Crônica por quilo
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Sobre este e-book
No dia 23 de junho de 2014, agora mais experimentado, reestreou com a coluna Crônica por Quilo mandando logo para o gol um provocativo texto: "12 coisas para se fazer caso o Brasil saia da Copa". Seria uma quase profecia do aviltante 7 x 1 contra a Alemanha. De lá para cá, saíram do forno 270 crônicas, divididas nos temas mais diversos. Sátira política, crítica aos costumes, paródias, microrrelatos, poesia engraçada, aforismos, contos surreais, ficção científica de humor, personagens improváveis. Tudo a serviço da avacalhação ampla, geral e irrestrita; já que, "quando não se pode construir nada de bom, o que nos resta é esculhambar", defende o cronista.
Sobre Carlos Castelo, que também foi fundador do grupo musical Língua de Trapo, pouco se sabe. E, dizem, ele aprecia isso. Luis Fernando Verissimo assevera que trata-se de uma raridade no panorama da crônica brasileira. Ruy Castro costuma dizer que, quando quer rir e se irritar, lê uma máxima de Castelo. E o crítico literário Manuel da Costa Pinto o coloca no mesmo rol de Millôr Fernandes e Verissimo, pelo "faro para o cômico e para as contradições do presente – satirizados na linguagem do presente".
Confira nessa insólita reunião de 88 crônicas se o que atestam sobre Castelo é verdade. Nos tempos de hoje, mesmo com tantas louvações, nunca se sabe o que é real e o que é Fake News.
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Crônica por quilo - Carlos Castelo
Caruso.
A PARÁBOLA DO FILHO MILLENNIAL
E disse: Um certo homem tinha dois filhos. E o mais moço deles disse ao pai: Pai, dá-me a parte dos bitcoins que me pertence. E ele repartiu por eles a start-up de uma social media que fizera com o aporte de capital de um investidor-anjo. E, poucos dias depois, o filho mais novo, ajuntando todos os bitcoins, partiu para Austrália e ali desperdiçou os seus bens, vivendo dissolutamente como atendente de hostel, de dia, e DJ de balada à noite. E, havendo ele gastado tudo, houve naquela terra uma grande fome, e começou a padecer necessidades, tendo que trabalhar como segundo assistente de estagiário, numa empresa coreana de brinquedos pirateados da Disney. E foi, e se chegou a um dos aussies o qual o mandou para os seus campos, a apascentar carpas alimentadas com ração orgânica à base de chia, trufas, linhaça e alfarroba. E desejava encher o seu estômago com as bolotas de ração orgânica que as carpas comiam, e ninguém lhe dava nada. E, tornando em si, disse: Quantos tuiteiros de meu pai têm abundância de pão integral de sete grãos, e eu aqui pereço de fome! Levantar-me-ei, e irei ter com meu pai, e dir-lhe-ei: Pai, pequei contra o céu e perante ti. Já não sou digno de ser chamado teu filho; faze-me como um dos teus tuiteiros. E, levantando-se, apanhou o Iphone e fez um FaceTime com seu pai; e seu pai se moveu de íntima compaixão e postou um emoji em forma de coração azul pulsante. E o filho lhe disse no chat: Pai, pequei contra o céu e perante ti, e, sipá, já não sou digno de ser chamado teu filho. Mas o pai disse aos seus tuiteiros: Acionai o Snapchat e vesti-o, e ponde-lhe um anel na mão, e tênis Vans nos pés. E trazei a tapenade de berinjelas marinadas, e passai-as no pão de bardana e cevada; e degustemos, e alegremo-nos; porque este meu filho virou um figurante do Walking Dead, e reviveu; tinha-se perdido, e foi achado graças ao Waze. E começaram a alegrar-se.
