O Crepúsculo dos Normidons - Primeiro Episódio da Saga: As Lágrimas de Gea
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Sobre este e-book
Após três mil anos sob o domínio da dinastia Sforza, os alicerces do império auriano parecem cambalear. A rebelião de Auvernia e a presença perturbadora de invasores bárbaros nas fronteiras fazem com que se tema o pior.
O general Antonius Sforza, o filho primogênito do imperador Valentinus III, é o escolhido para pôr fim à resistência dos auvernianos e enfrentar a campanha no comando de suas poderosas legiões.
Enquanto isso, o imperador mal consegue conciliar seu sono. Recluso em seu palácio, em Majeria, sob a proteção de sua inquebrantável guarda normidon, desconfia do senado presidido por seu irmão Claudius.
A força do império auriano tem sido a chave para que o mundo antigo permaneça quase imutável ao longo do tempo. A hegemonia dos Sforza sobreviveu por tempo demasiado, e muitos pedem uma mudança na ordem estabelecida. Mas essa decisão diz respeito não apenas aos homens. Seres esquecidos se ocultam entre os dois mundos. As coisas nem sempre são o que parecem em Áuria.
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O Crepúsculo dos Normidons - Primeiro Episódio da Saga - Sergio Llanes
THE TWILIGHT OF THE NORMIDONS
First Episode in the Saga: Tears of Gea
By Sergio Llanes Romera
Translated by Sue Burke
Cover art by Jorge y Manuel Rodríguez Morán
Map of Auria: Jorge y Manuel Rodríguez Morán
© Sergio Llanes Romera 2016
© Ediciones Dokusou
Translated by Sue Burke
Legal Deposit:
MU-741-2016
I.S.B.N.:
978-84-945604-9-1
Edited by Ediciones Dokusou
www.edicionesdokusou.es
www.laslagrimasdegea.com
Agradecimentos a:
Minha querida esposa Isabel e meu pequeno Rocío por serem a fonte da minha felicidade.
Meus editores, Asun Martín e Raúl Gómez, por sua excelente orientação literária.
Paco e Carmen, cujo patrocínio possibilitou que minha obra fosse traduzida para o inglês por Sue Burke, uma excepcionalmente talentosa escritora e tradutora norte-americana.
A escritora e revisora da Canal Literatura, Elena Marqués, por um trabalho que jamais será superado. Vocês são todos ótimos!
Manu e Jorge, nossos brilhantes ilustradores, por compartilharem seu ilimitado talento com este projeto.
Viktor Mirete, Alexander Copperwhite e meus colegas da Palin.
O excelente escritor Lawrence Schimel, que me pôs em contato com Sue.
Ginés Bernal, o alquimista da internet
. Você é um ás e sabe disso!
Meu advogado e grande amigo Javi Ferrer, do seu padawan favorito. Nunca mude, mestre!
David Torres e Nacho Moñino pelo excelente trabalho de preparação do mapa de Áuria.
Luisa Núñez, presidente da Canal Literatura, o escritor Antonio Marchal-Sabater e Amelia Pérez de Villar pelo apoio incondicional que me deram.
Meu extraordinário grupo de primeiros leitores: Miguel Ángel de El Cepo
, Tommy de Jaén, Manu, Jorge, Armando Moreno, Juan Honesto, Nacho Moñino, Isabel, Tomás Pérez Gil, David Torres, Fabio, Jesús Carillo, Álex Díaz, Tao, Manolo, Giuseppe Skynet, Ginés, Raúl, Inma, Lola, Gabi e Estrella.
Shinobi de Alcantarilla, Emilio da Press Workshop, e as livrarias que me deram apoio.
A escola San Pablo CEU, de Molina, por seus magníficos professores.
Minha família e amigos. Vocês são inestimáveis!
A memória de Clemente Romera Navarro, meu avô e a pessoa mais admirável que já conheci, Don Adolfo, mentor e antigo diretor da minha escola, Úrsula Mol, que sempre me tratou com a um filho, e meu grande amigo José Luis Hernández Estaca.
Quisera que estivessem aqui e pudessem ler meu livro.
TOC
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Nota do Autor
Começarei com algumas informações para ajudar o leitor a entender o mundo no qual ocorrem os eventos do primeiro romance da saga.
Antes de tudo, tenho que dizer que desde a infância fui um menino que sonhava. Sempre fantasiei que um único lugar poderia ter diferentes planos de existência e imaginei todo tipo de culturas, civilizações e aventuras ocorrendo em paralelo ao mundo real em que vivemos. Isso permite que eu localize os eventos do meu romance na geografia da Europa, África e Ásia, como se todas as histórias estivessem acontecendo em um desse planos que existiriam em paralelo ao nosso mundo. O leitor vai descobrir que algumas das culturas do primeiro episódio da saga correspondem a culturas que realmente existiram e respeitam algumas de suas tradições e costumes, já que tentei procurar um ponto de referência para recriar seus habitantes do modo como eu os via.
Em segundo lugar, devo dizer que minha paixão pela Roma antiga me levou a criar o Império Auriano como um reflexo do esplendor daquela magnífica civilização. Muitos dos costumes e da terminologia dos aurianos são bem semelhantes aos dos romanos, usando o mesmo sistema de tempo e um calendário semelhante, e também uma organização militar bem comparável. Por outro lado, assim como na civilização romana, a vastidão dos domínios do Império Auriano também constituía um de seus maiores problemas. Essa vastidão de território era difícil de ser controlada com eficácia na época em que ocorre o primeiro romance.
