Fotografia e Psicologia: Experiências em intervenções Fotográficas
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Sobre este e-book
O estatuto da fotografia como intervenção no jogo das enunciações e visibilidades, convoca a potencialidade de criação e invenção da fotografia, pressionando-a a dobrar-se sobre si mesma e desdobrar-se, esperamos, em diferentes estudos e produções acadêmicas.
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Fotografia e Psicologia - Jaqueline Tittoni
FOTOGRAFIA E PSICOLOGIA
Jaqueline Tittoni
A fotografia e o fotografar fazem parte de nossa experiência cotidiana, ampliando, em muito, o campo reduzido dos operadores técnicos, formado por fotógrafos, críticos e estudiosos da fotografia. O fotografar, assim, é uma prática que modula formas de existência, onde a vida se mostra através de sucessivos instantes, pela capacidade de registrar, descartar, armazenar, manipular e, enfim, produzir a vida cotidiana na forma de registros instantâneos e descontínuos.
Para Flusser (2002, p.66) estar no universo fotográfico, cercado de fotografias por todas as partes, implica viver, conhecer, valorar e agir em função das fotografias. Isto é: existir em um mundo-mosaico
. Trata-se assim, de pensar não só do ponto de vista da fotografia e de seus desdobramentos, mas dos modos de vida que se produzem a partir das mudanças no olhar e dos pontos de vista trazidos pela câmera fotográfica.
Para Berger (2000, p 24-25) a câmara fotográfica trouxe a possibilidade de isolar as aparências e inscreveu-a na temporalidade, ou seja, a câmera mostrava que o conceito de tempo que passa era inseparável da experiência visual
e, da mesma forma, inseparável do lugar de onde se vê e, assim, "o que víiamos era algo relativo que dependia de nossa posição no tempo e no espaço. Também Fontcuberta (1998, p.p.36)) aponta que o surgimento da fotografia coloca
uma nova posição do homem com respeito ao mundo: a relatividade da representação em função dos diversos pontos de vista. Este deslocamento de perspectiva e a criação de outras possibilidades de olhar persiste na discussão sobre a potencialidade da fotografia até hoje, quando multiplicam-se os argumentos de que a fotografia traz para a produção acadêmica a possibilidade de outros olhares e de diferentes
pontos de vista".
As transformações trazidas pelas tecnologias do olhar
, indicam, assim, a potencialidade da fotografia e sua inscrição potente na história da sociedade moderna e contemporânea. A possibilidade de ampliar a visibilidade, de registrar, recriando espacialidades e de fixar, de modo a jogar com as impossibilidades do tempo, já indicam alguns elementos que produzem esta capacidade de resistir e, ela mesma, durar, apesar das transformações da sociedade.
A fotografia na contemporaneidade, em muitos aspectos, não pode mais ser associada aos princípios de sua origem: como grafia da luz (do grego phos e grafia) frente aos recursos digitais que possibilitam, e até mesmo popularizam, as experiências fotográficas. As luzes e suas grafias, neste contexto digital, podem ser criadas, trabalhadas, modificadas. A incidência da luz sobre as superfícies sempre produziu diferentes olhares e isto não é nenhuma novidade. A luminosidade cria contornos, produz eixos de visibilidade e recria, com o auxilio dos recursos da técnica e da arte, os mundos e as realidades cotidianas. A luminosidade padrão, ligada à luz branca e fluorescente, é característica de um modo de vida ligado à modernidade e instaura, de certa forma, um modo de ver também marcado pela padronização, deixando em um segundo plano o jogo das sombras e seus efeitos. O olhar, assim, orienta-se para a possibilidade de ver em quantidade
, deixando os detalhes dos jogos da luz e de suas incidências sobre as superfícies, aos olhares da arte e de suas criações.
