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Revista Práxis e Hegemonia Popular, ano 4, n. 4, p. 9-20, jan./jul., 2019 - ISSN 2526-1843 GRAMSCI E O FASCISMO Gianni Fresu1 Universidade Federal de Uberlândia – UFU/MG Resumo O presente texto buscou compreender o tratamento de Antonio Gramsci ao fascismo italiano, no marco da complexidade, indicando elementos de sua origem, implementação e consequências políticas e sociais para a Itália e Europa. Gramsci o define como uma expressão política ocidental no momento em que as classes dominantes estão fragmentadas e fragilizadas na relação com os grupos subalternos. Também indica que o pensador não admite simplificações na leitura de um fenômeno que deve ser compreendido pela dialética, uma vez que possui suas mediações em todas as dimensões sociais, incluindo o campo cultural. De outro lado é também a indicação do limite das classes dominantes por não conseguirem produzir a ampla sociabilidade, tendo que impor seus projetos via coerção dos grupos subalternos. É um movimento que se expressa como revolução passiva ou “revolução-restauração” e incorpora, especialmente a partir de 1 Professor Efetivo do Magistério Superior de Filosofia política dos cursos de graduação e pós graduação em Filosofia, Universidade Federal de Uberlândia (MG/Brasil), Instituto de Filosofia. Possui doutorado em Filosofia sob a orientação do professor Domenico Losurdo na Università degli studi di Urbino ´Carlo Bo´ (2006). Tem experiência em pesquisa e didática nas universidades de Cagliari, Urbino e na Unesp de Marília, na área de Filosofia e Ciência Política, com ênfase em Teoria Política, atuando principalmente nos seguintes temas: pensamento político e filosófico na história do movimento operário, Antonio Gramsci, história e pensamento do fascismo, história e pensamento do Partido comunista italiano, teorias da modernização na história da Europa. Desde o ano de 1998 até o 2002, fundador e presidente do Centro studi della Sardegna Antonio Gramsci e da revista Quaderni della Sardegna, membro da International Gramsci Society, colaborador dos jornais LUnione Sarda e La Nuova Sardegna, e da redação da revista Marxismo Oggi. Membro do Comité cientifico da Escola internacional dos estudos gramsciano (Ghilarza Summer School), constituída por Fondazione Istituto Antonio Gramsci, International Gramsci Society, Casa Museo Antonio Gramsci, Fondazione Banco di Sardegna, Membro do Comité cientifico do Issasco (Istituto Sardo per la Storia dell Antifascismo e della Società Contemporanea), membro da International Gramsci Society Brasil, constituída no Rio de Janeiro no 29 de junho de 2015. https://doi.org/10.36311/2526-1843.2019.v4n4.p9-20 9 Revista Práxis e Hegemonia Popular, ano 4, n. 4, p. 9-20, jan./jul., 2019 - ISSN 2526-1843 1900, o modelo da cooptação de grupos inteiros para o projeto das classes dominantes, também conhecido como transformismo. Palavras-chave: Gramsci. Fascismo. Revolução Passiva. Transformismo. Cultura Introdução Este texto foi preparado para mesa de debates para o Encontro Anual da International Gramsci Society/Brasil, ocorrida na UNICAMP no mês de setembro de 2017. O fascismo é provavelmente um dos temas que na história contemporânea do pensamento ocidental produziu a maior quantidade de estudos. Uma enorme produção com diferentes abordagens e muitas implicações interdisciplinares. Na historiografia, na sociologia, na ciência e na filosofia política isso tem produzido múltiplos cânones interpretativos, caracterizados por concentrar a atenção sobre este ou aquele elemento – histórico, econômico, social ou moral – constitutivo ou predominante do fenômeno do fascismo. Falando de fascismo, muitas vezes, encontramos leituras bastante superficiais que atribuem essa definição para qualquer movimento conservador ou fenômeno autoritário. Na realidade, o fascismo tem suas próprias características, que precisam ser