Abrir a história: Novos olhares sobre o século XX francês
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Sobre este e-book
Neste belo livro, escrito com elegância e clareza, ele revisita alguns de seus temas prediletos, que implicam questões importantes para os historiadores e demais interessados nesse campo: as relações complexas entre história e memória, o impacto das guerras, a influência das culturas políticas, a história cultural do político, as mídias e a democracia, os dilemas da história política ante a ampliação de escalas espaciais (transcendendo as fronteiras nacionais) e temporais. Um dos pontos altos do livro é sua contribuição para o debate sobre os limites cronológicos da história do tempo presente, em que Sirinelli usa a bem inspirada metáfora do pôlder.
Muitas são as razões para ler este livro. Quem o fizer não se arrependerá.
Rodrigo Patto Sá Motta
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Abrir a história - Jean-François Sirinelli
Coleção
HISTÓRIA & HISTORIOGRAFIA
Coordenação
Eliana de Freitas Dutra
Jean-François Sirinelli
Abrir a história
Novos olhares sobre o século XX francês
Tradução
Fernando Scheibe
"[...] a história, temo, não nos permite
prever; mas, associada à independência
de espírito, pode nos ajudar a ver melhor."
Paul Valéry,
13 de julho de 1932, Variété IV,
Paris, Gallimard, 1938, p. 142.
INTRODUÇÃO
O pôlder¹ e a história-mundo
Em 2005, tive a oportunidade de reunir em feixe certo número de trabalhos que, ao longo de minha carreira, e no momento em que eu dobrava a curva dos sessenta, tinham me visto passar, em minhas pesquisas, do primeiro ao segundo século XX. Essa progressão cronológica se fizera acompanhar de uma evolução intelectual e epistemológica, da qual tentei dar conta num livro de 2005 intitulado Comprendre le XXe siècle français [Compreender o século XX francês] e que evoco também no primeiro texto aqui recolhido. Desde essa publicação, meu enraizamento na segunda metade do século XX prosseguiu, o que me conduziu, por meio dessa reação intelectual em cadeia que um itinerário científico sempre acaba sendo, a questões novas, colocadas por esse posicionamento no ponto extremo do pôlder
, ou seja, essas praias de tempo formadas pelo escoamento do tempo.
Por um lado, claro está, é precisamente essa questão do tempo que é central para qualquer historiador do... tempo presente. É de propósito, como verão, que o último capítulo deste novo livro termina com a evocação dessa questão. O historiador, de fato, especialmente aquele que trabalha com esse tempo próximo, se vê confrontado a jogos de escalas cronológicas, e suas análises só ganham todo seu sentido quando (ou se) recolocadas em temporalidades imbricadas.
Posto isso, por outro lado, deslindar tais temporalidades não cabe unicamente ao pesquisador que se debruça sobre a segunda metade do século XX. Em contrapartida, e é este aos meus olhos o principal ensinamento deste livro, nele o pesquisador se vê confrontado diretamente a uma história-mundo,² dada a conexão cada vez maior do metabolismo do Estado-Nação francês a processos de globalização. Aí também, como se verá, o último capítulo tenta trazer a lume tal conexão. A abertura da história, no final das contas, deve ser feita com uma geometria variável, no pôlder do tempo próximo tanto quanto nos jogos de escalas espaciais dessa história-mundo.
Por isso, este livro, querendo-se uma contribuição aos debates historiográficos e epistemológicos atuais, não pretende se... desconectar desta dupla missão de contribuição ao avanço do conhecimento histórico e de pesquisa do sentido, que o ofício do historiador continua a ser acima de tudo. Vários textos apresentados aqui intentam, portanto, ser pistas concretas para uma história política e cultural deste segundo século XX francês.
Jean-François Sirinelli
9 de janeiro de 2013
¹ O pôlder é aquela planície protegida por diques contra inundações e utilizada na agricultura e na habitação
(HOUAISS), típica dos Países Baixos. Representa aqui o terreno conquistado pelo historiador no tempo da história. (N.T.)
² É a razão pela qual o livro de 2005 terminava com um artigo intitulado L’événement-monde
[O acontecimento-mundo], publicado em 2002.
