
A inserção feminina na esfera pública e a valorização de sua participação política no sentido mais estrito constituem-se, também, em preocupações das citadas
pesquisadoras. Propõem a questão de forma deveras criativa, buscando apresentá-la
em todas as suas complexidades. Os argumentos que se seguem fornecem-nos uma
boa síntese de suas reflexões que se iniciam com as interrogações:
Não sendo o jogo político explícito na história das mulheres, onde situá-lo e
como qualificá-lo? Basta constatar que os homens foram destinados ao público e as
mulheres ao privado, depois de afirmar que o espaço privado não escapa ao jogo
político?
E as mesmas argumentam sobre a necessidade primeira de se indagar como a
definição e a repartição dos poderes foram tributárias das transformações da esfera
política. Nessa linha de raciocínio apresentam, na minha opinião, a parte mais original e densa de sua proposta, acentuando que a análise não se deve limitar a uma
oposição entre o social e o político que recobriria aquela do privado e do público,
concluindo que “estas dualidades devem talvez ser apreendidas na sua unidade”
(FARGE et al., 2000, p. 24).
Fazer desse problema teórico uma questão particularmente significativa para a
história das mulheres é, em si, conforme explicitam as citadas pesquisadoras, uma
proposição metodológica. Isto porque ao reintroduzir-se a dimensão política na reflexão sobre o masculino/feminino, privilegia-se a noção de público, na medida em
que esta noção implica uma reflexão sobre o civil, o econômico e o próprio político,
sem para tanto excluir a importância do privado. Ao contrário, a atitude inversa,
aquela em que o privado induziria o público, não mais se afigura como possível.
Em lugar de ratificar o fato de que a vida política é um espaço de ausência
feminina, ou de seguir as narrativas que minimizam, sistematicamente, os momentos em que as mulheres intervêm, sugerem uma reavaliação de diferentes acontecimentos em que as mulheres participam da história. Pensar como uma intervenção
política aquilo que, em geral, interpreta-se como um fato social leva a perceber as
mulheres num tempo histórico em que a singularidade do acontecimento é tão importante quanto a repetição dos fatos culturais. Pode-se, desse modo, reformular o
papel das mulheres num motim no século XVIII, nas lutas sociais do século XIX ou
nas práticas feministas da era contemporânea, cujo resultado imediato consiste em
não mais pensar a história das mulheres como a evolução, mais ou menos progressiva, de uma “condição feminina”.
Por outro lado, a cena política construiu-se recusando às mulheres o estatuto
de sujeitos políticos, o que dá um outro relevo a toda intervenção feminina em qual-
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quer acontecimento do qual as mulheres participaram, fora do lugar que lhes é
tradicionalmente atribuído. Nesse sentido, a solução é recorrer a uma concepção do
poder que traz à tona os múltiplos poderes que Michel Foucault e outros das ciências
humanas procuraram descrever nas sociedades, e ao “retorno do evento” saudado
desde há alguns anos. Simultaneamente, na minha opinião deve-se, como bem acentua Michel de Certeau, invertendo as preocupações de Foucault, “exumar as formas
sub-reptícias que assume a criatividade dispersa, tática e bricoleuse dos dominados,
com vistas a reagir à opressão que sobre eles incide”, insinuando-se de forma astuciosa,
dispersa, silenciosa, constituindo a rede de uma antidisciplina, buscando aproveitar
as “ocasiões”, as possibilidades oferecidas para garantir o exercício de sua cidadania,
no grau mais ampliado possível (DE CERTEAU, 1994, p. 41, 94). Decodificar essa
trama em que interagem poderes e contrapoderes revela-se um procedimento necessário e salutar, num campo de pesquisas em que a utilização ambígua dos diferentes sentidos da palavra poder funciona muito facilmente num sistema de compensações e de resistências (FARGE et al., 2000, p. 19-23).
Em vez de partir do dado da exclusão das mulheres da vida política, as pesquisadoras em foco propõem ainda observar um movimento inverso produzido pelo
próprio estatuto do indivíduo na sociedade democrática contemporânea, o que permite falar da “inclusão” das mulheres na vida pública e política. Argumentam que se
pode sublinhar, de uma parte, a melhoria progressiva da condição feminina nestes
últimos séculos; de outra parte, se pode observar como as lutas feministas forçaram
a democracia e a sociedade industrial a integrar as mulheres nos seus campos respectivos, quebrando, assim, a repartição binária de pretensos papéis sexuais, em
proveito do direito de escolha do indivíduo. (FARGE et al., 2000, p. 26).
