Antologia
De Rui Barbosa
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Sobre este e-book
Esta Antologia, preparada por Luís Viana Filho, traz alguns dos mais conhecidos textos de Rui Barbosa. São páginas cuja vitalidade provém da sinceridade e, não raro, da bravura com que foram escritas ou proferidas.
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Antologia - Rui Barbosa
Livros para todos
Esta coleção é uma iniciativa da Livraria Saraiva em parceria com a Editora Nova Fronteira que traz para o leitor brasileiro uma nova opção em livros de bolso. Com apuro editorial e gráfico, textos integrais, qualidade nas traduções e uma seleção ampla de títulos, a Coleção Saraiva de Bolso reúne o melhor da literatura clássica e moderna ao publicar as obras dos principais autores brasileiros e estrangeiros que tanto influenciam o nosso jeito de pensar.
Ficção, poesia, teatro, ciências humanas, literatura infantojuvenil, entre outros textos, estão contemplados numa espécie de biblioteca básica recomendável a todo leitor, jovem ou experimentado. Livros dos quais ouvimos falar o tempo inteiro, que são citados, estudados nas escolas e universidades e recomendados pelos amigos.
Com lançamentos mensais, os livros da coleção podem acompanhá-lo a qualquer lugar: cabem em todos os bolsos. São portáteis, contemporâneos e, muito importante, têm preços bastante acessíveis.
Reafirmando o compromisso da Livraria Saraiva e da Editora Nova Fronteira com a educação e a cultura do Brasil, a Saraiva de Bolso convida você a participar dessa grande e única aventura humana: a leitura.
Saraiva de Bolso. Leve com você.
Sumário
Prefácio
A pátria
Deus
Elogio dos inimigos
A juventude e o ideal
A oração do paraninfo
O sertão
A boa e a má árvore
As andorinhas de Campinas
O reino da mentira
A esfola da calúnia
A política e a calúnia
O eco
Política e politicalha
Santelmo e fogo-fátuo
Estadistas sem opinião
Os clarins da alvorada
Hino à liberdade
O sino da liberdade
Direito e liberdade
Liberdade!
A mão do Senhor
A liberdade e o poder militar
O Diário da Bahia
As estátuas
O jogo
O vício
Pai e filho
A oração do filho
Visita à terra natal
O abolicionismo
Thálassa! Thálassa!
O militarismo
Davi e Golias
A força do ideal
A paixão da verdade
Ontem e amanhã
O bem e o mal
O areópago da República
A mão do justo
O velho almirante
A justiça e a lei
A lei
Igualdade perante a lei
A justiça e o Estado
A privação da justiça
A lei de Caim
A paz
As duas guerras
Ísis e Set
A paz e a lei
Juristas e retóricos
A justiça e a morte
Elogio da eloquência
A tribuna
Réplica
A felicidade
Os precitos de Dante
A velhice
O perdigueiro e o tatu-açu
Discurso dos apólogos
A patetice nacional
Os sete felizardos
Jeca Tatu
Os traga-espadas
O minhocão
Machado de Assis
Que é a política?
O busto de Washington
A lição das esquadras
Hino a Pernambuco
A cruz e o mar
Surrexit
A difamação
A tragédia de Monza
O dever do povo
A candidatura militar
Sobre o autor
Prefácio
Rui não se tinha na conta de artista, já que além de lhe haver faltado tempo para esculpir pacientemente, como acreditava deverem fazer os que se propõem à criação do belo, não se servira da pena e da palavra senão como instrumento espontâneo de luta
. Nunca tive tempo de ser artista
, diria, e ambicionar entre artistas a admiração.
Quanto se enganava! É que de tal modo o empolgara a luta, numa vida inteira de ação, peleja e apostolado
, que tudo o mais lhe parecia secundário. De fato, embora amasse as boas letras por um prazer de espírito, não estava nelas a razão de ser do bravo e infatigável batalhador, que, de certa feita, numa frase da qual ressumia certo orgulho, repeliria se lhe atribuíra mera existência de um homem de letras
.
A verdade, porém, é que artista nascera, e artista seria até à morte. Leia-se, por exemplo, esta página escrita em plena mocidade, e na qual, morto o pai, se defende dos ataques dos ultramontanos: Eu conheço a ponta desse estilete, que fere em nome do Evangelho. É sempre o mesmo aço. É o mesmo sistema jesuítico. É a mesma praxe de devassar câmaras de moribundos para extorquir à fraqueza abjurações inconscientes ou transfigurar em conversões imaginárias atos comuns de piedade cristã. É a mesma arte com que, sob a invocação dos mortos, buscam dilacerar aos que lhes foram em vida mais estremecidamente caros.
