Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

Vício e Virtude - Kent Dunnington

Download as pdf or txt
Download as pdf or txt
You are on page 1of 189

Publicado originalmente em inglês por InterVarsity Press como Addiction and virtue: beyond the models of

disease and choice, por Kent Dunnington.

Copyright © Kent Dunnington, 2011. Traduzido e publicado com permissão da InterVarsity Press, o
departamento editorial da InterVarsity Christian Fellowship/USA, com sede em 1400, Downers Grove, IL,
60515-1426.

Copyright da tradução © Pilgrim Serviços e Aplicações LTDA., 2022. Este livro foi publicado com apoio de
eoPsych, um projeto financiado pela John Templeton Foundation, e trazido para o Brasil graças aos
esforços do dr. Rafael Bello.

Todas as citações bíblicas foram extraídas da Almeida Século 21, salvo indicação em contrário.

Os pontos de vista desta obra são de responsabilidade dos autores e colaboradores diretos, não refletindo
necessariamente a posição da Pilgrim Serviços e Aplicações, da omas Nelson Brasil ou de suas equipes
editoriais.

T: Breno Seabra


R: Gabriel Lago , Jean Xavier e Paulo Nishihara
E: Guilherme Cordeiro Pires e Guilherme H. Lorenzetti
C : Cindy Kiple
A  : Rafael Brum
D: Tiago Elias
C  B: SCALT Soluções Editoriais

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


D939v D, Kent
1.ed. Vício e Virtude : a adicção sob uma perspectiva teológica / Kent Dunnington ; tradução
Breno Seabra – 1.ed. – Rio de Janeiro : omas Nelson Brasil ; São Paulo : Pilgrim, 2022.

Título original : Addiction and virtue : beyond the models of disease and choice.
ISBN : 978-65-56893-26-6

1. Comportamento compulsivo - Aspectos religiosos - Cristianismo. 2. uebra de hábitos -


Aspectos religiosos - Cristianismo. 3. Trabalho da igreja com adictos em recuperação. I.
Seabra, Breno. II. Título.
05-2022/118 CDD 259.42

Índice para catálogo sistemático:


1. Trabalho da igreja com adictos em recuperação 259.42
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

Todos os direitos reservados a Pilgrim Serviços e Aplicações LTDA.


Alameda Santos, 1000, Andar 10, Sala 102-A
São Paulo — SP — CEP: 01418-100
www.thepilgrim.com.br
A
John J. McDermott,
amigo e professor
SUMÁRIO

Prefácio |

1
A  Definindo adicção neurologicamente |
Avaliando o risco geneticamente |
D
Tratando medicamente a adicção |
Ciência, filosofia Ciência, filosofia e teologia |
e teologia

2
O paradoxo da adicção |
A 
Adicção e incontinência |
I Fontes de incontinência |
Recursos em Aristóteles

3
Tomás de Aquino sobre o hábito |
A  Hábito como categoria mediadora |
H Tipos e causas do hábito |
A adicção como hábito |
Recursos em Tomás de Aquino

4
A  Hábitos complexos |
I Adicção e intemperança |

Prazeres sensoriais e bens morais

5 Aristóteles sobre hábito e felicidade |


Arbitrariedade moderna |
A  O tédio moderno |
A solidão moderna |
M
O adicto como profeta involuntário

6
Pecados, pecado e pecado original |
A 
Pecado, adicção e voluntarismo |
P O pecado como categoria religiosa |
Testando uma doutrina antiga

7
Imanência e transcendência |
A  Tomás de Aquino sobre caridade |
A Adicção e caridade |
Adicção como estilo de vida |
Caritas e suas falsificações

8
Adicção e adoração |
A  A igreja e a esperança de recuperação |
I Recuperação e amizade |
Adicção como desafio profético |
O evangelho e a esperança de recuperação
PREFÁCIO

Os últimos anos testemunharam um aumento maciço de pesquisas sobre


adicção.1 Em 1962, quando se mudou para a Rutgers University, o Yale Center of
Alcohol Studies era a única instituição de pesquisa desse tipo. Hoje, existem
aproximadamente cem centros de pesquisa sobre o assunto alojados nas principais
universidades do Estados Unidos. A maior parte do trabalho está sendo feita por
cientistas da natureza e sociais. Os teólogos têm escrito comparativamente pouco
sobre adicção; filósofos, ainda menos.
Este livro insere a filosofia e a teologia nas investigações que ocorrem no
campo dos “estudos sobre adicção”. Argumento que os esforços para compreender
e mitigar o comportamento adicto têm sido desnecessariamente limitados por
abordagens científicas sobre a adicção. Tendo em vista que boa parte do discurso
público sobre o tema é conduzida em termos cientificamente reducionistas,
muitos cristãos que percebem corretamente o significado espiritual da adicção são
incapazes de articular esse significado de maneiras teologicamente substanciais.
Este livro é uma tentativa de fornecer tal articulação.
O livro defende três teses gerais. Primeiro, demonstra que a análise filosófica
da ação humana é necessária para esclarecer muitas das confusões conceituais que
afligem o discurso dos estudos sobre adicção. Nesse discurso, a adicção é
interpretada ou como uma doença ou como um tipo de escolha voluntária, porém
nenhuma dessas categorias é adequada para descrever e fenômeno da adicção. Por
exemplo, o conceito de doença obscurece a questão de em que medida se pode
esperar que as pessoas assumam a responsabilidade por suas adicções, e o conceito
de escolha obscurece o caráter distintivo da experiência adicta. Este livro
argumenta que a categoria do “ hábito” é indispensável para traçar um caminho
inteligível entre as polaridades confusas de “doença” e “escolha”, pois nos permite
descrever a adicção de uma forma não contraditória e sem violentar os
testemunhos de adictos.
Seres humanos desenvolvem hábitos a fim de facilitar a bus- ca por bens
humanos específicos. Assim, se a adicção for apropriadamente caracterizada como
um tipo de hábito humano, podemos perguntar-nos sobre os tipos específicos de
bens que atraem as pessoas a hábitos de adicção. Essa é uma maneira estranha de
falar; os efeitos destrutivos da adicção são tão perturbadores que não estamos
acostumados a considerar sua atração intrínseca. A segunda tese geral do livro é
que a prevalência e o poder da adicção indicam até que ponto uma sociedade
falha em fornecer maneiras não viciantes de adquirir certos tipos de bens
necessários ao bem-estar humano. A adicção é, portanto, uma crítica
corporificada da cultura que a sustenta. Proponho que a adicção como a
entendemos é um hábito peculiarmente moderno e que pode ser visto como um
espelho que reflete para nós aspectos da cultura moderna que tendemos a ignorar
ou suprimir. Pessoas com adicções severas estão entre aqueles profetas
contemporâneos que ignoramos para nosso próprio prejuízo, pois eles nos
mostram quem realmente somos.
Os cristãos devem dar ouvidos aos profetas. Eles, portanto, são chamados a
descrever a experiência adicta e a refletir sobre como a igreja pode ser cúmplice na
produção de uma cultura da adicção. Para tanto, o livro se esforça para enquadrar
a adicção dentro de uma estrutura teológica. A terceira tese geral que o livro
defende é que a categoria teológica de pecado pode aprofundar e ampliar nossa
compreensão acerca da adicção, a qual não é idêntica ao pecado, mas também não
pode ser separada dele. O poder da adicção não pode ser avaliado adequadamente
até que esta seja entendida como uma representação equivocada de nossa busca
por um relacionamento correto com Deus. Argumento que a adicção é, na
verdade, uma espécie de adoração falsificada. Assim, embora seja verdade que a
igreja tem muito que aprender com programas de recuperação como o Alcoólicos
Anônimos, também é verdade que a igreja tem muito a oferecer ao movimento de
recuperação e, na verdade, a todos nós que lutamos contra a adicção.
Prevejo dois possíveis obstáculos para o leitor. Primeiro, o leitor que está
esperando um livro de autoajuda sobre adicção pode ficar frustrado pela natureza
teórica e abstrata do meu argumento. Não fornecerei um perfil psicológico da
pessoa toxicodependente ou uma lista de princípios de recuperação, tampouco
tentarei fornecer um relato causal direto das razões pelas quais as pessoas se
envolvem em comportamentos adictos. As pessoas se envolvem nesses
comportamentos adictos por várias razões, incluindo rejeição, perda de um filho,
negligência familiar, trauma sexual e opressão, divórcio, desemprego, depressão e
crises de identidade relacionadas a raça, gênero ou sexualidade.2 Em vez de
oferecer uma explicação de por que as pessoas se envolem em comportamento
adicto, busco oferecer uma explicação de por que elas se tornam adictas nesses
comportamentos. Estou tentando esclarecer por que a adicção adquire vida
própria, com sua própria racionalidade e seu próprio ritmo, e persiste
independentemente de mudanças em circunstâncias mais imediatas. Estou
tentando articular não o poder do álcool, do crack, da heroína ou da pornografia,
mas o poder da adicção. Trabalho com a hipótese de que há algo filosófica e
teologicamente profundo acerca desse assunto, mas também que os paradigmas
atuais padronizados e enraizados devem ser reformulados ou superados, a fim de
que o que está de fato em jogo seja trazido à tona em total relevo e evidência.
Em segundo lugar, o leitor pode ficar desanimado pela extensão até a qual o
argumento se apoia em Aristóteles e Tomás de Aquino. O livro se fundamenta em
uma rigorosa análise filosófica da ação humana, que se baseia principalmente no
pensamento desses dois pensadores clássicos. Isso não é para satisfazer uma
curiosidade antiquária ou para oferecer uma apologética indireta a esses
pensadores; não sou um “aristotélico” nem um “tomista” per se. À medida que
comecei a refletir sobre a adicção, eu me vi recorrendo a esses autores
repetidamente por uma simples razão: tanto Aristóteles quanto Tomás de Aquino
assumem que a tarefa primária de qualquer filosofia da ação humana é explicar
como é possível que seres humanos conheçam o bem e, ainda assim, falhem em
praticá-lo. Isso, claro, é o que é absolutamente intrigante sobre a adicção — que
façamos repetida e compulsoriamente o que sabemos estar nos prejudicando. É
porque Aristóteles e Tomás de Aquino permanecem os estudantes mais
sofisticados e meticulosos desse enigma até os dias de hoje que passei a considerar
suas obras tão úteis na tentativa de compreender a adicção.
O argumento procede da seguinte maneira. O capítulo 1 prepara o terreno,
respondendo à suspeita e ao preconceito que provavelmente confrontarão
qualquer tentativa de falar sobre adicção “filosoficamente”. A visão predominante
do público em geral, a mídia e a maioria daqueles que trabalham em movimentos
de recuperação de toxicodependentes é que a adicção é uma doença e, portanto,
um tópico de investigação para cientistas e médicos, não para filósofos ou
teólogos. Defendo que tentativas de descrever a adicção exclusivamente em
linguagem científica — como “doença” — estão fadadas ao fracasso, uma vez que
se baseiam em uma confusão conceitual básica sobre o que constitui a ação
voluntária.
Os capítulos 2 e 3 desenvolvem a visão de que a adicção não é uma doença
nem uma escolha, mas sim um hábito. Estou interessado em perguntar o que a
experiência de ser adicto pode nos ensinar sobre a complexidade da ação humana
e, inversamente, como uma análise cuidadosa de certos aspectos da agência
humana pode iluminar alguns dos elementos mais desconcertantes da experiência
adicta. O leitor deve estar avisado de que esses são os capítulos mais técnicos do
livro.
O capítulo 4 argumenta que, ao contrário da crença popular, a adicção não
diz respeito primariamente a bens sensíveis (prazeres hedonistas), mas sim a bens
morais e intelectuais, e o capítulo 5 explora a ideia de que o hábito da adicção
pode ser uma resposta a uma carência peculiarmente moderna de certos tipos de
bens morais e intelectuais. Aqui, a estratégia muda de um desdobramento
sistemático de uma filosofia da ação humana, nos capítulos 2 e 3, para um
exercício abrangente e (inevitavelmente) especulativo de filosofia da cultura.
O capítulo 6 avança para o território teológico e trata da seguinte questão:
podemos aprender algo de importância normativa ou descritiva ao pensarmos
sobre adicção em termos da categoria de pecado? Inversamente, o capítulo
considera como nossa compreensão do pecado, incluindo a doutrina do pecado
original, é enriquecida por nossa compreensão da adicção. O capítulo 7 trata da
relação entre comportamento adicto e adoração. Argumento que a adicção
oferece uma poderosa resposta à perda moderna de transcendência. Por fim, no
capítulo 8, exploro a relação entre a igreja e a adicção, propondo que tipo de igreja
é necessário para oferecer um modo de vida alternativo mais atraente do que a
vida adicta.
Este livro esteve em produção por bastante tempo. A análise da adicção do
ponto de vista da filosofia da ação surgiu de minha dissertação, escrita sob a
orientação de John J. McDermott. Embora ele vá discordar da dimensão teológica
de meu tratamento, espero que John veja no livro algo da seriedade e da simpatia
com as quais ele me ensinou a considerar a adicção e as pessoas adictas. O livro é
dedicado a John como um símbolo de minha gratidão.
O restante da minha banca foi formado por Scott Austin, David Erlandson,
Reinhard Hütter e Stanley Hauerwas, cada um dos quais demonstrou profunda
generosidade com seu tempo e atenção. Sou especialmente grato a David por orar
por mim durante todo o processo, bem como nos anos seguintes, e a Stanley por
me encorajar a escrever este livro.
Além disso, várias pessoas leram todo o manuscrito ou parte dele ao longo
de sua produção. Meus agradecimentos a John Kiess, Sheila McCarthy, Caleb
McDaniel, Clion Stringer, Johannah Swank, Michael Trapp e Ben Wayman.
Agradecimentos especiais a minha mãe, Paula Church, a editora mais leal e
atenciosa que um filho poderia desejar. Cada um desses amigos ofereceu sugestões
valiosas sobre o manuscrito, tornando o processo de escrita menos solitário.
Agradeço também a um leitor anônimo da InterVarsity Press e ao editor Gary
Deddo por sua ajuda em conduzir este projeto até a conclusão.

1 Nota do editor: ao longo da obra optamos por traduzir o substantivo addiction, o adjetivo
addictive e seus correlatos por “adicção” (para se referir ao vício/dependência) e “adicto” (para tratar
de um comportamento vicioso ou de um indivíduo envolvido em tal comportamento). Dessa forma,
reservamos a utilização do termo “ vício” aos contextos em que o autor trata da filosofia da ação
humana de Aristóteles, segundo a qual o vício é um contraponto da virtude. uanto à grafia, optamos
por “adicção” (em vez de “adição”) por ser esta a forma adotada por entidades oficiais, como a
Associação Brasileira de Psiquiatria, por exemplo.
2 Gostaria de lidar aqui com a preocupação de que, sem um exame correspondente do trauma ou
opressão, meu tratamento da adicção pode acabar levando alguns leitores a sentir que suas lutas mais
urgentes com a adicção não estão sendo suficientemente tratadas. Outros talvez pensem que minha
abordagem da adicção não se detém adequadamente em questões de gênero, raça e etnia. Cada uma
dessas questões é de fato relevante para o tema da adicção. Muito do que tenho para dizer,
particularmente nos capítulos posteriores, tratará de algumas dessas questões de maneira indireta.
Entretanto, optei por não me concentrar diretamente nessas importantes intersecções, primeiro
porque não sou qualificado para tal tarefa, e segundo porque lidar com esses assuntos levantaria um
conjunto de questões diferentes daquelas que pretendo trazer aqui. Tratar desses temas com a atenção
que eles merecem exigiria outro livro (ou vários). Para discussões úteis sobre o relacionamento entre
trauma, opressão e adicção, ver B, Mary Louise. Despair: sickness or sin? (Nashville:
Abingdon, 1990); G, Christine. Victimization: examining Christian complicity
(Philadelphia: Trinity Press International, 1992). Sobre o relacionamento entre gênero e adicção, ver
K, Charlotte Davis. Women, sex, and addiction (New York: Harper Paperbacks, 1990).
1
ADICÇÃO E DOENÇA
Ciência, filosofia e teologia

P          


 ? Esse assunto não deveria ser deixado para os especialistas — os
cientistas? Afinal, a visão predominante entre pesquisadores, conselheiros de
tratamento, a mídia e o público em geral é que a adicção é uma doença.3 Se
adicções são doenças, então não são o tipo de coisa que seres humanos fazem, mas
sim o tipo de coisa de que seres humanos soem. E, se for esse o caso, perguntar
como deveríamos compreender e descrever a adicção como um tipo de ação
humana — como proponho — seria simplesmente um equívoco, pois seria um
exemplo do que os filósofos chamam “erro categorial”, semelhantemente a
perguntar se o número sete é amarelo ou verde. Se é errado perguntar: “O que as
pessoas estão fazendo quando estão agindo de maneira cancerígena?”, não seria
igualmente errado perguntar: “O que as pessoas estão fazendo quando estão
agindo de maneira adicta?”
O fato de essas perguntas deixarem os filósofos ansiosos talvez explique por
que tão poucos deles têm escrito sobre adicção. Até o momento, apenas duas
monografias filosóficas sobre adicção foram publicadas.4 Os teólogos têm sido
igualmente reticentes, e o que foi escrito em uma veia teológica é frequentemente
prejudicado por confusões conceituais decorrentes da hegemonia do conceito de
doença da adicção.5
O que necessitamos é uma limpeza de terreno conceitual. A fim de abrir
espaço para um estudo filosófico e teológico da adicção, demonstrarei que toda
tentativa de fornecer condições “cientificamente objetivas” necessárias e
suficientes para a adicção falharam. Ainda mais importante, argumentarei que
tentativas de definir adicção em terminologia exclusivamente médico-científica
— como “doença” — não apenas falharam, como, de fato, estão fadadas ao
fracasso. O argumento prossegue examinando três áreas nas quais a ciência
exerceu enorme influência sobre o discurso a respeito de adicção: primeiro, a
tentativa de definir adicção; segundo, a tentativa de avaliar o risco da adicção; e
terceiro, o tratamento para a adicção. Embora as ciências tenham dado
contribuições significativas em cada uma dessas áreas, as conclusões tiradas dessas
contribuições têm sido exageradas de maneiras que distorcem nosso
entendimento acerca da adicção. Não nego que a ciência tenha muitas coisas
importantes e interessantes para dizer sobre o assunto, entretanto, a ciência não
diz e não pode dizer tudo o que há de importante e interessante sobre a adicção.
Além disso, as questões deixadas sem resposta pela pesquisa científica e pelo
tratamento médico são precisamente as questões que requerem análise filosófica e
teológica.
Agora é um momento oportuno para esclarecer de que modo palavras
como adicção e alcoolismo serão utilizadas ao longo do argumento. Na linguagem
contemporânea, dizer, por exemplo, que X é um alcoólatra pode ser interpretado
de três maneiras: (1) X traz alcoolismo “nos genes” e é, portanto, um alcoólatra,
quer tenha consumido uma gota de álcool, quer não o tenha; (2) X é um
alcoólatra praticante, exibindo as marcas comuns de comportamento e consumo
alcoólatra; ou (3) X é um alcoólatra em recuperação, mas, não obstante, X ainda é
um alcoólatra porque é especialmente suscetível a recaídas, sua bioquímica
cerebral foi permanentemente alterada, e assim por diante. Salvo indicação em
contrário, desejo empregar apenas o sentido (2) quando falo de adicção ou
alcoolismo. Estamos interessados em comportamento adicto e, embora ampliar a
definição possa ser, em alguns momentos, terapêutica ou retoricamente útil, tal
movimento levanta exatamente as questões com as quais essa investigação está
especialmente preocupada. Se o comportamento adicto pudesse ser explicado
completamente pela linguagem científica, então talvez tais definições ampliadas
pudessem ser justificadas. No entanto, devo argumentar que o comportamento
adicto não pode ser explicado dessa maneira reducionista.
D  

O Institute of Medicine [Instituto de Medicina dos Estados Unidos] define


adicção como uma “ doença cerebral” caracterizada por “uso compulsivo de uma
droga”.6 O National Institute on Drug Abuse [Instituto Nacional sobre Abuso de
Drogas] define adicção como uma “doença cerebral crônica, recidiva, expressa na
forma de comportamentos compulsivos”.7 A American Medical Association
[Associação Médica Americana] e a American Psychological Association
[Associação Americana de Psicologia] adotaram definições semelhantes.8
A lógica na qual os institutos federais de saúde e organizações profissionais
baseiam tais definições é surpreendentemente direta: “A adicção em drogas é uma
doença cerebral porque o abuso de drogas leva a mudanças na estrutura e no
funcionamento do cérebro”.9 Especificamente, argumenta-se, a adicção é sempre
acompanhada pelas adaptações neurológicas relacionadas de “ tolerância” e “
abstinência”. Tolerância é definida como um processo neurológico no qual doses
repetidas de uma droga ao longo do tempo provocam um efeito progressivamente
decrescente, fazendo com que a pessoa necessite de doses maiores ou mais
frequentes da droga para obter resultados semelhantes. Abstinência é definida
como a disforia decorrente da cessação ou da restrição do uso da droga,
envolvendo a agitação do corpo pelo rompimento dos equilíbrios modificados
estabelecidos por intermédio do processo de uso.10
Tipicamente, ao buscarmos oferecer definições, tentamos especificar as
condições necessárias e suficientes para o objeto ou o fenômeno que será definido.
Assim, por exemplo, um círculo pode ser definido como uma curva plana fechada
em que todos os pontos da curva estão equidistantes de um ponto dentro dela,
denominado centro. Dizer que essa definição fornece condições necessárias e
suficientes para “círculo” é dizer que, para que qualquer coisa seja um círculo, tal
coisa deve atender a essas especificações (essas especificações são necessárias), e
que atender a essas especificações é suficiente para justificar que chamemos algo de
círculo (essas especificações são suficientes). Portanto, se os fenômenos
neurológicos de tolerância e abstinência devem fundamentar a definição de
adicção como uma doença cerebral, duas implicações devem ser verdadeiras.
Primeiro, deve ser o caso de que a existência de uma adicção implica a presença de
tolerância e abstinência ( tolerância e abstinência são condições necessárias para a
adicção). Em segundo lugar, deve ser o caso de que a presença de tolerância e
abstinência implica a existência de uma adicção ( tolerância e abstinência são
condições suficientes para a adicção). Essas implicações são válidas?
Duas objeções básicas se apresentam como obstáculos a uma resposta
afirmativa. Por um lado, tolerância e abstinência ocorrem a inúmeras pessoas que
não consideraríamos adictas. Por exemplo, pacientes cirúrgicos que recebem
morfina ou algum outro anestésico frequentemente desenvolvem sintomas de
tolerância e abstinência da medicação, mas poucos deles se tornam adictos. A
maioria deles deixa de usar o medicamento imediatamente no momento
prescrito, apesar da experiência de sintomas de abstinência. Por outro lado, muitas
pessoas que consideraríamos adictas experimentam pouco ou nenhum sintoma de
tolerância ou abstinência em relação a suas adicções. Por exemplo, muitos
soldados norte-americanos relataram que se tornaram adictos em heroína durante
suas missões na Guerra do Vietnã, mas a maioria deles parou de usar a substância
ao retornar, relatando nenhum sintoma de abstinência.11 Os sintomas de
tolerância e abstinência, portanto, não podem ser considerados condições
necessárias ou suficientes para a adicção. Elas não são, de forma alguma,
características insignificantes da adicção; entretanto, não são definitivas ou
constitutivas de tal fenômeno.
Para ilustrar o ponto, considere o seguinte cenário hipotético, mas plausível.
Duas pessoas fisiologicamente semelhantes são expostas a quantidades
semelhantes de morfina durante um período semelhante. Uma passa um mês no
hospital tomando morfina; a outra passa um mês experimentando heroína
regularmente (morfina processada). Suponha que, no final do mês, ambas estejam
sujeitas a níveis idênticos de tolerância e abstinência. Suponha ainda que, ao sair
do hospital, a primeira pessoa pare imediatamente de usar morfina. O
consumidor de heroína, porém, não para de consumir heroína e afirma ter-se
tornado adicto. ual é a diferença entre os dois? Seja qual for a diferença, não
pode ser uma simples questão de tolerância e abstinência.
A essa altura, defensores do conceito de doença da adicção talvez batam o
pé. Podemos imaginar a resposta: “Toda essa conversa sobre condições necessárias
e suficientes é uma mera distração. Nosso argumento é bem simples. O abuso de
drogas gera mudanças na estrutura e no funcionamento do cérebro. Mudanças
comportamentais que podem ser traçadas até mudanças na estrutura e no
funcionamento do cérebro são involuntárias. Portanto, o comportamento de
pessoas com adicção é involuntário. Portanto, a adicção é mais semelhante a uma
doença humana do que a um tipo de ação humana”.
Esse é, de fato, um argumento simples, mas será que é sólido? Parece válido,
então devemos perguntar se suas premissas são verdadeiras. A primeira premissa
parece indiscutível: vários estudos demonstram que o abuso de drogas altera a
estrutura e o funcionamento do cérebro. O problema com o argumento aparece
na segunda premissa, que afirma que mudanças comportamentais que podem ser
traçadas até mudanças na estrutura e no funcionamento do cérebro são
involuntárias. A premissa é problemática porque, se isso fosse verdade,
descobriríamos que vários tipos de atividades que consideramos voluntárias são,
na verdade, involuntárias. Por exemplo, estudos mostram que a estrutura e o
funcionamento do cérebro de músicos habilidosos são transformados por anos de
prática. Mas certamente isso não significa que, em algum ponto, músicos
habilidosos deixem de estar voluntariamente dispostos a tocar seus instrumentos.
Certamente, isso não significa que tocar violoncelo pode deixar de ser algo que
um violoncelista faz e tornar-se algo de que ele sofre, uma espécie de doença.
A segunda premissa é, portanto, falsa. Do fato de que um comportamento
pode ser correlacionado com uma estrutura e um funcionamento cerebral
alterados, não podemos inferir que o comportamento em questão seja
involuntário. Devemos fazer um tipo diferente de pergunta a fim de estabelecer
essa determinação.
A   

Se a diferença entre a pessoa adicta e a pessoa não adicta não pode ser
rigorosamente especificada em termos de bioquímica cerebral, talvez ela possa ser
especificada em termos de alguma outra característica fisiológica. Em anos
recentes, com os rápidos avanços na genética, pesquisadores sugeriram que a
diferença entre uma pessoa adicta e uma não adicta pode ser explicada por
diferenças na composição genética. Eles afirmam que algumas pessoas são
geneticamente predispostas a certos tipos de adicção.
Os avanços iniciais na genética da adicção foram o resultado de estudos
sobre a diferença nas taxas de alcoolismo entre gêmeos fraternos e gêmeos
idênticos. Em geral, gêmeos idênticos tinham taxas de alcoolismo mais similares
do que gêmeos fraternos, embora não houvesse nada que se aproximasse de uma
correspondência exata. Em um esforço para controlar os fatores ambientais,
foram conduzidos estudos em crianças adotadas que haviam sido separadas de
seus pais biológicos no nascimento. Em geral, crianças adotadas que tinham pelo
menos um dos pais biológicos alcoólatra foram consideradas mais propensas a ser
alcoólatras do que as que não tinham nenhum dos pais biológicos alcoólatra. Em
um estudo, a taxa de alcoolismo no primeiro grupo foi quatro vezes maior do que
a taxa de alcoolismo no último grupo.12
Mais recentemente, geneticistas conseguiram isolar genes especificamente
relacionados a certas adicções em substâncias. Assim, por exemplo, um estudo de
2005 relatou que uma variação genética particular do receptor mu-opioide levou
a um aumento da sensibilidade aos efeitos de substâncias viciantes e, portanto, a
um risco maior de adicção.13 Outros estudos demonstraram que uma variante do
gene do álcool desidrogenase (ADH) aumenta o risco de alcoolismo e que essa
variante particular é mais proeminente em pessoas com ascendência europeia.14
Estudos similares estão sendo conduzidos em laboratórios de genética ao redor do
mundo, e novas descobertas têm sido divulgadas regularmente.15
Entretanto, quando examinamos a conexão proposta entre esses genes e o
aumento do risco de adicção em substâncias, deparamo-nos com um problema
familiar. A conexão tem a ver principalmente com três fatores. Pessoas que têm
esses genes exibem uma atração mais imediata e poderosa pela droga relevante em
uso, e/ou desenvolvem tolerância à droga mais rápida e severamente, e/ou
experimentam sintomas de abstinência mais agudos na ausência da droga. Já
estabelecemos que a ocorrência de tolerância e abstinência não constitui condição
necessária ou suficiente para a adicção, e o mesmo pode ser dito acerca da
ocorrência da intensa experiência hedônica ou antidisfórica de uma droga. Muitas
pessoas experimentam intensa gratificação sensorial com o uso de uma droga,
mas, mesmo assim, não se tornam adictas. Na verdade, uma experiência tão
intensa pode fornecer razões poderosas para nunca mais usar a droga, muito
menos tornar-se adicto a ela.
Com relação a cada um desses fatores, o desenvolvimento ou não da adicção
em uma pessoa parece depender não simplesmente das experiências de
gratificação, tolerância ou abstinência, mas sim do significado que a pessoa
discerne nessas experiências ou atribui a elas. Ou seja, experiências de gratificação,
tolerância e abstinência não causam diretamente o comportamento adicto, mas
entram na avaliação de um agente sobre envolver-se ou não em tal
comportamento. É por isso que a pesquisa genética nunca poderia fornecer um
relato causal suficiente da adicção. Assim, a seguinte conclusão otimista de
Donald Goodwin sobre o assunto é injustificada: “A última descoberta na
pesquisa sobre alcoolismo seria a identificação de um único gene ou grupo de
genes que influenciam o comportamento alcoólatra… uando um ‘gene do
álcool’ for finalmente identificado, se algum dia isso acontecer, poderá ser o caso
de que um único gene determine se uma pessoa é alcoólatra ou não”.16
Jamais poderia ser o caso de que um único gene ou grupo de genes
determinasse se uma pessoa é alcoólatra, porque os genes não determinam as
pessoas, como deveriam ter deixado claro os próprios estudos de Goodwin sobre
as taxas de alcoolismo em gêmeos idênticos. Se os genes fossem determinantes
para a adicção, então todas as pessoas com a variante ADH1 do gene da álcool
desidrogenase se tornariam alcoólatras, o que obviamente não é o caso. Muitos
pesquisadores genéticos reconhecem isso abertamente e imploram ao público em
geral que reconheça as limitações de suas pesquisas. Como Wolfang Sadee, um
dos autores do estudo sobre o gene do receptor mu-opioide, aponta:
“Independentemente de qual variante do gene alguém tenha, todos têm o
potencial de se tornarem adictos. Portanto, não é que algumas pessoas estejam
completamente protegidas contra a adicção […] Essa descoberta apenas aponta
para um dos fatores que controlam a suscetibilidade”.17
Há uma falha fundamental no argumento que se move da predisposição
genética para a adicção à atribuição de doença — uma falha semelhante àquela
identificada no argumento que conclui que, uma vez que o comportamento esteja
correlacionado com uma química cerebral alterada, tal comportamento só pode
ser considerado involuntário. Pois esse argumento depende de uma suposição
semelhante, a saber, que, se uma atividade é influenciada por genes, ela é,
portanto, involuntária. No entanto, essa suposição é rotineiramente rejeitada
quando analisamos a influência dos genes em outras atividades cotidianas. Com a
conclusão do projeto do genoma humano, dificilmente uma semana se passa sem a
descoberta de um novo gene que se correlaciona de uma forma ou de outra com
os padrões do comportamento humano. Agora estamos cientes de que nossos
genes desempenham um papel em tudo, desde o quão alegres somos até se somos
ou não religiosos. Apesar de seus esforços em contrário, as crianças muitas vezes
acabam pensando e agindo de maneira muito semelhante à dos pais, e isso é em
parte uma função da maneira como nossos genes influenciam nosso pensamento e
nossa ação. E, no entanto, não estamos inclinados a pensar que comportamentos
alegres ou práticas religiosas sejam doenças. Por que, então, deveríamos concluir
que a adicção é uma doença simplesmente porque ela tem bases genéticas? A
menos que estejamos contentes em reduzir todo comportamento humano à
patologia, devemos rejeitar a suposição de que a influência genética implique
determinismo biológico.

T   


Nem adaptações neurais provocadas por abuso de substâncias nem predisposição
genética para a adicção fornecem evidência suficiente de que a adicção é uma
doença. Mas talvez um argumento em favor da redução da adicção à biologia
possa ser fundamentado no fato de que as adicções podem ser tratadas
medicamente. Se a ciência oferece a única ou mesmo a melhor esperança para
“tratar” a adicção, então talvez esta seja mais bem entendida como uma doença. E,
se na ausência de tratamento médico a recaída no comportamento adicto for uma
certeza ou mesmo algo altamente provável, então talvez haja uma justificação
empírica para falar de pessoas com adicções como biologicamente compelidas a
praticá-los.
O conceito da adicção como doença sustenta, primeiro, que se trata de uma
desordem fisiológica crônica, e, segundo, que a adicção, portanto, pode ser mais
adequadamente resolvida por meio de intervenção médica. Acontece, no entanto,
que nenhuma dessas afirmações é apoiada pelas evidências. Na verdade, ao
contrário da visão predominante sobre adicção, a maioria dos adictos de fato
param de praticar suas adicções e passam a levar uma vida livre delas, sem recaídas.
Além disso, a grande maioria dessas pessoas adictas se recupera em um contexto
não medicamentoso.
“Uma vez adicto, sempre adicto” é uma obviedade recorrente tanto entre
pessoas adictas quanto entre especialistas em adicção.18 E, curiosamente, parece
haver evidência para essa visão entre aquelas pessoas adictas que buscam tratamento
médico: “De fato, a maioria dos pacientes dependentes de álcool e drogas
experimenta recaídas após a finalização do tratamento […] Em geral, cerca de 5 a
60% dos pacientes começam a reutilizar a substância seis meses após a finalização
do tratamento, independentemente do tipo de alta, das características do paciente
ou da(s) substância(s) específica(s) de abuso”.19 Ainda assim, a maioria das pessoas
que correspondem aos critérios de adicção nunca esteve em tratamento e,
portanto, fica de fora do escopo desses estudos.
O que encontramos sobre recaída na população geral de pessoas com
adicções? Várias pesquisas nacionais de grande escala nos últimos trinta anos
estabeleceram que a adicção não é um transtorno crônico. Usando os critérios
para adicção fornecidos por organizações como a Associação Americana de
Psicologia e o Instituto Nacional sobre Alcoolismo e Abuso do Álcool, essas
pesquisas nacionais registraram (a) a porcentagem da população que, em algum
momento de suas vidas, correspondeu aos critérios de toxicodependência, e (b) a
porcentagem da população que relatou nenhum problema relacionado a drogas
pelo menos nos doze meses anteriores à pesquisa. A comparação dos dois
números nos permite estabelecer a porcentagem da população em geral que já
esteve envolvida em comportamento adicto, mas que, desde então, deixou de
praticá-lo. Isso nos dá uma noção da “taxa de remissão” da adicção. Dada a visão
predominante na pesquisa sobre adicção, os números são desconcertantes. O
Estudo da Área de Captação Epidemiológica de 1980-1984 colocou a “taxa de
remissão” da adicção em 59%; a Pesquisa Nacional de Comorbidade de 1990-
1992 em 74%; a Pesquisa Epidemiológica Nacional sobre Álcool e Condições
Relacionadas de 2001- 2003 em 81%; e a Pesquisa Nacional de Comorbidade de
2001-2003 em 82%.20
O resultado dessas pesquisas não apenas enfraquece a tese de que a adicção
é uma doença caracterizada por recidiva crônica, mas essas pesquisas também
enfraquecem a tese de que o tratamento médico é o único, ou mesmo o melhor,
meio de recuperação. Os números sugerem justamente o oposto do que
esperaríamos, dada uma definição biologicamente reducionista da adicção. As
taxas de remissão oscilam entre 10 e 40%, taxas essas significativamente piores do
que as taxas de remissão relatadas da população em geral, a maioria da qual não
procura tratamento.21
Dois comentários sobre essas descobertas são necessários. Primeiro, elas
explicam por que pesquisadores e médicos formularam um entendimento sobre
adicção que está em desacordo com a evidência mais abrangente: pesquisadores
que estudam a adicção tiraram suas conclusões baseados amplamente em estudos
que envolvem pessoas adictas que estão em programas de tratamento médico,
ignorando a população significativamente maior de adictos que nunca
procuraram tratamento. Segundo, os números não podem ser usados para
sustentar a tese de que o tratamento médico para a adicção é prejudicial ou
inferior. Isso se deve a um viés na pesquisa médica conhecido como “viés de
Berkson”, que se refere ao fato de que pacientes que buscam tratamento para
determinado transtorno têm mais probabilidade do que outros pacientes de exibir
comorbidade — isto é, de sofrer de outros transtornos de adicção além do
transtorno em questão.22 Assim, é igualmente provável que as taxas de remissão
mais baixas entre os adictos em tratamento se devam às dificuldades que a
comorbidade representa para a recuperação, e não a alguma deficiência intrínseca
ao tratamento médico da adicção.
Não obstante, as melhores evidências sugerem que uma definição biológica
da adicção como doença não pode ser fundamentada no sucesso do tratamento
médico. A maioria das pessoas adictas se recupera em contextos não
medicamentosos, e, além disso, não há evidência alguma que sugira que o
tratamento médico melhore as chances de recuperação da adicção.
Alguns proponentes do paradigma do conceito de doença sugerem que o
tratamento eficaz sem intervenção médica não exclui a possibilidade de doença.
Por exemplo, George Vaillant argumenta que “o tratamento efetivo da ‘doença’
arterial coronariana precoce provavelmente depende muito mais da mudança de
maus hábitos do que de receber tratamento médico”, mas não descartamos com
isso nomear tal condição como “doença”.23
Vaillant está correto em apontar a elasticidade do conceito de doença.
Devemos lidar com esses tipos de argumentos caso a caso. Nesse caso, a diferença
saliente entre alcoolismo e doença cardíaca é que o sintoma central do alcoolismo
é a incapacidade de abster-se do álcool, enquanto nenhum dos sintomas centrais
da doença cardíaca implica escolha humana. Se a adicção fosse uma doença, seria
uma doença que apresenta a deterioração do poder humano de escolha como seu
principal sintoma. Há doenças que atacam os poderes cognitivos e conativos
humanos — Alzheimer me vem à mente. Mas, com o Alzheimer, a única
esperança de recuperação é farmacológica, o que não é verdade para a adicção. Na
verdade, se o sintoma definidor de uma condição é um mau hábito que requer
correção, pode-se perguntar por que a condição deveria ser chamada de uma
doença em vez de um mau hábito.

C,   

A despeito do fracasso da visão científica predominante de fundamentar, com


base nas evidências, sua avaliação da adicção como doença, na população em
geral, na mídia e até em muitos no meio médico, persiste a crença de que a ciência
está se aproximando de uma panaceia definitiva para a adicção. Assim, por
exemplo, dr. Matthew Torrington afirma:

Com os avanços científicos alcançados no entendimento de como o cérebro humano funciona,


não há nenhuma razão para não erradicarmos a adicção nos próximos vinte ou trinta anos.
Podemos fazer isso consertando a parte do cérebro que se volta contra você durante a adicção em
drogas e que o encoraja a se matar contra sua vontade. Eu acredito que a adicção é o mais superável
de todos os grandes problemas que enfrentamos. E eu acho que a venceremos.24

Embora esse seja um ponto de vista extremo e provavelmente não


representativo dentro da comunidade médica, ele traz à tona exatamente o que
está em jogo em qualquer relato cientificamente reducionista da adicção. Tais
relatos reducionistas da adicção assumem uma relação causal direta e, portanto,
determinista, entre a estrutura do cérebro e o comportamento. Esse é o erro que
tem surgido recorrentemente no raciocínio que fundamenta o conceito de doença
da adicção. A partir do reconhecimento de que certos comportamentos são o
resultado de mudanças no cérebro, os defensores do conceito de doença da
adicção inferem ilicitamente que tais comportamentos são, portanto,
involuntários. Demonstrei que, para determinar se um comportamento é
voluntário ou involuntário, devemos fazer perguntas diferentes daquelas que são
feitas pelos proponentes do conceito de doença da adicção. Traçar uma linha
entre o voluntário e o involuntário requer uma análise filosófica.
Dada nossa tendência ao que C. S. Lewis chama de “esnobismo
cronológico”, pode parecer inicialmente estranho recorrer a fontes antigas e
medievais para nos ajudarem a desvendar a complexa questão de como distinguir
o comportamento humano voluntário do involuntário, mas é exatamente isso que
pretendo fazer. Volto-me em particular para o pensamento filosófico de
Aristóteles e de Tomás de Aquino em busca de ajuda para essa difícil questão, pois
ambos os pensadores estavam intensamente interessados no relacionamento entre
o corpo humano e o comportamento humano.
Nem Aristóteles nem Tomás de Aquino teriam ficado especialmente
surpresos ao saber de uma “predisposição genética” a certos tipos de atividades
humanas, uma vez que isso seria apenas uma afirmação mais específica do que eles
já acreditavam ser o caso, a saber, que seres humanos nascem com “naturezas”
corpóreas e que o corpo desempenha certa influência na maneira como eles
sentem, pensam e comportam-se. Aristóteles, por exemplo, dizia o seguinte sobre
a transmissão biológica de traços comportamentais: “Mulheres tolas, bêbadas e
estúpidas frequentemente dão à luz filhos como elas mesmas”.25 Mais
precisamente (e de modo menos preconceituoso), Tomás de Aquino declara:
“uanto ao corpo, conforme a natureza individual, há certos hábitos apetitivos
incoativamente naturais, pois há pessoas predispostas, pela própria constituição
física, à castidade, à mansidão e a outras virtudes”.26
Para Tomás de Aquino, no entanto, uma predisposição natural à castidade
ou à mansidão não remove a castidade ou o comportamento manso do domínio
da ação humana. A ação humana é circunscrita pelas fronteiras entre voluntário e
involuntário. A ação voluntária implica conhecimento de um fim e é resumida
pela capacidade do agente de dar razões para o que faz. Como os seres humanos
têm, além de seus desejos, a capacidade de formar crenças sobre o que é adequado
para eles, eles são capazes de agir, em vez de apenas receber a ação. Assim, por
exemplo, embora uma pessoa possa estar predisposta à luxúria, ela é, no entanto,
capaz de agir com castidade diante da tentação, porque pode reconhecer que a
luxúria não é adequada para o fim pelo qual ela se esforça. Por outro lado, embora
uma pessoa possa estar predisposta à castidade, ela é capaz de agir luxuriosamente,
porque pode raciocinar que a luxúria serve aos fins desejados. Sempre que o
movimento está conectado com a racionalidade, ele se torna ação.
O discernimento básico oferecido por Tomás de Aquino aqui é que não
podemos determinar se um comportamento humano é voluntário examinando
constituições corporais, sejam genéticas, sejam neuronais. Isso porque
predisposições genéticas e a configuração cerebral influenciam tanto
comportamentos voluntários quanto involuntários, como os argumentos deste
capítulo demonstraram. Tanto o dedilhado do guitarrista profissional quanto os
tiques involuntários de uma vítima de Tourette estão correlacionados com
desenvolvimentos específicos na estrutura e no funcionamento do cérebro. É por
isso que os esforços científicos para defender o conceito de doença da adicção com
referência unicamente às características genéticas ou neurológicas não apenas
falharam, mas, de fato, estão fadados ao fracasso.
Se quisermos determinar se certo tipo de comportamento humano é
voluntário ou não, devemos procurar em outro lugar. Mas onde devemos
procurar? A resposta de Tomás de Aquino é direta. Temos de perguntar se o
comportamento em questão é ou não direcionado para certos fins; isto é, temos
de perguntar se o comportamento em questão é ou não sensível à razão. Essa é
uma questão filosófica profunda e difícil, porque a razão pode estar ligada à ação
de maneiras complicadas e paradoxais. Por exemplo, é difícil entender como é
possível que ajamos voluntariamente de um modo que sabemos ser prejudicial e,
além disso, algumas vezes confessamos fazer coisas mesmo sabendo que aquilo é
ruim para nós. Pessoas adictas costumam falar dessa maneira sobre seus
comportamentos. Uma longa e venerável tradição filosófica lutou com as
complexas e intrigantes conexões entre razão e ação, e explorar essa tradição pode
ajudar-nos a entender melhor a natureza do comportamento adicto.

3 A literatura a respeito do conceito de doença aplicado ao alcoolismo é vasta. Seu texto seminal é
J, E.M. e discase concept of alcoholism (New Haven: Hillhouse Press, 1960). O mais
apaixonado e qualificado de seus defensores contemporâneos foi Mark Keller, ex-editor do uarterly
Journal of Studies on Alcohol. Veja seu “e Disease Concept of Alcoholism Revisited”, Journal of
Studies on Alcohol 37 (1976): 1694-1717. O influente Centro de Estudos sobre Álcool da
Universidade Rutgers e o Instituto Nacional sobre Alcoolismo e Abuso de Álcool estão ambos
profundamente investidos nesse paradigma, e a maioria dos artigos que se encontram nas diversas
revistas de estudos sobre alcoolismo e adicção ou defende ou assume implicitamente a ideia de que o
alcoolismo é uma doença.
4 S, Francis. Addiction and responsibility: an inquiry into the addictive mind (New
York: Crossroad, 1993); W, Bruce. Wild hunger: the primal roots of modern addiction (New
York: Rowman and Littlefield Publishers, 1998). O falecido filósofo Herbert Fingarette escreveu um
livro altamente contestado sobre alcoolismo, Heavy drinking: the myth of alcoholism as a disease
(Berkeley: University of California Press, 1988), mas Fingarette escreveu principalmente como um
participante no campo dos estudos sobre álcool. Uma conferência intitulada “O que é adicção?”,
sediada em 2007 pelo Centro de Ética e Valores da Universidade do Alabama, Birmingham, é um sinal
de esperança de que a filosofia está começando a entrar nas conversas sobre adicção.
5 Até o momento, apenas dois teólogos publicaram monografias sobre adicção: M,
Linda. Victims and sinners: spiritual roots of addiction and recovery (Louisville Westminster John
Knox Press, 1996); N, James. irst: God and the alcoholic experience (Louisville:
Westminster John Knox Press, 2004). Adicionalmente, vários médicos e terapeutas cristãos
escreveram sobre adicção. Os mais notáveis entre eles são Addiction and grace (Nova York:
HarperCollins, 1988), do neurologista Gerald Gray; e Alcohol, addiction and Christian ethics
(Cambridge: Cambridge University Press, 2006), pelo psiquiatra Christopher Cook.
6 Institute of Medicine. Dispelling the myths about addiction: strategies to increase understanding
and strengthen research (Washington, D.C.: National Academy Press, 1997), p. 13.
7 National Institute on Drug Abuse, “Addiction science: from molecules to managed care”,
disponível em: www.nida.nih.gov/pubs/teaching/Teaching6/ Teaching1.html.
8 “O termo ‘dependência química’ é usado de maneira intercambiável com ‘adicção’ por cada um
desses sistemas de classificação.
9 National Institute on Drug Abuse, “NIDA InfoFacts: understanding drug abuse and addittion”,
disponível em: www.nida.nih.gov/infofacts/ understand.html. Grifo no original.
10 Institute of Medicine. Dispelling the myths, p. 13.
11 Esse fenômeno tem sido demonstrado em vários estudos separados. Ver K, Mark. “On
defining alcoholism: with comment on some other relevant words”, em Alcohol, science, and society
revisited, ed. G, Lisansky, W, Helene Raskin, e C, John A. (Ann Arbor:
University of Michigan Press, 1982), p. 119-33.
12 Ver G, Donald. Alcoholism: the facts, 3. ed. (Oxford: Oxford University Press, 2000).
Ver o capítulo 13 para um resumo desse e de vários outros estudos, bem como uma sinopse das
descobertas que relacionam alcoolismo e hereditariedade.
13 Z, Ying, et al. “Allelic expression imbalance of human mu opioid receptor (OPRMI)
caused by variant A118G.” Journal of Biological Chemistry 280 (2005): 32618-24.
14 N, John I. Jr. e B, Laura Jean. “Seeking the connections: alcoholism and our
genes.” Scientific American, abril de 2007, p. 46-53.
15 Para obter um registro atualizado das descobertas mais importantes, bem como uma avaliação
mensurada da relevância dessas descobertas para a pesquisa sobre adicção e terapias, consulte a
página do Genetic Science Learning Center, da Universidade de Utah:
https://learn.genetics.utah.edu/content/addiction.
16 Goodwin, Alcoholism, p. 86.
17 Um sumário do estudo, bem como esses comentários de Sadee, pode ser encontrado em
G, Eva. “Addiction gene”, no site da ScienCentral: www.sciencetral.com/articles/view.php3?
article_id=218392744&cat=1_1.
18 Alcoholics Anonymous World Services, Alcoholics Anonymous, 4. ed. (New York: Alcoholics
Anonymous World Services, 2001), p. 33. Doravante o Alcoólicos Anônimos será abreviado como AA.
19A. omas McLellan, citado em H, Gene. Addiction: a disorder of choice (Cambridge:
Harvard University Press, 2009), p. 66. Grifo meu.
20 Os detalhes de cada uma dessas pesquisas, análises dos métodos empregados e interpretação dos
resultados são fornecidos em Heyman, Addiction, cap. 4.
21 Ibid., p. 66.
22 Ibid., p. 67-68.
23 V, George. e natural history of alcoholism revisited (Cambridge: Harvard University
Press, 1995), p. 18.
24 Citado em L-D, Benoit. “An anti-addiction pill?”, e New York Times Magazine,
25 de junho de 2006.
25 Citado em F, Diane P. e F, Olivia (ed.). Autobiographical writing across the
disciplines (Durham, NC Duke University Press, 2003), p. 320. Não fui capaz de localizar essa
passagem nos escritos de Aristóteles.
26 A, Tomás de. Suma teológica (São Paulo: Loyola, 2002), 1-2. 51.1. Doravante, todas as
citações da Suma teológica aparecerão referenciadas assim no texto. Nesse caso, “1-2. 51.1” denota a
Primeira Parte da Segunda Parte (Primae Secundae), questão 51, artigo 1.
2
ADICÇÃO E INCONTINÊNCIA
Recursos em Aristóteles

A          


? Essa é a questão mais duradoura e controversa na pesquisa sobre o
assunto. A questão, no entanto, repousa em uma falsa dicotomia, que surge de um
fracasso ou de uma incapacidade de conceber um espaço genuíno entre
compulsão e escolha; entre, em termos filosóficos, determinismo e voluntarismo.
Isso é uma falha de memória filosófica; pois, de fato, a maior parte da filosofia
moral até a era moderna preocupava-se precisamente em revelar e explorar o
terreno entre o involuntário determinado e o voluntário espontâneo e irrestrito. A
categoria filosófica que cobre esse terreno é a do hábito. Estou convencido de que,
se quisermos evitar a falsa dicotomia que impede novas maneiras de compreensão
sobre a adicção, devemos recuperar a abandonada categoria do hábito. Para tanto,
recorro a dois grandes teóricos do terreno do hábito, Aristóteles e Tomás de
Aquino, a fim de dar lugar conceitualmente a formas mais sofisticadas e
adequadas de pensar sobre o comportamento adicto.