Trazendo à tona a questão da memória, cabe lembrar a pressão bem-sucedida
das historiadoras feministas a fim de realizar revisões de uma história que, centrada
na noção de sujeito universal, manteve experiências de outros sujeitos, em particular
das mulheres, em vastas áreas de invisibilidade. Decididas a mudar esse quadro, no
empenho em recuperar o tempo perdido, as historiadoras tomaram consciência das
dificuldades existentes no acesso ao conhecimento da participação das mulheres nas
diferentes esferas da sociedade, já que sua presença nos arquivos públicos mostra-se
extremamente reduzida. Destinadas à esfera privada, por longo tempo, elas estiveram ausentes das atividades consideradas dignas de serem registradas para o conhecimento das futuras gerações. No caso dos arquivos privados, estes se revelam mais
generosos, como acentua Michelle Perrot. Refere-se aos livres de raison, espécie de
“atas” da vida familiar, nos quais as mulheres anotavam o dia-a-dia doméstico. As
cartas e os diários íntimos são exemplos de outros registros femininos que, quando
encontrados, são da maior importância para descortinar o universo feminino. Não
poucas, porém, foram aquelas que os rasgaram ou os queimaram, temendo ser
objeto de zombarias. As obras literárias e a escrita religiosa – católica ou protestante
– também aparecem como formas significativas de expressão feminina. Além disso,
as mulheres, com sua enorme habilidade para guardar os objetos pessoais, fotografias, conservar e transmitir as histórias vividas, individuais e coletivas da família e dos
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grupos com os quais estabeleciam ligações, e, mais ainda, por sua capacidade de
tecer redes e relações, têm-se destacado como “guardiãs da memória”(PERROT, 1989,
p.13; RAGO, 2001, p. 19). Por outro lado, reconhece-se a importância da utilização
da história oral como instrumento dos mais adequados para registro da memória
feminina, na medida em que o acesso das mulheres à escrita não se deu no mesmo
ritmo dos homens. Aliás, como ressalta Michel Pollak, ao privilegiar a análise dos
marginalizados e das minorias, a história oral ressaltou a importância de memórias
subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se
opõem à “memória oficial”, qual seja, a memória nacional (POLLAK, 1989, p. 4).
As leituras femininas das experiências histórico-sociais vêm contribuindo para
constatar-se a interação entre a vida pública e privada, em contraposição a uma
visão burguesa dicotômica. A célebre escritora Virginia Woolf, já nos anos 1920,
com sua enorme sensibilidade e lucidez, percebendo essa interdependência, registra
a injustiça que acarretava para as mulheres a consagrada dicotomia. Discorrendo
sobre a frugalidade do jantar, o único que ela e sua amiga Mary tinham condições de
consumir, lamentava a “repreensível pobreza do nosso sexo”, ao mesmo tempo se
perguntando: “O que estavam fazendo nossas mães que não tiveram nenhuma riqueza para nos legar?” Faz de forma irônica várias conjeturas absurdas acerca de um
suposto esbanjamento da fortuna: estariam aquelas senhoras... “Olhando as vitrines
das lojas? Exibindo-se ao sol em Monte Carlo?”, hipóteses por ela mesma contestadas, ante a fotografia da mãe da amiga, uma senhora simples que tivera 13 filhos.
Seguem-se reflexões de como seria se a sra. Seton, a mãe de Mary, ou “outra igual a
ela, tivessem entrado no mundo dos negócios aos 15 anos de idade”, mas, aí, acrescenta: “não teria havido [...] Mary alguma”. E, depois de ter frisado tal impossibilidade, diante da rigidez na divisão de papéis entre os dois gêneros, denunciava um
outro elemento que garantia a reprodução do poder masculino, por força dessa
interpenetração de esferas – privada e pública.
Além disso, é igualmente inútil perguntar o que teria acontecido se a sra. Seton e sua mãe, e
a mãe de sua mãe, tivessem acumulado uma grande riqueza e a tivessem depositado aos
cuidados das fundações da faculdade e da biblioteca, porque, em primeiro lugar, lhes era
impossível ganhar dinheiro e, em segundo, se tivesse sido possível, a lei lhes negava o direito
de possuírem qualquer dinheiro ganho. Só nos últimos quarenta e oito anos é que a
sra. Seton pode ter algum centavo de seu. Em todos os séculos antes disso, o dinheiro teria
sido propriedade do marido – um pensamento que talvez tenha contribuído para manter a
sra. Seton e sua mãe fora da Bolsa de Valores. “Cada centavo que eu ganhe”, teriam dito
elas, “será retirado de mim e empregado de acordo com o critério de meu marido.” [....]
(WOOLF, 1985, p. 31).
Esta reflexão mostra a relevância dessas leituras para a produção acadêmica,
além de sua significação política, indicando-as como forma de conhecer a atuação
feminina em inúmeras realidades. Tais idéias serão retomadas pelos movimentos feministas, particularmente aqueles dos anos 1960 e 1970, que denunciaram como
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uma mistificação a separação entre o público e o privado, entre o pessoal e o político, insistindo sobre o caráter estrutural da dominação, expresso nas relações da vida
cotidiana, dominação cujo caráter sistemático apresentava-se obscurecido, como se
fosse produto de situações pessoais.
