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TRABALHO ESCRAVO E FAST FASHION: O FLERTE DA INDÚSTRIA DA MODA COM A SERVIDÃO SLAVE LABOR AND FAST FASHION: THE FLIRT OF THE FASHION INDUSTRY WITH SERVANTHOOD Osmar VeroneseI Andressa LasteII Resumo: Os elementos estruturantes da atualidade, que não apenas ordenam relações econômicas e de produção, mas também sociais e culturais, moldam a vida de forma transitória e fugaz como líquido, era nominada por Bauman de “modernidade líquida”. Esse modelo, seguido por boa II Universidade Regional Integrada do Alto parte do mundo ocidental, ancora-se no discurso econômico Uruguai e das Missões, Santo Ângelo, RS, neoliberal, propõe a redução do papel do Estado na economia e, como efeito colateral, produz o consumismo, Brasil. E-mail: andressalaste@hotmail. em que as necessidades e desejos são direcionadas para o com consumo em excesso, especialmente de produtos descartáveis e/ou supérfluos. Poucos setores da economia se adaptaram tão bem a esse modelo como a indústria da moda, que embora também atue como slow fashion, tem na fast fashion uma dinâmica em larga escala, envolvendo empresas varejistas nacionais e internacionais, cuja engrenagem é líquida e consumista. Nesse contexto, seguindo o método de abordagem dedutivo aliado ao procedimento bibliográfico, a pesquisa visou responder se a indústria da moda estimula o trabalho escravo contemporâneo, a partir da correlação entre neoliberalismo e consumismo? E a resposta foi afirmativa pois, no afã de atender os excessos, parcela dessas empresas têm utilizado e/ou encoberto a exploração de mão de obra, fomentando o trabalho escravo contemporâneo. Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Santo Ângelo, RS, Brasil. E-mail: osmarveronese@san.uri.br I Palavras-chave: Consumismo. Fast Fashion. Indústria da Moda. Neoliberalismo. Trabalho Escravo. DOI: http://dx.doi.org/10.31512/rdj.v22i43.1009 Recebido em: 21.09.2022 Aceito em: 05.11.2022 Abstract: The structuring elements of the present, which not only order economic and production relations, but also social and cultural ones, shape life in a transitory and fleeting way as liquid, was named by Bauman as “liquid modernity”. This model, followed by much of the western world, is anchored in the neoliberal economic discourse, proposes the reduction of the role of the State in the economy and, as a side effect, produces consumerism, in which needs and Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. 172 Revista Direito e Justiça: Reflexões Sociojurídicas Santo Ângelo | v. 22 | n. 43 | p. 171-185 | maio/agos. 2022 | DOI: http://dx.doi.org/10.31512/rdj.v22i43.1009 desires are directed towards consumption in excess, especially of disposable and/or superfluous products. Few sectors of the economy have adapted as well to this model as the fashion industry, which, although it also acts as a slow fashion, has large-scale dynamics in fast fashion, involving national and international retailers, whose gear is liquid and consumerist. In this context, following the deductive approach method combined with the bibliographic procedure, the research aimed to answer whether the fashion industry encourages contemporary slave labor, based on the correlation between neoliberalism and consumerism? And the answer was affirmative because, in an effort to meet the excesses, a portion of these companies have used and/or covered up the exploitation of labor, promoting contemporary slave labor. Keywords: Consumerism. Fast Fashion. Fashion Industry. Neoliberalism. Slavery. 1 Considerações iniciais Com o intuito de compreender o modelo de produção fast fashion na indústria da moda e uma possível relação com o trabalho escravo contemporâneo é necessário contextualizar, primeiramente, a ideologia neoliberal e sua correlação com o consumismo. É nesse contexto que esta pesquisa, por meio do método de abordagem dedutivo e método de procedimento bibliográfico, visa responder ao seguinte questionamento: a indústria da moda fomenta o trabalho escravo contemporâneo a partir da correlação entre neoliberalismo e consumismo? Para alicerçar o estudo e responder ao problema de pesquisa, o texto será dividido em três momentos: o primeiro com considerações sobre o neoliberalismo, o segundo sobre a indústria da moda e o modelo de produção fast fashion e o terceiro relacionando esse modelo de produção com o trabalho escravo contemporâneo. Nesse sentido, a pesquisa objetiva verificar como a indústria da moda se relaciona com o trabalho escravo contemporâneo a partir da conexão entre a ideologia neoliberal e o consumismo. A abordagem do tema se justificativa pelo viés informativo à sociedade, na medida em que relaciona neoliberalismo, consumismo, modelo de produção fast fashion na indústria da moda e o trabalho escravo contemporâneo. 