Rainha Por Um Dia
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Rainha Por Um Dia - Barbara Cartland
CAPÍTULO I
1876
Gisela abriu a porta da loja do seleiro. Apesar de ter ido lá muitas vezes, sempre se sentia intimidada e constrangida por ter de penetrar num domínio que lhe parecia essencialmente masculino.
O velho Fred Tyler, o seleiro, a conhecia muito bem e ela não o temia. Desde que tinha idade suficiente para andar, dirigia-se à selaria pois sempre havia rédeas, barrigueiras ou correias de sela para serem consertadas. Toda vez que ia ao mercado, na cidadezinha de Towcester, seu pai fazia a mesma pergunta:
—Vai a Towcester? Preciso que o Tyler me conserte umas peças...
Fred Tyler não era apenas um seleiro. Gisela tinha a impressão de que em sua selaria concentravam-se todos os mexericos que não cessavam de circular na região.
Invariavelmente lá se reuniam muitos homens, sentados diante da enorme lareira, que ocupava toda uma parede da loja.
Passavam horas em ruidosa conversação, às gargalhadas, ou tomando cerveja nos canecões de estanho que o pequeno auxiliar de Fred Tyler ia buscar na hospedaria ao lado.
Quando Gisela entrava na selaria, as risadas se interrompiam imediatamente. Fazia-se um silêncio súbito, enquanto os homens a encaravam com ar de curiosidade. Assim que ela saía, as risadas voltavam a se fazer ouvir, ressoando em seus ouvidos muito tempo após sua partida.
Gostaria muito de saber o que Fred Tyler teria a dizer a seu respeito, pois várias vezes, antes de fechar a porta, ouvia comentários:
—Quem é ela?
—É a filha daquele fidalgo, Musgrave. Nasceu da sua primeira esposa, aquela mulher estrangeira e bonita, que morreu há dez anos, antes de ele se casar com Lady Harriet.
—Não sabia que Harriet Musgrave tinha uma enteada! Não deve ligar nem um pouco para a garota. Afinal de contas, as mulheres não são a especialidade de Harriet...
Essas observações eram recebidas com estrondosas gargalhadas, que faziam Gisela tremer e apertar o passo, afastando-se rapidamente da selaria. Talvez estivesse exagerando. Talvez estivesse deixando que a imaginação a dominasse. Os homens reunidos em torno da lareira não tinham o menor interesse em sua pessoa ou em quem poderia ser.
E na verdade, por que haveriam de se interessar? Ela parecia insignificante e desajeitada em seu vestido marrom, velho e amarrotado, tantas vezes costurado que já não sabia mais o que fazer com ele. Seu chapéu também estava ligeiramente fora de moda. Por que aqueles homens a encaravam tanto, quando ela entrava toda nervosa na selaria, encarregada de uma tarefa que o criado de seu pai poderia perfeitamente executar?
«Por que sou tão covarde?», indagou-se Gisela.
Aquilo se devia unicamente ao fato de viver confinada entre as quatro paredes de uma casa, o que aguçava seu sentimento de inferioridade.
Como as coisas mudavam quando ela andava a cavalo!
Naquele momento sentia-se em pé de igualdade com qualquer homem e até mesmo superior à maioria deles. Sabia que podia montar melhor do que eles e, por mais que suas roupas fossem modestas, não precisava envergonhar-se da maneira como conduzia um cavalo.
«Não tenho medo! Não tenho medo!», disse a si mesma, entrando na selaria.
A situação não era tão desagradável como Gisela imaginava.
Naquele dia havia apenas dois homens diante da lareira e ela os conhecia de vista. Ambos tiraram o chapéu, quando ela sorriu para eles, e
Fred Tyler veio ao seu encontro, esfregando as mãos no avental de couro.
Fred dava a impressão de que, aos poucos, transformava-se em mais uma peça de sua selaria. Era impossível imaginá-lo sem a presença de selas, rédeas, chicotes, barrigueiras e correias. Sua pele estava ficando da cor do couro e ele tornava-se cada vez mais corcunda, devido ao fato de trabalhar todo recurvado. Havia um brilho maroto em seu olhar e sua língua estava sempre afiada, o que o tomava um tipo muito especial, procurado por homens de todas as classes, quando vinham a Towcester.