conhecidas. Estudar todo o conjunto complexo de acontecimentos e lutas nas trincheiras do Ocidente, com uma perspectiva mais ampla, não limitada ao período 1922-1945, é essencial para compreender um período entre os mais dramáticos da história contemporânea. Nesse sentido, a leitura de Gramsci, central nesse trabalho, fica um divisor de água interpretativo central, exatamente porque nunca aceita as simplificações que reduzem por esquema ou equações matemáticas às dinâmicas do “mundo grande, complicado e terrível”, onde cada ação jogada sobre a complexidade desperta ecos insuspeitados. Leitura gramsciana do fascismo A leitura de Gramsci acerca o fascismo foge das rígidas classificações e, por isso, são consideradas muito originais no panorama intelectual do seu tempo. Elas têm como eixo fundamental o materialismo histórico e, portanto, uma trama geral que localiza o fator determinante nos elementos econômicos e sociais, mas considera também os fatores ideológicos, incluída a crise moral da burguesia. Também Gramsci interpreta o fascismo 10 Revista Práxis e Hegemonia Popular, ano 4, n. 4, p. 9-20, jan./jul., 2019 - ISSN 2526-1843 como uma reação a uma fase de profundas transformações sociais ligadas à Primeira Guerra Mundial e sobretudo à Revolução de Outubro. Todavia, ele não irá considerar a burguesia e seu modo de produção como um bloco homogêneo. Gramsci lê no interior do bloco social dominante diferenciações e contradições que aparecem no período de nascimento e afirmação do fascismo. Em particular, investiga, por trás do fascismo, a tentativa de centralização dos interesses burgueses, mas o considera um fenômeno nascido entre a pequena e a média burguesia urbana, por precisas razões históricas, e que se desenvolveu com o apoio dos proprietários de terras e do grande capital industrial. Em suma, Gramsci não estava satisfeito com a leitura do fascismo como simples reação contra o proletariado, embora tenha afirmado também a essencialidade deste fator. Podemos dizer que Gramsci interpretou o fascismo em sua relação com a fraqueza das classes dirigentes e com os limites da unificação política e modernização econômica que marcaram a história da Itália. Assim é que para Gramsci o fascismo é um fenômeno historicamente determinado. Mas sua origem precisaria ser investigada também em relação aos processos observados em contexto europeu, como o fim da fase expansiva da revolução burguesa e a mudança da “guerra de movimento” para a “guerra de posição”2. Nas diferentes leituras sobre a obra de Antonio Gramsci se afirmou uma tendência favorável à teoria da descontinuidade entre as reflexões precedentes e _àquelas que se seguiram à prisão do intelectual comunista. Esta tendência, determinada por exigências mais políticas que cientificas, se revelou sem rigor filológico, mostrando em pouco tempo todos os seus limites. É exatamente em torno do fascismo (embora não só) que a tese da descontinuidade demonstra toda a sua fraqueza conceitual. Ele assinala uma profunda continuidade e organicidade analítica, que já no imediato pós-guerra aparece na ideia de crise orgânica e na análise que aponta para tendência das classes dirigentes à subversão reacionária. Já em 1920, Gramsci teve consciência disso e escreveu que a contraofensiva das classes dominantes, além de varrer a luta política dos trabalhadores, teria apontado a No Caderno 13 Gramsci precisa que a fórmula da “revolução permanente” surgiu antes de 1848, como expressão cientificamente elaborada das experiências “jacobinas”, e mais em geral corresponde a uma fase muito atrasada da sociedade e do campo, na qual se tem um limitado desenvolvimento da sociedade civil e dos aparatos hegemônicos das classes dominantes. Nesta fase ainda não existem os grandes partidos políticos e os sindicatos e se tem uma maior autonomia nacional das economias nacionais e dos aparatos hegemônicos militares estatais-militares. Esta fase muda radicalmente em 1870 com a expansão colonial europeia, quando tanto as relações internas dos Estados quanto suas relações externas tornam-se mais complexas e articuladas, enquanto na esfera política se observa a mesma mudança verificada na arte militar, com a formula da “revolução permanente” sendo superada pela “hegemonia civil”, vale dizer, se passa da “guerra de movimento à guerra de posição”. Gramsci, A. Quaderni del carcere, Einaudi, Torino, 1977. 