Por fim, quero falar um pouco da linha do tempo. No âmbito desta fantasia medieval, o Ano Zero é um ponto de referência que assinala um acontecimento muito importante na história de Áuria. Do mesmo modo que na linha de tempo contemporânea do mundo ocidental o Ano Zero assinala o nascimento de Jesus Cristo, na Saga das Lágrimas de Gea, o Ano Zero assinalava a ascensão da dinastia Sforza ao poder. Seu domínio durou mais de três milênios, até as intrigas que iriam desencadear os acontecimentos deste romance, no ano de 3142, durante o governo de Valentinus III, o 69.o imperador da duradoura dinastia Sforza.
VOLUME I
Prólogo
Vila do Senador Guerini
No início do outono, a pouco mais de cinco léguas de Majeria[1], o renomado senador Claudius Sforza havia convocado a maioria dos membros do senado a comparecer a um conclave secreto. Ele agia sem o conhecimento do imperador, simplesmente para apressar a solução de uma crise que colocara o poderoso Império Auriano em perigo.
O local da reunião era a vila pertencente ao senador Guerini, um membro de uma das sete famílias de prestígio que haviam fundado Áuria quatro milênios antes. A propriedade ficava relativamente próxima da estrada principal, uma das muitas que cruzavam o império de uma extremidade a outra.
Duas colunas de mármore cobertas de espesso musgo erguiam-se de ambos os lados da entrada da vila. Mais além, na propriedade, o pavimento se dividia em dois caminhos estreitos. O da direita seguia diretamente para a mansão do senador, uma enorme estrutura cinzenta que de longe se avistava, com fileiras de arcos e colunas que lhe decoravam a fachada. O caminho da esquerda era orlado por uma grande variedade de árvores, entre as quais havia carvalhos, bordos e faias. O chão estava coberto de folhas, numa espetacular profusão de cores: marrom, vermelho escuro, laranja e ocre.
No centro da grande floresta, oculto sob as sombras, erguia-se um enorme edifício circular revestido de mármore cor de marfim com nervuras de travertino verde que o camuflavam em meio ao bosque. Uma colunata se erguia até o teto, diante de uma grande porta que se abria para dentro, e as colunas se retorciam sete vezes em memória das sete famílias que fundaram Áuria. Atravessando o pórtico, uma série de escadarias conduzia a um salão muito claro, de reluzente mármore branco, coroado por uma abóbada semiesférica.
O interior do grande salão havia sido construído de modo a representar a forma tradicional de uma cúria, com uma tribuna elevada à direita, de frente para uma fileira dupla de poltronas, a de cima reservada aos convidados mais ilustres.
Um por um, os senadores foram entrando e tomando seus lugares nas poltronas de madeira de carvalho. Entre os mais preeminentes, além do senador Bernardus Guerini, estavam os outros seis descendentes das famílias que haviam fundado Áuria: Henricus Cosato, descendente direto do primeiro rei de Áuria, Franciscus Dacua, membro de uma das famílias mais ricas do império, Aentius Giovanni, Cornelius Bellucci, Hector Pisanni e Filippo Matia.
Todos notaram a ausência do senador Franciscus Ceron, um dos homens mais importantes de Áuria, tanto por suas realizações militares quanto pelas políticas e por seu sangue imperial. A família Ceron havia ocupado uma posição preeminente na política auriana por mais de mil anos da história daquela ilustre casa, desde a época em que o grande Ceron Sforza, o Conquistador
, derrotara os turkhanos de Heráclia, na grande batalha de Balmípolis, sendo recompensado por seu irmão mais velho, o imperador Antonius IV, vindo a tornar-se príncipe da província de Heráclia e tendo seu próprio sobrenome oficialmente reconhecido.
O último a entrar foi o senador Claudius Sforza, cuja figura majestosa se ornava de peso e vigor. Ao entrar, seu semblante fez com que o murmúrio dos colegas se calasse momentaneamente, e um silêncio sepulcral dominou o salão. Todos contiveram o fôlego, esperando que ele ocupasse seu lugar de direito por linhagem sanguínea e anunciasse o motivo de tê-los convocado para aquele lugar. Lentamente, ele caminhou pelo tapete vermelho que conduzia à tribuna. A luz do sol que entrava pelas janelas o iluminava, mostrando que ele mantinha a sua costumeira elegância, a despeito da idade avançada. Tinha sobrancelhas retas e espessas, um cavanhaque perfeitamente aparado, que se tornara completamente branco com o passar do tempo, um nariz aquilino sobre os lábios finos, e olhos frios e cruéis, que em conjunto o faziam parecer forte e decidido.
Se eles recuarem agora, sofrerão as consequências, pensou Claudius. Mas não, eles não o farão. Têm tanto a perder nisso quanto eu. Seu olhar encontrou o de Bernardus Guerini e o de Franciscus Dacua. Eles o cumprimentaram com um breve aceno da cabeça e um sorriso de cumplicidade.