E o seu filho mais velho estava em sua home office; e quando veio, e chegou perto de casa, ouviu a música nas caixinhas de som JBL bluetooth do iPad Pro do pai. E, chamando um dos tuiteiros, perguntou-lhe o que era aquilo. E ele lhe disse: Teu irmão chamou no FaceTime; e teu pai mandou trazer as berinjelas especiais que estavam curando na varanda gourmet, porque o recebeu são e salvo. Mas ele se indignou, e não queria entrar. E saindo o pai, instava com ele. Mas, respondendo ele, disse ao pai: Eis que te sirvo há tantos anos, sem nunca transgredir os teus algoritmos, e nunca me deste uma breja para alegrar-me com os meus parças. Vindo, porém, este teu filho, que desperdiçou os teus bitcoins, tipo, com baladinha roots, ofereceste-lhe a melhor das berinjelas curtidas. E ele lhe disse: Filho, tu sempre estás comigo, e todos meus devices são teus; até a senha do meu Evernote. Mas era justo alegrarmo-nos e folgarmos, porque este teu irmão tinha dado pau, e reviveu; e tinha-se perdido, e achou-se. Então todos se colocaram junto ao investidor-anjo e fizeram uma selfie.
COMPOSIÇÃO: MEU FERIADO NA PRAIA
A praia é um lugar onde tem sol, areia, água e ondas.
A praia também tem latinhas de refri, pedaços de garrafas PET, bitucas de cigarro, pessoas gordas e vermelhas, cachorros correndo muito felizes e bicho geográfico.
Se a gente cutucar a areia, pode achar ainda mais coisas: sirizinhos, caranguejos, minhocas pra isca e cocô.
Venta muito no mar. Quase não dá pra sentir cheiro. Não sei por que a minha avó fica dizendo, o tempo todo, que está sentindo cheiro de mato queimado na praia.
Eu vim com a minha família passar o feriado no mar. Foram umas 15 pessoas e o vovô, que agora está voltando pra São Paulo. Pra falar a verdade, não entendi muito bem o que aconteceu. Estava um calorão, mas começaram a gritar que o vô estava frio. Daí, rapidinho, o enfiaram numa caixa de madeira bonita e o mandaram de volta pro Jardim Euriclides.
Meu pai falou que era pro pessoal beber o meu avô. Quando a caixona de madeira foi pra dentro do porta-malas do ônibus, começaram a fazer o churrasco. Meu tio mais novo pegou uma pistola do meu pai e deu uns tiros pra cima. Sem querer, acertou o eletricista que estava consertando os fios da frente do sobrado.
O que eu achei engraçado é que o eletricista não caiu do poste. Ele ficou lá em cima, tirou do bolso uma pistola igualzinha a do meu pai e começou a tentar acertar todo mundo que estava no churrasquinho.
Ficou aquele tiroteio um tempão, e não morria ninguém. Eu cansei e fui jogar videogame na sala. Como só tinha FIFA, me enchi e voltei pra fora porque eu gosto mesmo é de jogo de tiro.
Estranhei o eletricista dormindo no meio do quintal. Fazia aquele calorão e começaram a dizer que ele também estava frio. Vai entender. Meu pai falou pra comprarem outra caixa de cerveja porque o pessoal tinha que beber o eletricista.
Os meus primos foram até a vendinha e trouxeram uma caixa cheinha. Quando entregaram pro meu pai, falaram que um monte de polícias estava vindo pra pegar ele, meu tio mais novo e o eletricista frio. Iam levar todos pra algum lugar que não me lembro o nome agora. Meu pai falou um palavrão e levantou a pistola pra cima.
Fui jogar o videogame na sala. Mas é sempre assim, quando começo o FIFA, logo vêm as balas lá fora. E eu prefiro tudo o que tem tiro.
Saí pro quintal e olhei pra calçada: estava tudo cheio de PMs. Tinha até um cachorro igual ao que eu vi correndo muito feliz na praia, só que esse era bravo.
Acabou que a gente teve que ir com o cachorro e os polícias. Só deixaram a minha avó em casa porque ela tinha que fazer alguma coisa com meu avô que continuava na caixa de madeira, só que na vila onde fica a nossa casa, lá em São Paulo.
