Império de Verdades: a história da fundação do Brasil contada por um membro da família imperial brasileira
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Sobre este e-book
Uma fuga que não era fuga. Se a famigerada fuga da corte real para o Brasil em 1807-1808 não foi apressada e descabida, mas um plano que vinha sendo preparado há meses, uma retirada estratégica bem debaixo do nariz de Napoleão Bonaparte? Feito este levou ao próprio Corso alegar que só um homem o enganou: Dom João.
Um tirano que não era tirano. Você sabia que Dom Pedro I sofreu um cancelamento histórico e enfrentou fake news em jornais nacionais e estrangeiros? Também chegou a conhecer as outras facetas dele, como a de estudioso, a de jornalista, musicista e constitucionalista?
Uma esposa que era mais do que uma esposa. Até recentemente, pouco se falava de D. Leopoldina, esquecida pela História em favor da marquesa de Santos, ou vista como a esposa traída e sofredora. Se José Bonifácio é o Patriarca da Independência, D. Leopoldina é a Matriarca. O porquê disso? Descubra lendo Império de Verdades, de Luiz Philippe de Orleans e Bragança.
Este livro visa restaurar não só uma parte da História do Brasil, mas retratar as faces humanas e políticas de três importantes figuras históricas, apeadas de toda a sua grandeza por razões ideológicas: Dom João VI, Dona Leopoldina e Dom Pedro I.
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Império de Verdades - Luiz Philippe de Orleans e Bragança
LUIZ PHILIPPE DE
ORLEANS E BRAGANÇA
IMPÉRIO
DE VERDADES
A HISTÓRIA DA FUNDAÇÃO DO BRASIL
CONTADA POR UM MEMBRO DA
FAMÍLIA IMPERIAL BRASILEIRA
Impresso no Brasil, 2022.
Copyright © 2022 – Luiz Philippe de Orleans e Bragança
Os direitos desta edição pertencem à LVM Editora, sediada na Rua Leopoldo Couto de Magalhães Júnior, 1098, Cj. 46 • 04.542-001 • São Paulo, SP, Brasil • 55 (11) 3704-3782
contato@lvmeditora.com.br
Gerente Editorial: Chiara Ciodarot
Editor-chefe: Marcos Torrigo
Pesquisa: Chiara Ciodarot
Revisão Ortográfica e Gramatical: Alexandre Ramos da Silva
Preparação dos Originais: Chiara Ciodarot
Projeto Gráfico e diagramação: Décio Lopes
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Angélica Ilacqua CRB-8/7057
Orleans e Bragança, Luiz Philippe de
Império de Verdades: A história da fundação do Brasil contada por um membro da família imperial brasileira / Luiz Philippe de Orleans e Bragança – São Paulo. LVM Editora, 2022.
368 p.
ISBN: 978-65-86029-90-1
1. Brasil – História – Período colonial, 1500-1822 2. João VI, Rei de Portugal, 1767-1826 3. Pedro I, Imperador do Brasil, 1798-1834 4. Leopoldina, Imperatriz, consorte de Pedro I, Imperador do Brasil, 1797-1826 I. Título
22-2827 CDD 981.03
Índices para catálogo sistemático:
1. Brasil – História – Período colonial, 1500-1822 981.03
Reservados todos os direitos desta obra.
Proibida a reprodução integral desta edição por qualquer meio ou forma, seja eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio sem a permissão expressa do editor. A reprodução parcial é permitida, desde que citada a fonte.
Esta editora se empenhou em contatar os responsáveis pelos direitos autorais de todas as imagens e de outros materiais utilizados neste livro. Se porventura for constatada a omissão involuntária na identificação de algum deles, dispomo-nos a efetuar, futuramente, as devidas correções.
Sumário
INTRODUÇÃO
D. JOÃO VI
O Criador
A Criação
D. LEOPOLDINA
Toda Saga Busca um Herói
Ela Deveria Ter Sido Ele
D. PEDRO I
Filho de Rei, Imperador É
O Libertador
BIBLIOGRAFIA
Introdução
Neste ano em que se comemora o Bicentenário da Independência do Brasil, resolvi escrever Império de Verdades em homenagem àqueles que fizeram a história do país, fundando esta nação com base e estrutura. Uma história mais intrincada do que aparenta o senso comum, sobretudo quando muitos se esforçam para desmoralizá-la.
O que aconteceria se você soubesse que não há provas de que D. João VI andasse com frangos nos bolsos? Que a loucura de D. Maria I era, na verdade, depressão? Que D. Pedro I não era um galã de novela, nem D. Leopoldina assinou o decreto de independência? E que D. Pedro II tinha uma visão de homem comum, ao invés de nobre?
Todo país tem uma mitologia épica de fundação, e fomos por muito tempo bombardeados mais por lendas do que por fatos. Com base em estudos, relatos, testemunhos e documentos, este livro busca ilustrar a complexidade das pessoas que fizeram história e do momento em que viveram, mostrando outros lados de suas personalidades e interesses durante períodos importantes da nossa história, e que não estão nas páginas dos livros escolares.
