Vozes da tirania: Templos do silêncio
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Vozes da tirania - R. Murray Schafer
Vozes da tirania
FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP
Presidente do Conselho Curador
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Diretor-Presidente
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Superintendente Administrativo e Financeiro
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Conselho Editorial Acadêmico
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Milton Terumitsu Sogabe
Newton La Scala Júnior
Pedro Angelo Pagni
Renata Junqueira de Souza
Rosa Maria Feiteiro Cavalari
Editores-Adjuntos
Anderson Nobara
Leandro Rodrigues
R. Murray Schafer
Vozes da tirania
Templos de silêncio
Tradução
Marisa Trench de Oliveira Fonterrada
Revisão técnica
Cláudia de Oliveira Fonterrada
© 1993 R. Murray Schafer
Primeira edição publicada pela Arcana Editions,
Indian River, Ontário, KOL 2BO, Canadá
© 2019 Editora Unesp
Título original: Voices of Tyranny: Temples of Silence
Direitos de publicação reservados à:
Fundação Editora da Unesp (FEU)
Praça da Sé, 108
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Tel.: (0xx11) 3242-7171
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atendimento.editora@unesp.br
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD
Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva – CRB-8/9410
Editora Afiliada:
Sumário
Nota da tradutora
Prefácio
1 – Ursound
2 – Espaço acústico
3 – Três estudos documentais
A paisagem sonora dialética
A paisagem sonora fechada
A paisagem sonora aberta
4 – Três reflexões
A paisagem sonora ilusória
A paisagem sonora envidraçada
A paisagem sonora abarrotada
5 – A paisagem sonora canadense
6 – O designer da paisagem sonora
7 – A música e a paisagem sonora
8 – Rádio radical
9 – Musecologia
10 – Nunca vi um som
Nota da tradutora
Traduzir um livro de Murray Schafer é sempre uma aventura. E, como toda aventura, o trabalho toma caminhos imprevisíveis, nem sempre de fácil acesso ao leitor. Foi assim com a tradução de Vozes da tirania: Templos do silêncio. A diversidade dos temas abordados e do público a quem os textos são dirigidos levou a diferentes linguagens e estilos, o que, aliás, é comentado pelo próprio Schafer na Introdução
do livro. Essa variedade incide diretamente na linguagem adotada por ele ao abordar cada temática. Tópicos como a origem do mundo a partir do som, segundo mitos da Antiguidade e de culturas orais, inserem-se ao lado do exame de paisagens sonoras de lugares e épocas distintos, o que é realizado a partir da análise de pinturas, romances e depoimentos vários, incluindo ainda a apresentação de sonoridades típicas do Canadá rural e discussões acerca da influência de diferentes materiais de construção na constituição da paisagem sonora urbana. Além disso, há relatos das diferentes sonoridades presentes no ambiente campestre a cada mudança de estação, um fenômeno muito característico do Canadá; uma crítica ao rádio, que, segundo ele, é predominantemente voltado para o lucro, ao lado de sugestões utópicas e ousadas a respeito de como esse meio de comunicação poderia servir melhor à humanidade a partir de programas calcados em sonoridades naturais.
Dessa diversidade de assuntos resultam palavras e expressões peculiares, em certos momentos até mesmo difíceis de compreender. Por esse motivo, é preciso registrar que a tradução só foi possível graças ao auxílio amigo de várias pessoas: Doug Friesen, músico e educador canadense, discípulo de Schafer, que esclareceu muitas expressões típicas ou simbólicas empregadas pelo mestre; Mário Frungillo, percussionista, professor e autor do Dicionário de percussão (Editora Unesp, 2003), pelas preciosas informações a respeito dos instrumentos mencionados por Schafer na análise de um quadro de Brueghel e pelas sugestões para nomear tais instrumentos em português; Eleanor James, esposa de Schafer, pelos esclarecimentos prestados a respeito de uma expressão usada por ele, os quais constam da última nota de rodapé deste livro. Não posso deixar de agradecer a Cláudia de Oliveira Fonterrada pelas inúmeras sugestões e pelo cuidadoso trabalho de revisão técnica. A todos eles meus sinceros agradecimentos pela ajuda prestada.
Marisa Trench de Oliveira Fonterrada
Prefácio
Não
, disse automaticamente o vendedor, do centro de sua parede de livros. Como supervisor da sessão de autoajuda, ele estava rodeado por centenas de temas. Não.
