História & História Cultural
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História & História Cultural - Sandra Jatahy Pesavento
HISTÓRIA & ... REFLEXÕES
Sandra Jatahy Pesavento
História & História Cultural
3ª edição
CAPÍTULO I
Clio e a grande virada da História
No Monte Parnaso, morada das Musas, uma delas se destaca. Fisionomia serena, olhar franco, beleza incomparável. Nas mãos, o estilete da escrita, a trombeta da fama. Seu nome é Clio, a musa da História. Neste tempo sem tempo que é o tempo do mito, as musas, esses seres divinos, filhos de Zeus e de Mnemósine, a Memória, têm o dom de dar existência àquilo que cantam. E, no Monte Parnaso, cremos que Clio era uma filha dileta entre as Musas, pois partilhava com sua mãe o mesmo campo do passado e a mesma tarefa de fazer lembrar. Talvez, até, Clio superasse Mnemósine, uma vez que, com o estilete da escrita, fixava em narrativa aquilo que cantava e a trombeta da fama conferia notoriedade ao que celebrava.
No tempo dos homens, e não mais dos deuses, Clio foi eleita a rainha das ciências, confirmando seus atributos de registrar o passado e deter a autoridade da fala sobre fatos, homens e datas de um outro tempo, assinalando o que deve ser lembrado e celebrado.
Quais seriam hoje, neste novo milênio, os atributos e o perfil do Clio, a favorita das Musas ? Cremos que, hoje, sua faceta mais recente e difundida seja aquela da chamada História Cultural.
A História Cultural corresponde, hoje, a cerca de 80% da produção historiográfica nacional, expressa não só nas publicações especializadas, sob a forma de livros e artigos científicos, como nas apresentações de trabalhos, em congressos e simpósios ou ainda nas dissertações e teses, defendidas e em andamento, nas universidades brasileiras.
Essa constatação, dada a partir dos anos 90 do último século no Brasil, marca uma verdadeira virada nos domínios de Clio...
As alterações ocorridas no âmbito da História, porém, datavam de bem antes, se levarmos em conta o panorama internacional. Podemos, talvez, situar os sintomas da mudança nos anos 1970 ou mesmo um pouco antes, com a crise de maio de 1968, com a guerra do Vietnã, a ascensão do feminismo, o surgimento da New Left, em termos de cultura, ou mesmo a derrocada dos sonhos de paz do mundo pós-guerra. Foi quando então se insinuou a hoje tão comentada crise dos paradigmas explicativos da realidade, ocasionando rupturas epistemológicas profundas que puseram em xeque os marcos conceituais dominantes na História.
De certa forma, podemos, por um lado, falar de um esgotamento de modelos e de um regime de verdades e de explicações globalizantes, com aspiração à totalidade, ou mesmo de um fim para as certezas normativas de análise da história, até então assentes. Sistemas globais explicativos passaram a ser denunciados, pois a realidade parecia mesmo escapar a enquadramentos redutores, tal a complexidade instaurada no mundo pós-Segunda Guerra Mundial.
Clio, musa da História e o Tempo, Francisco de Goya, século XIX.
A dinâmica social se tornava mais complexa com a entrada em cena de novos grupos, portadores de novas questões e novos interesses. Os modelos correntes de análise não davam mais conta, diante da diversidade social, das novas modalidades de fazer política, das renovadas surpresas e estratégias da economia mundial e, sobretudo, da aparente escapada de determinadas instâncias da realidade – como a cultura, ou os meios de comunicação de massa – aos marcos racionais e de logicidade.
Por outro lado – e de forma contraditória com a acima citada complexificação do real –, a consolidação de determinados paradigmas havia conduzido até então a uma aparentemente confortável certeza : a de que tudo já estava predito, com o que se condenavam as explicações do real à fixidez dos modelos. Isso, em princípio, negava ao processo de construção do conhecimento sobre o mundo a aventura da descoberta. As respostas já estavam lá, pelas lógicas de explicação estabelecidas e consagradas, antes mesmo do trabalho de investigação ser iniciado. As hipóteses tornavam-se inócuas porque, de antemão, as explicações já estavam dadas e sabidas, inviabilizando, dessa forma, a pertinência da pergunta.
Mas que posturas eram, basicamente, as condenadas ? Quais matrizes de interpretação foram aquelas denunciadas como não mais satisfatórias para explicar o real ?
Em princípio, podemos dizer que foram duas as posições interpretativas da História criticadas : o marxismo e a corrente dos Annales. Há, contudo, que ter em vista que a crítica ou a contestação de certas posturas historiográficas presentes nessa mudança dos paradigmas das últimas décadas do século XX não representa uma ruptura completa com as matrizes originais. Ou seja, foi ainda de dentro da vertente neomarxista inglesa e da história francesa dos Annales que veio o impulso de renovação, resultando na abertura desta nova corrente historiográfica a que chamamos de História Cultural ou mesmo de Nova História Cultural.