É um trecho tomado quase ao acaso. Mas, não encontrarão aí os bons ouvidos aquele mesmo ritmo dos períodos ciceronianos? É que, trazido do berço, aperfeiçoado através das leituras, Rui, malsaído da adolescência, já o incorporara à sua maneira de falar e escrever.
Teria o artista, no entanto, dado de si tudo quanto podia? Joaquim Nabuco, que bem o conhecia dos bancos acadêmicos, nunca se conformou com o fato de Rui não se haver encerrado na torre de marfim das belas-letras, a fim de nesse campo produzir tudo quanto podia produzir. E escrevia Nabuco: ninguém sabe o diamante que ele nos revelaria, se tivesse a coragem de cortar sem piedade a montanha de luz cuja grandeza tem ofuscado a República, e de reduzi-la a uma pequena pedra
. Por certo, desejava-o uma espécie de Flaubert, que despendeu dez anos na composição de Salambô. Infelizmente, porém, esta pequena pedra
Rui não a lapidou. Mas, apesar disso, que brilho, que limpidez nos diamantes polidos em pleno fragor das batalhas, e que bem mostram haver sido ele não apenas um puro homem de letras, mas, bem mais do que isso, um dos maiores entre os maiores. Tão grande que não será de admirar se com o passar do tempo, esmaecida a lembrança dos feitos e dos triunfos do homem público, como é frequente na história dos povos, dele venham a ser conservadas, principalmente, na memória das gerações, as páginas talhadas pelo artista. De Cícero, por exemplo, há muito que as obras do orador e do escritor se tornaram as colunas mestras da sua imortalidade. Também de Chateaubriand poder-se-á dizer que, se despojado das suas obras, bem poucos se lembrariam do ministro ou do embaixador. E Lamartine, sem as musas, não seria evocado senão pelos investigadores da história da França. Não foi, portanto, sem razão que João Mangabeira imaginou pôr na boca da História estas palavras que respondem ao próprio Rui: Não sacrifiques a tua glória nem à tua popularidade, nem à tua vaidade! O que resta de ti e te faz imortal, são as páginas de arte que escreveste, na pureza de um estilo, cuja vernaculidade em teu idioma jamais foi ultrapassada, na beleza de uma forma em língua portuguesa até hoje inigualada. O que te imortaliza não são as tuas campanhas, tuas lutas ou teus sacrifícios. Não é tua ação no Governo, no Parlamento, nos comícios ou nos tribunais, o que perpetua teu nome na glória. Não. Aí tudo é frágil, efêmero, caduco. O que subsiste e subsistirá de ti são as obras-primas que escreveste ‘no mármore dessas canteiras impolutas, onde Renan, o quase único, talhava, na pureza das formas consagradas, as finas linhas do seu pensamento’. O traço principal da tua carreira, a função primaz da tua vida, não é a do homem de Estado. Tu te chamas Rui, e tu és artista.
De fato, ele o foi, e insuperável. Poderia, contudo, ser ainda maior, conforme antevia Nabuco? A pergunta não pode ser respondida. Cabe, no entanto, assinalar que a indagação de Nabuco faz lembrar aquela outra formulada pelo pai de Rui a um amigo junto ao qual ouvia um discurso do filho, em 1874: — Até onde irá o Rui?
Dir-se-ia que, diante daquela força imensurável, os homens, deslumbrados, perguntavam-se que alturas poderia alcançar.
Mas, por mais que nos encantem e seduzam as belezas da forma, não esqueçamos que o que dá vida às páginas desta Antologia é a sinceridade, não raro a bravura com que foram escritas ou proferidas, e que, sem dúvida, constituíram a própria razão da sua existência. É que Rui, tal como dizia Vieira do Batista, pregava tanto aos ouvidos quanto aos olhos, isto é, pregava com o exemplo. Nas Memórias de além-túmulo, diz Chateaubriand que dos contemporâneos era ele quase o único a se parecer com as próprias obras. De Rui poder-se-á afirmar que ninguém mais do que ele se assemelhará às suas obras. Realmente, em cada qual, como se nos surgisse à frente em corpo inteiro na época em que a talhou para a imortalidade, o que sentimos é o perpassar daquela alma grandiosa, por vezes áspera, quase selvagem, mas inspirada pelos mais altos ideais do seu tempo. Uma alma indômita, em dadas ocasiões impiedosa e em outras tantas alagada de sentimentalismo, e que se nos revela em todas as suas escalas sentimentais, numa riqueza e segurança de tons peculiares aos mestres da palavra escrita ou falada. Desde o mais terno afeto filial a se desdobrar num suave murmúrio de admiração e reconhecimento, até as mais altas notas da cólera, a cólera dos deuses, que sidera aqueles contra os quais se volta aquela força da natureza.