E depois, um pouco mais solícito: Qual é o título mesmo?
.
"A afinação do mundo, repeti,
de R. Murray Schafer, S-C-H... Acho que está esgotado, mas pensei..."
Seção de Música.
Mas o livro não é sobre Música
, protestei, ele trata de sons, sons muito comuns, cotidianos.
Ah
, disse o vendedor. Esoterismo.
(Form, IV, 1991)
Quando A afinação do mundo foi publicado, em 1977, os vendedores de livros diziam que ele inaugurava um tema tão novo que eles não conseguiam encontrar um lugar apropriado para ele nas prateleiras. Se eu tivesse sido consultado, poderia ter sugerido que o pusessem na vitrine. Eu acreditava piamente que, se o público se conscientizasse da paisagem sonora, a poluição dos ruídos poderia logo ser derrotada e nos poríamos então no caminho do projeto acústico inteligente. O livro havia sido bem recebido por especialistas de uma grande variedade de disciplinas: arquitetura, urbanismo, geografia, engenharia acústica, música, comunicação e estudos ambientais. Esse fato era encorajador, ainda que eu não me desse conta de que isso apenas contribuía para o dilema dos vendedores de livros, e posso imaginar muitos diálogos semelhantes ao que foi citado antes, publicado recentemente por uma revista alemã. Ao mesmo tempo que A afinação do mundo foi traduzido para muitos idiomas, ele rapidamente desaparecia das lojas. Para tê-lo disponível em meu próprio país, tive de readquirir os direitos da edição canadense. Isso marcou o início de uma nova era, pois, desde então, passei a publicar o meu próprio trabalho pela Arcana Editions, uma empresa caseira, conduzida de minha própria casa. Naturalmente, hoje as coisas não circulam mais tão amplamente como antes, mas as publicações estão mais efetivamente disponíveis àqueles que as querem de fato. Agora, quinze anos depois de A afinação do mundo, apresento o presente volume, cujo escopo talvez seja menor do que o do primeiro livro, mas foi escrito não com menos esperança, pois a paisagem sonora não melhorou o bastante, e o problema do excesso de ruído em nossa vida permanece. A afinação do mundo foi um resumo da pesquisa conduzida pelo projeto Paisagem Sonora Mundial, da Universidade de Simon Fraser, em Vancouver, Canadá, entre 1970 e 1975. Desde aquela época, essa pesquisa tem sido ampliada por outros pesquisadores, principalmente no Japão, na França e no norte da Europa.
Em 1975, deixei Vancouver para viver em uma fazenda em Ontário. Sem mais recursos para pesquisa ativa, meu próprio trabalho acerca da paisagem sonora tomou a forma do ensino e da reflexão, e foram essas atividades que deram origem à presente coleção de ensaios, escritos no decorrer dos anos, desde 1977. Este é um dos dois livros que publiquei simultaneamente. O outro, Educação sonora, consiste em cem exercícios de escuta e criação de música, e é claramente direcionado para o ambiente escolar, com a esperança de sensibilizar uma geração de jovens para os sons ambientes e encorajá-los a pensar em caminhos para projetar futuras paisagens sonoras. O presente volume consiste de ensaios escritos para várias publicações, algumas acadêmicas e outras mais generalistas. Inclui-se aqui, também, material de palestras de um curso sobre paisagem sonora que ministrei, há alguns anos, na Universidade McGill. Isso explica a mudança de tom de capítulo para capítulo. Eu deixei assim mesmo, pois não penso que seja particularmente importante para este livro formar uma unidade ou um Gradus ad Parnasum dos estudos da paisagem sonora. Trata-se de uma série de enunciações, como os próprios sons, cada qual ocorrendo como seu próprio ponto no tempo e no espaço, alguns cuidadosamente preparados, outros mais espontâneos ou com argumentação apaixonada. Ter arranjado as coisas em uma progressão mais linear, ter dado a elas uma metodologia, teria sido render-me à cultura visualmente dominante e a seu amor por sistemas que se põem em oposição ao incontrolável mundo dos sons. Falarei mais a esse respeito no ensaio final, Nunca vi um som
.