Em que pese a essas contribuições, constata-se que, no caso brasileiro, a pesquisa sobre a História das Mulheres e as relações de gênero ainda ocupa um espaço
marginal nos centros acadêmicos, o que, sem dúvida, limita um entendimento mais
pleno da complexidade histórica em termos da atuação e dos interesses dos diversos
sujeitos sociais.
Apenas a partir dos anos 1990, observa-se nas ANPUH (s) nacionais o aumento
do número de comunicações coordenadas abrangendo essa temática, seguidas de
um diminuto quantitativo de mesas-redondas, a partir de 2001 (COSTA, 2000, p. 8).
Durante o XXI Simpósio Nacional da ANPUH, realizado em 2001, na Universidade Federal Fluminense, foi fundado o Grupo de Trabalho Estudos de Gênero (GT).
Desde o início, o GT procurou articular pesquisadoras e pesquisadores de várias
regiões do país, atuantes não somente no âmbito da história, mas também em outras áreas do conhecimento, tais como letras, antropologia e sociologia. A partir
dessa diversidade constitutiva, necessária a uma área de estudos marcadamente
interdisciplinar, o grande desafio passou a ser a elaboração de trabalhos coletivos
que pudessem expressá-la, sem perder de vista o ponto de partida comum: a
problematização das relações de gênero enquanto relações sociais historicamente
determinadas. É nesse sentido que o próprio uso do termo gênero, em vez de sexo,
caracteriza uma opção teórica consciente, mas também uma posição política, que
recusa a existência de uma natureza feminina ou masculina universais.
Como primeiro resultado desses esforços coletivos, o GT organizou dois
simpósios temáticos durante o XXII Simpósio Nacional da ANPUH, ocorrido em 2003,
em João Pessoa. Os simpósios temáticos reuniram pesquisadoras e docentes de várias universidades do país, visando debater e aprofundar questões que relacionavam
gênero, cultura, poder e representações sociais. Parte dos trabalhos apresentados e
discutidos naquela ocasião aparecem aqui no dossiê “Gênero e memória”. As jornadas da UFPB resultaram ainda em mais dois dossiês, “Escritas de mulheres, escritas
sobre mulheres”, a ser publicado na Revista Estudos Feministas, e “Gênero e representações: história, imagens e literatura”, que sairá na Revista Espaço Feminino.
Os artigos reunidos no dossiê “Gênero e memória” compartilham a preocupação em desvendar, no processo histórico de construção de memórias coletivas, as
vozes mais abafadas, as versões alternativas aos discursos oficiais do saber médico,
do campo religioso, ou de instituições como o Estado-nação. No caso das pesquisas aqui apresentadas, essas vozes são de mulheres pertencentes a classes sociais,
nacionalidades, etnias e religiões diferentes, em períodos históricos variados.
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O artigo de Nancy Rozenchan trata da literatura hebraica contemporânea que
ajudou a fundar uma origem mítica para o Estado de Israel, num processo que poderíamos denominar, nos termos de Hobsbawm, de invenção de tradições, e do lugar
das narrativas de mulheres nesse contexto. Para a autora, as escritas de mulheres
passam a ter um maior destaque nessa literatura a partir da década de 1980,
reelaborando a história da construção de uma sociedade predominantemente patriarcal, sob o ponto de vista de personagens femininas que se impõem como sujeitos
ativos nesse processo.
As relações entre gênero, memória e Estado-nação também são centrais nos
artigos de Janine Gomes da Silva e de Marlene de Fáveri. Ambas as pesquisadoras
tratam das dificuldades vividas pelas populações de origem germânica do estado de
Santa Catarina durante o período do Estado Novo. Proibidas de fazer uso do idioma
alemão e de expressar tradições culturais estrangeiras, essas populações tiveram de
se integrar à nação, sob pena de serem tratadas como inimigos internos ou “quintacoluna”, especialmente após a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial em
1942. Com a responsabilidade de criar cidadãos brasileiros e tendo a sua conduta
moral rigidamente controlada segundo os padrões da época, as autoras demonstram como as mulheres imigrantes ou descendentes de imigrantes foram particularmente atingidas por essas iniciativas do governo Vargas. Como contraponto à visão
de um nacionalismo heroicizante, as trajetórias e as memórias dessas mulheres
explicitam o caráter de artefato presente na consolidação do Estado-nação brasileiro.
Feita a apresentação, fica o convite à leitura e o desejo de que essa iniciativa
do GT Estudos de Gênero possa contribuir para a consolidação de uma historiografia
na qual as relações de gênero deixem de ser uma temática restrita a especialistas e
que se tornem indispensáveis a qualquer reflexão que se pretenda histórica.
(Recebido e aprovado para publicação em dezembro de 2004.)
Referências
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