O comilão D. João VI, a educada D. Leopoldina, o temperamental D. Pedro I, o rígido D. Pedro II eram pessoas com defeitos e virtudes, e tinham em comum um fator que os liga a nós e que nos une: foram fundamentais para a construção da nação brasileira. Sem eles, não haveria Brasil.
Seus poderes, dúvidas, vontades vão muito além do pessoal. Eles incorporaram o público, pondo o Estado acima de suas questões privadas. E para quê? Para que o Brasil pudesse existir.
Não há como alegar que, sem a vinda de D. João VI, o Brasil existiria, pois ele construiria as bases de uma nação, tirando-a do status de colônia. Tampouco podemos afirmar que, sem uma união de forças entre D. Pedro I e D. Leopoldina, o Brasil conseguiria sua separação total de Portugal por meio de uma república e sem a fragmentação do território. Nem poderíamos dizer que o Brasil se desenvolveria melhor sem D. Pedro II, ou que sem D. Isabel e a Lei Áurea a escravidão teria terminado.
D. João VI, D. Pedro I, D. Leopoldina —, como eles irromperam os limites e as dificuldades de um território vasto e denso e fizeram dele uma nação? É o que saberemos nestas páginas, assim como compreenderemos que não há forma de entender o processo de construção deste país sem que essas pessoas estejam envolvidas.
E não podemos esquecer que tudo aconteceu com muita turbulência, luta, amor, medo, ira, politicagem e, sobretudo, às custas de suas próprias coroas. Quantas pessoas lutariam por algo a ponto de aceitar perder seu emprego, ou cargo, sua casa, seus amigos e aliados? E tudo isso foi feito em prol de uma crença: o Brasil.
Este livro se propõe a desmistificar as figuras históricas de D. João VI, D. Leopoldina e D. Pedro I, que foram importantes para o desenvolvimento cultural, social e econômico do país. Pretende-se romper com uma narrativa ficcional montada ao longo do tempo, e que foi se solidificando como não-ficção. Não há como desviar o olhar dos fatos e documentos presentes neste livro a cada página, a cada frase, limpos das construções políticas que perverteram o olhar da história na elaboração de um discurso que legitima uma certa visão do presente e desfaz as provas do passado. Uma deslegitimação que foi preponderante a partir do golpe republicano de 1889, quando todo um passado, construído a duras penas ao longo de 67 anos — desde a Independência e, em grande parte, no reinado de D. Pedro II — foi jogado por terra, e tudo o que representa uma monarquia, uma casa real ou Portugal é desfeito. D. João VI deixou de ser um rei para ser um glutão medroso, D. Pedro I deixou de ser o monarca de duas nações para ser um amante tirânico, D. Leopoldina ficou desaparecida na história ou, quando surge, é assinando um papel que nunca existiu.
Entende-se a necessidade de recriar um imaginário que tivesse a forma, o volume e a cor do regime republicano ainda que essas imagens tivessem vindo das bases construídas durante o período monárquico. Não se trata apenas do Estado, mas a bandeira, o hino, nomes de lugares e datas. Isso foi convertido a favor de um novo regime, pois é por meio do imaginário/figurativo/simbolismo que se infiltra uma sociedade e cultura, e transforma-se em verdade as ficções de outrora. Tantas vezes repetida uma mentira, dela se faz uma verdade, sem fatos, sem dados, sem provas. Não são apenas os políticos atuais que vivem de fake news. Quantas vezes elas foram usadas para destronar reis e rainhas, causando reveses na história?
Império de Verdades busca trazer dados e fatos ao longo dos capítulos sobre essas personalidades fundamentais. Primeiro, embarcaremos na viagem de D. João VI ao Brasil, mostrando que ele não era um soberano despreparado e medroso: ao contrário, havia nele muito mais preparo, estratégia e coragem para que conseguisse arcar com a mudança de uma capital da Europa para as Américas, e em tempo recorde, numa época em que uma viagem transatlântica demorava dois meses em média. Também acabaremos com o mito do glutão tacanho e avaro, mostrando um governante correto e amado e que, mesmo diante da Revolução do Porto, não perdeu a coroa e deitou as bases de um país em apenas treze anos.
Depois pularemos para o barco de D. Leopoldina e atracaremos no Reino do Brasil. Junto dela conheceremos o que foi o jogo político que gerou o seu casamento e a fez cruzar os mares até o outro lado do mundo. Mostraremos que a Áustria não estava em melhores condições que Portugal após as guerras napoleônicas, nem que o casamento havia sido somente benéfico para os Bragança. Desfaremos a ideia de uma mulher submissa ao marido temperamental, mostrando que D. Leopoldina tinha personalidade, e ela seria fundamental para os acontecimentos que levariam à Independência do Brasil. Sem a união dela e de D. Pedro I talvez isso nunca pudesse ter acontecido. Também a mostraremos como regente e diplomata, duas faces pouco conhecidas da primeira imperatriz brasileira.
