A história de um subgênero ficcional: uma proposta de mapeamento das
telenovelas espíritas
The history of a fictional sub-genre: a mapping proposal of the spiritualist telenovelas
La historia de un subgénero de ficción: una propuesta cartográfica de las telenovelas espiritistas
Marcos Vinicius Meigre e Silva – Universidade Federal de Minas Gerais | Belho Horizonte|
MG | Brasil | E-mail: marcosmeigre@hotmail.com | https://orcid.org/0000-0002-8956-5547
Resumo: Apresento uma proposta de mapeamento das telenovelas espíritas, a partir da
consulta a listas e vídeos de comentaristas sobre telenovela brasileira. A sistematização
acompanha a cronologia da própria televisão brasileira e da telenovela em particular. Amparo-me em autores que investiram na proposição de linhas cronológicas, respectivamente, para a TV e para a telenovela nacional a fim de captar traços constitutivos do
audiovisual brasileiro. Como corpus, adoto 12 listas que enumeram as principais telenovelas espíritas produzidas no país. Assim, estabeleço 5 fases da telenovela espírita brasileira:
(1) pioneirismo nascente com o formato telenovela; (2) crescimento dúbio entre a fidelidade doutrinária e o ecumenismo; (3) recrudescimento do espiritismo na ficção e avanço
do sincretismo; (4) virada espírita e consolidação do subgênero; e (5) explosão de telenovelas espíritas, concomitantes a outros segmentos religiosos de projeção no audiovisual.
Palavras-chave: Telenovela brasileira. Telenovela espírita. Religião.
Abstract: I present a mapping proposal of the spiritualist telenovelas, based on the consultation of lists and videos of commentators about Brazilian telenovela. The systematization follows the chronology of Brazilian television itself and of telenovela in particular. I
base myself on authors who invested in the proposition of chronological lines, respectively,
for TV and for the national telenovela in order to capture constitutive traits of the Brazilian
audiovisual. As corpus, I adopt 12 lists that enumerate the main spiritualist telenovelas
produced in the country. Thus, I establish 5 phases of the Brazilian spiritist telenovela: (1)
nascent pioneering with telenovela format; (2) dubious growth between doctrinal fidelity
and ecumenism; (3) upsurge of spiritism in fiction and advance of syncretism; (4) spiritist
turn and consolidation of the sub-genre; and (5) explosion of spiritist telenovelas, concomitant to other religious segments of projection in the audiovisual.
Keywords: Brazilian telenovela. Spiritist telenovela. Religion.
Resumen: Presento una propuesta de mapeo de las telenovelas espiritistas, a partir de la
consulta de listas y videos de comentaristas de la telenovela brasileña. Obedeciendo a la
cronología de las producciones, la sistematización sigue la cronología de la propia televisión
brasileña y de la telenovela en particular. Me apoyo en autores que invirtieron en la propuesta de líneas cronológicas, respectivamente, para la televisión y para la telenovela nacional con el fin de captar rasgos constitutivos del audiovisual brasileño. Como corpus,
adopto 12 listas que enumeran las principales telenovelas espiritistas producidas en el país.
Así, establezco 5 fases de la telenovela espiritista brasileña: (1) pionerismo incipiente con
el formato telenovela; (2) crecimiento dudoso entre fidelidad doctrinal y ecumenismo; (3)
auge del espiritismo en la ficción y avance del sincretismo; (4) giro espiritista y consolidación del subgénero; y (5) explosión de las telenovelas espiritistas, concomitante a otros
segmentos religiosos de proyección en el audiovisual.
Palabras clave: Telenovela brasileña. Telenovela espiritista. Religión.
Recebido em 08 de setembro de 2021. Aprovado em 15 de outubro de 2021.
e-issn: 2177-5788. DOI: https://doi.org/10.22484/2177-5788.2021v47n2p319-339
©2021. Conteúdo de acesso aberto, distribuído sob os termos da Licença Internacional
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reprodução, desde que atribuam os devidos créditos à publicação, ao(s) autor(es) e que
licenciem as novas criações sob termos idênticos.
1 Introdução
Poucos produtos televisivos encontram tamanha vitalidade em sua
história na TV brasileira como a telenovela. Caminhando lado a lado com a
evolução do próprio meio, a telenovela brasileira representa um marco na
organização audiovisual a ponto de ser interpretada como a responsável,
conforme Lopes (2009), por orquestrar um imaginário de nação. Nessa linha, entender-se enquanto brasileiro e tomar ciência das pautas sociais,
políticas, culturais, históricas, econômicas e religiosas do país perpassou,
necessariamente, o universo ficcional tecido pelos novelos que, há sete décadas, povoam a programação. Nos anos de 1950, no desabrochar da TV
em terras nacionais, a ficção era levada ao ar ao vivo e com periodicidade
que variava entre semanal, quinzenal e mensal, dadas as condições técnicas
do meio e a inevitável instabilidade de um suporte ainda em descoberta por
parte dos realizadores. Da década de 1960 em diante, segundo Fernandes
(1987), tivemos a inserção das produções ficcionais diárias, inauguradas
com a exibição de 2-5499 Ocupado, na extinta TV Excelsior, no formato
como a consumimos até os dias atuais, ainda que com inúmeras variações
estéticas, temáticas e narrativas, que foram se complexificando ao longo
do tempo e permitiram a abertura para debates mais latentes, como as
práticas religiosas.