Meu pai e meu tio mais novo assinaram um monte de papéis. E parece que nós vamos passar o feriado aqui com o cachorro.
Depois de um monte de tempo, me deixaram dar uma volta na areia. Fiquei lá em pé, pensando no meu feriado. Veio uma ventania assim, do nada. E, na hora, dei razão pra minha avó: às vezes, a praia tem mesmo cheiro de mato queimado.
UBERANDO
O senhor sabe como é. E o cara sentou aí atrás, onde o senhor está, e desandou a falar comigo que nem um papagaio. Não calava a matraca. Não deixou nem eu oferecer as revistas, as balinhas, a água – que eu tenho sempre, com ou sem gás. Porque, afinal de contas, se a gente se propõe a ser motorista-de-carro-de-aplicativo, precisa ter um algo a mais. Teve até um prefeito que falou que o taxista precisava se apresentar de um jeito limpo, asseado. Pedia que a gente usasse paletó, camisa social, sapato engraxado. Pra mim é correto. A pessoa está aqui pra servir. Se o senhor, vamos dizer, entra no meu veículo, e eu estou todo esfarrapado, molambento, o que vai pensar? Que eu sou um marginal, um pervertido, um drogado? Ia pensar ou não ia? Pois então. Está certo exigir uma roupa bem passada, uma viatura limpa, ainda mais para o freguês do celular.
O que não está certo é o preconceito com o motorista-de-carro-de-aplicativo. O senhor não calcula o que a gente vê por aí. Taxista fazendo todo tipo de desgrama com o colega dele. Dói. Eu mesmo fui deixar um passageiro em Congonhas e, quando eles me viram desembarcando o rapaz na calçada, vieram feito fera pra cima. Um senhorzinho, motorista de um Palio cinza, pegou uma chave de roda e correu pra macetar no meu capô. A sorte é que esse meu Golzinho Bola tem arranque bom, senão o velho tinha lascado a lataria. E quem ia ficar no prejuízo? Eu e a Laíse. Laíse é a minha esposa. Ela pagou 50% do carro. O outro Gol que a gente trabalhava não houve meio de acertar as multas, tive que encostar num terreno baldio em Mailasqui.
É luta dura, ai, ai, nem fale. Educar filho dirigindo dia e noite, ô sina… Mas, no fim, compensa. Ver a menina fazendo o curso de comerciária, o menino virando DJ. Compensa, compensa.
O que ferra é pagar aluguel. Deixando o senhor, vou até meu bairro ver um sobradinho, com a mulher. Pegamos a calculadora, e a prestação da Caixa fica parelha com o aluguel. Talvez uns 80, 100 reais a mais. A menina se diplomando no curso de Comércio, a gente se desaperta e entra numa dívida nova mais fácil. Morar em casa de cômodo, não é cômodo, não senhor. Tem o lado bom da amizade com o vizinho e tudo, quando falta um trem o povo empresta, só que o teretetê da falação é triste. É um arrasando o outro.
Se der certo, quero morar na parte de cima do sobrado e, na garagem, que é grande, montar um emporiozinho. Boto a menina, que entende de conta, no caixa, e a Laíse no balcão. O menino já ganha uns trocados animando festa, balada de firma. Juntando com as corridas, a gente se ajeita. Eu não desgosto de dirigir não. Ruim é quando o passageiro não deixa a gente conversar, só ele fala. O senhor sabe como é. E a balinha, não quis? É 7 Belo, docinha…
INTERROGATÓRIO DE AMARILDO SUPERINTENDÊNCIA DA PF – INTERIOR – DIA
– O senhor tem ciência de que, se não disser a verdade, isto pode ser usado contra sua pessoa num processo criminal, seu Amarildo?
– Sei, sim, senhor.
– Então vamos às perguntas.
– Estou à disposição do senhor juiz.
– O senhor estava na reunião do deputado em que um doleiro foi chamado para entregar valores ao Caixa 2 da campanha dele a senador?
