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Fim de festa
Fim de festa
Fim de festa
E-book146 páginas1 hora

Fim de festa

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Sobre este e-book

2ª edição ampliada

Depois da festa, a névoa da ressaca. A surpresa ao acordar ao lado de alguém, a frustração do desencontro e da ausência, a euforia por um amor novo, o perigo na estrada, a falsa amizade. Nestes contos, a vida segue por variados caminhos depois do buquê, do carnaval, do apagar das luzes e da saudade que geme durante a madrugada.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento26 de jun. de 2020
ISBN9788561249816
Fim de festa

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    Pré-visualização do livro

    Fim de festa - Renata Wolff

    Créditos

    Ela estreitou os olhos ao tragar o cigarro e soprou por entre os lábios comprimidos a fumaça que se misturou ao ar já abafado das seis da manhã. O sol recém-saído escondia-se e, lá embaixo, na avenida, sons do trânsito começavam a se anunciar: pneus acelerando no asfalto, freada, buzina breve. Debruçada ao parapeito, ela afastou do rosto uma mecha de cabelo em desalinho enquanto trocou de posição as pernas e manteve o corpo despido apoiado na janela. Ouviu o toque de um celular no quarto, uma, duas, três vezes, até ser atendido por um sussurro. Tragou de novo, fundo. Exalou devagar e coçou o pescoço na marca arroxeada. Escutou a porta do quarto abrir com um estalo, seguido de passos cuidadosos no parquê antigo. Só se virou quando ele disse, baixo, como se envergonhado:

    — Acordou cedo...

    Ele já subia as calças e fechava o zíper. Passou as mãos no cabelo. Sorriu, mas era um ensaio de sorriso que morreu depressa.

    — Tem café — ela avisou, com um gesto para a própria xícara, já vazia, no chão.

    — Tá. Eu... — ele hesitou, olhou para a cozinha e de volta para ela. — Obrigado, mas eu... vou indo.

    Ela molhou os lábios com a língua. Bateu cinzas do cigarro no cinzeiro equilibrado no parapeito. Ele apontou, ligeiro, algo constrangido, para os seios à mostra.

    — Não te enxergam daqui?

    Ela tornou a fumar. Soltou uma baforada.

    — Era ela?

    Ele não respondeu.

    — Você não vai cancelar nada, né?

    Ele sacudiu a cabeça, esfregou as costas da mão nos olhos. Ela deixou o cigarro no cinzeiro e continuou:

    — Aquela conversa toda de ontem...

    — É que te encontrar do nada lá naquele bar... E depois aquele monte de vodca.

    — Vai culpar a bebida?

    — Não tô culpando ninguém.

    — Ah, vai pro inferno.

    Ele se aproximou. Correu os dedos por alguns fios do cabelo dela, desde a testa até a nuca, e roçou sua pele. Ela fechou os olhos, inclinou a cabeça na direção do afago. Achegou-se mais, encostou a testa na dele, segurou seu rosto. Beijou-o, procurou sua língua, agarrou-se ao pescoço em um enlace estreito, enfiou as mãos no cabelo encaracolado. Insinuou a coxa por entre as pernas dele e sentiu-o inteiro contra si. Ele pousou as mãos na sua cintura, correspondeu ao beijo, parou quando o início da marcha nupcial soou em seu jeans. Pegou o telefone, leu a mensagem de texto, devolveu-o ao bolso de trás. Ela permaneceu abraçada, tentou beijá-lo de novo. Ele recusou e esquivou-se. Ela mordeu o canto da boca. Estudou a expressão dele, largou primeiro o pescoço, abaixou as mãos para o peito, acariciou-o, soltou-o. Distanciaram-se. Ela mirou o piso, lamentou não ter vestes para esconder as mãos. Ele se afastou e deixou a sala. Voltou do quarto depois de um minuto, vestindo a camisa. Já calçara os sapatos. Encarou-a quieto. Ela virou as costas, sentiu o coração acelerar, não queria vê-lo sair.

    — Tchau, então.

    Ouviu passos, a porta do apartamento fechou com um tranco. Suspirou, o rosto contraído, teve raiva da vontade de chorar. Ergueu o cigarro do cinzeiro, ia levá-lo aos lábios, escutou uma vibração vinda do celular atirado ao sofá sobre o vestido. Buscou-o. Na tela, as palavras Tá acordada?. Escreveu em resposta: Sim.

    Eu também. Ansiedade de noiva. Um bonequinho feliz. Vem comigo na loja de vestidos hoje às dez?. Outro bonequinho.

    Releu o texto. Hesitou um instante, digitou:

    Vou me atrasar.

    Enviou a mensagem. Desligou o celular e jogou-o de volta ao sofá: a casa em silêncio, o dia sem brisa, o barulho do trânsito ainda esparso demais. Distante demais. O aroma do café na cozinha se dissipava em nada. Ela tornou a se debruçar à janela, arrancou a última tragada e lançou a bagana longe com a ponta dos dedos. Inclinou-se à frente para vê-la despencar do décimo segundo andar até se perder no pavimento sujo do centro. Equilibrou-se na ponta dos pés.

