O Vampiro à Sombra do Mal: A Fluidez do Lugar da Figura Mítica na Literatura
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Sobre este e-book
O livro de Thiago Sardenberg, com prefácio assinado por Maria Conceição Monteiro – referência em pesquisas do gótico e do inumano na literatura – é leitura indicada para todos aqueles interessados em explorar o universo sombrio do vampiro literário, seja por interesse acadêmico ou como pura e eletrizante fonte de entretenimento.
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O Vampiro à Sombra do Mal - Thiago Sardenberg
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO LINGUAGEM E LITERATURA
Que arte & braço pôde então
Torcer-te as fibras do coração?
Quando ele já estava batendo,
Que mão & que pés horrendos?
Que cadeia? que martelo,
Que fornalha teve o teu cérebro?
Que bigorna? que tenaz
Pegou-te os horrores mortais?
Quando os astros alancearam
O céu e em pranto o banharam,
Sorriu ele ao ver seu feito?
Fez-te quem fez o Cordeiro?
William Blake
Trad. de José Paulo Paes
PREFÁCIO
Esse estranho objeto de desejo
A figura do vampiro permanece como um dos mitos mais poderosos na cultura popular por seu poder erótico no imaginário humano. Personagem construída à nossa imagem, reflete nossos medos e pulsões, seduz e ameaça. Essa entidade inumana também metaforiza o horror nosso de cada dia, que se manifesta na arte não apenas pela própria presença do vampiro, mas também ao comparar-se com ele um personagem que seja desencadeador do mal. Ou, como fez Karl Marx, que pede emprestada a figura que pairava no imaginário oitocentista para descrever a forma como os industriais exploravam os seus trabalhadores.
Até recentemente, o vampiro foi quintessencialmente um descendente de Drácula, de Bram Stoker. A partir da década de 1970, como assinala Thiago Sardenberg, com a obra de Anne Rice, o vampiro sofre uma variedade de transformações em resposta às mudanças culturais e políticas, ou seja, vai-se modificando em uma figura mais domesticada, sem, contudo, perder o efeito erótico que exerce sobre nós.
Thiago Sardenberg estuda a figura do vampiro desde o seu mestrado. Incorporou-a no doutorado, e o resultado é este excelente livro que explora o lado sombrio da figura mítica para iluminar a sua força atuante no desencadeamento inesperado e incontrolável de impulsos obscuros e energias ocultas, concretizado na relação dele com o outro. É como se o vampiro encenasse toda uma sexualidade freada, por se mostrar ambíguo, sem predileções sexuais. O vampiro evolve, de imagem literária que tem suas origens no mito, para um personagem inumano, mágico, ameaçador.
Na modernidade, na interseção entre a hegemonia científica, o capitalismo industrial e aquilo que Nietzsche profetiza como a morte de Deus, o inumano, adquire nova face. Não é mais um mundo a ser habitado pelos mitos, como na tragédia grega, nem por uma literatura apocalíptica sobre a natureza do mal, mas por problemas de natureza existencial, que se constitui como questionamento do papel do ser humano frente à ciência moderna, às guerras, à alta tecnologia e ao capitalismo industrial e pós-industrial. A arte expõe os dois mundos em que o inumano, na figura do vampiro, entra em cena para atuar com o humano, revelando nossos lados sombrios e desconhecidos. Não se trata de regiões sobrenaturais que povoamos conduzidos pelo vampiro, mas o próprio mundo invertido em algo que nos é estranho, porém que nos faz morada. A própria crise da fé, a morte de Deus, contribui para uma crise maior, pois questiona toda a base que serviu de sustentáculo para comportamentos humanos e crenças. Essa crise é crucial, pois abre um campo de descentramento em que o ser humano começa a descobrir outras possibilidades de pensares e fazeres, e assim outras áreas de conhecimento, não mais apenas antropocêntricas, ganham dimensões distintas. O diferente é incorporado, pois é aí que se abriga o invisível, o ausente, o indizível.
Como nos mostra Thiago Sardenberg, as narrativas sobre o vampiro contemporâneo carregam consigo um palimpsesto de significações que sugerem os contextos sociais, históricos e políticos nos quais estão inseridas. Ente centrífugo, retornando do passado ele o modifica, adapta-o às esferas turbulentas dos nossos tempos, e segue com alta carga de sensualidade, por despertar o leitor para mundos com potenciais transumanos. O vampiro, acima de tudo, expande a imaginação libidinosa, fazendo de crenças e superstições a sua religião, sugerindo um despertar para energias corporais, para desejos originários, sem qualquer apelo à razão ou à moralidade. Apesar de todo um aparato científico para eliminar ou explicar o vampiro, a modernidade não consegue suplantar o mito. Daí a sua persistente presença nas narrativas literárias e fílmicas do nosso tempo, pelo seu mistério e poder erótico, vertente temática da arte contemporânea belamente analisada por Thiago Sardenberg neste seu O vampiro à sombra do mal: a fluidez do lugar da figura mítica na literatura.