—Bom dia, senhorita! Em que posso servi-la?
—Bom dia, Fred! Meu pai pediu-me que lhe trouxesse esta rédea. O couro precisa ser amaciado.
—Diga a ele que a consertarei dentro de vinte e quatro horas.
—Tenho um recado dele para você...— Gisela começou a falar.
Nesse momento a porta da selaria abriu-se.
—Seleiro!— disse uma voz autoritária.
Era um criado, trajado com grande apuro; suas botas estavam tão bem engraxadas que pareciam dois espelhos.
—O que deseja?
—Meu senhor quer lhe falar. Vamos lá para fora, e rápido! Não queremos ficar enfiados neste buraco o dia inteiro!
Fez-se um pesado silêncio. Os camponeses que conversavam diante da lareira pararam de falar e ficaram olhando o insolente criado. Fred Tyler deu a impressão de que hesitava. Estava acostumado a ser tratado, se não com respeito, pelo menos com certa polidez. Parecia ressentido, inclinado a revoltar-se contra aqueles modos pouco corteses...
—Diga a seu senhor que já vou— falou finalmente, apressando-se.
Gisela, paciente, esperou, tremendo dos pés à cabeça, pois a porta da selaria se abrira e o vento gelado de março expulsara todo o calor do ambiente.
O ano de 1876 começara com um frio intenso e muita neve.
O mês de fevereiro fora húmido e enevoado, e agora os ventos de março sopravam em toda a região, desenraizando as árvores e derrubando as chaminés das casas.
Ela tinha a sensação de que o inverno fora excecionalmente longo. De repente ansiava pelo sol da primavera e pelos dias quentes e ensolarados do verão. Perdida em seus pensamentos, não ouviu inicialmente o que os camponeses diziam, e pouco a pouco tomou conhecimento da conversa.
—Ela saltou aquela cerca perto do riacho como se fosse um passarinho!— dizia um velho—, sabe Jim, nunca vi ninguém igual a ela, e olhe que tenho idade!
—Eu também a vi, com esses olhos que a terra há de comer!— observou um homem de meia-idade—, apareceram muitas mulheres lá nas terras do Duque. Elas sabiam como andar a cavalo e que podiam competir até com um homem, mas como essa, nunca surgiu ninguém!
—É isso mesmo, rapaz! Até parece que ela faz parte do cavalo! A gente sempre achou que podia ensinar alguma coisa a esse pessoal que vem de fora, mas acho que somos nós que vamos acabar aprendendo...
Gisela sentiu curiosidade em saber de quem eles estavam falando. Não tinha caçado nos últimos dez dias, pois sua égua favorita machucara a pata e seu pai não lhe cedia os demais cavalos. Pelo visto ela agora tinha uma concorrente...
Ficou invejosa e ao mesmo tempo curiosa. Achava insuportável não poder montar e ter de permanecer em casa, ouvindo as repreensões de sua madrasta. Cabia a ela executar as tarefas mais aborrecidas da casa, quando preferia galopar pelos campos, saltar obstáculos e participar das caçadas. Gisela respirou fundo e nesse momento a porta se abriu.
—Entre, por favor, meu senhor, que lhe mostrarei um freio muito especial. O desenho é o que há de mais moderno e é idêntico ao que fiz para o senhor Duque.
Fred Tyler entrou, seguido por um cavalheiro muito distinto, obviamente um fidalgo. Gisela encostou-se na parede que ficava do outro lado da lareira, quase mergulhada na escuridão.
Procurava passar despercebida, embora fosse bem pouco provável que o cavalheiro prestasse a mínima atenção a ela.
Ele caminhava lentamente, mas com uma arrogância e um orgulho tais, que parecia querer dominar e colocar num segundo plano todas as pessoas presentes.
Era muito alto, estava sem chapéu e seus cabelos escuros brilhavam. Tinha ombros largos, usava uma casaca azul e uma elegantíssima gravata de seda. Ignorou completamente a presença dos dois camponeses ao lado da lareira, bem como Gisela, que se sentiu insignificante.
Examinou detidamente os freios que Fred Tyler lhe mostrava até que chegou a uma conclusão.
—São pesados demais.
—Mas garanto-lhe, milorde, que...