Os equipamentos que permitem estas visibilidades e registros, na forma de câmeras fotográficas, navegam pelos mundos de pixels e símbolos, criando imagens digitais e tornando ainda mais flexíveis suas possibilidades de utilização. Os equipamentos fotográficos associam-se a outros equipamentos, como telefones celulares, canetas e outros tantos quase inimagináveis artefatos que parecem ganhar vida das telas de cinema, pressionando para a própria redefinição do que pode ser considerado como uma fotografia. Assim, ao tratarmos do tema da fotografia, estamos tratando de um tema que condensa e expressa importantes aspectos do modo de vida contemporâneo: a imagem – e a realidade
– como produção, o registro como uma questão em um mundo de liquidez e os jogos do tempo que tensionam o instantâneo da imagem com a possibilidade de sua duração.
Batchen (2004), sugere o estudo da história da fotografia através da pergunta sobre o surgimento do desejo de fotografar, em uma proposta de genealogia do surgimento da fotografia de referência foucaultiana. Para o autor,
posto que los conocimientos básicos de la existencia de sustâncias químicas sensibles a la luz eran sobradamente conocidas desde los años 1720, por que el concepto y el deseo de fotografiar comienza a surgir solamente en torno de 1800 y no antes?
(Batchen, 2004, p.58)
Esta pergunta convoca ao contexto político que possibilita a emergência deste aparato científico como elemento de certo ordenamento social. Neste caso, dois argumentos, pelo menos, surgem de forma relevante: o contexto capitalista com a ascensão da tecnologia como referência da produção de vida, de conhecimento, de trabalho e o contexto positivista que tinha nos mecanismos de reprodução dos experimentos e de demonstração dos fatos dois elementos centrais.
Com relação ao capitalismo, a câmera escura tratava-se de um equipamento de grande valor de troca que se inscrevia no imaginário burguês da propriedade (apropriar-se do olhar) e da individualidade, na medida em que instigava ao olhar de cada indivíduo sobre a realidade. Do ponto de vista da tecnologia, a possibilidade de fazer ver
através e ampliar as possibilidades de visão colocava-se no imaginário da tecnologia como potencial criadora da vida. Do ponto de vista do positivismo, Berger e Mohr (2007) indicam que o positivismo, a câmara e a sociologia cresceram juntas, sustentadas pela crença de que "a precisão substituiria as matemáticas, o planejamento resolveria os conflitos sociais, a verdade ocuparia o lugar da subjetividade e o que fora obscuro e estivesse oculto na alma seria iluminado pelo conhecimento empírico" (Berger e Mohr, 2007, p.99).
Assim, uma conjunção de fatores de ordem técnica, científica e política, como também o desenvolvimento da química e da física que permitirá a fixação das imagens e sua reprodução, concorrem para a definição das condições de possibilidade do surgimento da fotografia. Para pensar esta complexidade, cabe ressaltar a observação de Batchen (2004) sobre o contexto científico que define estas condições de possiibilidade de existência da fotografia. De um lado, a implementação dos estudos em história natural, da filosofia natural e de importantes transformações no campo, também, da linguística e da cultura. Este contexto intelectual marca-se pela complexidade e não pela especialidade, colocando em questão a possibilidade de registro e reprodução de experimentações científicas e, ao mesmo tempo, ampliando seu espaço de visibilidade para outras pessoas. Talbot, por exemplo, era um cientista experimental e um filósofo natural enquanto Daguerre foi decorador da Ópera de Paris e co-inventor do Diorama e, considerando a importância de ambos na invenção e definição da fotografia, pode-se pensar que a produção do conhecimento que permite a existência da fotografia atravessava diferentes discursividades. O autor aponta ao desenvolvimento dos estudos sobre a fisiologia do olho, em franco desenvolvimento neste período, também como fator importante no contexto de surgimento da fotografia, O próprio ato de nomear o procedimento em questão – fotografia – passará por uma série de desdobramentos, sendo que a expressão fotografia acaba por cunhar-se através de uma duplicidade phos – luz e graphia – desenho. Para Bachen (2004), as discussões em torno da teoria corpuscular da luz estava sendo posta em questão pela perspectiva da teoria da onda ondulatória, o que resultou em vários debates sobre a luz e suas propriedades, colocando em questão o que poderia ser considerado como desenho da luz.