Maria C. Monteiro
Professora titular de Literaturas de Língua Inglesa da Uerj
Doutora em Literatura Comparada pela UFF
Escritora
APRESENTAÇÃO
Foi uma aventura que jamais conhecerei na vida! Fala de paixão, de saudades! Fala de coisas que milhões de nós nunca experimentarão ou chegarão a compreender!
(RICE, 1992, p. 332), confessa o jovem Daniel ao terminar sua entrevista com o vampiro Louis no romance homônimo¹ de Anne Rice. Para ele, o vampiro representava a promessa da imortalidade e de uma existência regida pelo avivamento de todas as sensações como as conhecemos; para Louis, estupefato com a reação do humano, o vampiro é a certeza da danação eterna, de uma existência intrinsecamente ligada à morte – a sua própria e a de outrem.
A forma como Daniel reage ao relato do angustiado vampiro é um testemunho do fascínio que o vampiro exerce na contemporaneidade. Aos 6 ou 7 anos de idade, via-me igualmente encantado pela figura por meio de películas como Os Garotos Perdidos, que retratava belos jovens rebeldes vestindo suas jaquetas de couro em cima de suas motocicletas, prometendo dormir durante o dia, festejar durante a noite; nunca envelhecer, nunca morrer. É divertido ser vampiro
. O vampiro havia se tornado um carismático veículo para o perigo, que simultaneamente encantava e assombrava. Longe de poder fazer quaisquer análises profundas sobre o porquê dessa atração na época, encontrei-me, décadas depois, ainda mais fascinado por uma figura cujo alcance literário provou-se imenso, ganhando amplo espaço como objeto de pesquisas acadêmicas e escrutínio crítico.
Em minhas pesquisas de mestrado e doutorado, debrucei-me sobre as manifestações literárias do vampiro nos séculos XIX, XX e XXI, e pude obter um panorama amplo do que potencialmente se escondia por trás da figura, que goza de imensa popularidade no início do século XXI, ganhando vida nas mais diversas mídias – na TV (por meio de séries premiadas como True Blood, criada por Allan Ball para a HBO; ou The Vampire Diaries, um enorme sucesso adolescente que ficou no ar por oito temporadas), no cinema (em obras não mais restritas aos gêneros do suspense e terror, como o drama Amantes Eternos de Jim Jarmusch, a série de ação Anjos da Noite: Underworld e a popular saga romântica Crepúsculo), em videogames (entre eles, a popular série Legacy of Kain), em graphic novels (como 30 Dias de Noite, também adaptada para o cinema) e até mesmo em aplicativos de celular (Vampire Craft, Man or Vampire e outros totalizando milhões de downloads em plataformas digitais). Há uma enorme demanda pelas criaturas de presas afiadas, que não parece ser facilmente saciada.
Ainda que o vampiro possa ter sido apropriado pela cultura popular de massa, um olhar mais aprofundado para além das cruzes, caixões e litros de sangue que frequentemente permeiam as narrativas vampirescas poderão nos revelar questões complexas, que muitas vezes desafiam todo o status quo, independentemente do espaço social em que o vampiro está inserido. Em constante mutação, o vampiro adorado pela cultura de massa do século XXI pouco tem a ver com o vampiro nefasto, maligno e repugnante de outrora.
É justamente sobre esse eixo que gira o livro que agora lês; trataremos, aqui, de observar a forma como o vampiro literário fora inicialmente concebido como uma representação do mal
e do demoníaco
para se tornar, na contemporaneidade, uma figura atraente cujos lugares não mais permanecem fixos. Para isso, faremos uso de obras clássicas e contemporâneas da literatura vampiresca (entre elas, Drácula, de Bram Stoker, e as Crônicas Vampirescas, de Anne Rice) em diálogo com diferentes perspectivas – religiosas, filosóficas, literárias – como formas de observar a natureza dinâmica, ambivalente de nossas percepções do mal – e, consequentemente, dos nossos vampiros.