O   

De acordo com O grande liro da comunidade AA, o alcoolismo é “astuto,


desconcertante e poderoso” ( AA 58). Diz-se que é “desconcertante” por causa da
“absoluta incapacidade” de alcoólatras de abandonar o álcool sozinhos,
“independentemente de quão grande seja a necessidade ou o desejo” ( AA 34): “O
fato é que a maioria dos alcoólatras, por razões ainda obscuras, perderam o poder
de escolha com relação à bebida. A nossa assim chamada força de vontade torna-
se praticamente inexistente […] Ficamos sem defesa contra o primeiro gole” ( AA
24). A tirania que o álcool parece exercer sobre o “poder de escolha” e a “assim
chamada força de vontade” de alcóolatras faz do alcoolismo um inimigo “astuto” e
“poderoso”.
Entretanto, de acordo com o AA, essa admissão de impotência em relação
ao álcool é supostamente o “primeiro passo” para recuperar, em certo sentido, o
poder sobre o álcool: “O princípio de que não encontraremos qualquer força
duradoura sem que antes admitamos a derrota completa é a raiz principal da qual
germinou e floresceu nossa irmandade toda”.1 O paradoxo do alcoolismo é que
alcoólatras reconhecem a futilidade de sua própria força de vontade para resistir
ao álcool, mas em um programa de recuperação não medicamentoso eles acessam
um poder suficiente para revigorar a vontade outrora impotente. Dado que o
programa de recuperação de doze passos do AA foi totalmente adaptado para
tratar de uma gama de adicções, podemos generalizar e caracterizar isso como o
paradoxo da adicção. Pessoas adictas afirmam ser impotentes em relação a seus
comportamentos adictos, mas essa admissão em si é o caminho para recuperar o
poder sobre esse mesmo comportamento.
Na tentativa de apresentar uma resposta a esse paradoxo, a maioria dos
especialistas em adicção cai em um dos dois campos. O primeiro concentra-se
quase exclusivamente na afirmação quase unânime de pessoas adictas de que sua
força de vontade ou poder de escolha é insuficiente para resistir ao fascínio de
uma substância viciante. Essa resposta aceita como paradigmáticos e literais
relatos de adicção como os que se seguem:

Um homem que, durante quatro semanas em tratamento para embriaguez, bebeu secretamente o
álcool de seis potes contendo espécimes mórbidos, ao lhe perguntarem por que ele havia cometido
esse ato repulsivo, respondeu: “Senhor, é tão impossível para mim controlar esse apetite doente
quanto é, para mim, controlar as pulsações do meu coração”.2

Se um barril de rum estivesse em um canto da sala e houvesse um canhão atirando constantemente


entre mim e ele, eu não poderia evitar passar diante daquele canhão a fim de chegar ao rum.3

Em um esforço de encontrar uma explicação para a impotência da vontade


adicta, a primeira resposta concorda com essas autodescrições de pessoas adictas e
rotula a adicção como doença, localizando a fonte da incapacidade da pessoa
adicta de parar o uso inteiramente fora da vontade. De acordo com essa visão, a
configuração material da doença, quer seja especificada como neurológica,
genética ou celular, sobrepuja a vontade da pessoa adicta de tal modo que ela, ao
fazer uso da substância, já não age voluntariamente, mas é, antes, compelida a usá-
la.
A segunda resposta ao paradoxo da adicção concentra-se quase
exclusivamente na capacidade real de algumas pessoas de se recuperar da adicção
sem intervenção médica. Na medida em que a recuperação envolve a cessação
voluntária do comportamento adicto, o comportamento da pessoa adicta antes da
recuperação é considerado igualmente voluntário. A falta de força de vontade por
parte da pessoa adicta é interpretada como um caso padrão de má conduta
intencional semelhante a outras ações que envolvem a capitulação da vontade em
face da tentação. O que está em jogo na adicção, essa visão sugere, não é que uma
doença destrua a força de vontade humana, mas sim que, em virtude de algum
tipo de fraqueza moral, a pessoa adicta repetidamente toma a decisão deliberada
de usar a substância. Se a pessoa adicta não se recupera, é só porque ela realmente
não quer. Segundo essa visão, “a adicção é uma escolha”.4
Nenhuma dessas duas respostas ao paradoxo central da adicção é adequada.
O conceito de doença da adicção é incapaz de fornecer um relato coerente da
óbvia ocorrência de recuperação da adicção sem o auxílio de intervenção médica.
Por insistir na linguagem do determinismo, o modelo de doença é incapaz de se
inserir na conversa sobre a maneira como a força de vontade da pessoa adicta é
desconstruída e reconstituída por meio de um processo não médico de
recuperação. A noção de doença, com sua sugestão correspondente de uma
compulsão fisiologicamente determinada pela bebida, não pode explicar a
incapacidade do alcoólatra de resistir ao álcool; pois, nesse caso, isso significaria,
também, que alcoólatras são incapazes de se recuperar sem intervenção médica, o
que evidentemente não é o caso.
A confusão gerada pelo modelo de doença é mais do que meramente
conceitual. Vivemos em uma sociedade na qual bilhões de dólares são investidos
no tratamento médico de uma doença chamada adicção, ao mesmo tempo que
bilhões de dólares são gastos para prender e encarcerar pessoas por apresentarem
os sintomas de tal doença. Como Gene Heyman observa: “normalmente não
defendemos encarceramento e cuidado médico para as mesmas atividades”.5 Da
mesma forma, a confusão acerca da adicção reforça os estereótipos de classe. O
conceito de doença da adicção é rotineiramente aplicado a adictos ricos, enquanto
o público em geral continua a pensar nos adictos pobres como moralmente
depravados. A demografia prisional sugere que a hipocrisia é reproduzida nas
políticas públicas.
O modelo de escolha para a adicção é igualmente inadequado para lidar
com o paradoxo da adicção e da recuperação por diferentes razões. Colocando-se
de maneira simples, na tentativa de tornar inteligível a possibilidade de
recuperação, a própria categoria de adicção é negada. Ao insistir na linguagem do
voluntarismo, o modelo de escolha reduz a adicção à mera fraqueza de vontade
com relação a uma substância ou atividade. Em seu modo mais cínico, o modelo
de escolha caracteriza as atribuições de “adicção” como uma forma psicológica
perversa de racionalização e escusa. Os defensores do modelo da adicção como
escolha nunca se cansam de alegar que o paradigma da doença isenta os adictos de
se esforçar para superar a adicção. A suposição por trás de tal alegação é que as
desculpas são o que separa o adicto da recuperação. A adicção, portanto, não é
qualitativamente diferente de nenhum outro tipo de falha de força de vontade;
algumas pessoas cedem à tentação de comer um pedaço a mais de bolo de
chocolate, outras à tentação de beber até morrer.
O relato impressionante de alcoólatras e outras pessoas com sérias adicções
vai de encontro a essa tentativa de reduzir o comportamento adicto a um tipo de
fraqueza da vontade que talvez seja maior em grau, mas não categoricamente
distinto de outras falhas de vontade. À medida que pessoas adictas interpretam e
descrevem seus comportamentos e pensamentos adictos, elas testificam que a
atração da adicção é qualitativamente distinta de qualquer outro tipo de tentação
forte. Essa é, funcionalmente, a razão pela qual o modelo da adicção como doença
tem sido útil para muitas pessoas com adicções. Tal modelo corresponde à
experiência da pessoa adicta como algo fenomenologicamente diferente das
fraquezas de vontade diárias comuns, removendo, assim, o estigma moral que
acompanha o conceito de escolha da adicção, segundo o qual esta é simplesmente
uma má conduta intencional. Como Francis Seeburger coloca: “No mínimo, a
disseminação da perspectiva da adicção como doença ajudou muito a superar a
ilusão de que os adictos, como grupo, são significativamente diferentes das outras
pessoas quando se trata de questões de ética e moralidade”.6
Pessoas com adicções descrevem suas experiências de maneiras que não se
encaixam facilmente nem com o modelo de doença nem com o de escolha.
Diante disso, muitas dessas descrições soam totalmente contraditórias. Talvez as
descrições que pessoas adictas oferecem de suas experiências sejam incoerentes e
não haja nenhuma formulação filosófica do âmbito da ação humana que torne
inteligíveis esses tipos de descrições. O objetivo deste capítulo e do próximo será
mostrar, pelo contrário, que as interpretações e descrições oferecidas por pessoas
adictas de suas experiências podem tornar-se filosoficamente inteligíveis, sem que
a adicção seja reduzida à noção de doença, em um extremo, e à de escolha
deliberada, em outro.
Mas se a adicção não é uma doença nem uma escolha, o que é então? Essa é
a pergunta que fiz para mim mesmo, mas ainda não está inteiramente claro que
essa é uma pergunta inteligível. Afinal, a adicção não é uma realidade simples.
Existem vários tipos diferentes de adicção. Uma distinção comum é aquela entre
adicções em “substâncias” e adicções “comportamentais”. Adicções em substâncias
incluem adicções em substâncias químicas como álcool, nicotina, anfetaminas e
opiáceos. Adicções comportamentais incluem adicções em comportamentos
particulares, tais como ver pornografia, fazer compras, apostar em jogos de azar e
navegar na internet. Além disso, parece haver graus diferentes de adicção: falamos
de pessoas “tornando-se adictas”, “lutando contra uma adicção”, “estando adictas”
e “profundamente dependentes”. As adicções se apresentam em todos os tipos e
tamanhos. Como, então, posso colocar de maneira simples e direta a pergunta “O
que é adicção?”?
E, no entanto, quando falamos de todos esses tipos de comportamentos
como “adicções”, certamente pretendemos apreender algo comum a todos eles. A
menos que haja algum “núcleo” fenomenológico da experiência adicta, qualquer
coisa que possa ser dita sobre a adicção per se será alvo de mil qualificações, e a
pergunta “O que é adicção?” não terá sentido. Além disso, salvo se pelo menos
alguma parte desse núcleo fenomenológico da experiência adicta for intrigante e
obscura demais para uma explicação direta, a questão “O que é adicção?” será
desinteressante. Defendo que a pergunta é significativa. Existem, de fato,
experiências compartilhadas pela maioria das pessoas com adicções. Defendo
também que a questão é interessante. Dentre o conjunto de experiências
compartilhadas pela maioria dos adictos, algumas são extremamente intrigantes.
uando pergunto: “O que é adicção?”, estou perguntando se podemos entender
os aspectos mais complicados do comportamento adicto que são compartilhados
por uma ampla gama de pessoas adictas.
Para começar a estreitar nosso foco, portanto, devemos tentar localizar a
experiência adicta dentro de um amplo espectro de descrições da ação humana.
Recorro a Aristóteles em busca de ajuda nessa tarefa, pois a filosofia da ação
humana desse pensador é sensível às características sutis da ação humana que
exigem distinções e diferenciações precisas.

A  

No nível mais amplo, Aristóteles distingue quatro tipos de ação humana: a ação
virtuosa, a ação continente, a ação incontinente e a ação viciosa. Uma ação
virtuosa é realizada sempre que uma pessoa racionalmente aprova o que é bom,
deseja o que é bom e, correspondentemente, faz o que é bom. Uma ação
continente é realizada sempre que uma pessoa racionalmente aprova o que é bom,
deseja o que é mau, mas, seguindo a razão, faz o que é bom. Uma ação
incontinente é realizada sempre que uma pessoa racionalmente aprova o que é
bom, deseja o que é mau e, seguindo o apetite, faz o que é mau. Por fim, uma ação
viciosa é realizada sempre que uma pessoa racionalmente aprova o que é mau
(acreditando que seja bom), deseja o que é mau e, correspondentemente, faz o que
é mau.
Chamar uma ação, ou um tipo de ação, de “boa” é simplesmente afirmar
que tal ação é um componente adequado a um modo de vida digno. Chamar uma
ação, ou tipo de ação, de “má” é negar que tal ação seja adequada a um modo de
vida digno. Assumindo que a adicção é destrutiva, em vez de benéfica, ao
florescimento humano, comportamentos adictos são maus e, portanto, ou
incontinentes, ou viciosos, ou estão completamente além do escopo da ação
humana. Mas como poderíamos distinguir os três?
A pessoa adicta incontinente seria aquela que (a) tem a crença de que o
comportamento adicto é ruim para ela e tem um desejo correspondente de não se
envolver em tal comportamento; (b) tem alguma capacidade de resistir ao
comportamento; mas, (c) não obstante, se envolve em comportamento adicto
contra seu melhor juízo. Obviamente, existem experiências adictas que não se
encaixam nessa descrição. Aristóteles teria sugerido dois tipos diferentes de
experiência adicta que definitivamente estariam fora do escopo da incontinência.
Primeiro, uma pessoa adicta poderia não ter (a) uma crença de que o
comportamento em questão é ruim para ela nem o desejo correspondente de
evitar o comportamento adicto. A pessoa adicta que se envolve em
comportamento adicto na ausência de (a) seria denominada por Aristóteles como
adicta “autoindulgente”, e seu comportamento se enquadraria na categoria de ação
viciosa. A pessoa adicta autoindulgente não apenas se envolve em atividade adicta,
mas o faz dedicadamente, acreditando que a atividade é um bem digno de ser
buscado e, portanto, desejando-o inteiramente. A pessoa adicta autoindulgente
não se entrega a uma tentação que é contrária à sua crença sobre o que ela deve
fazer. Antes, a pessoa adicta autoindulgente acredita que o comportamento adicto
é o que ela deve fazer. Não há nenhuma “tensão” interna à medida que a pessoa
adicta se envolve em comportamento adicto, e, portanto, esse comportamento
não é suscetível a correção.7 Modificando um velho ditado popular, se você não
acredita que algo está quebrado, você não tentará consertá-lo.
Por outro lado, Aristóteles sustentaria que uma pessoa adicta poderia não
ter (b) — alguma capacidade de resistir ao comportamento adicto — e, portanto,
não ser corretamente descrita como incontinente. A pessoa adicta que se envolve
em comportamento adicto na ausência de (b) seria denominada por Aristóteles
como adicta mórbida, e seu comportamento estaria completamente fora do
escopo da ação humana. A pessoa mórbida é aquela que, “em razão de doença
(por exemplo, epilepsia) ou loucura” (1149a11), não é capaz guiar suas ações
racionalmente. A epilepsia e a loucura são tais que temporária ou
permanentemente tornam a pessoa humana por inteiro um paciente, removendo
toda a agência. Em ambos os casos, a agência da pessoa se torna ineficaz,
removendo, assim, o comportamento do agente da categoria de ação humana. A
relação da pessoa adicta mórbida com o comportamento adicto é exatamente a
mesma que a relação de um epiléptico com as convulsões. Se a agência de uma
pessoa é ineficaz, então não está em seu poder corrigir seu comportamento;
portanto, a pessoa não está agindo de forma alguma, mas sim sofrendo a ação.
É tentador ouvir na linguagem de Aristóteles de “ doença” e “loucura”
ressonâncias com o modelo contemporâneo de adicção como doença. Existe, no
entanto, uma diferença decisiva entre o que ele pretende dizer com a noção de um
caráter mórbido e o que se entende no campo dos estudos sobre adicção com a
caracterização desta como doença. Para Aristóteles, alguém cujo comportamento
é o resultado de uma doença ou loucura é, desse modo, inteiramente removido do
domínio da responsabilidade por aquele comportamento. E isso, de fato, está de
acordo com nossa compreensão normal de uma doença como algo que é
biologicamente determinado. O conceito contemporâneo da adicção como
doença, entretanto, se engana nesse ponto, afirmando que a vítima doente,
embora talvez inimputável por suas ações, é, no entanto, responsável por corrigi-
las.
Retornando à taxonomia aristotélica, algumas pessoas adictas seriam
corretamente classificadas como autoindulgentes ou mórbidas nos termos de
Aristóteles. De fato, muitas pessoas adictas passam por uma fase autoindulgente,
impulsionadas pela convicção fugaz de que a adicção pode ser mantida sem
nenhum prejuízo drástico para sua saúde ou bem-estar. Por outro lado, algumas
pessoas adictas claramente carecem da capacidade de mudança, porque suas
agências se tornaram impotentes ou insuficientes por alguma herança natural. A
maior parte de indivíduos que poderiam ser descritos com precisão na linguagem
de Aristóteles como “adictos mórbidos” são pessoas com doenças mentais graves
ou deficiência mental.
Curiosamente, o AA é bastante hesitante em situar as pessoas nessa
categoria: “Existem também aqueles que sofrem de graves transtornos emocionais
e mentais, mas muitos deles se recuperam se têm a capacidade de ser honestos” (
AA 58). Com relação aos “mendigos, vagabundos, reclusos, prisioneiros, queers,
malucos e mulheres decadentes” que muitos dos primeiros grupos do AA
resolveram não admitir como membros, a sabedoria posterior do AA descobriu
que “milhares dessas pessoas, algumas vezes assustadoras, fizeram recuperações
espantosas e se tornaram nossos maiores obreiros e amigos íntimos” (DD 140-
41).
Aristóteles é mais liberal em suas atribuições de morbidez. Por exemplo, ele
observa: “É surpreendente se um homem é derrotado e não consegue resistir aos
prazeres ou dores a que a maioria dos homens pode resistir quando isso não é
devido a hereditariedade ou doença, como a suavidade que é hereditária com os
reis dos citas, ou o que distingue o sexo feminino do masculino” (1150b12-16).
Parece provável que Aristóteles estaria disposto a colocar um grande número de
pessoas adictas na categoria “mórbida” e, portanto, que ele teria simpatizado com
caracterizar muitas adicções como determinadas pela hereditariedade. O que
Aristóteles não teria aceitado é a afirmação simultânea de que os adictos por
hereditariedade podem ser responsabilizados por suas adicções e devem
recuperar-se em um contexto não medicamentoso. Ele é consistente demais para
isso. O determinismo hereditário remove tanto a culpabilidade quanto a
responsabilidade no ponto de vista de Aristóteles, como fica claro nessa e em
outras passagens. No entanto, visto que sabemos que a maioria das pessoas adictas
mostra uma capacidade de recuperação, demonstrando, assim, que seu
comportamento adicto é remediável, a maioria dos indivíduos com adicções seria
inadequadamente descrita como “mórbida” ou “doente”.
Não há nada particularmente surpreendente no comportamento do
indivíduo autoindulgente ou do adicto mórbido. A pessoa adicta autoindulgente
acredita que deve envolver-se em ações adictas, deseja envolver-se em ações adictas
e, portanto, envolve-se em ações adictas. Não há mistério aqui. Com relação à
pessoa adicta mórbida, ela está fisicamente determinada a se comportar como o
faz. Nenhum mistério aqui também. É o comportamento e a experiência do
adicto incontinente que é verdadeiramente intrigante. Por isso, quando fazemos a
pergunta “O que é adicção?”, estamos procurando uma maneira de descrever
apropriadamente e dar um relato da ação adicta incontinente. Na verdade, a ação
incontinente em geral é profundamente intrigante, e o tratamento de Aristóteles
do problema da simples incontinência pode ser estendido e aprofundado para
investigar a natureza única da incontinência adicta. Pois é em sua tentativa de
lidar com o mistério da incontinência que ele destaca a categoria de hábito como
indispensável para qualquer explicação adequada do espectro da ação humana.

F  

A incontinência apresenta um paradoxo filosófico por si só. Ela pode ser


caracterizada de maneira direta como o que ocorre quando um agente age contra
seu próprio melhor juízo. É tão óbvio pela própria experiência que esse tipo de
coisa acontece, que pode não ser imediatamente aparente porque isso é paradoxal.
Mas isso pode ser demonstrado da seguinte maneira. Se, como é comumente
sustentado, agentes agem de modo que promovam o que eles acreditam ser, no
todo, para seu maior benefício, então como pode ser que um agente
genuinamente acredite que um curso de ação é para seu maior benefício e, ainda
assim, opte por seguir um curso de ação contrário? Como um agente pode
escolher fazer o que acredita ser inferior a outro curso de ação que estava
disponível para ser seguido?
Como a categoria de incontinência é frequentemente pensada como
primariamente parte do domínio da escolha, pode parecer que retratar a adicção
como uma forma de incontinência é capitular ao modelo da adicção como
escolha. Entretanto, isso é um entendimento equivocado da categoria de
incontinência. O teste determinante do comportamento incontinente não é se o
comportamento foi ou não o resultado de uma escolha deliberada, mas sim se o
comportamento é ou não suscetível a correção por meio de algum exercício de
agência humana. Em outras palavras, quer o comportamento tenha sido escolhido
por meio do exercício de uma vontade espontânea e arbitrária, quer não o tenha,
isso não importa para a atribuição de incontinência; tudo o que é necessário para
a atribuição de incontinência é que o agente possa ser responsabilizado por
corrigir seu comportamento por meio do exercício (ao longo do tempo) de seu
poder de ação.
Esse esclarecimento é importante porque nos ajuda a entender que
atribuições de incontinência não implicam necessariamente que um agente seja
culpável por seu comportamento. Frequentemente, as pessoas passam a agir de
forma incontinente sem ter culpa. Por exemplo, Aristóteles aponta que as raízes
de alguns comportamentos incontinentes podem ser rastreadas até à habituação
infantil ou à força do costume. Podemos pensar especialmente no poder
formativo do trauma sexual e da opressão. Assim, Aristóteles distingue “
incontinência simples” — incontinência que resulta de decisões conscientemente
tomadas por um agente moral competente — de outras subcategorias de
incontinência. Apenas em casos de incontinência simples pode o agente ser
considerado totalmente culpável por seu comportamento. No entanto, mesmo
nos casos em que um agente não é em nenhum sentido culpável por vir a se
comportar como se comporta, ele pode, não obstante, ser responsabilizado por
modificar seus modos, uma vez que é “capaz de responder” à sua situação por
meio do exercício da agência. Independentemente de como uma pessoa se tornou
incontinente (e, portanto, independentemente de quão culpável uma pessoa possa
ser por sua incontinência), a própria ação incontinente permanece misteriosa;
pois, independentemente de como um agente passou a ter desejos que
contradizem sua razão, ainda é desconcertante que a razão nem sempre vença.
Uma vez que um agente acredita ou sabe que uma linha de ação é ruim, por que
ele a adota?
Em sua tentativa de responder ao paradoxo da ação incontinente no livro
VII da Ética a Nicômaco, Aristóteles começa, como ele frequentemente o faz,
registrando o que outros disseram sobre o assunto. Ele relata que Sócrates
respondeu ao paradoxo negando, em primeiro lugar, que houvesse um paradoxo:
“Pois Sócrates se opôs inteiramente à visão em questão, sustentando que não existe
incontinência; ninguém, disse ele, quando dotado de discernimento, age contra o
que julga ser o melhor — as pessoas agem de tal maneira apenas por ignorância”
(1145b25-28). A posição de Sócrates, então, é que a incontinência genuína não
ocorre, uma vez que em qualquer caso de incontinência aparente o agente não
possui o conhecimento com o qual seu comportamento está em contradição.
Sempre agimos de acordo com nosso “melhor juízo”, de acordo com Sócrates,
mesmo que, para os outros que observam ou para nosso próprio olhar
retrospectivo, pareça que deveríamos ou poderíamos ter “julgado melhor”.
Sempre que um fumante adicto, por exemplo, acende outro cigarro, pelo menos
naquele momento ele acredita que fumar é de seu melhor interesse e, por
implicação, é ignorante do fato de que acender não é de seu melhor interesse. E, é
claro, não podemos ser responsabilizados por ações realizadas em ignorância. A
ação incontinente, na visão de Sócrates, é simplesmente uma ação ignorante e,
portanto, não constitui uma falha moral.
De acordo com sua metodologia de “salvar as aparências”, Aristóteles rejeita
a resposta socrática ao problema da incontinência, dizendo: “essa visão contradiz
claramente os fatos observados” (1145b29-30). Ele, portanto, procura fornecer
uma explicação filosoficamente coerente da ação incontinente que não
simplesmente negue a categoria da ação incontinente por completo ao longo do
processo.
No decorrer do tratamento de Aristóteles ao enigma da incontinência, duas
linhas de resposta emergem. O primeiro tipo de resposta que Aristóteles propõe é
que, às vezes, o raciocínio necessário para superar a ação incontinente
simplesmente não é concluído por causa da interrupção da paixão. O segundo
tipo de resposta que ele propõe é que, às vezes, embora o raciocínio possa ser
completado, não é seguido devido ao peso do hábito.
No processo de oferecer sua primeira resposta ao enigma, Aristóteles traça
uma distinção entre o que chama de “conhecimento potencial” e “conhecimento
real”: “Há diferença no tipo de ação se, quando um homem faz o que não deveria,
ele tem o conhecimento, mas não o está exercendo, ou se o está exercendo; pois o
último parece estranho, mas o primeiro não” (1136b32-35). Uma distinção pode
ser feita entre um julgamento racional possuído, mas não exercido, e um
julgamento racional exercido; o primeiro é um conhecimento potencial, o último
um conhecimento real.
À medida que desenvolve o significado dessa distinção para a questão da
incontinência, Aristóteles depende de uma consideração da ação segundo a qual a
ação pode sempre ser representada como o resultado de um silogismo prático. Um
silogismo prático consiste em duas premissas, uma universal e outra particular. A
premissa universal faz um juízo universal, como “Tudo que é doce deve ser
provado” (1147a29). A premissa específica faz um julgamento específico, como
“Isto é doce” (1147a29). uando uma conexão válida é feita entre uma premissa
universal e uma particular, uma ação é a culminação do silogismo: a coisa doce é
saboreada. Para Aristóteles, então, todo ato humano pode ser representado como
consequência de um silogismo prático. Digo que todo ato humano pode ser
representado como consequência de um silogismo prático para destacar o ponto
de que o raciocínio silogístico não precisa preceder toda ação humana.
Frequentemente, a construção de um silogismo prático é realizada
retrospectivamente para mostrar ou avaliar a racionalidade de uma determinada
ação.
Com base em sua visão da ação humana como consequência de um
silogismo prático, Aristóteles explica como um agente pode, em certo sentido, ter
um juízo, mas agir de maneira contrária a esse juízo. Visto que, de acordo com a
explicação que Aristóteles começou a desenvolver, toda ação humana pode ser
representada como consequência de um silogismo prático, parece que a ação
incontinente exigirá que o agente possua, em algum sentido, dois silogismos
práticos — um que, caso estivesse conectado corretamente na mente do agente,
teria levado a uma ação correta, e outro que está conectado na mente do agente e,
portanto, de fato leva a uma ação errada. Em cada um desses casos, o julgamento
racional que teria levado à ação continente é possuído pelo agente não de fato,
mas apenas potencialmente, no momento em que a ação incontinente é realizada.
Aristóteles sugere uma variedade de maneiras pelas quais isso pode ocorrer.
Primeiro, a premissa necessária pode ser apenas potencialmente conhecida
por falta de tempo. O agente pode ser pressionado ou se apressar a agir antes de
trazer à mente a premissa apropriada. Segundo, a premissa necessária pode ser
apenas potencialmente conhecida porque um forte apetite interrompe ou
distorce o processo deliberativo (1147a32-35). Terceiro, a premissa necessária
pode ser apenas potencialmente conhecida porque uma mudança constitucional
(como a embriaguez) incapacita o processo deliberativo (1147a14-18).
Isso conclui a primeira linha de resposta de Aristóteles, segundo a qual a
ação incontinente é possível porque o raciocínio necessário para evitá-la,
conquanto acessível ao agente e, portanto, “potencialmente conhecido”, não é
realmente executado no momento crucial. Aristóteles chama a incontinência que
resulta desse tipo de falha de “ incontinência impetuosa”. A incontinência
impetuosa ocorre sempre que a pressa, o apetite forte ou um estado corporal
anormal destroem o processo deliberativo necessário para chegar a um juízo
correto, que levaria a uma ação correta.
A análise de Aristóteles da incontinência impetuosa nos ajuda a
compreender melhor uma ampla gama de comportamentos adictos. Primeiro, a
forma pela qual a alteração corporal pode perturbar o processo deliberativo é
ilustrada pela “ perda de controle” das pessoas adictas sobre seu comportamento
adicto “dentro do episódio” (por exemplo, depois do primeiro gole). Segundo, a
forma pela qual a alteração corporal pode perturbar o processo deliberativo é
exibida quando pessoas com adicções relatam que seu comportamento se
ocasionou por conta de um intenso “ anseio físico” pela substância viciante. E,
terceiro, a forma pela qual fortes apetites podem interromper ou distorcer o
processo deliberativo é mostrada quando pessoas adictas relatam que seu
comportamento se deveu ao “ anseio psicológico” pela substância viciante. Vamos
examinar cada um desses casos separadamente.
Embora seja a peça central do modelo de doença para a adicção, o conceito
de “ perda de controle” muitas vezes não é claramente especificado. Do que
exatamente, digamos, os alcoólatras perdem o controle: da capacidade de resistir
ao primeiro gole ou da capacidade de parar de beber depois de tomarem o
primeiro gole? Donald Goodwin, um importante especialista nos estudos sobre
álcool, afirma que “a perda de controle se refere à incapacidade do alcoólatra de
parar de beber depois de começar”.8 Essa delimitação, no entanto, representa um
dilema para a visão padrão do alcoolismo como doença. Pois, se a perda de
controle é desencadeada apenas após o primeiro gole, por que o alcoólatra não
deveria simplesmente ser capaz de resistir ao primeiro gole? Em qualquer caso,
dada a análise de Aristóteles do papel da mudança constitucional na
incontinência impetuosa, o comportamento adicto “dentro do episódio” não é
especialmente surpreendente. Dada a maneira pela qual o comportamento adicto
reconfigura a estrutura neurológica do cérebro adicto, a primeira bebida ou a
primeira injeção de uma droga realmente traz uma mudança constitucional
decisiva no corpo da pessoa adicta — uma mudança muito mais decisiva do que
aquela provocada quando uma pessoa não adicta toma o primeiro gole ou a
primeira injeção de uma droga. Não ficamos surpresos quando as pessoas bêbadas
geralmente deixam de raciocinar bem sobre seu comportamento; e, portanto, a “
perda de controle” no momento do consumo da substância viciante por pessoas
com adicções também não deveria ser surpreendente. O comportamento adicto
que ocorre no momento de consumo da substância viciante é, de fato, o tipo
menos misterioso de comportamento adicto, e os processos em ação nele são
explicados pela análise de Aristóteles da incontinência impetuosa.
E quanto ao comportamento adicto que supostamente é uma resposta ao
anseio? O conceito de anseio é complexo e de difícil definição, mas uma distinção
comum, embora imprecisa, entre “ anseio físico” e “ anseio psicológico” ajudará a
elucidá-lo. Biologicamente, essa distinção é insustentável, em última instância,
uma vez que todo desejo tem um correlato fisiológico. No entanto, a distinção é
útil porque mapeia algumas de nossas intuições fenomenológicas. Assim, digamos
que o “ anseio físico” significa que o agente pode apontar para o que o aflige (a
cabeça, se for uma dor de cabeça; o estômago, se for náusea; as mãos, se forem
tremores etc.), enquanto “ anseio psicológico” significa que o que está
perturbando o agente não pode ser localizado de forma semelhante por ele.
O anseio físico é um desejo intenso e persistente de se envolver em
comportamento adicto como meio de escapar do desconforto corporal, e seus
sintomas característicos incluem suores frios, náuseas e tremedeiras
incontroláveis. Essas experiências corporais são frequentemente entendidas como
consequências de abstinência física de alguma substância viciante, e a abstinência
resultante da falta da substância é entendida como evidência de tolerância física e
dependência. Algumas pessoas adictas não experimentam nenhum anseio físico, e
algumas que experimentam anseio físico não são adictas (lembre-se do paciente
de hospital tomando morfina). Não obstante, o anseio físico muitas vezes
acompanha a experiência da adicção.
O anseio físico parece ser um claro exemplo da maneira como um forte
desejo pode obstruir a ação continente, porque está associado ao que Aristóteles
chamou de mudança constitucional. Mas como devemos entender a ação humana
diante de um forte desejo visceral? Podemos imaginar casos em que desconfortos
corporais causam desejos, até mesmo desejos fortes, os quais são, não obstante,
facilmente resistidos. Mesmo uma pessoa com muita sede pode resistir ao desejo
de beber de uma poça de água estagnada que sabe estar infestada de bactérias
nocivas, especialmente se houver motivos para acreditar que a sede pode ser
aliviada com segurança mais tarde. Mas podemos levar esse exemplo ao ponto em
que o poder de escolha parece estar seriamente em risco. Simplesmente remover a
expectativa de que a sede possa ser aliviada com segurança em um futuro próximo
nos empurra nessa direção, e não é difícil imaginarmos uma sede tão intensa que
uma pessoa normal, na ausência de uma esperança razoável de alívio futuro,
beberia uma água que sabe ser prejudicial ou até mortal. Nesse caso, a necessidade
corporal supera o processo deliberativo.
Um processo semelhante ocorre sempre que pessoas adictas, em resposta a
necessidades corporais intensas, adotam um comportamento que “sabem” ser
prejudicial a elas. Tomemos, por exemplo, a explicação de William Burroughs de
por que pessoas adictas em heroína parecem incapazes de resistir voluntariamente
a ingerir heroína em face de certos sintomas de abstinência: “A razão pela qual é
praticamente impossível parar de usar e curar-se é que a doença dura de cinco a
oito dias. Doze horas seria fácil, vinte e quatro possível, mas cinco a oito dias é
muito tempo”.9 Podemos imaginar uma explicação semelhante de por que uma
pessoa encalhada no mar acabaria sendo praticamente incapaz de resistir a beber
água do mar, mesmo se ela “soubesse” que isso a mataria. Portanto, não há grande
mistério para os casos de comportamento adicto que possam ser explicados com
referência a desejos viscerais intensos. Esse comportamento adicto se encaixa bem
na categoria de incontinência impetuosa de Aristóteles.
Nem todo anseio, entretanto, atinge o nível de necessidade visceral que
explicaria alguns tipos de comportamento adicto. Muitas pessoas adictas
precisam ser literalmente presas por algum período de tempo após a cessação de
sua atividade adicta, uma vez que são praticamente incapazes de resistir a seus
desejos viscerais avassaladores; mas, uma vez que o anseio físico diminui, a pessoa
adicta deve ser liberada para se defender por si mesma. Não porque a pessoa
adicta esteja livre do anseio. Antes, é porque o anseio deixou de ser primariamente
físico e passou a ser predominantemente psicológico. Pode o comportamento
adicto induzido pelo anseio psicológico também se enquadrar na categoria de
incontinência impetuosa de Aristóteles?
Geralmente, o anseio psicológico é caracterizado por uma mistura de
impulsos eufóricos e disfóricos, desejos de experimentar satisfação e desejos de ser
aliviado da insatisfação. Mesmo quando não está enraizado na necessidade
corporal, o desejo pode atrapalhar a busca de um agente pela ação continente ao
fazer o agente considerar em excesso determinada premissa particular da razão
prática ao custo de subestimar e, eventualmente, não considerar a premissa
apropriada. O forte desejo psicológico por um objeto pode distrair ou impedir o
agente de considerar a premissa particular que ele ou ela conhece potencialmente
e precisa colocar em prática a fim de agir de maneira continente.
Mas, quando colocamos a questão dessa maneira, é difícil ver como o “
anseio psicológico” da adicção é diferente das experiências cotidianas de tentação
à indulgência enfrentadas tanto por adictos quanto por não adictos. Se o fracasso
com relação a essas experiências cotidianas de tentação deve ser entendido
diretamente como uma falha de escolha moral, então, não deveríamos também
entender a capitulação da pessoa adicta ao anseio psicológico como uma simples
escolha? Afinal, como a vontade exerce algum poder sobre as paixões, não
estamos simplesmente à mercê de nossos desejos. Embora o desejo muitas vezes
venha até nós sem ser convidado, como um evento em nossa vida psicológica,
temos recursos para lidar com ele. Somos capazes de desviar o intelecto da
consideração do desejo existente. Como agentes humanos, está em nosso poder
escolher voluntariamente não insistir em desejos que nos invadem. Tomados
isoladamente, então, nunca há um caso de “mero” anseio psicológico ao qual
somos incapazes de resistir por meio do redirecionamento do olhar do intelecto.
No entanto, o anseio psicológico que acompanha a adicção representa uma
ameaça especial às nossas habilidades de resistir ao desejo, porque os desejos que
constituem o anseio psicológico nunca vêm isoladamente. O desejo do anseio
psicológico é diferente de qualquer outro tipo de desejo, não em sua intensidade
— que pode variar amplamente —, mas sim em sua resiliência.10 Os desejos
adictos são infatigavelmente persistentes e invadem a consciência do agente não
uma ou duas vezes, mas repetidamente. Todo esforço para desviar o olhar do
intelecto para longe do objeto de desejo, ou para chamar o intelecto para refletir
sobre a inferioridade do objeto de desejo, é encontrado não pelo alívio da ameaça
imediata, mas por um novo ataque em um disfarce semelhante. Se o conflito entre
a vontade e o desejo não adicto (por exemplo, o desejo por muitos pedaços de
bolo) é uma batalha, então o conflito entre a vontade e o desejo adicto é uma
longa guerra de constante desgaste. William Irvine pergunta: “Por que a vontade
se torna subserviente” ao desejo resiliente em tais guerras?

Pela simples razão de que eles [os desejos resilientes] se recusam a lutar de forma justa. As emoções,
em suas relações com o intelecto, não usam a razão para obter sua cooperação. Em vez disso, os
desejos desgastam a razão com mais súplicas emocionais. Imploram, reclamam e intimidam. Não
aceitam “não” como resposta. Eles não darão ao intelecto um momento de paz. Na maioria dos
casos, o melhor que o intelecto pode esperar é resistir a essas súplicas por um tempo. Então ele
sucumbe.11

Gerald May expressa o mesmo ponto de forma mais sucinta: “Força de


vontade e resolução vêm e vão, mas o processo adicto nunca dorme”.12 O anseio
psicológico é o grande inimigo da ação continente simplesmente porque opõe
uma força de recursos aparentemente inesgotáveis contra um poder limitado, a
vontade humana. Assim que um desejo adicto é banido de cena, outro aparece. O
desejo dispara uma salva após a outra de desejos singulares na consciência de um
agente, exaurindo gradualmente o poder limitado da vontade humana. Assim, o
anseio psicológico pode ser uma fonte potente de incontinência impetuosa.
Como vimos, o comportamento adicto dentro do episódio de consumo e
aquele desencadeado por um intenso anseio físico ou psicológico incessante
podem ser entendidos como exemplos extremos de incontinência impetuosa. De
fato, à medida que reconhecemos a relação frágil entre a força de vontade humana
e o forte anseio psicológico visceral ou incessante, uma ampla gama de
comportamentos adictos torna-se inteligível.
No entanto, o que é mais intrigante sobre o comportamento adicto
permanece intocado por essa análise. Pois o que é mais intrigante sobre o
comportamento adicto é que os adictos regularmente se envolvem em
comportamento adicto na ausência de um forte anseio psicológico visceral ou
persistente. Tanto os anseios físicos quanto os anseios psicológicos são estados
transitórios; sabemos, por meio de estudos fisiológicos e de depoimentos de
pessoas com adicções, que ambos os tipos de anseio diminuem e podem, por fim,
desaparecer. A duração do anseio físico é biologicamente circunscrita e, portanto,
bastante uniforme entre as pessoas adictas na mesma substância. A duração do
anseio psicológico é influenciada por uma ampla gama de fatores e, portanto, é
menos uniforme entre as pessoas adictas; no entanto, todos os adictos
experimentam um movimento do anseio psicológico incessante para o desejo
intermitente (que muitas vezes é “dependente da sugestão”). Muitas pessoas em
recuperação testemunham que já não anseiam pela substância viciante.
Entretanto, a recaída frequentemente ocorre mesmo após a cessação do
anseio. Como devemos explicar isso? Não podemos explicá-lo baseando-nos na
categoria de incontinência impetuosa. Voltamos, então, ao amplo tratamento da
incontinência de Aristóteles, buscando recursos para lidar com o mais intrigante
dos comportamentos adictos. É nesse ponto que a categoria de hábito emerge
como a chave indispensável para desvendar os aspectos mais desconcertantes da
incontinência adicta. Pois é a categoria de hábito que pode explicar como é
possível para um agente determinar racionalmente que um comportamento deve
ser rejeitado e, ainda assim, envolver-se voluntariamente nesse comportamento.
Em contraste com os casos de incontinência impetuosa em que um agente é
impedido de chegar à conclusão apropriada sobre sua ação, Aristóteles diz que às
vezes um agente incontinente realmente chega à conclusão do silogismo prático
que deveria levar à ação continente, mas viola essa conclusão. Por exemplo,
Aristóteles afirma que “o homem incontinente age com apetite, não com escolha;
enquanto o homem continente, pelo contrário, age com escolha, mas não com
apetite” (1111b12-15). Em vários lugares da Ética a Nicômaco, Aristóteles faz a
mesma afirmação: o agente incontinente é às vezes aquele que age de maneira
contrária à sua escolha ou a seu juízo racional.
Essa é uma afirmação estranha aos nossos ouvidos. Como um agente
poderia agir contra sua própria escolha? A escolha de um agente não é sempre
evidenciada pelo que ele de fato faz? Não é assim para Aristóteles. Mas como,
então, Aristóteles acredita que um agente poderia agir de maneira contrária ao
juízo emitido pelo raciocínio prático correto? Aristóteles pensa que isso é possível
devido ao papel do hábito na ação humana: “O fato de os homens usarem a
linguagem que flui do conhecimento não prova nada; pois […] aqueles que apenas
começaram a aprender uma ciência podem falar como se possuíssem o
conhecimento, mas ainda não o compreendem; pois é necessário que o
conhecimento se torne parte deles, e isso leva tempo” (1147a19-23).
Aqui Aristóteles conecta a ação incontinente com o hábito, que ele define
em outro lugar como uma espécie de segunda natureza (1152a31). A passagem
esclarece como um agente pode de fato possuir o juízo racional que resulta de um
silogismo prático e, ainda assim, agir de maneira contrária a esse julgamento. O
agente pode “ter” a conclusão em certo sentido, mas deixar de agir de acordo com
ela porque ela não “se tornou uma parte” dele; não se tornou uma “segunda
natureza” para ele. O que parece faltar nesse tipo de caso é a incorporação do
conhecimento à ação. Na medida em que o hábito é um tipo de conhecimento
corporificado (uma definição que parece adequada, dada a descrição de
Aristóteles do hábito como “segunda natureza”), então, em certos casos, o que
interfere na capacidade do agente incontinente de agir de acordo com sua escolha
é um hábito errado ou pelo menos a falta de um hábito correto. Como explica
Risto Saarinen, algumas pessoas incontinentes “são como jovens inexperientes que
ainda não podem tirar proveito dos seus conhecimentos, porque lhes faltam os
hábitos apropriados. Não é a falta de conhecimento, mas sim a falta de integração
apropriada desse conhecimento que faz com que a escolha correta não seja
seguida”.13
A integração apropriada do conhecimento à ação exige prática. Como está
implícito no exemplo de Aristóteles do estudante iniciante, podemos ouvir e até
mesmo admitir que certas ações são boas e nobres sem ainda possuir a convicção
de que elas têm esse valor intrínseco. Para compreender adequadamente o valor
intrínseco dessas ações, é necessário mais do que o mero “conhecimento
intelectual”, assentimento a uma proposição. O conhecimento também deve ser
traduzido em “conhecimento do coração”. O estudante da ação correta deve vir a
abraçar de maneira afetiva as ações que passou a acreditar serem corretas, e isso
requer tempo e prática, o que significa que requer habituação.
O avanço dessa resposta aristotélica ao problema da incontinência em
relação à oferecida por Sócrates vem do entendimento de Aristóteles de que o
conhecimento muitas vezes é um hábito. Para Sócrates, o poder do conhecimento
reside em seu conteúdo, enquanto, para Aristóteles, o poder do conhecimento
reside na maneira como este é possuído pelo conhecedor. Enquanto Sócrates
pensa que deveria ser suficiente para a ação continente que um agente meramente
possuísse conhecimento, Aristóteles entende que o conhecimento, para ser eficaz,
deve informar quem somos, incluindo nossos desejos. Sócrates diz: “Devemos
compreender que cada um de nós é governado por dois princípios que seguimos
aonde quer que eles nos levem: um é nosso desejo inato por prazeres, o outro é
nosso juízo adquirido que busca o que é melhor. Às vezes, esses dois estão de
acordo; mas há momentos em que eles lutam dentro de nós, e, assim, às vezes um
deles assume o controle, às vezes o outro”.14 Mas, para Aristóteles, há um terceiro
princípio — o hábito —, que faz a mediação entre esses dois princípios,
incorporando-os um ao outro. Enquanto para Sócrates nunca podemos ter
certeza de qual princípio conquistará o controle — “às vezes um deles assume o
controle, às vezes o outro” —, Aristóteles acredita que moldamos nossas vidas
apenas à medida que nossos desejos são informados por nosso conhecimento, e
nosso conhecimento é informado por nossos desejos. Conhecimento
incorporado, portanto, em vez de “conhecimento simples” ou “conhecimento
abstrato”, é necessário para uma ação virtuosa e continente, e a ação incontinente
se deve frequentemente a uma falta de conhecimento incorporado — isto é, a
uma falha de hábito.
Enquanto a paixão veemente ou resiliente é a fonte da incontinência
impetuosa, o hábito ou a falta dele é a fonte do que Aristóteles chama de “
incontinência fraca” e o que os comentaristas rotularam de maneira mais útil de “
incontinência visível”, uma vez que o agente age ao contrário do que ele pode
“ver” como verdade. As formas mais intrigantes de comportamentos adictos
podem ser entendidas como casos de incontinência visível. Veja a seguinte
lembrança de uma jovem alcoólatra:

Peguei metade de uma garrafa de uísque um dia após o trabalho e bebi mais de um terço dela em
menos de quatro horas naquela mesma noite. Eu estava muito mal no dia seguinte, mas consegui
chegar ao trabalho. uando cheguei à casa depois do trabalho, sentei-me no sofá dos meus pais, e
eu sabia, eu sabia que começaria a beber aquela garrafa de uísque novamente, embora eu ainda
estivesse muito mal da noite anterior. Eu também sabia que não queria beber. Sentada naquele
sofá, percebi que o velho “eu poderia parar se quisesse, só não quero” não se aplicava aqui, porque
eu não queria beber. Eu me vi levantar do sofá e comecei a me servir uma bebida. uando me
sentei no sofá, comecei a chorar. Minha negação foi quebrada; acredito que cheguei ao fundo do
poço naquela noite, mas eu não sabia naquela época; eu apenas pensei que estava louca. Continuei
a beber e terminei o restante da garrafa ( AA 324).