Os pesquisadores da paisagem sonora têm sido acusados com frequência de dispor de metodologia ou de um plano coerente, como se o objetivo final fosse algum projeto enorme que abarcasse todos os sons do mundo, em uma Nova Ordem Acústica Mundial. Porém, como todos os sons existem no momento presente, qualquer tentativa dessa sorte seria completamente impossível. Tudo o que se pode fazer é alertar mais pessoas para o atual estado dos acontecimentos, com a esperança de que qualquer coisa que o futuro traga possa ser menos discordante do que o presente. O ruído é, quase sempre, uma mercadoria, fabricada e vendida com um propósito. Seja de uma sirene, de uma motocicleta ou de um rádio, tanto faz; por detrás de cada coisa, há uma instituição que procura tirar lucro da dissonância. Essas são as Vozes da Tirania. Contra elas, organizam-se os Templos de Silêncio, ambientes onde os sons são notados mais facilmente por conta de sua escassez. Há, aqui, exuberância, mas não desperdício. Pensamos em um templo, mas na realidade trata-se de um estado mental, o qual é preciso resgatar no mundo moderno.
Os ritmos e os sistemas de comunicação da paisagem sonora natural nos ensinam que Deus era, ou é, entre outras coisas, um engenheiro acústico de primeira linha. Simplesmente não há sons na natureza que destruam nossa escuta. Tenho pensado nisso com frequência enquanto ouço as mensagens interativas da paisagem sonora natural, na qual sempre há um tempo para soar e um tempo para escutar. Mesmo quando movo meus membros, fico maravilhado com quão silenciosamente eles se movimentam, e imagino que sons eles fariam se tivessem sido projetados nas fábricas da revolução industrial, ou nas linhas de montagem de Detroit. Pense no cuidado com que os ouvidos humanos foram criados, sensíveis o suficiente para ouvir os menores sussurros, mas não tão sensíveis para captar a colisão entre as moléculas de ar ou o som do sangue circulando pelo nosso corpo. Imagine se os ouvidos tivessem sido postos próximos à boca, onde eles captariam o estalar dos lábios e o bater dos dentes. Quanto às realizações de Detroit, o máximo que posso dizer do automóvel é que o som que ele produz se assemelha mais à flatulência. Como se fosse uma ironia antropomórfica, o sistema de exaustão está posicionado bem no lugar em que estaria o ânus, embora sem os músculos do esfíncter para controlar as emissões em reuniões públicas.
Por esse motivo, sempre retorno à natureza para buscar indícios do que o design da paisagem sonora poderia vir a ser, caso prestássemos mais atenção ao grande segredo revelado
da natureza, e menos aos circos da civilização. Alguns críticos acharam A afinação do mundo um livro regressivo justamente por essa razão, e me acusaram de sentimentalismo irreal. No entanto, noções como progressão ou regressão pertencem somente a sociedades viciadas em progresso, assim como a pobreza é uma noção que surge da raiva pela riqueza. Não acredito em progresso, no sentido de que aumentar a riqueza ou a tecnologia seja, em si mesmo, algo redentor. Quanto a regressar, não há como voltar a um ponto em que você nunca esteve; e há, acima de tudo, uma forma musical muito satisfatória, conhecida como ternária, na qual o material original retorna, com a significativa diferença de que ela se segue a um interlúdio contrastante.
Assim, esses ensaios exploram paisagens sonoras que tentei habitar, seja de corpo presente, seja pelo exame de documentos de outros lugares e outros tempos. O principal objetivo aqui é tentar encontrar pistas que possam ser úteis, de modo que, à medida que as futuras paisagens sonoras evoluam, elas possam tornar-se, mesmo que de forma limitada, mais satisfatórias e propícias a uma vida melhor, que todos nós esperamos encontrar adiante.
Indian River, verão de 1992.
1
Ursound
Ursound, o primeiro som, a força criativa original. Para compreender seu poder de criar e modelar, voltemo-nos aos mitos cosmogônicos. Estes tentam explicar como o mundo se relaciona com o cosmos e como o homem veio a se centrar no mundo. O mistério é obscuro, os mitos variam, e empregam-se símbolos para deixá-los mais claros. Além de sua importância para os dogmas religiosos, os mitos de criação podem também ser interpretados como tentativas de descrever o gradual esclarecimento da consciência. Como tais, eles dão pistas de como as faculdades da percepção se originaram ou, ao menos, de seu papel na relação entre as figuras humana e divina, cujas atividades se constituem no mais antigo ponto de referência que podemos estudar.