Desde então, os folhetins ocuparam a agenda nacional e mobilizaram
atores sociais, pautas educativas, assuntos políticos de relevância, considerando o amplo público ao qual sempre se dirigiram estas produções, posto
que “toda a sociedade, com maior, menor ou sem escolaridade, homens e
mulheres, crianças, jovens e adultos, residentes nas mais diferentes regiões
do país discutem a temática social pautada pela telenovela” (BACCEGA,
2003, p. 8). A partir da preocupação com temáticas sociais, orientadas por
princípios educativos denominados de merchandising social, para Balogh
(2001), as telenovelas debateram pontos cruciais para a agenda nacional,
muitas vezes com maior repercussão e respaldo que produções não-ficcionais.
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É entendendo o gênero telenovela como este locus de funcionamento
social dos relatos, conforme Martín-Barbero (2013) sobre quem somos enquanto sociedade que pretendo investigar como a temática religiosa, especificamente ligada ao espiritismo, surgiu e se desenvolveu na ficção nacional. Com esta investida, anseio traçar aqui uma linearidade de um segmento específico da produção ficcional brasileira: as telenovelas espíritas.
Trata-se de investimento em um recuo histórico para capturar os rastros do
espiritismo pela dramaturgia nacional ao longo das mais de seis décadas de
produção audiovisual diária de excelência no país. Desde o começo da dramaturgia brasileira, é possível localizar ainda nos anos de 1960 pistas sobre
a incursão da temática espírita no universo ficcional e seus desdobramentos, evoluções, adaptações, recuos, ressignificações e modulações experimentadas nas décadas posteriores.
Refletir o papel do meio televisivo num debate que envolve aspectos
religiosos da sociedade brasileira me motivou a levantar as bases constitutivas deste que se tornou um importante subgênero na ficção televisiva
brasileira contemporânea. Mas, afinal, quando as novelas começaram a
abordar a temática espírita? Quais pontos abordados nas obras ajudaram a
modelar um imaginário que lhes cravou tal alcunha? Quais novelas aparecem neste acervo? Mattos (2002), ao estudar as etapas vividas pela televisão brasileira desde seu desembarque no porto de Santos, cercada de misticismo e expectativas, propõe que o meio saiu de uma fase elitista, passando por épocas populistas, de desenvolvimento tecnológico, de transição
e expansão internacional, da globalização e TV paga, até chegar aos dias
atuais, na era da convergência e da qualidade digital. Enquanto a TV se
transformava a partir das vivências destas etapas, a telenovela também
vivia mudanças que levaram Lopes (2009) a pensar a ficção brasileira dividida em três fases: sentimental (1950-1967), realista (1968-1990) e naturalista (1990 em diante), partindo de um precursor investimento na exacerbação das atuações até chegar às pautas e abordagens mais próximas
ao cotidiano do público.
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É inspirado nestes autores, responsáveis por delinear marcos históricos para entender as alterações vividas na TV e na telenovela, que proponho uma investigação para montar as fases da telenovela espírita na TV
brasileira. A apresentação dos resultados segue a linearidade de ocorrências
das tramas ficcionais ao longo dos anos. Assim, parto de uma categorização
por década (ou junção de duas décadas) para traçar o surgimento, o crescimento, a maturidade, a diversificação e consolidação, bem como explosão
do subgênero melodramático das telenovelas espíritas, conforme Silva
(2018, 2019ab, 2021).
2 Proposta metodológica de sistematização das telenovelas espíritas
Estudar a telenovela e sua manufatura complexa de produção diária,
envolvendo tessituras, demandas e modos de confecção específicos, é uma
tarefa desafiadora não apenas pela multiplicidade de abordagens possíveis,
como também pela dimensão proporcional destas obras (que podem ultrapassar 200 capítulos diários) e a longevidade de um gênero em permanente
revitalização – apesar dos discursos apocalípticos que lhe intentam demarcar uma finitude, juntamente à televisão enquanto meio. Para a proposta
de mapear as telenovelas espíritas da ficção brasileira, não seria possível
revisitá-las integralmente, algumas inclusive sequer contam com acervo
disponível. Uma saída para este estudo, no entanto, foi acionar a crítica
televisiva, reportagens em sites noticiosos e vídeos de comentadores de
telenovelas para que pudesse se estabelecer um universo de tramas e sua
cronologia. Para tanto, coletei seis materiais jornalísticos de sites noticiosos1 e seis vídeos disponibilizados em diferentes canais do Youtube em que
1
Do total de 6 conteúdos enquadrados na categoria “noticiosos”, incluo 5 reportagens e 1
lista disponibilizada no site de pesquisa Wikipedia. A concepção que me orienta a pensar
gênero televisivo como categoria cultural advém de Jesús Martín-Barbero (2013), para
quem um gênero existe na interseção com agentes externos ao texto da obra em si.
Assim, categorizar tramas como espíritas a partir de diferentes agentes, sejam eles sites
de empresas jornalísticas oficiais ou não, ajudam a capturar os sentidos que circulam em
torno destas ficções e quais delas acionam um imaginário sobre espiritismo.