Realmente, quer como orador, quer como escritor, Rui é desses para os quais a língua não tem segredos. Fere todas as teclas, e para cada uma delas possui a nota própria. Como ninguém ele conhece a medida e o tom peculiares a cada tribuna — a do foro, a do parlamento, a dos comícios, ou a das academias — do mesmo modo que o escritor, quer ao compor simples artigos de jornal feitos para viverem um dia, mas que acabam eternos, quer ao deduzir as razões do advogado ou fixar o pensamento do estadista, tira da palavra escrita todas as belezas, todas as harmonias que é possível. Ora é severo, ora suave, ora irônico, ora sarcástico. E é sempre perfeito. Acusaram-no de prolixo. Mas, quanto há nisso de injusto bem pode avaliar quem é obrigado a mutilá-lo — como é o caso das Antologias — e a cada passo não sabe como fazê-lo sem o sacrifício da beleza do monólito em que está talhada a obra magnífica. Nos discursos de Demóstenes, dizia Quintiliano, não havia uma palavra a tirar, e nos de Cícero não existia nenhuma a acrescentar. Nos de Rui nada há para suprimir, pois nada se perde; e nada há a adicionar, pois tudo está dito.
Enfim, para que o leitor bem possa sentir o artista na diversidade das suas obras, buscamos reunir aqui trechos de todos os gêneros. Ao lado de A justiça e a morte
encontrar-se-á O perdigueiro e o tatu-açu
. Ao lado de As andorinhas de Campinas
está a página sobre O jogo
. E assim uma tentativa no sentido de apresentar o orador e o escritor no que ele tem de mais característico da sua grandeza, e isso numa escolha que foi menos nossa do que da crítica, das opiniões generalizadas, e que procuramos seguir tanto quanto possível. Por certo haverá omissões, e não faltará quem descubra demasias ou impropriedades. Falhas que serão nossas, e das quais antecipadamente nos desculpamos. Até porque, neste trabalho, somente os erros são nossos.
¹L.V.F.*
A pátria
A pátria não é ninguém, são todos; e cada qual tem no seio dela o mesmo direito à ideia, à palavra, à associação. A pátria não é um sistema, nem uma seita, nem um monopólio, nem uma forma de governo: é o céu, o solo, o povo, a tradição, a consciência, o lar, o berço dos filhos e o túmulo dos antepassados, a comunhão da lei, da língua e da liberdade. Os que a servem são os que não invejam, os que não infamam, os que não conspiram, os que não sublevam, os que não delatam, os que não emudecem, os que não se acobardam, mas resistem, mas esforçam, mas pacificam, mas discutem, mas praticam a justiça, a admiração, o entusiasmo. Porque todos os sentimentos grandes são benignos, e residem originariamente no amor. No próprio patriotismo armado o mais difícil da vocação, e a sua dignidade, não está no matar, mas no morrer. A guerra, legitimamente, não pode ser o extermínio, nem a ambição: é simplesmente a defesa. Além desses limites, seria um flagelo bárbaro, que o patriotismo repudia.
Mas o patriotismo, praticamente, consiste, sobretudo, no trabalho. Laboremus, murmurava, expirando, o imperador romano. Laborate, estão a dizer-vos, na sua austera alegria, todos os cânticos desta solenidade, seus emblemas, seus quadros, as recordações de vossa vida entre estes muros, que aqui ficam, na constância da sua imobilidade, a hospedar outras gerações, e assistir a outras despedidas. ²
Deus
...Deus é a necessidade das necessidades, Deus é a chave inevitável do Universo, Deus é a incógnita dos grandes problemas insolúveis, Deus é a harmonia entre as desarmonias da criação. Incessantemente passam, e hão de passar no vórtice dos tempos as ideias, os sistemas, as escolas, as filosofias, os governos, as raças, as civilizações; mas a intuição de Deus não cessa, não cessara de esplender, através do eterno mistério, no fundo invisível do pensamento, como o mais remoto dos astros nas profundezas obscuras do éter. A realidade suprema, de onde nos cai perenemente esse raio de luz, é inextinguível. Mas de tão longe nos vem ele na imensidade do existir, que, ainda quando momentaneamente lhe pudéssemos supor apagado o foco remotíssimo, primeiro pereceria a humanidade que deixasse de ver aceso na estrema do horizonte esse ponto luminoso.
