Os escritores que eu matei
De Marco Severo
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Sobre este e-book
As crônicas – parte delas publicadas anteriormente em blogs na internet e retrabalhadas para este volume, aliadas a outras inéditas – são o resultado de quase quatro anos contribuindo com o pensar e o fazer literário, aqui elevados à potência máxima, culminando com seis novas crônicas escritas especialmente para esta nova edição revista e ampliada, e que atestam a vigorosa escrita do autor, que tem a capacidade de nos fazer querer caminhar com ele por este universo de encantamentos que é a literatura, virando página após página, seduzidos pelos labirintos da palavra. Dono de um estilo sagaz, ao criar uma obra a um só tempo incisiva e sensível, Marco Severo comprova que a literatura ganhou um cronista de mão cheia.
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Os escritores que eu matei - Marco Severo
OS ESCRITORES QUE EU MATEI
MARCO SEVERO
editora moinhosA Vanessa Barbara, que pavimentou e iluminou os caminhos.
A Gabriela Reinaldo, amizade e afeto para além das palavras.
Ao Henrique, força soberana.
A arte de escrever é a arte de descobrir aquilo em que se acredita.
Gustave Flaubert
Sumário
AS LEITURAS POSSÍVEIS DE UMA VIDA
OS CLÁSSICOS QUE VOCÊ NUNCA VAI LER
O AUTOR TEM MESMO QUE SE SUPERAR A CADA OBRA?
OU É NA IDADE CERTA OU NUNCA (?)
SEDUZIDO PELO TÍTULO
UMA ILHA DESERTA EM CHAMAS
INVEJA BRANCA LITERÁRIA
[GRANDES] AUTORES DE UM LIVRO SÓ
A ERA DO ESCRITOR MIDIÁTICO
EMPRESTAR LIVROS: UMA ARTE
É POSSÍVEL SEPARAR O AUTOR DE SUA OBRA?
O PROBLEMA DAS PRATELEIRAS
UMA DEFESA DO bestseller
QUEM VOCÊ TEM MEDO DE LER?
LEITURAS DE PRÉ-MORTE
ENDEUSAMENTO LITERÁRIO
LITERATURA É FINGIMENTO OU O CARNAVAL DOS CURUMINS
A ZONA DE CONFORTO LITERÁRIA É ACONCHEGO
É MESMO BOM SER A FORMIGA?
ESCRITORES DEFUNTOS E SEUS RESTOS
MINHA CULPA, MINHA MÁXIMA CULPA?
O MOMENTO CERTO DE TUDO: DAS LEITURAS DA INFÂNCIA E DA NÃO-TÃO-INFÂNCIA ASSIM
A MORTE E AS MORTES DOS ESCRITORES QUE ADMIRAMOS
OS ESCRITORES QUE EU MATEI
COLOCANDO FOGO NA BIBLIOTECA
O LEITOR TRANSFORMADO
VENDER LIVRO DE PORTA EM PORTA NA ERA DA AMAZON
UM AMOR (LITERÁRIO) REDESCOBERTO
SER OS OLHOS DE ALGUÉM
INDEPENDÊNCIA E/É VIDA
Créditos
AS LEITURAS POSSÍVEIS DE UMA VIDA
Vivemos por nossas obsessões.
No limiar entre a neurose e a completa paranoia, criticadas como sejam, são elas que nos salvam. Refiro-me aqui, claro, àquelas pequenas coisas que fazemos constantemente, com uma frequência que libera endorfina, serotonina e todos esses neurotransmissores que tornam a vida um pouco mais leve.
Imagine o que seria viver sem a ajuda dessas repetições que fazem de nós pessoas capazes de viver em sociedade. Sim, eu digo isso porque, se fôssemos privados dos nossos pequenos prazeres, é certo que o mundo teria muito mais criminosos do que tem atualmente.
Pois bem: andaram fazendo um cálculo e descobriram que, se nós lêssemos um livro por semana até os 80 anos, o máximo que conseguiríamos ler entre os 15 e os 80 seria o total de 3510 livros.
Isso significa que se eu parasse de comprar livros hoje, ainda assim não daria conta de ler tudo o que tem na minha biblioteca pessoal. E que fique claro que a possibilidade de nunca mais comprar nada e ler apenas o que já tenho está fora de cogitação.
Pausa para o momento da depressão. Fôlego novo. Avante.