Quanto a D. Pedro I, navegaremos pelas águas caudalosas do que foi o primeiro reinado e mostraremos um homem que não herdou um país, mas que lutou por ele numa guerra já esquecida, tanto política quanto econômica. Temperamental e humano, foi alguém que teve que lidar com aliados se tornando opositores e com uma política internacional intensa e instável. Um soberano que acabou entrando para a história mais pelo que fazia na sua vida privada do que na pública, o que fez com que se deixasse escapar o fato de ter sido o único homem a reinar em dois continentes, em nações diferentes, outorgar duas constituições, compor dois hinos nacionais e que coroas de duas outras nações também lhe seriam oferecidas por causa do seu espírito libertário.
Quando se pensa em reis, imperadores, regentes, seus mandos e desmandos são sempre enfatizados pelo caráter político e se esquecem do caráter moral por detrás de suas decisões — a menos que haja uma vida recheada de imoralidades. Não há como desvincular a figura do rei ao da pessoa humana e nem a do Estado, pois é tudo uma mesma coisa. Daí a importância deste livro em explicar como eram as pessoas para que tomassem as decisões que tomaram e que fizeram história, fugindo assim das lendas.
Narrativas, lendas, mitos —, o Brasil é muito mais do que isso, e o é pela força e coragem daqueles que o fizeram ser. Por isto, este livro. Uma tentativa de desmistificar D. João VI, D. Leopoldina e D. Pedro I e mostrar que estas pessoas, gente como a gente, ultrapassaram os seus entraves pessoais com muita luta e deram a vida, literalmente, pelo Brasil.
Luiz Philippe de Orleans e Bragança
O Criador
Achacota e o deboche têm espaço privilegiado na memória. enquanto a virtude e a verdade minguam no calabouço do esquecimento. D. João VI (1767-1826) foi considerado por muito tempo a caricatura do que poderia haver de pior num regente, escondendo sob essa capa de inépcia todo e qualquer feito a favor do Brasil¹. Foram tantas as tentativas de desfazer a figura de quem de fato criou as estruturas de formação de um grande país, que até mesmo a sua caracterização física foi feita de maneira jocosa. Suas conquistas foram soterradas pela imagem do comedor de frangos, que tinha medo de trovões e cuja esposa o traía até com o cavalariço. Procuraram apagar por meio de anedotas os feitos de um homem astuto, que conduzia a administração pública de maneira disciplinada e frugal. Era cuidadoso, pois tinha plena consciência de sua responsabilidade para sobreviver em tempos revolucionários. Alguém capacitado para enfrentar as turbulências de forma pragmática, assim como o desafio da construção de um império nos trópicos.
Sua trajetória não era assegurada e seu governo em nenhum momento foi tranquilo. Pelo contrário. Foi uma vida repleta de impasses, guerras, revoltas e grandes mudanças. Foi preciso muito cuidado e exame minucioso para tomar as decisões corretas, sobretudo ao se tratar do monarca de um império rico por causa de suas colônias, mas de pouca projeção política dentro da própria Europa, se comparado com a Rússia, Áustria, Prússia, França ou Inglaterra.
O seu arquirrival, muito melhor afamado historicamente, no leito de morte teria dito que D. João VI havia sido o único a enganá-lo. Isso é uma bomba cujo efeito parece maior quando revelamos que estamos falando de Napoleão Bonaparte (1769-1821) referindo-se ao sinuoso
D. João Maria José Francisco Xavier de Paula Luís António Domingos Rafael de Bragança, aquele que ficou conhecido como uma comédia ambulante
histórica, de expressão abobalhada tanto política quanto fisicamente.
D. João VI, que dizem não ter sido respeitado nem mesmo pela própria esposa, conseguiu enganar a muitos com seu jeito introspectivo e astuto. Foi ele quem deu a volta
no corso, que havia sido incapaz de julgá-lo por suas ações à época. A continuidade do reinado, da família, da pátria e da cultura portuguesa eram suas prioridades. É a partir dessas premissas que se consegue entender suas decisões, inclusive as de casamento. Quem não as aceita não compreenderá jamais D. João VI.
Para começar a entender a grandiosidade do ato da vinda da corte portuguesa para o Brasil, escapando de Napoleão, o que ajudaria no surgimento da nação, precisamos antes compreender quem era esse monarca, suas bases e o que estava enfrentado naquele ano de 1807 para que tomasse uma importante decisão — talvez a mais importante para a nossa história.
De Infante Improvável a Regente
Poucos sabem que D. João VI não era o primogênito e que não contavam em vê-lo rei. Antes dele havia dois irmãos mais velhos, D. José (1761-1788), o príncipe do Brasil, que era o herdeiro do trono, e D. João Francisco, que faleceria com um mês de vida. Inclusive, a existência de D. José como herdeiro levou a crer que D. João não teria tido uma educação bem formada e embasada, ou seja, seria deixada de lado. É possível, mas improvável. Quem se debruça sobre os dados da mortalidade infantil no século XVIII² não tem como afirmar que D. José teria tido uma criação impecável e D. João, somente seis anos mais novo, uma educação desleixada. Ambos eram representantes da Casa Real e deveriam ser preparados para a vida adulta, quando fariam casamentos dinásticos. Uniões que, eventualmente, evolveriam lidar com questões administrativas importantes, em maior ou menor escala, a depender do cargo
.