Como palabra, plantea uma paradojica coalición de
luz (sol, dios, naturaleza) y
escritura (historia, humanidade, cultura), uma oposición binária imposible ’fijada’ em uma precária conjunción unicamente por el artifício da linguagen
. (Batchen, 2004, p. 104)
Esta cisão, já no próprio nome, expressa o caráter de complexidade no qual se instaura a fotografia. Batchen (2004), baseado no pensamento foucaultiano, sugere que a história da fotografia assenta-se na relação continuidade-descontinuidade, evocando os binômios natureza-cultura, vida-morte, claro-escuro, passado-presente, presença-ausência, original-cópia. Estas ambiguidades, no entanto, ao invés de convocarem a um estudo de polaridades faz lembrar o que Foucault (1999) sugere como sendo "o jogo da diferença que sempre difere de si mesma".
O caráter ambíguo e enigmático da fotografia mostra-se pelo fato de que, por um lado, está em um mundo de imagens reproduzidas ao infinito na forma de uma repetição do mesmo e de sua conservação e, de outro, está na potência da criação e da recriação de mundos imagéticos. Neste caso, conservação e criação colocamse como possibilidade. Talvez, por seu caráter enigmático e descontínuo, a fotografia possa situar-se como uma expressão importante da contemporaneidade.
Barthes (1984) afirma o caráter de desordem e de irredutibilidade da fotografia, ou, nas palavras do autor, a resistência apaixonada a qualquer sistema redutor
(Barthes, 1984, p.19). Esta irredutibilidade é, ao mesmo tempo, um pressuposto e uma condição de existência da fotografia. Como pressuposto, adverte que é necessário definir e demonstrar o ponto de vista, ou os caminhos que traçamos em nossa abordagem da fotografia e de seus processos. Como condição de existência, a irredutibilidade mostra a diversidade da produção fotográfica e de seus produtos em termos da mídia, da arte, da publicidade,entre tantos outros. Assim, a perspectiva da fotografia ao mesmo tempo que abre-se a esta diversidade, mostrando a multiplicidade dos olhares, também foca-se, direciona-se, dirige-se através do olhar do fotógrafo.
Osborne (2007) atenta para a fragilidade do modelo de unidade fotográfica, apontando as diferentes formas de coexistência da fotografia contemporânea, a saber, a fotografia digital, a de suporte químico, o vídeo, entre outros, sendo que não há uma única forma que possa ser ontologicamente fundamental para formar uma unidade. A fotografia, para o autor, não é um meio
, mas é uma condição de pós-meio. Estas reflexões o fazem propor a idéia do fotográfico
como uma
certa unidade histórico-cultural para uma série de tecnologias de produção de imagens(…) Esta unidade deriva das conexões ao nível das formas materiais da tecnologia (uma marca de luz sobre diferentes tipos de superfícies fotosensíveis) com as funções e usos sócio-culturais predominantes (como representações epistemologicamente privilegiadasdo real.
(Osborne, 2007, p. 69)
Este jogo entre a multiplicidade e foco, a unidade e a multiplicidade, coloca em questão a intencionalidade, o desejo de fixar, a possibilidade de escolher uma cena, um momento, um detalhe, ampliando a visão da fotografia e do fotógrafo para o fotografar como ato. Como ato, a fotografia e o fotografar engendram-se aos contextos que tornam possíveis o ato e sugerem os elementos da ética implicados na posição dos sujeitos nestes processos. Nosso olhar dirige-se, assim, não só para as imagens das fotografias, não só para os fotógrafos que escolhem e focam os elementos a serem fixados e, nem mesmo somente para os espectadores, que