2 Apontamentos sobre as relações de produção na modernidade O Estado, no absolutismo, teve como base a doutrina da monarquia divina, a qual explicava que o poder do soberano era divino. Posteriormente, a luta (embebida nos ideais Trabalho Escravo e Fast Fashion: o Flerte da Indústria da Moda com a Servidão Osmar Veronese | Andressa Laste 173 iluministas) entre a liberdade do indivíduo e a soberania do monarca deu origem a primeira noção de Estado de Direito, cujo marco fincado pela Revolução Francesa trouxe importantes renovações institucionais e possibilitou o surgimento do Estado Jurídico guardião das liberdades individuais. Com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, e com as Constituições que se sucederam, o Estado muda a sua forma, sendo a divisão dos poderes, o princípio da legalidade e os direitos fundamentais algumas de tantas outras limitações impostas o Estado pelo liberalismo. Essa ideologia objetivava a separação do Estado e da sociedade, bem como a distinção do público e privado, reduzindo a intervenção estatal no setor privado, ou seja, pregava um Estado mínimo. (Marmelstein, 2011). No início do séc. XX essa concepção passa a ser discutida, uma vez que o crescente aumento da pobreza e extremas desigualdades sociais são problemas sem soluções de ordem economia e social, como subproduto do modelo liberal clássico. Assim, contrapondo-se ao discurso liberal, emergem na sociedade movimentos defensores da intervenção estatal na regulação da ordem econômica e implementação da ordem social, garantia dos direitos coletivos e fortalecimento da classe operária. (Marmelstein, 2011). Nesse cenário, ao lado das iniciativas socialistas, o capitalismo revê o discurso liberal clássico, revisando o papel do Estado na economia. Logo, o Estado passa a intervir, de forma direta, na economia, com a finalidade de garantir a regulação econômica, além de investir em empresas objetivando garantir o pleno emprego. (Hobsbawn, 2002). Contudo, a partir de uma crise global do capitalismo, em meados de 1970, que travou o ritmo de crescimento nos países industrializados, o Estado Social passa a ser questionado em razão de algumas dificuldades, entre as quais, a de responder plena e efetivamente pelas políticas sociais, o aumento da dívida pública, a inflação e a crise fiscal. Em razão dessa crise, em países da Europa e da América do Norte, retomou-se a proposta de um Estado minimalista, sob a justificativa da defesa da liberdade econômica e política das empresas e dos cidadãos, resgatando-se os ideais liberais e os inserindo em uma nova roupagem discursa, o neoliberalismo. O neoliberalismo, portanto, surgiu em razão da crise do Estado Social, pregando a eliminação de limites aos mercados, defendendo a livre iniciativa, a livre concorrência e a nãointervenção do Estado na economia. Em um primeiro olhar, o novo discurso defende as velhas bandeiras liberais, conforme descrevem os autores a seguir: A partir do fim dos anos 1970 e do início dos anos 1980, o neoliberalismo foi interpretado em geral como se fosse ao mesmo tempo uma ideologia e uma política econômica diretamente inspirada nessa ideologia. O núcleo duro dessa ideologia seria constituído por uma identificação do mercado com uma realidade natural. Segundo essa ontologia naturalista, bastaria deixar essa realidade por sua própria conta para ela alcançar equilíbrio, estabilidade e crescimento. Qualquer intervenção do governo só poderia desregular e perturbar esse curso espontâneo, logo convinha estimular uma 174 Revista Direito e Justiça: Reflexões Sociojurídicas Santo Ângelo | v. 22 | n. 43 | p. 171-185 | maio/agos. 2022 | DOI: http://dx.doi.org/10.31512/rdj.v22i43.1009 atitude abstencionista. O neoliberalismo compreendido dessa forma apresenta-se como reabilitação pura e simples do laissez-faire. (Dardot; Laval, 2016, p. 14). Contudo, o neoliberalismo não se apresenta como uma reabilitação pura e simples do laissez-faire1 (Dardot; Laval, 2016, p. 14), mas como “projeto político de restabelecimento das condições da acumulação do capital e restauração do poder das elites econômicas” (Harvey, 2012, p. 27), podendo também ser referido como “a articulação das teorias econômicas e sociais do liberalismo clássico, em um período histórico diferente”. (O’ Connel, 2008, p. 187-188). Nesse diapasão, antes de ser uma ideologia ou uma política econômica, o neoliberalismo é uma racionalidade. [...] antes de ser uma ideologia ou uma política econômica, é em primeiro lugar e fundamentalmente uma racionalidade e, como tal, tende a estruturar e organizar não apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados. A racionalidade neoliberal tem como característica principal a generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação. O termo racionalidade não é empregado aqui como eufemismo que nos permite evitar a palavra ‘capitalismo’. O neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo, de um capitalismo desimpedido de suas referências arcaizantes e plenamente assumido como construção histórica e norma geral de vida. (Dardot; Laval, 2016, p.17). Essa racionalidade organiza a atividade humana em uma norma de concorrencialismo, a qual “[...] impõe a cada um de nós que vivamos num universo de competição generalizada [...] ordena as relações sociais segundo o modelo do mercado, obriga a justificar desigualdades cada vez mais profundas, muda até o indivíduo, que é instado a conceber a si mesmo e a comportar-se como uma empresa. (Laval; Dardot, 2016, p. 18). Outrossim, o Estado, no neoliberalismo, tem como ponto essencial a proteção da propriedade e dos negócios e