2 11 Revista Práxis e Hegemonia Popular, ano 4, n. 4, p. 9-20, jan./jul., 2019 - ISSN 2526-1843 absorção, no interior do Estado burguês, das instituições de associação econômica e social das classes explorada3. E é exatamente o que vai acontecer na década de 1920, com a edificação das instituições corporativas sob o fascismo. Segundo Gramsci, o fascismo não tem uma ideologia sua originaria, mas recolhe sugestões provenientes de diferentes doutrinas. Assim, em primeiro lugar, seria politicamente devedor do nacionalismo de Corradini, em particular no que diz respeito ao conceito da luta entre “nações proletárias” e “nações capitalistas”, que segundo o chefe do nacionalismo italiano teria levado as “jovens nações” a substituir aquelas velhas e decrépitas na condução da humanidade, um conceito emprestado da teoria do conflito de classe e transladado em chave nacionalista no enfrentamento da política internacional. No calor da primeira guerra mundial, o jovem Gramsci, em um artigo de 19164, percebe o perigo dessa operação – premissa da trágica ideia de “espaço vital” ‒, que exprime a luta política através da guerra, da conquista dos mercados, da “subordinação econômica e militar de todas as nações a uma só, aquela que com o sacrifício do sangue e do seu bem-estar imediato, demonstrou ser a eleita, a digna”5. No plano cultural o fascismo foi devedor do irracionalismo e do futurismo de Tommaso Marinetti6 (1976-1944) com o seu niilismo de aparência inovadora, mas na realidade confusamente reacionário. O manifesto político de Marinetti era para Gramsci um insípido programa liberal, no qual ele via já as convulsões de uma burguesia dissimulada e desorientada, todavia, a distância entre esta forma dissimulada de liberalismo e a estatura política de uma figura como Cavour era para Gramsci sideral7. No artigo L’unità nazionale, publicado por “L’Ordine Nuovo” em 4 de outubro de 1919, Gramsci escreve que a história pode forjar contextos em que de uma classe espiritualmente saudável e unida, possam surgir indivíduos “politicamente desagregados”, descolados de qualquer realidade econômica concreta. De fato, uma parte significativa da burguesia assumiu D’Annunzio como ponto de referência ideal e contrapondo à autoridade e disciplina legal do governo central, bem como para a Gramsci, A. Per un rinnovamento del Partito socialista, “L’Ordine Nuovo”, II, 1, 8 maggio 1920. In L’Ordine Nuovo 1919-1920, Einaudi, Torino, 1978, p. 510. 4 Gramsci, A. Lotta di classe e guerra, «Avanti!» ed. piemontese, 19 agosto 1916. 5 Gramsci, A. Scritti giovanili 1914-1918, Einaudi, Torino, 1975, pag. 41. 6 Intelectual, poeta e escritor italiano, criador do programa política de viés futurista, em 1919. As ideias futuristas vieram a agradar Benito Mussoline, que as adotou em parte no período em que implantou o regime fascista na Itália (1922-1945). Marinetti também foi um dos membros fundadores do regime fascista e entusiasta, trabalhando no departamento de imprensa e propaganda do regime. Adepto e fascinado pela tecnologia e pela guerra, terá espaço no regime de Mussoline para desenvolver seu nacionalismo radical tanto em termos de política quanto em termos de produção artística. 7 Id. Ib. 49. 