Esse é um caso extremo de incontinência. De fato, a maneira como a adicta


descreve sua experiência comunica uma sensação avassaladora de compulsão, e só
podemos saber que ela não foi totalmente compelida porque acabou parando de
beber em um programa de recuperação não medicamentoso. O que está sendo
descrito é uma experiência de incontinência visível. Ela se vê servindo outra
bebida. Ela sabe que não deve beber, mas também sabe que beberá. Essa é uma
representação poderosa do “eu dividido”, um fenômeno central da experiência
adicta. E, no entanto, isso está precisamente de acordo com o caráter da
incontinência fraca ou visível. O agente tem o conhecimento definitivo de que ele
não deve beber, mas mesmo assim bebe. Não estamos lidando aqui com um caso
de um anseio que interrompe o processo deliberativo. Na verdade, a paixão forte
não entra em cena aqui de maneira óbvia. Ela bebe contra seu próprio bom senso
e até mesmo contra o que parece ser seu desejo predominante. Ela sabe que não
deve beber; ela não quer beber; ainda assim ela bebe. Como isso é possível? A
perplexidade desse tipo de caso excede em muito a de qualquer forma de
incontinência impetuosa.
Se, como sugeri, existe um poder além da paixão que pode dar-nos uma
visão sobre a natureza de alguns tipos de incontinência especialmente intrigantes,
então relatos como esse exigem que tal poder seja investigado. Se quisermos
penetrar nos componentes mais desconcertantes da experiência adicta,
precisaremos examinar a natureza do hábito. A incontinência em todas as suas
variedades não pode ser compreendida apenas com base nas características da
ignorância ou da paixão. A relação entre hábito e incontinência pode ser a fonte
de muitos dos aspectos mais intrigantes da experiência adicta.
Resumindo: usei a filosofia de ação humana de Aristóteles como ferramenta
para estreitar nossa discussão e focar o que há de mais intrigante acerca do
comportamento adicto. O comportamento adicto, em alguns casos, está além do
escopo da ação humana (adicção mórbida) e, em outros, do simples vício (adicção
indulgente). No entanto, na medida em que a maioria dos comportamentos
adictos é reconhecida pela pessoa adicta como destrutiva, e na medida em que a
maioria dos casos de comportamento adicto é remediável por meio de modelos de
recuperação não médicos, a maioria dos comportamentos adictos se enquadra na
categoria de ação incontinente. Aristóteles fornece dois tipos de explicação para a
ação incontinente em geral. O primeiro explica a ação incontinente como
resultado de precipitação, apetites fortes ou estados corporais anormais. Essa
análise é capaz de explicar exemplos de comportamento adicto que ocorrem
dentro do episódio de consumo da substância, bem como exemplos de
comportamento adicto que podem ser atribuídos ao anseio físico ou psicológico.
No entanto, essa explicação não contempla os casos de comportamento adicto
que são mais intrigantes, a saber, a ação adicta realizada por um agente sóbrio e
competente que não está experimentando nem anseio físico nem anseio
psicológico. Esse comportamento se manifesta ao longo de todo o processo
adicto, mas é mais pronunciado em casos de recaída. A fim de compreender
melhor essa característica mais intrigante da experiência adicta, devemos voltar-
nos para um exame mais completo da alegação de que tais casos de incontinência
visível devem ser analisados em termos do poder do hábito na ação humana.

1 Alcoholics Anonymous World Services. Twelve steps and twelve traditions (New York: Alcoholics
Anonymous World Services, 1952), p. 22. [Edição em português: Os doze passos e as doze tradições
(São Paulo: Junta de Serviços Gerais de Alcoólicos Anônimos do Brasil, 2019)]. Doravante, Os doze
passos e as doze tradições será abreviado por DD e citado no texto. Nota do tradutor: as páginas que
aparecem entre parênteses nas referências do texto são da edição em inglês.
2 J, Williams. e principles of psychology (New York: Dover, 1950), 2:543.
3 Essa é uma citação de Benjamin Rush de um bêbado do século 18, citado em L, Harry
Gene. “e discovery of addiction”, Journal of Studies on Alcohol 39 (1978): 152.
4 Esse é o título de um famoso livro escrito pelo psicólogo Jeffrey A. Schaler: Addiction is a choice
(Chicago: Open Court, 2000). As linhas gerais do argumento têm sido reproduzidas em vários livros,
incluindo o livro e useful lie (Wheaton: Crossway, 1991), do conselheiro cristão William Playfair.
Provavelmente, o crítico mais proeminente do modelo de doença é Stanton Peele. Embora a
abordagem de Peele seja mais sútil do que a visão simplista da “adicção como escolha”, sua tentativa
de articular a natureza da adicção frequentemente cai no voluntarismo por falta de uma alternativa
filosófica robusta para as opções de doença ou escolha. Ver, e.g., e diseasing of America: how we
allowed recovery zealots and the treatment industry to convince us we are out of control (San
Francisco: Jossey-Bass, 1995).
5 H, Gene. Addiction: a disorder of choice (Cambridge: Harvard University Press, 2009), p.
1.
6 S, Francis. Addiction and responsibility: an inquiry into the addictive mind (New
York: Crossroad, 1993), p. 63.
7 Harry Frankfurt, em seu ensaio clássico “Freedom of the will and the concept of a person”, em
Free will, ed. W, Gary, 2. ed. (Oxford: Oxford University Press, 2003), p. 335, oferece uma
descrição do que ele chama de “adicto deliberado”, que se assemelha bastante à nossa noção
aristotélica do adicto autoindulgente. No linguajar filosófico de Frankfurt, o adicto deliberado é
aquele que não experimenta nenhum conflito entre seus desejos de primeira e segunda-ordem. O
adicto deliberado deseja o objeto viciante e deseja desejá-lo.
8 G, Donald. Alcoholism: the facts, 3. ed. (Oxford: Oxford University Press, 2000), p. 90.
9 B, William. Junky (New York: Penguin Books, 1997), p. 94.
10 W, R. Jay. “Addiction as defect of the will: some philosophical reflections,” em Free will,
ed. W, Gary. (Oxford: Oxford University Press, 2003), enfatiza a natureza distintivamente
resiliente do desejo adicto.
11 I, William. On desire: why we want what we want (Oxford: Oxford University Press,
2006), p. 76.
12 M, Gerald. Addiction and grace (New York: HarperCollins, 1998), p. 52.
13 S, Risto. Weakness of the will in Medieval thought: from Augustine to Buridan (New
York: E. J. Brill, 1994), p. 15.
14 P, Phaedrus, trad. Alexander Nehamas e Paul Woodruff, em Plato: complete works
(Indianapolis: Hackett, 1997), 237d-238a. [Edição em português: Fedro. Edição bilíngue, tradução e
apresentação de José Cavalcante de Souza, posfácio e notas de José Trindade Santos (São Paulo:
Editora 34, 2016)].
3
ADICÇÃO E HÁBITO
Recursos em Tomás de Aquino

A         


 em termos além dos padrões binários que caracterizam a maioria das
teorias contemporâneas sobre a adicção. Na verdade, muitas das características
mais misteriosas do comportamento adicto tornam-se menos desconcertantes se
pensarmos na adicção como um exercício do hábito. Por exemplo, interpretar a
adicção à luz da categoria de hábito pode esclarecer por que as pessoas continuam
a agir de forma adicta mesmo quando estão racionalmente convencidas de que
não deveriam; por que pessoas adictas falam em ser compelidas a agir de forma
adicta, mas são capazes de se recuperar sem intervenção médica; e por que pessoas
adictas que estão em recuperação há meses ou mesmo anos podem ter uma
recaída repentina. Para fornecer tais análises, devemos examinar mais
extensivamente a relevância do hábito na consideração da ação humana. Para
tanto, volto-me para o pensamento de Tomás de Aquino, cuja filosofia da ação
reflete e ainda aprofunda significativamente a de Aristóteles.
De acordo com Tomás de Aquino, a vontade humana é um poder que deve
ser flexionado no processo de ação deliberativa e por meio deste. Não é uma
faculdade metafísica incomensurável, nem um terceiro termo separável da razão e
do apetite. A vontade, para Tomás de Aquino, é apetite racional, razão apetitiva.
O raciocínio prático — isto é, raciocínio sobre como devemos agir — é como o
raciocínio teórico na medida em que exige esforço, concentração e disciplina.
Assim como não podemos fazer cál-culos indefinidamente sem nos esgotarmos,
também não podemos deliberar indefinidamente sobre dilemas práticos sem nos
esgotarmos. A ação deliberativa é inerentemente frágil e instável, porque requer
que um agente com poderes finitos se envolva em uma atividade que tende a
esgotar esses poderes.
Apesar do privilégio que tanto Aristóteles quanto Tomás de Aquino
concedem à pessoa humana em virtude de sua natureza racional única, nenhum
dos dois supõe que uma vida moral bem-sucedida seja uma vida de constante
envolvimento deliberativo. Uma vida que está perpetuamente envolvida em lidar
com crises morais de ação será inevitavelmente um fracasso. O problema com
essas crises, para Tomás de Aquino, não é que sejam insolúveis, mas sim que
sobrecarregam o agente moral. O objetivo do treinamento moral é a formação de
hábitos morais, porque o hábito significa a possibilidade de agir bem sem o
esforço que é exigido do raciocínio prático deliberativo.
Tomás de Aquino não considera as crises da vontade como falhas. Elas são
inevitáveis, pois os hábitos às vezes entram em conflito, mesmo naqueles que
possuem hábitos corretos. A “escolha” deliberativa é o que deve ocorrer quando os
hábitos colidem. Mas, uma vez que um agente é incapaz de sustentar
indefinidamente o tipo de vigilância necessária para o raciocínio prático correto,
tais crises, embora proporcionem oportunidade para ação criativa, terminarão em
fracasso, a menos que sejam rapidamente integradas aos padrões de pensamento e
comportamento habituais. Assim, para Tomás de Aquino, pensar bem sobre a
ação humana requer que investiguemos que tipo de coisas são os hábitos, se
existem diferentes tipos de hábitos e como os hábitos são causados.

T  A   

Tomás de Aquino afirma que os hábitos não são necessários para os humanos
agirem, mas são necessários para os humanos agirem bem. Essa afirmação aparece
na questão 49, artigo 4, da Prima Secundae: “É necessário haver hábitos?”. O
artigo é central para tudo o que Tomás irá dizer sobre o papel do hábito na ação
humana. Nesse artigo, ele faz a ambiciosa afirmação de que o hábito (habitus)15
deve ser incluso como um componente irredutível de qualquer ontologia que seja
adequada ao escopo da ação humana. Sua afirmação da irredutibilidade da
categoria de hábito é ambiciosa porque, à primeira vista, parece que poderíamos
explicar cada ação humana referindo-a apenas ao poder da vontade humana.
Tomando qualquer ação humana, parece que somos capazes de explicar essa ação
apenas nos referindo ao poder da vontade humana. O hábito, portanto, torna-se
supérfluo como princípio de explicação e, se assim for, não pode ser considerado
um componente necessário de uma ontologia da ação humana.16
Tomás de Aquino responde a essa objeção com duas afirmações, mas, antes
de fazê-lo, declara a natureza de um hábito e que tipo de entes podem possuí-lo.
Tomás de Aquino argumenta que, uma vez que os hábitos envolvem disposições
para agir de uma maneira dentre uma variedade de maneiras potenciais, as únicas
entidades que têm hábitos são agentes racionais cujas naturezas não determinam
seus comportamentos. Portanto, não há “espaço para o hábito ” em Deus, porque
a ação de Deus é idêntica ao ser de Deus. E não há espaço para o hábito nas coisas
não racionais (incluindo animais não racionais), porque as coisas não racionais
são sempre determinadas pela natureza (no caso dos animais, pelo “ instinto”)
para responder de certa maneira a qualquer situação. Se pudéssemos saber tudo
sobre as necessidades de um animal e as circunstâncias em que ele se encontra,
poderíamos saber como o animal responderia. O animal, portanto, nunca está de
fato aberto a mais de um curso de ação. Assim, os hábitos pertencem apenas aos
animais racionais, ou seja, aos seres humanos,17 cuja existência não é idêntica à sua
atividade e os quais podem ser capazes de vários cursos alternativos de ação.
O hábito , somos informados, poderia fazer sentido como uma explicação
de por que determinado agente humano age de uma forma ou de outra, uma vez
que não podemos explicar a ação simplesmente com referência à essência do
agente (como no caso de Deus) ou à determinada conexão causal entre as
necessidades do agente e seu ambiente (como acontece com os animais). Mas,
novamente, a força de vontade poderia muito bem ser igualmente oferecida como
uma explicação, uma vez que a ambiciosa tese de Tomás de Aquino de que o
hábito é necessário para uma consideração completa da ação humana ainda não foi
justificada. Tomás de Aquino fornece dois argumentos para defender sua tese.
Primeiro, devemos postular a categoria de hábito para explicar como é
possível que os seres humanos tendam a uma ação específica dentre uma variedade
de ações potenciais. A postulação da vontade humana explica por que é possível,
em determinada situação, que um agente aja de várias maneiras. Mas não pode
explicar o que também é verdade: que às vezes é provável que um agente aja de
uma maneira, e não de outra.
Em segundo lugar, e de forma relacionada, o que continua necessitando de
explicação não é meramente cada evento individual considerado separadamente
na história da ação de um agente, mas também a capacidade de um agente de agir
consistentemente por um período prolongado de tempo. Isso requer explicação
porque a vontade humana não é (como Descartes supôs) um poder abstrato e
inesgotável, mas sim um poder corporificado. A vontade humana é executada por
meio das condições materiais da personalidade humana. Como Tomás de Aquino
observa, embora a vontade seja uma função da alma, as operações da vontade
procedem “da alma por meio do corpo” (1-2.50.1). Não podemos, portanto,
fingir que a vontade não é restringida pelo corpo. É por isso que ele diz que os
hábitos da vontade, conquanto primariamente hábitos da alma, são
secundariamente hábitos do corpo (1-2.50.1). Como o intelecto e o apetite
sensitivo, a razão prática — o “apetite racional” — está sujeita à alteração,
corrupção e exaustão. A escolha deliberativa é realizada não por transcender os
desejos naturalmente condicionados por nossa existência material, mas por meio
do exercício do intelecto, ordenando esses desejos. A vontade tem uma estrutura
suscetível a ser treinada, mas também, portanto, suscetível de ser quebrada. Dado
esse fato, o exercício consistente da vontade em qualquer direção precisa de
explicação. Um princípio de explicação além do mero poder da vontade humana é
necessário para explicar como a vontade persevera em cursos de ação que
esgotariam a vontade caso ela operasse puramente por deliberação. Na ausência
do hábito , a vontade está sujeita à violência de impulsos concorrentes e não pode
suportar consistentemente essa violência interna.
O hábito fornece o princípio de explicação necessário e explica como a
vontade pode agir consistentemente e com sucesso sem ser desgastada pelo peso
do desejo ou atrapalhada por desejos descoordenados, porque os hábitos
qualificam e coordenam os desejos. Muitos hábitos e, em particular, muitas das
virtudes não podem ser compreendidos à parte das paixões às quais dão forma e
coordenação. Para Tomás de Aquino, os hábitos são fundamentalmente
estratégias de desejo.18 Argumentarei nos próximos capítulos que essa
compreensão é central para descrever corretamente o poder da adicção, uma vez
que as adicções estão entre as estratégias mais poderosas que os seres humanos
têm para coordenar e direcionar seus desejos mais fundamentais.
Especificamente, os hábitos retificam estrategicamente o problema da
vontade humana limitada de duas maneiras. Em primeiro lugar, hábitos são
difíceis de mudar: “Chamamos de hábitos as qualidades que, por natureza, não
são facilmente mutáveis” (1-2.49.2). O fato de os hábitos não serem facilmente
mutáveis é um correlato necessário à sua função, que é fornecer estabilidade e
consistência à ação humana. E esta, quando exercida por meio do processo de
raciocínio prático, é inerentemente tênue, precisamente porque aquilo de que o
processo é totalmente dependente, ou seja, paixões e julgamentos, pode ser
facilmente perdido, ignorado ou superado. A ação incontinente, como vimos, é
possível exatamente por esse motivo. Portanto, se os hábitos devem fornecer um
tipo de constância não disponível por meio do raciocínio prático desenraizado,
eles devem ser o tipo de coisa difícil de mudar ou perder. Se nossos hábitos podem
ser mudados tão facilmente quanto nossa mente ou nossos sentimentos, eles não
oferecem alternativa ao caráter instável do raciocínio deliberativo. uanto mais
arraigado o hábito , mais perfeitamente ele executa sua tarefa. Assim, hábitos são
qualidades que (a) tornam um agente consistente em suas ações; (b) tornam um
agente bem-sucedido em sua ação; e (c) fazem com que “a coisa possa ser feita
com facilidade” (1-2.49.2). Essas características do hábito estão intimamente
interligadas. É a permanência estável do hábito que torna a ação habitual
consistente, e essa consistência é possível porque a ação não sobrecarrega a
vontade do agente da mesma forma que a ação deliberativa. Assim, a facilidade
com que o agente atua habitualmente é, além de fonte de prazer (1-2.53.1), aquela
que garante a consistência da ação habitual.
Em segundo lugar, os hábitos corrigem o problema da vontade humana
limitada por sua propensão a agir “na hora”. Tomás de Aquino diz que, uma vez
que o prazer pode ser antecipado por meio da faculdade da memória, uma pessoa
pode tornar-se disposta de modo que reaja habitualmente à menor provocação
dessa memória (1-2.33.2). uando exposto ao objeto apropriado, um agente
habituado é capaz de agir imediatamente, sem esforço e, muitas vezes, sem
nenhuma consciência explícita do que está sendo feito. No entanto, embora os
hábitos não exijam um ato de vontade deliberativa para serem provocados, estão
abertos a ser interrompidos por um ato específico da vontade. A esse respeito, eles
são muito distintos dos instintos.
Agora podemos fornecer uma definição robusta de “ hábito ”. Um hábito é
uma modificação adquirida relativamente permanente que permite à pessoa,
quando provocada pelo estímulo relevante, agir de forma consistente, com sucesso
e facilidade em relação a algum objetivo.19

H   

O debate que está sendo travado no campo dos estudos sobre adicção é expresso
na linguagem da doença versus escolha. Agora que definimos a noção de hábito ,
podemos começar a explorar como a categoria de hábito abre espaço para uma
descrição do comportamento adicto que evita as dicotomias em voga no debate
atual. O hábito é uma categoria mediadora, mas articular cuidadosamente a
natureza dessa mediação é um passo importante porque, se não pudermos
enxergar como o hábito ocupa um espaço genuinamente único dentro de uma
ontologia da ação humana, é provável que colapsemos até mesmo a linguagem do
hábito e voltemos aos extremos polarizadores dos quais estamos tentando escapar.
Isso foi, de fato, o que aconteceu com a linguagem do hábito no debate
contemporâneo dos estudos sobre adicção. Como a categoria de hábito é mal
compreendida, ela foi despreocupadamente descartada como uma forma inútil ou
mesmo perniciosa de caracterizar o comportamento adicto.
O hábito , devidamente compreendido, faz a mediação entre vários
extremos diferentes que limitam nossa concepção da ação humana. Primeiro, faz a
mediação entre o instinto e a disposição. Em segundo lugar, faz a mediação entre
o determinismo e o voluntarismo. Terceiro, faz a mediação entre o involuntário e
o voluntário.
Primeiro, um hábito não é um instinto nem uma disposição,20 mas
intermedeia os dois. É como um instinto, pois pode tornar a ação fácil e
aparentemente sem esforço. Às vezes, um hábito pode possibilitar a um agente
agir sem pensamento consciente, e é por isso que os hábitos são facilmente
confundidos com os instintos. Assim, por exemplo, Brian Davies se confunde
quando escreve que Tomás de Aquino “está preocupado com a aquisição do
caráter que permite às pessoas agir instintivamente”.21 Tomás de Aquino jamais
consideraria isso uma conquista, uma vez que o instinto indica uma tendência
para a ação que não é responsiva de forma alguma à razão. O erro de Davies vem
de uma inclinação, presente na psicologia do início do século 20, de tornar os
hábitos motores o paradigma para todos os hábitos. Se pensarmos em todos os
hábitos tomando como padrão os hábitos motores, vemos quão facilmente eles
podem ser confundidos com o instinto, uma vez que os hábitos motores são mais
eficazes à medida que não focamos mentalmente como fazer as atividades que eles
tornam possíveis. Como William James pontuou, você será muito mais eficiente
em amarrar os sapatos se não pensar em como fazê-lo.
Entretanto, Tomás de Aquino insistiria que mesmo os hábitos motores, que
têm notáveis características semelhantes às dos instintos, são diferentes destes,
porque podem ser bloqueados e transformados, geralmente com o passar do
tempo e com grande esforço pela aplicação da razão. Os instintos não são assim.
O instinto só pode ser transformado por condicionamento operante, como é o
caso dos animais: “nos irracionais, as potências sensitivas não agem pelo império
da razão, mas pelo instinto natural, desde que entregues a si mesmos. Assim, nos
animais irracionais não há hábitos ordenados às ações” (1-2.50.3). Um instinto
não implica o poder de se abster da ação instintiva, ao passo que um hábito
implica esse poder. Os animais “não têm o poder de usar ou não usar, o que parece
pertencer à razão do hábito . Logo, falando com propriedade, neles não podem
existir hábitos” (1-2.50.3). Devemos, portanto, ter o cuidado de manter uma
distinção entre instinto e hábito , para que, ao ocultar a distinção, não
obscureçamos uma das características mais importantes do hábito : sua
capacidade de responder à razão e, portanto, sua conexão com aquilo que é
voluntário.
Mas devemos notar também as semelhanças entre hábito e instinto, e isso
nos permitirá ver como Davies e outros confundem os dois. Pois, quando dizemos
que o hábito , ao contrário do instinto, é responsivo à razão, isso não deve ser
interpretado como se implicasse que as ações habituais podem ser interrompidas e
os hábitos, dissipados (ou, por outro lado, ações habituais incitadas e hábitos
adquiridos) simplesmente pela realização de um ato de vontade. Pelo contrário, os
hábitos, como os instintos, ganham vida própria e muitas vezes provocam ações
imediatas, “na hora”, que são bastante resistentes a qualquer intenção
momentânea que um agente possa ter. É por isso que Aristóteles diz que “o hábito
é difícil de ser mudado porque é como uma natureza” (1152a30-31), e por que
Tomás de Aquino, seguindo Aristóteles, nos diz que “um hábito é como uma
segunda natureza” (1-2.53.1).22 De fato, é precisamente a semelhança da ação
adicta com as verdadeiras compulsões do instinto que levou (dada a perda
contemporânea de uma filosofia robusta do hábito) à assimilação da adicção à
categoria puramente involuntária de doença. Apesar de suas semelhanças, no
entanto, Tomás de Aquino insiste que os hábitos são diferentes dos instintos,
porque aqueles respondem à razão. Mas, quando ele diz que os hábitos, ao
contrário do instinto, respondem à razão, não está pensando principalmente em
termos do poder da deliberação racional de superar as ações habituais “no
momento”, embora isso às vezes seja possível. Em vez disso, Tomás de Aquino está
interessado na maneira como a razão pode desenvolver estratégias, manipular
circunstâncias e informar modos alternativos de caráter. Desse modo, a razão
pode transformar gradual e indiretamente os hábitos, bem como as ações
correspondentes que eles provocam.
Por outro lado, existe o perigo de confundir o hábito com a disposição. Um
hábito é como uma disposição, pois pode ser mudado, mas um hábito é diferente
de uma disposição porque não pode ser mudado sem grande esforço. As
disposições são diferentes dos hábitos “em se poder perder com facilidade ou com
dificuldade”, respectivamente: “o nome hábito implica certa durabilidade; mas a
disposição não” (1-2.49.2). Assim, por exemplo, Tomás de Aquino pensaria que ser
generoso e falar francês são hábitos, enquanto roer as unhas ou dizer “Cara!”
repetitivamente são provavelmente disposições. A distinção entre
comportamentos habituais e dispositivos reside na dificuldade encontrada
quando uma pessoa tenta abandonar o comportamento. Se o comportamento está
profundamente arraigado e requer muito esforço, criatividade e engenhosidade
para ser abandonado, então conta como hábito para Tomás de Aquino. Se o
comportamento não está (ainda) profundamente arraigado e pode ser erradicado
simplesmente ao reconhecer que é problemático, provavelmente não é um hábito,
mas mera disposição. Frequentemente, uma tendência está mais ou menos
arraigada dependendo do grau em que a tendência envolve as emoções de um
agente. Assim, cutucar o nariz frequentemente é, na maioria das vezes, uma
tendência dispositiva, ao passo que fumar é, na maioria das vezes, uma tendência
habitual.
A distinção entre hábito e disposição é prejudicada por certa imprecisão.
Por quais padrões devemos decidir se uma tendência específica para agir tem ou
não “durabilidade” suficiente para ser considerada um hábito? Nenhum conjunto
de padrões pode remover de forma decisiva essa ambiguidade; sempre haverá
casos limítrofes. Mas isso não nos deve levar a desconsiderar a importância da
distinção. A distinção entre hábito e disposição não é, para Tomás de Aquino,
meramente arbitrária: “Essas diferenças, embora pareça que se relacionam por
acidente com a qualidade, no entanto designam diferenças próprias e por si
[essenciais] das qualidades” (1-2.49.2).
A atenção cuidadosa a como o hábito intermedeia entre o instinto e a
disposição nos permite evitar os perigos gêmeos que espreitam a linguagem do
hábito na discussão contemporânea sobre adicção. Uma dessas tendências é
combinar hábito e instinto, descartando, assim, a alegação de que a adicção é um
hábito. Esse tipo de erro é evidente na seguinte passagem de Francis Seeburger:

Em última análise, não há nada “habitual” em injetar em si mesmo narcóticos duas vezes por dia
durante um período prolongado. Algo que se tornou habitual é algo que aprendemos a fazer sem
pensar nisso. Esse é o papel do hábito: permitir-nos fazer coisas sem que tenhamos de nos
preocupar com pensar em fazê-las, ou pensar sobre o que estamos fazendo enquanto as fazemos.
Assim, por exemplo, depois de lutarmos por muito tempo com eles, os movimentos e ajustes
corporais envolvidos em andar de bicicleta ou nadar tornam-se habituais para nós, de modo que,
quando subimos em uma bicicleta ou pulamos em uma piscina, não temos de pensar sobre o que
devemos fazer; nós apenas fazemos. Essa descrição, entretanto, não se aplica ao caso de alguém que
injeta heroína em si mesmo duas vezes por dia. Pelo contrário… pessoas adictas, de modo muito
consciente, investem significativamente em toda a atividade de consumo de drogas. Elas tendem a
ritualizá-la, às vezes dando até mesmo às circunstâncias mais triviais a condição de ritos
invioláveis.23

Como fica claro nos exemplos dados por Seeburger, ele assume que os
hábitos motores são hábitos paradigmáticos e, portanto, que a falta de
pensamento pertencente à ação em questão é uma propriedade necessária do
hábito. O hábito foi confundido com o instinto, como uma resposta inconsciente
a uma situação particular. Mas, para Tomás de Aquino, essa seria uma restrição
estranha ao hábito, até porque Tomás acredita que uma das faculdades das pessoas
que podem habituar-se é o intelecto. Ao descrever as tendências rituais do
comportamento adicto, Seeburger identificou a função crucial da adicção de criar
significados (e, portanto, uma conexão crucial entre a adicção e a racionalidade).
Ele, entretanto, não nos deu nenhuma razão para pensar que o comportamento
adicto não seja habitual.
Inversamente, o hábito pode ser erroneamente confundido com disposição,
descartando assim a perspectiva de que a adicção seja um hábito. Assim, por
exemplo, lê-se na literatura do AA que certos tipos de alcoólatras descobriram que
não tinham “apenas” o mau hábito de beber álcool, mas que, de fato, eram
alcoólatras: “Ao recordarmos nossas próprias histórias de bebida, poderíamos
demonstrar que, anos antes de percebermos que estávamos descontrolados, nosso
ato de beber já não era mero hábito, que era realmente o início de uma progressão
fatal” (DD 23, grifo meu). O adjetivo “mero” é revelador aqui. Na continuação da
passagem, fica claro que o que está sendo buscado é uma distinção entre aqueles
que podem ter “meramente” um problema com a bebida e aqueles que são
“totalmente” alcoólatras. Mas o que distingue alguém que possui um problema
com bebida de um alcoólatra é precisamente o que distingue, para Tomás de
Aquino, uma disposição de um hábito. A pessoa que tem um problema com a
bebida tem a tendência de beber, mas, ao reconhecer os efeitos nocivos de seu
comportamento, é capaz de parar de beber de maneira mais ou menos direta, sem
medidas drásticas. O alcoólatra, por outro lado, pode reconhecer a natureza de
seu problema e, ainda assim, ser incapaz de erradicar a tendência de beber
simplesmente decidindo fazê-lo. Tanto um quanto o outro têm tendências ao
álcool, mas uma tendência se perde facilmente e a outra, não. Isso se assemelha
exatamente à distinção que Tomás de Aquino deseja fazer entre uma disposição e
um hábito. Ele diria que um alcoólatra tem o hábito, embora isso não seja de
forma nenhuma o mero hábito ( isso seria contraditório para ele) de beber, ao
passo que a pessoa que tem problema com bebida apresenta uma disposição para
beber. A linguagem do hábito foi erroneamente descartada da reflexão sobre a
adicção porque foi incorretamente confundida com o instinto ou a disposição.
Mas, na verdade, o hábito ocupa um espaço genuíno entre os dois.
Em segundo lugar, a categoria de hábito intermedeia os extremos do
determinismo e do voluntarismo. A ação habitual é como o livre-arbítrio
autônomo no sentido de que se conecta em algum nível com a razão. Por outro
lado, a ação habitual é como o determinismo no sentido de que as ações realizadas
pelo hábito não decorrem diretamente do processo de raciocínio deliberativo que
é constitutivo do livre-arbítrio. Já observamos a noção de Tomás de Aquino de
um hábito como uma “segunda natureza”: “o hábito assemelha-se à natureza, mas
é inferior a ela. Por isso, enquanto a natureza de uma coisa é inseparável dela, o
hábito é separável com dificuldade” (1-2.53.2). Se algo age de certa maneira “por
natureza”, essa coisa está determinada a agir dessa maneira. Nos animais,
chamamos isso de instinto. Um hábito é uma “segunda natureza” porque, embora
não seja, estritamente falando, algo mecânico, ainda assim procede do agente sem
esforço e sem exercício da vontade, aparentemente de maneira “natural”. Mariana
Valverde resume bem a maneira como o hábito faz a mediação entre o
determinismo e o livre-arbítrio. Os hábitos são “atos padronizados que não são
nem totalmente desejados nem totalmente automáticos”, que “habitam a zona
híbrida, frequentemente conhecida como segunda natureza, a qual foi sempre
negligenciada pela teologia e pela filosofia”.24
O comentário de Valverde sobre a negligência da categoria de hábito entre
teólogos e filósofos é interessante, dados os objetivos deste estudo. Essa
negligência nem sempre foi o caso. Como Valverde corretamente observa, “na
época de Aristóteles, o hábito de teorizar era a ocupação fundamental dos
filósofos éticos profissionais”.25 Ela ignora a tradição medieval, inclusive Tomás de
Aquino, mas corretamente aponta a relativa ausência de uma filosofia do hábito
durante o período moderno, com as notáveis exceções dos pragmáticos norte-
americanos, particularmente William James, Charles Peirce e John Dewey.26 A
noção de hábito foi reintroduzida nas discussões da psicologia e da filosofia da
ação humana do início do século 20 como um corretivo das afirmações exageradas
sobre o escopo da liberdade absoluta de volição. James, por exemplo, fala da “força
do hábito” precisamente para mostrar que a maior parte da ação humana não é
tão “livre” como certas filosofias de um pretenso livre-arbítrio nos levariam a
supor. Mas, estranhamente, o papel da linguagem do hábito no discurso
contemporâneo sobre a adicção sofreu uma reversão. O hábito já não é
introduzido como um corretivo para uma ênfase exagerada na liberdade e na
volição, mas, em vez disso, na direção oposta, o hábito é rejeitado pelos
proponentes do conceito de doença como uma tentativa velada de contrabandear
a noção de escolha de volta para a equação. O que é importante ver em tudo isso é
que o hábito está genuinamente no meio do caminho entre a doença determinada
e a escolha irrestrita, e, portanto, atua como um corretivo importante em ambas as
direções. Dizer que “a adicção é um hábito” é dizer algo genuinamente diferente
de “a adicção é uma doença” ou que “a adicção é uma escolha”, porque o hábito
intermedeia o determinismo e o voluntarismo.
Em terceiro e último lugar, o hábito faz a mediação entre o voluntário e o
involuntário. Pois, como já mencionamos, os hábitos qualificam os desejos. Craig
Steven Titus coloca a questão de forma sucinta: Tomás de Aquino nos mostra
como os hábitos “incutem inteligência nas emoções”.27 Mas, se assim for, então
não podemos facilmente fazer a distinção costumeira entre ações como coisas que
fazemos acontecer e emoções como coisas que acontecem a nós, entre ações
puramente voluntárias e emoções puramente involuntárias. O hábito significa a
possibilidade de responsabilidade parcial e de controle sobre nossas emoções. Para
Aristóteles e Tomás de Aquino, está ao nosso alcance, por exemplo, desenvolver o
hábito da coragem, o que significa que está ao nosso alcance tanto desenvolver a
nossa tendência de agir de determinada maneira em circunstâncias que exigem
coragem quanto desenvolver nossa tendência de nos sentir de certa maneira nessas
circunstâncias.
Assim, a categoria de hábito complica nossa visão comum acerca da
distinção voluntário/involuntário. Em seu Comentário à “Ética a Nicômaco” de
Aristóteles, Tomás de Aquino explica como os hábitos apresentam
simultaneamente características do voluntário e do involuntário.

Os maus hábitos não estão sujeitos à vontade depois de formados. Ele diz que, porque uma pessoa
se torna injusta voluntariamente, não quer dizer que ela deixe de ser injusta e se torne justa sempre
que desejar. Ele prova isso por meio de uma semelhança nas disposições do corpo. Um homem que
goza de boa saúde e voluntariamente sucumbe à doença por viver incontinentemente, ou seja, por
comer e beber em excesso e não seguir o conselho do médico, tinha no início o poder de não
adoecer. Mas, depois de ter praticado o ato, tendo ingerido alimentos desnecessários ou
prejudiciais, não está mais em seu poder não ficar doente. Assim, quem atira uma pedra é capaz de
não a atirar; no entanto, uma vez que ele lançou a pedra, não tem o poder de retomar o
lançamento. Não obstante, dizemos que está ao alcance de um homem lançar ou atirar uma pedra
porque tal ação estava no princípio sob seu controle. O mesmo ocorre com os hábitos da adicção;
que um homem não se torne injusto ou incontinente decorre de um princípio sob seu controle.
Por isso, dizemos que os homens são voluntariamente injustos e incontinentes, embora, depois que
se tornem tais, não esteja mais em seu poder deixarem de ser injustos ou incontinentes
imediatamente, mas é necessário grande esforço e prática.28

Para expandir a compreensão de Tomás de Aquino: podemos dizer que algo


é mais ou menos voluntário em dois sentidos. Por um lado, podemos pensar no
sentido último da voluntariedade como aquilo que é mais expressivo do caráter de
um agente. Ou, por outro lado, podemos pensar no sentido último da
voluntariedade como aquilo que é mais suscetível ao controle imediato de um
agente. Em outras palavras, como aquilo que um agente é mais arbitrariamente
livre para fazer ou deixar de fazer. Se tomarmos voluntariedade no primeiro
sentido, as ações habituais são de fato as mais voluntárias de nossas ações, porque
surgem não apenas de algum processo deliberativo fugaz, mas sim da fonte de
quem somos, nosso caráter. Se tomarmos a voluntariedade no segundo sentido, as
ações habituais são de fato as menos voluntárias de nossas ações, porque, uma vez
que fluem de hábitos profundamente enraizados, são menos suscetíveis a
deliberações fugazes ou desejos de “fazer o contrário”.
Ao mediar o voluntário e o involuntário, o hábito confunde nossas visões de
senso comum sobre o reino da ação voluntária. Costumamos presumir que a
esfera do voluntário é coextensiva à esfera da vontade autônoma. Em outras
palavras, costumamos assumir uma relação proporcional entre responsabilidade e
“capacidade de agir de outra forma”: quanto maior a liberdade arbitrária de agir
de outra forma, maior será nossa responsabilidade por nossa ação. Mas, para
Aristóteles e Tomás de Aquino, existe uma relação inversa entre os dois. Em vez
de sugerir que o problema é, em algum sentido, “externo”, a perda do controle
imediato sobre nossas ações talvez nos diga que o problema é profundamente
“interno”; o problema talvez seja, em certo sentido, quem somos. Isso não quer
dizer que a adicção, em vez de ser uma doença, seja um sintoma de depravação
moral especial. Na verdade, argumentarei diretamente contra essa visão tão
comum. Mas argumentarei também que, em vez de serem coisas que temos (como
no caso das doenças), as adicções são mais como coisas em que nos tornamos.

T    

O objetivo da investigação precedente sobre o caráter mediador do hábito era


criar espaço entre dicotomias como instinto/ disposição, determinismo/
voluntarismo, voluntário/involuntário e doença/escolha —, espaço este que pode
tornar-se inteligível como um locus do hábito. Mas agora devemos perguntar mais
especificamente sobre os tipos de hábito que podem ocupar esse espaço. Os
hábitos, como vimos, pertencem peculiarmente aos animais racionais, a saber,
pessoas humanas. Mas, para Tomás de Aquino, os hábitos pertencem às pessoas
como qualificações das potências (ou faculdades) das pessoas humanas. Portanto,
temos de perguntar sobre essas potências separadamente, se e como elas são
suscetíveis de se tornar habituais.
Tomás de Aquino realiza essa investigação na questão 50 da Prima
Secundae, “O sujeito dos hábitos”. Ali, ele responde a perguntas sobre se hábitos
podem ou não ser desenvolvidos no corpo humano, na alma e, mais
particularmente, na parte sensível da alma, na parte intelectual da alma e na
vontade. Ele responde sim a todas essas perguntas, embora seja dito que o corpo é
o sujeito dos hábitos apenas de maneira análoga e imperfeita. Poderíamos,
seguindo Tomás, perguntar sobre a capacidade de habituação de cada poder
separado de uma pessoa humana, mas isso nos levaria muito longe do centro de
nossa investigação. Portanto, teremos de perguntar sobre um número seleto dessas
potências, sobretudo aquelas que demonstrarão ter relação direta com a hipótese
de que a adicção é um hábito racionalmente informado.
Em geral, Tomás de Aquino analisa a pessoa humana em termos de três
“almas”, cada uma das quais consiste em uma variedade de potências: a alma
vegetativa, a sensitiva e a intelectual. Estou interessado na capacidade de
habituação de várias subpotências da alma sensitiva; entre elas, estão as potências
interiores da imaginação, o “sentido avaliador” ( sensus aestimativus) e a memória.
A imaginação é a potência que permite “a retenção e a conservação das formas
[sensíveis]” (1.78.4). Parecemos capazes de desenvolver certos hábitos de
imaginação. A artista habilidosa desenvolveu uma maneira particular de “ver” o
mundo e reter essa visão em sua imaginação. Os artistas não têm uma potência
visiva externa modificada — eles podem ser tão astigmáticos ou míopes quanto
qualquer outra pessoa —, mas eles desenvolveram sua imaginação de tal forma
que “enxergam” um mundo diferente daquele visto pelo não artista. Ou, da
mesma forma, alguém que foi criado lendo boa literatura de fantasia pode
genuinamente estar munido de habilidades imaginativas mais elaboradas e
criativas do que alguém cuja imaginação não foi moldada dessa maneira. É isso
que queremos dizer quando falamos de alguém com uma “imaginação pobre”;
não é que lhe falte a potência da imaginação; mas esta não foi habituada aos tipos
de habilidades que pertencem a alguém com uma “imaginação rica”.
O sensus aestimativus, o “sentido avaliador”, exerce uma função semelhante à
da imaginação. Enquanto a imaginação permite a apreensão de coisas sensíveis, o
sensus aestimativus permite “a apreensão de intenções que não são recebidas pelos
sentidos” (1.78.4). Por “intenções”, Tomás de Aquino entende as qualidades
insensíveis dos objetos, como a bondade ou a maldade de uma coisa, a adequação
ou a inadequação. Ele nos ajuda a compreender a função do sensus aestimativus
mostrando primeiro como o sensus aestimativus deve funcionar nos animais.
Nada no senso perceptivo que um cordeiro tem de um lobo alerta o cordeiro de que
o lobo é mau, um inimigo para ser evitado. Essa informação deve vir de outro
lugar, e Tomás de Aquino diz que vem do sensus aestimativus, pelo qual os animais
“percebem essas intenções apenas por algum instinto natural” (1.78.4).
As pessoas humanas também têm instintos. Os bebês, por exemplo, choram
instintivamente quando um grande estrondo ocorre diante de seus rostos. Em
casos de pânico extremo, os seres humanos podem agir automática e
instintivamente por medo. Mas nossos instintos são rudimentares em comparação
com os de outros animais. Muitas de nossas avaliações imediatas dos objetos e
situações que encontramos são aprendidas, e não instintivas. Nas palavras de
Tomás de Aquino, enquanto os animais percebem o bem e o mal nos objetos por
meio do instinto, “o ser humano os percebe por uma espécie de coalizão de ideias.
Por isso, a potência que se denomina nos animais de estimativa natural é chamada
no homem de cogitativa, porque descobre essas intenções por uma espécie de
comparação” (1.78.4). A potência estimativa cogitativa, portanto, é o local de
uma “interpenetração da razão com o sentido”;29 é o locus paradigmático do
hábito como conhecimento corporificado.
A diferença importante entre a potência estimativa cogitativa e as potências
que pertencem à alma intelectual — razão deliberativa e vontade — é a rapidez
com que a potência estimativa reconhece objetos ou situações como bons ou
maus, adequados ou inadequados. A avaliação parece vir com a experiência
sensorial, embora seja obviamente impossível perceber o bem ou o mal com os
sentidos exteriores. Sempre que existe uma ligação imediata e definida entre a
percepção de um objeto por um sujeito e o apetite do sujeito pelo objeto, é essa
conexão que a potência estimativa explica. Nos animais, a conexão já vem forjada,
um instinto natural. Nos seres humanos, entretanto, o vínculo é estabelecido por
meio da razão, embora não necessariamente no nível da deliberação racional.
Considerando que a estimativa cogitativa raramente age na ausência de
outras potências, incluindo o juízo racional deliberativo, pode ser difícil isolá-la.
Os exemplos mais óbvios são os casos em que, em nosso idioma contemporâneo,
podemos dizer que temos apenas uma “intuição” de que algo é ruim, impróprio
ou inadequado, ou, por outro lado, bom, apropriado ou adequado. Por exemplo,
quando uma pessoa em um jantar carece de tato, sentimos isso imediatamente, sem
nenhuma necessidade de análise discursiva.30 De fato, muitas vezes pode ser
difícil articular por que consideramos tal pessoa sem tato; nós apenas sabemos
quando o vemos. Esse tipo de avaliação obviamente não é uma consequência de
algum processo discursivo explícito, mas também não é um instinto. Isso é
possível em virtude de uma longa história de aprendizagem: aprender boas
maneiras com os mais velhos, observar as reações das pessoas em quem confiamos
em situações sociais, sentir o desprazer dos outros quando cometemos um erro
social, e assim por diante. É por isso que a estimativa é cogitativa: é o efeito de uma
“coalizão de ideias”, uma reserva de sabedoria aprendida que se entrelaçou com os
objetos de nossa experiência. Não é o efeito de condicionamento, que ocorre na
ausência de qualquer apelo à razão, mas ainda assim opera imediatamente e sem
esforço intelectual, como se fosse por condicionamento. Frequentemente, são as
reações decorrentes de nossas estimativas cogitativas que são confundidas com “
instinto”.
A habituação da estimativa cogitativa é o componente mais poderoso da
adicção e da experiência adicta. Embora a linguagem de “estimativa cogitativa”
não seja familiar para nós, vou empregá-la com frequência no restante do
argumento. Em cada caso, poderíamos descrever as coisas de maneira diferente,
falando, por exemplo, das maneiras pelas quais a adicção atrai um agente por meio
de um apelo ao “conhecimento tácito” de um agente — para usar a descrição de
Michael Polanyi — em vez de ao “raciocínio proposicional”.31 A distinção pode
ser destacada de várias maneiras, algumas delas mais intuitivas e familiares para
nós do que a distinção, na psicologia das faculdades humanas de Tomás de
Aquino, entre o intelecto propriamente dito e a estimativa cogitativa. Mas preferi
referir-me à estimativa cogitativa para reiterar que, qualquer que seja a denotação
adequada da fonte desse conhecimento, essa fonte é profundamente suscetível à
habituação. Somos tentados a pensar que a fonte de nosso “conhecimento tácito”
é, em certo sentido, primordial ou incondicionada, mas não é assim.
Passemos, finalmente, à potência da memória, que atua em conjunto com a
imaginação e a estimativa cogitativa para possibilitar a representação de formas e
intenções sensíveis. Não fosse pela potência de memorização, a imaginação e a
estimativa cogitativa teriam pouco valor, pois é por meio da potência de
memorização que realizações passadas da imaginação e da estimativa cogitativa
são exercidas sobre a ação presente. Mas a habituação da memória é
essencialmente derivada das habituações da imaginação e da estimativa cogitativa.
Como uma pessoa passa a “ver” seu mundo de certa maneira, sua memória
registra o mundo de certa maneira e o representa para o agente conforme
informado por sua imaginação habituada.
Antes de avançar na investigação, quero resumir mais um ponto geral sobre
o hábito, a saber, como é causado e como aumenta e diminui. Tomás de Aquino
trata desses assuntos nas questões 51 e 52 da Prima Secundae. Na questão 51,
lemos que os hábitos são formados por atos. Em casos raros, um ato é suficiente
para formar um hábito. Isso é verdade, somos informados, “se o princípio ativo for
de grande poder” (1-2.51.3). Parece possível que um copo de bebida ou uma dose
de heroína, por exemplo, possa ser um princípio ativo suficientemente poderoso
para criar um hábito. No entanto, casos como esse são provavelmente mais raros
do que às vezes somos levados a acreditar. O Grande Livro do AA afirma que,
“embora não haja como provar, acreditamos que, no início de nossos percursos
como alcóolatras, a maioria de nós poderia ter parado de beber. Mas a dificuldade
é que poucos alcoólatras têm vontade suficiente de parar enquanto ainda é
tempo” ( AA 32).
A maioria dos hábitos é causada pela repetição de atos próprios do hábito.
Por exemplo, o hábito da temperança é produzido quando uma pessoa que ainda
não é temperante, no entanto, realiza ações semelhantes às que seriam realizadas
por uma pessoa temperante. Não podemos dizer que a pessoa que pretende ser
temperante deva realizar as mesmas ações que seriam realizadas por uma pessoa
temperante; isso é impossível, uma vez que a pessoa que pretende ser temperante
ainda não tem os desejos que tornam as ações da pessoa temperante aquilo que
são. Não obstante, se atos que são semelhantes em forma externa aos da pessoa
temperante “são multiplicados [,] certa qualidade é formada na potência que é
passiva e movida, qualidade esta que é chamada de hábito” (1-2. 51.2). Se alguém
luta para se tornar um jogador de basquete habilidoso, ele deve repetidamente
agir como jogadores de basquete habilidosos, mesmo que, por não ser habilidoso,
não seja capaz de realizar as ações com o mesmo sucesso, a mesma consistência e a
mesma facilidade que um jogador habilidoso realiza. Com o tempo, entretanto, a
repetição de tais atos instila hábitos no agente, permitindo-lhe jogar basquete
com facilidade e habilidade.
A repetição por si só, entretanto, não é suficiente para produzir hábitos.
Além da multiplicação externa de atos semelhantes, uma “intensidade” interna de
intenção e foco é necessária. Juntamente com a repetição de atos externos,
devemos também corresponder à qualidade interior dos atos, e isso ocorre porque
um hábito não inclui apenas a capacidade de realizar ações externas, mas também
implica algum tipo de continuidade entre as ações de um agente e suas intenções e
seus desejos. Sem atenção à qualidade interna dos atos, podemos, na melhor das
hipóteses, tornar-nos condicionados, mas não habituados. A formação e o
crescimento dos hábitos dependem dessa “intensidade” de intenção e desejo
interior: “Da mesma forma, multiplicando-se os atos, aumenta o hábito — se,
porém, a intensidade do ato for proporcionalmente inferior à do hábito, esse ato
não prepara o hábito para o aumento, e sim para a diminuição” (1-2.52.3). A
habituação, portanto, ocorre por meio do esforço externo e interno: “uanto às
potências apreensivas inferiores, porém, cumpre repetir os mesmos atos muitas
vezes, para produzirem uma forte impressão na memória”; mas também: “A
meditação fortalece a memória” (1-2.51.3).
A exposição de Tomás de Aquino sobre como os hábitos são adquiridos e
perdidos nos dá a compreensão necessária para começarmos a esboçar uma teoria
da recaída. A recaída é o aspecto mais característico e mais perturbador da
experiência adicta. Como pode ser que, após dias, semanas, meses ou mesmo anos
de sobriedade, um ex-adicto possa de repente retornar ao comportamento adicto?
Tomás de Aquino diz que os hábitos são formados sempre que duas
condições são cumpridas. Primeiro, o ato externo deve ser repetido. Segundo,
deve haver atenção adequada à qualidade interior dos atos. A vida de recuperação
requer o desenvolvimento de novos hábitos, mas uma pessoa adicta pode se
envolver nos atos externos necessários ao desenvolvimento de tais hábitos, sem
também realizar o trabalho “interno” necessário ao desenvolvimento deles. Assim,
uma pessoa adicta pode deixar de desenvolver hábitos genuínos de sobriedade,
mesmo quando aparenta estar “trabalhando os passos”. Como a repetição de atos
externos não é suficiente para o aumento de hábitos, os hábitos necessários à vida
em recuperação podem faltar ou degenerar enquanto um agente atua como uma
pessoa em recuperação. Como afirma Robert Brennan: “Tanto na questão do
hábito quanto na questão da perfeição, se não estamos progredindo, estamos
regredindo”.32 Daí o ditado do AA: “Se você está desacelerando na recuperação,
está decaindo”.33 É por isso que muitos dos “passos” do AA exigem um trabalho
interior ou “espiritual”.34 “É fácil abandonar o programa espiritual de ação e
descansar sobre os louros. Estaremos fadados a ter problemas se o fizermos, pois o
álcool é um inimigo sutil” ( AA 85). Deixar de trabalhar obstinadamente os
passos “espirituais” é referido como “dar dois passos” e é visto como a principal
ameaça para a recuperação última e autêntica. Como a recuperação concebida
pelo AA é uma tecnologia de reforma de hábitos, exige atenção vigilante às
dimensões externas e internas da ação sóbria. A recaída é possível, em parte,
porque a vida de recuperação é uma vida de reabituação em vez de meramente
uma vida de repetição de atos de abstinência.