corporações, sendo valorizados os livres mercados e comércios. (Harvey, 2012). Conforme os filósofos Pierre Dardot e Christian Laval (2016, p. 30) o neoliberalismo é um sistema de normas que estão inscritas nas práticas governamentais, políticas institucionais e estilos de gerência. O neoliberalismo é um sistema de normas que hoje estão profundamente inscritas nas práticas governamentais, nas políticas institucionais, nos estilos gerenciais. Além disso, devemos deixar claro que esse sistema é tanto mais “resiliente” quanto excede em muito a esfera mercantil e financeira em que reina o capital. Ele estende a lógica do mercado muito além das fronteiras estritas do mercado, em especial produzindo uma subjetividade “contábil” pela criação de concorrência sistemática entre os indivíduos. Pode, portanto, o neoliberalismo ser definido “[...] como o conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio da concorrência.” (Dardot; Laval, 2016, p. 17). Por meio de seus princípios norteadores, a saber: 1 Expressão francesa que significa deixa fazer ou deixa passar, adotada como símbolo do liberalismo econômico capitalista, segundo a qual o mercado deve funcionar de forma livre, sem interferências estatais, sem taxas e subsídios. Trabalho Escravo e Fast Fashion: o Flerte da Indústria da Moda com a Servidão Osmar Veronese | Andressa Laste 175 produtividade, eficiência e concorrência, o neoliberalismo exerce uma coerção internalizada, uma vez que o sistema econômico de produção se torna um valor antropológico de produção em que o Estado se mostra como “coprodutor voluntário”. (Dardot; Laval, 2016, p. 17). Assim, para essa ideologia, o mercado assume o papel central e reduz a ação do Estado ao mínimo, haja vista que ele assume uma função meramente fiscalizatória, além de pressionar a população ao consumo de suas necessidades, pois é entendido como o melhor meio de satisfazer os desejos das pessoas, começando a ser visto como a única forma efetiva dessa satisfação. Nesse cenário, segundo Zygmunt Bauman (2011) o ato de consumir por si só não caracteriza uma sociedade de consumo. Logo, consumo e consumismo devem ser distinguidos, sendo este último o resultado de uma revolução ocorrida durante a passagem da modernidade sólida2 para a modernidade líquida3. Pode-se dizer que o “consumismo” é um tipo de arranjo social resultante da reciclagem de vontades, desejos e anseios humanos rotineiros, permanentes e, por assim dizer, “neutros quando ao regime”, transformando-os na principal força propulsora e operativa da sociedade, uma força que coordena a reprodução sistêmica, a integração e a estratificação sociais, além da formação de indivíduos humanos, desempenhando ao mesmo tempo um papel importante nos processos de auto-identificação individual e de grupo, assim como na seleção e execução de políticas de vida individuais. O “consumismo” chega quando o consumo assume o papel-chave que na sociedade de produtores era exercido pelo trabalho. [...] De maneira distinta do consumo, que é basicamente uma característica e uma ocupação dos seres humanos como indivíduos, o consumismo é um atributo da sociedade. (Bauman, 2008, p. 41). (grifo do autor). Ante o exposto, denota-se que na ideologia neoliberal, assumindo o mercado o papel central e reduzindo a ação do Estado ao mínimo, o seu fim volta-se para o consumo. Todavia, o consumismo é o núcleo e a forma de conduta individual e coletiva que está presente na modernidade líquida descrita por Zygmunt Bauman. Com a modernidade sólida dando espaço para a modernidade líquida em que o consumo é o elemento central, e não mais o trabalho, as necessidades dos sujeitos4 são trocadas pelo estímulo aos seus desejos subjetivos (Bauman, 2008), sendo esse ponto fomentado pelo mercado no modelo neoliberal, correlacionando-se. Logo, a modernidade líquida objetiva “satisfazer os desejos humanos de uma forma que nenhuma sociedade do passado pôde realizar ou sonhar.”. (Bauman, 2009, p. 105). 2 A modernidade sólida é caracteriza como aquela em que a produção era voltada para a segurança e a durabilidade daquilo que se era produzido, pois nesse momento histórico o trabalho era o elemento central. (Bauman, 2001). 3 Na modernidade líquida ou fluída o ato de consumir não é mais voltado para a durabilidade e estabilidade dos produtos, mas sim para a sua constante substituição por outros produtos mais novos. Logo, a modernidade líquida passa a ter o consumismo como elemento central. (Bauman, 2001). 4 Conforme Alain Touraine (2005, p. 123) “o sujeito se configura como parte íntima de cada ser que possui como movimento o conforto, o debate e a resistência, sendo que nos tornamos plenamente sujeitos quando aceitamos como nosso ideal reconhecer-nos e fazer-nos reconhecer enquanto indivíduos – como seres individuados, que defendem e constroem sua singularidade, e dando, através de nossos atos de resistência, um sentido a nossa existência.”. 176 Revista Direito e Justiça: Reflexões Sociojurídicas Santo Ângelo | v. 22 | n. 43 | p. 171-185 | maio/agos. 2022 | DOI: http://dx.doi.org/10.31512/rdj.v22i43.1009 Nesse viés, a sociedade de consumo líquido-moderna apenas consegue alcançar seu objetivo enquanto mantiver os sujeitos insatisfeitos e em busca constante por satisfação. (Bauman, 2008). Portanto, “a sociedade de consumo prospera conquanto consiga tornar permanente a insatisfação (e, em seus próprios termos, a infelicidade).”