A CARTUXA DE PARMA
De Stendhal
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Sobre este e-book
Stendhal
Stendhal, de son vrai nom Marie-Henri Beyle, est né le 23 janvier 1783 à Grenoble, en France. Il est l'un des écrivains les plus éminents du XIXe siècle, connu pour ses romans d'analyse psychologique et sociale tels que Le Rouge et le Noir et La Chartreuse de Parme. Issu d'une famille bourgeoise, Stendhal a été profondément influencé par les idéaux de la Révolution française et par son admiration pour Napoléon Bonaparte, qu'il a servi en tant qu'officier de l'armée. Cette expérience a nourri son intérêt pour l'ambition et la lutte des classes, des thèmes centraux dans son oeuvre. Stendhal a débuté sa carrière littéraire avec des essais sur l'art et la musique avant de se tourner vers le roman. Le Rouge et le Noir, publié en 1830, est inspiré par un fait divers réel, l'affaire Berthet, et explore la complexité des émotions humaines à travers le personnage de Julien Sorel. Le roman a été salué pour sa profondeur psychologique et sa critique sociale, bien qu'il ait également suscité la controverse pour sa représentation de l'ambition et de l'immoralité. En plus de sa carrière littéraire, Stendhal a été un critique d'art perspicace et un diplomate. Il a passé de nombreuses années en Italie, où il a trouvé l'inspiration pour plusieurs de ses oeuvres. Sa capacité à capturer les nuances de la société et de la psychologie humaine a fait de lui un pionnier du réalisme et du romantisme. Stendhal est décédé le 23 mars 1842 à Paris, laissant derrière lui un héritage littéraire durable qui continue d'influencer les écrivains et les lecteurs du monde entier. Ses oeuvres sont aujourd'hui considérées comme des classiques de la littérature française, et il est reconnu pour son style incisif et sa capacité à dépeindre la complexité des relations humaines.
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A CARTUXA DE PARMA - Stendhal
Stendhal
A CARTUXA DE PARMA
Título original:
La Chartreuse de Parme
1a edição
img1.jpgIsbn: 9786587921143
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Prefácio
Estimado Leitor
A Cartuxa de Parma (La Chartreuse de Parme) é, juntamente com O Vermelho e o Negro, uma das obras-primas reconhecidas de Stendhal.
O romance é citado frequentemente como um exemplo antecipado do realismo, um forte contraste com o estilo popular romântico que havia à época de Stendhal. É considerado por muitos autores como um trabalho seminal; Honoré de Balzac o considerou o mais significante romance de seu tempo, André Gide o denominou de o maior romance francês. Liev Tolstói sofreu grande influência da famosa abordagem de Stendhal com relação à Batalha de Waterloo, onde seu protagonista vagueia perturbado sem saber ao certo se esteve ou não presente realmente naquela batalha.
O romance é considerado por muitos críticos literários como um romance análogo ao O Príncipe de Maquiavel, mas retratando a Itália do século XIX. A criação de A Cartuxa de Parma foi, em muito, inspirada em leituras de documentos sobre famílias antigas da Itália, como a família Farnese, que Stendhal teve acesso em suas inúmeras passagens pela Itália, como cônsul. A obra é um retrato fiel da época, sendo esta uma de suas grandes contribuições como arte. Não sem razão, A Cartuxa de Parma faz parte da famosa coletânea: 1001 livros para ler antes de morrer.
Uma excelente leitura
LeBooks Editora
O amor é uma flor preciosa, mas é preciso ter a coragem de ir colhê-la à beira de um precipício.
Stendhal
Sumário
APRESENTAÇÃO
Sobre o autor
Sobre a obra
A CARTUXA DE PARMA
ADVERTÊNCIA
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO V
CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
CAPÍTULO IX
CAPÍTULO X
CAPÍTULO XI
CAPÍTULO XII
CAPÍTULO XIII
CAPÍTULO XIV
CAPÍTULO XV
CAPÍTULO XVI
CAPÍTULO XVII
CAPÍTULO XVIII
CAPÍTULO XIX
CAPÍTULO XX
CAPÍTULO XXI
CAPÍTULO XXII
CAPÍTULO XXIII
CAPÍTULO XXIV
CAPÍTULO XXV
CAPÍTULO XXVI
CAPÍTULO XXVII
CAPÍTULO XXVIII
CRONOLOGIA
APRESENTAÇÃO
Sobre o autor
img2.jpgHenri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Vida adulta
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais.
Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco acusou-o de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
Paris
Dandy
afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação econômica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crônica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.