— Estimados colegas do senado — começou Claudius, numa voz poderosa que ecoou por todos os cantos do grande salão, erguendo o braço para repreender os poucos que ousavam quebrar o silêncio. — Embora alguns tentem disfarçar, todos sabem o motivo que me levou a convocá-los aqui esta noite, tão distante da cúria para reuniões formais de nossa ilustre câmara. O império está doente! — Ele fitou nos olhos cada um dos senadores. Seu olhar penetrante feria mais profundamente que suas palavras. Depois de uma breve pausa, prosseguiu.
— Infelizmente, desde que a imperatriz nos deixou, meu irmão parece estar alheio aos graves problemas que assolam a vastidão de Áuria e que sem dúvida irão devorá-la de dentro para fora se não encontrarmos uma solução a tempo. Todos sabem também que nosso imperador passou um mês inteiro sem aparecer em público e que ele somente permite que seu assessor, o médico, o comandante de sua guarda pessoal e um único servo de confiança o visitem, tendo negligenciado cada vez mais os problemas que ameaçam derrubar os alicerces do nosso país.
Alguns senadores ousaram sussurrar entre si.
— Silêncio! — vociferou Claudius. — Não terminei. Vocês deveriam saber que meu irmão está pensando em revogar os privilégios das principais famílias que presidem nossa ilustre câmara, além de incluir mais famílias no senado, entre elas algumas de origem plebeia. Tudo isso tem sido instigado por um dos senadores que se encontra ausente hoje neste salão: meu primo Franciscus Ceron.
— Isso é inaceitável — gritou o senador Dacua. — Não tenho a mínima intenção de tolerar um plebeu sentado a meu lado!
Muitos outros senadores acrescentaram seus protestos.
— Colegas! — bradou o senador Guerini, anfitrião da reunião. — Deixemos Claudius continuar.
— Obrigado, Bernardus — respondeu Claudius, dando tempo suficiente para que sua mensagem fosse absorvida pelos presentes. — O senador Ceron notou, assim como eu, o frágil estado em que se encontra a mente perturbada do imperador. Mas ao contrário de mim, ele pretende tirar vantagem disso para seus próprios interesses, não importando o preço que nosso povo tenha de pagar por isso. Áuria sangra a cada segundo que passamos olhando uns para os outros, impassíveis e incapazes de reagir. Chegou a hora de tomarmos decisões drásticas.
À medida que Claudius Sforza falava, ele esquadrinhava o rosto de cada pessoa do salão, procurando qualquer gesto, olhar ou sinal que pudesse mostrar-lhe quem estava a seu lado e quem discordava nem que fosse de uma única palavra do que ele dizia. Facilmente localizou seu principal oponente, o qual não fazia o mínimo esforço para ocultar seus pensamentos. O senador Cosato não podia acreditar no que estava acontecendo naquele salão e fitava perplexo o líder do antigo conselho.
— O que você está insinuando, Claudius? — perguntou o senador Cosato. — Escolha suas palavras com prudência. O simples fato de você haver nos convocado aqui sem ter informado previamente o imperador pode ser considerado traição. A despeito disso, viemos por consideração à sua reputação e aos laços familiares que o ligam à dinastia imperial, dispostos a ouvir. O imperador sempre nos guiou com sabedoria durante todo o seu governo. Com frequência, o próprio senado discordava de suas decisões. Mas, no final, o transcorrer do tempo mostrou que ele estava certo. Sinto o mesmo que o senador Ceron, e é difícil para mim vê-lo como inimigo do estado. Não me entenda mal, não duvido de suas boas intenções, mas lembre que nosso único dever é aconselhar o nosso imperador e aceitar suas decisões, sejam elas quais forem.
Uma mistura de sussurros e aplausos percorreu o salão improvisado de reuniões, porém imediatamente o senador Sforza restaurou a ordem, golpeando com força a tribuna onde ele se encontrava.
— Silêncio! — gritou ele. — Sei que todos têm a mesma dúvida. — Uma pausa encheu o ar de tensão, como ele havia planejado, então ele se ergueu, reluzente sob a luz do sol. — Tive essa mesma dúvida antes de me dar conta de que a passividade vai apenas trazer a ruína a nosso país. — Fez uma pausa para tomar fôlego.
— Como declarou meu estimado amigo, vivemos para servir o imperador, mas há um princípio mais elevado que nem mesmo Valentinus III pode olvidar e que tem prioridade ainda maior: o próprio império.
Dessa vez, fez uma pausa longa o suficiente para mostrar que a grande maioria o apoiava, com palavras que ecoavam pelo salão e gestos de aprovação. Bernardus Guerini e Franciscus Dacua tinham cumprido seu papel e convencido seus seguidores a apoiar o senador Sforza, que ergueu a mão até que o ambiente voltou a exibir o mesmo silêncio fantasmagórico que havia precedido sua entrada.
— Todos sabem tão bem quanto eu que a revolta começou quando Auvernia exigiu independência e autonomia. Isso foi rejeitado graças à intervenção do senado, que impediu nosso imperador, antes que ele concordasse com as perniciosas intenções deles. Se não o tivéssemos chamado de volta à razão, quanto tempo se passaria até que outras províncias se unissem à mesma campanha por independência, enquanto o império nada fazia?