A   

A categoria de hábito fornece uma maneira de pensar sobre os mistérios e as


contradições que atormentam todo discurso sobre adicção que é formulado ou
em termos de doença ou de escolha deliberada. Acontece que a ação humana é em
grande parte o domínio do hábito. Não apenas como respondemos, mas também
a maneira como vemos as situações que enfrentamos e as alternativas que se abrem
para nós está totalmente impregnada de hábito. Embora a linguagem seja um
pouco exagerada, começamos a ver como John Dewey podia afirmar: “Os hábitos
concretos são os meios do conhecimento e do pensamento […] Toda percepção,
reconhecimento, imaginação, recordação, juízo, concepção e raciocínio que é
feito é realizado pelos hábitos concretos. A ‘consciência’, seja como um fluxo, seja
como sensações e imagens especiais, expressa funções dos hábitos, fenômenos de
sua formação, operação, sua interrupção e reorganização”.35
A ação humana costuma ser o ponto de confluência da paixão e do juízo
racional. A incontinência impetuosa é possível nesse ponto por causa da astúcia
da paixão; a paixão se coloca debaixo do nariz do agente deliberativo, distraindo-
o de conectar o juízo universal correto com o juízo particular correto. Mas,
mesmo na ausência de paixão veemente ou resiliente, um agente não está seguro
da ameaça de incontinência, pois a ação humana também é o ponto de
confluência do julgamento racional e do hábito. De fato, antes que a deliberação
comece, hábitos da imaginação, hábitos da estimativa cogitativa, hábitos do
apetite e hábitos do intelecto já estão operando, constituindo os meios pelos quais
o agente discerne sua situação, incluindo as várias ações disponíveis.
Frequentemente, a deliberação racional só é necessária quando há algum conflito
entre esses hábitos. Em circunstâncias normais, os hábitos do agente permitem-
lhe agir bem ou mal com facilidade, sucesso e consistência. No entanto, quando
há um conflito entre hábitos, os hábitos não desaparecem. Em vez disso, eles
disputam a precedência enquanto o agente luta para lidar com sua situação.
Por ser apresentado por Aristóteles e Tomás de Aquino como o território
entre os hábitos do vício e da virtude, é natural imaginar o território da
continência e da incontinência como uma espécie de zona livre de hábitos, em que
os principais concorrentes são a razão pura e os apetites brutos. No entanto, não é
assim. O território da continência e da incontinência é, antes, o território no qual
os hábitos se chocam, negociando e ajustando seu próprio aumento e diminuição,
seu fazer e desfazer. Uma vez que os hábitos são a corporificação do conhecimento
— a reserva de “bolsões de pensamento”36 que subsidiam a atividade humana —,
o território da incontinência é, portanto, o território no qual os saberes se
chocam: os saberes abstratos da deliberação confrontam os saberes corporificados
do hábito. É por isso que a incontinência é possível mesmo na ausência de paixão
veemente ou resiliente.
O fracasso consistente da pessoa adicta, mesmo na ausência de desejo
veemente ou resiliente, pode ser explicado pelo papel que os hábitos
desempenham na formação e execução da agência moral. A incontinência muitas
vezes tem a ver com a astúcia e o poder da paixão, mas a incontinência
qualitativamente distinta conhecida por adicção é, conquanto às vezes um efeito
da paixão, caracteristicamente o resultado da influência do hábito. Os fenômenos
mais desconcertantes da incontinência da experiência adicta podem ser
iluminados à medida que compreendemos as maneiras pelas quais os
conhecimentos corporificados — certos tipos de hábitos — exercem um poder
colossal e de longo alcance sobre a ação humana. Em particular, os hábitos da
imaginação e da estimativa cogitativa desempenham um papel decisivo nos casos
de incontinência adicta que não podem ser explicados referindo-se à paixão. Pois,
uma vez que a ação correta depende, em algum ponto, da integração do
conhecimento deliberativo na ação, ela encontra resistência definida sempre que a
deliberação chega a conclusões que entram em conflito com conhecimentos já
corporificados como hábitos da imaginação ou da estimativa cogitativa.
Assim, nos casos mais intrigantes de comportamento adicto, somos
confrontados não com a razão lutando contra o apetite ou a emoção, mas sim
com a razão flutuante lutando contra a razão enraizada nos hábitos da imaginação
e da estimativa cogitativa. Se a adicção é um hábito, então devemos esperar que os
adictos descrevam suas experiências com a linguagem da compulsão e do instinto,
mas, mesmo assim, encontrem meios não médicos de melhorar seu
comportamento. Se a adicção é um hábito, então não é surpreendente que a
experiência adicta seja descrita como qualitativamente distinta de outros “meros
maus hábitos” (disposições). Se a adicção é um hábito, então a ocorrência
frequente de recaídas depois de dias, semanas ou mesmo anos de abstinência
torna-se menos chocante ou surpreendente. E, se a adicção reside em hábitos da
imaginação e da estimativa cogitativa, então se torna menos surpreendente que as
pessoas adictas continuem a se envolver em comportamentos adictos, mesmo
quando estão racionalmente convencidas de que fazer isso irá prejudicá-las. Sendo
assim, expor as maneiras como a razão se incorpora em hábitos do pensamento e
da imaginação nos permite articular como essas e outras peculiaridades do
comportamento adicto são possíveis.
15 Como traduzir habitus é uma discussão perene entre especialistas em Tomás de Aquino. Na
introdução do St. omas Aquinas: Summa eologiae, vol. 22, Dispositions for Human Acts, trad.
Anthony Kenny (London: Blackfriars, 1964), Anthony Kenny argumenta que o termo deveria ser
traduzido como “ disposição” em vez de “ hábito”. Por razões que se tornarão claras, essa me parece ser
uma tradução dispensável e enganadora. Portanto, apesar de toda possível confusão resultante do uso
contemporâneo da palavra hábito, continuarei utilizando “ hábito” para me referir ao habitus de
Tomás de Aquino.
16 Essa parece ser a suposição guiando a filosofia da ação contemporânea. Encontrei apenas um
único artigo sobre o tema do hábito no que seria considerado a “teoria da ação” contemporânea.
D, Timothy. “Habit” em Time and cause: essays presented to Richard Taylor, ed. Peter van
Inwagen (London: D. Riedel, 1980). Como um exercício em filosofia analítica, no entanto, esse artigo
é limitado ao modo como as pessoas usam a palavra hábito hoje e é, portanto, um exemplo da
concepção reduzida de hábito que Aristóteles e Tomás de Aquino nos ajudam a superar.
17 Tomás de Aquino acredita que existe espaço para hábitos em anjos também (1-2.50.6).
18 Devo essa forma de colocar a questão a W, Paul J. e primacy of love: an introduction to
the ethics of omas Aquinas (New York: Paulist Press, 1992).
19 Ao longo do desenvolvimento dessa definição, apoiei-me em K, George. Habits and
virtues: a philosophical analysis (New York: Appleton-Century-Cros, 1965); B, Robert.
omistic psychology: a philosophic analysis of the nature of man (New York: Macmillan, 1941).
20 Para Tomás de Aquino, o habitus pertence ao gênero da dispositio, mas pode ser distinguido da
dispositio no nível específico (1-2.49.2). Nesse ponto, Tomás segue Aristóteles: “Hábitos são ao
mesmo tempo disposições, mas disposições não são necessariamente hábitos” (Categories 9a10-11,
trad. E. M. Edghill, em e basic works of Aristotle, ed. Richard McKeon [New York: Random
House, 1941]).
21 D, Brian. Introduction to De Malo by omas Aquinas, trad. Richard Regan (Oxford:
Oxford University Press, 2003), p. 31.
22 Em seu Commentary on Aristotle’s Nicomachean Ethics, trad. C. I. Litzinger, O.P. (Notre Dame:
Dumb Ox Books, 1993), #1370, Tomás sugere que um hábito, para Aristóteles, gera uma “quase-
natureza”.
23 S, Francis. Addiction and responsibility: an inquiry into the addictive mind (New
York: Crossroad, 1993), p. 45-46. É importante notar, no entanto, que, apesar dessa rejeição explícita
de pensar a adicção em termos de hábito, Seeburger, em parte porque tem o cuidado de evitar as
categorias de doença e compulsão, não é capaz de evitar voltar a pensar na adicção em termos de
hábito: “A melhor forma de definir o alcoólatra não é como alguém que bebe habitualmente, mas
como alguém que habitualmente escolhe beber” (p. 90). Não tenho certeza se essa é a melhor maneira
de definir o alcoólatra, mas Seeburger está certo de que o alcoolismo tem algo que ver com o hábito.
24 V, Mariana. Diseases of the will: alcohol and the dilemmas of freedom (Cambridge:
Cambridge University Press, 1998), p. 36-37.
25 Ibid., p. 40.
26 Embora o trabalho de William James sobre o hábito tenha sido imensamente importante para o
renascimento do conceito de hábito na psicologia do início do século 20, pouco em seu trabalho sobre
o hábito não foi tratado de forma mais completa por Aristóteles e Tomás de Aquino. Além disso,
preocupa-me que James se concentre muito nos hábitos motores como o paradigma em termos do
qual outros hábitos devem ser explicados. Essa crítica não se aplica a D, John. Human nature and
conduct, ed. Jo Ann Boydston (Carbondale: Southern Illinois University Press, 1983). Embora Dewey
não seja um interlocutor primário para mim, ele oferece o melhor tratamento moderno da categoria
de hábito que conheço.
27 T, Craig Steven. Resilience and the virtue of fortitude: Aquinas in dialogue with the
psycho-social sciences (Washington, D.C.: Catholic University of America Press, 2006), p. 116. Uma
confirmação neurológica fascinante disso vem da médica Christiane Northrup, que diz: “Não apenas
nossos órgãos físicos contêm locais receptores para os neuroquímicos do pensamento e da emoção,
nossos órgãos e sistema imunológico podem eles próprios fabricar esses mesmos produtos químicos.
Isso significa que todo o nosso corpo sente e expressa emoções — todas as partes de nós ‘pensamos’ e
‘sentimos’ […] A mente está localizada em todo o corpo”, citado em , Bruce. Wild hunger:
the primal roots of modern addiction (Lanham: Rowman e Littlefield, 1998), p. 74.
28 Tomás de Aquino, Commentary on Aristotle’s “Nicomachean Ethics”, #513.
29 Klubertanz, Habits and virtues, p. 46.
30 A ilustração foi tirada de Klubertanz, Habits and virtues, p. 34.
31 Sobre a noção de conhecimento tácito, ver P, Michael. e tacit dimension (Garden
City: Doubleday, 1967). Embora Polanyi tenha inovado ao mostrar como o conhecimento tácito não
pode ser mantido separado dos conhecimentos mais “objetivos” buscados na ciência moderna, a
compreensão de que nossa racionalidade se estende além do proposicional ou discursivo remonta pelo
menos a Aristóteles. William James chamou isso de o “sentimento de racionalidade” e ofereceu uma
análise clássica em “e sentiment of rationality”, em e writings of William James, ed. John J. Mc
Dermott (Chicago: University of Chicago Press, 1977).
32 Brennan, omistic psychology, p. 269.
33 M, William Cope; K, Katherine. Broken: my story of addiction and redemption
(New York: Viking, 2006), p. 205.
34 Em irst: God and the alcoholic experience (Louisville: Westminster John Knox Press, 2004),
James Nelson observa que os doze passos alternam entre apelos à aceitação interior e apropriação de
certas verdades e apelos à ação externa. “Há um reconhecimento repetido de que a disposição deve
preceder nossa decisão real ( disposição) de dar os passos que nos abrirão ao dom da sobriedade”, p.
201, n. 41.
35 Dewey, Human nature and conduct, p. 123-24.
36 B, M. F. “Aristotle on learning to be good,” em Essays on Aristotle’s ethics, ed. Amelie
O. Rorty. (Berkeley: University of California Press, 1980), p. 80, descreve certos hábitos como
“bolsões de pensamento que podem permanecer relativamente não afetados por nossa visão geral das
coisas”. Não acho que esses “bolsões” possam permanecer inalterados se realmente estiverem em
conflito com nossa visão geral das coisas, mas certamente podem permanecer inalterados pelo fluxo e
refluxo da deliberação prática.
4
ADICÇÃO E INTEMPER ANÇA
Prazeres sensoriais e bens morais

E         


, tratando de duas outras questões. Primeiro, que tipo de hábito é
adicção? Segundo, para quais fins ou objetivos se dirige o hábito da adicção? As
respostas a essas perguntas desafiarão muitas de nossas caricaturas moralistas de
pessoas adictas e do comportamento adicto. De acordo com a crença popular, a
adicção é uma rejeição ou uma abnegação de uma vida de sério esforço moral, e os
adictos são, portanto, indivíduos moralmente duvidosos. Em oposição a essa visão
padrão, argumento que a adicção é, na verdade, um empreendimento
profundamente moral voltado para a obtenção de determinados bens morais e
intelectuais. Essa análise fornecerá uma avaliação mais verdadeira da atração da
adicção. Também provocará uma resposta mais compassiva às pessoas adictas. Por
fim, tal análise nos colocará em posição de reconhecer as maneiras pelas quais
todos nós somos suscetíveis à adicção e envolvidos em modos de vida que atraem
adicções e as fomentam em nós mesmos e nos outros.

H 

No capítulo anterior, investigamos isoladamente várias potências dos agentes


humanos para descobrir qual delas estaria sujeita à habituação: a imaginação, a
memória e o sensus aestimativus, ou estimativa cogitativa. A investigação
desvendou o que pode ser chamado de “hábitos simples”, hábitos que envolvem
um hábito e uma potência. Na atividade humana concreta, entretanto, as
potências raramente agem isoladamente umas das outras. Certamente, o fato de
que as potências humanas normalmente não funcionam separadamente, mas sim
em cooperação umas com as outras, cria o principal obstáculo para isolar hábitos
simples. A elucidação de hábitos simples, portanto, pode ser apenas preliminar a
uma elaboração mais completa das maneiras pelas quais hábitos simples se
combinam e se unem para formar grupos de hábitos — “hábitos complexos” que
envolvem a cooperação de duas ou mais potências habituadas.
A virtude da temperança nos dá um exemplo da maneira pela qual a ação
humana inteligível na maioria das vezes envolve a integração de uma série de
hábitos simples em um grupo coordenado de hábitos. A temperança é
propriamente uma qualificação do apetite sensorial; tem a ver com possuir os
tipos certos de desejos corporais. Mas, embora a temperança resida
substancialmente no apetite sensorial, ela requer a cooperação ordenada de várias
potências diferentes. Como uma modificação do apetite sensorial, a temperança
denomina a realização de um modo consistente e apropriado de tendência para os
bens sensíveis. A temperança, portanto, requer habituação das paixões e tem
relação não apenas com a ação correta com respeito aos bens sensíveis, mas
também com o desejo correto pelos bens sensíveis; implica uma reação
proporcional ou corretamente comedida a tais bens, tanto em termos de desejo
quanto de ação. Mas como essa resposta proporcional pode ser alcançada?
A temperança não consiste em comer uma quantidade determinada de
comida a cada dia, mas sim em comer uma quantidade adequada de comida,
levando em consideração o indivíduo e suas circunstâncias. Como Aristóteles nos
lembra, a quantidade moderada de comida para o lutador profissional será
excessiva para o iniciante em exercícios atléticos (1106b4-5). Assim, a correta
habituação dos apetites dos sentidos requer a cooperação e a habituação de outras
faculdades humanas, a saber, a habituação do intelecto que torna possível a
determinação formal da quantidade adequada de alimento para o agente. Além
disso, uma vez que a medida adequada é determinada pelo intelecto, essa medida
não pode ser simplesmente imposta ao apetite sensorial diretamente, exceto por
meio de violência contra a agência da pessoa. O intelecto não pode simplesmente
exigir dos apetites sensitivos: “isto é o que você deve desejar”. O vínculo entre a
determinação da medida adequada pelo intelecto e o desejo correto do apetite
sensorial por essa medida — o vínculo que consiste na avaliação da medida
adequada como boa — deve ser estabelecido por meio da habituação da
estimativa cogitativa. A temperança, portanto, requer a coordenação de hábitos
do apetite sensorial, do intelecto e da estimativa cogitativa. Na terminologia
técnica de Tomás de Aquino, o hábito complexo da temperança reside
substancialmente na potência do apetite sensorial e formalmente na potência
intelectiva, incluindo a potência da estimativa cogitativa. Poderíamos continuar a
trajetória e mostrar como a habituação da imaginação e da memória também deve
ser integrada ao grupo de hábitos da temperança.
Tomás de Aquino afirma que os hábitos são necessários porque, “ao dispor o
sujeito a uma das coisas para a qual está em potência, várias coisas devem ocorrer,
capazes de se ajustar de diversos modos para dispor o sujeito bem ou mal para sua
forma ou ação” (1-2.49.4). Tendo observado a complexidade do grupo de hábitos
necessário para tornar a ação temperante consistente e bem-sucedida, estamos em
posição de avaliar a força dessa observação. A pessoa que deseja agir com
temperança, mas carece de qualquer dos numerosos hábitos simples que se
coordenam para formar o grupo de hábitos da temperança, é como o aspirante a
pintor que desenvolveu suas habilidades na paleta sem se preocupar em aprender
as leis básicas de perspectiva que são necessárias para a aquisição da capacidade de
“ver” o mundo de tal maneira que este possa ser reproduzido de forma vívida e
eficaz. Tal pessoa não é um artista, mas apenas alguém que pode reproduzir o
trabalho de outros artistas. Semelhantemente, quem não tem todos os hábitos
simples constitutivos da temperança não pode ser temperante, mas apenas, na
melhor das hipóteses, continente, uma vez que a temperança é um hábito
complexo que requer o alinhamento de numerosas faculdades da pessoa humana.
A maioria dos hábitos mais complexos consiste em pelo menos dois tipos
diferentes: hábitos de domínio e hábitos de automatismo.37 Os hábitos de
domínio são aqueles que podem ser exercidos apenas por meio da operação da
consciência ou volição racional. Hábitos do intelecto (prudência, ciência teórica,
entendimento) e hábitos da vontade (justiça) são os hábitos de domínio mais
óbvios. Não é possível envolver-se na prática habitual da prudência sem, ao
mesmo tempo, envolver um intelecto habituado. Os hábitos de automatismo, por
outro lado, podem ser exercidos na ausência de consciência racional. Hábitos da
imaginação (incluindo hábitos motores) e da estimativa cogitativa são os
candidatos mais óbvios para a categoria de hábitos de automatismo. Chamar esses
hábitos de hábitos de automatismo não significa que eles requeiram ausência de
consciência ou volição para serem exercidos, mas apenas que tal ausência não
inibe a eficácia do hábito.
A distinção entre hábitos de domínio e de automatismo aprofunda nossa
apreciação da estranha afirmação de Aristóteles de que o incontinente visível age
“de maneira contrária à sua escolha” (1148a10). Uma vez que os hábitos de
automatismo podem funcionar independentemente da consciência ou da volição
racional, uma pessoa pode agir voluntariamente e, ainda assim, não agir de acordo
com sua deliberação racional sobre como ela deve agir. Seguindo Aristóteles,
Tomás de Aquino oferece a seguinte metáfora pitoresca da relação entre a razão e
os hábitos de automatismo dos poderes sensoriais: “A razão, na qual está a
vontade, move por seu império o irascível e o concupiscível, não por um primado
despótico, como o servo é movido por seu senhor, mas por um primado real e
político, como os homens livres são regidos por seus governantes, podendo opor-se
a eles. Sendo assim, o irascível e o concupiscível podem contrariar a vontade, e,
por isso, nada impede que por vezes movam a vontade” (1-2.9.2). Em outras
palavras, a vontade não pode simplesmente exigir de imediato que os apetites se
ajustem às suas especificações. A vontade pode, e muitas vezes o faz, sobrepujar
esses apetites, e pode efetuar a transformação gradual desses apetites por meio de
intervenção criativa e intencional, mas a qualquer momento os apetites podem
manifestar tendências habituais que não são diretamente traduzidas da vontade.
Essa metáfora da relação entre apetites racionais e sensíveis é notavelmente
confirmada pela pesquisa neurológica contemporânea. Por exemplo, William
Irvine afirma:
Nossos cérebros não têm um único centro de controle, uma única parte que deseja, mas vários
centros de tomada de decisão que chegam independentemente a decisões sobre o que devemos
fazer conosco. Eles são como generais do exército, cada um com sua própria ideia sobre qual
deveria ser o plano de batalha. Na maioria dos exércitos, um comandante supremo ouve as ideias
de seus generais e decide o que deve ser feito, coordenando, assim, seus comportamentos. Mas, se
um general for incapaz de se comunicar com o comandante supremo, ele pode iniciar uma ação de
combate por conta própria, uma ação que pode estar em desacordo com as ações dos outros
generais e com o plano de batalha estabelecido pelo comandante supremo.38

Com respeito a cada ação realizada isoladamente, o agente está sempre em


posição de ignorar os hábitos de automatismo, mas isso violenta a agência e
desgasta o poder limitado de uma vontade corporificada. Se o agente cede, o
hábito do automatismo não cede. Ele age “livremente” contra as ordens dadas
pelo juízo deliberado, assim como uma pessoa livre pode, em alguns casos, agir em
oposição às demandas de seu governo político. A vontade e o intelecto exercem
controle duradouro sobre nossos apetites sensoriais apenas indiretamente,
modificando gradualmente os juízos corporificados em hábitos da estimativa
cogitativa.
O controle não despótico da razão sobre os apetites sensoriais leva
Aristóteles a enfatizar novamente a maneira pela qual as ações que fluem dos
hábitos de automatismo são, não obstante, voluntárias. Nós temos controle direto
apenas sobre nossas ações imediatas; mas, como os hábitos de ação e paixão se
sucedem na sequência da repetição de certas ações, podemos ser responsabilizados
pelas ações desencadeadas por esses hábitos:

Ações e estados de caráter não são voluntários da mesma forma, pois somos senhores de nossas
ações do início ao fim, se conhecermos os fatos particulares; mas, embora controlemos o início de
nossos estados de caráter, o progresso gradual não é óbvio, nem está na doença; porém, como
estava em nosso poder agir assim ou não, os estados são voluntários (1114b30-1115a3).

Se aplicarmos a categoria de hábito de Aristóteles e Tomás de Aquino à


adicção, seremos capazes de ver como pode ser simultaneamente verdade que uma
pessoa adicta perca o controle direto sobre suas escolhas, mas ainda permaneça
em algum sentido capaz de responder a essa perda de controle direto. Isso dá
acesso a uma maneira de resolver o paradoxo da adicção — a afirmação
aparentemente contraditória de que reconhecer a falta de controle é o primeiro
passo para recuperar o controle sobre o comportamento adicto. Pois as pessoas
adictas de fato carecem dos recursos necessários para exercer controle duradouro
sobre seu comportamento adicto; mas, não obstante, possuem os recursos para
agir indiretamente de maneira que eventualmente desenvolvam os hábitos
necessários para tornar esse controle duradouro uma realidade. Assim, não há
nada filosoficamente incoerente na abordagem do AA, que afirma que as pessoas
adictas carecem de controle imediato sobre seu comportamento e, ainda assim,
podem recuperar esse controle em um contexto não medicalizado.
A adicção, então, deve ser entendida como um hábito complexo, e os
aspectos “desconcertantes” do comportamento adicto tornam-se menores à
medida que adquirimos uma apreciação mais profunda da miríade de ingredientes
que influenciam o funcionamento de um hábito complexo. Tendo visto que a
relação entre um hábito complexo e a vontade deliberativa é oblíqua e indireta, a
recalcitrância do comportamento adicto, mesmo em face da “força de vontade” e
do “bom senso”, torna-se inteligível.
Se a adicção é apropriadamente definida como um hábito complexo, o que
se segue? Até aqui, nossa análise demonstrou que a categoria de hábito fornece
uma forma de pensar sobre a adicção que evita a dicotomia doença/escolha.
Também mostrou que pensar sobre a adicção como hábito realmente nos dá
ferramentas para pensar sobre alguns dos elementos mais intrigantes do
comportamento adicto. Mas acredito que o poder descritivo e explicativo da
categoria de hábito com respeito à adicção pode ser estendido. A maneira de
estender a investigação em outras direções frutíferas é, agora, perguntar sobre o
tipo de hábito complexo que é a adicção. uais potências da pessoa humana estão
implicadas no hábito da adicção, e, mais importante, quais são os bens aos quais o
hábito da adicção é direcionado?

A  
À medida que buscamos compreender que tipo de hábito é a adicção, um ponto
de partida óbvio é o hábito da temperança. Talvez a adicção possa ser entendida
simplesmente como uma falha da virtude da temperança, particularmente como
uma expressão do vício da intemperança.
“Temperança”, diz Aristóteles, “é um meio-termo no que diz respeito aos
prazeres” (1117b24). Mas ela não se preocupa com o prazer em geral, e sim com
os prazeres do corpo. Aqueles que se deleitam excessivamente nos prazeres da
alma, “como o amor à honra e o amor ao aprendizado”, não são chamados de
intemperantes nem autoindulgentes (1117b27-32). Além disso, a temperança não
se preocupa com todo prazer sensível, “pois aqueles que se deleitam em objetos
visíveis, como cores, formas e pintura, não são chamados de intemperantes nem
autoindulgentes”, embora seja possível deleitar-se com essas coisas em um grau
excessivo ou deficiente (1118a3-7). A temperança está fundamentalmente
preocupada com os prazeres que os seres humanos compartilham com os animais,
a saber, os do tato e do paladar, mas está especialmente preocupada com esses
prazeres à medida que são desfrutados “no caso da comida, da bebida e da relação
sexual” (1118a31-33).
A temperança é, portanto, a virtude que permite a uma pessoa atingir o
desejo e a atividade proporcionais com respeito à comida, à bebida (pelo que
Aristóteles se refere principalmente a entorpecentes) e ao sexo. Como já foi
mencionado, a virtude da temperança reside substancialmente no apetite
sensorial e formalmente na potência intelectiva. A temperança é uma virtude
necessária para uma vida boa, porque o apetite sensível não é em si racional. Na
medida em que as pessoas humanas são criaturas racionais e a vida boa é uma vida
de acordo com a razão, os apetites sensíveis devem se conformar à razão: “Mas o
homem, como tal, é um ser racional e, consequentemente, os prazeres que lhe
convêm são os conformes à razão. E desses a temperança não o priva, mas sim dos
que a contrariam” (2-2.141.1). A temperança é a virtude que atinge essa
conformação dos apetites sensitivos à razão.
Três espécies de temperança correspondem aos três objetos da temperança:
comida, bebida alcoólica e sexo. Abstinência é o nome da virtude específica da
temperança que denota a moderação correta com respeito à alimentação;
sobriedade, com relação à bebida alcoólica; castidade, com respeito ao sexo. Uma
pessoa pode carecer dessas virtudes por desejar e buscar excessiva ou
deficientemente cada um desses bens sensíveis. Ambos os extremos contam como
vício, embora o desejo deficiente com relação a qualquer um desses bens sensíveis
seja tão raro que não tenha um nome reconhecível. Aristóteles diz que a pessoa
que deseja e busca alimentos, bebidas ou sexo de maneira deficiente é
“insensível”.39 A frigidez com relação ao sexo provavelmente representaria a forma
mais comum de insensibilidade. Mas, como diz Aristóteles, “é bastante raro
encontrar pessoas que busquem deficientemente os prazeres e se deleitem menos
do que deveriam; pois tal insensibilidade não é humana” (1119a5-7). O extremo
do excesso é o vício mais comum, tão comum que tem um nome aceito com
relação a cada um dos objetos do desejo sensorial. O desejo e a busca excessivos
por comida são chamados de gula; por bebida alcoólica, embriaguez; por sexo,
luxúria.
Se a adicção deve ser comparada ao vício da intemperança, provavelmente
será por causa de uma correlação substancial entre a adicção e o vício da
embriaguez, o qual pode ser entendido como o desejo e a busca habitualmente
excessivos dos prazeres sensíveis associados aos entorpecentes, prazeres estes
supervalorizados como adequados à boa vida. Para que a adicção se encaixe nessa
conta, devemos ser capazes de descrevê-la como o desejo e a busca habitualmente
excessivos dos prazeres sensíveis associados a certos objetos entorpecentes, prazeres estes
que são supervalorizados como adequados à boa vida.
Essa descrição faz jus ao fenômeno da adicção? Afirmo que não, pelo
seguinte motivo: a intemperança é o amor desordenado por certos objetos em
razão dos prazeres sensoriais que eles proporcionam, ao passo que a adicção é o
amor desordenado por certos objetos por outras razões que não o prazer sensorial.
Na verdade, as pessoas podem ser adictas a uma substância mesmo na ausência de
prazeres sensoriais e, às vezes, em face de fortes aversões sensoriais ao objeto.
Lembre-se, por exemplo, do testemunho do alcoólatra incontinente visível
relatado no capítulo 2: “Eu sabia que começaria a beber aquela garrafa de uísque
novamente, embora eu ainda estivesse muito mal da noite anterior. Eu também
sabia que não queria beber. Sentada naquele sofá, percebi que o velho ‘eu poderia
parar se quisesse, só não quero’ não se aplicava aqui, porque eu não queria beber.
Eu me vi levantar do sofá e comecei a me servir uma bebida” ( AA 324). Relatos
semelhantes aparecem constantemente nas memórias de outras pessoas adictas.
Esses testemunhos vão ao âmago da experiência da adicção. Eles não poderiam ser
dados por beberrões imoderados que simplesmente amam beber demais. Mesmo
os beberrões que eram intemperantes e que estão trabalhando para superar sua
intemperança não poderiam relatar que não tinham desejo de beber; só poderiam
relatar que gostariam de não desejar o álcool como desejavam.
Na literatura sobre adicção, esse fenômeno é chamado de “ ambivalência” e
é caracterizado por uma mistura de desejo e aversão em relação ao objeto viciante.
Como é possível que uma pessoa deseje e deteste simultaneamente o mesmo
objeto? Oferecer uma resposta a essa pergunta nos permitirá compreender melhor
a diferença entre intemperança e adicção. Tomás de Aquino afirma: “O apetite é
duplo, a saber, o sensível e o intelectivo, que é chamado de vontade. O objeto de
cada um é o bem, mas de maneiras diferentes: pois o objeto do apetite sensível é
um bem apreendido pelos sentidos, enquanto o objeto do apetite intelectivo ou
vontade é um bem sob o aspecto universal do bem, conforme pode ser apreendido
pelo intelecto” (1.80.2). Simplificando, os objetos do apetite sensível são os bens
dos prazeres sensoriais, ao passo que os objetos do apetite intelectivo são outros
tipos de bens, intelectuais ou morais, por exemplo.
Lembremos que a intemperança é um hábito substancialmente do apetite
sensível. Portanto, se a adicção deve ser assimilada ao hábito da intemperança,
devemos descobrir que ela tem relação principalmente com um desejo
desordenado por certos prazeres sensoriais associados a objetos viciantes. Mas,
embora muitas adicções sejam iniciadas por meio do desfrute dos prazeres
sensoriais associados ao objeto viciante, a adicção avançada raramente tem ligação
com os prazeres dos sentidos. Veja, por exemplo, os seguintes testemunhos.

Um grupo de colegas entrou em um carro para ir almoçar em algum lugar. Eu fui o último e me
sentei espremido entre vários outros no banco de trás. Um conhecido acendeu um cigarro que
estava começando a incomodar meu estômago. Pedi a ele que abrisse a janela. Mas ele
imediatamente a abriu e jogou fora o cigarro. Eu disse algo como: “Sinto muito estragar seu
prazer”. Ele respondeu decididamente: “Não é prazer, é fumar”.40

Certamente, beber não era mais divertido. Há muito tempo havia deixado de ser divertido.
Algumas taças de vinho com um amigo depois do trabalho ainda podiam ser reconfortantes e
familiares, mas beber era tão necessário, tão visceral e compulsivo, que o prazer foi quase acidental.
O prazer simplesmente não era o ponto.41

Essas pessoas adictas não são movidas pela busca de prazeres sensoriais, que
são considerados irrelevantes ou totalmente ausentes. Parece muito mais provável,
então, que os bens que as pessoas adictas buscam por meio da prática de suas
adicções sejam mais bem compreendidos como “objetos do apetite intelectivo ou
da vontade”. Em nenhum lugar essa afirmação é mais indiscutivelmente evidente
do que nos testemunhos frequentes de pessoas adictas que desenvolveram uma
adicção não por meio do portal do prazer sensorial, mas a despeito da manifestada
miséria sensorial ocasionada por seu primeiro contato com o objeto viciante. Os
seguintes testemunhos de três pessoas adictas só podem soar grotescos para
aqueles que não experimentaram o poder dominante de uma adicção profunda.

Não me lembro de quantos drinques tomei, e minhas lembranças dos eventos reais do resto da
noite são confusas, mas eu me lembro do seguinte: quando estava bebendo, eu estava bem. Eu
entendi. Tudo fazia sentido. Eu poderia dançar, falar e desfrutar de estar na minha própria pele.
Era como se eu fosse um quebra-cabeça inacabado com uma peça faltante; assim que tomei um
gole, a última peça instantaneamente e sem esforço se encaixou no lugar… Lembro-me de ter
pensado, enquanto me ajoelhava para vomitar na cabine, que isso era fantástico. A vida era ótima;
eu havia finalmente encontrado a resposta: álcool! ( AA 320).

Tudo mudou com minha primeira dose, aos dezesseis anos. Todo o medo, timidez e doença
evaporaram com o primeiro gole ardente de uísque direto da garrafa durante uma invasão a um
armário de bebidas em uma festa do pijama. Fiquei bêbada, desmaiei, vomitei, tive náuseas e fiquei
extremamente doente no dia seguinte, e sabia que faria isso de novo. Pela primeira vez, me senti
parte de um grupo sem precisar ser perfeita para obter aprovação. ( AA 328).

Fiz uso das drogas desde o início, mas várias pessoas que mais tarde se tornaram adictas lhe
dirão que na primeira vez, na segunda, ou mesmo toda vez que ficaram chapadas, vomitaram. Você
pediria uma “entrada” novamente se tivesse vomitado na primeira vez que a comeu? Você iria para
ruas perigosas em noites frias para fazer compras? Correria o risco de ser preso por isso?42

Perda de memória, desmaios, vômitos, ânsias e indisposição severa não são


normalmente contados entre a variedade de prazeres sensoriais. No entanto, essas
pessoas adictas buscam seus objetos viciantes porque acreditam que eles oferecem
bens definidos, bens como a capacidade de se comunicar, estar à vontade consigo
mesmo, não ter medo e fazer parte de uma comunidade. Esses bens parecem mais
objetos do intelecto do que do apetite sensível; são tipos de bens morais e
intelectuais.
A adicção, portanto, simplesmente não se encaixa na conta da
intemperança, a qual tem a ver com a busca dos prazeres sensoriais do paladar e
do tato. Simplificando, a intemperança pode ser entendida como uma forma de
hedonismo, enquanto a adicção não. Na verdade, a vida da pessoa adicta pareceria
terrível para alguém que buscava maximizar a gratificação sensorial imediata. O
beberrão intemperante experiente irá de fato moderar seu consumo de álcool,
embora o “meio-termo” que ele busca seja determinado por um tipo de cálculo de
prazer sensorial em vez de, como no caso daquele que bebe moderadamente, uma
deliberação prudente sobre o florescimento da vida humana. Entretanto, o
alcoólatra não conhece moderação, embora possa saber que a moderação pode de
fato aumentar seu prazer estritamente sensorial ao pelo menos evitar a variedade
de misérias sensoriais que o alcoólatra inveterado suporta.
É porque a adicção não diz respeito aos prazeres sensoriais, mas, antes, aos
bens intelectivos, que pessoas adictas costumam ser ambivalentes quanto à droga
de sua escolha. A ambivalência é possibilitada pela natureza abstrata dos bens
intelectivos. O alcoólatra pode pensar que o uísque é bom de um jeito, mas ruim
de outro: bom para afogar a solidão, bom para criar coragem, e assim por diante
(bens morais, todos); ruim para o bem-estar espiritual, ruim para o
relacionamento com o cônjuge, e assim por diante (males morais, todos). Mas o
beberrão intemperante pensa na cerveja apenas em termos de prazer, que, como
um bem concreto, não é suscetível a interpretações contrárias. O prazer ruim é,
estritamente falando, uma contradição em termos. A diferença crucial entre
intemperança e adicção, portanto, está nos diferentes tipos de bens que cada uma
busca. A intemperança busca bens sensoriais; a adicção busca bens morais e
intelectuais.
Como os bens buscados por meio da prática de adicções são morais e
intelectuais, enquanto os bens buscados por meio de comportamento
intemperante são sensoriais, pessoas adictas e pessoas intemperantes respondem
de maneiras diferentes à vergonha e à culpa. Tomás de Aquino considera a “
vergonha” uma das duas “virtudes secundárias” ou subvirtudes integrais da
virtude da temperança, juntamente com honestas, um senso de beleza moral ou
decoro, cuja violação provoca como resposta a vergonha (2-2.143.1). A vergonha
“é o medo de algo vil, isto é, daquilo que é infame” (2-2.144.1). Tomás de Aquino
diz que a intemperança é controlada exatamente à medida que um agente se sente
envergonhado de seu comportamento intemperante. Assim, existe uma relação
inversa entre a vergonha e a intemperança: quanto mais pronunciada a
experiência da vergonha, menos pronunciada a tentação de agir com
intemperança.
Mas, no caso da adicção, vemos precisamente a relação oposta entre
vergonha e comportamento adicto. Para pessoas com adicções, a vergonha não é
um freio ao comportamento adicto, mas sim um ímpeto para ele. Vergonha e
culpa são deficiências morais que, na mente adicta, podem ser corrigidas por meio
do comportamento adicto. Descrevendo o caráter autodestrutivo da vergonha e
da culpa de um adicto, William Cope Moyers escreve: “A vergonha e a culpa
aumentaram. Minha autoestima desapareceu. A cocaína e a cerveja amenizaram
essas emoções. Comecei a sentir vergonha. Não tinha nenhuma autoestima […]
Procurei a única ajuda que pensei estar disponível — cerveja e cocaína”.43 Como a
necessidade subjacente ao comportamento adicto é uma necessidade moral e
intelectual, a dor da vergonha e da culpa apenas aumentam um senso de carência
moral e intelectual. O adicto em heroína em recuperação William Pryor explica:
“É progressivo porque a adicção se alimenta de si mesma, porque a dor anterior
foi subsumida na dor da adicção; e, quanto maior essa dor, maior a quantidade de
coisas que precisa ser ingerida, causando mais dor”.44 uanto mais uma pessoa
adicta usa a droga, mais vergonha e culpa ela sente. A dor original é composta da
dor da vergonha e da culpa, e a pessoa adicta usa mais para anestesiar a dor.
Se a adicção não deve ser equiparada ao vício da intemperança, é porque
aquela não parece estar essencialmente relacionada com os bens que envolvem a
virtude da temperança, nem é uma resposta ao mesmo tipo de necessidade que
motiva a ação intemperante. Mas os testemunhos de pessoas com adicções deixam
claro que ela está poderosamente enraizada na busca de certos bens, os quais, para
os adictos, parecem ser exclusivamente acessíveis por meio da prática de suas
adicções.
Adicções são como virtudes e vícios nesse aspecto, uma vez que virtudes e
vícios são hábitos que capacitam as pessoas a buscarem, de forma consistente, com
sucesso e com facilidade, vários tipos de bens. Simplificando, virtudes e vícios são
aqueles hábitos por meio da prática dos quais os seres humanos almejam a boa
vida, a vida de felicidade ou, na terminologia de Aristóteles, a vida de eudaimonia.
Os vícios diferem das virtudes não pelo papel formal que desempenham na vida
dos agentes morais, mas simplesmente pelo fato de permitirem ou não que uma
pessoa alcance uma vida de genuína eudaimonia. Em outras palavras, a pessoa
virtuosa difere da pessoa viciosa não porque aquela almeja a eudaimonia e esta
não, mas porque uma de fato avança na vida de eudaimonia e a outra não. Como
Tomás de Aquino coloca de forma útil, pessoas viciosas são aquelas que “se
afastam daquilo em que realmente consiste seu fim último: mas não se afastam da
intenção do fim último, cuja intenção elas procuram erroneamente em outras
coisas” (1-2.1.7, grifo meu). Onde quer que tenhamos hábitos de paixão e ação
que se conectem com a intenção de um agente por uma boa vida para os seres
humanos, estamos no domínio dos hábitos de virtude e vício. E, como os trechos
anteriores deixam claro, adicções são o locus de tal conexão. Portanto, cabe a nós,
ao tentarmos articular o tipo de hábito complexo que é a adicção, investigar mais
cuidadosamente a maneira como a adicção pode ajudar um agente a buscar ou
obter uma variedade de bens que são considerados parte integrante da melhor
vida possível para os seres humanos.
Não somos ensinados nem inclinados a pensar nas pessoas adictas como se
estivessem ativa e apaixonadamente envolvidas na busca de uma boa vida. Temos a
tendência de pensar nelas como pessoas que saíram do jogo ou que estão
decididamente empenhadas em autodestruição. Mas não é assim. Sustento que o
comportamento adicto pode nos revelar mais do que quase qualquer outro tipo
de comportamento humano, aquilo que os seres humanos desejam mais
profundamente.

37 K, George. Habits and virtues: a philosophical analysis (New York: Appleton-
Century-Cros, 1965), p. 95.
38 I, William. On desire: why we want what we want (Oxford: Oxford University Press,
2006), p. 95.
39 De acordo com Tomás de Aquino, “Se um homem conscientemente se abstivesse de vinho a
ponto de molestar gravemente a natureza, ele não estaria livre do pecado” (2-2.150.1). Stanley
Hauerwas mencionou-me o ditado semelhante dos rabinos: “Deus não considerará inocente aquele
que não desfrutou de todos os prazeres legítimos”.
40 W, Bruce. Wild hunger: the primal roots of modern addiction (Lanham: Rowman and
Littlefield. 1998), p. 145.
41 K, Caroline. Drinking: a love story (New York: Dial Press, 1996), p. 210.
42 M, Ann. How to stop time: heroin from A to Z (New York: Basic Books, 1999), p. 145.
43 M, William Cope; K, Katherine. Broken: my story of addiction and redemption
(New York: Viking, 2006), p. 147.
44 P, William. Survival of the coolest: an addiction memoir (Bath: Clear Press, 2003), p. 213.
5
ADICÇÃO E MODERNIDADE
O adicto como profeta involuntário

E      . Ou, pelo menos, se eles existiam,
ninguém conseguiria saber. A noção de “adicto” e os conceitos correspondentes
de adicção e substâncias viciantes são próprios da era moderna. O primeiro uso
registrado de addict [adicto] como substantivo data de 1899.45 A noção
contemporânea de adicção é distintamente norte-americana em sua
ancestralidade e foi desenvolvida e refinada no contexto do movimento de
temperança do século 19.46 Em resposta ao crescente estigma social em torno da
embriaguez e à pressão social correspondente para se abster de álcool, vários
norte-americanos começaram a relatar que experimentaram um desejo
avassalador pelo álcool. O conceito moderno de adicção foi elaborado como uma
resposta tanto a esses testemunhos quanto às exigências do crescente movimento
de temperança. Em geral, foram os médicos que desenvolveram o conceito
moderno de adicção, e é num artigo do Dr. Benjamin Rush, publicado em 1805,
que encontramos a primeira descrição de “adicção” como perda de controle sobre
a decisão de beber.47
Mas, se antes não havia adictos, hoje é possível acreditar que não há
ninguém que não seja adicto. A formulação de Rush do conceito de adicção foi
lentamente assimilada pela consciência pública e, desde então, tem sido reforçada
e ampliada para cobrir um catálogo cada vez maior de adicções. Agora, todos nós
vivemos em uma “sociedade adicta”.48 “A adicção é o nosso modo de vida.”49 E “a
adicção profunda é a doença sagrada de nosso tempo”.50 Tal visão a respeito da
ubiquidade da adicção tornou-se quase de rigueur na vida contemporânea,
especialmente nos Estados Unidos.
Os números por si só são alarmantes. Apesar da avalanche de educação e
publicidade antitabaco, aproximadamente um em cada três norte-americanos é
adicto a nicotina de alguma forma. Todos os anos, quase 35 milhões de norte-
americanos tentam parar de fumar; menos de 15% conseguem.51 Um em cada
oito norte-americanos é diagnosticável com adicção a drogas ilícitas ou álcool.52
Paradoxalmente, apesar de uma diminuição no consumo total de álcool e
narcóticos, as estimativas do número de adictos em substâncias nos Estados
Unidos aumentaram constantemente nas últimas décadas. Um número cada vez
maior de norte-americanos está recebendo prescrição de tratamento para
adicções, ou eles próprios estão procurando tratamento. Além disso, os
estabelecimentos médicos estão expandindo o escopo da adicção em um ritmo
veloz, regularmente cunhando novas adicções e, assim, criando, aparentemente do
nada, vastas populações de novos adictos. Mesmo aqueles de nós que até agora
conseguiram evitar um diagnóstico definitivo, no entanto, tendem a ver nosso
próprio comportamento através das lentes do conceito de “ser viciado”. Assim,
tememos que possamos estar ficando adictos em várias coisas: o que antes era um
guloso agora é um viciado em chocolate; o que antes era um longo dia no
escritório agora é workaholism;53 o que antes era luxúria agora é vício em sexo.
Todos nós sabemos que os casos de adicção saíram do controle em nossos
dias. Mas por quê? O que exatamente há em nossa época ou cultura que parece
tornar a adicção em si uma opção tão atraente, e o conceito de adicção uma forma
natural de interpretar e descrever nossos comportamentos e experiências? O
restante deste capítulo buscará desvendar as raízes peculiarmente modernas da
adicção contemporânea, traçando a explosão moderna da experiência adicta e da
linguagem de adicção de volta às mudanças sísmicas nos arranjos sociais e na
cosmovisão que acompanharam o surgimento do modo de vida moderno.
Lembre-se de que o objetivo do capítulo anterior foi estabelecer uma tese
inicialmente contraintuitiva, a saber, que a adicção não pode ser analisada como
um exemplo extremo do hábito da intemperança. Enquanto pessoas
intemperantes são movidas pela busca de bens sensoriais, pessoas adictas são
movidas pela busca de bens morais e intelectuais. Com base nesse entendimento,
defendo neste capítulo que a adicção está completamente presente na vida
contemporânea tanto como um tipo de comportamento quanto como uma forma
de conceituar o comportamento, porque ela torna acessíveis certos tipos de bens
morais e intelectuais que os desenvolvimentos da modernidade tornaram difíceis
de alcançar de outra forma.
À primeira vista, tal afirmação parece implausível, porque sugere que a
adicção é uma atividade com fins construtivos. Mas é exatamente isso que
argumentarei. Para apresentar esse argumento, volto-me novamente ao
pensamento de Aristóteles, a fim de iluminar uma ruptura profunda entre as
maneiras pré-modernas e modernas de pensar sobre a vida moral. Enquanto o
pensamento moral pré-moderno se caracterizava por um apelo recorrente a uma
abordagem robusta e amplamente sustentada do florescimento humano, o
pensamento moral moderno é caracterizado pela falta de qualquer contexto
compartilhado análogo para conceber uma compreensão da boa vida para as
pessoas humanas. A adicção, afirmo, é o hábito definitivo de nosso tempo
exatamente porque oferece a resposta mais poderosa disponível a essa carência
peculiarmente moderna.