Sobre a obra
O romance A CARTUXA{1} DE PARMA é citado frequentemente como um exemplo antecipado do realismo, um forte contraste com o estilo popular romântico que havia à época de Stendhal. É considerado por muitos autores como um trabalho seminal; Honoré de Balzac o considerou o mais significante romance de seu tempo, André Gide o denominou de o maior romance francês. Liev Tolstói sofreu grande influência da famosa abordagem de Stendhal com relação à Batalha de Waterloo, onde seu protagonista vagueia perturbado sem saber ao certo se esteve ou não presente realmente naquela batalha. O romance é considerado por muitos críticos literários como um romance análogo ao O Príncipe de Maquiavel, mas retratando a Itália do século XIX. A criação de A Cartuxa de Parma foi, em muito, inspirada em leituras de documentos sobre famílias antigas da Itália, como a família Farnese, que Stendhal teve acesso em suas inúmeras passagens pela Itália, como cônsul. O Romance tem como protagonista Fabrício Del Dongo, um jovem aventureiro, de família nobre e de poucas ambições. Assim como Julien Sorel, protagonista de O Vermelho e o Negro, Fabrício é admirador de Napoleão e essa admiração constitui um dos aspectos sócio-históricos apresentados na obra, pois mostra uma Itália que sofre as consequências sociais da restauração da monarquia em territórios que pertenceram anteriormente ao Império Napoleônico, como os territórios do Ducado de Parma e Placência, onde se passa o Romance.
Fabrício vive em seu mundo nobre, mas sem as ambições típicas de seu meio, é estouvado, ingênuo, juvenil e desapegado às coisas do dinheiro. Sua ambição é lutar e conhecer o Imperador Napoleão. Essa admiração dá início às suas peripécias, pois ele segue escondido de seu pai, monarquista, para lutar em Waterloo. A partir daí ele se vê em apuros, contando apenas com a ajuda de sua tia, Gina Pietranera. A afeição entre os dois vai crescendo e se confunde muitas vezes com um amor carnal e incestuoso. Essa dualidade entre amor fraternal e carnal constitui-se como um aspecto dramático, que seguirá os dois personagens até o desfecho da obra. No entanto, desvincilhado da influência de sua tia, Fabrício percebe que não a amava como mulher. Preso, coagido e vítima de inúmeros processos decorrentes das brigas entre partidos políticos e traições de corte, Fabrício se apaixona por Clélia Conti, filha dum general do partido de oposição do amante de sua tia, Conde Mosca. Essa paixão deflagra o período mais belo da obra, em que ambos nutrem um amor impossível de se realizar, já que Fabrício, além de se encontrar preso, possui parentesco com inimigos políticos do pai da jovem. Livre por uma fuga arquitetada por sua tia, ele se vê infeliz, já que exilado jamais poderia rever Clélia.
O drama do amor impossível acaba constituindo o fato que doravante daria fim à saúde e à vida de Fabrício. Sua morte é seguida da de Clélia e Gina.
A obra é um retrato fiel da época, sendo esta uma de suas grandes contribuições como arte. Ela articula uma intrincada rede de relações de poder e amor, contextualizadas sob governos venais, que se sustentam fragilmente eclipsados pelo fantasma de Napoleão, recém destituído de seu poder e de seu império europeu. Além disso, não se pode menosprezar a capacidade do autor em dar vida a cada um dos personagens, aprofundando com coerência o caráter psicológico dos mesmos e contextualizando-o de forma conjuntural com o próprio espírito da obra. O romance não fez sucesso na época de sua publicação, mas foi reconhecido por ninguém menos que Honoré de Balzac, que, além de se tornar amigo de Stendhal, lhe deu diversos conselhos de modo que ele enxugasse
e tornasse o texto mais fluido e profundo.
A CARTUXA DE PARMA
I
Gia mi fur dolci inviti a empir le carte
I lunghi ameni.
Ariosto, Sat. IV.
ADVERTÊNCIA
Foi no inverno de 1830, e a trezentas léguas de Paris, que esta novela foi escrita. Muitos anos antes, no tempo em que nossos exércitos percorriam a Europa, deu-me o acaso um boleto para a casa de um cônego: era em Pádua, cidade venturosa, onde, como em Veneza, o prazer é a grande ocupação e não deixa tempo para se ficar indignado com o vizinho. Tendo-se prolongado a estada, o cônego e eu tornamo-nos bons amigos.
Passando novamente por Pádua em fins de 1830, corri à casa do bom cônego: ele não existia mais, eu o sabia, mas desejava rever o salão onde tínhamos passados tantos serões amáveis, e dos quais, mais tarde, tantas saudades senti. Encontrei o sobrinho do cônego e a esposa desse sobrinho, que me receberam como a um velho amigo. Chegaram várias pessoas, e só nos separamos tarde da noite; o sobrinho mandou que trouxessem do café Pedroti um excelente zambajon. O que principalmente nos manteve em serão foi a história da duquesa Sanseverina, à qual alguém aludiu, e que o sobrinho quis narrar de fio a pavio, em minha honra.
— No país para onde vou — disse aos meus amigos — não acharei absolutamente uma casa como esta, e, para passar as intermináveis horas da noite, farei uma novela da vida da vossa amável duquesa Sanseverina. Imitarei o vosso velho contista Bandello, bispo de Agen, que julgaria cometer um crime se se descuidasse das circunstâncias verdadeiras da sua história, ou se lhe acrescentasse novas.