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se debatiam as “novelas espíritas” e apresentavam seus antecedentes, tramas similares, recuos no gênero, etc. Este movimento me conduziu aos
seguintes conteúdos listados na tabela abaixo:
Quadro 1 – Lista de telenovelas espíritas coletadas na internet
Título do conteúdo
Link para acesso
Tipo do
material
Relembre novelas que
já abordaram temas
espíritas,
como
reencarnação
13 provas que a Globo
adora
uma
novela
mística
Relembre nove novelas
que trataram do tema
espiritismo, assim como
Espelho da Vida
Espiritismo na telinha:
relembre
novelas
espíritas já exibidas na
TV brasileira
Relembre 6 novelas
com temática espírita
https://www.purepeople.com.br/noticia/relem
bre-novelas-com-tema-espirita-como-altoastral-que-estreia-nesta-segunda_a29697/1
Reportagem
https://vejasp.abril.com.br/blog/listamania/1
3-provas-que-a-globo-adora-uma-novelamistica/
https://natelinha.uol.com.br/novelas/2018/0
9/13/relembre-nove-novelas-que-trataramdo-tema-espiritismo-assim-como-espelho-davida-119866.php
https://www.clickgratis.com.br/virtual/televis
ao/novelas/espiritismo-na-telinha-relembrenovelas-espiritas-ja-exibidas-na-tv-brasileira/
Reportagem
http://diariogaucho.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/noticia/2015/03/relembre-seisnovelas-com-tematica-espirita4727860.html
https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_obras_
audiovisuais_relacionadas_a_fen%C3%B4me
nos_esp%C3%ADritas#Telenovelas
Reportagem
https://www.youtube.com/watch?v=SEv3dk5
Dg0A
https://www.youtube.com/watch?v=RDd5ItQ
1AmM
Vídeo
https://www.youtube.com/watch?v=yozxnxA
nqPU
https://www.youtube.com/watch?v=CL9Eqst
GyZg
https://www.youtube.com/watch?v=q1HGNM
lFehg
https://www.youtube.com/watch?v=kl1kppt0
YO8
Vídeo
Lista
de
obras
audiovisuais
relacionadas
a
fenômenos espíritas
Top 10 novelas espíritas
5 novelas espíritas que
marcaram
a
teledramaturgia
brasileira
5 melhores novelas
espíritas da TV
Espiritismo nas novelas
da Globo
Novelas espíritas da
Globo – TOP 15
Top 15 novelas espíritas
(ordem cronológica)
Reportagem
Reportagem
Site/
pesquisa
Vídeo
Vídeo
Vídeo
Vídeo
Fonte: Elaborado pelo autor
Após a averiguação deste material, procedi a uma contagem do
acervo citado, mensurando quais telenovelas apareceram e quantas vezes
foram lembradas pelas listas. Assim, para que uma trama obtivesse 100%
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de ocorrências, era preciso estar presente nas 12 listas totais. A contagem
final das listas e das tramas mencionadas resultou na seguinte tabela:
Quadro 2 – A presença de telenovelas espíritas em listas na internet
TELENOVELA
Alma Gêmea
A Viagem (remake)
Anjo de Mim
Escrito nas Estrelas
Além do Tempo
Amor Eterno Amor
O Profeta (remake)
Alto Astral
O Sexo dos Anjos
Espelho da Vida
A Viagem (TV Tupi)
Sétimo Sentido
Somos Todos Irmãos
O Terceiro Pecado
O Profeta (TV Tupi)
Páginas da Vida
O Astro
Amor à Vida
Joia Rara
De Quina pra Lua
Quantidade
de listas em
que é citada
12
11
10
10
9
9
7
6
6
4
4
4
3
3
3
3
2
2
1
1
Porcentagem sobre o total de
listas
100%
91,6%
83,3%
83,3%
75%
75%
58,3%
50%
50%
33,3%
33,3%
33,3%
25%
25%
25%
25%
16,6%
16,6%
8,3%
8,3%
Fonte: Elaborado pelo autor
A partir da coleta das 12 listas, somente “Alma Gêmea” foi lembrada
entre todos os comentadores em suas recapitulações sobre o subgênero das
telenovelas espíritas, seguida pelo remake de “A Viagem”, que não foi citada em apenas uma lista, e finalizando o pódio estão “Anjo de Mim” e
“Escrito nas Estrelas”, com 10 citações cada. Entre as mais citadas, chama
atenção o fato de que todas elas são de autorias distintas, o que reforça a
tese de pulverização da temática espírita na ficção; e também o fato de que
são tramas dos anos 1990 para cá, quando já se pode falar numa solidifi-
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cação do subgênero. Assim, tramas de décadas precedentes são menos acionadas quando o assunto emerge nas pautas listadas por reportagens, sites
de críticos e comentadores de televisão na internet.
Este acervo me conduziu, a partir das tramas citadas, a uma investigação em sites de pesquisas sobre telenovelas2, textos críticos, reportagens
e materiais avulsos para apreender maiores detalhes sobre cada obra, sua
repercussão, linhas de enredo e desdobramentos. É nesse sentido que apresento, da próxima seção em diante, o panorama das telenovelas espíritas
em ordem cronológica e posicionadas conforme distintas fases que sugiro
serem relevantes para adensar o debate sobre o assunto. Procedo a uma
análise do conteúdo destes sites de pesquisa para: (1) posicionar as telenovelas historicamente; (2) caracterizar brevemente suas linhas de ação;
(3) identificar aspectos do espiritismo abordado em cada trama; (4) problematizar o que cada trama representa na organização do subgênero.
Dessa maneira, importam menos os minuciosos detalhes de composição de
cada narrativa e mais as condições em que foram produzidas, as repercussões geradas, os caminhos trilhados no processo em que se viu atrelar ficção e religião.
3 Pioneirismos no ar: o surgimento da telenovela diária e da abordagem espírita (1960)
Quando a televisão deu seus primeiros passos com relação a produções ficcionais diárias, ainda na década de 1960, a expertise quanto ao fazer
televisivo estava em vias de construção, tratando-se de uma época em que
mais se experimentava do que, de fato, se tinha plena noção das potencialidades do meio. Nesse período, começaram as produções de telenovelas
nacionais, amparadas num formato que as distanciava da realidade brasileira, marcada por idealizações mágicas e mundos totalmente díspares ao
cotidiano sociocultural do país, fase esta denominada de sentimental, con-
2
A maior parte das seções subsequentes contaram com material extraído dos sites Memória Globo (2021) e Teledramaturgia (2021).