Há outro fator que deve ser levado em conta: D. João era uma garantia caso algo acontecesse com o primogênito. O que não seria tão raro. De D. João IV, o Restaurador (1604-1658) a D. João VI, o Clemente, em quase duzentos anos de Dinastia Bragança no trono português, dos sete reis que foram coroados, apenas dois eram primogênitos: o próprio implementador da dinastia, D. João IV, e D. Maria I, a mãe de D. João e a primeira mulher a herdar a coroa. Dos cinco reis, dois deles — D. João VI (1689-1750) e D. José I (1714-1777) perderam os irmãos mais velhos ainda bem pequenos, isto é, sem tempo suficiente para formalizar sua educação. Nos outros três casos, a herança
veio bem depois, quando então já estariam educados. O herdeiro da coroa de D. João IV, D. Teodósio (1634-1653), morreu aos 19 anos de tuberculose. Quem herdou o trono foi D. Afonso VI (1643-1675) que, além de ser o quarto filho do rei, acabou morrendo sem deixar herdeiros. Então, seu irmão, o quinto filho, tornou-se D. Pedro II (1646-1709). Do impacto no imaginário português causado pelas mortes seguidas dos primogênitos da linhagem Bragança, surgiu uma lenda: a suposta maldição de que nenhum primogênito do sexo masculino dos Bragança poria uma coroa sobre a cabeça³.
Por mito ou maldição, D. João VI não poderia ter tido uma educação inferior à do irmão. Seus atos históricos e a maneira como teve que encontrar soluções para os eventos que atormentariam seus dias de reinado são provas disso. Tampouco pode-se basear apenas nos relatos dos diplomatas, alegando que não era fluente em francês — a língua da diplomacia à época. Não é o bastante para compararmos com outros monarcas estrangeiros — e se formos mais longe, inclusive com os atuais presidentes da república; quantos destes, não tendo o inglês como língua materna, são fluentes no idioma considerado universal?
Por outro lado, não há muitas informações sobre como foi a sua educação formal. Sabe-se que teve aulas de legislação, religião, francês, latim, espanhol, etiqueta, história, etc. Como havia crescido no reino de D. José I, e a corte de seu avô girava entorno das duas grandes paixões deste monarca, a caça e a música⁴, aprendeu equitação ainda cedo com o sargento-mor Carlos Antônio Ferreira Monte. No caso da música, o rei D. José I não só frequentava a ópera todos os domingos como em casa tocava em família. Enquanto ele era o violinista, suas filhas se dividiam pelos outros instrumentos⁵, o que também seria obrigado aos netos. O rei também faria com que as crianças reais tivessem aulas de pintura e desenho, como ele mesmo havia tido. Vale lembrar que foi D. José I, em conjunto com o marquês de Pombal (1699-1782), que implementou a modernização da educação portuguesa criando as aulas régias, o ensino público laico em Portugal. Um homem tão preocupado com a educação de um país e a importância da música e do esporte (no caso, a caça) na formação do caráter não deixaria que um de seus netos tivesse uma educação desleixada.
A sua influência ia além das belas artes. D. João VI fez aulas de matemática com o italiano Miguel Franzini (?-1810), o que por si só é um diferencial. Na época do marquês de Pombal, uma das diversas reformas que ele implementou foi a do ensino universitário, enfatizando sobretudo a matemática, que serviria de base para várias matérias científicas e militares. Franzini viera a Portugal a convite do próprio ministro, e reorganizou as diversas instituições educacionais por onde passou, inclusive na Marinha.
Quanto a alfabetização, D. João VI teve o mesmo mestre de seu irmão D. José, o baiano Antônio Domingues do Paço (1724-1788), que por 20 anos cuidara da educação dos dois príncipes. O abade Correia da Serra chegou a declarar, num elogio à sua memória, que não poderia haver melhor escolha feita pelo marquês de Pombal, o que mostra o cuidado com a educação de ambos os príncipes:
Veio o tempo de dar mestres aos filhos da nossa Augusta Soberana, e não ignorava o ministro que as Letras, ainda que muito importantes, são a menor parte da educação dos príncipes; os sentimentos que ouvem e os exemplos que veem são objetos de bem superior importância, são os que formam o coração, e dão hábitos à vontade, e é a vontade a potência da alma que caracteriza os soberanos, e é do seu coração que a felicidade ou miséria das nações se origina. Nada disto ignorava o ministro, e apresentou a El-Rey, para mestre dos príncipes ao Antônio Domingues […]⁶.
Uma educação que ia além das letras, passando pela moral, pelos bons exemplos
⁷, mas cujos critérios se faziam também na boa sombra de seus tutores e criados, e de sua mãe, D. Maria I (1734-1816).