Claudius fez outra pausa, dessa vez para deixar que sua mensagem penetrasse na mente dos senadores e conquistasse o apoio deles.
— Além disso, sei por fontes seguras que meu irmão está pensando em alterar o sistema de impostos e taxas e também conceder certas responsabilidades à província de Auvernia de modo a pacificar os rebeldes. A curto prazo, pode ser até que ele consiga obter paz real, mas a longo prazo, esse seria o início da desintegração de Áuria como força hegemônica na terra em que hoje habitamos. Se essas concessões forem feitas, isso apenas mostrará nossa fraqueza aos olhos dos bárbaros.[2] Em breve, teríamos uma guerra sangrenta contra os turkhanos, os dalvacos, os kazaques e os nórdicos, pois somente o temor de nossa força, ordem e união os manteve sob controle até agora. Não duvidem um instante sequer de que nossos mais terríveis inimigos não hesitariam em atacar nossas fronteiras com força e determinação, assim que descobrissem nossa fraqueza. É isso que queremos?
Ninguém respondeu. Após esperar alguns segundos, Claudius prosseguiu.
— Nem mesmo nosso imperador está acima de tudo, porque ele também deve lealdade ao império. Portanto, considero nosso dever agirmos imediatamente para impedir que isso aconteça. Ninguém ama meu irmão mais do que eu, mas acima desse amor, acima da minha família e acima de meus próprios interesses está o meu amor por Áuria! — exclamou ele, com ira controlada.
O salão encheu-se de murmúrios até que Claudius ergueu novamente a mão mostrando que desejava continuar a falar. Pouco a pouco, fez-se silêncio novamente.
— O imperador prestou um grande serviço a nosso povo por muitos anos e sempre será lembrado por isso. Mas recentemente ele parece ter perdido o bom senso, como mostram suas atuais intenções políticas e econômicas. Com o coração cheio de dor digo-lhes que meu irmão pretende entregar Áuria nas mãos de nossos inimigos, e para mim há um só nome para esse tipo de pessoa: traidor!
Ergueram-se vozes indignadas com a ousadia de ele ter chamado Valentinus III assim. Quando a balbúrdia finalmente cessou, Claudius prosseguiu.
— Chegou a hora de agir. Precisamos eliminar o imperador pelo bem de Áuria. Assim que ele se for, o poder novamente estará com o senado, como no passado, nos tempos da antiga república, antes de meus antepassados subirem ao trono. Quem de vocês está comigo?
Com essa pergunta, Claudius estudou a reação dos colegas, um por um. Com palavras mortais, ele havia concluído seu discurso. O apoio à sua causa parecia unânime, com exceção de três senadores sentados próximos a Henricus Cosato, que deixaram de tomar os assentos a que tinham direito entre os mais ilustres senadores para sentarem-se em meio aos demais. Claudius gravou mentalmente quem eram os três que discordaram.
O senador Cosato vinha ouvindo atenta e pensativamente em silêncio, com os olhos semicerrados e o queixo apoiado nos longos dedos. A tensão aumentou no salão, como uma ameaça latente, tornando o ar quase irrespirável. Após alguns minutos de reflexão, um por um, os presentes ali no salão ergueram a mão para apoiar a proposta de Claudius. Ele não deixou de notar a mudança de opinião dos três senadores que aparentemente haviam apoiado o senador Cosato e que por fim se uniram a Claudius em sua causa.
Não pensem que me enganam, disse ele para si mesmo.
Por fim, somente o senador Cosato permaneceu firme em sua oposição. — Não posso crer no que estou testemunhando. Perderam o juízo? O fim jamais justifica os meios. Se a solução for a de não ceder terreno em nossas províncias, nosso dever é persuadir o imperador, mas nunca atacá-lo. Essa ação destruiria todos os valores que tornaram o nosso império grande. Dou-lhes a oportunidade de retrocederem dessa atrocidade. Caso contrário, não me deixam opção senão denunciar suas intenções.
Claudius respondeu rapidamente.
— Sua devoção a nossas leis e aos antigos costumes me comove, mas você está simplesmente sendo ingênuo. Seu fervor pelo meu irmão lhe anuviou a mente. Precisamos ver além disso. Mesmo assim, não posso obrigá-lo a seguir-nos. Você está livre para partir quando desejar.
Com a dúvida obscurecendo-lhe o semblante, Cosato olhou em volta e sem mais palavra preparou-se para deixar o salão. Aqueles três senadores que Claudius notara antes menearam a cabeça bruscamente em concordância e se levantaram para segui-lo em direção à saída.
Quando Cosato estava prestes a estender a mão para abrir a porta, sentiu algo frio e afiado furar-lhe a carne, na altura das costelas, à direita. Ergueu o rosto para o teto, com dor, ao mesmo tempo em que seu grito aterrorizante emudeceu o salão. Com os olhos arregalados de aflição, baixou o rosto e viu boquiaberto a ponta de uma espada emergindo de seu corpo, compreendendo que o seu fim havia chegado. Tentou desesperadamente virar a cabeça para ver seu assassino, mas naquele mesmo instante, alguém lhe agarrou o rosto e lhe cortou a garganta. O sangue verteu aos borbotões, jorrando até o chão. Com um grito final, ele caiu de joelhos enquanto tentava conter o ferimento com as mãos.