Deus, que fizestes estas montanhas, o globo que as aguenta, esses mundos que nos cercam, esses céus que nos envolvem; que esparzis as estrelas do firmamento e as flores da terra; que resplandeceis na santidade dos justos, e trovejais na consciência dos maus; que semeais na inocência das crianças, e colheis na experiência dos velhos, derramai a vossa misericórdia sobre esta casa, sobre aqueles que a povoam no trabalho, sobre este enxame de esperanças, que aqui continuamente se renovam, sobre essa vergôntea pequenina de minha alma, que aqui fica entregue aos vossos apóstolos, mas ainda mais sobre os que hoje os deixam, galardoados com os primeiros graus do saber, para se afrontar com outras lidas. Vós, que tendes nas mãos a força, a vida e a bondade, medrai-os na bondade, na vida e na força. Incuti-lhes nos corações as virtudes que formam o homem e as virtudes que criam os povos. Retende-os na fidelidade à vossa crença e aos vossos mandamentos, à inspirada palavra de seus mestres e aos bons exemplos de seus pais. Ponde-lhes n’alma, com o amor da justiça e da liberdade, o sentimento da tradição e do respeito, o instinto da disciplina e da ordem. Misturai-lhes com a ternura pelos filhos a memória dos antepassados, esse gênero de gratidão, imarcescível no seio das nações robustas. Dai-lhes, no perigo das lutas e na amargura dos sofrimentos, o heroísmo da coragem, o heroísmo da resignação, o heroísmo da humildade, o heroísmo do reconhecimento aos vossos benefícios entre as calamidades que os escurecem aos olhos da fraqueza humana. Ungi-os no espírito de verdade, para amarem o estudo, no espírito de regeneração, para detestarem o abuso, no espírito de obediência, para guardarem a lei, no espírito de solidariedade, para se associarem pelo bem, no espírito de resistência, para contrastarem a opressão. Ouvi-nos, Senhor, na vossa infinita generosidade, cujos tesoiros não diminuem, por mais que se despendam em maravilhas com a criação, em liberalidades com as criaturas. Para que estas se venham a multiplicar em descendentes, que os sigam no vosso caminho, e mais uma geração e outras e outras passem, contemplando, abençoando e servindo o Criador benfazejo de todas as coisas. ³
Elogio dos inimigos
Desde que o tempo começou, lento, lento, a me decantar o espírito do sedimento das paixões, com que o verdor dos anos e o amargor das lutas o enturbavam, entrando eu a considerar com filosofia nas leis da natureza humana, fui sentindo quanto ela necessita da contradição, como a lima dos sofrimentos a melhora, a que ponto o acerbo das provações a expurga, a tempera, a nobilita, a regenera. Então vim a perceber, vivamente, que imensa dívida cada criatura da nossa espécie deve aos seus inimigos e desfortunas. Por mais desagrestes que sejam os contratempos da sorte, e as maldades dos homens, raro nos causam mal tamanho, que nos não façam ainda maior bem. Ai de nós, se esta purificação gradual, que nos deparam as vicissitudes cruéis da existência, não encontrasse a colaboração providencial da fortuna adversa e dos nossos desafetos. Ninguém mete em conta o serviço contínuo, de que lhes está em obrigação.
Direis, até, que, mandando-nos amar aos nossos inimigos, em boa parte nos quis o divino legislador entremostrar o muito, de que eles nos são credores. A caridade com os que nos malquerem, e os que nos malfazem, não é, em bem larga escala, senão paga dos benefícios, que, mal a seu grado, mas muito de veras, eles nos granjeiam.
Destarte não equivocaremos a aparência com a realidade, se, nos dissabores que malquerentes e malfazentes nos propinam, discernirmos a cota de lucro, com que eles, não levando em tal o sentido, quase sempre nos favorecem. Quanto é pela minha parte, o melhor do que sou, bem assim o melhor do que me acontece, frequentemente acaba o tempo convencendo-me de que não me vem das doçuras da fortuna propícia, ou da verdadeira amizade, senão sim que o devo, principalmente, às maquinações dos malévolos e às contradições da sorte. Que seria, hoje, de mim, se o