3 12 Revista Práxis e Hegemonia Popular, ano 4, n. 4, p. 9-20, jan./jul., 2019 - ISSN 2526-1843 organização armada contra o governo de Fiume8, transformando assim “gesto literário em fenômeno social». Eram as primeiras manifestações daquele subversivismo reacionário através do qual Gramsci já divisava a guerra civil desencadeada pela burguesia para o domínio ‒ armado ‒ no seio da sociedade e do Estado9. Como explicou no artigo Gli avvenimenti del 2-3 dicembre, «L’OrdineNuovo» de 6-13 de dezembro de 1919, por meio da guerra, com a militarização da produção e a transformação de cidades, fabricas, burocracia estatal num grande quartel, a pequena e média burguesia se viu repentinamente no centro dos acontecimentos. Ou seja, para levar a efeito essa “monstruosa construção”, o Estado e as associações capitalistas serviram-se da pequena burguesia10. A desmobilização da guerra, a retórica da vitória mutilada, a crise econômica, o fenômeno da proletarização das camadas médias, seriam as causas do desassossego da pequena burguesia durante e depois da guerra, bem como as origens do chamado subversivismo reacionário, que encontrou no nacionalismo de D’Annunzio e no fascismo de Benito Mussolini a razão da sua revolução social. Um dos mais significativos exemplos deste tipo de análise acerca da base social do fascismo em Gramsci podemos encontrar no artigo Il popolo delle scimmie (O povo dos macacos), publicado no “L’Ordine Nuovo” de 2 de janeiro de 192111. Neste artigo ele descreve a trajetória da pequena burguesia italiana desde os anos oitenta do século XIX até o nascimento do movimento fascista. Com o desenvolvimento do capitalismo financeiro esta classe perdeu a sua função na produção, tornando-se “pura classe política”, especializada no “cretinismo parlamentar”, seja com o giolittismo, seja com o reformismo socialista. A esta degeneração da pequena burguesia corresponde aquela do parlamento, tornado uma casa de bate papos demagógicos e escândalos, um meio para o parasitismo. Um Parlamento corrupto que inspira desconfiança e perde progressivamente prestigio entre as massas populares, levando-as a localizar na ação direta da oposição social o único instrumento de controle e pressão para afirmar a própria soberania contra os arbítrios do poder. É assim que o intelectual da Sardenha interpreta a semana vermelha de junho de 1914. Através do intervencionismo, do nacionalismo de D’Annunzio e do fascismo, a pequena burguesia imita a classe operaria e desce às ruas12. 8 A cidade reivindicada depois da Primeira Guerra Mundial pela Itália e ocupada militarmente no ano de 1919 pelos legionários de D’Annunzio. 9 Id. Ib., p. 67. 10 Gramsci, A. L’Ordine Nuovo 1919-20, Einaudi, Torino, 1987. p. 351 11 Gramsci, A.Socialismo e Fascismo, Einaudi, Torino 1978. P. 9. 12 Id. Ib. p. 10 13 Revista Práxis e Hegemonia Popular, ano 4, n. 4, p. 9-20, jan./jul., 2019 - ISSN 2526-1843 No decorrer dos acontecimentos, com a ampliação das violências fascistas no país, Gramsci escreve o importante artigo Sovversivismo reazionario («L’OrdineNuovo», de 22 junho de 1921, 1, n. 172), que fixa um dos principais retratos ideológicos de Benito Mussolini (1922-1945), no momento de sua estreia parlamentar, quando reivindicou sua origem subversiva. Segundo o dirigente comunista, seria preciso uma rigorosa investigação para filtrar o mito de Mussolini e recolocá-lo na sua justa dimensão humana e política. Entre as suas argumentações estava a exata autodefinição de Mussolini como blanquista de primeira ora. O blanquismo era a teoria social do golpe de mão de uma minoria armada, dominadora, e tanto o Mussolini subversivo quanto aquele reacionário encontravam um ponto de absoluta continuidade com exterioridade ideológica desta doutrina, a “ideia de revolução sem programa”. Neste ponto, não existia diferencia entre o Mussolini socialista, protagonista da semana vermelha no ano de 1914, e aquele das expedições das esquadras reacionárias fascistas13. Entre as suas intervenções mais significativas e representativas que fez seguramente está o discurso intitulado Origem e finalidade da lei sobre as associações secretas, umas das peças fundamentais