. (Bauman, 2021, p. 174). Na contínua busca pelo sentimento de satisfação e consequente felicidade, os sujeitos serão levados a consumir, correlacionando-se o consumismo com o mercado na ideologia neoliberal. Nessa fenda, entra e merece reflexão aspectos relacionados à indústria da moda. 3 A indústria da moda e o modelo de produção fast fashion Conforme mencionado no tópico supra, a sociedade de consumo na modernidade líquida, descrita por Zygmunt Bauman, alcança o seu objetivo ao manter os sujeitos insatisfeitos e na busca constante por satisfação e felicidade, desempenhando o mercado grande papel fomentador do consumo no Estado neoliberal. Nesse cenário, o sujeito, ao adquirir um produto, prontamente deixa-o de desejar, eis que se sente satisfeito, todavia, ao mesmo tempo em que foi adquirido o produto perde o seu valor e se torna obsoleto, uma vez que o mercado de consumo quase que de maneira instantânea já lança um novo, prometendo ser esse mais inovador e melhor que o anterior. Assim, o sujeito sente o desejo de adquirir esse novo produto e descartar o velho. (Bauman, 2021). Uma das formas de consumismo que possui alta fluidez de novos produtos e descarte de velhos é a indústria da moda5, haja vista possuir diversas vertentes, pois consegue abranger inúmeras identidades ao ser lançada como expressão artística das mudanças sociais. Igualmente, a indústria da moda também pode ter como fator estimulante a aprovação e aceitação dos consumidores perante a sociedade, uma vez que a promessa de pertencimento social reforça o chamativo para o consumo. Em primeiro lugar, a promessa quer dizer estar e ficar à frente (do “júri do estilo”, ou seja, dos “outros significativos”, os outros que contam, e cuja aprovação ou rejeição traça a linha entre sucesso e fracasso). Estar à frente é a única receita confiável para a aceitação do júri do estilo, enquanto ficar à frente é o único modo de ter certeza de que a provisão de respeito é confortavelmente ampla e contínua. Aquela oferta, então, promete uma garantia de segurança que repousa na autoconfiança, uma garantia de certeza ou quase certeza de que se “está do lado certo” – o tipo de sensação que a vida de consumo evidente e dolorosamente não consegue obter, apesar de ser guiada pelo desejo de fazê-lo. A referência a estar e ficar à frente desse júri do estilo promete pertencimento – promete que se será aprovado e incluído. (Bauman, 2021, p. 150). Em razão de uma ampla variedade e para que seja possível atender ao maior número de identidades, o mercado da moda divide-se em slow fashion e fast fashion. 5 Considerando que a indústria da moda possui várias vertentes, a pesquisa se aterá à moda quanto a produção de roupas. Trabalho Escravo e Fast Fashion: o Flerte da Indústria da Moda com a Servidão Osmar Veronese | Andressa Laste 177 O modelo slow fashion abarca peças duradouras e atemporais, ao passo que o modelo fast fashion atende a uma demanda de consumidores inquietos por produtos que sigam uma tendência universal de maneira rápida e que também seja de baixo custo e pouco durabilidade. (Cietta, 2010). O modelo fast fashion ou “moda rápida” é um modelo que surgiu na Europa, na década de 90, concomitantemente com as lojas de departamento e que atualmente abarca o nascimento contínuo das tendências e consequente resposta às demandas solicitadas, eis que o seu baixo preço no mercado pode levar a um consumo de grande quantidade de peças. (Cietta, 2010). Essa inovação no setor do vestuário, o fast fashion, combina capacidade de produção rápida (mínimo lead time) com a intensa capacidade de criação de design para o desenvolvimento de produtos que estejam adequados às últimas tendências da moda. De certa forma, podemos dizer que seu surgimento se deve a necessidade de se adequar as pressões do setor varejista, tais como o avanço das tecnologias, processo de internacionalização das empresas e, consequentemente, uma mudança no comportamento do consumidor. (Cidreira, 2019, p. 7). O alto investimento na política de rápida e contínua produção de peças colabora para que as coleções e tendências sejam criadas e trocadas com uma frequência alarmante. Em que pese recente, o modelo fast fashion já alcançou marcas tradicionais e consolidadas na indústria da moda, além de pequenas empresas e grandes marcas de varejo em diversos países. Assim, lojas como Zara, GAP, Forever 21 e H&M iniciaram a produção de roupas que lembram a alta costura, porém com baixo custo e menor tempo de durabilidade. Essa forma de produção, por fim, chegou ao Brasil atingindo marcas conhecidas como Renner, Riachuelo e C&A. O sucesso dessas empresas foi, por vezes, interpretado como uma maior capacidade de oferecer, em prazos muito curtos, aquilo que o mercado premia, ou seja, a velocidade de resposta (o tempo para produzir uma nova coleção caiu de 24 meses para poucas semanas), em confronto a empresas que aplicam modelos mais tradicionais. (Cietta, 2010, p. 23). Ainda que facilitado pela terceirização, o modelo de produção fast fashion não possui a sua essência centralizada na qualidade e durabilidade das peças de roupas, mas sim no acompanhamento das tendências e no rápido atendimento à demanda de consumidores. (Cietta, 2010). Nesse viés, percebe-se que além de um modelo de produção, o fast fashion também é um modelo de negócios, pois move em larga escala a economia de diversas empresas varejistas nacionais e internacionais. Todavia, a produção de roupas a um baixo custo somada a alta demanda e ao rápido consumo implica em uma cadeia produtiva têxtil cada vez mais complexa, pois incide em aspectos ambientais e sociais que a fabricação desenfreada pode impactar. (Cietta, 2010). 