O assunto já me ocorrera, mas só quando vi uma postagem da escritora Socorro Acioli sobre ele no Facebook, foi que decidi ser a hora de escrever a respeito: o quanto se pode ler numa vida, e qual a importância de sermos seletivos ao escolhermos uma leitura? – Ou mesmo se isso de fato é relevante para o leitor, seja durante sua formação ou se quando este finalmente dar–se conta de que o tempo que tem para fazer tal leitura é esquálido.
Então, vamos às inquietações, que são muitas.
Quando eu era mais jovem, o hábito de ler tudo o que aparecia pela frente fez com que eu me tornasse um glutão literário. Apareceu, eu devorava. Mas isso foi no tempo do antes – quando esse tipo de comportamento se faz até necessário, eu diria.
Com o passar dos anos, entretanto, ler se torna uma peleja árdua e contínua. Quantos não conhecemos que se utilizam da clássica eu não leio porque não tenho tempo
? Ou então a variação dela: "Já li muito na vida, mas com essa correria do dia a dia, não posso mais". São os que sucumbem pelo caminho. Mas podemos culpá-los de todo? Nem todo mundo nasceu para ganhar guerras. E se tem um negócio aflitivo hoje em dia, é equilibrar a obrigatoriedade de uma vida dinâmica (trabalho, casa, redes sociais) a pessoas ao redor cada vez mais carentes e ainda arranjar tempo pra ler.
Até uma certa idade quando as obrigações são menos conflitantes, tudo bem. Depois que a avalanche faculdade-emprego-relacionamento-família (ou suas inúmeras variações) começa a descer a montanha com tudo atrás de você, é correr pra não ser pego.
E há quem consiga. Eu me obrigo a conseguir, porque de algumas lutas jamais abrirei mão. Ler e escrever, por exemplo.
Só que há um momento em que essa máquina compressora de livros se desgasta. É quando ela dá lugar ao ser humano, que com um pouco mais de sabedoria, faz escolhas baseadas no desejo, sem dúvida, mas num desejo que almeja a fruição, e não apenas o prazer imediato – ou a quantidade.
Nietzche disse no seu Assim falou Zaratustra: Mastigar e digerir tudo – essa é uma maneira suína
. Comparar o leitor que lê qualquer coisa como se não houvesse amanhã a porcos é a maneira mais clara de afirmar que quem tudo ingere, corre o risco de ingerir dejetos.
Eu não estou falando aqui de quem, na tentativa de reviver um amor antigo, decide-se por fazer um revival que, seja com livro ou com pessoas, quase sempre termina em tragédia. Outro dia resolvi pegar pra ler um autor que tinha sido uma verdadeira febre pra mim na adolescência, quase vinte anos depois de tê-lo lido pela última vez. Resultado: abandonei o livro nas primeiras páginas, com a sensação de que dos 14 aos 19 só perdi meu tempo.
Por esse mesmo motivo não releio livros que amei desbragadamente em outras épocas. Não incorro mais no risco de macular a imagem que tenho de um velho amor. O livro continua o mesmo, o que mudou foi meu eu leitor. Não funciona mais. Qual a necessidade da releitura, então?
Voltando àquele cálculo, temos de pensar também que o leitor que busca a leitura pelo seu valor não vai ler como quem se apressa para cumprir uma meta. Antigamente, num ano de leituras em que eu não atingia a média de livros que leio em 365 dias, ficava chateado. Atualmente, embora eu continue com a mania de anotar todos os livros que leio, sei que, se eu ler 27 num dado ano ao invés de 40, isso não terá a menor diferença. Talvez eu me pergunte o que teria acontecido pra eu ler bem menos, lembre dos motivos e só. A vida segue e no ano seguinte já será um outro arquivo com as leituras recomeçando pelo número um.
Ninguém aprende a selecionar de uma hora para outra. Basta olharmos em nossa volta e percebermos não apenas as porcarias que os outros fazem de/em suas próprias vidas, mas as nossas também. Quantas vezes tivemos a certeza de que estaríamos mortos se arrependimento matasse? Mas aprendemos. A maioria de nós, pelo menos. E sem essa de apontar o dedo para a leitura do outro. Os níveis de leitura e as necessidades leitoras variam; assim, embora nós adoremos criticar quem passa a vida na literatura erótica e endeusar quem só lê clássicos, cada qual está usando seu filtro, seus parâmetros. E enquanto a literatura for capaz de fazer alguma coisa pela vida de alguém, não importa se ela atende pelo nome de Mr. Grey ou de Dom Quixote. Não é isso que está em questão aqui.