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forme Lopes (2009), em que as tramas carregavam na exacerbação de subjetividades das personagens, atuações estridentes e exploração de situações comoventes em nada similares à vida real. “Em primeiro lugar, notase que, na origem, a novela era ou podia ser enredada, entrelaçada, literalmente enovelada; podia ser ainda inverossímil, exatamente a acusação
que mais se faz à telenovela” (PALLOTTINI, 2012, p. 32).
Nestes primeiros passos, temos a precursora de nosso estudo sobre
o espiritismo. De maio a outubro de 1966, a TV Tupi produziu e exibiu a
telenovela “Somos Todos Irmãos”, escrita por Benedito Ruy Barbosa e dirigida por Wanda Cosmo a partir de adaptação do romance mediúnico “A
vingança do judeu”, ditado pelo espírito J. W. Rochester e psicografado por
Wera Krijanowskaia. A telenovela narrava a história do judeu Samuel Mayer
(Sérgio Cardoso) e sua paixão por Valéria (Rosamaria Murtinho), filha do
Conde Egon (Elísio de Albuquerque) e de origem católica. A trama se passava na Hungria do século XIX e trazia a ruína financeira da família de Egon,
que se viu obrigado a ceder a mão da filha ao judeu, pois ele prometeu
quitar as dívidas. Mesmo aceitando o casamento, Valéria rejeitava a ideia
por serem de religiões distintas, mas depois acabou apaixonada pelo homem. No entanto, uma nova reviravolta trazia à trama Raul (Wilson Fragoso), que se apaixonava por Valéria e arcava com as dívidas da família da
mocinha. Ela, por sua vez, a essa altura havia se apaixonado por Samuel,
mas obedeceu às orientações do pai. Samuel então decidiu se vingar e,
após casar-se com Ruth (Guy Loup), a esposa e Valéria deram à luz no
mesmo dia e ele trocou os bebês, para que os católicos criassem uma criança judia. Mas Samuel foi se entristecendo com o caráter da esposa e,
após uma conversa com o pai falecido, a história começa a destacar o lado
mediúnico da obra, quando “Samuel sente-se renascer e resolve estudar o
kardecismo, transformando-se em um novo homem: quer fazer o bem”
(TELEDRAMATURGIA). Após as revelações sobre as trocas de bebês, a chegada de uma criança “bastarda”, a tentativa de Raul se vingar de Samuel,
ele matou o próprio filho e “Raul fica desesperado, mas é convencido por
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Samuel da vida após a morte e se reconforta estudando a doutrina kardecista” (TELEDRAMATURGIA). Livres de culpas e abençoados até mesmo por
Raul, a cristã Valéria e o judeu Samuel finalmente se casaram e terminaram
vivendo juntos.
Esta telenovela marca os primórdios da ficção brasileira, quando as
tramas eram patrocinadas por empresas comerciais que, neste caso, era
financiada por Colgate-Palmolive. Pelo enredo, nota-se a inserção da temática religiosa a partir do viés conflitivo (judeu versus cristão) de intolerância.
A dimensão do espiritismo, por sua vez, surge na obra como mola solucionadora destes conflitos, permitindo que a vingança norteadora da trama
fosse revista pelo personagem Samuel e laços de afeto fossem retomados
entre os protagonistas para a consagração do amor romântico. A referência
explícita ao kardecismo como doutrina e o fato de ser um romance mediúnico denotam a trama como obra inspirada no espiritismo, ainda que não
tenha repercutido como tal à época de exibição. Assim como transcorre
durante a fase de uma televisão elitista, de acesso a poucos, tem-se aqui
um protótipo de telenovela espírita que, baseada em romance mediúnico,
indicava como possibilidade de produção somente as adaptações literárias
para a TV, seguindo a própria tendência do meio em sustentar-se na literatura como parâmetro de qualidade para a produção das ficções. Nesse sentido, não se tratava de reconhecer a obra “Somos Todos Irmãos” como fundadora de um subgênero, mas sim como a identificação de seu pioneirismo
quanto à abordagem temática.
Além disso, a adaptação mediúnica é reveladora de dois aspectos importantes: primeiro, a necessária submissão a um texto previamente existente (literatura), sem dotar de liberdade criativa para abordagem do tema
espiritualista, como se reafirmasse que a produção oriunda da literatura
fosse garantia de qualidade para migração a outros meios; segundo, a
adaptação de um romance que foge ao escopo dos grandes e principais
nomes de médiuns espíritas – como Chico Xavier, que já se destacava à
época. Estas considerações nos ajudam a firmar “Somos Todos Irmãos”
como a fase primitiva do espiritismo na ficção brasileira que, apesar das
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demarcações explícitas à doutrina, ainda não representava um universo sedimentado para debate do tema. No entanto, a relevância da obra, mesmo
quando não lembrada, é exponencial se pensarmos no desbravamento que
ela significou ainda em tempos de ditadura militar e dos debates religiosos
(judeus, católicos, espíritas) que levantou.