CAPÍTULO I
Reflexões sobre a história e a
historiografia do século XX francês
Se a história cultural, sob esse nome ou sob outras etiquetas, esteve, há já várias décadas, no coração das pesquisas de muitos estudiosos da época moderna, assim como de alguns especialistas no século XIX, sua legitimidade e sua possível fecundidade permaneceram muito tempo mal estabelecidas para a história do século XX. A esse respeito, os anos 1980 e 1990 foram o momento em que essa legitimidade foi estabelecida e essa fecundidade demonstrada. Nos dois casos, o movimento se fez marchando, com novas terras de pesquisa conquistadas, mas também através de um inegável ganho epistemológico acionado por diversas constatações. Por um lado, se o historiador tenta restituir um passado abolido e, portanto, reconstituir uma realidade desaparecida, ele sabe muito bem que esta não apenas é complexa mas, ainda por cima, nunca pode ser percebida instantaneamente em sua realidade intrínseca. Ora, a história cultural, interessando-se pelas operações de apreensão do real e, na mesma medida, pelos sentidos assumidos por esse real através dos mecanismos de percepção, que são ao mesmo tempo processos de alteração, se situa de facto no coração de qualquer tentativa historiográfica de levar em consideração o sujeito agente e pensante. Por outro lado, essa valorização do sujeito, necessária para o estudo histórico de todas as épocas, assume uma importância ainda maior para o século XX, trabalhado em profundidade por vetores culturais cada vez mais poderosos, que interferem necessariamente nesses processos de percepção-alteração. Deixar de situar a história do século XX sob o feixe iluminador da história cultural leva a deixar na penumbra chaves essenciais para sua compreensão. Ao déficit histórico que poderia se instaurar assim, se acrescentaria uma espécie de paradoxo: privar de abordagem cultural a história de um século que foi aquele do enraizamento de uma cultura de massa cada vez mais densa e ramificada. Isso posto, tal constatação acarreta várias consequências historiográficas, tanto sobre as abordagens possíveis desse século tão próximo, mas já século passado
, quanto sobre o estabelecimento de sua cronologia fina.³
Quando publicamos, Jean-Pierre Roux e eu, em 1997, Pour une histoire culturelle [Por uma história cultural], essa obra coletiva certamente não concernia, nem de longe, apenas ao século XX, mas o fato de ter sido dirigida por dois especialistas no século XX e de ter sido fruto de um seminário conduzido por eles havia já oito anos, não era insignificante e servia de indício, entre outros, de um novo dado historiográfico: o último século do segundo milênio estava entrando, no momento mesmo em que terminava, no território ecumênico da história cultural. Mas será que se deveriam aplicar a ele as mesmas abordagens utilizadas por essa história para outros períodos?
A ágora e a Cidade
A história cultural, como eu já sublinhava no texto Éloge de la complexité
[Elogio da complexidade], que constituía a conclusão do livro de 1997, permite, principalmente, melhor dar conta da complexidade das realidades humanas. Ela autoriza, além disso, a análise dos processos variados de apreensão dessas realidades pelos indivíduos e pelos grupos. De fato, ela se situa na interface do real e de sua percepção, e é isso que, para além dos debates de definição, lhe confere sua identidade: a história cultural se interessa tanto pelos fenômenos de percepção por parte de uma consciência individual quanto pelas representações coletivas no seio das sociedades humanas. Nos dois casos, trata-se de estudar o sujeito pensante em suas componentes pessoais, assim como em sua inserção nas mentalidades, aliás multiformes, de seu tempo. E, se consideramos que a grande virada historiográfica em relação à situação das ciências sociais dos anos 1960 é o retorno do sujeito agente e pensante, a história cultural é mesmo uma das alavancas dessa evolução. Ao mesmo tempo pé na cara
dos defensores das correlações pesadas que trancafiavam a análise dos processos históricos em bastilhas historiográficas e pé de cabra que permite libertá-la, essa história contribuiu para dar mais jogo e mais ar a análises históricas demasiado rígidas e um tanto confinadas. O sujeito, de fato, se viu progressivamente liberado das prisões estruturais, e dois campos da disciplina histórica, em especial, foram assim abertos. A história política foi liberada da prisão das correlações socioeconômicas pesadas: em seu seio, a partir de então, o sujeito agente, ator da história, reencontrava sua parte de autonomia. Quanto à história cultural, que ajuda a apreender o sujeito pensante, ela voltava a dar a este uma parte de seu livre-arbítrio.