Ainda hoje me sinto perdido quando vou a uma livraria. Não raro, circulo pelos mesmos espaços inúmeras vezes, na esperança de que um livro que estava dormindo, quando eu passei por ele da primeira vez, pule no meu colo na segunda. E sabe-se lá se esse dito livro não será capaz de mudar algo no que existe de mais entranhado em mim?
Agora, seja lá como for, não podemos emporcalhar nossa vida literária. Lê o que te apetece, mas não te obrigas a ler o que não está na hora de ser lido (e pode ser que nunca será). Dê um prazo ao livro. Se ele não te seduzir, passe para outro. A vida é curta demais pra nos obrigarmos a ler uma obra que não nos toca.
E isso nos traz a uma abrangente questão: a consciência da passagem do tempo nos torna mais criteriosos quanto ao que ler? Possivelmente. Quem sabe que já viveu, digamos, mais da metade de um século pode começar a ter seus parâmetros: todos os livros do seu autor favorito, tudo o que considerar bom sobre um determinado tema, a literatura de um determinado país ou região… as possibilidades são muitas. Poder explorá-las, uma dádiva que só a sabedoria trazida pelo tempo é capaz de instaurar.
Se uma das razões por estarmos vivos é podermos nos tornar seres humanos melhores para, assim, fazermos a diferença para nós mesmos e para o mundo, não podemos abdicar de nossos parâmetros. Nossa vida é pautada por eles, seja de forma autoimposta ou porque o próprio ato de viver nos impõe. E ler é um ato transformador. Trazer para si boas leituras é também uma maneira de presentear a própria vida. Fazê-lo de forma sábia é a forma de agradecer a oportunidade que nos foi dada de estarmos no mundo e podermos fazer usufruto da ideia dos outros para que aquilo nos ilumine onde jamais luz nenhuma chegou. Seja lá no que se acredite – ou não – pertencer a uma espécie tão frágil e ainda assim ser capaz de existir quando tanta coisa nos diz não, é por si só algo sobrenatural, belo e transcendente.
Viver a experiência requer tempo, paciência e portas abertas para se deixar tocar. Aos poucos, o livro vai se tornando um cúmplice. E convenhamos: sexo com amor é muito mais gostoso.
OS CLÁSSICOS QUE VOCÊ NUNCA VAI LER
Todo mundo começa a vida de leitor de forma errática, entre tateando e experimentando de tudo, e não há problema algum nisso, nem motivos para colocar as mãos na cabeça e se perguntar Ó Deus, por que eu li toda a coleção da Agatha Christie aos 15 anos, quanto tempo desperdicei!
e bobagens do gênero. Você não desperdiçou nada. Você leu toda a Agatha Christie aos 15 (ou Sidney Sheldon, ou Danielle Steel, ou Robin Cook) justamente por isso: porque você tinha quinze anos. Lamenta-se, mas passar por isso aos quinze é não apenas aceitável, é compreensível. Difícil é entender aquele seu colega que, com o dobro disso ou mais, continua nisso ou naqueles que vieram nas gerações seguintes, como Marian Keys ou Nicholas Sparks.
Acontece que, geralmente, vamos apurando o nosso gosto e perfil literário ao longo da vida. Conhecemos pessoas que nos apresentam obras que nos fazem questionar tudo aquilo que aprendemos a colocar em xeque; quando não, questionam a nós mesmos. Passeamos por livrarias, bibliotecas, pelo Google. Professores nos mostram obras, enfim, as possibilidades são inúmeras.
Assim é que, quando menos nos deparamos, estamos lendo outras coisas, numa transição que vai se dando ao natural.
Ressurgem, então, os clássicos. Digo ressurgem por uma razão óbvia. Se você nasceu no Brasil, já se deparou com eles em algum momento da vida estudantil. Ou pelo menos com a ideia deles. Quem nunca foi obrigado a ler Machado de Assis, José de Alencar? Claro que eles não são clássicos universais, comumente aceitos entre o cânone ocidental, mas são clássicos brasileiros. Se duvidar, é por causa deles que muitos colegas e amigos seus odeiam ler até hoje. Mas não é desse tipo de clássico que estou falando.
Estou me referindo aos clássicos que você quer – ou diz que quer – mas nunca vai ler.
Vamos refletir um pouco: o mundo editorial lança milhares