Ainda na década precursora, a telenovela “O Terceiro Pecado”, de
Ivani Ribeiro para a TV Excelsior, foi exibida de janeiro a julho de 1968,
contando com direção de Walter Avancini e Carlos Zara. Esta narrativa costuma ser associada a roteiros espíritas por conta da proposta central de
contar a história do Anjo da Morte que enviava Alexandre (Gianfrancesco
Guarnieri) para a Terra a fim de buscar Carolina (Regina Duarte). Ao se
apaixonar pela moça, o anjo resolveu que melhor seria levar a irmã Ruth
(Maria Isabel de Lizandra), barganha não aceita pela Morte. A trama demonstra a incursão de Ivani pelo tema sobrenatural, como se uma espécie
de primeiros ensaios para a produção de textos detidamente mais robustos
na temática espiritualista que a novelista desenvolveria em décadas posteriores. Por estas razões, aliadas às condicionantes técnicas do período, a
primeira fase das telenovelas espíritas ressalta a dependência à literatura
mediúnica disponível (Somos Todos Irmãos) e a uma abordagem mística
envolvendo crenças genéricas em torno do binário vida/morte (O Terceiro
Pecado). Vale destacar também a precariedade de conteúdos originais destas obras, que alude não só a um traço de esquecimento das origens do
tema, como da própria história do meio que possui hoje poucos materiais
das primeiras fases da TV nacional. As duas tramas receberam, cada uma,
o equivalente a 25% do total de lembranças nas listas coletadas.
4 Crescimento em duas vias: fidelidade doutrinária e ecumenismo (1970)
Depois de uma primeira década com traços rudimentares de produção
ficcional diária, a televisão brasileira começava a encontrar caminhos, estilos, técnicas e artifícios próprios para a identidade de suas ficções. Nos anos
1970, segundo Mattos (2002), a telenovela diária já se sagrava como um
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hábito relacionado ao consumo de TV no país, com o aparelho em proliferação entre as diferentes camadas sociais. É nessa fase que temos as produções “A Viagem” e “O Profeta”, ambas de Ivani Ribeiro para a TV Tupi.
“A Viagem”, dirigida por Edson Braga, Atílio Riccó e Carlos Zara, foi
ao ar de 1 de outubro de 1975 a 27 de março de 1976. A trama é declaradamente espírita e marcou um divisor de águas na cronologia das produções para o subgênero que aqui é apresentado. Inspirada nas obras mediúnicas de Chico Xavier, “Nosso Lar” e “E a vida continua…”, contou com a
supervisão de textos de Herculano Pires, um importante nome do meio espírita nacional. A história do espírito de Alexandre (Ewerton de Castro) e
suas tormentas causadas aos que ele julga culpados de sua morte fizeram
nascer as representações em torno da colônia espiritual Nosso Lar e também do Vale dos Suicidas. Esta foi uma das produções de maior sucesso da
TV Tupi em sua fase final de existência, algo que também caracterizou “O
Profeta”, dirigida por Antonio Seabra e Álvaro Fugulin e exibida entre 24 de
outubro de 1977 e 29 de abril de 1978.
“O Profeta” marcou a fase de derrocada da TV Tupi, que encerraria as
atividades dois anos após a trama ser levada ao ar. A obra trouxe a história
do paranormal Daniel (Carlos Augusto Strazzer) e sua capacidade de visualizar o passado e prever o futuro que, assessorado por pessoas ambiciosas,
acabam conduzindo de forma errônea o protagonista. A trama trazia núcleos católicos e também espíritas, inclusive tendo contado com uma sequência em que o pai e a irmã de Daniel, Francisco (Aldo César) e Ester
(Ana Rosa), visitavam Chico Xavier em Uberaba e levavam uma mensagem
do médium ao rapaz. Por outro lado, o tom ecumênico da trama veio carimbado com a presença de outras lideranças, como Dom Paulo Evaristo
Arns, arcebispo de São Paulo à época. O sucesso da produção foi tão significativo que levou a emissora concorrente, TV Globo, a desenvolver “O Astro”, de Janete Clair, com temática similar envolvendo a paranormalidade.
Esta década representou dois movimentos distintos para as telenovelas espíritas: de uma primeira produção declaradamente doutrinária, seguiram-se duas obras investidas no sobrenatural e paranormalidade com apelo
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ecumênico que, mesmo quando citadas como referenciais para o subgênero, não são reconhecidas como grandes exemplares. De certa forma, esta
fase em muito é devedora aos caminhos descortinados pela década anterior, consolidando marcas de um imaginário sobre espiritualidade, espiritualismo, capacidades mediúnicas e atuações sensitivas. O duplo caminho,
adotado inclusive por Ivani Ribeiro, pode ser interpretado como uma estratégia de assimilação da temática e convencimento de públicos mais amplos,
o que viria a motivar produções subsequentes também alicerçadas na diversidade sincrética atrelada ao ideário de espiritismo na ficção. “A Viagem”, “O Profeta” e “O Astro” contaram, respectivamente, com 33,3%,
25% e 16,6% de citações nas listas.
5 Recuos na temática espírita: sincretismo e apagamento (1980)
Para se expandir, ao longo da década de 1980, a temática espírita
precisou viver uma adaptação em que suas marcas se tornaram mais sincréticas e pulverizadas. Tramas como “Sétimo Sentido” e “O Sexo dos Anjos” marcam esta etapa e ditam um ritmo de produção orientadas para
traços espiritualistas, sem a necessária vinculação à doutrina espírita. São
obras calcadas na exploração do composto vida e morte como dualismos
passíveis de ficcionalização, independente da corrente religiosa.
“Sétimo Sentido”, de Janete Clair, foi ao ar de 29 de março a 8 de
outubro de 1982 na TV Globo, com direção de Roberto Talma. A história de
Luana Camará (Regina Duarte) envolvia paranormalidade e evocação de
vidas passadas, quando a protagonista assumiu a personalidade de Priscila
Capricce, sua existência numa encarnação anterior. Janete Clair investiu na
linha bem-sucedida iniciada em “O Astro” na década passada e potencializou a abordagem ao tratar de mediunidade, mesmo com a obra tendo vivido
períodos de baixa repercussão e cortes impostos pela censura federal.