Sua mãe, por si só, é uma figura historicamente controversa, por ter alterado algumas das reformas avançadas do marquês de Pombal, proibindo as manufaturas no Brasil, entre outras coisas, aumentando assim a influência inglesa, e pelas quais ganhou o nome de Viradeira. Porém, é outra alcunha que a fez mais famosa: a Louca. Não poderia se esperar menos dos detratores da história, que preferiram realçar um problema de saúde mental ao final de sua vida para obstruir as lembranças de todos os feitos de D. Maria I, a Piedosa, conhecida por seu povo por suas obras de caridade, pela fundação da Casa Pia⁸, por conceder asilo político aos perseguidos da Revolução Francesa, pelo envio de missões científicas às colônias africanas — Cabo Verde, Moçambique, Angola — e ao Brasil, pela fundação da Academia Real das Ciências, entre outras instituições de saber e ensino.
Quanto ao seu estado de loucura, hoje há estudos que sugerem a probabilidade ter sofrido de uma depressão severa⁹, que pela falta de tratamento adequado na época, teria se intensificado causando alucinações típicas de uma depressão psicótica. A causa dessa forte depressão seria uma série de mortes de familiares aos quais era muito apegada, e num curto período: o marido, o tio, a filha D. Mariana, o bebê desta e o esposo, seu confessor e amigo frei Inácio e o filho e herdeiro da coroa, D. José, aos 27 anos de idade.
O jovem príncipe do Brasil morrera de varíola. Apesar de estar casado há 11 anos, não havia deixado herdeiros da união com sua tia materna, Maria Francisca Benedita (1746-1829), 15 anos mais velha. À época, D. João tinha 21 anos e ainda estudava, como era comum para o período. Portanto, não há como insistir na afirmação de que D. João VI tivesse tido uma educação inferior à do irmão, com base na presunção de que ele nunca herdaria a coroa após o falecimento do primogênito.
Carlota Joaquina
Reprovável sim, por outro lado, era a educação de sua jovem esposa, D. Carlota Joaquina (1775-1830). O casamento deles tinha como intuito o reforço nas relações de amizade
entre Portugal e Espanha, e funcionava como impedimento de enlaces com outras casas reais, o que poderia gerar uma ameaça à coroa vizinha. Na verdade, foi um duplo casamento, com D. Carlota Joaquina vindo para Portugal aos 10 anos de idade, e a irmã mais velha de D. João, D. Mariana Vitória (1768-1788), indo para a Espanha casar-se com o infante D. Gabriel (1752-1788).
As cartas da Ana Miquelina, criada da infanta espanhola, falam de uma criança mimada e impertinente, repleta de maus modos, a fazer pirraça, D. João chegou a ser acertado —, além da sua incapacidade de estudar disciplinadamente. Se atingia o ponto de enlouquecer o seu mestre, o padre Filipe, chamavam D. Maria I, que diziam ser a única capaz de controlá-la. Usando a lógica — anos antes de perdê-la — a rainha questionava pacientemente a infanta por que ela não fazia o ordenado, se ela [D. Maria], como soberana de Portugal, fazia o possível pela vontade de todos¹⁰. Ana Miquelina relatou que a rainha gostava muito da pequena. Era paciente, falava de maneira carinhosa, distante de ser severa ou séria, chegando a dar-lhe presentes quando agia com correção. Somente em casos muito necessários ameaçava tirar seu maior prazer: passear de burro. Quando não se atrasava, a infanta espanhola acompanhava a rainha onde podia, e jogava cartas com o sogro.
Engana-se quem acha que D. Carlota Joaquina nada aprendeu dessas lições. Foi mais do que bem nos exames públicos, estarrecendo os presentes com tanta informação.
A preocupação de D. João, porém, não era com a sua educação. Era outra. Tu bem sabes que uma criança aperreada não cresce muito
¹¹ e, portanto, não poderia consumar a união tão logo.
Com a morte do cunhado, tudo mudou e, de repente, D. João também caía muito doente e sem ter consumado o seu casamento. A coroa estava em perigo. Porém, o príncipe se restabeleceria e, em quatro anos, dividiriam o leito. Seria a própria D. Maria I quem acompanharia a jovem Carlota Joaquina até o quarto do esposo, ansioso por isso: Cá há de chegar o tempo em que eu hei de brincar muito com a infanta. Se for por este andar julgo que nem daqui a seis anos. Bem pouco mais crescida está de que quando veio
¹².
Sarcasticamente, afirmava o marquês de Bombelles (1744-1822) que era preciso "fé, esperança e caridade para consumar este ridículo casamento: a fé para acreditar que a infanta é uma mulher; a esperança para crer que dela nascerão filhos; e a caridade para se resolver a fazer-lhes […]¹³". Para escarnecimento do marquês, foram nove os filhos gerados: D. Maria Teresa (1793-1874); D. Francisco (1795-1801); futura rainha da Espanha, D. Maria Isabel (1797-1818); o futuro imperador do Brasil e rei de Portugal, D. Pedro (1798-1834); D. Maria Francisca (1800-1834); a princesa regente após a morte do rei D. João VI, D. Isabel Maria (1801-1876); o futuro rei de Portugal, D. Miguel (1802-1866); D. Maria da Assunção (1805-1834) e D. Ana de Jesus Maria (1806-1857).