178 Revista Direito e Justiça: Reflexões Sociojurídicas Santo Ângelo | v. 22 | n. 43 | p. 171-185 | maio/agos. 2022 | DOI: http://dx.doi.org/10.31512/rdj.v22i43.1009 Isso porque, o consumismo indisciplinado aliado a obsolescência das peças de roupas implica em problemas envolvendo o pós-uso e o descarte indevido de roupas e resíduos, gerando impactos ao meio ambiente. No processo de descarte, grande parte dos resíduos não vai para o destino correto, ou seja, são descartados no meio ambiente, sem que passem por qualquer triagem ou separação de partes para reciclagem. Isso gera trilhões de quilos de lixo. Em relação ao meio ambiente, alguns impactos são observados, como mudanças climáticas, poluição química, enorme geração de resíduos, prejuízos à saúde humana, desequilíbrio ambiental. (Silvia e Troncoso, 2013, p.3). Nesse segmento, a deterioração ambiental passa a ser uma das consequências dos padrões de industrialização, dentre eles, do modelo de produção fast fashion. A deterioração ambiental, a devastação dos recursos naturais e seus efeitos nos problemas ambientais globais (perdas de biodiversidade, desmatamento, contaminação da água e do solo, erosão, desertificação e, inclusive, a contribuição da América Latina são aquecimento global e diminuição da camada de ozônio), são em grande parte consequência dos padrões de industrialização, centralização econômica, concentração urbana, capitalização do campo, homogeneização do uso do solo e uso de fontes não renováveis de energia (Leff, 2009, p. 42). Nessa vertente, grande parte das questões envolvendo os impactos ambientais segue sendo uma realidade, uma vez que o seu tratamento demanda alteração nos meios de produção e consumo, além de nossa organização social. (Castells, 1999). Especialmente por ser lucrativo para muitas empresas da indústria modista, esse modelo de produção é difundido como estratégia de desenvolvimento pelas economias neoliberais. Entretanto, além de impactos ambientais, o modelo de produção fast fashion na indústria da moda apresenta problemas sociais, uma vez que oculta a exploração de mão de obra em suas produções de vestuários. Assim, além de o modelo ter sido associado à insustentabilidade ambiental, também o foi à insustentabilidade social, principalmente após o desabamento de um prédio de três andares, no ano de 2013, em Bangladesh, onde funcionava uma fábrica de tecidos, culminando na morte de mais de mil pessoas. Nesse cenário, importa examinar esse efeito negativo do modelo de produção fast fashion, aquele que impacta os trabalhadores, haja vista que por detrás de todo o glamour que a indústria da moda aparenta, oculta-se uma forte presença de exploração de mão de obra em suas produções. 4 O modelo fast fashion como fomento ao trabalho escravo contemporâneo De acordo com a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecções – ABIT o mercado da moda é o segundo maior gerador de empregos no Brasil. Contudo, o setor da indústria da moda também tem outra realidade que não a grande possibilidade na geração de Trabalho Escravo e Fast Fashion: o Flerte da Indústria da Moda com a Servidão Osmar Veronese | Andressa Laste 179 empregos, a da exploração de mão de obra de trabalho por marcas e grupos varejistas do ramo. (Contino, 2019). Considerando que o modelo de produção fast fashion visa o atendimento ininterrupto das tendências e consequente resposta às demandas solicitadas pelo consumidor, em razão de seu baixo preço no mercado, as empresas da indústria têxtil tendem a buscar soluções de produção de baixo custo. Expedientes como a precarização, subcontratação, terceirização são instrumentos das empresas para lidar com a sazonalidade e volatilidade do mercado e aumentar a lucratividade através da diminuição de custos com força de trabalho. Além disso, a necessidade de diversificação dos produtos (uma das principais características do fast fashion) impõe uma flexibilidade na produção que muitas vezes só pode ser alcançada a preços competitivos através desses recursos. (Contino, 2016, p. 33). Ocorre que essa procura implica, não raras vezes, na má remuneração da mão de obra e reflete em condições impróprias e indignas de trabalho, podendo essas serem consideradas como trabalho em condições análogas à de escravo, tal qual foi o caso mencionado em Bangladesh, no ano de 2013. No Brasil, em que pese a escravidão ter sido abolida em 1888 e o Estado brasileiro não admitir, desde então, a possibilidade jurídica de uma pessoa ser proprietária de outra, essa prática continua sendo corriqueira, e a realidade