—São pesados demais! Deixe-me ver outros!
Havia algo de ríspido na maneira como ele se exprimia. Pelo visto, era um homem que não admitia ser contrariado e que gostava de fazer as coisas da maneira que melhor lhe aprouvesse.
—Este freio, milorde, é o melhor que fiz até hoje.
—Está bem. Fico com ele.
O fidalgo deu as costas a Fred e retirou-se da selaria. Era tão alto que sua cabeça quase encostava no teto. A loja estava inundada por sua presença, sua importância, seu ar autoritário.
Ele chegou até a porta e Gisela achou que teria de abaixar a cabeça, a fim de poder sair. Fred abriu obsequiosamente a porta e assim que ele se afastou, a jovem suspirou fundo de alívio.
—Leve o freio até a carruagem, seleiro, e rápido com isso!— ordenou o insolente criado.
Gisela viu o velho seleiro embrulhar o freio, revoltado com aquele tratamento. Apressou-se o mais que pôde e quase tropeçou, quando caminhava para a porta.
Foi então que Gisela experimentou uma raiva intensa apoderar-se dela. Estava indignada, mas, ao mesmo tempo, não conseguia explicar a si mesma a natureza de suas emoções.
Conhecia de sobra os modos altivos e insolentes da nobreza, mas havia algo no homem que acabara de entrar na selaria que lhe provocava uma estranha confusão de sentimentos.
Pela primeira vez perguntou-se com que direito tinha sido ignorada, enquanto o fidalgo era atendido. Não somente era uma mulher, mas pertencia à nobreza da região. Fazia parte da «classe dirigente», expressão favorita de seu pai, que a empregava com muita frequência.
«A classe dirigente!», ela quase riu alto, ao refletir sobre a ironia contida naquela expressão. Justamente ela, que era pouco mais do que uma criada em sua própria casa, que devia servir sua madrasta e suportar insultos e explosões de raiva, sem se queixar. No entanto, pelo que sabia, tinha o sangue tão azul quanto aqueles que eram objeto de respeito e atenção.
Agora, no entanto, parecia-lhe que até mesmo Fred Tyler e os lojistas da cidade faziam questão de ignorar tudo aquilo.
Tomada por um súbito impulso, seguiu o seleiro até a rua e nesse exato momento, a carruagem afastou-se.
Gisela não deixou de notar o esplendor dos dois cavalos castanhos que a puxavam, do cocheiro, com sua ampla capa de lã, do criado insolente, sentado a seu lado, e do belo brasão que enfeitava as duas portas. Notou igualmente aquele rosto moreno e arrogante, o nariz reto e bem-feito, os lábios cheios e sensuais, o queixo voluntarioso... Em breve tudo aquilo não passaria de uma visão longínqua.
Fred Tyler não reparou quando Gisela passou por detrás dele e virou na próxima rua. Havia deixado de fazer uma encomenda, mas que lhe importava? De certa forma isso só serviu para acentuar o ressentimento que ela experimentava contra aquele homem desconhecido, tornando-a muito consciente da própria inveja.
Não havia nenhuma carruagem para levá-la até sua casa.
Tinha vindo à cidade no velho cabriolé da família, que era usado apenas para os dias de feira ou em pouquíssimas outras ocasiões. Sua madrasta ordenara que o cabriolé fosse ao outro lado de Towcester, para buscar certas encomendas, e Gisela dissera que voltaria a pé, pois não queria ficar indefinidamente à espera do veículo.
Teria de andar uns dois quilômetros. A propriedade de seu pai ficava nos arredores da cidade; mas ela estava acostumada a caminhar. Raramente punham a carruagem à sua disposição.
Nem mesmo recebia permissão para caçar, a menos que conviesse a seu pai usá-la no lugar dos criados, a fim de exercitar os cavalos.
Enquanto percorria a estrada enlameada, segurando a barra da saia para que não se sujasse, ao mesmo tempo em que agarrava o chapéu para que não fosse levado pelo vento, Gisela sonhava apenas em caçar. De repente lembrou-se da conversa dos dois camponeses.
Quem seria aquela mulher que saltava como um pássaro?