Seu corpo desabou, e ele bateu a cabeça no chão. O som do impacto ecoou pelo salão, intimidando os senadores, que se calaram, horrorizados. Seu antigo colega jazia no chão, numa poça de sangue, dando o último suspiro.
Somente naquele momento, os demais senadores notaram uma presença que emergira das trevas como se ela própria fosse uma sombra. Enrolado numa capa de couro negro e com a face parcialmente coberta, revelando apenas o olho esquerdo vidrado e uma enorme cicatriz, o assassino se curvou e limpou sua arma numa ponta da túnica de seda branca do senador. Sem escrúpulo nem rancor e com uma indiferença que gelou o coração dos que o observavam, voltou a mesclar-se com as sombras, como se fizesse parte da escuridão.
Claudius notou com satisfação como o medo se apoderou dos senadores, refletindo-lhes no rosto o terror, eliminando qualquer sombra de dúvida.
— Alguém mais deseja sair do salão ou se manifestar?
Ninguém respondeu.
— Alguém? — Novamente Claudius só teve o silêncio como resposta. Vocês são meus, pensou ele. — Muito bem. Não há tempo a perder — disse ele, com autoridade. — Precisamos nos apressar e executar o golpe prontamente, enquanto ainda há tempo de salvar Áuria.
O senador Guerini foi o primeiro a ousar quebrar o silêncio e aceitar o desafio de Claudius Sforza. Sem mostrar o menor temor a despeito da brutal demonstração de força que todos tinham testemunhado, caminhou firmemente até chegar a dez passos de Claudius.
— Concordo inteiramente, mas há um pequeno detalhe que não compreendo. Como iremos fazer isso?
Claudius sorriu, satisfeito.
— Precisamos tentar separá-lo da Guarda Normidon — disse ele. — Assim que conseguirmos fazê-lo, o restante será fácil. Deem-me alguns dias para descobrir como, e então agiremos. Aceito a responsabilidade de tirar a vida de meu irmão. Tendo em vista o quanto somos próximos e o quanto nosso afeto mútuo nos une, será fácil encontrar a oportunidade certa. Quando o momento chegar, nenhuma testemunha deve sobreviver para contar o que aconteceu. Para garantir que nossas famílias estejam a salvo da ira do imperador, caso nosso plano venha a fracassar, tomei a liberdade de colocar seus filhos primogênitos sob minha proteção e sob a atenta vigilância de homens nos quais deposito plena confiança.
Claudius deixou o silêncio imperar por um longo momento. Nenhum dos senadores fez qualquer comentário em relação àquela velada ameaça. Estavam nas mãos dele, não tendo outra escolha senão esperar que o perigoso plano do irmão do imperador tivesse sucesso, pois caso contrário todos sofreriam o mesmo destino.
Dessa vez, foi o senador Fillipo Matia que ousou quebrar o silêncio. — E o que acontecerá se o general Antonius Sforza ou Franciscus Ceron ficarem sabendo de nossa traição? Com a maioria do exército a seu lado, não teríamos chance contra eles.
Outro covarde de quem terei de cuidar, pensou Claudius Sforza
— Não pensem que me esqueci do ilustre Franciscus Ceron. Garanto-lhes que em breve ele não será uma ameaça a nossos interesses. E quanto ao general Antonius Sforza... não se preocupem com meu sobrinho.
Capítulo 1
Snowburg, no reino nórdico de Icelung
Ao raiar do sol de uma bela manhã de outono, as ruas de Snowburg[3] estavam cobertas de neve. Teria sido surpreendente para aquela época do ano nas longínquas terras do Sul, que era como seus habitantes chamavam Áuria, mas não para os homens e mulheres daquele reino distante, acostumados a desfrutar um manto de branca neve cobrindo o chão durante quase o ano inteiro.
Os islandeses, como eram chamados os nativos da ilha, eram um povo robusto e endurecido pela guerra, sendo temidos pelos que eram alvo de seus ataques. Tanto os homens quanto as mulheres eram instruídos na arte da guerra desde a tenra infância, especialmente no uso do arco e da espada longa. Faziam frequentes incursões ao longo de toda a costa de Anglia e Auvernia, e os pobres moradores das cidades que eram vítimas de seus ataques geralmente fugiam apavorados, quando eles se aproximavam. Além da pilhagem, sua principal fonte de subsistência eram a caça e a pesca.
Não era um dia qualquer para os islandenses. Era a véspera de um de suas cerimônias mais sagradas: o primeiro dia da estação de caça ao majestoso mamute branco, um animal nativo dos reinos nórdicos que há muito se tornara extinto além dos confins naturais de sua ilha. As crianças da capital do reino corriam alegremente por suas largas ruas, disputando guerras de bolas de neve repletas de risos, enquanto os adultos exerciam continuamente seus trabalhos. Somente duas crianças não pareciam compartilhar da alegria. Para eles, aquela data apenas assinalava uma lembrança dolorosa.
— Vamos lá, irmão, eu também tenho saudades dele — disse Skög Mörd a seu irmão Garkahür, dando-lhe um soquinho no ombro para tentar tirá-lo da melancolia. — Você não deve torturar-se assim. Não foi culpa sua. Além disso, o pai teve uma morte digna de herói, uma morte que todo guerreiro islandês desejaria para si mesmos, com uma arma na mão, salvando a vida de seu rei. Vamos, anime-se!