mostra que sua abolição não a extinguiu no mundo dos fatos. Desde 1995, quando o Estado brasileiro reconheceu, perante a comunidade internacional, a existência da escravidão contemporânea em seu território, mais de cinquenta mil pessoas foram encontradas em regime de escravidão até o ano de 2019. Entre 1995 e setembro de 2019, mais de 54 mil pessoas foram encontradas em regime de escravidão em fazendas de gado, soja, algodão, café, laranja, batata e cana-de-açúcar, mas também em carvoarias, canteiros de obras, oficinas de costuras, bordéis, entre outras unidades produtivas no Brasil. Ao longo desse período, o trabalho escravo contemporâneo deixou de ser encarado como um problema restrito a regiões de fronteira agropecuária, como Amazônia, Cerrado e Pantanal. Hoje também é combatido nos grandes centros urbanos. (Sakamoto, 2020, p. 7). Consoante descrito no art. 149 do Código Penal brasileiro, na redação dada pela Lei nº 10.803, de 2003, quatro são os elementos que definem o trabalho escravo na contemporaneidade, sendo considerados de maneira isolada ou combinada. a. Cerceamento de liberdade – a impossibilidade de quebrar o vínculo com o empregador, que pode se valer de retenção de documentos ou de salários, isolamento geográfico, ameaças, agressões físicas, espancamentos e tortura; b. Servidão por dívida – o cativeiro mantido pela imposição de dívidas fraudulentas, relacionadas a transporte, alimentação, hospedagem, adiantamentos, dentre outras; c. Condições degradantes de trabalho – o meio ambiente de trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco à saúde, a segurança e a vida da pessoa; d. Jornada exaustiva – o cotidiano de trabalho que leva o 180 Revista Direito e Justiça: Reflexões Sociojurídicas Santo Ângelo | v. 22 | n. 43 | p. 171-185 | maio/agos. 2022 | DOI: http://dx.doi.org/10.31512/rdj.v22i43.1009 trabalhador ao completo esgotamento físico e psicológico e à impossibilidade de ter uma vida social, dada a intensidade e a duração da exploração, colocando em risco sua saúde e vida. (Sakamoto, 2020, p. 9). Conforme a Organização Internacional do Trabalho, no ano de 2013, o Brasil teve a maioria dos resgates de trabalhadores em condições análogas à de escravo nos centros urbanos em setores como a construção civil e a indústria têxtil. Isso porque o país vem passando por mudanças de paradigmas, haja vista que o número de flagrantes de trabalhadores submetidos a condições análogas à de escravo na zona urbana ser maior do que na zona rural. Apesar de, atualmente, o modelo de trabalho se diferenciar de suas antigas origens escravistas, seja no termo dado aos sujeitos enquanto bem de posse e propriedade, antes escravo e agora operário, peão, etc.; seja na aplicabilidade de sua força de trabalho, antes na lavoura, no trabalho doméstico, etc. e hoje na indústria, na construção civil, nas indústrias têxteis, etc., seja ainda nas qualidades de (sobre)vida que lhes são oferecidas. [...] cabe repensar as verdadeiras condições de trabalho que são exercidas no Brasil, em especial no ramo da indústria da moda. (Batista, 2017, p. 88-89). O que chamou atenção para essa percepção de aumento de casos de trabalho escravo contemporâneo nas zonas urbanas foi o “caso Zara”, em 2011, que trouxe à baila a realidade das oficinas clandestinas no país, que até então eram invisibilizadas, cuja repercussão ultrapassou as fronteiras do país. Em 2011, a Zara Brasil foi implicada num flagrante de escravidão envolvendo 15 bolivianos e peruanos, libertados pelo governo federal em oficinas de costura na capital paulista. Após o escândalo, a empresa assinou um acordo com o Ministério Público do Trabalho (MPT) e com o MTE. Nele se comprometeu a realizar auditorias privadas em sua rede de fabricantes para sanar irregularidades trabalhistas impostas a brasileiros e, principalmente, a estrangeiros como bolivianos e peruanos – as principais vítimas de trabalho escravo no setor. Mas, na avaliação do Ministério do Trabalho, a empresa descumpriu reiteradamente essas obrigações. A Zara não detectou ou corrigiu problemas graves que continuaram ocorrendo na sua rede, como trabalho infantil e jornadas excessivas. Além disso, a empresa teria desviado a finalidade das auditorias internas: ao invés de aperfeiçoar as condições dos fornecedores, valeu-se delas para mapear e excluir as oficinas de costura que empregam imigrantes – independentemente de elas estarem ou não descumprindo a lei. A auditoria aponta que a multinacional usou o novo controle interno prioritariamente para a eliminação de riscos à sua imagem. Após o caso de trabalho escravo que atingiu a marca em 2011, a Zara Brasil – que pertence ao grupo espanhol Inditex, maior varejista global de moda em número de lojas – anunciou diversos investimentos para beneficiar a comunidade de latino-americanos em São Paulo. Entre eles, a doação de R$ 6 milhões para a criação do Centro de Integração da Cidadania do Imigrante (CIC), um projeto do governo estadual para facilitar a regularização migratória de estrangeiros residentes no estado. Ainda segundo a auditoria, em 2013, quando a exclusão de oficinas de imigrantes ainda não estava completa, 8 mil peças da Zara foram manufaturadas em uma rede de oficinas