A Primeira e as Últimas
Tentativas de Golpe
Com a morte do irmão e a instabilidade mental da mãe, D. João se torna o príncipe regente em 1792, informalmente. Apesar do laudo de 17 médicos sobre o estado de saúde materno, ele não queria aceitar a incumbência, temendo que, ao restabelecer a saúde, ela poderia achar que ele estava aplicando alguma espécie de golpe, afinal, D. José, antes de morrer, estava convencendo a mãe e a todos de que a rainha deveria abdicar em nome dele.
Em 10 de fevereiro daquele ano de 1792, portanto, iniciava a sua regência, despachando em nome dela. Uma das primeiras grandes decisões que teve que tomar tinha a ver com a guerra contra a França, lutando ao lado da Espanha na campanha do Rosilhão em 1793. Por ter sido um pedido do país vizinho, com quem tinha tratados dos mais diversos e casamentos dinásticos, não pôde negar. Também assinou um tratado de auxílio mútuo com a Inglaterra no combate contra os franceses. Mais de 5400 soldados portugueses foram enviados para lutarem ao lado dos espanhóis. Essa quebra de neutralidade, a qual tentava manter há algum tempo, foi um grande erro. A Espanha, revendo sua relação com a França e assinando como aliada o Tratado de Santo Ildefonso, em 1796, deixava Portugal sozinho na guerra contra o exército francês. Por causa do tratado com a Inglaterra, os portugueses não poderiam declarar paz como haviam feito os espanhóis.
Assim que assumiu o poder em 1799, Napoleão Bonaparte forçou a Espanha a convencer Portugal a romper com os ingleses e, portanto, se aliar à França. Incapaz de aceitar isso, tendo em risco outros tratados com os ingleses, em 1801 a coalizão franco-hispânica invadiu Portugal e travou-se a Guerra das Laranjas. Portugal sofreu uma grande derrota e perdeu da região de Olivença.
Enquanto isso, a saúde da rainha só piorava. Nesse interim, também houve momentos em que o próprio D. João sofria de fortes acessos de melancolia, trancafiando-se em Mafra, mas dos quais ele conseguia sair. Em 1799 terminaram as esperanças de uma cura
da rainha, e D. João assumiria por completo e passaria a assinar como príncipe regente
— o que duraria até a sua aclamação em 1816, quando no Brasil.
Diferente de D. José, que tinha uma predisposição maior ao Iluminismo por influência do marquês de Pombal — que havia afastado o Estado da Igreja e da nobreza e tentado modernizar uma sociedade ainda feudal — D. João era creditado por ser mais como a mãe, a Viradeira, voltado para a religião. Há quem diga que ele teria um excesso de religiosidade beirando a superstição, assim como a rainha, o que o impediria de bem governar. Independente da sua fé, esta nunca prejudicou a sua gestão. Estado e Igreja não eram a mesma coisa durante o período joanino, por mais que seus gostos pessoais estivessem atrelados às idas ao convento de Mafra, em especial à sua cozinha e às missas cantadas. Inclusive, ao chegar no Brasil, a primeira coisa que D. João fez foi suspender a Inquisição em terras brasileiras. O fato de frequentar missas também não o fazia mais supersticioso — para os tempos atuais em que a religião está sendo apagada, pode ser estranho ver alguém frequentar a missa religiosamente, e há a dificuldade de entender que de maneira nenhuma isso o impedia de pensar livremente.
Esse gesto mais introspectivo e melancólico, misturado à sua religiosidade, fazia-o ser comparado à D. Maria I e, por consequência, temiam que ele pudesse vir a enlouquecer
como ela. Essa predisposição à melancolia — nome dado à depressão — o fazia se fechar no palácio, e foi se aproveitando de uma desses momentos depressivos, e de uma lei que dava poderes à esposa do regente caso os filhos fossem menores de 14 anos, que tentaram tirá-lo do trono e pôr D. Carlota Joaquina em seu lugar.
Apesar de terem tido nove filhos, a relação dos dois nunca foi tranquila ou com momentos de companheirismo; ao menos não depois de crescidos — eu lá estou de manhã e à noite e tenho jogado o burro para a [Carlota] divertir
¹⁴.
D. Carlota Joaquina foi destruída pela história com base nas reclamações dos seus contemporâneos, pois ela não se comportava segundo os padrões da época. Afora muita mentira também em seu nome, sobretudo a respeito dos amantes, nunca comprovados, ela era uma mulher que desejava de fato governar. Suas reclamações quanto a D. João VI eram geralmente porque ele centralizava as funções, pois acreditava que a sua mulher não deveria se meter nas decisões reais, nem mesmo aquelas que se referiam às suas criadas de quarto ou damas de companhia. Isso gerava um embate direto, e foi se transformando em algo ainda mais tenso ao longo dos anos, envolvendo decisões políticas e os próprios filhos.