Já “O Sexo dos Anjos” marca a chegada dos remakes para a linha de
produção no subgênero de telenovelas espíritas, sendo uma adaptação de
Ivani Ribeiro para “O Terceiro Pecado”. Agora na TV Globo e dirigida por
Roberto Talma, a novela que foi exibida de 25 de setembro de 1989 a 9 de
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março de 1990 retomou o mesmo universo da obra original, sem obter
grande êxito com a nova roupagem.
Há um curioso caso desta década que merece ser mencionado. Em
nenhuma das listas a telenovela “Renúncia”, da TV Bandeirantes, é citada.
Escrita e dirigida por Geraldo Vietri, a obra foi ao ar de 30 de agosto a 12
de setembro de 1982, totalizando somente 12 capítulos e tendo sido interrompida sem explicações pela emissora. Tratava-se de uma adaptação do
romance mediúnico homônimo de Chico Xavier que, a esta altura, já era
líder de vendas no segmento. As reformulações de quadro e grade da emissora à época nunca justificaram a repentina paralisação da novela.
Com estas 3 produções, é possível considerar que a década de 1980
viveu um evidente recuo na abordagem espírita ficcional, cedendo espaço
à paranormalidade e experiências genéricas como, possivelmente, estratégia de popularização de narrativas seguindo a linha do sincretismo como
garantia de repercussão. Mas, à distinção da década anterior que também
investiu em traços ecumênicos/sincréticos, nesta década podemos constatar que as duas maiores novelistas da época – Ivani Ribeiro e Janete Clair
– dedicaram-se a este caminho em suas carreiras, em emissoras distintas,
algo que sela a pulverização inicial da temática pela ficção nacional. Por fim,
o insucesso de uma adaptação mediúnica demonstrou que, apesar de ter
nascido com esta proposta (caso de “Somos Todos Irmãos”), o subgênero
vivia uma expansão sincrética que, àquela altura, não parecia comportar
propostas fidedignas ou explicitamente doutrinárias – ao contrário do estrondoso sucesso de “A Viagem”, na década anterior, baseada em romances
espíritas. Diferente da década precedente, que deixou rastros de extremo
sucesso com uma trama declaradamente espírita, os anos 1980 viveram
um arrefecimento desta pauta na ficção. Em alinhamento à história da própria TV, podemos sintetizar que
Nas décadas de 1970 e 1980, durante a fase de consolidação da
indústria televisiva, sob o domínio da Rede Globo, as novelas passaram a ocupar a posição de um dos programas mais populares e
lucrativos da televisão brasileira, e é por seu intermédio que as
emissoras competem pela audiência (HAMBURGER, 2005, p.30).
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Nesta consolidada competição por audiência, mais valia a segurança de
abordagens genéricas do que experimentar riscos incabíveis aos propósitos de um
meio que, depois de décadas, agora já sabia a que vinha, onde queria chegar e o
que fazer para manter êxito. Lidar com garantias de sucesso fez, inclusive, com
que a abordagem espírita nesta década inaugurasse os remakes como proposta
para o subgênero, como se deu em relação ao enredo de “O Terceiro Pecado” ao
ser refeito. “Sétimo Sentido” recebeu 33,3% das menções, enquanto “O Sexo dos
Anjos” obteve 50%.
6 A virada espírita: consolidação do tema na ficção nacional (19902000)
Se as duas décadas anteriores trouxeram, cada uma a seu modo, tonalizações genéricas para o espiritismo na ficção, em recuos que preferiram
ceder lugar ao transcendental, ao espiritualismo amplificado, a partir dos
anos 1990 a telenovela brasileira – já um produto notabilizado internacionalmente e visado no mercado consumidor do audiovisual – passa a contar
com um terreno sólido de produções com alto nível de repercussão, investimentos gigantescos e imensa penetrabilidade nos debates cotidianos. Ao
contrário dos anos anteriores, temos nas décadas de 1990 e 2000 uma
virada que conduz ao espiritismo como carimbo de sucesso para tramas que
são, até hoje, as mais citadas, comentadas e rememoradas quando o assunto é espiritismo e telenovela.
Primeiramente, o remake de “A Viagem”, em 1994, novamente pelas
mãos de Ivani Ribeiro (com colaboração de Solange Castro Neves), mas
agora na TV Globo, com direção de Wolf Maia, trouxe o mesmo enredo da
década de 1970 sobre a história de Alexandre (Guilherme Fontes) e suas
agruras sobre os vivos. Maior sucesso da década na faixa das 19 horas, a
obra ganhou 2 reprises na emissora e outras 2 reprises no canal fechado
Viva, em todas elas se consagrando como sucesso de público.
Já a obra posterior na década, “Anjo de Mim”, levada ao ar na faixa
das 18 horas da TV Globo entre 9 de setembro de 1996 e 29 de março de
1997, escrita por Walther Negrão com direção de Ricardo Waddington, não
obteve o mesmo sucesso quando tratou de reencarnação e vidas passadas
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como eixo central em torno da vida de Floriano Ferraz (Tony Ramos) e sua
busca por um amor da vida passada. No entanto, é possível considerar que
“Anjo de Mim” foi uma reverberação direta do auge vivido por “A Viagem”
dois anos antes:
Com o sucesso da trama espírita da novela A Viagem, de Ivani Ribeiro, exibida dois anos antes, Walther Negrão apresentou essa novela, para a qual baseou-se na doutrina kardecista para aprofundar
o tema da reencarnação e dos laços espirituais que unem as pessoas
(TELEDRAMATURGIA, 2021).