– Estava. E fui eu que liguei para o doleiro vir ao gabinete.
– O deputado disse, no depoimento dele, em fevereiro próximo passado, que foi ele quem negociou os valores com o doleiro da empreiteira. Foi isso mesmo, seu Amarildo?
– Não foi não. Fui eu que fiz a negociação com o rapaz. Lembro até que o dólar estava 3,04 naquele dia.
– Mas a mala preta com o dinheiro teria sido levada para o cofre do gabinete, confere?
– Não, foi trazida para minha casa, doutor. Fui eu mesmo que carreguei. E não era mala preta, era uma mochila azul.
– Durante o trajeto da mala preta, que o senhor afirma ser uma mochila azul, houve uma perseguição policial a um veículo de passeio prata. O senhor confirma?
– Confirmo. O carro inclusive é meu.
– E quem dirigia o veículo?
– Eu, doutor.
– Mais alguém com o senhor no veículo?
– Eu estava sozinho.
– Durante a perseguição, seu Amarildo, consta nos autos da Polícia Militar que houve disparos desse veículo prata na viatura policial. Foi o senhor que atirou na PM?
– Fui eu mesmo, com um Taurus 38, que eu mantenho no porta-luvas.
– Consta também que, em função da velocidade imprimida pelo veículo prata, ele acabou entrando num restaurante vegano do bairro, atropelando 17 alunos de ioga Ashtanga que meditavam numa das salas do estabelecimento. É verdade?
– Sim. Perdi controle.
– O senhor então teria tomado como refém Janardan Paraguaçu Kamadeva, um guru de São João do Meriti, e levado para a cozinha do restaurante vegano.
– Foi.
– E na cozinha, o que aconteceu, seu Amarildo?
– Eu ameacei ligar a churrasqueira elétrica e grelhar quatro repolhos para tentar asfixiar as pessoas. Isso se a Polícia Militar tentasse me tomar a mochila azul com os dólares da campanha.
– A Polícia Militar tentou a negociação com o senhor?
– Tentou, sim, doutor.
– E o que o senhor fez?
– Mesmo assim, eu assei os repolhos na churrasqueira elétrica. E, enquanto todo mundo tossia, fugi pelos fundos da cozinha.
– E depois, seu Amarildo?
– Bom, aí eu capturei a viatura da PM e consegui ir até o Campo de Marte, onde obriguei o piloto de um King Air a me levar até Assunção, no Paraguai.
– E de lá?
– De lá fui depositar o dinheiro do deputado em Zurique.
– Os advogados do seu Amarildo teriam alguma coisa a acrescentar?
– …
– Nada?
– …
– Perfeito. E o senhor, Seu Amarildo, mais alguma coisa a dizer?
– Tenho, doutor.
– Pode falar.
– Eu sou inocente.
ENTREVERO NA MARGINAL
Dia desses, levei uma das maiores fechadas, no trânsito, da minha vida. Quase me estropiei todo. O fato ocorreu, mesmo tendo eu tomado todas as precauções possíveis no que dizia respeito à minha porção motorista. Em tempo: não há muito, fui atropelado no quinto subsolo de um estacionamento. Ou seja, sou mais do que gato escaldado. A fechada foi de um caminhão. Mais especificamente, de um gigantesco daqueles de alta tonelagem, da Eusmar Mudanças.
Eu já tinha visto muito absurdo na vida e no caótico tráfego paulistano, mas o que esse motorista promoveu foi, de fato, inimaginável. O meu carro estava na pista da direita da Marginal, e o caminhão de mudanças, na da esquerda. De repente, ele virou do nada e veio se encaminhando para o meu lado. Até agora não entendi como, com aquela antieuclidiana manobra, o bólido não atingiu os automóveis que trafegavam nas pistas do meio. A cena mais parecia uma daquelas perseguições de carros do filme Identidade Bourne
, em que veículos de todos os tipos e marcas voam, se despedaçam, carretas capotam dentro de