Uma das primeiras vezes que ela tentou tomar as rédeas do poder foi em 1805. D. João retornava da temporada de caça em Samora Correia, quando seus criados e oficiais foram adoecendo um a um. Não demorou muito para que o próprio príncipe regente mostrasse os sinais da doença e preferisse se tratar em Caxias. Ficou algum tempo numa quinta e depois foi para outra no Alfeite. Afastado do poder, começaram as especulações de que ele estaria muito mal e que seria preciso D. Carlota Joaquina ficar à frente da coroa portuguesa. Essa ideia era sustentada pelo marquês de Alorna, marquês de Ponte de Lima, conde de Sarzedas, conde de Sabugal e o barão de Porto Covo, que era também o banqueiro da princesa espanhola. Aproveitando-se disso, usaram a doença para especulação. Acusavam D. João de que enlouquecia como a mãe. O marquês de Ponte de Lima, em agosto de 1806, escreveu a respeito:
O nosso homem [D. João] está cada vez pior, e pouco falta para de declarar completamente alienado; todos dizem claramente que todas as jornadas que inventa é para ter motivos para estar mais ausente. Nenhum negócio sério vai à presença do dito senhor, os biltres gozam do maior valimento, e servem sempre os seus afilhados, seja ou não justo. […] O homem certamente está louco, até o conde de Belmonte o diz; os ministros de Estado não se hão de descuidar das regências […]¹⁵.
A própria D. Carlota Joaquina enviou ao pai, o rei Carlos IV (1748-1819) da Espanha, uma carta contando que "o príncipe está cada vez pior da cabeça, e que por consequência tudo vai ser perdido, porque aquelas figuras estão cada vez mais absolutas, e que é chegada a ocasião de V. M.
acudir-me e a seus netos. A solução para isso, segundo a infanta, era que
se Vossa Majestade, ordene, isto remediaria, mandando Vossa Majestade uma intimação que quer que eu entre no governo, e que não aceita réplica, e se der, será com armas na mão, para vingar as ofensas e grosserias […]. O final da carta é apelativo, pois ela pede que ampare os netos dele,
que já não têm um pai capaz de cuidar deles"¹⁶.
Com esse panorama montado, os fidalgos prepararam o anúncio da regência de D. Carlota Joaquina no dia do beija-mão em homenagem ao aniversário dela, dia 25 de abril de 1806. Já estava também estipulado qual seria o posto de cada um dos envolvidos dentro de um novo ministério. Só não puderam contar com a aia da princesa, D. Mariana, que havia sido dispensada há pouco tempo. A jovem, casada com Francisco Rufino de Sousa Lobato (1773-1830) — guarda-roupa, porteiro, mateiro e tesoureiro do bolsinho real e um dos homens mais próximos do príncipe-regente — contou os planos, o que chegou aos ouvidos do regente.
Recebendo a todos para o beija-mão, D. Carlota Joaquina não esperava que D. João aparecesse para congratulá-la pelos anos, desbancando assim toda e qualquer tentativa de uma nova regência. A conspiração dos fidalgos
não foi adiante. Porém, havia sido preciso que D. João, ao descobri-la, tomasse uma atitude rápida e simples: mostrar que estava restabelecido e que qualquer história sobre a sua capacidade mental era mentira. E perante uma prova viva, não havia argumentos.
Para averiguar se haveria novas tentativas de tirá-lo do poder, D. João mandou o ajudante do intendente da polícia e o conde de Vila Verde investigarem o que se falava desde que ele estivera acamado. Queria saber até que ponto D. Carlota Joaquina estava envolvida, ou se foi apenas usada. O resultado do inquérito foi que a esposa era inocente.
Mesmo assim, o pouco que havia na relação deles teria acabado — por um período. Na época o divórcio não era uma possibilidade, muito menos para um rei católico, então, a solução encontrada era outra. D. Carlota Joaquina viveria no Palácio de Queluz¹⁷ com D. Maria I, por quem detinha carinho por tê-la criado desde sua vinda para a corte portuguesa ainda criança. Lá criaria a sua própria rede de informantes, uma segunda corte — o mesmo aconteceria no Brasil, como D. Leopoldina relataria nas cartas à família. Enquanto o príncipe regente se abrigava entre os monges no Palácio de Mafra, de quem mais gostava da comida do que dos sermões.
Se D. Carlota Joaquina estava mesmo ou não envolvida nessa tentativa de 1806 não há provas. Certo é que ela estava por detrás da Vilafrancada, em 1823, junto com D. Miguel. Porém, este golpe também seria suplantado pela argúcia de D. João VI e o poria no poder como rei absoluto¹⁸, dando fim ao governo das Cortes — iniciado em 1820, após a Revolução do Porto¹⁹.
Vilafrancada
No final de maio de 1823, D. Miguel havia se juntado ao 23º Regimento de Infantaria em Vila Franca de Xira, que estava insatisfeito com as decisões das Cortes portuguesas, e incentivara a dar vivas a El-Rei absoluto
. Poucos dias depois, era o 18º Regimento de Infantaria que dava vivas ao rei diante do Palácio da Bemposta, onde D. João VI estava, sendo seguidos pela guarda do palácio e os civis no entorno. A Constituição criada pelas Cortes era vaiada em altos brados, pois não havia causado qualquer mudança profunda nas estruturas do país, trocando apenas o poder de mãos, e ainda levado à perda do Brasil, sua maior fonte de riquezas.