Sendo superfície refletora da sociedade, a figura mítica do vampiro passa também a espelhar a construção das identidades contemporâneas no que estas se apresentam mais fluidas e interessadas em favorecer aditivas (um constante sou isso ‘e’ isso
) em detrimento de alternativas (um binário sou isso ‘ou’ isso
), assim como em verificar as coincidências de opostos ao invés de meramente polarizá-los. No que o vampiro finalmente sai das sombras para bradar sua natureza a plenos pulmões, assumindo o protagonismo de sua narrativa e passando a valorar-se por sistemas que não mais o confinam nos lugares fixos que previamente ocupara, ele continua abrindo caminhos para novas (re)interpretações, mantendo-se intrigante, relevante e revelador no que nos convida a partilhar de suas experiências arrebatadoras à sombra do mal.
Aceitas o convite?
O autor
– Não tenha medo. Simplesmente ligue o gravador.
E, então, se estendeu sobre a mesa. O rapaz se encolheu, com o suor descendo sobre sua face. O vampiro pousou pesadamente a mão sobre o ombro do rapaz e disse:
– Acredite-me, não lhe farei mal. Quero essa oportunidade. É mais importante para mim do que pode lhe parecer agora. Quero que comece.
Anne Rice
Sumário
INTRODUÇÃO
Por uma dialética do vampiro à sombra do mal
PARTE I
LUGARES FIXOS: O VAMPIRO COMO ANTAGONISTA
CAPÍTULO 1
O caminho à literatura: fundações do vampiro literário como representativo do mal
CAPÍTULO 2
Poética das trevas: significativas incursões vampirescas oitocentistas
CAPÍTULO 3
Desejo e perversidade: a sexualidade como catalisadora do mal na prosa oitocentista
CAPÍTULO 4
O medo da cruz: construindo uma oposição binária entre o vampiro e o sagrado
CAPÍTULO 5
A extirpação do mal: derrotando o antagonista para reestabelecimento da ordem
PARTE II
LUGARES FLUIDOS: O VAMPIRO PARA ALÉM DO ANTAGONISTA
CAPÍTULO 6
Ares e olhares da contemporaneidade: o vampiro chega ao século XX
CAPÍTULO 7
De Outro
a Eu
: a experiência subjetiva de um inumano humanizado nas Crônicas Vampirescas
CAPÍTULO 8
O vampiro secularizado: para além do antagonismo religioso e através do Jardim Selvagem
CAPÍTULO 9
Trevas e luz: o vampiro fora das sombras, ressignificando a si
CAPÍTULO 10
Eu levarei para dentro de mim o que você é
: para além da superação do mal
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O vampiro de ontem, de hoje, do amanhã
REFERÊNCIAS
Jogos eletrônicos
Obras audiovisuais
INTRODUÇÃO
Por uma dialética do vampiro à sombra do mal
O homem estava perto de mim, e eu podia vê-lo por cima do meu ombro. Mas não havia reflexo dele no espelho! O ambiente inteiro atrás de mim era visível, mas não havia qualquer sinal de outro homem no mesmo, exceto eu mesmo.
Bram Stoker
Em seu livro Blood Read (1997), Joan Gordon e Veronica Hollinger² afirmam que assim como nossas representações de nós mesmos são construções transformadas com o tempo [...] o mesmo pode ser dito sobre as representações de nossos monstros³
(p. 3, tradução livre). O vampiro, enquanto monstro ficcional, produto do imaginário individual e também de uma época, está em constante processo de mutação – um incessante tornar-se
– que sempre estabelece um diálogo mais coerente com as novas questões e formas de pensamento suscitadas por ares contemporâneos a ele.
Isso significa dizer que, na literatura, os personagens vampiros se adaptam às particularidades do meio onde estão inseridos, sendo capazes de refletir sobre medos e angústias que afligem a humanidade em determinado momento. Ao longo do tempo, cada uma de suas encarnações revela nuances novas, lidando com questões significativamente diferentes da última. Mesmo atravessando os séculos, o vampiro é sempre atual.
Se olharmos para o panorama da literatura do século XIX, poderemos afirmar que o vampiro era, em poucas palavras, a própria personificação do mal
: isto é, de tudo aquilo que era considerado socialmente indesejado e proibido. O devir vampiro – um tornar-se liberto de códigos morais e éticos que norteiam o comportamento humano, empoderamento muitas vezes considerado perigoso – resultava em sua total exclusão social, tornando-se confinado às sombras do submundo. Nessas narrativas, o vampiro era maniqueisticamente enquadrado como o oposto do religioso, do sagrado, de tudo que representava o bem.