Se a baixa repercussão de uma obra abertamente assentada em princípios espíritas causou receio após o máximo aproveitamento de “A Viagem”, os anos 2000 foram responsáveis por consagrar o subgênero com
dois novos sucessos na faixa das 18 horas: “Alma Gêmea” e “O Profeta”. A
primeira delas é uma telenovela de Walcyr Carrasco, com direção de Jorge
Fernando, exibida entre 20 de junho de 2005 a 11 de março de 2006. “Alma
Gêmea” narrava a história de amor entre Rafael (Eduardo Moscovis) e Luna
(Liliana Castro), que é assassinada no primeiro capítulo, mas reencarnava
como Serena (Priscila Fantin) em busca de continuar vivendo o grande amor
ao lado do amado. A trama foi a maior audiência do horário na década,
ultrapassando os índices das obras levadas ao ar nas faixas das 19h e 21h
à época, o que lhe rendeu aumento de mais um bloco e acréscimos de
dezenas de capítulos antes do encerramento. Tamanho sucesso, tal qual
ocorreu com A Viagem, gerou uma reverberação: o remake de “O Profeta”,
poucos meses após o sucesso de “Alma Gêmea”. Sob o comando de Thelma
Guedes e Duca Rachid, “O Profeta” trouxe entre 16 de outubro de 2006 a
12 de maio de 2007 o enredo de Ivani Ribeiro com inúmeras atualizações,
mantendo-lhe a essência.
Esta fase da produção ficcional do subgênero revela alguns aspectos
importantes, tais como a consolidação da temática, mas principalmente a
expansão da abordagem e a possibilidade de investimentos técnicos para
retratar planos espirituais, influências de espíritos, sessões de regressão,
manifestações mediúnicas, elementos que ganharam roupagem cada vez
mais atraente a partir dos recursos estilísticos (imagem e som) combinados
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para tratar das pautas espíritas. Cenários, objetos, montagens, trilhas sonoras, dentre outros recursos, denotam as telenovelas espíritas desta fase
como tramas em tom didático e instrucional, que encontraram nos avanços
técnicos uma possibilidade de expansão temática para resultar, nos anos
seguintes, na maior expressão até agora vivida para o subgênero. A relevância desta fase é tamanha que as obras compreendidas neste período são
as mais citadas nas listas a ponto de, exceto o remake de “O Profeta” com
58,3%, ocuparem o topo das campeãs, com “Alma Gêmea” lembrada em
todas as listas (100%), seguida por “A Viagem” com 91,6% e “Anjo de Mim”
com 83,3% das citações.
7 Boom de espíritos: a explosão das telenovelas espíritas (2010)
Se a fase anterior consolidou o tema na ficção e valeu-se dos recursos
estilísticos como um importante aparato, a mais recente fase do subgênero
avança sobre a técnica aliando-a a avanços notórios no âmbito da narrativa.
Tramas que inovam na caracterização do plano espiritual, na composição
estilística dos ambientes espirituais, dos seres espirituais, das manifestações mediúnicas e intercâmbios entre vivos e mortos. Além disso, algumas
destas tramas investem em temporalidades mistas e confluências de linhas
cronológicas (Espelho da Vida) ou substanciais avanços temporais na linha
narrativa (Além do Tempo).
A década de 2010 concentra o maior número de telenovelas espíritas,
a saber: “Escrito nas Estrelas” (2010), “Amor Eterno Amor” (2012), “Alto
Astral” (2014-2015), “Além do Tempo” (2015-2016) e “Espelho da Vida”
(2018-2019), de modo que em quase todos os anos do decênio tivemos no
ar alguma produção ou parte de produção com a temática. Deste conjunto
de obras, mais do que frisar particularidades do roteiro, interessa destacar
um cômputo de elementos que as aproximam, por exemplo a proeminência
da reencarnação como elo propulsor das narrativas, a crença na vida após
a morte como marco regulador e os efeitos visuais/sonoros como recurso
significante para a composição dos enredos. Além disso, estas novelas reREU, Sorocaba, SP, v. 47, n. 2, p. 319-339, dez. 2021
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velam a concentração quase absoluta das produções em torno de uma novelista, de modo que, ao chegarmos à estabilidade do subgênero, temos a
consagração do principal nome representante do segmento: Elizabeth Jhin.
Depois dos desbravadores e experimentais roteiros das primeiras produções, até a popularização do tema em tramas de alta repercussão, chegase a um período em que a concentração da pauta recai sobre um único
nome que hoje segue liderando e ampliando o número de telenovelas espíritas na ficção nacional. Exceto “Alto Astral”, de Daniel Ortiz a partir de
sinopse desenvolvida por Andrea Maltarolli, todas as outras quatro telenovelas da década são assinadas por Jhin, revelando que da intensa pulverização de autorias vivida em décadas precedentes, passamos a um período
de estabilidade de produções lideradas por um mesmo núcleo de criadores/escritores, concentradas na faixa das 18 horas, com poucos intervalos
temporais entre uma produção e outra.