Essa revolução foi tanto mais fecunda por não se aparentar a uma espécie de retorno do pêndulo historiográfico que eliminasse o social do olhar do historiador. A autonomia adquirida pela história política diante do socioeconômico certamente não significava a reivindicação de sua independência: uma história política que se refugiasse no todo político
, cortando todas as amarras em relação ao social, daria conta de uma realidade amputada de uma parte de sua complexidade. Ainda mais que, para completar, a história cultural – que é forçosamente uma história dos desvios, já que os modos de apropriação do sentido das coisas pelos grupos humanos são sempre diferenciais – não pode ser dissociada do social. Ao que se acrescenta mais um aspecto da recente mutação historiográfica: longe de se encontrar evacuado do campo de análise do historiador, o social permanece muito presente aí, mas através dos modos de elaboração em que o cultural é às vezes central. Em outros termos: a cultura aparece, sob muitos aspectos, como uma das modalidades de estruturação do social. As formas de expressão e de recepção cultural, assim como seus vetores, ocupam inegavelmente um lugar essencial no metabolismo das sociedades.
No que tange à história do século XX francês, especialmente sua história política, os efeitos acarretados pela tomada em consideração do sujeito em seu aspecto bifronte, ao mesmo tempo agente e pensante, são capitais. Em termos gerais, diremos que essa tomada em consideração permite, em primeiro lugar, ampliar o campo de análise, passando do estudo das instituições – cuja história, aliás, ela permite renovar profundamente – à análise da socialização política e, mais amplamente, do laço social. A história cultural do político passa assim da ágora à Cidade, entendida aqui, fazendo eco especialmente aos trabalhos de Luc Boltanski e Laurent Thévenot, como o ser-junto, a coexistência social, conflituosa ou consensual.
Estudar a ágora é, por exemplo, debruçar-se sobre os fenômenos de opinião, essenciais num século em que, na França, assim como numa parte dos Estados vizinhos, triunfam – mas também, em certos casos, vacilam – os regimes representativos. As percepções individuais, agregadas e revezadas, alimentam, de fato, o debate político por meio de partidos e grupos de pressão interpostos. Mas o historiador não trabalha apenas com essas opiniões, elas próprias princípio ativo das lutas eleitorais. Mais amplamente, é preciso também sondar as representações mentais, mais difusas, mas também constitutivas dos ecossistemas políticos: como um regime é percebido tanto por uma consciência individual quanto por um agregado de indivíduos? E quais são os mecanismos, aliás complexos, de aprovação e de adesão, ou de negação e oposição, que daí decorrem? Tentar responder a semelhantes questões é precioso para o estudo da representação do Estado, permitindo superar a análise – necessária – dos princípios de legalidade de um regime político e prestar igualmente atenção aos processos de legitimidade: como um regime se enraíza num húmus sociocultural e em que medida se constitui, eventualmente, um ecossistema, que podemos definir como um equilíbrio frágil entre um regime político e a base sociocultural – uma sociedade, em sua morfologia, mas também em suas normas e valores – que o sustenta. Portanto, as instituições de que um grupo humano se dota, numa determinada época, mas também os mecanismos que, para além mesmo da eventual opressão, facilitam a manutenção dessas instituições e favorecem sua perenidade.
Essa noção de ecossistema, que batizaremos aqui, mais prosaicamente, de sistema político
, dando seu sentido pleno a essa expressão, é essencial para uma reflexão sobre o século XX francês. Os trabalhos de Maurice Agulhon, especialmente, permitiram analisar a constituição, no fim do século XIX, de um ecossistema republicano: em pouco tempo, a República não é mais apenas uma imposição dos vencedores aos vencidos, ela recebe