A    

Segundo Aristóteles, “o bem humano é uma atividade da alma de acordo com a


virtude e, se houver mais de uma virtude, de acordo com a melhor e mais
completa” (1098a17-19). Dada essa afirmação, seria de se esperar que a Ética a
Nicômaco nos ensinasse exatamente o que é essa virtude “melhor e mais completa”,
mas uma resposta incontestável nunca é fornecida. Aristóteles parece oferecer
duas respostas diferentes para a pergunta, respostas que parecem estar em tensão
uma com a outra.
Na maior parte da Ética, Aristóteles desenvolve a visão de que a boa vida
para os seres humanos se realiza por meio de atividades práticas virtuosas —como
ter uma família, cultivar amizades e governar cidades. As virtudes morais e
intelectuais são desenvolvidas por meio dessas atividades práticas, e o crescimento
nas virtudes constitui uma boa vida. As virtudes são constitutivas da boa vida
porque facilitam as atividades práticas da família, da amizade e da vida política, e
porque valem a pena por si mesmas: “Ora, tal felicidade [eudaimonia]54 é
considerada acima de tudo, pois a escolhemos sempre por ela mesma e nunca em
virtude de outra coisa. Mas honra, prazer, razão e todas as virtudes que
escolhemos de fato por elas mesmas (pois, mesmo que nada resultasse delas, ainda
assim deveríamos escolhê-las), nós as escolhemos também em razão da felicidade,
julgando que por meio delas seremos felizes” (1097a37-1097b5).
Mas no livro X da Ética a Nicômaco, e também na Ética a Eudemo,
Aristóteles muda de marcha e afirma que a boa vida só pode ser alcançada por
meio da prática da pura contemplação da divindade ( theoria). Aqui, Aristóteles
afirma que as virtudes morais e intelectuais são insuficientes para a obtenção da
felicidade. Essas virtudes e as atividades práticas que elas acarretam devem ser
ordenadas em direção ao objetivo supremo de contemplar e servir a Deus:
“Portanto, qualquer modo de escolher e adquirir coisas boas por natureza —
sejam bens corporais, riquezas, amigos, sejam outros bens — promoverá melhor a
contemplação de Deus, que é o melhor modo, e esse padrão é o melhor; e
qualquer modo de escolha e aquisição que por deficiência ou excesso nos impeça
de servir e contemplar a Deus é mau”.55
Podemos destilar dessas diferentes imagens duas questões que podem ser
tratadas separadamente. Em primeiro lugar, se as virtudes morais são de algum
modo constitutivas da boa vida, como elas devem ser internamente ordenadas
para a realização dessa vida? Em segundo lugar, se a contemplação do divino é um
componente necessário da eudaimonia, como esse aspecto mais transcendente da
boa vida pode ser integrado ao exercício prático das virtudes morais?
Essas duas questões definem a trajetória para o restante do argumento deste
livro. A primeira metade do livro estabeleceu que a linguagem do hábito é
indispensável para descrever corretamente a ação adicta. O restante emprega o
entendimento de que a adicção é um hábito, a fim de explorar por que esse é um
fenômeno contemporâneo tão predominante e poderoso. Embora eu tenha usado
questões que surgem da Ética de Aristóteles para preparar o cenário, questões
semelhantes surgem em qualquer tentativa de declarar o significado da ação
humana. A ação humana é ordenada para certos propósitos e fins, para um telos
especificável? E pode a ação humana levar-nos além do plano imanente em
direção a alguma participação com o que é transcendente ou divino? Aristóteles e
Tomás de Aquino são interlocutores úteis nesse ponto, porque suas respostas a
essas perguntas diferem de forma marcante das respostas fornecidas pelas formas
predominantes de pensamento moderno.
Minha tese neste capítulo é que a adicção pode ser interpretada como uma
resposta moderna disponível à falta de qualquer consenso comum acerca do telos
da ação humana. A melhor maneira de ver o quão empobrecida uma pessoa
moderna é a esse respeito é explorar o contexto cultural e social de Aristóteles,
que escreveu, em contraste, em uma época em que algumas coisas sobre a
“bondade” e os fins da vida humana podiam ser dadas como certas.
A vida política da cidade-estado grega de Aristóteles girava em torno de
uma concepção compartilhada acerca do que tal comunidade política deveria
alcançar para tornar acessíveis a seus cidadãos os bens constitutivos de um modo
de vida digno. E a polis foi organizada de tal forma que esses bens e a correta
ordenação deles pudessem ser alcançados e conquistados por meio da excelência
dentro de uma série de papéis sociais e modos de vida específicos. Dada a idade, a
classe social, a escolaridade e outros elementos da pessoa, existia um acordo
generalizado e coletivo sobre o papel social que a pessoa devia exercer ou cumprir,
fosse a vida de artesão, de militar, de estadista ou a de filósofo. Os cidadãos
podiam reconhecer o fracasso ou o sucesso tanto no nível do arranjo político
quanto no nível do esforço individual, porque compartilhavam uma concepção
substantiva de quais tipos de práticas e relacionamentos eram necessariamente
constitutivos de uma vida de florescimento.
As investigações éticas que Aristóteles realiza na Ética a Nicômaco e em
outros lugares tomam como ponto de partida esse entendimento compartilhado.
Ele não tenta estabelecer do zero um padrão ou princípio organizador que possa
questionar ou reformar radicalmente esse entendimento compartilhado. Antes,
ele procura escavar e declarar os pressupostos filosóficos sobre a natureza da
eudaimonia, os quais essa visão compartilhada já havia incorporado
concretamente. Assim, por exemplo, quando Aristóteles frequentemente coloca
na Ética a Nicômaco a questão “O que nós dizemos em tal assunto?”, ele não está
invocando o “nós” real como uma forma polida de retórica. Em vez disso, como
Alasdair MacIntyre explica, Aristóteles pergunta “O que nós dizemos?” em vez de
“O que eu digo?” porque ele “não acredita estar inventando uma teoria das
virtudes, mas estar expressando uma teoria implícita no pensamento, na elocução
e nos atos dos atenienses instruídos”.56
A experiência moderna da adicção pode ser tornada inteligível contra o
pano de fundo histórico da pólis de Aristóteles. Em contraste com a pólis grega, a
vida social moderna é caracterizada pela ausência de qualquer relato amplamente
compartilhado da vida feliz. Para usar um termo popular, a vida social moderna é
“pluralista” quanto à questão do que constitui a boa vida para os seres humanos;
não há nenhuma resposta consensual para a pergunta. Se for esse o caso, então a
questão da correta ordenação das atividades e outros bens da vida é uma questão
que se torna explícita e intensificada principalmente no contexto moderno. À
medida que as pessoas modernas se veem como agentes morais diante de uma
variedade de modos de vida mutuamente exclusivos, as questões sobre a ordem
correta dos bens e das atividades de nossas vidas tornam-se urgentes e mais
agudas. A adicção, afirmo, fornece um tipo de resposta a essa crise.
Se estou correto em minha afirmação de que a adicção se torna mais
atraente à medida que carecemos de outros meios inteligíveis de ordenar nossas
vidas, então deveríamos esperar que as adicções se reúnam em torno de culturas
ou subculturas em que existe a maior discrepância entre as formas tradicionais de
conceber e ordenar vida e as possibilidades contemporâneas abertas a essas
culturas ou subculturas. Assim, não devemos surpreender-nos ao descobrir que
nos Estados Unidos, por exemplo, a adicção é desproporcionalmente prevalente
em reservas nativas americanas, onde poucos dos modos tradicionais de
compreensão e ordenamento da vida moral permanecem, e as possibilidades
oferecidas estão em total descontinuidade com essas formas tradicionais.57 De
acordo com a Pesquisa Nacional sobre Uso de Drogas e Saúde, de 2008,
conduzida pelo Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados
Unidos, os “índigenas norte- -americanos” têm as taxas de adicção mais altas
(11,1%) por etnia nos Estado Unidos.58 Estudiosos que pesquisam sobre adicção
têm tentado rastrear tais disparidades estatísticas olhando para as diferenças na
genética étnica. Em vez disso, proponho que a prevalência da adicção é correlativa
a desafios específicos que surgem sempre que os modos modernos de conceber a
vida moral estão em desacordo com as formas tradicionais da tarefa moral. Para
mostrá-lo, elucidarei a conexão entre certas características inter-relacionadas da
vida moderna — arbitrariedade, tédio e solidão — e a prevalência de adicções
profundas na vida moderna.

A 

Não sou um historiador, e, inevitavelmente, meu relato das diferenças entre os


contextos sociais pré-modernos e modernos será simplificado. Estou ciente, por
exemplo, de que o contexto antigo, na prática, provavelmente não era tão
harmonioso quanto Aristóteles teorizou (na verdade, o próprio Aristóteles estava
ciente disso) e de que o contexto moderno, na prática, provavelmente não é tão
fragmentado como alguns de seus críticos sugerem (e como alguns de seus
apoiadores celebram). Não obstante, um ateniense que lesse Aristóteles o teria
achado familiar, assim como John Rawls, por exemplo, parece estar descrevendo
mais ou menos “nosso mundo”. Há uma diferença radical entre os dois, e acho que
temos muito que aprender declarando as diferenças com clareza.
O que quer que seja a sociedade ocidental contemporânea, ela não é a pólis
grega. Alguns críticos da modernidade lamentam esse fato, e os apoiadores o
celebram, mas pelo menos nesse fato ambos estão de acordo. Como avaliar “o
moderno” é um problema de enorme complexidade, e assim como não existe um
único “Iluminismo”, também não existe uma única “ modernidade”. Podemos, no
entanto, ensaiar uma generalização sobre a vida moderna em relação à qual há
ampla unanimidade, quer o movimento do antigo para o moderno seja
interpretado como um avanço, quer como um declínio. A pólis grega foi
organizada em torno de uma visão compartilhada acerca do que constitui a boa
vida para os seres humanos e de um conjunto relativamente rígido e hierárquico
de papéis sociais nos quais as pessoas nasciam ou eram treinadas. A cultura da
modernidade, por outro lado, é caracterizada pela proliferação de visões acerca do
que constitui a boa vida para os seres humanos e, consequentemente, uma
paisagem moral na qual as pessoas se encontram arbitrariamente livres para
“perceber” a si mesmas em busca de um ou vários “modos de vida” díspares. E,
portanto, enquanto a pólis grega tinha como premissa a prioridade do bem
comum, a cultura moderna tem como premissa a prioridade do bem individual.
Como Alasdair MacIntyre afirma: “No raciocínio prático aristotélico, é o
indivíduo enquanto cidadão que raciocina […] Mas, no raciocínio prático da
modernidade liberal, é o indivíduo enquanto indivíduo que raciocina”.59
A mudança que MacIntyre alega não é o efeito de uma decisão filosófica “de
cima para baixo” de priorizar o indivíduo sobre o comunitário. Não é como se
alguém repentinamente decidisse que o indivíduo deveria ser a medida
determinante da comunidade, e não o contrário. Em vez disso, a mudança é
produto da desintegração, ao longo de vários séculos, de todo e qualquer consenso
generalizado acerca da natureza dos seres humanos e seu lugar no mundo, e o
elenco de personagens desse drama histórico é extenso: Colombo, Lutero,
Copérnico, Descartes e Kant estão certamente entre os principais atores. Mas a
transformação não foi estritamente ou mesmo principalmente operada entre a
intelectualidade. Por toda a Europa e, mais tarde, no Estados Unidos, a dúvida se
alastrou e infeccionou todos os níveis da sociedade. O que estava em questão,
entre outras coisas, era a defensibilidade última de qualquer alegação sobre o telos
da existência humana. O enfraquecimento do consenso generalizado sobre o
assunto foi a princípio condenado e depois celebrado, mas o que estava claro é que
o significado do bem comum estava sendo bastante atenuado. O declínio da
comunidade é correlativo ao declínio daquilo que pode ser sustentado em comum
e, portanto, o individualismo moderno é apenas o resultado desse drama cultural.
Sem dúvida, esse desenvolvimento trouxe consigo oportunidades significativas,
mas também abriu um terreno fértil para o surgimento e o crescimento de hábitos
de adicção.
Em suas memórias filosoficamente perspicazes sobre a adicção, How to stop
time [Como parar o tempo], Ann Marlowe faz uma afirmação intrigante sobre a
adicção em heroína:

O maior e mais obscuro segredo da heroína é que ela não é tão maravilhosa: é uma substância que
alguns de nós concordamos em buscar como se fosse algo maravilhoso, porque é mais fácil fazer
isso do que descobrir o que vale a pena ser buscado. A heroína é um substituto, um tapa-buraco,
uma máscara para o que acreditamos estar faltando. Como os ‘objetos’ vistos pelo homem de
Platão em uma caverna, a droga é a sombra projetada por movimentos culturais que não podemos
ver diretamente.60

São precisamente esses movimentos culturais, tão essenciais a quem somos


que passam despercebidos, que estou apontando com o rótulo desajeitado de “
modernidade”. No entanto, Marlowe não expõe o assunto com a mesma
veemência com que poderia. Pois não é só que as pessoas modernas achem difícil
“descobrir o que vale a pena ser buscado”. Em vez disso, essas pessoas são
atormentadas por um ceticismo axiomático quanto à possibilidade de tal coisa
algum dia ser “resolvida” independentemente do esforço despendido. Não é que
não possamos reconhecer modos de vida viáveis. Antes, confrontamos uma série
de opções mutuamente incompatíveis com a suspeita de que não existem bases
racionais para escolher entre elas.
Com o fracasso do projeto iluminista em estabelecer uma base puramente
racional e, portanto, universal para determinar a estrutura normativa da vida
humana, as pessoas modernas herdaram fragmentos de concepções de tradições
passadas sobre o telos da vida humana sem possuir uma forma estabelecida de
decidir entre essas várias visões. Nossa cultura é, assim, uma cultura em que a
decisão de seguir um modo de vida à custa de outros só pode ser entendida como
uma escolha arbitrária, uma afirmação existencial do eu privada de qualquer
fundamento lógico definitivo. As pessoas modernas não sabem mais o que fazer
porque sabem muito bem quantas coisas poderiam fazer. Um adicto astuto
percebeu uma conexão entre sua adicção e a ameaça da indecisão moderna:

De repente, percebi que eu tinha duas doenças — a doença da adicção e a doença do excesso de
opções […] E se eu fizesse a escolha errada? […] Sempre tive medo de fazer a escolha errada. Eu
olhava para as duas bifurcações na estrada e ficava ali por muito tempo, temendo que uma ou
ambas me levassem para o caminho errado. O álcool e a cocaína ajudaram-me a superar a
ansiedade da indecisão e a coragem de seguir em frente, mesmo que isso significasse correr de
cabeça para baixo por um caminho tortuoso e direto para o precipício.61

De acordo com Sean Desmond Healy, as pessoas modernas, em virtude


dessa tirania da possibilidade, “não têm um senso de propósito e vagueiam em um
estado de estagnação psíquica, esperando que um vento sopre para lhes dar
propulsão em direção a um destino que elas mesmas não podem identificar”.62
Healy afirma que esse vento não está chegando, portanto, as pessoas modernas
estão determinadas, como Vladimir e Estragon em Esperando Godot, de Beckett, a
esperar interminavelmente. Mas não é tudo dessa maneira; a adicção é um vento
que impulsiona, embora seja mais parecido com um furacão. Objetos viciantes
representam um telos racionalmente determinável porque são capazes de exigir
por outros meios — por meio da adicção — uma espécie de lealdade absoluta a
um modo de vida que as pessoas modernas não podem alcançar por meio do
exercício de investigação racional sobre a melhor vida para os seres humanos.
Either/Or [Ou-Ou], de Søren Kierkegaard, fornece a expressão mais
completa dessa perda moderna de teleologia.63 O que Either/Or identificou como
o ponto de vista distintivamente moderno é a concepção do debate moral e
político em termos de um conflito entre visões mutuamente incompatíveis e
incomensuráveis sobre o que constitui a vida mais digna de ser buscada. Nessa
obra, o conflito é entre a vida do homem estético e a vida do homem ético, mas a
variedade de perspectivas possíveis não se limita de forma alguma a esses dois. Na
avaliação moderna de Kierkegaard, o que se torna característico de todas essas
perspectivas é a ausência de qualquer critério comum que possa arbitrar
definitivamente entre as várias concepções concorrentes da vida digna. Assim,
para Kierkegaard, a escolha é desconectada da ordem da racionalidade objetiva e
inserida na ordem da autoafirmação subjetiva. A idade, a classe social, a formação
educacional, e assim por diante, de uma pessoa não fornecem nada que possa
ajudar a determinar a vida que o agente deve buscar. ualquer forma de vida que
seja finalmente buscada não pode ser compreendida como uma escolha racional,
mas apenas como um “salto de fé” kierkegaardiano.
Como Hubert Dreyfus e Jane Rubin argumentaram, “identificar-se como
um adicto pode muito bem ser uma tentativa de obter o significado outrora, mas
não mais, fornecido pelos compromissos autênticos possibilitados por uma
cultura tradicional […] uando alguém diz: ‘Meu nome é João e sou um
alcoólatra’, ele está reconhecendo uma identidade — a de um adicto […]
Acreditamos que a razão pela qual a adicção se tornou o modo preferido de
compreensão psicológica e social para tantas pessoas em nossa cultura é que tal
movimento remove sua identidade do reino da escolha arbitrária e a estabelece
como um dado incontroverso […] As adicções tornaram-se substitutas dos
compromissos em nossa cultura”.64 Ou, como observou William Pryor, adicto em
heroína em recuperação, “De alguma forma, ser um adicto atendeu às minhas
necessidades, minha dor, minha indefinição”.65
O “homem do subsolo” de Fiódor Dostoiévski retrata brilhantemente a
paralisia que confronta as pessoas modernas: “Obviamente, a fim de agir, é preciso
estar totalmente satisfeito e livre de qualquer desconfiança. Mas considere a
minha situação: como posso ter certeza? Onde vou encontrar a razão primária da
ação, a justificação para isso? Onde devo procurar? Sabem, senhoras e senhores,
provavelmente a única razão pela qual acho que sou um homem inteligente é que
em toda a minha vida eu nunca consegui começar ou terminar nada”.66 Essa
imagem da indecisão moderna pode explicar o porquê de, na sociedade moderna,
qualquer compromisso consistente ser visto de maneira suspeita como uma
adicção. Exatamente porque duvidamos que alguém possa ter razões
suficientemente convincentes para justificar um compromisso inabalável com um
projeto ou estilo de vida, só podemos interpretar esses compromissos como
adicções disfarçadas. Visto que a razão não pode compelir, a adicção é vista como
a melhor explicação. Como a conexão entre a razão e a vontade foi rompida, a
afirmação da vontade só pode parecer viciosa. Assim, mesmo para aqueles que não
foram diagnosticados com alguma adicção, a linguagem da adicção molda a
interpretação de certos tipos de atividade.
A nossa é uma cultura contraditória na qual a profunda ambiguidade sobre
a possibilidade de compromissos justificados é correspondida com intensidade
pelas ideologias de oportunidade, autorrealização e autocontrole. A adicção surge
no ponto de impacto entre esses impulsos contraditórios, uma vez que facilita
uma busca obstinada de realização na ausência de fundamento racional. A
adicção, como o existencialismo, o impulso filosófico legado por Kierkegaard e
Dostoiévski, é produzida por uma cultura na qual nos é dito, simultaneamente,
“Seja tudo o que você pode ser” e “Faça do seu jeito”. A colisão de um ethos de
autorrealização com uma descrição da ação humana que separa a liberdade da
teleologia é o naufrágio chamado adicção moderna.
Mas a adicção não é a única resposta disponível para a perda moderna de
teleologia. A resposta dominante de nossa cultura é simplesmente ignorar a crise
por meio da distração. Em particular, o capitalismo moderno tardio oferece aos
consumidores a oportunidade de buscar “valor” na ausência de qualquer
compromisso compartilhado com o bem. O consumismo, portanto, nos distrai da
arbitrariedade paralisante da existência moderna, prometendo que o valor das
coisas pode ser conferido simplesmente por estarmos dispostos a comprá-las.
Assim, o consumismo é uma expressão do desejo de sermos desviados da
perspectiva assustadora de que não sabemos realmente o que de fato vale a pena.
A busca por excitação constante — ou seja, o cerne do consumismo — é a
entronização do imediato sobre o teleológico.
A adicção representa uma reação contra a noção de um eu que consome,
por decreto arbitrário da vontade, qualquer coisa que pareça proporcionar
gratificação imediata. A adicção é uma espécie de rejeição da entronização, pelo
consumismo, do imediato sobre o teleológico. É verdade que muitas adicções
começam a partir do desejo de ser distraído pela gratificação imediata. Mas a
adicção é viciante, em vez de meramente distrativa, exatamente porque fornece o
tipo de força propulsora e intencional que o consumismo não pode oferecer. Os
consumidores compram e vendem para se distanciarem da falta de propósito, mas
os adictos encontram propósito precisamente no momento em que reconhecem
que, em vez de consumir seus produtos de escolha, são consumidos por esses
produtos. A adicção fornece o que os consumidores não acreditam que exista:
necessidade. A adicção profunda pode, portanto, ser interpretada como uma
resposta à ausência de teleologia na cultura moderna e como uma espécie de
crítica corporificada ao consumismo capitalista tardio produzido por essa
ausência.

O  

Temos falado da necessidade de distração de uma crise de significado, mas colocar


a situação moderna em termos de crise de significado, embora seja verdade, é
enganoso. Sugere, de maneira errônea, que as pessoas modernas buscam
vigilantemente a solução dessa crise, mas esse não é necessariamente o caso. Pois as
pessoas modernas não são apenas atormentadas pela ausência de uma teleologia,
mas também pela crença de que uma resolução para tal crise não está próxima,
uma vez que as únicas fontes imagináveis de tal resolução — a fé de Tomás de
Aquino, a razão de Kant, a história de Hegel — são exatamente as coisas que a
modernidade colocou irremediavelmente em dúvida. Os modernos, portanto,
não são tão desesperados quanto são cínicos ou entediados.
Ironicamente, com o desaparecimento de qualquer concepção amplamente
aceita de um bem comum e a transformação consequente da esfera social em uma
arena para projetos individuais de prazer e realização, o tédio foi o resultado. Foi
Kierkegaard também quem observou que a raiz do que aflige a sociedade
moderna é o tédio: “O tédio é a raiz de todos os males. É estranho que o tédio, tão
imóvel e estático, tenha tal poder de colocar as coisas em movimento. O efeito
exercido pelo tédio é totalmente mágico, exceto que não é um efeito de atração,
mas de repulsão […] Não é surpreendente, portanto, que o mundo esteja
regredindo, que o mal esteja ganhando cada vez mais terreno, uma vez que o tédio
está aumentando e o tédio é a raiz de todos os males”.67 Para que não se suponha
que o tédio seja um problema exclusivamente moderno, devemos lembrar que o
pai da igreja cristã primitiva, Orígenes, especulou que o tédio causou a ueda.68
Entretanto, o tédio moderno é diferente do tédio “padrão” de antigamente.
A recompensa material do capitalismo moderno significou que muitas
pessoas modernas estão livres da luta diária pela sobrevivência e, portanto, têm o
problema do “tempo livre”. O tédio, no sentido de não saber como ocupar o
tempo livre, é privilégio dos relativamente abastados, que, por suas energias não se
esgotarem na sobrevivência, devem confrontar-se com o que fazer de seu tempo.
Como Aristóteles observou, “o nobre emprego do ócio é o objetivo mais elevado
que um homem pode buscar”.69 Portanto, é interessante que Rozanne Faulkner
caracterize a adicção como um “mau funcionamento do tempo livre” e proponha
que o treinamento em como passar o tempo livre de lazer de maneira adequada é
fundamental para o processo de recuperação.70
Mas, embora o capitalismo tenha produzido uma classe maior de pessoas
com o “problema” do tempo de lazer do que qualquer outro arranjo social, o
problema do tempo de lazer não é exclusivo do contexto moderno, como fica
claro pela preocupação de Aristóteles a respeito de como ele deveria ser bem
gasto. O problema parece ser mais profundo, portanto, do que o mero fato de que
as pessoas modernas possuem tempo livre. O problema, na verdade, é que a ideia
de que devemos passar o tempo de lazer de uma maneira “nobre” é, em si mesma,
estranha para as pessoas modernas. Muitas pessoas modernas possuem tempo de
lazer, mas não têm a capacidade de determinar o que seria uma maneira nobre de
aproveitá-lo, visto que não possuem a capacidade de determinar o tipo de pessoa
que deveriam ser e o tipo de vida que deveriam levar. Assim, o tempo de lazer é
considerado um tempo para passatempos ou, mais revelador, “diversões”. uão
estranho, então, para o ouvido moderno, que Aristóteles responda à sua própria
pergunta, “O que devemos fazer quando estamos no lazer?”, com a resposta: “É
claro que não devemos divertir-nos, pois nesse caso a diversão seria o fim da
vida”.71 Para Aristóteles, só saberemos como gastar nosso tempo de lazer se
soubermos qual o sentido de nossas vidas e para que fim nossas vidas devem ser
direcionadas.
Porque as pessoas modernas carecem de tal concepção do sentido de suas
vidas, suas atividades de lazer só podem ser esforços que desviam a atenção da
crise ocasionada por tal falta. Em outras palavras, o lazer moderno só pode
ocasionar, em vez de aliviar, o profundo tédio da existência moderna. Portanto,
desconfio da sugestão de que as pessoas se tornam adictas porque não têm
passatempos interessantes. Um alcoólatra se descreve como “pai, marido,
contribuinte, dono de casa […] clubista, atleta, artista, músico, autor, editor,
piloto de avião e viajante do mundo”. Não lhe parece faltar passatempos
interessantes e maneiras socialmente aceitáveis de preencher seu tempo de lazer.
Mas, ele relata, “havia momentos em que a vida de respeitabilidade e realização
parecia insuportavelmente monótona — eu tive de fugir” ( AA 382).
Essa monotonia insuportável — o que Healy chama de “hipertédio”72 — é
exclusivamente moderna. É bem diferente do tédio de épocas anteriores, que se
caracterizava, de acordo com Healy, por um desencanto com o lugar particular
que se possuía no esquema social. Esse tédio “padrão” é visto como remediável na
medida em que ainda se acredita que a sociedade como um todo carrega consigo
os recursos para construir uma vida valiosa e significativa. Mas, no caso do
“hipertédio” moderno, a própria sociedade está “sob acusação por não fornecer
sentido”.73 Ouça novamente o testemunho de um alcoólatra moderno:

O estado mental do alcoólatra doente está além de qualquer descrição. Eu não tinha
ressentimentos contra indivíduos — o mundo inteiro estava errado. Meus pensamentos giravam e
giravam com: “Afinal, para que tudo isso?”. As pessoas lutam e matam umas às outras; lutam e
cortam as gargantas umas das outras pelo sucesso, e o que alguém ganha com isso? Não tive eu
sucesso, não fiz coisas extraordinárias nos negócios? O que eu ganho com isso? Tudo está errado, e
que se dane. ( AA 225).

A ausência de um telos compartilhado ou justificável em última instância


torna as pessoas modernas excepcionalmente entediadas. Como é possível fazer
qualquer coisa, não há nada a fazer. Não é apenas, como no caso do tédio padrão,
que um determinado estilo de vida pareça sem sentido. Antes, a busca em si parece
inútil e, portanto, enfadonha: hipertédio nomeia a paralisia causada pela
incapacidade da modernidade de justificar um compromisso em detrimento de
outros.
De acordo com William Burroughs, “você se torna um adicto em narcóticos
porque não tem uma motivação forte em nenhuma outra direção. A droga vence
pela falta. Experimentei por uma questão de curiosidade”.74 Dado meu
argumento até agora, Burroughs não atinge o cerne da questão, pois alguém
poderia interpretá-lo como se dissesse que a “droga” é uma entre muitas
“diversões” possíveis que poderiam ter vencido “pela falta”, como se algumas
pessoas entediadas jogassem golfe e outras brincassem com “drogas”. A droga
vence pela falta de uma razão, e é a razão pela qual a adicção é o hábito definitivo
de nosso tempo. As adicções fornecem um forte impulso motivador em direção a
certos fins específicos de uma maneira que seria inacessível para a pessoa moderna
incapaz de encontrar um critério final para justificar a atividade em uma direção
definida. Burroughs chega muito mais perto do cerne da questão quando diz que,
ao contrário do que somos levados a acreditar sobre a adicção, “o objetivo da
droga para um usuário é que ela forme o hábito”.75 Se há uma doença
peculiarmente moderna, é a doença do tédio moderno, para a qual a adicção é um
dos raros antídotos comprovados.
O tédio moderno não é apenas um privilégio burguês. O que é exclusivo
dos ricos é a maneira como o tédio moderno se lhes impõe sobre eles na crise do
tempo de lazer. Mas o tédio moderno pressiona aqueles que não estão tão
“sobrecarregados” com o tempo de lazer também. Essas pessoas também vivem
sob a sombra da modernidade, e, embora suas vidas sejam preenchidas com a
rotina diária de sobrevivência, suas lutas são acompanhadas pela constante
pergunta: para que serve tudo isso? Como retratado no clássico filme de Charlie
Chaplin, Tempos modernos, os trabalhadores modernos se veem presos a
instituições e burocracias que os usam como engrenagens de uma máquina. Do
empregado da fábrica ao gerente intermediário, os trabalhadores modernos são
colocados em funções que exigem que executem “fragmentos de atos”,76 na
medida em que o agente muitas vezes não tem ideia de quais possam ser os
resultados finais de seu ato, muito menos de qualquer investimento no valor ou
no significado desses resultados. O trabalhador moderno está ocupado, mas lhe
falta propósito.
Como as vidas das pessoas modernas são fragmentadas pela separação do
trabalho do lazer, do público do privado, do religioso do secular, dos jovens dos
idosos, do local do nacional, e assim por diante, torna-se cada vez mais difícil
imaginar como as atividades e os compromissos de uma vida individual podem
constituir um todo ordenado. As pessoas modernas que estão dispersas por suas
responsabilidades díspares e desconexas desejam algum princípio unificador que
possa fornecer integridade e substituir a compartimentação e a fragmentação.
Espera-se que a pessoa moderna, e em particular o trabalhador moderno, busque
uma variedade de atividades diferentes, sem nenhum bem geral que forneça
qualquer propósito abrangente ou unidade à vida. O adicto moderno, ao
contrário, é uma pessoa para quem tais bens heterogêneos só podem parecer um
fardo, porque são desprovidos de qualquer fio de conexão. Na ausência de tal fio, a
adicção oferece uma liberação de uma confusão de responsabilidades que carecem
de uma lógica racional unificadora.
Tal liberação pode ser buscada não por preguiça, mas por
descontentamento. Assim, quando Bruce Wilshire afirma que adictos são pessoas
que “exigem as recompensas sem realizar o trabalho”77, ele retrocede em sua
compreensão do assunto. É verdade que a adicção, em muitos aspectos, impede o
desenvolvimento emocional e que os adictos em recuperação devem aprender a
disciplina necessária para enfrentar os desafios inevitáveis que todas as vidas,
sejam antigas, sejam modernas, devem enfrentar. Mas a adicção moderna é apenas
de modo derivado uma demanda por recompensas sem trabalho, pois está mais
fundamentalmente enraizada na suspeita de que o trabalho moderno não tem
recompensas.
Recapitulando o argumento, se algumas pessoas modernas sofrem porque
não conseguem encontrar boas razões para se envolver nos negócios da vida,
outras sofrem de um tipo de envolvimento que, não obstante, não tem raízes nem
significado. A adicção fornece uma resposta a ambos os tipos de crise. A adicção
fornece uma resposta à vida desanimadora de tédio que assola o burguês em seu
tempo de lazer, ao fazer com que algo realmente importe, e também fornece uma
resposta à esmagadora vida de tédio que atormenta a classe trabalhadora com
esforços fragmentados e compartimentados ao fazer com que ao menos uma coisa
realmente importe. Para aqueles que estão entediados sem nada para fazer, a
adicção estimula o envolvimento e o consumo; para aqueles que estão entediados
com muitas coisas para fazer, ela alivia o fardo ao simplificar e esclarecer.

A  

Além da fragmentação e do tédio, as pessoas modernas são atormentadas pela


solidão. A alienação e a solidão endêmicas do individualismo moderno foram
teorizadas e documentadas por intelectuais e críticos sociais em vários campos de
investigação. Pensa-se aqui nas análises devastadoras do jovem Karl Marx em seus
Manuscritos econômico-filosóficos78 ou, mais recentemente, na investigação
sociológica da solidão norte-americana fornecida em e lonely crowd [A
multidão solitária], de David Riesman.79 Charles Taylor afirma que a solidão
moderna é produto da “industrialização, do desmembramento das comunidades
primárias anteriores, da separação entre o trabalho e a vida doméstica, e do
crescimento de um mundo capitalista, móvel, burocrático em grande escala, que
em grande parte merece o epíteto de ‘sem coração’”.80
ualquer que seja a complexa origem da solidão moderna, uma coisa é
certa: pessoas solitárias dão bons adictos. Como Os doze passos e as doze tradições
colocam de forma tão simples,

uase sem exceção, os alcoólatras são torturados pela solidão. Mesmo antes da prática de beber
piorar e as pessoas começarem a nos isolar, quase todos nós tínhamos a sensação de que não
pertencíamos a lugar nenhum. Ou éramos tímidos e não ousávamos aproximar-nos dos outros, ou
podíamos ser bons extrovertidos, ansiando por atenção e companheirismo, mas nunca
conseguindo isso — pelo menos em nossa maneira de pensar. Sempre houve aquela barreira
misteriosa que não podíamos superar nem entender. (DD 57)

A conexão entre a solidão e a adicção em álcool é ilustrada quase ad


nauseam nos “Testemunhos pessoais” do Grande Livro do AA. É de longe o tema
mais comum. Já ouvimos alguns. Aqui está uma amostra de vários outros.

Eu nunca havia estado dentro de um bar até que, uma noite, alguns colegas de classe me
convenceram a ir com eles a um salão de coquetéis local. Eu estava fascinado […] Era pura
sofisticação […] Mas, mais importante do que qualquer outra coisa naquela noite, eu senti que
fazia parte de um grupo. Eu estava em casa no universo; eu me sentia confortável com as pessoas
[…] Não apenas estava completamente à vontade, mas na verdade amava todos os estranhos ao
meu redor, e eles também me amavam, pensei, tudo por causa dessa poção mágica, o álcool. ue
descoberta! ue revelação! ( AA 447)

ualquer que fosse o problema, logo descobri o que parecia ser a solução para tudo […] Uma
parada em um bar local dava início à noite. Eu pedia uma cerveja à garçonete e, assim que tomava
meu primeiro gole, algo mudava imediatamente. Eu olhava ao meu redor, para as pessoas bebendo
e dançando, sorrindo e rindo, todas muito mais velhas do que eu. De repente, de alguma forma
senti que fazia parte. ( AA 282)

Embora não tivesse muito entusiasmo com o sabor, eu adorei os efeitos. O álcool me ajudou
a esconder meus medos; a capacidade de conversar foi um presente quase milagroso para um
indivíduo tímido e solitário. ( AA 359)

Em sua biografia de Bill Wilson, cofundador do Alcoólicos Anônimos,


Susan Cheever relata que a própria adicção de Wilson em álcool foi impulsionada
por esse anseio por companheirismo: “Ele nunca esqueceu o aconchego do bar e a
maneira como os homens ali pareciam fundir-se em uma única pessoa — uma
pessoa imune à solidão”.81
Infelizmente, a busca por pertencimento que encontra sua resposta para
tantos alcoólatras na irmandade do bar acaba em isolamento quase total. O
álcool, outrora o elixir do companheirismo e da camaradagem, é um amigo
ciumento: “Desde aquela primeira noite no bar, um ano antes, tomei uma decisão
profunda que iria direcionar minha vida por muitos anos vindouros: o álcool era
meu amigo e eu o seguiria até os confins da terra […] Agora o álcool se tornara o
único amigo que eu tinha” ( AA 447). Beber ou consumir drogas sozinho torna-
se o ápice tragicamente irônico da adicção profunda.
Em um artigo sobre a diferença entre a experiência pré-industrial da
“embriaguez crônica” e a do alcoolismo contemporâneo, Peter Ferentzy faz a
observação fascinante de que, antes da virada do século 18, a embriaguez solitária
era rara.82 Ainda assim, esse fato alarmante se torna compreensível quando vemos
que a rejeição moderna da teleologia e a perda resultante de uma concepção
compartilhada da boa vida para os seres humanos acarretaram uma transformação
da natureza da amizade. Pois, como fica tão claro na Ética a Nicômaco, a amizade
era para Aristóteles um empreendimento basicamente moral, com a relação de
amizade verdadeira definida principalmente em termos de objetivos comuns e
uma busca compartilhada de certos bens específicos. Para Aristóteles, o principal
benefício da amizade não é a afeição, mas o crescimento em virtude. Mas essa
visão aristotélica da amizade diminuiu juntamente com o desaparecimento de
uma compreensão sobre o bem comum. Não parece mais apropriado esperar que
os amigos concordem uns com os outros acerca das questões mais substanciais da
vida. Agora, a amizade é vista principalmente como uma expressão de afeto (o que
Aristóteles teria chamado de amizade de prazer), ou um exercício de
posicionamento profissional e “networking” (o que Aristóteles teria chamado de
amizade de utilidade) (1157b37-1158a3). Para Aristóteles, nenhuma dessas
formas de amizade é amizade verdadeira porque carece de qualquer conexão
necessária para o crescimento de uma pessoa em virtude e em obtenção de uma
vida digna para os seres humanos.
A adicção oferece uma resposta dupla à solidão implícita na transformação
moderna da amizade. Por um lado, à medida que o afeto e o “capital social”
intermedeiam as amizades modernas, as substâncias viciantes lubrificam essa
mediação, como muitos dos depoimentos apresentados anteriormente
mostraram. De fato, provavelmente mais do que qualquer outro fator, é a
capacidade das substâncias viciantes de evocar fortes afeições ou reprimir fortes
desafetos que representa seu apelo mais imediato. Sob a influência de substâncias
viciantes, muitas pessoas se sentem mais livres para expressar afeto e mais
confiantes de que o estão recebendo.
Por outro lado, precisamente porque a adicção é capaz de fornecer um
propósito animador e necessário, de outra forma inacessível às pessoas
completamente modernas, as pessoas com adicções compartilham, em certo
sentido, entre si uma fidelidade irrestrita e incondicional a um objetivo comum.
Pessoas adictas muitas vezes acham difícil desenvolver relacionamentos
significativos com pessoas não adictas e, a esse respeito, são mais aristotélicas do
que modernas. Da mesma forma, as pessoas com adicções são mais aristotélicas do
que modernas no sentido de que estão dispostas a encerrar amizades sempre que
essas amizades inibem sua busca singular. Eventualmente, então, a maioria das
pessoas adictas termina como começou — sozinha. No entanto, a pessoa adicta
solitária muitas vezes descobre que, embora esteja sozinha, não está sozinha. Isso
porque o próprio objeto viciante assume o papel de amigo e companheiro.

uando você está bebendo, o álcool ocupa o papel de amante ou companheiro constante. Ele fica
ali nas prateleiras da geladeira, ou no balcão, ou no armário como uma pessoa real, tão presente e
confiável quanto um melhor amigo.83

Eu nunca me sentia sozinha quando usava, mesmo quando estava separada das pessoas que
mais amava no mundo, porque meus melhores amigos estavam sempre comigo. A cocaína era
minha companheira de corrida, minha alma gêmea, minha amante fiel, minha colega de confiança,
minha companheira divertida de brincadeiras, que me acompanhava em todos os lugares a que eu
fosse. O álcool e a cocaína sempre estiveram lá para mim, eles nunca me decepcionaram.84
Ann Marlowe expressa brilhantemente esse aspecto da adicção em suas
memórias:

Como viajar para lugares distantes, a heroína servia como uma forma de tornar minha solidão
irrelevante. Fazer isso sozinha não acrescentava nenhum opróbrio; essa era a menor das minhas
preocupações. E fazia sentido; a droga era uma companheira […] Ficar chapada permitia que eu
curtisse ficar sozinha sem me sentir solitária […] uando parei de ficar chapada, o que mais me
incomodou foi minha recaída na solidão, ou na consciência dessa solidão […] A droga fazia com
que ficar em casa fosse mais fácil para mim; a droga era um lar, um espaço psíquico que preenchia
as funções essenciais do construto físico, proporcionando um conforto e uma segurança
previsíveis. A heroína se tornou o lugar onde, quando você aparecia, eles tinham de deixar você
entrar.85

Na medida em que o AA e outros programas de doze passos estão entre os


poucos lugares na sociedade contemporânea onde, literalmente, quando você
aparece, eles têm de deixá-lo entrar, começamos a entender por que comunidades
intencionais como o AA também estão entre os poucos remédios modernos para
a adicção contemporânea. Exploraremos a relação entre a adicção, a amizade e a
recuperação de forma mais extensa quando nos voltarmos para a resposta da igreja
à adicção. Para encerrar este capítulo, permita-me resumir o que venho
argumentando.
Minha intenção na análise exposta anteriormente não foi acusar a
modernidade mostrando seus horríveis efeitos. Em vez disso, meu objetivo é
tornar inteligível o surgimento e a proliferação da adicção na cultura moderna,
tanto como forma de comportamento quanto como modo de interpretar e
descrever o comportamento. Tentei isolar as características da modernidade que
considero as causas desse efeito, sustentando que a adicção fornece uma resposta
poderosa às endemias modernas de fragmentação, solidão e tédio.
A adicção é, na verdade, uma espécie de crítica cultural corporificada da
modernidade, e o adicto, uma espécie de profeta moderno involuntário. A igreja
tem grande papel em ouvir esses profetas involuntários. Se ela ouvir, será levada a
refletir sobre como sua própria cultura contribui para a produção de adicções, se
ela oferece uma cultura alternativa e o que tal cultura alternativa exigiria.
45 e Oxford English Dictionary online, s.v “addict”. Nota do editor: segundo o Houaiss, em
português, o substantivo “adicto” remonta a 1589 e procede do latim addictus, “escravo por dívidas”.
46 O relato seminal e mais conciso da genealogia do conceito de adicção é L, Harry Gene.
“e discovery of addiction”, Journal of Studies on Alcohol 39 (1978): 143-74.
47 R, Benjamin. “An inquiry into the effects of ardent spirits upon the human body and mind
with an account of the means of preventing and of the remedies for curing them”, reimpresso em
uarterly Journal of Studies on Alcohol 4 (1943-1944), p. 325-41.
48 S, Anne Wilson. When society becomes an addict (New York: HarperOne, 1988).
49 P, Stanton; B, Archie. Love and addiction (New York: Signet, 1975), p. 182.
50 M, Gerald. Addiction and grace (New York: HarperCollins, 1988), p. viii.
51 National Institutes of Health-National Drug Abuse Administration, “Research report series:
Tobacco addiction,” p. 3, https://bit.ly/3wjOQwv.
52 U.S. Substance Abuse and Mental Health Services Administration, “Substance dependence, use,
and treatment,” www.oas.samhsa.gov/nsduh/2k7nsduh/2k7results.cfm#Ch7.
53 N.T.: termo inglês que se refere ao “ vício” em trabalhar, ou, de modo mais básico, a uma
dedicação incansável e intensa ao trabalho.
54 “Felicidade” traduz a palavra grega eudaimonia. Muita tinta foi gasta sobre a questão de como a
palavra eudaimonia deveria ser traduzida. “Felicidade” provavelmente não é a melhor tradução,
porque poderia ser associada a uma mentalidade do tipo “tudo o que faz você feliz”, o que certamente
não era a visão de Aristóteles. Aristóteles acreditava que você poderia estar se divertindo e ainda
assim não ser eudaemone. Provavelmente a palavra seria mais bem traduzida por “a vida digna de ser
vivida”, “a vida que vale a pena”, “a vida plena”, “a melhor vida possível”, etc., mas uso essas opções,
assim como “felicidade”, de forma intercambiável.
55 A. Eudemian Ethics, trad. H. Rackham, em Aristotle: Athenian Constitution,
Eudemian Ethics, virtues and vices (Cambridge: Loeb Classical Library, 1980), 1249b17-14.
56 M, Alasdair. Aer virtue: a study in moral theory, 2. ed. (Notre Dame: University of
Notre Dame Press, 1984), p. 147. [Edição em português: Depois da virtude: um estudo em teoria
moral (Bauru, SP: Edusc, 2001), p. 252.]
57 Ver L, Jonathan. Radical hope: ethics in the face of cultural devastation (Cambridge:
Harvard University Press, 2006).
58 U.S. Department of Health and Human Services, “Results for the 2008 NSDUH: national
findings”, www.oas.samhsa.gov/nsduh/2k8nsduh/ 2k8Results.cfm#7.1.4.
59 MI, Alasdair. Whose justice? Which rationality? (Notre Dame: University of Notre
Dame Press, 1988), p. 339. [Edição em português: Justiça de quem? ual racionalidade? (São Paulo:
Loyola, 1991).]
60 M, Ann. How to stop time: heroin from A to Z (New York: Basic Books, 1999), p. 155.
61 M, William Cope; K, Katherine. Broken: my story of addiction and redemption
(New York: Viking, 2006), p. 184-85.
62 H, Sean Desmond. Boredom, self, and culture (London: Associated University Presses,
1984), p. 74.
63 K, Søren. Either/Or, trad. Alastair Hannay (New York: Penguin, 1992).
64 D, Hubert; R, Jane. “ Kierkegaard on the Nihilism of the Present Age: e Case of
Commitment as Addiction”, Synthese 98 (1994): 6.
65 P, William. Survival of the coolest: an addiction memoir (Bath: Clear Press, 2003), p. 3,
grifo meu.
66 D, Fyodor. Notes from underground, trad. Andrew R. MacAndrew (New York:
Penguin, 1980), p. 103-4. [Edição em português: Notas do subsolo. trad. Maria Aparecida Botelho
Pereira Soares (São Paulo: L&PM, Edição de bolso, 2008).]
67 K. Either/Or, p. 227-28. Martin Heidegger também afirmou que o tédio é o modo
predominante do moderno Ser-no-mundo. Ver An Introduction to metaphysics, trad. R. Manheim
(Garden City: Doubleday, 1961).
68 O. On first principles, trad. G. W. Butterworth (New York: Harper and Row, 1966),
2.8.3. [Edição em português: Tratado sobre os princípios. (São Paulo: Paulus, 2012).]
69 A. Politics, trad. Benjamin Jowett, em e basic works of Aristotle, ed. Richard
McKeon (New York: Random House, 1941), 8:3.
70 A obra de Faulkner é citada em W, Bruce. Wild hunger: the primal roots of modern
addiction (Lanham: Rowman and Littlefield, 1998), p. 114.
71 Aristóteles, Politics, 1337b35-36.
72 Healy, Boredom, self, and culture, cap. 3.
73 Ibid., p. 61.
74 B, William. Junky (New York: Penguin Books, 1977), p. xv.
75 Ibid., p. 8.
76 Wilshire, Wild hunger, p. 13.
77 Ibid., p. 234.
78 M, Karl. Economic and philosophical manuscripts of 1844, em e Marx-Engels reader, 2.
ed., Robert C. Tucker (ed.) (New York: W. W. Norton, 1978) [Edição em português: Manuscritos
econômico-filosóficos (São Paulo: Boitempo Editorial, 2004)].
79 R, David. e lonely crowd: a study of the changing American character (New Haven:
Yale University Press, 1965).
80 T, Charles. Sources of the self the making of the modern identity (Cambridge: Harvard
University Press, 1989), p. 292. [Edição em português: As fontes do self: a construção da identidade
moderna (São Paulo: Loyola, 2013), 4. ed.]
81 C, Susan. My name is Bill (New York: Simon & Schuster, 2004), p. 39.
82 F, Peter. “From sin to disease: differences and similarities between past and current
conceptions of chronic drunkenness”. Contemporary Drug Problems 28 (2001): 382.
83 K, Caroline. Drinking: a love story (New York: Dial Press, 1996), p. 96.
84 Moyers, Broken, p. 185.
85 Marlowe, How to stop time, pp. 140, 179.
6
ADICÇÃO E PECADO
Testando uma doutrina antiga

A         D.