Essa configuração rígida do vampiro como maléfico
não surge, entretanto, espontaneamente na literatura oitocentista; ela tem suas origens delineadas em mitos presentes na Antiguidade Clássica, no folclore, e até mesmo na Bíblia Cristã, como observaremos ao longo deste livro.
Aqueles que, após uma vida má, morreram em pecado, aparecem em diversos lugares com o mesmo rosto que tinham em vida; que frequentemente provocam desordens entre os vivos, golpeando alguns, matando outros... Eles acreditam que esses corpos são abandonados ao poder do demônio, que os conserva, os anima e se serve deles para incomodar os homens (LECOUTEUX, 2003, p. 42).
O vampiro já se materializa na literatura de língua inglesa como o grande antagonista das histórias em que está inserido; nefasto e insidioso, ele precisa ser extirpado, sob a grande ameaça de que faça de nós – seres humanos perfeitamente cientes dos limites a que somos impostos e das consequências desastrosas de transgredi-los – um deles. Ao tornar-se uma figura recorrente na literatura, podemos perceber que o cerne dessa ideia é amplamente difundido, inicialmente na poesia e, pouco depois, na prosa.
Sua natureza transgressora – independentemente de suas ações individuais no meio social, sua existência em si indica a transgressão da maior das fronteiras impostas ao homem: nosso destino inexorável, a morte – sempre é filiada à ideia de mal, no que percebemos que "um tipo de rebelião latente é inerente a todos os vampiros – [...] e consiste numa recusa em viver sobre as regras rígidas da sociedade e [...] das leis que governam a espécie humana⁴" (SENF, 1988, p. 152, tradução livre).
Essa construção do vampiro como personificação do mal é, na verdade, um rico banco de dados que depõe sobre um espaço de tempo em que o estrangeiro era visto como um Outro
– o diferente de mim, diferente de nós – a ser temido; em que a sexualidade era considerada grande tabu e qualquer comportamento sexual que desviasse do socialmente esperado era estigmatizado e reprimido; em que os papéis de gênero eram bem definidos e totalmente inflexíveis. O vampiro se manifesta precisamente como catalisador desses que eram considerados males
sociais, borrando quaisquer fronteiras rígidas e confrontando diretamente a moral vigente.
Na contemporaneidade, entretanto, ainda que o vampiro mantenha-se à sombra do mal – essa natureza transgressora e predadora nunca é completamente negligenciada e fomenta desconfiança –, ele não mais somente inquieta, ele instiga; ele não apenas alarma, ele inflama. O medo deu lugar – ou melhor, foi fundido – às paixões. Ele se move, refutando o acorrentamento a quaisquer ideias pré-concebidas sobre si, inclusive à própria condição de ser fundamentalmente mal.
Tal processo parece estar intimamente ligado às próprias formas por meio das quais pensamos e representamos nossas ideias do mal; afinal, as figurações do mal nada mais são do que formas de depreender valores arraigados, sejam de cunho político-social, filosófico ou moral-religioso. Portanto, observar a forma pela qual o vampiro incita o apagamento de tais fronteiras e move-se para além de um confinamento em uma noção enrijecida como maligno
torna-se particularmente interessante, no que é sintomática das mudanças de pensamento e atitudes da sociedade.
Isso posto, um dos nossos objetivos aqui é justamente observar esse intricado processo de transfiguração do vampiro, inicialmente uma criatura sórdida, temida e emblemática do mal, para posteriormente tornar-se uma figura mais humanizada – falha, complexa, ambivalente – e até mesmo desejada. Para tanto, é fundamental contemplar diferentes formas de se refletir sobre a natureza do mal, considerando vieses religiosos e filosóficos. Olharemos também para os contextos específicos que se fizeram necessários para que tais mudanças pudessem ocorrer e as implicações de tal reenquadramento na literatura vampiresca.
A primeira das duas partes deste livro lidará, portanto, com a construção do vampiro como antagonista, com um breve olhar para suas origens mitológicas e folclóricas, passando por significativas incursões na poética oitocentista, até a chegada ao romance gótico de língua inglesa. Como norteadores desse primeiro momento, teremos dois textos clássicos da literatura vampiresca: Drácula (1897) e a novela Carmilla (1872), de Sheridan Le Fanu, considerada precursora temática do romance de Stoker. Ambas as obras não só demonizam a figura do vampiro, contrapondo-a a todo um sistema de valores considerados desejáveis, como também a posicionam firmemente em seu valor alegórico, como catalisadora de angústias próprias da sociedade vitoriana.
Tão presente no século XIX, a ideia do vampiro pensado estritamente em sua relação antagônica com o sagrado passou a