Por um momento houve uma avaliação por parte de D. João VI. Sempre a favor da ordem e sem querer causar um banho de sangue, iria criticar as ações a favor do regime absolutista e contra a Constituição, porém seus conselheiros argumentaram que, se ele fizesse isso, era possível que o Exército se aliasse à D. Carlota Joaquina e a D. Miguel que, por não terem jurado a Constituição, eram vistos como inimigos do regime liberal e mentores do Absolutismo.
Para demonstrar força, D. João VI mais uma vez surpreendeu a todos, aparecendo em público em Vila Franca. Ele e o filho se encontraram num momento terníssimo
, e as princesas deram uma coroa de louros que o jovem príncipe depositou aos pés do pai. Assim D. João VI recuperava integralmente seus poderes sem qualquer banho de sangue, e D. Miguel era nomeado o chefe do Exército e as tratativas de recuperar o Brasil independente começavam.
Como D. Carlota Joaquina havia se negado a jurar a Constituição em 1822, teve todos os seus direitos civis e monárquicos retirados e deveria ser exilada na Espanha. Por causa de sua saúde, foi permitido que ficasse em sua residência, a Quinta do Ramalhão, em Sintra, sem as filhas. Formavam-se, portanto, os polos de poder: o rei constitucional e a rainha conservadora. Com a Vilafrancada e a restauração de 1823, a rainha readquiria seus direitos, e ela e D. João VI apareceriam em público, mostrando-se unidos. O que também os teria reaproximado no privado: Meu amor, não quero que passe o dia de hoje sem te expressar quanto me custa não te dar pessoalmente os parabéns dos teus anos: infinitamente desejo que contes muitos com as maiores felicidades e que acredites que eu sou esposo que muito te ama do coração
²⁰, escreveria D. João VI à Carlota Joaquina. Em outra, ele diria:
Meu amor, recebi a tua carta no teatro e por isso não te respondi logo: o que faço agora, para te agradecer a tua lembrança e para assegurar-te quanto ela me penhora. Muito sinto que tenhas passado mal e muito estimaria poder dar-te todos os alívios que sinceramente te desejo como teu esposo que muito deveras te ama²¹.
Em algumas, D. João VI chegou a assinar: Esposo que muito te ama do coração
²².
De pouco adiantou tanto amor, dedicação e belas palavras. Em abril de 1824 tentou-se um novo golpe para tirar a coroa de D. João VI. Preso no Palácio da Bemposta, enquanto liberais eram perseguidos por D. Miguel e sua mãe, o rei conseguiu escapar com a ajuda dos embaixadores da Inglaterra e França. Refugiado numa embarcação da Marinha inglesa, D. João VI manteve a coroa mais uma vez. Quanto a D. Miguel, ele foi exilado em Viena e D. Carlota Joaquina no Palácio de Queluz²³.
Três tentativas de golpes por parte de parentes — dos que nos chegaram ao conhecimento — e todas sem sucesso indicam que D. João VI não poderia ser tão estúpido como seus detratores alegam.
Por outro lado, esperteza não era coisa da qual D. João VI se gabava. Não era uma figura conhecida pela sua vaidade, e muito menos por ficar provando a sua perícia intelectual, e soube usar disso a seu favor durante os piores períodos da história de Portugal. Suas ações e reações se provaram por si só, sem precisar bradar, atirar coisas nos outros ou tomar atitudes mais enérgicas, como havia feito o seu avô D. José I. Bastou observação, avaliação e silêncio para que D. João VI conseguisse dar um xeque-mate em Napoleão Bonaparte e manter sua coroa durante uma revolução e diversos golpes e revoltas.
Quem come Calado, não perde Bocado
A expressão popular portuguesa quem come calado, não perde bocado
pode ser uma excelente maneira de apontar uma das grandes mentiras em torno do nome de D. João VI.
Quem acha que fake news são uma invenção de hoje, engana-se. A política faz uso delas há muito tempo, passando-as adiante por meio de outras tecnologias. Nos séculos XVIII e XIX não havia celulares nem redes sociais, então as informações tinham de brotar de uma maneira diferente. O caminho eram os panfletos distribuídos em mãos, os artigos de jornais assinados por anônimos ou por pseudônimos e a publicação de livros sem autoria. E o nome de D. João VI circulou por eles desde a morte D. José I e do afastamento de Pombal. Nos finais do século XVIII buscava-se desacreditar tanto o regime de D. Maria I quanto o de seu filho por meio de artigos de jornais, que alegavam a falta de capacidade de ambos em governar. Se contarmos desde essa época todas as mentiras publicadas contra seu nome, talvez possamos considerá-lo uma das figuras que mais sofreu com fake news na história, desde que subiu como regente em 1792.
As fake news de sua época, e que perduram até hoje, envolviam sobretudo sua vida pessoal, os deslizes de sua moral ou da de sua esposa, e sempre argumentavam que o excesso de religiosidade²⁴ seria a prova da sua falta de material intelectual e capacidade cognitiva, e com um intuito somente: mostrar a sua incapacidade para reinar.
Essas reclamações do setecentismo que o acusavam de ser despreparado, inapto e indeciso não se sustentam quando se examinam os seus feitos e percebe-se os interesses por