No Gênesis, aprendemos como o espírito de Deus
(que podemos conceber como respiração, pneuma ou vento) se moveu sobre a escuridão [...] das profundezas
, (uma metáfora para o inconsciente). Se o texto for lido com atenção, fica claro que o primeiro movimento não foi a distinção entre escuridão e luz, mas o anúncio acústico da intenção: E Deus disse
. Imaginamos essas palavras repetidas com ênfase, como uma série de vibrações poderosas, esculpindo o universo dentro da forma. Cada ato de modelar é prefaciado pelo mesmo
Figura 1
Os deuses forjam, de forma criativa, com um ruído sagrado
.
Fonte: Historia de Gentibus Septentrio-Natibus, Olaus Magnus, Basileia, 1567.
símbolo sonoro.¹ Somente depois de cada ação é que a experiência visual entra em jogo: E Deus viu que era bom
.
Tudo remete à colisão entre o vento e a água, o ponto criativo de onde o som se originou. Gostaríamos de nos aprofundar mais nesse mistério, mas é impossível; os dados não são precisos; e, de todo modo, como mostrei em A afinação do mundo, o simbolismo acústico do vento e da água é complexo e nada fácil de explicar. A relação entre Deus e as águas escuras que prefiguram a criação também não é clara, tanto que os audianistas e sampseanistas,² das primeiras seitas heréticas, acreditavam que Deus não criou as águas, pois em nenhuma parte do Gênesis lemos: E Deus disse: que haja água
. Santo Agostinho atacou essa ideia em Cidade de Deus, reafirmando a crença ortodoxa de que Deus, sendo o Todo, era tanto as águas quanto a respiração do ar que se precipitava sobre elas. Certamente, a Bíblia é clara ao nos contar que o som incorporado no encontro desses dois elementos era a voz de Deus. Será possível que a escuridão das profundezas
seja uma metáfora não somente para a ignorância do cronista, mas também para a inconsciência de Deus a respeito de seus próprios poderes? Então Deus também parece participar do desenvolvimento do instinto cego para a cognição, à medida que cresce a apreciação do homem pelo refinamento de Deus.³
Para os antigos semitas, a abóboda
, ou firmamento
, descrita em Gênesis I:6 era uma cúpula sólida que pôs as águas superiores do Céu em cheque. Assim, a infinitude do inconsciente tinha dois reinos, um superior e um inferior, entre os quais descansavam os elementos discerníveis que formavam o sutil e sempre amplo reino da consciência. O âmbito das distinções conscientes logo se revela nos seguintes versos: grama e ervas aparecem, depois, árvores, animais, peixes e, finalmente, o homem. Detalhes são acrescentados aos amplos traços originais, e então se cria um quadro do mundo que ninguém tem dificuldade em reconhecer. Procura-se, sem sucesso, explicações para uma série de discriminações acústicas que combinem com a descrição visual: a exclamação de prazer do homem ao se criar a mulher (2:23), a voz da serpente (3:1), ou da mulher (3:2), não são comparativamente evocativas daquilo que nossos olhos podem contemplar. Mas estaríamos errados ao pensar que o som, tendo funcionado tão criativamente na abertura do mito, fosse tão rapidamente relegado a uma posição secundária. De fato, ele continua a ser o meio pelo qual Deus e o homem se comunicam e, assim, mantém a posição de importância primordial ao longo de toda a Bíblia – mas devo voltar a esse ponto depois de comparar alguns mitos de criação provenientes de outras fontes.
Nos mitos de criação do Egito, os nomes dos deuses às vezes variam, mas uma ideia se sustenta em todos eles. Aton (por vezes, Rá) iniciou a criação emergindo das águas abissais (Nun) em uma montanha primeva na qual ele, em seguida, criou os outros deuses. Aton (Rá) diz: Eu sou o grande deus que criou a si mesmo
. Mas, em outras versões, lemos que foi Nun quem primeiro criou a si mesmo. De novo a ambivalência a respeito de a água ser o elemento criativo ou o elemento do qual a criação procedeu. Mas a diferenciação da substância primordial só começa quando Aton (Rá) nomeia as partes do seu corpo; desse nomear nascem os outros deuses.
Ele