posteriormente flagradas com trabalho escravo. O caso veio à tona em novembro de 2014, quando auditores do trabalho resgataram 37 pessoas submetidas à escravidão em duas oficinas gerenciadas por uma empresária também de origem boliviana. Na ocasião, a Zara já não mantinha Trabalho Escravo e Fast Fashion: o Flerte da Indústria da Moda com a Servidão Osmar Veronese | Andressa Laste 181 mais relações comerciais com os empreendimentos do grupo. A produção era destinada à varejista Renner, que foi responsabilizada pela situação. (Campos, 2015). Nessa fenda, a rede varejista de roupas Renner, que possui várias redes espalhadas pelo Brasil, foi responsabilizada pela exploração de trinta e sete costureiros bolivianos em uma oficina de costura terceirizada na periferia de São Paulo, em 2014. Os trabalhadores viviam sob condições degradantes em alojamentos, cumpriam jornadas exaustivas e parte deles estava submetida à servidão por dívidas. Tais condições constam no artigo 149 do Código Penal Brasileiro como suficientes – mesmo que isoladas – para se configurar o crime de utilização de trabalho escravo. [...]. Os auditores fiscais à frente do caso consideraram a Renner responsável pela redução dos trabalhadores a condições análogas a de escravos por entenderem que a empresa detém o controle total sobre a produção de roupas na oficina fiscalizada, cujo serviço era intermediado por duas empresas fornecedoras da rede varejista. (OJeda, 2014). Igualmente, no ano de 2015, outra empresa do ramo varejista, o Grupo Riachuelo, foi condenada a pagar pensão vitalícia a uma ex-funcionária devido a doença contraída pelas atividades desempenhadas. A condenação evidencia o modelo de produção fast fashion, haja vista a exigência de metas de produção de seus funcionários pelo grupo, mediante abusos físicos e psicológicos, para cumprir com o ritmo e demandas exigidas pela fábrica onde eram confeccionadas as peças de roupas vendidas pelas lojas do grupo econômico. O grupo Riachuelo foi condenado a pagar pensão vitalícia a uma de suas ex-funcionárias em mais uma ação que revela as precárias condições de trabalho impostas às costureiras que produzem para as grandes marcas da moda. A condenação descreve um ambiente de trabalho em que a exigência de metas de produção ocorria mediante abusos físicos e psicológicos. Segundo seu relato, a costureira era pressionada a produzir cerca de mil peças de bainha por jornada. A meta, por hora, era colocar elástico em 500 calças ou costurar 300 bolsos. Na ação, a funcionária diz que muitas vezes evitava beber água para diminuir suas idas ao banheiro. Idas que, segundo ela, seriam controladas pelo encarregado mediante o uso de fichas. A ação foi contra a Guararapes Confecções, indústria de roupas do grupo Riachuelo, condenada a pagar uma pensão vitalícia à costureira lesionada devido às atividades exercidas na empresa. A ex-funcionária desenvolveu Síndrome do Túnel do Carpo, que provoca dores e inchaços nos braços. A ação aponta que a trabalhadora teve a sua capacidade laboral diminuída devido ao ritmo de trabalho exaustivo demandado pela fábrica potiguar, onde são confeccionadas peças de roupa vendidas pelas lojas da Riachuelo. (Campos; Aranha, 2016). No ano de 2020, um resgate de trabalhadores em regime de escravidão contemporânea foi realizado em uma oficina de costura da Program Moda, empresa que se intitula a maior rede plus size do Brasil. Dentre os resgatados estava uma mulher no sétimo mês de gestação, impedida de acessar serviços básicos de saúde. Enquanto os estilistas da Program, que diz ser a “maior rede plus size do Brasil”, viajavam para os maiores centros de moda mundiais “em busca de inspiração e novas 182 Revista Direito e Justiça: Reflexões Sociojurídicas Santo Ângelo | v. 22 | n. 43 | p. 171-185 | maio/agos. 2022 | DOI: http://dx.doi.org/10.31512/rdj.v22i43.1009 ideias”, os costureiros bolivianos que produziam peças para a marca eram submetidos a tratamento desumano. A empresa foi condenada pela Justiça em março do ano passado, mas o cativeiro dos trabalhadores resgatados não acabou: vítimas de possível servidão por dívidas, jornadas diárias de 16 horas de trabalho e até privação de alimentos, eles ainda não receberam nenhuma indenização. O resgate aconteceu em setembro de 2020, em uma oficina de costura no bairro Casa Verde Alta, em São Paulo, quando fiscais encontraram três trabalhadores em condições análogas à escravidão. Entre eles estava uma mulher, no sétimo mês de gestação, impedida de acessar serviços de saúde. “Quando os patrões descobriram que ela estava grávida, não queriam deixar ela parar de trabalhar”, revelou à Repórter Brasil um dos bolivianos resgatados, que é o pai da criança. Segundo o relatório de fiscalização, a família precisava compensar aos finais de semana as horas em que a grávida saía da oficina para fazer o pré-natal. Em uma ocasião em que precisou ser atendida na emergência de uma maternidade e, com dores, não pôde trabalhar, a mulher foi penalizada com restrição de alimentação: ela e suas três filhas receberam apenas chá como jantar em uma noite, somente o café da manhã no dia seguinte e, no terceiro dia, o jejum foi total. (Júnior, 2022). Conforme mencionado, a indústria