de ligação entre a sua produção antes e depois do cárcere sobre o tema fascismo/classes dirigentes. Trata-se do discurso pronunciado à Câmara dos deputados em 16 de maio de 1925, contra o projeto de lei Mussolini-Rocco, que propunha eliminar a maçonaria. Entre as outras, aqui encontramos uma questão particularmente importante: essa lei segundo Gramsci era a prova que o regime não conseguiu fascistizar logo toda a burguesia e o aparado do Estado. Isso confirma a insatisfação de Gramsci para as leituras simples e superficiais que descrevem uma única frente monolítica e orgânica das classes dominantes atrás do fascismo. O Fascismo queria exercer essa função de direção centralizada, mas ainda ficavam contradições, portanto, a eliminação da maçonaria, que ainda arregimentava parte significativa da burguesia, era funcional a essa tarefa. A maçonaria, dadas às modalidades de unificação nacional e a debilidade da sua burguesia, aparecia a Gramsci o único partido real e eficiente que as classes dirigentes italianas tiveram por muito tempo. A maçonaria foi o principal instrumento através do qual a burguesia defendeu a criação do novo Estado unitário liberal contra as ameaças provenientes do Vaticano e do seu braço armado no país, isto é, os jesuítas, atrás dos quais se concentravam todas as forças mais reacionárias do país, tanto no Norte quanto no Sul. 13 Id.Ib., p. 206. 14 Revista Práxis e Hegemonia Popular, ano 4, n. 4, p. 9-20, jan./jul., 2019 - ISSN 2526-1843 A maçonaria, portanto, era a organização e a ideologia oficial da burguesia italiana. Declarar-se antagônico a ela significava afirmar ser contra a sua principal tradição política e mesmo o Risorgimento, impensável sem a sua presença e centralidade. Outro ponto fundamental acerca do tema do fascismo que liga a produção de Gramsci antes e depois do cárcere, encontramos nas famosas Teses do Congresso de Lyon (1924), consideradas o eixo da virada política da ação comunista na Itália em relação à concepção de partido e de análise da sociedade14. Em ambos os casos, estamos diante da superação completa das Teses elaboradas por Amadeo Bordiga (1879-1970) no Congresso de Roma, em março de 1922, que se revelaram totalmente incapazes de compreender o perigo fascista, bem como de construir uma adequada resistência comunista à sua ascensão. Nas Teses a debilidade do Estado e da estrutura social que o suporta encontra origens bem definidas, representando já uma antecipação da leitura da Questão meridional e dos Cadernos do Cárcere. A Itália tornou-se Estado unitário principalmente pela concomitância de situações favoráveis ao nível internacional, utilizadas com inteligência pelos liberais de Cavour. O fortalecimento do Estado nascido do Risorgimento aconteceu através de um compromisso entre o capitalismo industrial e as classes proprietárias (latifundiários e pequena burguesia), e sobre as quais a nova nação podia exercer uma hegemonia muito limitada15. O compromisso, base da unidade nacional e que sustentava o bloco histórico das classes dirigentes, tinha um seu fundamento no desenvolvimento desigual entre Norte e Sul, razão pela qual o enriquecimento do primeiro era inversamente proporcional ao empobrecimento do segundo. Este tipo de desenvolvimento aparecia para as populações meridionais como uma situação colonial, assumindo a grande indústria setentrional o papel das metrópoles capitalistas. Os grandes proprietários agrários e a pequena burguesia do Sul tinham a mesma função das camadas sociais que nas colônias, se aliavam às metrópoles para conservar a condição de subalternidade das classes trabalhadoras. Desde as origens do Estado unitário, a tarefa das classes dirigentes foi exatamente conservar esta condição de sujeição dos subalternos. Mas em uma perspectiva histórica mais ampla, este compromisso acabava por revelar-se inadequado, pois representava um freio ao pleno O Congresso de Lyon acontece depois da Conferência nacional de Como ‒ cidade da Lombardia ‒ do ano de 1924, que levou Gramsci à liderança do partido. 