— Você não entende — respondeu Garkahür. — Eu poderia ter impedido a morte do pai. Além disso, nestes dias fica realmente óbvio que não faço parte de seu povo e nunca farei. Todos aqui sempre me olham de modo estranho, e não os culpo. Eu sou esquisito. Todas as outras crianças têm medo de mim.
Uma mulher forte com uma cabeleira loira e abundante, tão pálida que quase parecia branca, apareceu atrás deles. Ela se aproximou de Garkahür e lhe deu um beijo estalado.
— Nunca, jamais, diga isso de novo — berrou Gilda. — Está me ouvindo? Você é tão filho meu quanto o Skög. Você mamou nos meus peitos como ele e tem nosso sobrenome. Então pare de dizer coisas estúpidas e vá com seu irmão desfrutar o festival.
Gilda parecia o protótipo de uma mulher nórdica, forte e rija. Garkahür queria chorar, mas usando toda a sua força e determinação, conseguiu conter as lágrimas. Não havia lugar para fraqueza entre os islandenses.
— Perdoe-me, mãe. Não quis ofendê-la — confessou Garkahür, envergonhado. — É só que eu sinto saudades do pai.
— Eu também sinto saudade de seu pai — disse ela, acariciando a cabeça dos dois meninos. Ficou ali por um instante sem dizer mais nada. — Agora vão e brinquem com as outras crianças e não ousem fazer nada para incomodar a filha do rei Elkjaer.[4] Hoje é o aniversário de doze anos dela, e vocês dois foram convidados, em respeito ao cargo que seu pai teve quando estava vivo, como skjoldür do rei[5]. Não façam nada que me deixe envergonhada.
As palavras de Gilda soaram mais como uma ordem do que um conselho materno. Ela ficou olhando do quintal dos fundos enquanto os dois filhos partiram, saltando como faunos, e se deu conta de o quanto eles haviam crescido em dez anos. Parecia que fora ontem que ela e seu finado marido haviam encontrado Garkahür no meio da floresta sagrada.
Naquele dia tão distante no passado, Gilda e Björn Mörd estavam voltando de uma visita a uma mulher xamã eremita que morava no coração da floresta. Tinham ido procurá-la para que ela abençoasse seu filho recém-nascido, Skög, o primogênito, de apenas dois meses de idade. Lars Sorensen, o melhor amigo de Björn e membro do prestigiado skjoldür do rei, tinha ido acompanhá-los no cumprimento de seu dever como padrinho do bebê. A despeito do uivar do forte vento, Gilda achou ter ouvido um bebê chorando na moita. Disse isso ao marido e a Lars Sorensen, e juntos foram olhar. Depois de passarem por várias áreas de densa vegetação, chegaram a uma pequena clareira onde encontraram de onde vinha o som.
Uma mulher jovem estava caída no chão em meio à folhagem, nua e coberta de sangue. Pequenas flechas eram visíveis por todo o seu corpo, o que sem dúvida lhe causara a morte. Tinha nos braços um bebê recém-nascido, que chorava sem parar. Pareciam diferentes do povo nórdico, que geralmente tinha cabelos loiros e olhos azuis. A mãe e o bebê tinham cabelo cor de fogo e estranhos olhos amarelos. Por incrível que pareça, a mulher tinha conseguido adiar a morte pelo tempo suficiente para dar à luz seu bebê, e pelo calor de sua pele, parecia que continuara viva até quase o momento em que foi encontrada. Foi como se soubesse que eles estavam indo socorrer seu filho e os estivesse esperando chegar para dar seu último suspiro.
Assim que Gilda se inclinou para pegar o bebê dos braços da infeliz mulher, um magnífico falcão pousou no alto da rocha atrás deles. Naquele momento, ela soube que nome dar ao menino: Garkahür[6]. Então, desnudou um de seus seios generosos e começou a dar-lhe de mamar. Com apetite voraz, o recém-nascido mamou até saciar a fome e depois adormeceu, totalmente alheio ao drama que ocorria a seu redor.
Quando Gilda se ergueu com Garkahür nos braços, notou o olhar de desaprovação do marido e de Lars. Eminentemente supersticiosos como eram, o estranho acontecimento que haviam acabado de testemunhar, juntamente com a aparição do menino e sua suposta mãe, fez com que ambos se opusessem por princípio a levar o misterioso recém-nascido com eles. Mas Gilda tinha decidido que o faria, e não estava disposta a ceder. Björn quase nada negava a sua amada esposa, tão profunda e leal era sua devoção a ela. Assim, ela conseguiu o que queria. Afinal, dera à luz Skög havia apenas dois meses e tinha leite suficiente para os dois bebês.
Depois disso, voltaram a Snowburg e ocultaram de seus conterrâneos a estranha origem do menino. Skög e Garkahür se tornaram irmãos de leite. Além disso, Garkahür foi legitimamente reconhecido por Björn e assim ganhou o direito de ter o seu sobrenome.