    Sérgio segurou a taça de champanhe próximo à base, tomou um gole, descansou-a na mesa e girou a haste entre os dedos. Continuou fingindo prestar atenção no homem sentado à esquerda, que esbravejava contra o governo, falava de assistencialismo, de cotas e de compra de votos; depois que Sérgio simulou não escutá-lo por sobre a música disco, ao invés de desencorajar-se, o colega trouxe a cadeira para perto e passou a gritar no seu ouvido que nem se consegue mais empregada porque todo mundo ganha bolsa. Foram colocados na mesma mesa da recepção do casamento e, por azar, eram colegas na repartição, Sérgio em um cargo inferior. Quando se sentaram, o homem começou a falar do jantar na casa da chefia, Sérgio disse que não havia sido convidado, e ele respondeu com uma risada e um tapinha nas costas: Era um grupo seleto, você não ia se sentir à vontade. Ele reclamou então das eleições, da política, e agora emendava dizendo que já mandara a filha mais velha para morar nos Estados Unidos, ver o que era o primeiro mundo, esquecer esta bosta de país. Sérgio meneava a cabeça, emitia um grunhido de vez em quando e bebia. Bebida fermentada o embebedava depressa, muito mais do que uísque, e ele já pouco distinguia as bolhas do líquido subindo ligeiras à superfície, rentes ao cristal. O colega falava de como tudo hoje em dia estava de cabeça para baixo, ao menos na época da Redentora as pessoas tinham vergonha na cara; Sérgio pediu licença para ir ao banheiro, ia levantar-se, mas o homem o segurou pelo braço e puxou-o de volta, disse que bastava ver essa menina casando grávida e nem escondendo, roubou o noivo da amiga e ainda por cima engravidou em seguida. Apontou para a noiva, que dançava no centro da pista, no meio dos convidados. Ela ria de um passo marcado com as amigas e abraçava-se ao noivo, a barriga saliente sob a renda branca do vestido curto. Sérgio sorriu, abaixou a cabeça, debruçou-se mais à mesa. O colega comentou que era um absurdo, o colégio da filha mais nova estava um horror, era homem beijando homem e mulher beijando mulher, e às vezes a gente nem sabe quem é quem, completou e ergueu o queixo para a moça que se aproximava devagar, o salto muito alto, o vestido prateado, uma pequena flor de tecido no cabelo.

    — Como assim? — Sérgio perguntou, o olhar na moça.

    — É homem — ele disse enojado, e afastou a cadeira quando ela chegou à mesa.

    Ela jogou o cabelo comprido para um lado da cabeça, curvou-se, falou algo que Sérgio não ouviu, ele pediu para repetir. A moça veio à frente, e ele também se inclinou na direção dela.

    — Qual é a placa do seu carro? — ela gritou.

    Ele demorou um segundo nos olhos escuros, que aguardavam uma resposta, muito abertos. Lembrava-se dela no altar, a primeira das madrinhas, mais alta do que a noiva. Disse rápido três letras e quatro números, e ela indicou a entrada do salão com o polegar.

    — Esse mesmo. A janela está aberta e o alarme tocando.

    Sérgio levantou-se, olhou para o colega, que encarava a garota desconfiado, e atravessou o salão, por entre as mesas, dois garçons e um grupo que se amontoava diante de um celular para uma foto. Ganhou a rua e a noite fresca de verão, procurou o carro, achou-o fechado e quieto, enfileirado com os demais. Fez o caminho de volta sem pressa. Assistiu à moça descer as escadas, erguendo a barra do vestido, os fios lisos da franja reta dançando à testa com a brisa. Ele chegou, subiu um degrau, parou. Levou as mãos aos bolsos. Ela ficou no terceiro degrau, acima dele, largou o vestido, cruzou os braços.

    — Achei que você precisava de uma ajuda.

    — Acertou — ele disse.

    Os dois sorriram. A música vinda do salão mudou para um Sinatra. A noiva saiu pelo canto da porta, olhava por trás do ombro, tirou algo do decote. Acenou discretamente para ambos, tirou os sapatos e correu para o outro lado da rua. Agachou-se e desapareceu por trás de um dos carros. Sérgio encarou a moça.

    — Sou tio do noivo — explicou sem motivo.

    Ela balançou a cabeça. Desceu outro degrau, ficou mais perto.

    — Não, tio do noivo. — Aproximou o rosto e desafiou: — Quem é você de verdade?

    Ela ajeitou o cabelo. O lado oposto ao da flor de tecido. Tinha uma argola no alto da orelha.

    — Funcionário público — ele respondeu. — Mas quase aposentado.

    A garota conteve uma risada. Depois não conteve mais. Dobrou-se, deu uma gargalhada, apoiou-se nele, os dedos compridos e finos. Ele também riu, sem jeito. Ela endireitou-se, tirou uma lágrima do canto dos cílios que pareciam postiços, cuidou para não borrar a maquiagem dos olhos de mulata quase índia.

    — E você?

    — Me formei com ela em Artes.

    A moça limpou os dedos do rímel, um anel no indicador. O noivo saiu à rua, procurava alguém, perguntou ao tio se vira Ana. Sérgio apontou para um carro. A noiva se levantou do esconderijo, jogou longe uma bagana de cigarro e agitou as mãos para espalhar a fumaça ao redor. Deparou-se com o noivo. Discutiram, voltaram de mãos dadas, ele à frente, reclamando que ninguém sabia onde ela estava. Ana calçava os sapatos e insistia que era só mais um cigarro. O último. Ao passarem por Sérgio e pela garota, a noiva chamou-a.

    — Vem, vou jogar o buquê.

    Ela pediu um minuto e ficou. O casal entrou. Estavam a sós na escada. Sérgio afrouxou a gravata. Ia dizer algo, sentiu uma picada de mosquito, deu um tapinha na própria nuca. Limpou a palma da mão na calça. Deteve-se na silhueta da moça, nos ombros e no formato do queixo.

    — É verdade?

    — O quê?

    Ele titubeou.

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