15 Id. Ib., pp. 491, 492. 14 15 Revista Práxis e Hegemonia Popular, ano 4, n. 4, p. 9-20, jan./jul., 2019 - ISSN 2526-1843 desenvolvimento das forças produtivas, pondo-se como o principal fermento da mobilização das massas contra o Estado. O fascismo encontra uma unidade ideológica e organizativa nas formações paramilitares que herdam a tradição do “arditismo” e o aplicam à guerrilha contra as organizações dos trabalhadores. Para as Teses, o fascismo realiza o seu plano de conquista do Estado com a mentalidade do “capitalismo nascente”, aquela que fornece à pequena burguesia uma homogeneidade ideológica em contraposição aos velhos grupos dirigentes16. Todavia, com a tomada do poder, o método fascista de defesa da ordem, da propriedade e do Estado não consegue levar adiante, pronta e totalmente, este nível de centralização da burguesia. Pelo contrário, a tradução política e econômica dos seus propósitos produz muitas resistências nas próprias classes dirigentes. As duas tradicionais vertentes da burguesia liberal italiana não se deixam dobrar totalmente com a ascensão ao poder do fascismo. Isso explica a luta contra os grupos não assimilados e contra a maçonaria. No plano econômico, o fascismo trabalha totalmente em favor das oligarquias industriais e agrárias, frustrando as expectativas da sua verdadeira base social. Isso acontece nas políticas comerciais, com o protecionismo, na política financeira, com a centralização do sistema do credito bancário em total benefício da grande indústria, na produtividade, com o aumento dos horários de trabalho e a redução dos salários. Todavia, o verdadeiro ponto de chegada do fascismo está na política externa e as suas aspirações imperialistas, em relação às quais as Teses descrevem uma ideia que irá se concretizar catorze anos depois17. O plano de estudo dos Cadernos de Cárcere Já no primeiro Caderno aparece analisado um tema que é orgânico a toda a obra de Gramsci, qual seja, a fraqueza das classes dirigentes italianas: a interrupção no desenvolvimento da civilização comunal e a falta da formação de um estado unitário moderno, os limites do Risorgimento, a ausência de uma dialética parlamentar na idade liberal e o fenômeno do transformismo. Este último, para Gramsci, não foi apenas um problema dos maus costumes políticos, mas um preciso processo de cooptação com o qual, do Risorgimento ao fascismo, as classes dominantes conseguiram a consolidação do 16 17 Id. Ib. p. 495. Id. Ib., p. 497. 16 Revista Práxis e Hegemonia Popular, ano 4, n. 4, p. 9-20, jan./jul., 2019 - ISSN 2526-1843 seu poder por meio da eliminação dos grupos avessos ao Estado. Estas análises, que esboçam os termos de uma “biografia nacional”, são essenciais tanto para a história quanto para a Ciência política, e nelas estão contidas algumas tendências que ciclicamente se repetem na vida política italiana, especialmente nos seus períodos de crise. Todavia, a originalidade que elas encerram está na definição do Estado como uma sociedade civil bem organizada. Cada sistema de poder não se sustenta só com a utilização da força, mas também através do consenso, ou seja, a capacidade de formar politicamente, culturalmente e socialmente o que é consenso na opinião pública. E eis a função essencial dos intelectuais em uma sociedade moderna, o grande tema da sociedade civil, uma função articulação no âmbito de uma esfera mais ampla, também definida como Estado. Nos Cadernos do cárcere, também as reflexões sobre o processo da unificação nacional italiana, têm uma perspectiva na qual as dinâmicas das conquistas hegemônicas, em particular através da produção historiográfica e da ação ideológicas dos intelectuais, são centrais. A partir desta dinâmica, Gramsci destacou as modalidades de composição das classes dirigentes, através de um processo