Para além de refletir quanto ao boom destas ficções, importa atentar
para os desdobramentos e repercussões, para os desafios que se impõem
à chegada de uma nova década. Diante dos desafios do subgênero, interessa instaurar novos questionamentos a partir do que a fase recente nos
apresentou. Mais do que pensar o subgênero por si só e sua vitalidade,
atualização ou reestruturação, é preciso também considerar o lugar da concorrência com as chamadas telenovelas bíblicas, um forte subgênero das
ficções brasileiras encabeçado pela Record TV que vem alcançando notável
projeção em obras desde “Os Dez Mandamentos” (2015-2016) até a mais
recente “Gênesis” (2021). São segmentos concorrentes entre si ou complementares? Revelam novas tendências de consumo do público nacional
quanto a narrativas seriadas orientadas por temática religiosa?
Outro ponto notório é a identificação de uma vertente na produção
cinematográfica nacional que, apesar de não ser recente, também galgou
maior visibilidade em concomitância ao boom das telenovelas espíritas: as
cinebiografias espíritas. Nomes como Allan Kardec, Chico Xavier, Divaldo
Franco e Bezerra de Menezes perfazem a história contemporânea do espiritismo no cinema, com obras declaradamente espíritas e tradutoras das
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transformações da religião a partir dos marcos representados por estes homens tidos como líderes dentro do imaginário social em torno do espiritismo. Aliado a estas obras, outras como “Nosso Lar” e “As mães de Chico
Xavier, por exemplo, também demarcam a vitalidade de um subgênero em
evidência no cinema e que merece atenção em futuras investigações. Produções desta ordem fomentam o cenário contemporâneo do audiovisual religioso e os entrecruzamentos que as telenovelas espíritas da última década
viveram/enfrentaram. Quanto ao nível de rememorações que obtiveram,
“Escrito nas Estrelas” contou com 83,3% das lembranças, seguida por
“Além do Tempo” e “Amor Eterno Amor”, empatadas com 75%, enquanto
“Alto Astral” esteve na metade das listas (50%) e “Espelho da Vida” em
33,3% dos casos.
8 Considerações finais
Em sessenta anos de produção ficcional brasileira diária, todas as décadas presenciaram tramas com teor espírita em diferentes faixas horárias,
emissoras, níveis de repercussão e a partir da escrita de diferentes novelistas – dos mais consagrados aos menos conhecidos. De um pioneirismo flutuante ancorado na literatura mediúnica, passamos por fases em que a telenovela espírita se complexificou, modernizou, atualizou temáticas e incrementou técnicas. Passamos a ver abordagens declaradamente orientadas
pelo espiritismo, mas também roteiros sincréticos e ecumênicos que evidenciaram um arrefecimento do subgênero e até mesmo um apagamento
em determinados momentos (década de 1980 e o caso de “Renúncia”). No
entanto, posteriormente vimos tramas que ajudaram a demarcar o terreno
destas ficções espíritas e permitir a explosão numérica de tramas pertencentes ao subgênero. Ainda que os desafios sejam consoantes a cada período, tal qual a própria transformação experienciada pela televisão, as telenovelas espíritas são uma mostra de como o meio televisivo é um espaço
de potentes reinvenções, rearranjos e atualizações a fim de servir-se de
temáticas socioculturais condizentes com a realidade brasileira em seus
múltiplos pontos de crenças.
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Em todas as tramas, a disposição da temática espiritualista se colocou
à serviço dos preceitos melodramáticos consagrados no formato das telenovelas brasileiras: a consagração do amor romântico após a superação de
reviravoltas rocambolescas. Numa jornada permeada por entraves, que podem ser humanos e não-humanos, as narrativas condensam princípios que
acabaram atrelados ao espiritismo para fazer avançar o ritmo de tramas
assentadas no que há de mais clássico, duradouro e historicamente formatado para o gênero. O par romântico e a busca pela consagração do amor
inabalável entre o casal protagonista, em tramas com disparidade de classe
social entre os mocinhos, o amor puro que nasce a partir da adversidade
social, segundo Thomasseau (2012), foi o focalizador temático das telenovelas espíritas que, antes de serem obras com fundo religioso, são obras
ficcionais a serviço do melodrama adaptado ao formato folhetinesco das
telenovelas brasileiras. Antes de serem telenovelas espíritas, estas produções são telenovelas e, por isso, atendem a expectativas genéricas historicamente arquitetadas, moduladas e revisitadas do formato folhetinesco.
Considero necessário pensar os desafios que se impõem às telenovelas espíritas perante outros atores socioculturais e midiáticos de proeminente participação no cenário audiovisual. Um deles é avaliar a intersecção
com o conjunto das cinebiografias espíritas e outros longas metragens que,
ao contrário da abordagem generalista das telenovelas, caracterizam um
cinema militante. Outro agente importante a se pensar diz respeito à proliferação do streaming e toda a gama de conteúdos feitos por um modelo de
televisão distribuída por internet, segundo Lotz (2017). Na era do streaming, é interessante ponderar as dinâmicas de internacionalização de produções de cunho religioso e como estas se veem tensionadas pelas novas
lógicas de produção e consumo audiovisual. Por fim, também vale a pena
frisar quanto ao futuro das telenovelas espíritas a partir das expectativas
do mercado audiovisual, das tendências narrativas contemporâneas, dos
valores simbólicos agregados e dos interesses em se manter produções
desta natureza, notadamente em contextos cada vez mais acirrados politicamente e nos quais os atravessamentos religiosos são um fator decisivo.
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Nas encruzilhadas com outras dimensões do audiovisual, lançam-se
novos desafios ao subgênero no despertar de uma nova década, depois de
sessenta anos de produções consideradas espíritas: qual será o futuro das
telenovelas espíritas? Depois de uma significativa explosão na última década, há espaço para mais obras? Como existir em tempos de guerra com
o streaming e guerras político-religiosas? Que venha a nova década para
nossa apreciação!
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