Gilda lembrou-se de como a infância de seus dois filhos tinha sido feliz, a despeito das árduas condições de vida na terra. Garkahür era bem menor que Skög, que se tornou um menino forte e vigoroso, muito protetor em relação a seu irmãozinho. As outras crianças tomavam o cuidado de não incomodar Garkahür, com medo das represálias de Skög. Pouco a pouco, a presença do estranho filho adotado de Gilda passou a ser tolerada pelas pessoas, embora o próprio Garkahür parecesse preferir a solidão à companhia das outras crianças. Toda essa felicidade começou a se dissipar no dia em que os misteriosos dons com que a natureza dotara seu filho adotivo começaram a aparecer, quando ele estava com apenas oito anos de idade.
Naquele dia, como neste, todos estavam se preparando avidamente para o início da estação de caça do mamute branco, principalmente os skjoldür do rei Elkjaer, já que eles teriam a honra de acompanhar seu monarca naquele acontecimento sagrado e mantê-lo seguro.
No meio das festividades que antecediam a caçada, Garkahür chamou o pai. A conversa que tiveram e a reação de seu marido ficaram para sempre gravadas na memória de Gilda.
— Pai. Sei como é importante para o nosso povo a comemoração da primeira caçada do mamute branco — começou a dizer Garkahür, com timidez. — Também sei que é seu dever proteger nosso rei. Mesmo assim, não quero que você vá desta vez. Por favor, fique conosco.
O pai olhou para ele, sério. — Perdeu o juízo? — disse Björn, claramente zangado. — Por que eu deixaria de cumprir meu dever? Ser um dos skjoldür do rei é a maior honra que um islandês pode receber.
O menino gaguejou um pouco. — Pai, se você for a esta caçada, receio que jamais retorne para nós. Tenho o sentimento de que você não vai sobreviver a essa jornada. Vi isso em sonhos. Eu sabia antes de dizer isso que sua resposta seria essa, mas ainda assim eu tinha que tentar. Perdoe-me, pai, por pedir algo tão vergonhoso.
Garkahür disse tudo isso rapidamente, sem erguer o rosto, visivelmente envergonhado. De repente, o menino lançou-se nos braços do pai adotivo, abraçando-o com força, enquanto a mãe observava, tendo ouvido toda a conversa. Björn relaxou e abraçou de volta o filho.
— Talvez você seja pequeno demais para entender certas coisas — disse Björn em tom paternal, — mas tem que aprender a respeitar e honrar os costumes de seu povo. Em breve será um homem, e espero tanto de você quanto do Skög, já que ambos são meus filhos. Nunca tema a morte porque ela é apenas o limiar de uma vida melhor, uma vida eterna com nossos deuses. Agora vá correndo acompanhar sua mãe e seu irmão. É tarde, e eu preciso ir.
Björn fez um carinho na cabeça de Garkahür antes de desprendê-lo de seus braços musculosos. Garkahür, com os olhos brilhantes que evidenciavam seu esforço para conter as lágrimas, virou-se e foi obedientemente para casa.
Três dias depois, a escolta do rei retornou a Snowburg, no final da caçada. Gilda estava esfolando a pele de um lobo quando viu Lars Sorensen entrar em sua cabana, com os olhos tristes, solene e respeitoso. Ela imediatamente soube o que aquilo significava. Ele começou a falar com a voz embargada e hesitante, numa vã tentativa de encontrar as palavras certas.
— Gilda. Sinto muito... — gaguejou Lars.
Com um gesto, ela o interrompeu e se ergueu da cadeira, controlando a dor que sentia no coração, e disse ao guerreiro: — Ele teve uma boa morte? Diga-me a verdade.
Lars hesitou antes de conseguir responder.
— Teve, sim. Morreu como herói.
Ele notou a força da mulher de seu melhor amigo, relaxou um pouco e começou a falar com mais fluência.
— Estávamos seguindo o rastro de um grande mamute, perto de Goǧafoss, a cascata dos deuses. Nós o tínhamos perseguido o dia inteiro e finalmente o encontramos. Quando o encurralamos perto do despenhadeiro Dente de Gelo, ele viu que havia caído numa armadilha e se voltou contra nós. Era uma fera magnífica, uma das maiores que já vi. Investiu com tamanha fúria que nos pegou desprevenidos, e como se seguisse uma grandiosa estratégia, rumou diretamente para nosso rei. Tentamos reagrupar-nos, mas a surpresa nos deixara numa posição muito ruim, e observamos impotentes o enorme animal ameaçar a vida daquele que juráramos proteger. Somente Björn foi rápido e sereno o suficiente para reagir a tempo. Ele interceptou o mamute em seu trajeto, quando ele estava prestes a esmagar o rei Elkjaer. Preparou a lança da melhor maneira que pôde, embora soubesse que sua posição era precária. A inércia da carreira desabalada da fera fez com que ela se empalasse na lança que seu marido segurava com tanta força a ponto de ela lhe atravessar a pescoço e se partir ao meio como se fosse uma lâmina de palha seca. O animal caiu para a frente, morto antes de tocar o solo. Björn não teve tempo de sair dali, e o mamute...
Lars deixou a frase inacabada, sem saber como continuar a história. Após alguns momentos, o silêncio pareceu renovar-lhe o espírito.