de cooptação e absorção metódica dos novos elementos surgidos das novas dinâmicas sociais, o qual marcou toda a história da Itália, do Risorgimento ao fascismo. Desta forma, também grupos inicialmente hostis foram progressiva e molecularmente absorvidos pelos aparelhos do Estado até se tornarem um suporte dele. A hegemonia moderada sobre o Partito d’Azione é, para Gramsci, um dos temas mais paradigmáticos da história das classes dirigentes italianas e constitui, de modo geral, um daqueles momentos cruciais para compreender a função dos intelectuais na definição das estruturas de hegemonia e dominação de uma sociedade. Nos Cadernos, o transformismo foi delineado como uma das formas históricas fundamentais da dupla “revolução-restauração” ou “revolução passiva”, na formação do moderno Estado italiano. O transformismo constituía um documento “histórico-real” da natureza dos partidos que se apresentaram como revolucionários na fase da ação militante. Desta dinâmica fazia parte a história das classes dirigentes italianas, do Risorgimento em diante, e Gramsci a dividiu em duas fases distintas: a) de 1860 a 1900, caracterizada pelo “transformismo molecular”, com a absorção de numerosas personalidades políticas surgidas nos partidos democráticos de oposição às bases de domínio da classe política moderada e conservadora; b) de 1900 em diante, com a passagem de grupos inteiros para o campo dos moderados e reacionários, como no exemplo da passagem do sindicalismo 17 Revista Práxis e Hegemonia Popular, ano 4, n. 4, p. 9-20, jan./jul., 2019 - ISSN 2526-1843 revolucionário e de grupos anarquistas para as fileiras do nacionalismo, durante a guerra da Líbia (1911-1912) e, posteriormente, com o intervencionismo. Esses conceitos são articulados por meio de uma perspectiva histórica de mais amplo alcance no apontamento do Caderno 10 intitulado Paradigmas da história éticopolítica, segundo o qual, pela transformação do Estado e da criação do corporativismo, o próprio fascismo produzia mudanças na estrutura produtiva em direção da socialização e cooperação na produção, sem afetar as modalidades individuais e privadas de apropriação do lucro. Concretamente, isso significava que, por meio do fascismo, buscava-se um desenvolvimento das forças produtivas industriais, sem tirar a direção das mãos das classes tradicionais, permitindo assim ao capitalismo italiano sair da sua crise orgânica e competir com as potências capitalistas detentoras do monopólio de matérias-primas e de maior capacidade de acumulação18. A Itália foi o ponto nevrálgico da crise da civilização europeia do pós-guerra, não tendo sido, portanto, casual que o fascismo tenha nascido ali e os Cadernos buscam analisar as causas e os efeitos deste processo. Quando uma classe perde o consenso e deixa de ser dirigente, limitando-se a ser dominante através do uso da força, significa que as grandes massas são destacadas das ideologias tradicionais e dos valores dos velhos partidos. Eis porque Gramsci sintetiza a crise que se abre depois da guerra com a frase tornada muito famosa “o velho morre e o novo não pode nascer”. Item conclusivo É possível afirmar que toda a obra de Gramsci (cartas, artigos, documentos políticos, notas) nos conduz a um quadro orgânico intimamente marcado pelo drama do fascismo. E no estudo desta obra é preciso saber identificar as diferenças qualitativas entre os materiais, como por exemplo aqueles escritos antes e depois do advento do fascismo. Podemos afirmar que os Cadernos sejam um trabalho mais sistemático, que tenta voltar às causas mais profundas do fascismo. Todavia, esta obra desenvolve e articula algumas intuições já bem presentes nos escritos precedentes ao seu aprisionamento. Não são o fruto de uma virada ideológica, nem, menos ainda, o resultado de um seu afastamento do mundo político ao qual dedicou toda a sua existência. O fascismo era uma forma moderna de poder autoritário em comparação com os velhos regimes reacionários, dada a sua constante pesquisa do consenso popular e o uso 18 Gramsci, A. Cadernos do Cárcere, Einaudi, Torino, 1975, p. 1229. 