Hoje, somos todos adictos que precisam de recuperação. Durante séculos, a
categoria de “ pecado” forneceu uma descrição da condição humana fundamental.
Hoje, a “adicção” desempenha uma função semelhante. William Lenters afirma
que a adicção é “a experiência humana”86 e Gerald May proclama: “somos todos
viciados em todos os sentidos da palavra”.87 À medida que May continua a
descrever a universalidade da adicção, é possível perceber uma impressionante
afinidade entre o discurso dos antigos sobre o pecado e o discurso contemporâneo
sobre a adicção. “A adicção, então, é ao mesmo tempo uma parte inerente de nossa
natureza e uma antagonista dela. É o inimigo absoluto da liberdade humana, a
antipatia do amor.”88 Semelhantemente, os cristãos afirmam que o pecado é, ao
mesmo tempo, parte de nossa natureza (a “natureza pecaminosa”) e, no entanto,
antagônico ao que fomos criados para ser.
Se a linguagem da adicção funciona hoje de forma análoga à antiga
linguagem do pecado, não é porque a adicção é amplamente considerada como
sinônimo de pecado ou mesmo como um tipo de pecado. Pelo contrário, tanto os
adictos quanto os não adictos foram ensinados a considerar a adicção algo
fundamentalmente diferente do pecado. A maioria das pessoas adictas aprende,
em seus programas de recuperação e com uma enxurrada de literatura sobre o
assunto, a ser avessa à linguagem do pecado. Assim, o alcoólatra em recuperação é
informado de que “o alcoolismo é uma doença, não uma desgraça”,89 ou a pessoa
adicta é informada de que a adicção “não é um pecado, mas sim uma doença”. A
linguagem da adicção, portanto, não se limita a refletir a linguagem do pecado,
mas é cada vez mais usada para substituir a linguagem do pecado.
A tendência dentro dos movimentos de recuperação de ou insistir em uma
clara demarcação entre adicção e pecado ou substituir completamente a
linguagem do pecado pela da adicção parece pouco promissora a partir de uma
perspectiva cristã. Visto que a adicção é uma atividade direcionada a um fim, seria
estranho se uma atividade tão destrutiva não tivesse nenhuma relação com o
pecado. Além disso, parece improvável que a adicção possa simplesmente
substituir o conceito de pecado, até porque ela não é, em nenhum sentido óbvio,
uma categoria teológica. Como, então, devemos entender a relação entre adicção
e pecado?
Nos primeiros capítulos, tentei descrever a adicção em termos não
teológicos. Neste capítulo, realizaremos uma guinada teológica, tentando definir
a adicção em um enquadramento, definitivamente teológico, de pressuposições
sobre a natureza e o destino humano. Assim como tenho argumentado que a
categoria clássica de hábito pode ajudar-nos a compreender melhor a adicção e a
descrever o comportamento adicto de forma mais verdadeira, agora quero
argumentar que o apelo ao conceito de pecado pode contribuir de forma
semelhante para uma compreensão mais completa da adicção. De fato, mostrarei
que há fortes conexões históricas e conceituais entre a categoria filosófica do
hábito e a doutrina cristã do pecado. A fim de seguir essa estratégia de relacionar a
adicção ao pecado, é necessário primeiro demonstrar que o argumento padrão que
fez com que a reflexão sobre a adicção se divorciasse da reflexão teológica tem sua
origem em uma compreensão equivocada acerca do que os cristãos querem dizer
quando falam sobre “ pecado”.

P,    

O paradigma da adicção é frequentemente apresentado como uma crítica


(implícita ou explícita) à doutrina cristã do pecado. Essa crítica precisa ser
respondida: há algo que aprendemos com o estudo sobre adicção que sugira que a
antropologia cristã, especificamente a doutrina do pecado, é inadequada ou falsa?
Somente quando essa crítica for respondida fará sentido seguir em frente e
perguntar se a doutrina cristã do pecado pode enriquecer nossa compreensão
acerca da adicção.
Embora a linguagem do pecado esteja ausente do Grande Livro do AA , ela
aparece na história pessoal do cofundador, Bill Wilson. Isso é instrutivo porque
Wilson estava no centro de uma controvérsia dentro das fileiras do AA acerca da
adequabilidade de empregar linguagem especificamente religiosa dentro do AA
.90 O próprio Wilson foi “salvo” de seu alcoolismo por meio de uma experiência
de conversão religiosa. Em resposta ao testemunho de um velho amigo de escola
que se converteu em uma reunião do Grupo Oxford (um movimento avivalista
leigo que começou na Inglaterra e se espalhou pelos Estados Unidos), Bill Wilson
voltou-se para Deus em busca de ajuda com seu alcoolismo aparentemente
intratável: “Ali, ofereci-me humildemente a Deus, como então eu concebia, para
fazer de mim o que ele quisesse. Coloquei-me sem reservas sob seu cuidado e em
sua direção. Admiti pela primeira vez que por mim mesmo não era nada; que sem
ele eu estava perdido. Enentei meus pecados impiedosamente e desejei que meu
amigo recém-descoberto os levasse embora, arrancando-os pela raiz. Desde esse
dia nunca mais bebi novamente” (AA 13, grifo meu).
A experiência de Wilson seguiu o padrão de conversão pregado e praticado
no Grupo Oxford, e foi esse padrão que se tornou o modelo para o que viria a ser
os doze passos do AA. Mas, logo após a formação do AA, surgiu um debate sobre
como a linguagem especificamente religiosa poderia acabar impedindo o AA de
cumprir sua missão, que era alcançar o maior número possível de alcoólatras e
comunicar-lhes um novo método de recuperação. A referência a “Deus” foi
mantida, com a condição de que fosse sempre acompanhada pela ressalva, “como
o concebemos”. Os ateus e agnósticos eram encorajados a não permitir que tal
linguagem os impedisse de se aplicar aos doze passos. Eles eram convidados a
interpretar a linguagem de Deus como o simples reconhecimento de algum Poder
maior do que sua própria força de vontade: “Você pode, se quiser, fazer do
próprio AA seu ‘poder superior’. Aqui está um grupo muito grande de pessoas que
conseguiram superar seus problemas com o álcool. Nesse aspecto, eles certamente
são um poder maior do que você” (DD 27). Assim, a linguagem de Deus foi
mantida, mas não estava mais necessariamente ligada ao sobrenatural ou ao
transcendente.
A linguagem especificamente cristã, e particularmente a linguagem do
pecado, passou por tempos ainda mais difíceis. As queixas contra essa linguagem
especificamente cristã eram duplas. Primeiro, os críticos argumentaram que todos
os alcoólatras que não eram cristãos ou que eram avessos ao cristianismo seriam
desencorajados por tal linguagem. Segundo, os críticos argumentaram que a
linguagem religiosa, especialmente a linguagem do “ pecado”, tendia ao
moralismo e voluntarismo que eram parte do próprio problema que os alcoólatras
precisavam superar, a saber, a tentação dos alcoólatras de pensar que poderiam
resolver seu próprio problema por meio de um simples esforço moral.
A doutrina do pecado que a maioria dos membros iniciais do AA
considerava excessivamente moralista e voluntarista foi a doutrina conforme
apresentada especificamente na teologia leiga do Grupo Oxford e, de maneira
mais geral, na teologia pré-Segunda Guerra Mundial de uns Estados Unidos
otimistas. Essa teologia foi caracterizada por uma forte ênfase na superação de
obstáculos por meio do poder do pensamento positivo. Ela negava que houvesse
impedimentos ao progresso que não pudessem ser superados com o exercício da
força de vontade. Como Linda Mercadante corretamente aponta, essa é uma
variante da heresia do século V conhecida como pelagianismo.91 Para Pelágio,
todo pecado é uma transgressão de uma lei conhecida de Deus, realizada por uma
vontade que está posicionada de maneira neutra entre o bem e o mal, sempre
perfeita e arbitrariamente livre para escolher um ou outro. Contra Pelágio,
Agostinho argumentou que a vontade humana está escravizada pelo pecado,
“incapaz de não pecar”, em sua frase clássica (non posse non peccare). A reação de
Agostinho contra Pelágio lançou as bases para o que se tornou a compreensão
dominante sobre pecado no Ocidente cristão. A linguagem do pecado que o AA
rejeitou não era a doutrina ortodoxa do pecado proposta por pensadores como
Agostinho, mas sim certa compreensão do pecado que há muito tempo fora
considerada teologicamente deficiente.
A igreja proclama que o pecado não consiste fundamentalmente em atos
humanos, mas na condição humana. Os atos que chamamos de pecados são
derivados de um mal-estar mais profundo chamado pecado. Na verdade, podemos
identificar três níveis de especificação dentro da doutrina do pecado.
Aparentemente, temos atos pecaminosos, o que passou a ser conhecido na
tradição, seguindo Tomás de Aquino, como “ pecado real”. uando esse é o caso,
o apóstolo Paulo tende a não falar de “pecados”, mas sim de “transgressões”.
Definir exatamente o que constitui um ato pecaminoso é complexo, mas a
definição padrão é que um ato pecaminoso é qualquer ato que prejudique a
relação do agente com Deus.
Em um nível mais profundo, podemos falar da pecaminosidade das pessoas
humanas. A maioria dos atos pecaminosos não entra em cena “do nada”; antes,
eles emergem de nosso caráter corrompido. Antes que a maioria dos atos
pecaminosos aconteça, já existe uma orientação obstinada para longe de Deus.
Isso é chamado de “ pecado disposicional” por Tomás de Aquino, e é o que o
apóstolo Paulo parece querer dizer quando fala da “carne”. “Pecado”, a esse
respeito, nomeia não um tipo de ato, mas um estado, uma condição ou uma
orientação que a pessoa assume. Assim, ao contrário do pensamento pelagiano,
uma pessoa pode ser “pecaminosa” mesmo que não esteja cometendo algum ato
pecaminoso específico.
Esse segundo nível de pecado se desenvolve à medida que atos pecaminosos
geram hábitos pecaminosos, e esses hábitos nos afastam de Deus. A descrição de
Agostinho da maneira como o hábito restringe nossa vontade é ilustrativa:

Da vontade pervertida nasce a paixão; servindo à paixão, adquire-se o hábito, e, não resistindo ao
hábito, cria- se a necessidade. Com essa espécie de elos entrelaçados (por isso falei de cadeia),
mantinha-me ligado à dura escravidão. A nova vontade apenas despontava; a vontade de servir-te e
de gozar-te, ó meu Deus, única felicidade segura, ainda não era capaz de vencer a vontade anterior,
fortalecida pelo tempo. Desse modo, tinha duas vontades, uma antiga, outra nova; uma carnal,
outra espiritual, que se combatiam mutuamente; e essa rivalidade me dilacerava o espírito.92
Assim, no nível da pecaminosidade humana, a vontade é limitada por sua
obstinação mais antiga, uma obstinação que é produzida pela formação de hábitos
que orientam a pessoa em uma direção definida para longe de Deus. Longe de
oferecer uma explicação voluntarista da condição humana (como faz Pelágio), a
abordagem de Agostinho sobre o pecado complica nossas noções de
voluntariedade da mesma forma que a categoria de hábito de Tomás de Aquino o
fez. A exposição de Agostinho sobre a escravidão da vontade pelo hábito sugere
que esse paralelo entre pecado e hábito não é mera coincidência.
Mas o hábito não é o único constituinte da pecaminosidade humana, pois a
doutrina do pecado também sustenta que, no nível mais profundo e anterior a
qualquer ato de formação de hábito, todo ser humano já está afastado de Deus.
Isso é o que o evangelista João chama de “o pecado do mundo” ( João 1.29) e a que
o apóstolo Paulo se refere como o “ pecado que habita em mim” (Romanos 7.18).
O pecado designa um poder ou uma força que atinge cada pessoa humana, que é
um espaço para o exercício e a influência do mal cósmico. Assim, em cada pessoa
humana, a tendência para o mal precede o exercício da vontade.
A tradição cristã afirma que essa é uma verdade sobre a existência humana
que é conhecida pela fé. Não é o resultado de um argumento ou uma teoria em
particular, mas, antes, uma tentativa de dar sentido ao que as Escrituras dizem
sobre a orientação humana fundamental para longe de Deus. Essa afirmação
factual foi teoricamente explicada de várias maneiras. O apóstolo Paulo parece ter
concebido tal desorientação como resultado de forças cosmológicas que
competiam desde o início contra a fidelidade humana a Deus. A doutrina cristã
do diabo é, portanto, um correlato, em certo sentido, dessa convicção sobre uma
força do mal que precede a vontade humana. Além disso, Agostinho defendeu
uma doutrina do “ pecado original”, que ele afirmava ter sido transmitido
biologicamente de Adão a todos os outros seres humanos na forma de uma
natureza humana corrompida. No século 20, o movimento do evangelho social
rejeitou esse relato biológico do pecado original e optou por um relato da
transmissão social de estruturas e circunstâncias pecaminosas que aguardam cada
pessoa humana e a condicionam desde o início a se afastar de Deus. Seja qual for a
afirmação apresentada, a doutrina cristã do pecado inclui a enfática afirmação de
que, antes de qualquer ação pecaminosa e, portanto, mesmo antes da formação de
hábitos pecaminosos, os seres humanos já estão predispostos a rejeitar o chamado
para um relacionamento correto com seu Criador. A doutrina cristã ensina “que o
pecado (pelo menos desde a ueda) não é de forma alguma um simples fenômeno
da liberdade individual, mas sim uma realidade anterior à própria liberdade
individual. O pecado precondiciona a liberdade”.93

P,   

Ao contrário da suposição dos movimentos de recuperação da adicção, a categoria


de “ pecado” não implica uma postura moralista e voluntarista acerca do poder da
vontade humana. Há espaço na doutrina do pecado para reconhecer, como faz
Agostinho, a escravidão da vontade humana diante da tentação. De fato, as
semelhanças entre a doutrina do pecado e os testemunhos de pessoas adictas são
impressionantes. Pessoas com adicções afirmam que seu comportamento adicto é
reconhecidamente destrutivo, embora, em algum sentido muito real, esteja além
do controle imediato de sua força de vontade. Semelhantemente, a doutrina do
pecado ensina que os seres humanos agem de maneiras que são destrutivas do
relacionamento correto com Deus, embora essas ações muitas vezes fluam de
hábitos e orientações fundamentais que não são passíveis de reforma por meio do
exercício imediato da vontade. Vimos que as pessoas adictas não apenas realizam
certos tipos de ações, mas se tornam certos tipos de pessoas, e argumentamos que
o hábito é, pelo menos parcialmente, constitutivo desse fato. De forma
semelhante, a doutrina do pecado afirma que os pecadores não são meramente
pessoas que cometem atos pecaminosos, mas sim pessoas cujo caráter é
pecaminoso, e o papel do hábito é parcialmente constitutivo desse fato. Portanto,
o pecado não é fundamentalmente algo que fazemos, mas sim algo que
descobrimos sobre quem somos. Por fim, pessoas adictas afirmam que são
predispostas às adicções, que algo em sua constituição material ou psicológica as
inclina para um comportamento adicto antes mesmo do primeiro ato viciante. Da
mesma forma, a doutrina do pecado original ensina que os pecadores não são
meramente pessoas que cometem atos pecaminosos, não apenas pessoas que têm
hábitos pecaminosos, mas, em última instância, pessoas que são predispostas ao
pecado.
Assim, a categoria da adicção não é incomensurável com a categoria do
pecado corretamente entendida. Obviamente, alguns casos de adicção não seriam
classificados apropriadamente como pecado. Por exemplo, pessoas com doenças
mentais graves são propensas à adicção, mas nem a linguagem do hábito nem a
linguagem do pecado parecem explicar corretamente a dinâmica em jogo nesses
casos. Em vez disso, estaríamos mais inclinados a pensar na adicção como uma
doença e, em linguagem religiosa correspondente, um exemplo de mal natural
(em vez de mal moral ou pecado). Mas temos tentado entender a “adicção
incontinente”, exemplos da adicção que exibem o “paradoxo da adicção”. A
maioria dos casos de adicção são casos de “adicção incontinente”, e tais casos não
são incomensuráveis com a categoria de pecado.
Nos casos padrão de adicção incontinente — casos em que julgamos
acertadamente uma pessoa adicta como responsável por sua recuperação, mesmo
reconhecendo as limitações impostas à sua força de vontade —, a categoria do
pecado é adequada à dinâmica em jogo. O caráter paradoxal da adicção
incontinente consiste no fato de que o comportamento adicto incontinente é, ao
mesmo tempo, voluntário e, ainda assim, além do controle imediato de uma
vontade supostamente autônoma. Isso é paradoxal porque geralmente somos
levados a acreditar que a esfera do voluntário é contígua à esfera do
autonomamente desejado — que ninguém pode ser responsabilizado por algo
sobre o qual não tenha controle imediato por meio do exercício da vontade
autônoma. Mas tenho argumentado que essas duas esferas não são de fato
contíguas, e apresentei uma categoria filosófica — o hábito — que explica essa
disparidade.
De igual modo, a doutrina do pecado desafia a suposta simetria entre o
voluntário e o autonomamente desejado. O movimento contemporâneo de
recuperação resiste à categoria do pecado, alegando que falar sobre pecado
simplesmente restabelece o moralismo e o voluntarismo, que são os inimigos da
recuperação. Mas, na verdade, a doutrina cristã do pecado, conforme articulada
especialmente por Agostinho ao longo da controvérsia pelagiana, foi desenvolvida
e ajustada precisamente para resistir a esse moralismo e voluntarismo. O paradoxo
da adicção reflete o paradoxo do pecado: como Agostinho argumentou, podemos
ser incapazes de não pecar e, ainda assim, ser corretamente considerados como
agindo oluntariamente em nosso pecado.
O paradigma contemporâneo da adicção, reagindo contra visões
excessivamente moralistas e voluntaristas da adicção, encontra um aliado no
conceito da doença da adicção. Argumentei nos primeiros capítulos deste livro
que, embora o conceito de doença forneça um corretivo para o moralismo e o
voluntarismo, ele o faz à custa de tornar ininteligíveis os modos reais de
recuperação que os adictos empreendem com sucesso. Em vez disso, propus que a
adicção seja entendida como hábito, aquela categoria filosófica que faz a mediação
entre a escolha autônoma, de um lado, e a doença determinada, de outro. Da
mesma forma, a doutrina cristã ortodoxa do pecado faz a mediação entre um
pelagianismo excessivamente voluntarista, por um lado, e um maniqueísmo94
excessivamente determinista, por outro. Portanto, não deveria ser surpreendente
descobrir que a linguagem do pecado pode acomodar a experiência e o discurso
da adicção.
As semelhanças entre as controvérsias acerca da doutrina do pecado que
envolveram Agostinho nos séculos 4 e 5 d.C., e as controvérsias atuais no
movimento de recuperação da adicção são gritantes, mas talvez não devamos nos
surpreender. Afinal, tanto o antigo discurso sobre pecado quanto o moderno
discurso sobre adicção buscam tornar inteligível certo tipo de comportamento
humano dos mais paradoxais. Não é por acaso que tanto Agostinho quanto
pessoas adictas encontram sua situação paradigmaticamente declarada nas
palavras do apóstolo Paulo: “Não entendo o que faço, pois não pratico o que
quero, e sim o que odeio […] pois o querer o bem está em mim, mas não o realizá-
lo. Pois não faço o bem que quero, mas o mal que não quero” (Romanos 7.15-19).
Isso sugere uma importante sobreposição entre o que as duas categorias —
adicção e pecado — estão tentando descrever.
Essa sobreposição pode ser mal interpretada. É tentador confundir as duas
categorias, de modo que o pecado seja simplesmente identificado com adicção.
Nesse caso, a adicção passa a ser considerada a metáfora ou o modelo apropriado
para todos os pecados e é vista como um corretivo para outras metáforas
defeituosas do pecado, metáforas como “mancha” ou “transgressão”.95 A fraqueza
desse método, no entanto, é que a linguagem da adicção é privilegiada de tal
forma que não podemos nem mesmo perguntar se a doutrina do pecado também
pode contribuir para a compreensão da discussão sobre a adicção. Se, como
Patrick McCormick argumenta, “o pecado é uma adicção”,96 é difícil ver como
essa identificação das duas categorias pode resistir a uma redução do pecado a
termos não teológicos. A linguagem do pecado então se torna redundante. Se o
pecado é uma adicção, e se já sabemos o que é uma adicção, então por que falar
sobre o pecado?
A outra maneira de interpretar mal a sobreposição conduz a quase o mesmo
resultado, mas por uma rota diferente. Em vez de misturar pecado e adicção, o
movimento de recuperação na América tendeu a simplesmente descartar a
linguagem do pecado, negando, assim, a sobreposição, confiante de que a
linguagem da adicção pode sustentar-se por si mesma. Entre outras razões, o
movimento de recuperação evitou inicialmente a linguagem do pecado porque
este era considerado uma característica universal da experiência humana, ao passo
que o movimento de recuperação queria enfatizar a singularidade da experiência
adicta. O que é interessante nesse movimento, entretanto, é que a linguagem da
adicção, no vácuo teológico criado pela retirada da linguagem do pecado, foi
continuamente expandida para preencher o vácuo. Essa é a conclusão
surpreendente de Linda Mercadante, que escreve: “A temática completou, assim,
uma volta completa. O que foi originalmente entendido como a condição
universal de pecado, então reduzido à patologia de um grupo particular, depois
expandido em uma multiplicação de diagnósticos de adicções, simplesmente se
tornou outro nome para uma situação humana universal”.97
Devemos, portanto, ter cuidado para evitar interpretar de maneira
equivocada a sobreposição entre pecado e adicção. As duas categorias não podem
ser nem totalmente combinadas nem inteiramente separadas, e isso pode ser
demonstrado simplesmente observando-se os tipos de comportamento que as
duas categorias podem abranger. Vários tipos de comportamento são exemplos
tanto de adicção quanto de pecado. Baseando-se novamente na taxonomia de
Aristóteles dos tipos de incontinência delineada no capítulo 2, parece provável
que a maioria, senão todos os casos de “adicção incontinente simples”, também são
casos de pecado. Nesses casos, a adicção é o resultado de uma série de decisões
tomadas por um agente moral autônomo, competente e informado.
Por outro lado, muitos casos de adicção não são apropria-damente
rotulados como pecado. O exemplo mencionado ante-riormente de pessoas com
um “diagnóstico duplo” de transtorno mental grave e adicção (casos que
Aristóteles teria chamado de “adicção mórbida”) seriam claramente casos que não
podem ser interpretados como pecado. Esses casos são interpretados mais
apropriadamente com a categoria de mal natural. Além disso, os casos de adicções
enraizadas em experiências de trauma ou violência não podem ser enquadrados
diretamente na categoria de pecado. A sobreposição entre pecado e adicção aqui é
extremamente complicada. Embora a vítima não possa ser responsabilizada por
ter-se tornado adicta, não se segue que a categoria de pecado seja inaplicável a
certos comportamentos que podem emergir da adicção.98 Ainda assim,
claramente a categoria de pecado não pode abranger tudo o que está em jogo
nessas situações. Para caracterizar adequadamente tais casos, como sugeriu
Cornelius Plantinga, devemos recorrer a alguma categoria mais ampla de mal
moral, como a “tragédia”.99
Por fim, muitas ocorrências de pecado não são apropriadamente rotuladas
como adicção. Se um homem raramente visita sua avó idosa na casa de repouso
porque é preguiçoso ou porque não gosta de asilos, ele obviamente não é adicto,
mas está obviamente sob o domínio do pecado. Esses vários casos sugerem que,
embora as atribuições de pecado e adicção se sobreponham, as categorias não se
referem a uma gama idêntica de fenômenos.
ual é, então, a relação entre o discurso da adicção e o discurso do pecado?
Tentei mostrar, nesta seção, que não há nada descrito pela linguagem da adicção
que esteja em contradição com o que é predito pela doutrina cristã do pecado.
Além disso, sugeri que não há nada surpreendente sobre a adicção do ponto de
vista de uma robusta doutrina do pecado. O qualificador “robusta” é importante
aqui, uma vez que a igreja sempre corre o risco de escorregar para uma ou outra
visão empobrecida e herética do pecado, variantes do pelagianismo ou do
maniqueísmo. O movimento de recuperação da adicção tem sido, de fato, um
interlocutor altamente construtivo, na medida em que os teólogos cristãos têm
procurado resistir a tais relatos defeituosos do pecado e rearticular, em termos
contemporâneos, a doutrina do pecado. Ainda assim, acho que é justo dizer que o
discurso da adicção não traz nada que seja genuinamente novo para a doutrina
cristã do pecado.
Até agora, demonstrei apenas que é aceitável falar do comportamento
adicto incontinente como pecado. Mas não demonstrei que a linguagem do
pecado é necessária ou mesmo particularmente útil para descrever e exibir o
caráter de tal comportamento. Chamei a atenção para a maneira pela qual a
doutrina cristã do pecado pode acomodar e até mesmo prever descontinuidades
entre a escolha autônoma e o comportamento voluntário. Isso mostra que a
linguagem do pecado pode acomodar até mesmo os aspectos mais
desconcertantes do fenômeno da adicção, mas não mostra que a linguagem do
pecado é necessária para explicar o fenômeno. Afinal, as descontinuidades entre o
voluntário e o autônomo foram expostas nos primeiros capítulos como explicáveis
com base na categoria filosófica do hábito. Até agora, então, não há nada que
impeça uma rejeição da linguagem teológica com base no fato de que todos os
“ganhos” trazidos por esse tipo de linguagem podem ser facilmente alcançados
por meio de um desdobramento da categoria de hábito, sem toda a “bagagem”
religiosa adicional que a linguagem do pecado traz consigo. A defesa que
apresentei pode justificar que os cristãos continuem a utilizar a linguagem do
pecado em referência ao comportamento adicto, mas não faz nada mais do que
isso. Tal modesta realização é tudo o que se poderia esperar de uma defesa da
adequabilidade da gramática cristã do pecado; para mostrar mais do que isso, é
necessário agora um tipo diferente de investigação.

O    

Linda Mercadante argumenta que a supremacia do paradigma da adicção,


particularmente nos Estados Unidos, é correlativa à atenuação dos modos
teológicos de reflexão sobre a experiência humana: “A expansão da aplicação da
metáfora da adicção é também uma resposta a um vácuo teológico criado em
parte pelas inseguranças e pelo consequente silêncio das comunidades religiosas à
medida que conceitos centrais como pecado tornaram-se inaceitáveis no discurso
público”.100 Agora, estamos em posição de perguntar: o deslocamento da
linguagem do pecado pela linguagem da adicção resulta em alguma perda? A
resposta é sim. A doutrina cristã do pecado nos dá uma visão explicativa e
descritiva do fenômeno da adicção, visão esta que não é acessível nos termos
completamente naturalizados do discurso da adicção.
Argumentei, no capítulo anterior, que a adicção é uma resposta
peculiarmente moderna à perda de uma visão teleológica convincente da natureza
e da atividade humanas. Como Alasdair MacIntyre e outros argumentaram, a
perda de consenso na modernidade sobre o propósito da existência humana
implica que os únicos “bens” com os quais todos podemos concordar são os bens
de sobrevivência e liberdade da intromissão de outros em nossos próprios projetos
privados. Um desvio ou uma deficiência só podem ser caracterizados tão
profundamente ou substancialmente quanto a “norma” em relação à qual se desvia
ou se está em falta. Assim, não nos deveria surpreender que o discurso secular só
possa caracterizar a adicção normativamente como um desvio ou deficiência, na
medida em que a adicção tende a prejudicar nossas chances de sobrevivência e a
restringir nossa liberdade de buscar outros projetos que valorizamos.
Se nossa noção do bem e do florescimento humanos se limitar às funções
fisiológicas e sociais normais, nossa capacidade de definir o caráter destrutivo da
adicção será igualmente limitada. Além disso, essa visão restrita do florescimento
humano fornece àqueles que estão sofrendo com a adicção uma noção
empobrecida do que podem esperar. Assim, as pessoas são encorajadas a lutar
contra suas adicções para que possam tornar-se “membros produtivos da
sociedade”. Alasdair McFadyen argumentou que, na ausência da perspectiva
eterna implícita na linguagem do pecado, não somos capazes de caracterizar
corretamente a “dimensão profunda” das “patologias” mais perversas que
encontramos no mundo moderno. Falando particularmente das “patologias” de
abuso sexual infantil e do Holocausto, McFadyen apresenta seu ponto de vista
com perguntas retóricas persuasivas: “Tudo o que é danificado, distorcido ou
perdido pelo abuso é simplesmente o funcionamento normal fisiológico,
emocional ou social? E tudo o que se pode esperar de medidas terapêuticas é o
retorno dessas funções a um estado normal? A profundidade de sua patologia é
adequadamente capturada se o Holocausto for julgado perverso por negar a
milhões de seres humanos o direito de manter a vida e evitar danos?”.101
Gostaria de fazer uma observação semelhante em relação à adicção. Só
podemos trazer à tona a dimensão profunda dela colocando-a dentro de um
quadro mais amplo de convicções sobre a natureza e o destino humanos. Isso
significa que a linguagem do pecado não é apenas compatível com o fenômeno da
adicção, mas também é necessária para uma caracterização da adicção em todo o
seu poder profundamente destrutivo.
A categoria de pecado é uma categoria religiosa, e sua função central é falar
de Deus e do mundo — especificamente o mundo da atividade humana —, um
em relação ao outro. Pois, como McFadyen argumenta, “o pecado é uma
linguagem essencialmente relacional, falando da patologia com uma referência
embutida e pelo menos implícita à nossa relação com Deus. Referir-se ao que
prejudica os seres humanos como pecado é afirmar que o caráter essencial e a
característica definidora de tal patologia, por mais que possa ser descrita e
identificada em linguagens não teológicas, é teológica: ruptura de nossa relação
adequada com Deus”.102 Portanto, falar da adicção na linguagem do pecado não é
simplesmente oferecer uma avaliação moral ou ética a respeito da adicção, uma
vez que a categoria do pecado não é primariamente uma categoria moral ou ética.
Em vez disso, falar de adicção na linguagem do pecado é colocar a adicção dentro
de uma compreensão mais ampla da natureza do desejo humano e dos fins para os
quais os seres humanos foram criados. uando falamos da adicção na categoria
filosófica do vício, chamamos a atenção para o modo como a adicção constitui
uma espécie de deficiência moral, uma ruptura na busca da pessoa humana por
seu fim natural ou, na linguagem de Tomás de Aquino, seu fim “apropriado”. Mas,
quando falamos da adicção na categoria teológica do pecado, chamamos a atenção
para a maneira como ela constitui não uma deficiência moral, mas sim um
afastamento de nosso bem perfeito de amizade eterna com Deus. O surgimento
do discurso de adicção está relacionado à perda de um senso generalizado do telos
transcendente para os seres humanos, mas nos aponta de volta para a necessidade
de tal linguagem de transcendência, a fim de dar sentido ao fenômeno que o
discurso busca descrever.

86 L, William. e freedom we crave: addiction — the human condition (Grand Rapids:
Eerdmans, 1985), p. 11.
87 M, Gerald. Addiction and grace (New York: HarperCollins, 1988), p. 4.
88 Ibid.
89 Frase encontrada em um livreto do AA, citado em M, Linda. Victims and sinners:
spiritual roots of addiction and recovery (Louisville: Westminster John Knox Press, 1996), p. 6.
90 Sobre a história do AA, ver K, Ernest. Not God: a history of Alcoholics Anonymous
(Center City: Hazelden Publishing, 1991).
91 Mercadante, Victims and sinners, p. 116.
92 A. Confessions, trad. Henry Chadwick (Oxford: Oxford University Press, 1991),
VIII.v (10). [Edição em português: Confissões (São Paulo: Paulus, 2016), p. 123.]
93 MF, Alasdair. Bound to sin: abuse, holocaust and the Christian doctrine of sin
(Cambridge: Cambridge University Press, 2000), p. 28.
94 De acordo com o maniqueísmo, a pessoa humana é pouco mais do que um campo de batalha no
qual as forças cósmicas independentes e opostas do Bem e do Mal travam guerra entre si.
95 Essa é a estratégia empregada por MC, Patrick, C.M. Sin as addiction (New York:
Paulist Press, 1989).
96 Ibid., p. 146.
97 Mercadante, Victims and sinners, p. 110.
98 Ver G, Christine. Victimization: examining Christian complicity (Philadelphia: Trinity
Press International, 1992).
99 P, Cornelius Jr. Not the way it’s supposed to be: a breviary of sin (Grand Rapids:
Eerdmans, 1995), p. 139.
100 Mercadante, Victims and sinners, p. 107.
101 McFadyen, Bound to sin, p. 201.
102 Ibid., p. 5.
7
ADICÇÃO E ADOR AÇÃO
Caritas e suas falsificações

V  , um amigo que havia trabalhado em sua pós-graduação


como paramédico me contou sobre uma de suas experiências mais terríveis no
trabalho. Ele havia recebido uma ligação anônima informando que um adicto em
heroína estava à beira da morte em um prédio abandonado. uando chegou ao
apartamento, o homem estava encolhido em um canto, tremendo e sem reação,
cercado por pilhas de lixo podre, seringas usadas, isqueiros, colheres — toda a
parafernália característica da adicção em heroína. uando perguntei como havia
sido essa experiência, meu amigo disse que tinha sido aterrorizante, mas que
também pensou que havia sido provavelmente a primeira vez que ele
compreendeu plenamente o que era adoração.
Refleti sobre essa imagem com frequência enquanto lutava com a questão
sobre o que a adicção nos ensina sobre nossa natureza como seres humanos. Neste
capítulo, quero desenvolver as implicações da percepção de meu amigo de que a
adicção é um tipo de adoração. Em um esforço para conectar as categorias de
adicção e pecado, quero argumentar que a adicção pode ser interpretada como
uma forma falsificada de adoração.
A adicção é um hábito complexo. Como todos os hábitos complexos,
incluindo as chamadas “virtudes”, a adicção é um modo de comportamento
humano que torna certos tipos de bens humanos acessíveis. Entre esses bens, a
adicção é especialmente direcionada para a busca de certos bens morais e
espirituais. Entre os bens morais buscados pela adicção, o mais importante é um
princípio ordenador que possibilita o exercício da razão prática; e, entre os bens
espirituais buscados pela adicção, o mais importante é um princípio integrador
que torna as atividades imanentes das pessoas humanas significativas à luz de
alguma busca transcendente. Em suma, esse é o meu argumento. A última
afirmação sobre a relação entre a adicção e os bens espirituais ainda precisa ser
defendida.
Se eu puder mostrar que o poder fenomenológico e a profundidade da
experiência adicta são exibidos de maneira mais adequada quando entendemos a
adicção como uma forma falsificada de adoração, então terei demonstrado como a
linguagem do pecado aprofunda e amplia nossa compreensão acerca da adicção.
Pois todo pecado, como idolatria, é essencialmente adoração falsificada. Todo
pecado é o esforço para atingir, independentemente de Deus, aquele
florescimento, integridade de ser e deleite que só podem ser alcançados por meio
de um correto relacionamento com Deus. A adoração é o nosso treinamento nesse
relacionamento correto e a manifestação deste, portanto, aquelas formas de
comportamento humano que meramente imitam a prática da adoração e
enganosamente prometem os frutos da adoração correta são expressões da
pecaminosidade humana. Assim, demonstrar que a adicção é adoração falsificada
é demonstrar que a adicção é pecado e só pode ser entendida adequadamente
dentro da categoria teológica do pecado.

I  

Adoração, defendemos, é o relacionamento correto com Deus e não se restringe


ao templo ou à capela, nem aos “devocionais” matinais ou às orações antes de
dormir. Antes, a adoração significa a possibilidade desfrutada por pessoas
humanas de experimentar e viver seus dias como uma expressão de seu
relacionamento com Deus. uando colocamos o assunto dessa forma,
começamos a perceber que a adoração é um mistério. O que significa exatamente
preparar uma refeição, cortar a grama ou fazer uma prova como expressão do
relacionamento com Deus?
Colocando o ponto de outra forma, Paulo decerto não está falando
literalmente quando exorta os fiéis a orar sem cessar (1Tessalonicenses 5.17).
Obviamente, também temos outras coisas para fazer. No entanto, a tradição cristã
sempre sustentou que a vocação e o privilégio do cristão é viver toda a sua vida,
nas palavras do irmão Lourenço, “praticando a presença de Deus”. O chamado
para a adoração correta, portanto, levanta uma questão: como as práticas
imanentes da vida diária devem ser relacionadas à busca transcendente por um
relacionamento correto com Deus?
Como já vimos, o problema que essa questão levanta remonta a Aristóteles.
Na Ética a Nicômaco, ele está preocupado precisamente com a incapacidade de
relacionar essas duas dimensões da vida humana. Nos primeiros nove livros da
Ética, Aristóteles argumenta que a melhor vida humana deve ser alcançada por
meio do desenvolvimento das virtudes morais e intelectuais e das atividades
práticas que essas virtudes possibilitam — atividades como constituir família,
desenvolver amizades e governar cidades. Mas então, no livro X, ele
repentinamente declara que a única atividade verdadeiramente adequada à vida de
florescimento humano é a prática da theoria, contemplação e serviço do divino.
Em nenhum lugar da Ética somos informados sobre como esses dois tipos muito
diferentes de atividades devem ser ordenados ou integrados. Como omas Nagel
comenta ironicamente, se no final o único empreendimento que vale a pena é a
theoria, então parece que Aristóteles acredita “que a vida humana não é
suficientemente importante para os humanos gastarem sua vida com ela”.103 Há,
então, certa lacuna no relato de Aristóteles sobre a boa vida, porque ele falha em
explicar como a vida de ação prática deve ser integrada à contemplação e ao
serviço de Deus.
Essa lacuna no relato de Aristóteles sobre a vida plena encontra uma
resposta definitiva no pensamento cristão de Tomás de Aquino, pois é este que
fornece uma explicação profunda tanto sobre os modos como a vida da atividade
prática se integra à busca humana do divino quanto sobre os meios pelos quais os
vários bens da vida humana podem ser corretamente ordenados para alcançar essa
integração. A explicação fornecida por Tomás de Aquino está enraizada em seu
relato das virtudes teologais — fé, esperança e amor. Mas sua explicação se apoia
mais fortemente na virtude teológica do amor, que é a virtude sobrenaturalmente
infundida que capacita os seres humanos para a participação na vida de Deus e,
assim, ordena cada uma das outras virtudes a Deus. A palavra usada por Tomás de
Aquino para se referir a essa virtude do amor é caritas, ou “caridade”.
A fim de dar continuidade à minha tese de que a adicção é uma forma de
adoração falsificada, quero explorar a seguinte questão: o que habilita a caridade a
desempenhar esse papel integrador e ordenador, e poderia a adicção desempenhar
papel semelhante? Em outras palavras, a adicção capacita o adicto a integrar o
imanente e o transcendente de maneiras que imitam a função da virtude da
caridade? Minha tese é que a profundidade e o poder da adicção entram em foco
quando reconhecemos como a adicção é uma falsificação da virtude da caridade.
Obviamente, um pressuposto cristão orienta meu argumento, e é
simplesmente o pressuposto de que existe uma realidade transcendente e que as
pessoas humanas possuem desejos direcionados a essa realidade. Não há
necessidade de justificar tal suposição em bases cristãs, uma vez que a
transcendência é uma afirmação fundamental da revelação cristã. Meu argumento
poderia, entretanto, ser tomado como uma espécie de apologética indireta a tal
suposição, pois, se a adicção pode ser compreendida como uma estratégia para
integrar o imanente e o transcendente na vida humana, então a esmagadora
realidade da adicção talvez sugira que uma orientação para o transcendente é uma
característica fundamental da natureza humana.
O Ocidente pré-cristão não sabia como integrar a busca humana da
felicidade imanente e a felicidade transcendente, e o Ocidente cristão afirmava
fornecer uma resposta a essa questão. Mas o mundo pós-cristão em que vivemos
agora é caracterizado por uma suspeita ou rejeição da transcendência como um
todo. A busca pós-cristã de plenitude e realização, então, foi reduzida a um
projeto de imanência, e meu argumento dará suporte à tese de que a adicção é um
produto desse favorecimento moderno da imanência em detrimento da
transcendência. Os adictos podem ser nossos profetas modernos mais enérgicos e
eloquentes, lembrando-nos do perigo que a negação do transcendente traz. Por
isso, examinemos mais de perto a virtude teológica da caridade, procurando
compreender como ela institui um vínculo entre a busca humana de realização
imanente e da realização transcendente.

T  A  

A caridade, Tomás de Aquino nos diz, é a amizade entre os seres humanos e Deus.
É uma amizade baseada na comunicação de Deus de sua felicidade aos seres
humanos. Mais especificamente, a caridade é “o amor fundamentado nessa
comunhão” (2-2.23.1). Para Tomás de Aquino, ela está preeminentemente
fundamentada no movimento de Deus em direção às pessoas, e não no esforço das
pessoas por Deus. A caridade “não se fundamenta principalmente na virtude do
homem, mas na bondade de Deus”. É, portanto, uma “ virtude infundida”, para a
qual os seres humanos não têm uma capacidade “natural” (2-2.24.2). Falar de uma
virtude como “infundida” é apontar que sua realização depende da obra do
Espírito Santo; por um ato de graça sobrenatural, Deus preenche a alma sequiosa
com o amor que atrai a alma a ele.104 Assim, a caridade é uma “ virtude
sobrenatural” porque direciona as pessoas ao seu fim sobrenatural de comunhão
com Deus. É a mais forte e mais intensa de todas as virtudes, incluindo as outras
virtudes sobrenaturais da fé e da esperança: “nenhuma virtude tem tão grande
inclinação para o seu ato quanto a caridade, e não há nenhuma que opere de
modo tão deleitável” (2-2.23.2).
Como, para Tomás de Aquino, a virtude da caridade torna possível que
participemos de uma relação com Deus? Afinal, Deus é infinito e nós, finitos.
Não somos capazes de compreender ou entender Deus. Como, então, podemos
amá-lo? Além disso, como a caridade integra nossos esforços práticos nesse
relacionamento com Deus? Afinal, nossas buscas práticas e suas correspondentes
virtudes morais e intelectuais são direcionadas a bens finitos, enquanto nossa
busca por Deus é direcionada a um bem infinito.
Tomás de Aquino responde a essas perguntas propondo que a caridade não
está na faculdade intelectiva, mas sim na faculdade apetitiva, e esta difere, para
Tomás de Aquino, em um aspecto muito importante da faculdade intelectiva: a
faculdade apetitiva é infinita. Tomás de Aquino coloca isso sucintamente: “A
concupiscência racional [ desejo] é absolutamente infinita” (1-2.30.4). Cada um
de nós tem anseios que, segundo ele, não podem ser saciados por nada que seja
finito. Paul Wadell explica o significado da posição de Tomás de Aquino:

Se a graça parte do lado de Deus, o desejo parte do nosso. Tomás admite que, se fôssemos finitos
em todos os sentidos, Deus não poderia ser nossa alegria, pois não podemos “alcançar mais bens”
do que podemos suportar. Mas há, ele afirma, um modo em que não somos finitos: temos um
desejo ilimitado. Somos limitados em todos os sentidos, mas temos um desejo ilimitado, anseio
ilimitado. Nosso desejo é a única coisa sobre nós que não é restrita, e sabemos disso. Sentimos a
fome contínua por algo infinitamente bom, somos perseguidos pelo anseio por algo perfeitamente
bendito e precioso. Embora sejamos limitados, queremos um bem ilimitado; embora sejamos
restritos, queremos amar sem restrições. É por isso que Tomás diz que “podemos alcançar o
infinito” (1-2.2.8). Buscamos o infinito pela abertura do desejo, e somente algo indefectivelmente
bom satisfará esse desejo.105

Assim, a caridade estabelece a possibilidade de um relacionamento real com


Deus, porque ela direciona o desejo humano infinito ao Bem Infinito, o único que
pode satisfazer esse desejo.
Além disso, o amor de Deus tornado possível pela caridade flui
externamente e se expressa em um amor pelas outras coisas: “Nesse sentido,
portanto, deve-se dizer que o amor, ato da potência apetitiva, inclina-se
primeiramente para Deus, mesmo na vida presente, dele derivando para as demais
coisas. Assim, a caridade ama a Deus de modo imediato, e as outras coisas a partir
dele” (2-2.27.4). Como Tomás de Aquino explica: “Deus é o objeto principal da
caridade, e o próximo é amado em caridade por causa de Deus” (2-2.23.5). A vida
da caridade não envolve, portanto, uma separação entre o transcendente e o
imanente; mas, ao contrário, estabelece um vínculo entre os dois. O movimento
em direção a Deus que é constitutivo da caridade não implica um movimento de
afastamento daquilo que é terreno, mas um movimento mais pleno também para
os bens deste mundo. Dessa forma, a caridade vence a descontinuidade entre o
valor imanente e o transcendente que notamos na explicação de Aristóteles sobre
a felicidade humana.
Além disso, como amamos as coisas deste mundo por causa caridade, nossa
atividade nos transforma no amor que buscamos ser. Para Tomás de Aquino, não
se trata simplesmente que, ao amar a Deus corretamente, amamos todas as outras
coisas corretamente; na verdade, como amamos outras coisas de maneira correta,
essas atividades mais comuns transfiguram nossos desejos, tornando-nos cada vez
mais abertos e submissos ao amor com o qual Deus nos agracia.
Como a caridade torna possível essa integração, ela constitui também um
princípio organizador que, de outra forma, não está presente entre as virtudes
morais. Tomás de Aquino afirma diretamente que “nenhuma ordem é atribuída às
outras virtudes” (2-2.26.1), e essa é de fato uma preocupação que incomodou os
comentaristas modernos da tradição da ética da virtude. Para ele, no entanto, a
caridade corrige a falta de um princípio organizador entre as virtudes naturais e
realiza isso porque informa e ordena todas as outras virtudes. Sem a caridade, na
visão de Tomás de Aquino, as virtudes carecem do tipo específico de
direcionamento que elas exigem, mas a caridade proporciona precisamente essa
direção ao ordenar as outras virtudes para um fim comum: “deve-se dizer que a
caridade é considerada o fim das outras virtudes, porque as ordena para seu fim
próprio. E, sendo a mãe aquela que concebe em si mesma e por um outro, pode-se
dizer que a caridade é a mãe das outras virtudes porque, pelo desejo do fim
último, concebe os atos das demais virtudes, governando-os” (2-2.23.8).
Tomás de Aquino fornece vários exemplos da maneira como a caridade
ordena as outras virtudes. É-nos dito que “a razão de amar o próximo é Deus; pois
o que devemos amar no próximo é que ele esteja unido com Deus” (2-2.25.1) e
que “pode-se, contudo, amar as criaturas irracionais, pela caridade, como bens que
desejamos para os outros, enquanto, pela caridade, queremos que elas sejam
conservadas para a honra a Deus e a utilidade dos homens” (2-2.25.3). A caridade
faz com que amemos a nosso próximo, a nós mesmos, a nossos inimigos, a nossos
corpos e às criaturas irracionais corretamente, ordenando todos esses amores a um
amor mais fundamental a Deus (2-2.25).
É importante ressaltar que a caridade não opera como algum princípio
abstrato por cuja aplicação especulamos sobre a ordem correta da vida da virtude
prática. Antes, a virtude sobrenatural da caridade vem com esse ordenamento
implícito, por assim dizer. À medida que crescemos em caridade e nosso amor a
Deus se torna mais intenso, afirma Tomás de Aquino, a ordem correta de todos os
outros amores ocorre naturalmente. A caridade, portanto, simplifica
profundamente a vida moral, não tornando a prática da virtude moral irrelevante
para a vida da eudaimonia, mas, antes, habituando-nos a ordenar corretamente
essas práticas, bem como determinar corretamente o significado dos bens finitos
desta vida.