É certo que havia ainda, no panorama da historiografia mundial, uma considerável vertente interpretativa da história que vinha desde o século XIX, como o historismo de Ranke, a chamar a atenção para as descontinuidades dos tempos históricos e que implicava a necessidade de buscar os sentidos de cada momento do passado, postura esta que foi transmudada em inúmeras variantes das histórias nacionais. Da mesma forma, o positivismo de Comte, com seus pressupostos normativos científicos, estabelecendo os critérios da verdade absoluta, contida na fonte documental, que falava por si mesma, encontrava um vasto campo de ação, tanto pela seriedade da pesquisa de fontes que proporcionava, quanto pela defesa do caráter da história como ciência.
Mas essas duas posturas, a rigor, já haviam sido condenadas no século XX tanto pelo marxismo quanto pela escola dos Annales e, portanto, a chamada crise dos paradigmas se deu mais com relação a uma certa falência ou inoperância dessas duas últimas concepções do que com relação às anteriores, entendidas como mais arcaicas.
A historiografia nacional brasileira, no momento em que a crise dos paradigmas chegou ao país, no final dos anos 1980, era até então dominada por uma postura marxista de entendimento da história. Desde os tempos pioneiros de utilização dos livros de Caio Prado Jr. ou Nelson Werneck Sodré no âmbito da academia, o materialismo histórico se propunha como a postura teórica que melhor dava conta da realidade brasileira, imersa, a partir de 1964 no autoritarismo de um regime militar que se estendeu até o lento processo de reabertura política dos anos 80.
Suas vertentes de análise preferenciais eram aquelas da história econômica, analisando a formação do capitalismo no Brasil, a transição da ordem escravocrata para a do trabalho livre e o surgimento do processo de industrialização. Por outro lado, realizava-se uma história dos movimentos sociais, em que, particularmente, eram estudados o proletariado industrial, com suas lutas de classes, bem como a formação do partido e do sindicato, todos esses estudos desembocando, nos anos 80, para uma análise das condições em que se davam a dominação e a resistência. No tocante à história política, eram privilegiados os trabalhos que discutiam a natureza do Estado e a formação dos partidos políticos no Brasil.
Em menor escala, ao longo dos anos 1980, a historiografia brasileira também se inspirava na tradição da escola dos Annales, apoiando-se em uma vertente econômico-social e balizada pelos marcos temporais da estrutura e da conjuntura, de inspiração braudeliana, que delimitavam a longa e a média duração. Essa orientação, contudo, apresentava-se mais difusa, diante do predomínio e do prestígio da postura marxista dentro da academia. O materialismo histórico não só era entendido como o mais adequado e completo para dar conta das realidades nacional e internacional, como também vinha armado de um aparato teórico definido e coerente, estabelecendo uma clara distância frente à postura dos Annales, que aparecia como carente de um referencial teórico preciso.
Paralelamente às vertentes marxista e da escola francesa dos Annales, as universidades do país abrigavam também um contingente significativo das formas mais antigas ou arcaicas de realizar a história, por meio de posturas, acima citadas, que se aproximavam do que se poderia chamar de positivistas e que se caracterizavam por uma visão segundo a qual a história era concebida como um processo contínuo, retilíneo, linear, causal, inteligível por um modo racional. Fica claro, contudo, que tais concepções historiográficas brasileiras não se autodenominavam positivistas, entendendo-se apenas como científicas.
Na virada dos anos 1980 para o decênio de 90, essas maneiras de fazer história passaram a ser questionadas no Brasil. No plano internacional, com a decantada crise dos paradigmas, foi a fundamentação teórica marxista que sofreu as mais duras críticas, condenação esta auxiliada pelo desempenho, mundial, dos regimes políticos embasados nessa postura nas décadas de 1950 a 80, acabando com o acontecimento emblemático da queda do muro de Berlin em novembro de 1989. Se alguns intelectuais marxistas haviam rompido com os partidos comunistas de seus países diante de certos fatos – como Edward P. Thompson, na Inglaterra, após a ocupação soviética da Hungria, em 56 –, as críticas se centravam, no plano teórico, sobre as simplificações decorrentes do esquema explicativo, entendido como duro nas suas aplicações ao real.
Criticavam-se, basicamente, a versão leninista e, posteriormente, estalinista da história, com seus corolários de postulados : o reducionismo econômico, o mecanicismo, o etapismo evolutivo. Denunciava-se um reducionismo das lógicas explicativas da realidade, atrelando a dita superestrutura às injunções da infraestrutura, ou ainda a interpretação classista do social, levando à compreensão do processo histórico como sendo uma sucessão de lutas de classe. Categorias até então assentes, como as do modo de produção, conduziam a interpretação da realidade, passando a segundo plano as especificidades históricas de cada contexto. Por outro lado, o conceito de ideologia foi considerado insuficiente para a análise do chamado mundo das ideias
, amarrado que estava às determinações da classe e do mecanismo da dominação e subordinação.
A fixação dos princípios do materialismo histórico em uma espécie de modelo, completo e fechado, para a análise da realidade, a sensação intelectual de que tudo já estava explicado, basicamente em