Logo em seguida, embora desejasse o contrário, pôs-se a pensar no fidalgo que aparecera na selaria. De onde surgira? Será que o encontraria caçando algum dia? Havia algo de irritante naquele homem, tão envolvido com o próprio orgulho. Esperava nunca mais vê-lo. Mas... por que alimentava sentimentos tão hostis em relação a ele? Talvez ele tivesse boas razões para ser orgulhoso.
Ela, por exemplo, era bastante altiva, mas, segundo sua madrasta, não tinha absolutamente do que se orgulhar.
Gisela suspirou. Não era sempre que se abandonava à autopiedade, mas de vez em quando era impossível deixar de comparar sua situação com a das jovens de sua idade. Dentro de três meses completaria vinte e um anos e seria maior.
Sorriu com certo desprezo ao pensar naquilo. De que lhe adiantaria tornar-se maior de idade? Teria pela frente dias e dias de árduo trabalho, meses de servidão, anos, durante os quais seria impedida de ir onde quisesse ou de fazer o que bem lhe aprouvesse!
Por que sua madrasta a odiava tanto? Gostaria de saber a resposta. Certa vez chegara a questionar Lady Harriet.
—Por que a senhora me odeia desse jeito?— perguntou, em meio às lágrimas, após ser castigada por algo que não tinha feito.
—Odiá-la? Não odeio uma criatura tão estúpida quanto você. Por que deveria odiá-la? Não vale a pena, minha cara. Você é por demais insignificante para que eu não sinta em relação a sua pessoa algo mais do que uma profunda irritação.
Estúpida e insignificante! As palavras a magoavam, pois Gisela dizia a si mesma que eram verdadeiras. E, no entanto, que oportunidades teve para ser diferente? Lady Harriet a atormentava noite e dia.
Gisela podia negar aos outros que detestava aquela mulher, mas era impossível mentir para si mesma.
Quanto a seu pai, há muito ele desistira de protegê-la. Ele, na verdade, evitava de todas as maneiras discutir com sua segunda esposa. Quando não estava caçando, entregava-se à bebida.
Naqueles momentos queria apenas esquecer as brigas domésticas, a pobreza ou tudo que pudesse perturbá-lo ou incomodá-lo.
—Papai, por que bebe tanto?— perguntou-lhe Gisela certa vez em que se encontravam a sós e ele mostrava-se de bom humor.
—Que mais resta a um homem que envelheceu? Graças a Deus seu avô teve o bom senso de me deixar uma adega repleta de bebidas...
—Mas isso não lhe faz bem, papai.
—Para mim o que faz bem é estar em paz com Deus e com os homens. Garanto-lhe, Gisela, que após duas garrafas deste excelente vinho do Porto fico em paz com o próprio demônio!
Lady Harriet não aceitava aquelas explicações com facilidade.
Geralmente suas brigas faziam a casa tremer e Gisela preferia recolher-se a seu quarto, em vez de ouvir os insultos que eles trocavam.
—Seu bêbado, seu inútil!— gritou Harriet Musgrave, certa vez em que ele a acusou de ser infiel—, acaso imagina que me contento em ficar enfiada nesta casa, vendo-o encharcar-se de bebida? Sou jovem, quero aproveitar a vida, divertir-me! Não me casei para ser a enfermeira de um velho.
Gisela não ouviu a resposta de seu pai, mas na noite seguinte, quando voltou da caça, ele bebeu exageradamente, trancado na biblioteca, enquanto na sala ao lado Harriet flertava com um rapaz conhecido.
À medida que os anos passavam Harriet encontrava mais dificuldade em chamar a atenção sobre sua pessoa. Nunca fora muito bonita, pois tinha traços carregados, uma pele sem brilho e um corpo desajeitado, que já chegara a ser descrito por alguém como «um poste com cintura...»
Harriet era a quinta filha de uma antiga família nobre e por isso demorara a encontrar um marido. Lorde Musgrave, viúvo recente, surgira como a derradeira oportunidade. Não havia a menor dúvida de que ela o amava, assim que o desposou. Na verdade, teria se apaixonado por qualquer homem, contanto que ele olhasse em sua direção.
O casamento, entretanto, não lhe proporcionara aquelas emoções ardentes e arrebatadoras pelas quais seu corpo tanto ansiava. Não gostava de caçar, pois