— Todo islandês desejaria tomar o lugar de Björn hoje, já que com seu heroico sacrifício ele será recebido com honras plenas no grande salão de nossos deuses e com cânticos que serão entoados para sempre em memória de seu grande feito. Sinto-me honrado por ter tido o privilégio de compartilhar meus dias com ele e desfrutar de sua amizade e companhia.
Lars mal podia conter a emoção ao falar.
— Agradeço por suas palavras de consolo — respondeu Gilda, com seriedade. — Por favor, chame meus filhos. Eles têm o direito de saber como seu pai morreu.
Embora a conhecesse muito bem, Lars não pôde deixar de sentir orgulho da força e determinação da mulher de seu melhor amigo. Ela era uma verdadeira nórdica, e como tal, a companheira ideal para seu valoroso amigo.
— Farei isso — disse ele. Acrescentou com sinceridade, — Se precisar de algo, basta pedir. — Depois, virou-se e saiu da casa, deixando Gilda sozinha.
Skög tinha ouvido tudo por uma das janelas de madeira que davam para o pátio interno. Tentou com todas as forças, mas não conseguiu conter as lágrimas. A profecia de Garkahür tinha sido cumprida, tornando reais os temores que os dois meninos tinham compartilhado naqueles três dias. Ninguém soubera do sonho profético, exceto os membros da família Mörd. Soluçando, Skög prometeu a si mesmo que, tal como seu vigoroso pai, ele levaria esse segredo à sepultura.
Ao longo dos anos que se seguiram, tanto Skög quanto sua mãe viram que as premonições de Garkahür se realizavam com frequência cada vez maior. Suas predições sempre se cumpriam, exceto algumas que não eram literalmente cumpridas, portanto às vezes parecia que o menino havia errado. Certa noite, ele sonhou que um grande peixe nadava pelas ruas inundadas de Snowburg, movendo-se com facilidade por entre as casas da cidade. De repente, a porta de uma casa se abriu e drenou toda a água que havia inundado Snowburg, e um enorme peixe estava no chão, exausto, diante da porta.
A princípio, Garkahür achou que isso anunciava o que viria a acontecer em dias vindouros: um dos muitos navios que partiam diariamente para pescar fisgaria um peixe de tamanho excepcional, mas isso não aconteceu. Mais tarde, ele achou que Snowburg seria inundada ou que haveria algum incidente no mar, mas isso também não aconteceu. As outras teorias do menino também se mostraram equivocadas, e assim ele concluiu, por fim, que havia errado daquela vez, ou que aquele não tinha sido um sonho profético. Mas o que aconteceu foi que Astrid, a esposa de Axil, um dos pescadores mais experientes de Snowburg, estava grávida. Quando ela deu à luz, o bebê era natimorto. Foi somente então que Garkahür lembrou que a porta que se abrira, drenando toda a água da cidade, tinha sido a da casa na qual eles moravam.
Nem todos os sonhos de Garkahür eram maus. Um pássaro de geleira sempre aparecia em seus sonhos um dia antes de ele ver Aurora, a filha do rei Elkjaer, embora ele nem sempre soubesse de antemão que a encontraria. Essa era outra característica dos sonhos de Garkahür: ele não tinha nenhum tipo de controle sobre eles. Poderia se dizer que ele não tinha domínio algum sobre seu poder. Simplesmente, às vezes sonhava sobre coisas que iriam acontecer.
Outras das habilidades de Garkahür, que tinha sido bem notada, era sua capacidade inata de comunicar-se com os animais. Até os animais selvagens se comportavam como se fossem meros animais de estimação em sua presença. Parecia até que eles obedeciam a ele com veneração. Esse era o único dom que não causava problemas a Garkahür, porque ele se sentia melhor na companhia dos animais do que das pessoas. Mas o mesmo não se dava com suas premonições.
A princípio o menino encarou seu próprio poder com suspeita. Sofria profundamente quando sonhava, talvez porque se sentisse atormentado pela lembrança de seu primeiro sonho profético, e sua mãe passava muitas horas consolando-o e tentando fazer com que voltasse a dormir. Pouco a pouco, o espírito feliz e indisciplinado da juventude tomou conta, e Garkahür e Skög fizeram da interpretação de seus sonhos um jogo, embora isso deixasse a mãe zangada, até que, por fim, ela se resignou com a situação.
Ali parada no quintal dos fundos, todas aquelas lembranças e pensamentos fizeram com que Gilda se sentisse ainda mais atemorizada, preocupando-se com a possibilidade de que seu filho adotivo jamais encontrasse felicidade devido à sua natureza estranha: medo de que chegasse um dia em que os vizinhos começariam a temê-lo ou a rejeitá-lo ou até a odiá-lo... temendo pela segurança de seus entes queridos.
A voz penetrante de um de seus filhos a tirou de seu devaneio.
— Venha, seu bobo! — gritou Skög para o irmão. — Vamos nos divertir, você vai ver. Além disso, você não me engana! Já vi como você fica encarando a Aurora. Sei que você gosta dela! Já notou como os peitos dela cresceram este ano? Oh, eles devem ser macios. Não gostaria de saber?
Skög riu e mexeu as mãos no ar, no formato das curvas do corpo de uma mulher.
— Skög, já chega! — repreendeu Garkahür, mas tinha ficado vermelho como um tomate.
— Ou o quê, irmãozinho? Vai me bater? Venha, tenho certeza que você também pensou