18 Revista Práxis e Hegemonia Popular, ano 4, n. 4, p. 9-20, jan./jul., 2019 - ISSN 2526-1843 hábil da demagogia. O corporativismo cabia nesta exigência e, não obstante a sua presença desde o início do movimento, é preciso não esquecer que a teoria do “terceiro sistema” (nem comunismo, nem capitalismo) foi desenvolvida só depois de 1930, objetivando afrontar a crise e o descontentamento popular, dadas as piores condições de vida e trabalho imperantes. A afirmação da paridade entre capital e trabalho foi só retórica e a exigência de conciliar os interesses contrapostos, na verdade mal escondia a tarefa primária de suprimir o conflito social da subjetividade política dos trabalhadores. A característica mais moderna do projeto autoritário do fascismo está na capacidade de abrir novas trincheiras para a tarefa de controlar as massas. E aqui está o papel das palavras de ordem, voltadas a prospectar um futuro de grandeza. Portanto, a habilidade de exercer também domínio e direção, falando com categorias gramscianas: força mais hegemonia. O homem novo fascista não era um indivíduo tornado consciente por si e patrão do próprio destino, mas o cidadão-soldado, que esvazia a própria individualidade para deixar-se absorver integralmente na comunidade totalitária19. Por isso o regime centralizou as funções da educação com a reforma escolar realizada pelo filósofo fascista Giovanni Gentile (1875-1944). E organizou estruturas como os filhos das lobas e os jovens balilla para crianças e meninos, grupos de universitários fascistas, os littoriais da cultura, a obra do pós-trabalho fascista e muitas outras articulações com a tarefa de garantir sempre uma participação passiva na vida política e cultural do regime. O fascismo é uma forma nova e moderna de regime autoritário, típica de uma fase histórica marcada pela política de massa, porque se impõe a tarefa de envolver o povo em todas as manifestações de existência e autorrepresentação do regime, organizando todos os aspectos da vida individual em função do interesse nacional. O fascismo investiu altos recursos para desenvolver uma autônoma indústria do cinema nacional, capaz de difundir valores culturais independentes do padrão da outra grande indústria mundial, a dos Estados Unidos. Assim foram criados os grandes estúdios Cinecittà e a Mostra Internacional do Cinema de Veneza, lançando os fundamentos de uma grande tradição que encontrou a sua fase de maior sucesso e desenvolvimento depois da Segunda Guerra Mundial. O aspecto mais moderno do fascismo é exatamente a utilização dos instrumentos da comunicação de massa, cinema, rádio, jornais, artes figurativas, para construir o consenso e o mito da invencibilidade do Duce. Para isso é constituído o 19 Gentile, E. La via italiana al totalitarismo. Roma: Carocci, 2008, p. 148. 19 Revista Práxis e Hegemonia Popular, ano 4, n. 4, p. 9-20, jan./jul., 2019 - ISSN 2526-1843 Ministério da Cultura Popular, Imprensa e Propaganda, que será a inspiração fundamental para o regime nacional-socialista de Hitler e em particular do seu propagandista Goebbels. Referências GENTILE, E. La via italiana al totalitarismo. Roma: Carocci, 2008. GRAMSCI, A. Lotta di classe e guerra, «Avanti!» ed. piemontese, 19 agosto 1916. ____________. Scritti giovanili 1914-1918, Einaudi, Torino, 1975. ____________. Socialismo e Fascismo, Einaudi, Torino 1978. ____________. L’Ordine Nuovo 1919-20, Einaudi, Torino, 1987. ____________. Per un rinnovamento del Partito socialista, “L’Ordine Nuovo”, II, 1, 8 maggio 1920. In L’Ordine Nuovo 1919-1920, Einaudi, Torino, 1978, p. 510. ____________. Cadernos do Cárcere, Einaudi, Torino, 1975. Recebido em 13 de junho de 2019 Aprovado em 30 de junho de 2019 Editado em 10 de setembro de 2019 20