da moda no modelo fast fashion tem por base a política da rápida e contínua produção de peças que colabora para que as coleções e tendências sejam criadas e trocadas com frequência pelos consumidores. Ocorre que essa urgência no consumismo faz com que os consumidores não se atentem ao fato de “quem faz as suas roupas”6. Segundo uma pesquisa realizada pela Fundação Procon – SP, no ano de 2019, mais de 90% dos entrevistados afirmaram não serem capazes de identificar se o produto que adquiriam foi produzido ou não com mão de obra escrava. Outros 89,52% afirmaram que não sabem onde encontrar a informação das empresas que se utilizam de trabalho escravo e mais de 80% afirmaram que não adquiriram produtos se soubessem que foram produzidos com mão de obra escrava e quase a totalidade dos consumidores entrevistados afirmou considerar útil saber quais empresas exploram mão de obra escrava. Quanto a divulgação de informações, está estabelecido no Código de Defesa do Consumidor, como direito fundamental, o conhecimento de dados indispensáveis sobre produtos ou serviços e o direito à educação para o consumo que consiste em meios para o cidadão exercitar, de forma consciente, sua função no mercado. Isso porque, o consumidor que adquire um bem ou serviço fruto de trabalho escravo acaba, ainda que involuntariamente, contribuindo para o seu fomento. Nesse contexto, a ONG Repórter Brasil desenvolveu, em 2013, um aplicativo chamado Moda Livre, o qual avalia grandes grupos varejistas de moda e relaciona aqueles cuja produção têxtil foi flagrada em casos de trabalho escravo. A proposta do aplicativo é que o consumidor conheça a conduta das marcas antes de consumir o produto ofertado e, dessa maneira, se torne um consumidor consciente e também um ator social no combate ao trabalho escravo em uma sociedade de consumo atiçada por ideologias neoliberais. 6 O Fashion Revolution é um movimento que surgiu com a seguinte pergunta “quem fez minhas roupas?”. Em busca das respostas, o movimento atua objetivando o engajamento da sociedade na busca por uma moda mais justa, digna e transparente. Trabalho Escravo e Fast Fashion: o Flerte da Indústria da Moda com a Servidão Osmar Veronese | Andressa Laste 183 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A pesquisa concluiu, portanto, que a indústria da moda, impulsionada pelo modelo de produção fast fashion, fomenta o trabalho escravo contemporâneo e é uma realidade social a partir da correlação entre o neoliberalismo e o consumismo. Não custa sublinhar novamente que, no modelo de Estado Neoliberal, o mercado assume o papel central, reduzindo a ação do Estado e potencializando o consumismo. Assim sendo, o consumismo constitui-se como o núcleo e a forma de conduta individual e coletiva presente na modernidade líquida, descrita pelo sociólogo Zygmunt Bauman. A indústria da moda, com o modelo de produção fast fashion, é apontada como uma das formas de consumismo que possui elevada fluidez de novos produtos e descarte de velhos. É nesse cenário que a exploração de mão de obra emerge, haja vista que uma sociedade que consume de forma desenfreada, acaba exigindo que o mercado da moda atenda às suas demandas. Logo, a indústria da moda, por esse consumo imediato, além de apresentar problemas ambientais, também apresenta problemas sociais, pois, em muitos casos, submete seus trabalhadores a condições análogas à de escravo. Isso porque, o modelo de produção fast fashion na indústria da moda, ainda que lucrativo para muitas empresas da indústria modista, é difundido como estratégia de desenvolvimento pelas economias neoliberais, tornando-se exemplo da dimensão sociopolítica da doutrina neoliberal. O discurso que sustenta esse modelo defende a desregulamentação da força de trabalho e o enfraquecimento das forças sindicais, erosionando direitos trabalhistas e abrindo caminhos para a precarização dos vínculos e da vida dos trabalhadores, vistos como peças na engrenagem da máquina do mercado “livre”. Nesse contexto, cabe, primeiro, às próprias empresas cuidarem da sua cadeia de produção, tendo em vista que a imagem socioambiental tem cada vez mais valor no mercado mundial e, segundo, ao Estado e à sociedade brasileira compreenderem seus fluxos, impedindo que sistemas de produção fragilizem o bem mais importante do processo, que é o ser humano. Com isso, nosso país estará alinhado às melhores práticas globais de sustentabilidade e apto a galgar avanços civilizatórios imprescindíveis no atual estágio da humanidade Referências BATISTA, Fabiano Eloy Atílio. A moda que não sai de moda: o trabalho nas confecções têxteis brasileiras. Revista Falange Miúda, Ano 2, N.1, jan-jun., 2017. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 184 Revista Direito e Justiça: Reflexões Sociojurídicas Santo Ângelo | v. 22 | n. 43 | p. 171-185 | maio/agos. 2022 | DOI: http://dx.doi.org/10.31512/rdj.v22i43.1009 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. 2ªed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. BAUMAN, Zygmunt. A ética é possível num mundo de consumidores? Trad. Alexandre Werneck. Rio de Janeiro: Zahar, 2021. BRASIL. Secretaria da justiça e cidadania. 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