A  

Não sou o primeiro a sugerir uma conexão entre a adicção e a busca da


humanidade pelo transcendente. O eminente psicólogo suíço Carl Jung, que
desempenhou um papel significativo, embora não intencional, na formação do
Alcoólicos Anônimos,106 julgava que o “ anseio [viciado] por álcool era
equivalente, em um nível mais baixo, à sede espiritual de nosso ser por plenitude;
expresso em linguagem medieval: a união com Deus”.107 Jung considerava
significativo que o termo latino para “álcool” fosse spiritus: “Você usa a mesma
palavra para a experiência religiosa mais elevada e para o veneno mais depravador.
A fórmula útil [para a recuperação] é, portanto: spiritus contra spiritum (espírito
contra espírito)”.108 Podemos tentar expandir a afirmação promissora, embora
enigmática, de Jung , exibindo as semelhanças entre o hábito teológico da
caridade e o hábito da adicção.
Tomás de Aquino diz que a caridade ordena a vida moral porque é a forma
de todas as virtudes. Ele diz que “caridade não é chamada forma das outras
virtudes de modo exemplar ou essencial, mas, antes, de modo efetivo, por lhes
impor a forma” (2-2.23.8). Como uma virtude pode ser a causa eficiente de outra?
Tomás de Aquino oferece o seguinte cenário pitoresco para mostrar como uma
virtude pode ser a causa de outra: “Se um homem comete adultério por causa do
lucro e ganha dinheiro com isso, enquanto outro o faz dominado pelo apetite,
embora perca dinheiro e seja penalizado por isso, o último seria considerado
autoindulgente em vez de ganancioso, porém o primeiro é injusto, mas não
autoindulgente” (1-2.18.6). Para esclarecer: no caso do homem que comete
adultério por causa do lucro, o vício da avareza faz com que o vício da luxúria
suscite a ação do adultério. No caso do homem que esbanja dinheiro na busca de
um relacionamento adúltero, o vício da luxúria comanda o vício da prodigalidade
para provocar a ação da irresponsabilidade financeira.
Da mesma forma, a caridade comanda as outras virtudes a agirem
direcionadas para o fim que a caridade busca. Ela comanda atos de justiça,
temperança, coragem, e assim por diante, em prol da realização do objetivo da
caridade, a amizade com Deus. Dessa forma, a caridade ordena todas as virtudes.
Fornece o direcionamento específico para um fim substancial unificado, que, de
outra forma, falta às virtudes, porque, na melhor das hipóteses, são direcionadas
para um fim abstrato (felicidade ou eudaimonia), que está sempre aberto a
especificações alternativas.
As adicções exercem enorme controle sobre as pessoas humanas, em parte
porque suprem essa necessidade de um princípio organizador. Como a caridade
de Tomás de Aquino, a adicção é um hábito que comanda todas as demais
atividades de uma pessoa e direciona cada uma delas para um fim unificado e
substancial. A pessoa nas garras de uma adicção profunda descobre que opera em
um terreno moral profundamente simplificado, no qual toda atividade, todo
relacionamento, todo objeto de valor é reinterpretado e investido de significado
apenas à medida que se relaciona ao fim da prática da adicção. Ouça, por exemplo,
os seguintes testemunhos:

Era assustador que a bebida estivesse substituindo mais e mais as coisas que eu realmente gostava
de fazer. Golfe, caça, pesca, agora, eram apenas desculpas para beber em excesso […] Nunca tendo
o suficiente, sempre desejando mais, a obsessão pelo álcool gradualmente começou a dominar
todas as minhas atividades, principalmente durante as viagens. O planejamento da bebida tornou-
se mais importante do que outros planos (AA 349).
Eu tinha entrado na vida de bebida. Beber fazia parte de ser homem. Beber era parte
integrante da sexualidade, facilitando a entrada em suas escuras e misteriosas câmaras de tesouro.
Beber era a liga sacramental de amizades. Beber era a recompensa pelo trabalho, combustível para
a celebração, o consolo para a morte ou para a derrota.109

Ainda hoje, lembro-me vividamente de como era organizar toda a minha vida em torno do
tabagismo. uando as coisas corriam bem, eu pegava um cigarro. uando as coisas iam mal, eu
fazia o mesmo. Eu fumava antes do café da manhã, depois da refeição, quando bebia, antes de fazer
algo difícil e depois de fazer algo difícil. Sempre tive uma desculpa para fumar. Fumar tornou-se
um ritual que serviu para destacar aspectos saudáveis da experiência e impor uma estrutura ao que,
de outra forma, teria sido um pântano confuso de eventos. Fumar forneceu vírgulas, pontos e
vírgulas, pontos de interrogação, pontos de exclamação e pontos finais da experiência. Isso me
ajudou a adquirir um sentimento de senhorio, um sentimento de que eu estava no comando dos
eventos em vez de me submeter a eles. Essa ânsia por cigarros equivalia a um desejo por ordem e
controle, não por nicotina.110

Conforme cada um desses testemunhos demonstra, a adicção simplifica e


ordena a vida, estreitando o foco da pessoa adicta em um objeto, um “fim último”.
Esse fenômeno às vezes é ignorado por causa da definição contemporânea de
adicção em termos de “ perda de controle”, mas o que cada um desses
depoimentos deixa claro é que a atração da adicção reside precisamente em sua
capacidade de dar à pessoa adicta a sensação de estar no controle de sua vida e de
ser capaz de analisar e avaliar todos os cursos de ação possíveis em termos de um
fim definido que sobrepuja todos os outros concorrentes por gerar fidelidade
absoluta.
Paradoxalmente, a pessoa adicta perde o controle sobre sua adicção
exatamente à medida que o poder de ordenação e controle da adicção se insinua
em sua cosmovisão. Essa é uma das fontes da profunda ambivalência característica
da adicção severa. Por meio de deliberação e persuasão racionais, o agente pode
vir a acreditar que a adicção destruiu sua vida ao arrancar-lhe o controle. Mas a
mente habituada não é facilmente convencida, pois é precisamente por causa de
seu poder de ordenar e controlar que o objeto de desejo se tornou um objeto
viciante. uando William Burroughs descreve a vida da pessoa adicta em heroína
como “medida em gotículas de solução de morfina”,111 é provável que recuemos
enojados. Não conseguimos reconhecer, no entanto, que a força da adicção reside
não principalmente na heroína ou nos prazeres sensoriais que ela proporciona,
mas sim na simplicidade e na beleza de ter uma vida medida por um padrão,
harmonizado com uma melodia, dirigido a um fim.
Objetos viciantes são viciantes porque permitem que as pessoas regulem
suas vidas. É por isso que, entre as várias classes de substâncias que alteram a
mente, muito poucas pessoas são adictas em alucinógenos como LSD ou
mescalina. Os alucinógenos são imprevisíveis em seus efeitos, de modo que o
usuário nunca pode saber que tipo de “viagem” esperar. Como os alucinógenos
não podem fornecer uma experiência regular, não podem regular o restante da
experiência. Eles carecem da mesmice e da singularidade da experiência à luz da
qual uma pessoa adicta pode vir a compreender e interpretar o valor do restante
de sua atividade. É porque os alucinógenos não podem fornecer a “mesmice
artificial” — a qual, de acordo com Stanton Peele, “é a tônica da experiência
viciante” — que raramente desencadeiam o hábito ordenador da adicção.112
Compreender o poder ordenador e regulador da adicção nos coloca em
posição de entender os tipos de “desculpas” esfarrapadas que os alcoólatras e
outras pessoas com adicções encontram para se envolverem em comportamento
adicto. A literatura do AA lembra repetidamente os alcoólatras em recuperação
desse perigo: “Nós tínhamos tornado a invenção de desculpas uma bela arte.
Tínhamos de beber porque os tempos eram difíceis ou porque eram bons.
Tínhamos de beber porque em casa estávamos sufocados com amor ou porque
não o recebíamos. Tínhamos de beber porque no trabalho éramos grandes
sucessos ou fracassos terríveis. Tínhamos de beber porque nossa nação havia
vencido uma guerra ou perdido a paz. E assim era, ad infinitum” (DD 47).
Se qualquer coisa pode ser usada como desculpa, então nada parece
legítimo. Mas há mais coisas acontecendo aqui do que a mera invenção de álibis.
O fato de que qualquer coisa pode contar como uma desculpa é uma função do
poder que a adicção tem de incorporar todos os aspectos da vida de uma pessoa
adicta em seus próprios ritmos e em suas próprias lógicas. Para o alcoólatra, os
bons momentos são realmente vazios sem álcool, os tempos difíceis são
insuportáveis sem álcool, a solidão deixa de ser solidão com o álcool, os
relacionamentos amorosos são mediados pelo álcool, o sucesso só pode ser
celebrado com o álcool, a rejeição só pode ser evitada com o álcool, e assim por
diante. Ser um alcoólatra é entrar em uma relação com o álcool de tal maneira que
tudo o mais na vida só faz sentido se for acompanhado pelo álcool. Como a
caridade de Aquino, a adicção transfigura as atividades mais ordinárias em
transações significativas.
Aristóteles afirma que a prática da theoria é a melhor de todas as atividades
humanas porque, entre outras razões, “é a mais contínua, pois podemos
contemplar a verdade mais continuamente do que podemos fazer qualquer outra
coisa” (1177a22-24). Mas, mesmo que seja a forma de atividade mais contínua
para Aristóteles, ela não é totalmente contínua e é interrompida por termos de
“fazer” coisas. No entanto, a caridade resolve essa ruptura. uando infundidas
com caridade, as “ações” de um agente não são meramente instrumentais para
alguma atividade separada da caridade, mas são parcialmente constitutivas da
caridade, pois fazer coisas por caridade é tanto uma expressão quanto um
crescimento da amizade do agente com Deus. Mesmo que Aristóteles elogie a
theoria como a atividade “mais contínua” disponível para os seres humanos, ele
teria considerado estranho e irresponsável aconselhar alguém a “contemplar
continuamente”, pois mesmo a pessoa mais virtuosa tem de sobreviver, e as coisas
necessárias para a sobrevivência não podem contar como contemplação. Mas,
dado que as atividades práticas podem ser realizadas na caridade, Tomás de
Aquino não acha estranho ou irresponsável quando Paulo aconselha os fiéis a
“orar sem cessar” (1Tessalonicenses 5:17).
Se a natureza informativa da caridade torna possível a admoestação, de
outra forma impossível, de Paulo de “orar continuamente”, a natureza informativa
da adicção torna possível o que os alcoólatras chamam de “thinking drinking”
[pensar em beber continuamente] — a incrível capacidade do alcoólatra de
orientar todos os seus pensamentos e atividades em torno do centro governante
da adicção.
Minha amiga Gail, que é chef profissional, costumava levantar-se às cinco da manhã e ficar no
chuveiro obcecada com o que beberia naquela noite, e quando seria capaz de beber, e como,
quanto e com quem. Ela fazia isso diariamente, obcecada no chuveiro por causa da bebida, todas as
manhãs, às cinco da manhã.113

Eu tinha vivido minha vida inteira sob a influência de substâncias que alteram o humor e a
mente. Não que eu estivesse drogado a cada minuto do dia; às vezes ficava limpo por vários dias
seguidos —, mas minha obsessão com as drogas alterava minha perspectiva e meus sentimentos
sobre tudo, incluindo meu amor por Mary, meu relacionamento com meus pais e irmãos, meu
trabalho, minha alma, até mesmo meu Deus. Eu não havia virado um adicto — a adicção é que
virou o meu eu.114

A adicção explora “a necessidade instintiva de concentração; destila a


complexidade da experiência humana em algo essencialmente simples; canaliza
todas as necessidades em uma”.115 Essa é a marca da adicção, às vezes chamada de
obsessão, mas a obsessão não exclui, como a theoria de Aristóteles, todos os outros
objetos ou atividades da consciência de um agente. Em vez disso, a obsessão, como
a caritas, transfigura todos os outros objetos ou atividades à sua própria imagem e
se apropria deles para seus próprios fins.
Por fim, voltemo-nos para mais uma analogia surpreendente entre caridade
e adicção. Tomás de Aquino afirma que a caridade está condicionada à infinitude
do desejo humano. Como “a concupiscência racional [ desejo] é absolutamente
infinita”, apenas a caridade, a comunhão com o infinito, pode satisfazer nossa
fome de plenitude: “Buscamos algo tão amável, que, ao possuí-lo, não desejemos
mais nada”, como diz Paul Wadell.116 A caridade é capaz de proporcionar essa
satisfação, porque oferece um bem que excede a capacidade humana natural para a
felicidade. De que forma a adicção é uma busca por essa completude e, além disso,
uma expressão da convicção de que tal complemento está, em um sentido muito
real, além de nossas limitações humanas naturais?
Já observamos a opinião de Jung sobre esse assunto; ele acreditava que a
adicção era de fato uma função da “sede espiritual de nosso ser por plenitude;
expressa em linguagem medieval: a união com Deus”. A esse respeito, podemos
citar vários testemunhos de pessoas adictas:
A maioria dos alcoólatras que conheço experimenta essa fome muito antes de tomar o primeiro
gole, aquele anseio por algo, algo fora de si que proporcionará alívio, consolo e bem-estar.117

Antes do AA, estávamos tentando beber Deus em uma garrafa.118

[Desejos adictos] têm mais que ver com a alma do que com o cérebro. Eles iluminam o anseio
por totalidade, por perfeição, por fazer tudo parecer bem e certo novamente. Trata-se da mais
profunda fome e sede humana de experimentar o êxtase, a alegria, o céu.119

Para colocar esses testemunhos nos termos de Tomás de Aquino, pessoas


adictas são aquelas que parecem incapazes de negar que “a concupiscência
racional [ desejo] é absolutamente infinita”. O profundo anseio pela plenitude,
que é característico da adicção, se manifesta no extremismo, no perfeccionismo e
na busca pela realização extasiante, cada um dos quais se assemelha estreitamente
às características da caridade.
Tomás de Aquino afirma que, ao contrário de nossos outros apetites —
apetites por comida, sexo, riqueza, e assim por diante —, nosso apetite por Deus
não precisa, na verdade não deve, ser submetido a moderação nenhuma.
Temperança é amar os prazeres sensoriais do paladar e do tato com moderação.
Justiça é amar com moderação o bem do outro. Coragem é amar os bens da vida e
a honra com moderação. Mas caridade é amar a Deus sem moderação. De fato, o
amor incomensurável a Deus, que é a caridade, visto que ordena apropriadamente
todos os outros atos para o seu fim, tem a qualidade de ser o padrão imponente
sobre todos os outros hábitos. Se amarmos a Deus sem limites, pensa Tomás de
Aquino, descobriremos que amamos todos os outros bens proporcionalmente. A
caridade, portanto, nos direciona para um objetivo que devemos buscar sem
restrições, e a caridade nos promete que o extremismo nessa direção se traduzirá
em ação correta em todas as outras direções.
A adicção é, por definição, um hábito do extremismo: “Suficiente? Essa é
uma palavra estranha para um alcoólatra, absolutamente desconhecida. Nunca há
o suficiente, ou algo similar a isso […] Mais é sempre melhor para um alcoólatra;
mais é necessário. Por que tomar dois drinques se você pode beber três? Três, se
você pode beber quatro? Por que parar?”.120 Não existe tal coisa como “mais ou
menos” adicto ou como uma “adicção moderada”.
O extremismo da adicção é uma expressão de alguma qualidade
sobrepujante ou superior do fim que é buscado? O que, exatamente, as pessoas
adictas procuram quando se envolvem em um comportamento adicto? Parte do
propósito do meu argumento foi demonstrar que as pessoas com adicções estão
em busca de um tipo de ordem e integridade que parece anestesiá-las em seu dia a
dia, seja pela arbitrariedade e pela fragmentação da cultura moderna, seja por
causa de algum anseio mais profundo e transcendente. O que parece claro é que a
busca adicta é uma busca por algo além do cotidiano, do comum, dos pequenos
prazeres da rotina diária. Francis Seeburger argumenta: “Um adicto é uma pessoa
que quer mais. Não mais do mesmo, mais da rodada diária de ganhos e perdas, de
bens e serviços que bastam para a maioria de nós na maioria das vezes, mas ‘mais’
no sentido de algo totalmente diferente, algo que já não é mensurável por esses
padrões cotidianos — algo ‘mais’ do que tudo isso”.121
Poderíamos dizer que os adictos são pessoas insatisfeitas com a boa vida que
é encorajada por Aristóteles e que, em última análise, é rejeitada por Tomás de
Aquino como uma forma meramente aproximada de felicidade. O desejo adicto
não é por qualquer bem imanente, mas sim contra todo bem meramente imanente
e por um bem que está além daquilo que é meramente imanente. Em vez de uma
aproximação ou apenas uma medida de felicidade, pessoas adictas procuram a
perfeição da felicidade. Adictos são, como o AA os descreve, “pessoas de tudo ou
nada” (DD 161). Eles buscam felicidade abrangente, nada menos do que
contentamento perfeito. É por isso que a abstinência parece ser a única resposta
realmente bem-sucedida à adicção.
Pessoas adictas simplesmente não estão interessadas em imaginar uma vida
na qual seus fins são buscados de maneira moderada, em que os bens do
comportamento adicto são diluídos e intercalados com prazeres mais mundanos
na tentativa de fornecer um modo de vida administrável: “Para mim, a ideia de
que um alcoólatra em formação pode aprender a beber moderadamente soa como
uma contradição em termos (eu raramente, ou nunca, bebi moderadamente,
mesmo no início). Também parece ignorar as tendências compulsivas mais
profundamente enraizadas que um alcóolatra sente em relação ao álcool; são
necessidades que não respondem bem ao conceito de moderação”.122 Tomás de
Aquino diria o mesmo de nosso desejo por Deus: essa não é uma necessidade que
responde bem à moderação.
A busca adicta de algo “mais do que tudo isso”, algo além das limitações do
eu, é, em última análise, uma busca pelo êxtase. Estou usando “ êxtase” aqui em
seu sentido formal, denotando um “estar fora de si mesmo”, um “ek-stasis”. A
caridade e as virtudes teologais em geral são virtudes extáticas, pois o agente que
recebe esses hábitos é, ao mesmo tempo, o sujeito e o objeto do hábito. A
caridade, por exemplo, é inerente à alma de um agente, mas a ação possibilitada
pelo hábito da caridade é realmente uma ação derivada, que deriva de uma
atividade mais fundamental da parte de Deus. Ela só é possível enquanto Deus
continuar a derramar seu amor eternamente autossuficiente na alma daquele de
quem se tornou amigo. É, portanto, um hábito que se recebe fundamentalmente e
que se expressa derivativamente.
A caridade é, portanto, a realização do êxtase, o movimento além dos
limites do eu para uma realidade que engloba o eu, mas não é contida pelo eu. É
por isso que Tomás de Aquino fala da caridade como um hábito de “ participação”
(2-2.24.5). Enquanto as virtudes morais fortalecem e solidificam a ação daquele
que as possui, a caridade desloca a ação daquele em quem ela é “derramada”,
tomando posse do agente.
A adicção, como a caridade, é um hábito de êxtase. Bruce Wilshire afirma
que “as adicções são atos violentos contra a nossa própria insignificância”.123 Se
Wilshire estiver certo sobre isso, então a designação “abuso de drogas” é um
eufemismo; em vez disso, alguma forma de “autoabuso” é o que acontece. Embora
Wilshire argumente que a maneira de superar a adicção seja lidar com nosso
próprio significado, uma interpretação diferente é possível. Pois pode ser que
sejamos, relativamente falando, insignificantes. E, além disso, podemos acreditar
corretamente que o contentamento pelo qual ansiamos realmente está fora de nós
mesmos, realizado apenas por meio de algum movimento extático. Essa foi a
posição de Agostinho, e a maneira como ele expressa sua opinião é de particular
interesse para nossa investigação. Agostinho ora: “Tu o incitas para que sinta
prazer em louvar-te; fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto
não repousa em ti […] uem me fará descansar em ti? uem fará com que venhas
ao meu coração e o inebries a ponto de eu esquecer os meus males, e me abraçar a
ti, meu único bem?”.124
A adicção, então, pode ser entendida como a busca por essa intoxicação
extática. A pessoa adicta, reconhecendo sua própria insignificância e insuficiência
para alcançar a felicidade perfeita, busca ser levada a uma experiência imersiva,
anseia ser o objeto, e não o sujeito da experiência, anseia por sofrer ou receber a
felicidade em vez de produzi-la. Existe, então, um paralelo notável entre o santo e
o adicto. Como Francis Seeburger afirma:

O verdadeiro oposto do adicto não é o santo, mas a pessoa morna, complacente e


confortavelmente “decente” representada pelo jovem rico do Evangelho […] O alcoólatra ou outro
adicto fica na sombra do santo. Em contraste, aqueles que nunca foram adictos apenas porque não
possuem paixão suficiente não estão nem mesmo nas proximidades da santidade.125

A atração da adicção é essa atração pelo êxtase, a expressão de um profundo


descontentamento com a vida de felicidade “média”, e a busca de um amor
arrebatador. Isso pode explicar por que tantos que não possuem o desespero ou a
coragem de buscar o êxtase por meio de uma adicção profunda ficam, no entanto,
tão impressionados pela leitura de memórias sobre adicções. Testemunhe o
fascínio nacional pelas memórias de adicção de James Frey, de 2005, A million
little pieces [Um milhão de pedacinhos], que, depois de ser elevado à condição de
livro do mês de Oprah Winfrey, foi descoberto como uma fraude.126 É sugestivo
perguntar por que poderia ser tão lucrativo escrever ou mesmo inventar um livro
de memórias sobre adicções. Sugiro que tem algo a ver com a busca humana
fundamental por um acesso extasiante à realização transcendente e perfeita.
As adicções são viciantes apenas na medida em que nos tentam com a
promessa de uma felicidade extremamente perfeita, e são escravizadoras apenas
quando imitam e oferecem impressões dessa perfeição. A profundidade e o poder
da adicção se tornam mais inteligíveis conforme passamos a ver a adicção como
uma falsificação da virtude da caridade. Como tal, a adicção é apropriadamente
descrita como um fracasso na adoração, uma expressão potente de idolatria na
qual buscamos no plano imanente aquilo que só pode ser alcançado no
relacionamento com o Deus transcendente. A sedução e o fascínio da adicção são
de fato evidenciados apenas à medida que vemos como a adicção, de maneira
impressionante, permite que os adictos alcancem o simulacro dos bens que a
adoração correta torna possível. Tal exibição demonstra que a adicção pode ser
mais apropriadamente caracterizada como uma representação do esforço das
pessoas humanas de alcançar por si mesmas o florescimento, a integridade do eu e
o deleite extático que só podem ser recebidos por meio do relacionamento correto
com Deus.

A    

Antes de voltar ao tema da recuperação, quero encerrar este capítulo amarrando


todos os fios do argumento que venho tecendo. Em Os doze passos e as doze
tradições, lemos: “Declaramos que éramos vítimas de uma obsessão mental tão
sutilmente poderosa, que nenhuma força de vontade humana poderia vencê-la”
(DD 22). Tentei fornecer uma explicação das maneiras pelas quais a adicção, sutil
mas poderosamente, recruta a lealdade da racionalidade e, assim, torna-se uma “
obsessão mental”. E acredito que esse relato nos coloca em posição de
compreender a recalcitrância da adicção à “força de vontade humana”.
uaisquer que sejam os meios que empregue, a adicção não se insinua por
meio da deliberação racional. Não é como se a pessoa adicta, quando confrontada
com a escolha de agir ou não em função da adicção, determinasse por deliberação
que, considerando todos os fatores, agir assim é o melhor para ela. Na verdade, o
paradoxo da ação adicta é que muitas vezes ela é realizada mesmo diante da
deliberação racional em sentido contrário. O comportamento da pessoa adicta
torna-se desconcertante, espantoso, precisamente porque parece desconectado do
controle que os agentes exercem por meio da deliberação. É por isso que as
pessoas com adicções costumam falar em “ver a si mesmas” servindo-se de outra
bebida ou tomando outra dose. E é por isso que a adicção é experimentada como
uma espécie de escravidão ou servidão, como um enfraquecimento em vez de uma
ampliação da agência.
Caroline Knapp descreve sua própria tentativa iludida e fracassada de
sujeitar seu alcoolismo aos raios perscrutadores do pensamento discursivo: “Filha
de uma analista como sou, acrescentaria a reflexão à lista de remédios [que tentei]
— e de fato eu tentei, até a reabilitação. Explique as razões pelas quais você bebe…
Pense seu caminho para a saúde mental”.127 De acordo com Knapp, esse é um
beco sem saída. Curiosamente, porém, Knapp não conclui desse fracasso do
holofote discursivo que a adicção esteja sem suas razões ou que ela seja
fundamentalmente irracional. Pelo contrário, ela afirma que a adicção é a
representação de certo conhecimento: “Com o tempo, ao longo de muitas, muitas
bebidas, esse conhecimento se incorpora, as lições se encaixam na alma: o álcool
alivia, o álcool acalma e protege, um bálsamo psíquico”.128 Esse conhecimento
parece inutilmente vago, mas Knapp insiste que qualquer tentativa de ir além
desse nível e de descrever algum conhecimento mais específico representado pela
adicção só pode ser desonesta: “Não há uma resposta simples. Tentar descrever o
processo de se tornar um alcoólatra é como tentar descrever o ar. É muito grande,
misterioso e difundido para ser definido. O álcool está em toda a sua vida,
onipresente, e você está ciente e inconsciente dele quase o tempo todo; tudo o que
você sabe é que morreria sem ele, e não há uma razão simples para isso acontecer,
nenhum momento único, nenhum evento fisiológico que empurre um
consumidor constante de álcool por uma linha concreta para o alcoolismo. É um
tornar-se lento, gradual e insidioso”.129
A condição de estar “ciente e inconsciente [do objeto de adicção] quase o
tempo todo” soa, à primeira vista, como uma admissão de autoengano ou
negação. Knapp fala abertamente sobre a negação, e teremos algo mais que dizer
sobre a centralidade do autoengano para a adicção, mas o autoengano não é a
única maneira de interpretar esse fenômeno de estar simultaneamente consciente
e inconsciente. Também podemos interpretá-lo em termos da diferença entre
consciência no nível da deliberação e consciência no nível do hábito. Já
descrevemos como a adicção, ao se enraizar na estimativa cogitativa de uma
pessoa, assume uma função ordenadora na vida da pessoa adicta, de modo que
todas as outras atividades e bens são processados em termos do cálculo da adicção.
Mas raramente essa função de ordenação é explicada no nível de consciência
explícita. A adicção pode desempenhar esse papel informativo sem se inserir
como um termo do raciocínio silogístico, sem que isso seja um fator na
consciência deliberativa de um agente.
Em um capítulo extraordinariamente perspicaz intitulado In odka veritas
[Na vodka está a verdade], Knapp tenta transmitir a maneira pela qual o álcool
pode tornar-se uma obsessão mental tão sutil, que nem sequer percebemos o que
está acontecendo:

É a equação pela qual todos vivemos, todo alcoólatra que conheço…


Desconforto + Bebida = Sem Desconforto
Medo + Bebida = Bravura
Timidez + Bebida = Confiança
Dor + Bebida = Auto-obliteração130

Essa é a “matemática da autotransformação”. Knapp explica: “No fundo, o


alcoolismo parece o acúmulo de dezenas de tais conexões, dezenas de pequenos
medos, fomes e fúrias, dezenas de experiências e memórias que se acumulam no
fundo de sua alma, aglutinando-se ao longo de muitas bebidas em uma única
solução líquida”.131
Podemos adicionar às equações:

Fragmentação + Adicção = Identidade


Arbitrariedade + Adicção = Propósito
Tédio + Adicção = Estímulo
Vazio + Adicção = Significado
Finitude + Adicção = Êxtase

Essas são as equações, as razões, que habituam a estimativa cogitativa. Não


são os “vários e vários drinques”, mas essas conexões feitas e as equações resolvidas
ao longo de muitos drinques que habituam a estimativa cogitativa. Como me
explicou um alcoólatra em recuperação, “para o alcoólatra, o álcool é um
pedagogo”.
Para o consumidor de álcool normal, uma bebida é uma bebida. Para o
alcoólatra, uma bebida é uma vida. A adicção não é algo que uma pessoa adicta
tem, como tosse, febre ou mesmo uma doença. A adicção é um estilo de vida. É o
hábito de ver o mundo de certa maneira e de estar no mundo de certa maneira. É
uma habituação da percepção, paixão e imaginação: a maneira como uma pessoa
adicta percebe, sente, imagina — tudo isso é mediado pelo significado que sua
adicção imprimiu na estimativa cogitativa. A adicção, como a maioria dos hábitos,
infunde inteligência nas emoções e na imaginação. Cada ato, mesmo o mais
modesto que uma pessoa adicta realiza, carrega em si essa lógica, essa
racionalidade fundamental e de longo alcance do estar-no-mundo do adicto: “A
vida de um adicto constitui uma vocação”;132 a adicção é uma “filosofia de vida
completa” (DD 25).
Neurologicamente, isso significa que a adicção não tem a ver primariamente
com a relação entre os neurônios específicos aos quais as substâncias viciantes
podem ligar-se, imitando ou bloqueando outros neurotransmissores “naturais”.
Essas reações químicas são responsáveis pelos processos de tolerância e
abstinência, mas, como foi mostrado no capítulo 1, tolerância e abstinência não
são constitutivas da adicção. Neurologicamente, a adicção envolve a inter-relação
e a interdependência de vastos sistemas de células que estão relacionados com
conforto, confiança, identidade, significado, propósito — em suma, os termos de
todas aquelas “equações” realizadas, corroboradas e registradas pela estimativa
cogitativa da pessoa adicta.
Uma pessoa que se torna temporariamente adicta em analgésicos narcóticos no hospital pode ser
capaz de abandonar a droga mais rapidamente e com muito mais serenidade do que outra pessoa
pode desprender-se da perda de um emprego ou de um ente querido. A adicção da primeira pessoa,
embora quimicamente intensa, envolve talvez apenas alguns milhões de células diretamente. Não
teve tempo de influenciar sistemas celulares tão amplos como aqueles que estão relacionados com
o significado da vida, a autoimagem e a segurança básica […] Não é tão difícil entender como
nossas adicções podem vir a governar nossas vidas. Cada uma de nossas principais adicções
consiste não apenas no próprio apego primário; também inclui o envolvimento de vários outros
sistemas que foram afetados por ele. Para simplificar, as adicções nunca são um único problema.
Assim que tentamos vencer uma adicção real, descobrimos que em muitos aspectos ela se tornou
um estilo de vida.133

A sutileza e o poder da adicção agora entram em foco como aspectos


gêmeos de sua natureza como um hábito complexo que reside substancialmente
na estimativa cogitativa, mas que envolve a imaginação e a memória, assim como o
corpo. É sutil, porque permeia todos os aspectos do ser da pessoa adicta de tal
forma que ela não pode afastar-se da adicção, por assim dizer, para localizá-la em
uma cadeia de raciocínio ou em uma faceta da consciência. E é poderosa, porque,
sempre que a pessoa adicta tenta derrotar racionalmente sua atração pelo objeto
viciante, este desperta um mundo de significado, toda uma “filosofia de vida”
incipiente e inarticulada que transborda e desvia a razão prática direta. É da
natureza do hábito em geral ser recalcitrante, em maior ou menor grau, às
manifestações imediatas e fugazes da razão deliberativa, mas isso é especialmente
verdadeiro no que diz respeito aos hábitos da estimativa cogitativa, pois estes
geralmente operam como hábitos de automatismo e, portanto, podem operar de
forma bastante independente dos esforços mentais conscientes de um agente —
muitas vezes apesar desses esforços.
A adicção, agora enraizada como um hábito de automatismo da estimativa
cogitativa, incorpora o objeto da adicção em um estilo de vida tão difundido e
integrado, que o próprio esforço para a eliminar muitas vezes apenas a confirma e
fortalece. O primeiro passo do AA — “ admitimos que éramos impotentes em
relação ao álcool” — é um reconhecimento desse paradoxo da agência da pessoa
adicta. O alcoólatra em recuperação deve reconhecer que, precisamente ao tentar
exercer controle sobre sua adicção, ele a solidifica e fortalece. uanto mais ele
tenta diretamente não beber, mais certo se torna seu fracasso, porque, ao focar o
objeto da adicção, ela incita um inquestionável mundo de significado que só pode
ser penetrado pela prática da adicção.
Um dos grandes ensinamentos do AA e do modelo de recuperação de doze
passos em geral é o reconhecimento da recalcitrância do hábito viciante em
relação à deliberação direta e à força de vontade. É por isso, por exemplo, que
apenas um dos doze passos — o primeiro — menciona o álcool. Os outros onze
passos podem ser entendidos como exortações para tratar do problema, não
tratando dele diretamente, mas sim adotando padrões alternativos de pensamento
e ação que podem gradualmente reeducar e reformar a mente habituada. A
sabedoria do programa de doze passos reside no reconhecimento de que o hábito
da adicção só pode ser suplantado pelo desenvolvimento de outro hábito que seja
tão difundido e atraente quanto o hábito da adicção. Um estilo de vida só pode
ser suplantado por outro; por essa razão, o AA é corretamente entendido por seus
membros como um estilo de vida: “O programa é um plano para uma vida inteira
de vivência diária” (AA 317).
Trabalhar os passos não é uma fórmula mágica que impede o alcoólatra de
beber enquanto mantém intactas outras áreas de sua vida. A droga Antabuse
(dissulfiram), que leva o alcoólatra a experiências disfóricas tensas quando
combinada com o álcool, tenta fornecer essa fórmula mágica, razão pela qual
geralmente não consegue uma recuperação duradoura. Em vez disso, trabalhar os
passos significa tornar-se o tipo de pessoa que não percebe o mundo como um
adicto. Esse é o cerne do adágio do AA de que a irmandade não visa
principalmente ensinar como parar de beber, mas como viver sóbrio. A pessoa
adicta que pensa nos passos como um meio temporário de “ficar limpa” terá quase
inevitavelmente uma recaída. Tornar-se o tipo de pessoa que pode trabalhar os
passos como forma de vida deve ser, para a pessoa em recuperação, um fim em si
mesmo. O método é indireto. A pessoa adicta assume a responsabilidade por
aspectos de sua vida que podem estar sob controle mais imediato, que podem não
desencadear o hábito de automatismo da adicção, e, ao fazê-lo, descobre que
respondeu indiretamente à adicção.
Tenho investigado a adicção sem primeiro oferecer uma definição. Não
tentei circunscrever cuidadosamente o domínio da adicção ou dizer o que pode e
o que não pode ser considerado uma adicção. Uma pessoa pode ser adicta em
cafeína, compras, exercícios, uma causa, uma religião? Em vez de delimitar as
fronteiras da adicção, tentei-me concentrar em seu centro e argumentar que se
trata de um hábito da estimativa cogitativa segundo o qual o objeto da adicção é
investido de um significado que se estende a todos os outros aspectos da vida de
uma pessoa adicta. Argumentei que a adicção é um hábito que, como a caridade,
informa todos os outros hábitos ao determinar o fim para o qual esses hábitos são
direcionados. Já falei algumas vezes em “adicção profunda” como forma de
identificar essa característica totalizante e abrangente do hábito da adicção.
Acredito que seja raro, por exemplo, que o café seja objeto de uma adicção
profunda. Se falamos de uma adicção em café, tendemos a nos concentrar na
tolerância e na abstinência como constituintes da adicção. Como sugerido no
capítulo 1, esse foco estreito nos distrai dos aspectos da adicção que geram o
alcoolismo ou a adicção em crack e cocaína, por exemplo, seu assustador e
desconcertante poder e sedução. É claro que também é possível que as adicções
manifestem algumas das características nas quais me concentrei e outras não. Por
exemplo, estou convencido de que fumar desempenha um importante papel
ordenador e integrador na vida do fumante, mas não tenho certeza de quanto a
adicção em nicotina tem a ver com o desejo extático.134 Tentei chegar ao centro
do que considero as adicções mais extremas e dominantes que conhecemos,
aquelas em que a “ perda de controle” parece ser a única maneira de descrever o
comportamento adicto — na esperança de que outras adicções menos graves
possam, no entanto, ser iluminadas pela investigação.
Embora meu próprio foco possa questionar a condição de certas atribuições
de adicção, como adicção em cafeína, em geral a consequência desse foco será um
alargamento, em vez de um estreitamento, do domínio da adicção, pois não há
razão para supor que as substâncias sejam os únicos objetos de desejo que
poderiam desempenhar um papel totalizante na vida de um agente. Os adictos em
substâncias recebem, com razão, a atenção que recebem por causa de seus efeitos
visivelmente trágicos, tanto na vida das pessoas adictas quanto na vida daqueles
que se preocupam com elas. Mas, de certa forma, as adicções em substâncias são
os tipos menos traiçoeiros das adicções profundas, precisamente porque se
tornam cada vez mais difíceis de ignorar. Outras adicções importantes escravizam
silenciosamente, mas não são menos destrutivas para a humanidade de seus reféns.
Meu argumento é que a adicção é um hábito informado, como todos os
hábitos, pela racionalidade, e tenho tentado analisar a estrutura dessa
racionalidade e mostrar como a adicção se insinua na estimativa cogitativa ao
fornecer uma ordem e uma plenitude à vida de uma pessoa adicta — ordem e
integridade pelas quais nós, como seres humanos, e particularmente como seres
humanos modernos, ansiamos. A adicção, argumentei, opera como uma estratégia
moral e espiritual, desempenhando funções específicas na vida moral e dando
poder a uma pessoa para a busca, conquanto equivocada, de satisfação extática. É
por isso que prestei muita atenção ao potencial construtivo e positivo da adicção e
elaborei pouco sobre a destruição e estragos que ela causa. A adicção é
misteriosamente poderosa; mas, se deixarmos de perguntar em que consiste esse
poder, então a tornamos não apenas misteriosa, mas também incompreensível.
Tentei fazer com que a adicção parecesse menos estranha, dando-nos maneiras de
pensar sobre a influência que ela exerce sobre as nossas vidas. Espero que minha
análise tenha mostrado quão perto, em vez de quão longe, cada um de nós está da
adicção profunda.

103 N, omas. “Aristotle on eudaimonia” em Essays on Aristotle’s ethics, ed. Amelic O. Rorty
(Berkeley: University of California Press, 1980), p. 11.
104 A linguagem de “ virtude infundida” não deve ser confundida com a linguagem da “justiça
infundida”. A última locução pertence à questão da justificação e destaca uma área de conflito entre a
teologia católica romana e a teologia protestante. Enquanto os protestantes historicamente afirmam
que os crentes são aceitos por Deus porque a justiça de Jesus é “imputada” a eles como se fosse deles,
os católicos sustentam que os crentes são aceitos por Deus porque a justiça é “infundida” neles como
um dom da fé. A linguagem da “ virtude infundida”, no entanto, aborda o tema da santificação cristã.
É uma tentativa de descrever como o processo de santificação envolve uma reforma genuína do crente,
embora permaneça em cada passo totalmente dependente do movimento preveniente de Deus em
direção aos seres humanos. Dizer que a mudança é “infundida” é insistir que é um dom do Espírito
Santo; dizer que o dom é uma “ virtude” é insistir que ele efetua uma transformação genuína no
caráter do crente.
105 W, Paul J., C.P. e primacy of love: an introduction to the ethics of omas (New York:
Paulist Press, 1992), p. 61.
106 Foi relatado a Bill Wilson que Jung havia dito a um de seus pacientes alcoólatras que não havia
para ele, como para outros alcoólatras crônicos, nenhuma esperança de recuperação, exceto a rara
possibilidade de que ele “se tornasse o sujeito de uma experiência espiritual ou religiosa: em suma,
uma conversão genuína”. Em uma carta a Jung, que pode ser encontrada junto com a resposta dele em
e language of the heart: Bill W.’s Grapevine writings (New York: e AA Grapevine, 1988), p. 276-
81, Bill Wilson afirma que foi a severidade desse conselho que o incitou à sua própria conversão e à
formulação final da primeira etapa do AA. Os dois “avôs” do AA são, portanto, Carl Jung e William
James, cujo e varieties of religious experience (New York: Mentor, 1958) foi a outra fonte do
princípio central do AA de que a recuperação do alcoolismo geralmente requer algum tipo de
“experiência de conversão”. Ver C, Susan. My name is Bill (Nova York: Simon & Schuster,
2004), para um relato dos papéis de Jung e James na criação do AA.
107 Citado em S, Francis. Addiction and responsibility: an inquiry into the addictive
mind (New York: Crossroad, 1993), p. 105.
108 Ibid.
109 H, Pete. A drinking life: a memoir (Boston: Little, Brown, 1994), p. 146-47.
110 E, Jon. Strong feelings: emotion, addiction, and human behavior (Cambridge: MIT
Press, 1999), p. 64.
111 B, William. Junky (New York: Penguin Books, 1977), p. xvi.
112 P, Stanton; B, Archie. Love and addiction (New York: Signet, 1975), p. 52.
113 K, Caroline. Drinking: a love story (New York: Dial Press, 1996), p. 141.
114 C, William; K, Katherine. Broken: my story of addiction and redemption (New
York: Viking, 2006), p. 140.
115 P, William. Survival of the coolest: an addiction memoir (Bath: Clear Press, 2003), p. 132.
116 Wadell, Primacy of love, p. 39.
117 Knapp, Drinking, p. 55.
118 Bill Wilson citado por N, James. irst: God and the alcoholic experience (Louisville:
Westminster John Knox Press, 2004), p. 27.
119 Moyers, Broken, p. 207.
120 Knapp, Drinking, p. 53.
121 Seeburger, Addiction and responsibility, p. 114.
122 Knapp, Drinking, p. 119.
123 W, Bruce. Wild hunger: the primal roots of modern addiction (Lanham: Rowman and
Littlefield, 1998), p. 14.
124 Agostinho, Confissões, I.i (1), v (5), grifo meu.
125 Seeburger, Addiction and responsibility, p. 108, 112.
126 F, James. A million little pieces (New York: Anchor, 2005).
127 Knapp, Drinking, p. 117.
128 Ibid., p. 59.
129 Ibid., p. 9.
130 Ibid., p. 61-70. Usei várias partes desse capítulo para construir uma versão concentrada do caso
que ela apresenta em prosa narrativa.
131 Ibid., p. 61-69.
132 Peele e Brodsky, Love and addiction, p. 58.
133 May, Addiction and grace, p. 84-85, destaque meu.
134 Entretanto, um argumento a favor da conexão entre fumar e o transcendente é feito em K,
Richard. Cigarettes are aublime. (Durham, N.C.: Duke University Press, 1993).
8
ADICÇÃO E IGRE JA
O evangelho e a esperança de recuperação

S          


 , quais são as implicações para a esperança de recuperação?
Mais especificamente, se, como argumentei, as dimensões profundas da
experiência adicta só podem ser trazidas à tona quando compreendemos a adicção
como uma forma falsificada de adoração, quais são as implicações para a igreja? Se
a adicção é uma adoração falsa, como a igreja, que pretende praticar a verdadeira
adoração ao Deus verdadeiro, deve responder à adicção?
Este não é um capítulo de “como fazer”; não farei recomendações
específicas sobre formatos de reuniões ou exercícios para pequenos grupos ou
programas de evangelismo que ajudem a igreja a responder melhor às pessoas
adictas em seu meio. Recomendações desse tipo são importantes, mas não são
minha preocupação aqui. Em vez disso, estou interessado em pensar sobre os
desafios e as oportunidades especiais que a adicção apresenta para a igreja. Ela
representa uma advertência e um convite à igreja, e esta tem muito a aprender
com as comunidades intencionais nas quais a recuperação está acontecendo. Em
muitos aspectos, a prevalência de tais comunidades pode ser vista como uma
acusação à igreja. Por outro lado, a igreja tem recursos para criticar e aprofundar o
movimento de recuperação. Neste capítulo final, sigo três linhas principais de
questionamento. Primeiro, o que distingue a adoração da igreja da adicção?
Segundo, o que a igreja tem para oferecer ao movimento de recuperação? E,
terceiro, que tipos específicos de desafios e oportunidades a adicção apresenta
para a igreja?

A  
Dada a análise da adicção que tenho proposto, a questão mais fundamental que a
adicção levanta para a igreja é se a adoração é em si uma forma de adicção.
Adoração é culto, devoção e submissão total a Deus. A adoração correta se esforça
para relacionar todos os desejos e atividades humanas a Deus; é um exercício de
reorientação em direção a um fim totalmente suficiente. Todos os desejos e as
atividades humanas são postos em questão: como esse amor, esse compromisso,
essa atividade confessa ou rejeita, afirma ou nega meu relacionamento com Deus
como expressão fundamental de minha identidade e destino? A adoração é,
portanto, uma atividade totalizante; exige que tudo na vida de uma pessoa seja
colocado no banco dos réus diante de Deus, interrogado por um padrão e,
consequentemente, renunciado ou reordenado. É por isso que a forma da
adoração é a oração. Na confissão nos arrependemos daquilo em nós que não
conduz ao amor a Deus, e no louvor e na intercessão reordenamos nossa visão e
nossos desejos para o amor a Deus. O objetivo da adoração correta é que tudo seja
levado cativo a Cristo, que nossas vidas como cristãos sejam expressões de uma
oração incessante a Deus.
Como, então, a própria adoração não é simplesmente outro modo de
adicção? Afinal, argumentei que a adicção é caracterizada por uma obsessão
totalizante com o objeto da adicção, o qual, por meio da habituação da estimativa
cogitativa, permeia absolutamente todos os aspectos da vida de uma pessoa adicta.
Se tomarmos a obsessão como uma marca constitutiva da adicção, seremos
levados à conclusão de que uma vida sem adicções é uma vida livre de obsessão,
uma vida de neutralidade ou desapego. Essa é a conclusão que vem sendo
defendida em grande parte do movimento de recuperação. Francis Seeburger, por
exemplo, argumenta que “a mente não adicta é uma mente desapegada” e “a mente
não adicta é uma mente abandonada”.135 Budismo ou outras religiões orientais
são frequentemente louvados e recomendados a pessoas adictas como propícias a
uma vida de desapego.
Se aceitarmos a afirmação de que a mente não adicta é a mente desapegada,
e seu inverso, que a mente apegada, dependente ou obcecada é a mente adicta,
torna-se difícil imaginar como a adoração, definida como completo culto,
devoção e submissão a Deus, pode ser qualquer coisa a não ser outra forma de
adicção. Essa tem sido de fato uma crítica comum à religião, que surgiu da
tendência crescente de interpretar toda a experiência humana através das lentes do
paradigma da adicção. Essa crítica é a fonte do chavão ouvido recorrentemente
entre inúmeros adictos em recuperação: “Sou espiritual, não religioso”. E a crítica
levou os cristãos a dizerem coisas bizarras sobre a natureza de seu compromisso
religioso. Assim, por exemplo, William Lenters afirma: “Deus quer que sejamos
livres de um relacionamento de dependência com ele”.136
Essa é certamente uma afirmação inaceitável dentro da gramática cristã. Na
verdade, o discipulado cristão nada mais é do que um exercício constante de
aprender como reconhecer nossa total dependência de Deus, e o pecado nada
mais é do que a contínua ilusão de que podemos viver independentemente de
Deus. Lenters e outros foram enganados pela identificação da adicção com a
dependência, de tal forma que parece que a única maneira de salvar a fé cristã da
acusação de adicção é mostrar como, mesmo dentro da fé cristã, podemos manter
uma espécie de distanciamento e independência do objeto de nossa devoção. No
entanto, nossa total dependência de Deus e nossa obrigação de viver em
submissão a Deus são convicções cristãs centrais. Assim, na cosmovisão cristã, se a
adicção é confundida com dependência, não há como evitar a acusação de que a
devoção a Deus é uma adicção. Pois como pode a vida da caridade parecer outra
coisa senão outra forma de adicção, uma vez que ela promete não o desapego, mas,
antes, participação extasiante no fogo consumidor do amor divino? Se, como
afirma Paul Wadell, “amar a Deus em caridade significa que perdemos o controle
sobre nossa vida precisamente onde o risco é maior: perdemos o controle sobre
nós mesmos”,137 como o santo é realmente diferente do adicto que perde o
controle sobre sua vida submetendo-se ao objeto de sua adicção? Como a
adoração é realmente diferente da adicção?
O autoengano indica uma diferença crucial entre o adicto e o santo, e,
portanto, entre a adicção e a adoração. Exploramos a maioria das principais
“marcas” da adicção — tolerância, abstinência, anseio, perda de controle,
ambivalência, recaída, obsessão —, com uma exceção significativa. Falamos muito
pouco sobre a negação, aquela marca da adicção que às vezes é, como a obsessão,
considerada por si só uma condição suficiente para a adicção.138 Embora eu não
acredite que a obsessão ou a negação por si só sejam uma condição suficiente para a
adicção, em conjunto elas constituem a essência da adicção. Além disso, a
diferença entre a adicção e a adoração pode ser explicada em termos de negação.
A negação é uma forma, na verdade a forma predominante, do autoengano.
Como a incontinência, o autoengano apresenta um paradoxo para os filósofos que
pretendem representá-lo de uma forma não contraditória. Na verdade, os dois
paradoxos estão intimamente relacionados, embora o primeiro tenha recebido
maior atenção na literatura acadêmica. Herbert Fingarette escreveu uma das duas
únicas monografias contemporâneas sobre o assunto, e sua análise fornece um
ponto de partida útil para nossa própria investigação sobre a relação entre a
adicção e o autoengano que é a negação.139
Fingarette propõe que o autoengano deve ser entendido não como a
manutenção simultânea de duas crenças mutuamente incompatíveis — o que é de
fato paradoxal, se não totalmente contraditório —, mas sim como a evasiva
proposital de um agente de explicitar alguma característica de seu envolvimento
com o mundo quando o agente é prontamente capaz de explicitar essa
característica. Não há nada de particularmente paradoxal nisso, mas somos
levados à outra questão, que Fingarette pensa ter sido negligenciada por
abordagens convencionais do autoengano como manutenção simultânea de
crenças conflitantes: por que um agente intencional e persistentemente evitaria
explicitar algumas características de seu envolvimento com o mundo?
O autoengano, segundo Fingarette, é um exercício de formação de
identidade. É a resposta de um agente que está envolvido no mundo de alguma
forma que ele reconhece ser incompatível com a “pessoa” ou o “eu” que o agente
se considera: “O autoengano gira em torno não das crenças que se têm, mas sim
da identidade pessoal que é aceita […] Em geral, o autoenganador está envolvido
no mundo de alguma forma, e ainda assim se recusa a identificar-se como alguém
que está envolvido de tal maneira; ele se recusa a confessar o envolvimento como
seu”.140 A consciência — a prática de explicitar quem somos e o que estamos
fazendo — é, portanto, uma habilidade seletiva que é empregada no processo de
constituição de uma identidade. E o autoengano faz parte desse processo sempre
que a formação da identidade pessoal de alguém motiva a recusa de alguns de seus
compromissos no mundo.
Ao contrário de nossas queridas intuições, o autoengano, em vez de
sinalizar falta de caráter ou de integridade, é parasitário na busca pela integridade:
“uanto menos integridade, menos motivo há para o autoengano. uanto maior
a integridade da pessoa, e quanto mais poderosa a inclinação contrária, maior é a
tentação do autoengano”.141 O homem casado que por muito tempo buscou ser
um marido fiel tem motivos poderosos para enganar a si mesmo acerca do que ele
está fazendo quando assiste à pornografia. O homem casado que não dá a mínima
para sua integridade como marido não tem motivo para se enganar.
Geralmente, portanto, o problema do autoengano não é expressão de
frouxidão moral, mas, ao contrário, uma manifestação de seriedade moral. Uma
das conquistas positivas da propagação do conceito da adicção como doença foi
sua capacidade de questionar o estigma moral associado à adicção. Ao fazer isso, o
modelo de doença neutralizou de forma proveitosa a suposição predominante de
que a adicção é uma forma extrema de depravação moral. No entanto, se
tomarmos a adicção como um tipo de grupo de hábitos, e a habilidade ou hábito
de negação como um hábito constitutivo desse grupo, obteremos um resultado
semelhante: na medida em que as pessoas adictas encontram motivos para se
enganar sobre suas adicções, a adicção não pode ser caracterizada como
depravação moral. Pode representar um tipo de erro ou falha moral, mas não pode
ser compreendida como uma espécie de falência moral.
Essa percepção nos permite dar sentido a um fato incompreensível no
modelo da adicção como escolha, pois, se a adicção é meramente uma escolha
intencional e moralmente depravada, então seria surpreendente que tantas
pessoas adictas pudessem recuperar-se praticando os doze passos. Se a
característica definidora da pessoa adicta é a depravação moral, como poderiam as
pessoas com adicções apreciar, quanto mais praticar, as exigências de honestidade,
humildade e abnegação que são determinantes do programa de recuperação de
doze passos? Paradoxalmente, na medida em que as pessoas adictas são
autoenganadoras, elas evidenciam uma capacidade justamente para esse tipo de
esforço moral. O autoengano sinaliza a presença de um compromisso moral
genuíno.
No cerne da adicção está uma contradição fundamental, e é uma
contradição que, em última análise, é sua própria ruína, e o que mantém a
esperança de recuperação. A força escravizante da adicção, argumentei, reside em
sua promessa perversa de capacitar um agente moral a integrar e organizar sua
vida em torno de um fim arrebatador. Mas a promessa da adicção é desmascarada
como uma mentira à medida que o agente passa a reconhecer que sua adicção
exige que ele rejeite projetos e compromissos que sabe que devem ser inclusos em
uma vida que valha a pena, uma vida digna. A adicção ludibria o agente porque
fornece um simulacro de uma vida plena, ordenada e coerente. Mas o adicto deve
rejeitar seu comportamento adicto precisamente porque a adicção fornece
meramente um simulacro do que ele sabe ser seu verdadeiro fim. O autoengano é a
bandeira vermelha aqui, sinalizando uma discrepância entre o que a pessoa adicta
esperava que a adicção pudesse proporcionar e o que ela de fato proporciona. O
autoengano é a evidência de que a devoção totalizante da adicção é uma devoção
devastadoramente deficiente. Ela não pode cumprir sua promessa de incorporar
aqueles compromissos que o agente sabe que devem ser incorporados a qualquer
vida de genuíno florescimento. A adicção só alcança integridade e ordem interna
exigindo a rejeição de certos bens — vida familiar consistente, amizades
transparentes, trabalho produtivo — que a pessoa adicta, em última análise, não
está disposta a rejeitar. Por sua vez, a adicção, que por meio do poder de sua
mentira já se insinuou na estimativa cogitativa da pessoa adicta, deve ser rejeitada.
A negação, portanto, atesta simultaneamente o poder da promessa da adicção e o
reconhecimento de que a promessa é uma mentira. Esta é a sabedoria por trás do
adágio do AA: “ Você é tão doente quanto seus segredos”.142
Assim, a adicção não é meramente todo e qualquer propósito abrangente
dominante e consumidor. Antes, é todo e qualquer propósito dominante e
arrebatador cuja insuficiência para sustentar o eu em sua busca por uma vida que
valha a pena se manifesta na negação. É por isso que as pessoas adictas são
notoriamente pobres em meditação e porque o AA com tanta frequência
recomenda a meditação como fundamental para a vida de recuperação. A
meditação nos obriga a refletir sobre as histórias que contamos a nós mesmos
sobre nossas vidas e, portanto, representa uma ameaça muito real a qualquer
adicção, pois ameaça revelar as insuficiências dessas histórias. Na medida em que
os santos são exemplos na prática da meditação, temos motivos para duvidar de
que a adoração seja uma adicção.
O desafio teológico que a adicção coloca para a igreja é se esta seria capaz de
convidar as pessoas a uma vida de devoção e dependência que não seja
autoenganosa. A adicção nos ensina que a devoção a um fim consumidor e a
dependência de um bem primordial podem levar, e de fato geralmente levam, ao
autoengano, pois essa devoção e dependência são quase sempre uma tentativa de
conferir ordem e integridade às nossas vidas de tal forma que devemos ignorar ou
negar a desordem e desunião fundamentais do eu. A devoção adicta e a
dependência tornam-se então estratégias de controle, modos de formar um eu e
estruturar uma identidade que são fundamentalmente desonestos, uma vez que
não estamos no controle de nossa vida. A adicção é sedutora porque promete lidar
com a desordem e a desunião do eu sem exigir que renunciemos ao controle sobre
nossa própria vida. Nesse sentido, a adicção realiza a contradição que é o pecado.
Como nos esforçamos para viver independentemente de Deus, nossas vidas são
desordenadas e fragmentadas; tentamos resolver a desordem e a fragmentação
reafirmando nossa própria independência; assim, a ordem e a unidade que
alcançamos são sempre ilusórias e exigem que nos enganemos sobre quem somos.
A adoração correta, por outro lado, nos treina para ver que a desordem e a
desunião do eu são, em si mesmas, um sintoma de nossa insistência pecaminosa
em manter o controle sobre nossas próprias vidas. Tal desordem e desunião,
portanto, não podem ser corrigidas por nada que possamos fazer, mas apenas
renunciando a nossa reivindicação de sermos capazes de estabelecer uma
identidade impenetrável e unificada. A adoração nos treina para ver que o eu não
é algo que estabelecemos, mas sim algo que recebemos continuamente de Deus.
Como Stanley Hauerwas aponta: “Sempre houve algo certo sobre o
entendimento tradicional de que a unidade do eu e o conhecimento de Deus são
correlatos. Essa unidade não vem automaticamente. É uma conquista lenta à
medida que trabalhamos diariamente para nos localizarmos na história de Deus.
Resistimos inerentemente a tal localização porque passamos a amar nossa
pecaminosidade — e tememos perdê-la”.143
A diferença entre a dependência adicta e a dependência fiel a Deus é,
portanto, a diferença entre uma dependência que é fundamentalmente um
exercício de controle e uma dependência que é fundamentalmente um exercício
de renúncia e abandono. É a diferença entre a vida de pecado e a vida da graça. Na
linguagem do hábito, é a diferença entre virtude adquirida e virtude infundida.
Essa é a visão teológica que levou Agostinho a afirmar que as virtudes adquiridas
são sempre, na melhor das hipóteses, “vícios esplêndidos” (splendida peccata);
tendo em vista que são “alcançados” em vez de “recebidos”, eles servem para
subscrever a premissa pecaminosa de que podemos estabelecer um eu coerente à
parte da dependência de Deus. Enquanto as virtudes adquiridas são produzidas
por nossa própria atividade virtuosa, as virtudes infundidas são produzidas em
nós por Deus. Somos o “princípio ativo” da virtude adquirida; Deus é o
“princípio ativo” da virtude infusa (1-2.62.1). E é por isso que Tomás de Aquino
insiste que, na regeneração, o crente recebe não apenas as virtudes sobrenaturais
infundidas da fé, esperança e amor, mas também as virtudes morais infundidas,
que são distintas das virtudes morais adquiridas (1-2.63.3). As virtudes morais
adquiridas são desenvolvidas por meio do esforço moral e são direcionadas para o
fim de consolidar um eu que pode resistir às tempestades do tempo e da fortuna.
Em contrapartida, as virtudes morais infundidas são recebidas pela graça e são
direcionadas para o fim da amizade com Deus.144
Além disso, a virtude infundida não é um dom único, assim como a virtude
adquirida não é uma conquista única. Podemos crescer nas virtudes sobrenaturais
da fé, esperança e amor por causa da obra contínua do Espírito que habita em nós.
Para Tomás de Aquino, a graciosa concessão divina da fé, esperança e amor torna
possível “certa participação da divindade, segundo se diz na Carta de Pedro, que
por Cristo nos tornamos ‘partícipes da natureza divina’” (1-2.62.1, grifo no
original). Assim, a adoração cristã graciosamente tira o fardo de sermos o centro
de nossa história e, em vez disso, nos incorpora à história de Deus. A adoração ao
Deus trino nos liberta da necessidade de nos justificarmos por meio de estratégias
de autoengano ao revelar continuamente que somos justificados somente por
Cristo. E a adoração ao Deus trino nos livra do fardo de alcançar nossa própria
identidade e sustentar nossa própria história ao atrair-nos, por meio da obra do
Espírito, para a vida de Deus.

A      

Distinguir a adoração correta, da igreja, da adoração falsificada, da adicção, nos


coloca em posição de explorar as maneiras pelas quais a igreja deve conceber a
recuperação da adicção. Uma abordagem útil a esse tipo de questão nos leva a
perguntar sobre a relação entre a vida da igreja e a prática da recuperação tal como
é entendida e incorporada no paradigma de recuperação mais dominante, o do
movimento de recuperação em doze passos. A estrutura do programa de doze
passos do AA foi adaptada para responder a uma ampla variedade de adicções, e
essa expansão foi tão bem-sucedida que o programa de doze passos é agora
amplamente considerado a resposta definitiva a qualquer tipo de adicção.145
Em geral, a relação entre a igreja e o movimento dos doze passos tem sido
positiva. Muitas igrejas doam ou alugam espaço em seus prédios para reuniões dos
doze passos. Outras igrejas adotaram e adaptaram o movimento a fim de fornecer
oportunidades de recuperação para pessoas adictas dentro da igreja. Algumas das
adaptações são teologicamente cuidadosas; outras são mais aleatórias, meramente
batizando o programa de doze passos sem questionar os pressupostos teológicos
que estão implícitos em seu conjunto básico de princípios e objetivos.146
Apesar da colaboração significativa entre a igreja e o movimento de doze
passos, muitos têm afirmado, acredito que com razão, que o crescimento maciço
de grupos de doze passos expôs a incapacidade ou falha da igreja em lidar honesta
e adequadamente com as fraquezas das pessoas. Devemos perguntar, então, o que
esses movimentos oferecem que a igreja frequentemente falha em oferecer. No
entanto, começar com esse tipo de pergunta é perigoso, porque pressupõe que a
igreja tem a mesma missão do movimento de recuperação em doze passos. É
importante, então, começar perguntando sobre as maneiras pelas quais a missão
da igreja e seu entendimento sobre adicção e recuperação podem precisar ser
distinguidos da missão e filosofia do movimento de doze passos. Só então
devemos perguntar sobre as maneiras pelas quais o movimento dos doze passos
pode chamar a igreja de volta a uma maior fidelidade às pessoas adictas.
O movimento de recuperação de doze passos reconhece corretamente que a
adicção é um exercício de autoafirmação e controle que leva a pessoa adicta a
negar sua própria desordem e desunião subjacentes. Esse movimento procura
remediar isso de duas maneiras. Primeiro, a pessoa adicta em busca de recuperação
deve reconhecer um poder maior do que ela mesma, do qual ela depende. Assim,
o terceiro passo ensina: “Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos
cuidados de Deus, na forma em que o concebemos” (DD 5, grifo no original). Em
segundo lugar, a pessoa adicta em busca de recuperação deve adotar como sua
identidade mais fundamental a de “alcoólatra” ou “adicto”. Portanto, toda vez que
uma pessoa deseja falar em uma reunião do AA, ou em algum programa de
recuperação de doze passos semelhante, ela deve começar com a introdução:
“Meu nome é Joe, sou um alcoólatra”, ou “Meu nome é Sue, sou uma adicta”.
A igreja deve ser cautelosa quanto à adoção direta do paradigma do
movimento de recuperação de doze passos. Embora esses requisitos sejam
salutares e tenham sido úteis para muitas pessoas adictas em busca de recuperação,
da perspectiva da adoração da igreja, eles não vão longe o suficiente e correm o
risco de reinstituir a orientação fundamental que está por trás da adicção. Na
adoração cristã, encontramos Deus não como o concebemos, mas como ele nos é
revelado nas Escrituras e na liturgia. Claro, nosso encontro com Deus nunca é
imediato, mas na adoração os cristãos se relacionam com um Deus que tem um
caráter determinado e que agiu de forma determinante na história. Não somos
convidados, na adoração, a projetar um “Deus como o concebemos”, e sim a ser
encontrados pelo Deus de Israel e de Jesus Cristo, cuja particularidade coloca em
questão não apenas nossa própria “consciência de Deus”, mas até mesmo nosso
próprio senso de nós mesmos. Assim, o seguinte convite impresso em um panfleto
de um conhecido centro de tratamento de doze passos só pode parecer perverso
da perspectiva da adoração cristã correta: “O que você deseja alcançar é o presente
de um quadro em branco, com um lápis posicionado em sua própria mão para
redesenhar a imagem […] De que você precisa para desenhar uma nova imagem,
sua própria imagem de um Poder Superior? […] O que um Poder Superior precisa
fazer por você? […] ual a forma desse Poder Superior? O que é melhor — mais
confortável — para você?”.147
O convite para formar um Deus que possa atender às nossas necessidades
emocionais é de fato um convite ao autoengano e, portanto, só pode inibir a
recuperação autêntica da adicção. Na verdade, é precisamente a tendência humana
— tão devastadoramente iluminada por Feuerbach — de fazer Deus à nossa
imagem que torna a “ religião” vulnerável à crítica de que ela é apenas outra forma
de adicção. Karl Barth empregou a análise de Feuerbach para traçar uma distinção
entre “ religião”, que é o esforço da humanidade para comungar com Deus em seus
próprios termos, e “fé”, que é a comunhão com Deus iniciada e estabelecida pela
autorrevelação de Deus. Para Barth, “a religião é a contradição da revelação. O que
agrada a Deus não é a religiosidade humana, mas a fé em resposta à revelação
divina; revelação que procede única e diretamente do Deus trino”.148 Enquanto
muitos no movimento de recuperação se autodenominam “espirituais, mas não
religiosos”, a adoração cristã deve treinar-nos para que sejamos nem “espirituais”
nem “religiosos”, e sim dependentes do Deus trino de Israel, que encarnou em
Jesus de Nazaré. Essa não é uma dependência que o cristão deve conquistar; mas,
como a linguagem da virtude infusa pretende indicar, uma dependência que
somos livres para receber. O Espírito Santo nos atrai constantemente, oferecendo-
se para nos livrar de nossa autoabsorção e “guiar-nos em toda a verdade” ( João
16.13).
Teologicamente, o excesso de confiança em nosso próprio senso de
identidade está relacionado a uma visão indeterminada e equivocada de Deus. É
uma questão de prioridade: se estamos certos de nossa própria identidade e nosso
próprio caráter, então a identidade e o caráter de Deus devem ser condicionados
por essa certeza. Por outro lado, se estamos certos da identidade e do caráter de
Deus, então nosso próprio senso de identidade é sempre condicionado por nosso
relacionamento com Deus. Esse é o resultado da afirmação de Hauerwas de que “a
unidade do eu e o conhecimento de Deus são correlatos”. Nesse sentido, a
identidade cristã é sempre relativa. Dizer que somos pecadores não é estabelecer
uma identidade, mas nomear uma relação. Reconhecer que somos pecadores é
reconhecer que não temos recursos para saber quem somos separados de Deus.
Assim, o correlato à vaga concepção de Deus do movimento dos doze
passos é o excesso de confiança na identidade de “adicto”. Slogans como “uma vez
alcoólatra, sempre alcoólatra” (AA 33) têm como objetivo humilhar o orgulho da
pessoa adicta em recuperação e dissipar qualquer ilusão de que a adicção é um
mero apêndice do eu, algo que as pessoas com adicções podem vestir ou tirar à
vontade. Esses slogans são valiosos na medida em que lembram à pessoa adicta que
sua adicção se tornou uma parte dela, que está entrelaçada com seu caráter a tal
ponto que a recuperação exige uma conversão de caráter. Entretanto, da
perspectiva cristã, tais declarações de identidade correm o risco de repetir a ilusão
no cerne de toda adicção e, na verdade, no cerne de todo pecado, ou seja, a ilusão
de que podemos saber quem somos independentemente de nosso relacionamento
com Deus. Ironicamente, essas declarações de identidade podem tornar-se uma
fonte de orgulho, de modo que as pessoas que se recuperam da adicção podem
sentir-se menosprezadas ou depreciadas pela sugestão de que “adicto” não é
necessariamente quem elas são. “Alcoólatra” ou “adicto” se tornou então parte de
uma identidade estimada, um núcleo do eu que não está aberto a
questionamentos, e não é condicionado por alguma realidade mais fundamental.
Ademais, a adoção de “alcoólatra” ou “adicto” como identidade
inevitavelmente limita o escopo da recuperação. Se minha adicção é fundamental
para quem eu sou, se é básica para o meu ser, então a vida de recuperação nunca
pode ser mais do que uma negação diária de meu verdadeiro eu. A literatura do
AA muitas vezes fala dessa maneira: tudo o que o alcoólatra pode esperar do
processo de recuperação é “um adiamento diário” de beber (AA 85). Essa visão de
recuperação é trágica, pois insiste em que há um descompasso primordial e
ontológico entre quem a pessoa é e como ela deve comportar-se. Essa visão
trágica, ao rejeitar a esperança de uma harmonia final entre ser e ato, contém uma
“teologia da criação” implícita, que está, em última análise, em conflito com uma
compreensão cristã da criação. Como Linda Mercadante argumentou, “apresentar
a vulnerabilidade adicta como parte integral da pessoa aproxima-se perigosamente
da imagem maniqueísta da natureza humana”, segundo a qual há uma dualidade
ontológica entre o bem e o mal, de modo que o triunfo final do bem sobre o mal
exigiria a destruição total da natureza humana.149 Nesse contexto, a pessoa adicta
é condenada a uma vida trágica.
Em contraste, a visão cristã da recuperação é uma expressão da visão cristã
da redenção, que é quase extravagante e imprudente em sua esperança. Pois no
cerne da visão cristã da redenção está a insistência de que o pecado não é
fundamental ou ontológico, mas, antes, histórico e contingente. Portanto, os
cristãos vivem na esperança de que seu destino é a harmonia entre quem eles são e
o que eles querem e fazem, entre seu ser e seu ato. Segundo essa visão, nossa
liberdade não está em conflito com nossa natureza, mas é a expressão mais
completa de nossa verdadeira natureza. O processo de descobrir nossa verdadeira
natureza e, portanto, nossa liberdade completa é o processo de santificação. À
medida que somos santificados, passamos a nos localizar completamente dentro
da história de Deus sobre quem somos e o que mais fundamentalmente
desejamos.
O escopo da recuperação é, assim, radicalmente estendido dentro de uma
visão cristã da adicção. Na verdade, a “ recuperação” não indica suficientemente a
esperança cristã em face da adicção. Em vez disso, o cristão espera por uma
“descoberta” e uma “nova criação” — não um retorno a algum equilíbrio
sustentável entre quem somos e o que queremos, mas sim uma transformação do
eu que conduz quem somos e o que queremos (que estão em tensão apenas por
causa do poder contingente e prolepticamente vencido do pecado) à perfeita
coordenação e harmonia.
Dado meu argumento de que a adicção é um hábito, a visão cristã da
recuperação é a mais filosoficamente defensável. Pois os hábitos, devemos lembrar,
são qualificações do eu e, portanto, nunca devem ser identificados com o eu. Ao
reivindicar a identidade de “adicto” ou “alcoólatra”, negamos que a adicção seja um
hábito e, em vez disso, afirmamos que ela é uma entidade. Mas, do ponto de vista
cristão, a adicção é de fato um hábito que pode ser transformado em caridade. Por
essas razões, prefiro falar de “pessoas adictas” e “pessoas com adicções”, em vez de
falar de “adictos”.
Sei, por conversas pessoais, que essa linha de argumento não é bem-vinda
entre muitos participantes do movimento de recuperação. Parece muito otimista,
insuficientemente circunspecto, como um convite à arrogância e à autoconfiança
irresponsável. No entanto, dentro do entendimento cristão, tal esperança é
inegável. Insistir que nossas identidades são ontológica e finalmente desordenadas
é simplesmente uma negação da doutrina cristã da salvação. Se a igreja deve ser
fiel, ela deve, portanto, ser inabalável em seu compromisso com a libertação final
da escravidão do pecado sobre nossos atos e nosso ser. Essa é a esperança
escatológica cristã, e tal esperança deve transformar nossa compreensão da
adicção e da recuperação.
R  

Se a igreja possui recursos para oferecer uma esperança ainda mais profunda às
pessoas em recuperação do que aquela oferecida pelo movimento dos doze passos,
por que esse movimento essencialmente substituiu a igreja como o lugar para
onde pessoas adictas vão para se recuperar? Essa é uma pergunta difícil, pois a
esperança que é sustentada pela igreja é realmente uma boa nova, mas reconhecê-
la como tal já é ser convertido. O pecador dentro de cada um de nós é repelido
pelo convite de renunciar a todo e qualquer direito sobre nossas vidas; portanto,
estamos inclinados a buscar métodos de melhoria que não exijam tal renúncia. No
entanto, muitas pessoas adictas que são cristãs afirmam que encontram no
acolhimento do movimento de recuperação de doze passos o que não podem
encontrar em suas próprias igrejas. Essa é uma séria acusação contra a igreja, e
devemos perguntar onde a igreja falhou em comparação com o movimento dos
doze passos.
Estou convencido de que o movimento dos doze passos teve sucesso em
grande parte por causa da maneira como seu formato e seu método convidam a
amizades transformadoras e as exigem. É amplamente reconhecido que amizades
profundas são de fato necessárias para a vida de recuperação. A esmagadora
maioria dos adictos atesta o poder da amizade como o fator mais importante em
sua recuperação da adicção.

Mas a parte mais convincente do AA, a parte que me fez querer experimentar esse negócio de
sobriedade, foi o riso, a pura alegria do riso que ouvi apenas de alcoólatras sóbrios. (AA 333)

Encontrei minha tribo, a arquitetura social que atende a todas as minhas necessidades de
camaradagem e convivência. (AA 336)

AA é minha casa agora… Eu não me sinto mais sozinho. (AA 346)

O que me manteve sóbrio até eu começar a tratar meu alcoolismo com honestidade foi o amor na
sala do Alcoólicos Anônimos. Fiz alguns amigos pela primeira vez na vida. Amigos de verdade que
se importavam, mesmo quando eu estava sem dinheiro e sentindo-me desesperado. (AA 468)
Os grupos de recuperação de doze passos tornaram-se lugares onde os
adictos têm a certeza de que encontrarão comunhão genuína. Por que os grupos
de doze passos têm tanto sucesso em fornecer espaço para amizades
transformadoras? Eu gostaria de sugerir três maneiras pelas quais eles se tornaram
especialmente adeptos da prática da amizade. Em cada uma dessas maneiras, o
movimento dos doze passos serve para chamar a igreja de volta ao entendimento
bíblico de amizade e comunhão.
Primeiro, enquanto o movimento dos doze passos insiste em tratar seus
membros como adictos em recuperação, a igreja nem sempre insiste em tratar seus
membros como pecadores arrependidos. Argumentei que “pecador” é uma
atribuição muito mais radical do que “adicto”, porque desafia as tentativas da
pessoa adicta de reivindicar uma identidade que seja independente de Deus. Dessa
forma, acredito que o rótulo de “adicto” é, em última análise, insuficiente para
nomear a profundidade do transtorno que é a adicção. Isso será irrelevante,
entretanto, caso as pessoas dentro da igreja não vivam como pecadores
arrependidos.
A sabedoria do AA está contida na celebração da aceitação de um adicto e
do reconhecimento público de que ele é um adicto. Tal aceitação e
reconhecimento são considerados uma conquista e são celebrados de forma
ritualizada e reiterada. De fato, dentro do movimento dos doze passos, até mesmo
a recaída de um dos membros é recebida, ensaiada e discutida pelo grupo maior
como um presente, pois serve como um lembrete concreto de que cada membro
do grupo é suscetível ao mesmo destino. Além disso, a atividade central das
reuniões da irmandade de doze passos é a prática de compartilhar a vida dos
membros a partir do paradigma do adicto em recuperação. Lidar com essa
condição não é, de forma nenhuma, periférico ao que o grupo faz, mas sim central
a toda a atividade. Assim, quando um membro fala de desejo, abstinência,
depressão, solidão ou mesmo recaída, ele não está levantando uma questão que
deve ser tratada antes que o grupo possa prosseguir com seus assuntos; ele está
lidando com o assunto central do grupo. Esses testemunhos são a liturgia do
movimento dos doze passos, e o grupo foi formado exatamente para ouvir e
responder a tais testemunhos.
Em comparação, a igreja tem frequentemente sido menos comprometida
em promover uma atmosfera na qual seus membros se sintam não apenas livres,
mas também à vontade para reconhecer publicamente sua condição como
pecadores e compartilhar suas vidas com outros a partir desse paradigma.
Teologicamente, a aceitação da condição de pecador também é uma conquista,
embora muitas vezes não a tratemos como tal. Desafios logísticos óbvios surgem
aqui, mas acho que esses desafios podem ser exagerados. Muito mais central para o
fracasso da igreja em promover comunhão às pessoas adictas em seu meio é o seu
fracasso em viver seu chamado bíblico de treinar discípulos para compartilharem
suas vidas como pecadores arrependidos: “Se dissermos que não temos pecado
algum, enganamos a nós mesmos, e a verdade não está em nós” (1João 1.8).
Biblicamente, o mandato para declarar verdadeira e publicamente nossa
pecaminosidade é crucial para nosso crescimento em santidade: “Se confessarmos
os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificará de
toda injustiça” (1João 1.9, grifo meu).
É claro que muitos de nós não temos certeza se queremos estar em uma
igreja que nos treine dessa maneira, pois isso implicaria não apenas nossa
humilhação, mas também uma vulnerabilidade em relação aos outros na qual
muitos de nós não temos interesse. Temos medo de que, se confessarmos nossos
pecados, outras pessoas possam fazer reivindicações sobre nossas vidas, insistindo
em orar por nós e perguntando-nos como estamos indo. A maioria de nós não
tem certeza se deseja que a igreja esteja tão envolvida.
Não quero parecer cínico. É claro que a igreja está cheia de pessoas que
desejam relacionamentos honestos e vulneráveis, e que buscam genuinamente ser
treinadas para compartilhar fielmente suas vidas como pecadoras. No entanto, a
igreja parece ser um lugar onde esse tipo de investimento é opcional e, nesse
aspecto, difere profundamente do AA e de outros movimentos de doze passos.
Pois, caso alguém não deseje tal vulnerabilidade, prestação de contas e
interdependência, qual seria o sentido de participar de um encontro do AA?
Ainda assim, muitos de nós pensamos que algo pode ser ganho com a igreja além
de aprendermos a reconhecer nossa pecaminosidade e nossa total dependência de
Deus. Na medida em que a igreja legitima esse erro — oferecendo, no lugar disso,
capital social, creches, entretenimento, tempo para a família, e assim por diante
—, a igreja é responsável por sua falha em fornecer hospitalidade, sustento e
redenção às pessoas adictas em seu meio.
Em segundo lugar, o movimento dos doze passos é capaz de promover a
amizade porque exige que seus membros iniciem certos tipos de relacionamento
que são estruturados em vista de um fim específico. A esse respeito, o movimento
dos doze passos vive o entendimento aristotélico de que um dos principais
objetivos da amizade é o “treinamento na virtude”. Aristóteles diz que “certo
treinamento na virtude surge também da companhia dos bons” (1170a11-13).
Não estamos acostumados a pensar que o treinamento faz parte da amizade; isso é
algo que fazemos “no trabalho”, e a amizade é nossa fuga do tédio e do
paternalismo implícitos em “treinamento”. Aristóteles, no entanto, pensa que
certos tipos de amizade são caracterizados pelo treinamento.
Não deveríamos nos surpreender, pois o treinamento é uma linguagem de
habilidade, linguagem de hábito, e, de fato, Aristóteles pensa que certas amizades
serão caracterizadas por uma espécie de relação mestre/aprendiz. Essa percepção,
embora um tanto estranha às concepções populares de amizade, é familiar para
aqueles que estão recuperando-se na tradição dos doze passos. Um dos conselhos
mais importantes oferecidos aos recém-chegados — Os doze passos e as doze
tradições os chamam instrutivamente de “novatos” (DD 60) — é que eles
encontrem um “padrinho”, geralmente alguém que “trabalhou os passos” por
alguns anos e desenvolveu hábitos de caráter que os noavtos podem imitar e a
partir dos quais o padrinho pode aconselhar e encorajar os novatos. A suposição
filosófica por trás do apadrinhamento é antiga e profundamente aristotélica, mas
um tanto estranha em nosso contexto, em que a vida moral está mais
imediatamente associada ao aprendizado de certas regras ou princípios abstratos
que podemos aplicar a “dilemas”. O pressuposto filosófico básico incorporado ao
relacionamento padrinho/novato é que “é mais fácil agir de acordo com uma nova
maneira de pensar do que pensar de acordo com uma nova maneira de agir” (AA
366). É por isso que raramente é suficiente simplesmente receber os conselhos e as
instruções oferecidas nas reuniões do AA e ler o Grande Livro. O “aprendiz” em
recuperação precisa de um “mestre” ou de vários: “Aprendi a ser um bom membro
do AA observando os bons membros do AA, e fazendo o que eles fazem” (AA
521).
A igreja falha em promover relacionamentos sustentáveis e transformadores
para as pessoas adictas em seu meio sempre que adere à suposição moderna de que
o crescimento na virtude é um produto do aprendizado de princípios abstratos,
enquanto a amizade é um esforço privado baseado em “interesses semelhantes”.
Tal suposição está em oposição direta ao entendimento bíblico de amizade.
Embora o afeto caracterize muitas das amizades retratadas na Bíblia, é periférico
ao centro animador da amizade, que não é nada menos do que a disposição de dar
a vida pelo amigo ( João 15.13). Essas amizades não são opcionais para os cristãos;
Jesus ordena a seus discípulos que desenvolvam amizade uns com os outros dessa
maneira distinta. Além disso, Paulo recomenda que os novos convertidos e
aqueles que são jovens na fé devem “dedicar-se ao serviço dos santos” (1Coríntios
16.15) e colocar-se sob “a autoridade dos presbíteros” (1Pedro 5.5). Para Paulo,
amizades de responsabilidade e treinamento são fundamentais para o crescimento
em santidade.
A igreja deve ser ousada para implementar estruturas relacionais que sejam
explicitamente projetadas para o treinamento na virtude. Assim, os programas de
mentoria na igreja não devem ser algo que os membros precisam buscar, mas sim
algo tão prevalente e predominante que os membros teriam de evitá-los
intencionalmente. A compreensão do movimento dos doze passos de que a
recuperação é principalmente um exercício de amizade e apenas secundariamente
uma consequência de ouvir e ler o Grande Livro se aplica também à igreja. Na
ausência de relações específicas e concretas de responsabilidade, imitação e oração
mútua, a prática da literatura tem valor limitado. É verdade que a liturgia da igreja
é o trabalho de pessoas reunidas, mas é uma obra que só faz sentido no contexto
de relações que encarnam, experimentam e buscam a verdade que a liturgia faz
conhecida.
Por fim, e intimamente relacionado a essa segunda característica da
amizade, o movimento dos doze passos reconhece corretamente que a amizade
transformadora requer proximidade física e o compartilhamento de uma
quantidade considerável de tempo juntos. Aqui também o movimento incorpora
um antigo entendimento aristotélico sobre a natureza das amizades que
conduzem à virtude. Aristóteles diz: “Não há nada tão característico da amizade
quanto o viver juntos” (1157b19-20). Isso também parece um pouco exagerado,
dado nosso estilo de vida contemporâneo. O fato de nossas carreiras nos
separarem fisicamente de nossos amigos é considerado simplesmente um fato e
um retrocesso relativamente pequeno para a amizade, que pode ser mitigado pelos
rápidos avanços na tecnologia da comunicação.
Será que Aristóteles teria dado tanta ênfase ao compartilhamento de espaço
e tempo com amigos se ele pudesse estar “on-line”? Suspeito que sim, pois ele
acreditava que a proximidade física, na verdade o compartilhamento do espaço-
tempo com nossos amigos, é essencial para a amizade não apenas porque nos
deliciamos na companhia de nossos amigos (que, afinal, ainda pode ser desfrutada
“a distância”), mas também porque a prática da virtude o exige. Aristóteles
acreditava que amizades por virtude requerem compartilhar a vida juntos porque
as pessoas que se esforçam para viver bem precisam ser afirmadas e validadas em
sua convicção de que as atividades nas quais estão envolvendo-se são dignas de seu
tempo e de sua energia. Paul Wadell explica da seguinte maneira: “Não podemos
nos dar ao luxo de nos cansarmos da virtude, porque se afastar de suas atividades é
dar início a uma deterioração do eu que ninguém pode suportar por muito
tempo. A amizade é especialmente crucial porque, sem o apoio e o suporte de
outros que estão envolvidos conosco na vida virtuosa, invariavelmente ficamos
desencantados com as próprias atividades das quais não podemos duvidar”.150
O fato de os membros do AA se reunirem em salas, sentarem-se ao redor de
mesas e tomarem café todas as noites ou quase todas as noites da semana não é
meramente acidental para a recuperação deles. A importância do lugar e da
“cotidianidade” para o sucesso do AA é essencial. Muitos não adictos ficam
surpresos ao saber de adictos em recuperação que estão sóbrios há anos e ainda
frequentam as reuniões do AA quatro ou cinco noites por semana. Mas isso é
essencial, não apenas para sua sobriedade, mas particularmente para os esforços
dos recém-chegados, os “novos”. uando um membro do AA com seu crachá de
dez anos calça os sapatos, entra em seu carro, dirige até o quarto alugado ou o
porão da igreja, prepara o café, participa silenciosamente da reunião, permanece
depois para conversar com velhos amigos e recém-chegados céticos, fecha o local
do encontro, entra no carro e vai para casa, nenhuma das intenções que
acompanham cada uma dessas ações se perde. Cada ato básico testifica e santifica
o valor do esforço compartilhado.
Se a igreja deve ser um lugar onde pessoas adictas podem encontrar
comunhão redentora, ela terá de se tornar um núcleo social primário e deve
facilitar e esperar de seus membros amizades que estão enraizadas no
compartilhamento das atividades do dia a dia. Temos a tendência de pensar em
nossas “amizades de trabalho” dessa maneira simplesmente porque vemos as
pessoas com quem trabalhamos diariamente. Mas, se a igreja deve fornecer uma
alternativa genuína para pessoas adictas que buscam recuperação, precisa oferecer
oportunidades diárias, em vez de semanais, de adoração comunitária, testemunho
e oração, e deve desafiar seus membros a tratarem a igreja como sua comunidade
social primária. Aqui, também, o movimento dos doze passos pode chamar a
igreja de volta às suas raízes bíblicas, pois uma das marcas distintivas da vibrante
comunidade cristã primitiva era sua devoção em compartilhar espaço e tempo uns
com os outros nas atividades da vida diária: “E perseverando de comum acordo
todos os dias no templo, e partindo o pão em casa, comiam com alegria e
simplicidade de coração, louvando a Deus e contando com o favor de todo o
povo” (Atos 2.46-47, grifo meu).
A   

Todo pecado é idolatria; portanto, todos os bens que são buscados como se
fossem deuses são buscados pecaminosamente. Mas, na maior parte do tempo,
nossa pecaminosidade é facilmente desmascarada, porque os bens que elevamos a
uma condição desordenada ficam claramente aquém de nossas exaltadas
expectativas. Eles falham em fornecer o tipo de controle, integridade e êxtase que
ansiamos alcançar. É improvável que tais bens sejam realmente confundidos com
bens plenamente suficientes. São, antes, distrações e diversões, maneiras de
ignorar ou reprimir nossa profunda inquietação.
A adicção — como todo pecado — é uma forma de idolatria, porque eleva
algum bem penúltimo à condição de bem último, condição que pertence somente
a Deus. Mas a adicção é excepcionalmente sedutora, excepcionalmente cativante e
excepcionalmente poderosa, porque seu objeto chega muito perto de cumprir sua
falsa promessa de ser Deus. Todo pecado é uma tentativa de ampliar nossos
poderes e estabelecer por nós mesmos uma plenitude e uma realização que só
podem ser encontradas no relacionamento correto com Deus. Nesse sentido, todo
pecado é rebelião contra Deus. Mas a adicção é poderosa, cativante e sedutora
porque é uma rebelião que chega muito perto do sucesso. A adicção profunda não
é necessariamente a forma mais tentadora de idolatria; é muito extrema,
totalizante e exigente para tentar muitos de nós. Mas, exatamente por ser tão
extrema, totalizante e exigente, essa é a forma mais potente de idolatria
disponível.
Como a adicção é a forma mais potente de idolatria disponível para as
pessoas modernas, ela apresenta um desafio particular para a igreja. Em aspectos
importantes, a adicção é diferente da resposta à ansiedade e à inquietação, que
assume as formas mais “respeitáveis” de diversão e distração, como compras,
entretenimento ou passatempos. Ao contrário desses últimos tipos de resposta, a
adicção, à sua própria maneira perversa, capacita um agente a conferir forma e
significado à sua existência, uma vez que traz consigo seu próprio ímpeto, seu fim
ordenador, sua energia integrativa e seu mundo de significados. Por causa disso, a
vida de distração e diversão constituiria, em um sentido muito real, uma perda de
significado para a pessoa adicta e, portanto, seria improvável que tal vida pudesse
fornecer uma base racional tão contundente quanto a base racional da adicção.
É por isso, eu suspeito, que muitos de nós na igreja nos sentimos tão
impotentes diante da adicção. Sentimos o poder dela em nossa própria vida e
duvidamos de que o evangelho seja forte o suficiente para vencê-la. Claro, não
dizemos esse tipo de coisa. Estamos até mesmo comprometidos com nossas
crenças em negá-lo. Mas, quando um alcoólatra entra na igreja, quando ficamos
sabendo que nosso pastor tem estado viciado em pornografia nos últimos dez
anos, quando dirigimos pelos guetos e favelas locais dizimados pela adicção, a
resposta imediata para muitos de nós que nos autodenominamos cristãos é o
desespero. O evangelho é realmente poderoso o suficiente para tudo isso?
Suspeito que muitos de nós pensamos assim porque duvidamos do poder
do evangelho em nossa própria vida. Nós nos perguntamos se escapamos das
garras da adicção não por causa do poder do evangelho, mas por causa das
circunstâncias, do temperamento, do medo da rejeição ou da covardia. Talvez, ao
contrário do adicto, não tenhamos adotado um propósito totalmente abrangente,
uma vida coerente e integrada e uma participação extática em algum bem todo-
suficiente e transcendente. Por muito tempo dissemos a nós mesmos que, nas
palavras dos Rolling Stones, “você nem sempre consegue o que quer”, e usamos
essa justificativa para entorpecer e suprimir nossos mais profundos anseios por
descanso, paz e alegria. Em vez disso, optamos por uma vida respeitável e
respondemos a nosso tédio, nossa solidão e nossa desordem interna com distração
e diversão. Para muitos de nós, a igreja representa essa vida de respeitabilidade da
qual devemos ocasionalmente escapar tirando umas “férias morais”. Para outros, a
igreja é em si uma distração e uma diversão, um lugar aonde vamos para
desempenhar um papel, acariciar o ego, divertir-nos, socializar ou obter um pouco
de “canja de galinha para a alma”. Assim, quando somos confrontados pela pessoa
adicta, duvidamos de que o evangelho tenha o poder necessário para resgatá-la,
pois sabemos que, em um sentido muito real, o adicto tem uma necessidade feroz
e desesperada que nos é estranha e para a qual não temos uma resposta.
Como os antigos profetas, os adictos de hoje podem lembrar-nos de que
nosso desejo por Deus é trivial e fraco, e nossos horizontes de esperança e
expectativa são limitados e mundanos. Recuamos diante da presença do adicto,
pois tememos que sua vida seja uma denúncia da insuficiência de nossas próprias
vidas. O adicto rejeitou a vida de contentamento respeitável e moderado, e exigiu,
em vez disso, uma vida de propósito e êxtase completos. Reconhecemos que
nossas próprias vidas não são interessantes e belas o suficiente para oferecer uma
alternativa genuína ao adicto, e tememos que um evangelho poderoso o suficiente
para redimir o adicto também ameaçaria nossas próprias vidas de mediocridade
decente e decorosa. Não temos certeza se queremos que a igreja seja um lugar
onde as pessoas com adicções sejam libertadas, pois isso significaria que a igreja
não é mais compatível com nossas próprias vidas. Sendo assim, caracterizamos a
adicção como determinismo físico ou fraqueza moral, o que nos permite ignorar
as maneiras pelas quais ela coloca nossas próprias vidas em questão.
A questão que a adicção coloca para a igreja é se ela pode ou não oferecer
uma alternativa convincente para a vida do adicto, e o desafio que a adicção
apresenta para a igreja é se ela pode ou não incorporar o amor intencional,
extasiante e consumidor de Deus em um caminho que é mais atraente do que a
vida de adicção. A boa notícia do evangelho é que Jesus não veio para os saudáveis,
mas para os enfermos. Ele veio trazer visão aos cegos, proclamar libertação aos
cativos, pôr em liberdade os oprimidos… e dar nova vida aos adictos. A adicção,
por ser tão ubíqua e, portanto, inevitável, deve-nos forçar a perguntar se estamos
ou não dispostos e prontos para ser uma igreja que encarna a missão de Jesus.
Para a igreja que está aberta ao poder do Espírito Santo, a adicção não é uma
ameaça a ser temida, mas uma oportunidade a ser recebida. Pois a boa nova é que
o evangelho é poderoso para redimir e transformar, para quebrar as algemas de
todo pecado e para nos libertar para uma vida de abundante alegria e paz. Por ser
tão poderosamente destrutiva e mortal, a adicção oferece à igreja seu mais
profundo convite para testemunhar o evangelho que proclama, para manifestar
em sua própria vida a ressurreição, que é sua origem e fim. Portanto, não há
idolatria tão potente, nenhum pecado tão arraigado, nenhum desespero tão
profundo, nenhuma adicção tão forte que esteja além do alcance do Amor que de
uma vez por todas e para sempre triunfou sobre o pecado e a morte: “Mas em
todas essas coisas somos mais que vencedores, por meio daquele nos amou. Pois
tenho certeza de que nem morte, nem vida, nem anjos, nem autoridades celestiais,
nem coisas do presente nem do futuro, nem poderes, nem altura, nem
profundidade, nem qualquer outra criatura poderá nos separar do amor de Deus,
que está em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Romanos 8.37-39).

135 S, Francis. Addiction and responsibility: an inquiry into the addictive mind (New
York: Crossroad, 1993), p. 173.
136 L, William. e freedom we crave: addiction — the human condition (Grand Rapids:
Eerdmans, 1985), p. 82.
137 W, Paul J., C.P. e primacy of love: an introduction to the ethics of omas Aquinas
(New York: Paulist Press, 1992), p. 91.
138 “Você escuta frequentemente em reuniões do AA que a negação é a doença do alcoolismo, não
apenas seu sintoma primário” ( K, Caroline. A love story (New York: Dial Press, 1996), p. 136).
139 F, Herbert. Self-deception (London: Routledge, 1969). A outra monografia sobre o
assunto é a de M, Alfred. Self-deception unmasked (Princeton: Princeton University Press, 2001).
140 Fingarette, Self-deception, p. 67.
141 Ibid., p. 140.
142 Moyers, Broken, p. 225.
143 H, Stanley. e peaceable kingdom: a primer in Christian ethics (Notre Dame: Notre
Dame University Press, 1983), p. 47.
144 Para uma discussão útil da teoria de Tomás de Aquino das virtudes morais infundidas que
considera essas virtudes particularmente em relação ao hábito adquirido do alcoolismo, ver S,
Michael S., O.P. “Infused virtue and the effects of acquired vice: a test case for the thomistic theory of
infused cardinal virtues”, e omist 73 (2009): 29-52.
145 Para uma tentativa de avaliar os méritos de várias filosofias de recuperação diferentes, ver
S, Lonnie. Hooked: five addicts challenge our misguided drug rehab system (New York:
New Press, 2001).
146 Um exemplo de adaptação do programa de doze passos que demonstra consciência de muitas
das questões teológicas em jogo é o programa “Celebrate Recovery” [Celebrando a Recuperação],
lançado em 1995 pela Igreja Saddleback, em Lake Forest, Califórnia. Ver
http://celebraterecovery.com.au/index.php.
147 Citado por M, Linda. Victims and sinners: spiritual roots of addiction and
recovery (Louisville: Westminster John Knox Press, 1996), p. 157.
148 B, Karl. Church dogmatics 1/2, ed. G. W. Bromiley e T. F. Torrance (London: T & T
Clark, 1963), p. 302-3.
149 , Victims and sinners, p. 118.
150 W, Paul J., C.P. Friendship and the moral life (Notre Dame: University of Notre Dame
Press, 1989), p. 59-60.
K D (PhD em filosofia, Texas A&M) é professor de
filosofia na Universidade Biola e ensina disciplinas sobre teologia ética,
lógica e filosofia da adicção. É autor também de Humility, pride, and
Christian virtue theory.

You might also like