— Nesse caso — disse o sobrinho — vou emprestar os anais de meu tio, o qual, no artigo Parma, menciona algumas intrigas dessa corte, do tempo em que a duquesa nela dominava; mas, tome cuidado! Esta história nada tem de moral, e agora que na França os senhores alardeiam uma pureza evangélica, ela poderá acarretar a reputação de assassino.
Público essa novela sem nada mudar do manuscrito de 1830, o que pode ter dois inconvenientes:
O primeiro para o leitor: sendo os personagens italianos, talvez o interessem menos. Os corações daquele país diferem bastante dos corações franceses; os italianos são sinceros, boa gente, e, não espantadiços, dizem o que pensam; não é senão por acessos que eles têm vaidade; esta torna-se, então, paixão, e toma o nome de puntiglio. Enfim, a pobreza entre eles não é um ridículo.
O segundo inconveniente é relativo ao autor.
Confessarei que tive a ousadia de deixar às personagens as suas asperezas de caráter; mas, em compensação, declaro-o alto e bom som, verto a mais moral das censuras sobre muitas das suas ações. De que vale dará alta moralidade e as graças dos caracteres franceses, os quais amam o dinheiro acima de tudo e não cometem absolutamente pecados por ódio ou por amor? Os italianos desta novela são muito diferentes. De resto, parece-me que todas as vezes que avançamos duzentas léguas do Sul da França para o Norte, há margem para um novo panorama como para um novo romance. A amável sobrinha do cônego conhecera e mesmo muito quisera à duquesa Sanseverina, e pede-me que nada mude nas suas aventuras, que são censuráveis.
Henry Beyle (Stendhal)
23 de janeiro de 1839.
CAPÍTULO I
Milão em 1796
A 15 DE MAIO DE 1796, o general Bonaparte fez sua entrada em Milão, à frente daquele jovem Exército que acabava de atravessar a ponte de Lodi, e de anunciar ao mundo que, após tantos séculos, César e Alexandre tinham um sucessor.
Os milagres de audácia e de gênio de que a Itália foi testemunha despertaram em poucos meses um povo adormecido; ainda oito dias antes da chegada dos franceses, os milaneses não viam neles mais que uma corja de bandidos, acostumados a fugir sempre diante das tropas de Sua Majestade Imperial e Real: pelo menos era o que lhes repetia três vezes por semana um jornaleco do tamanho da mão, impresso em papel ordinário.
Na Idade Média, os lombardos eram valentes como os franceses da Revolução, e mereceram ver sua cidade inteiramente arrasada pelos imperadores da Alemanha. Depois de se haverem tornado súditos fiéis, sua grande ocupação era imprimir sonetos em pequenos lenços de tafetá róseo quando se realizava o casamento de uma jovem pertencente a qualquer família nobre ou rica. Dois ou três anos depois dessa grande época de sua vida, tal moça adquiria um cavaleiro servente: algumas vezes o nome do chichisbéu escolhido pela família do marido ocupava um lugar de destaque no contrato de casamento. Grande era a distância que mediava entre esses costumes efeminados e as profundas emoções provocadas pela chegada imprevista do Exército francês. Imediatamente surgiram hábitos novos e apaixonados. Um povo inteiro percebeu, no dia 15 de maio de 1796, que tudo o que respeitara até então era soberanamente ridículo e por vezes odioso. A partida do último regimento austríaco assinalou a queda das velhas ideias; expor a vida ficou na moda viu-se que, para ser feliz após séculos de sensações insípidas, era preciso amar a pátria com amor verdadeiro, e, na devida ocasião, praticar ações heroicas. Pela continuação do despotismo cioso de Carlos V e de Filipe II, os lombardos viviam mergulhados numa densa noite; derrubaram as estátuas dos déspotas e viram-se subitamente inundados de luz. Nos últimos cinquenta anos, e à medida que a Enciclopédia e Voltaire explodiam em França, os frades bradavam ao bom povo de Milão que aprender a ler, ou outra coisa qualquer no mundo, era um trabalhe completamente inútil, e que, pagando com exatidão o dízimo ao cura e contando fielmente todos os pecadilhos, tinha-se mais ou menos certeza de conseguir um lindo lugar no paraíso. Para terminar de enervar esse povo outrora tão terrível, a Áustria vendera barato o privilégio de não fornecer recrutas para seu Exército.
Em 1796, o Exército milanês compunha-se de vinte e quatro mamariolas trajados de vermelho, os quais guarneciam a cidade em combinação com quatro magníficos regimentos húngaros. A licenciosidade dos costumes era extrema, mas as paixões muito raras. Além do aborrecimento de tudo contar aos padres, os milaneses de 1790 nada sabiam desejar com veemência. O bom povo de Milão estava ainda submetido a certos entraves monárquicos que não deixavam de ser vexatórios. Um exemplo: o arquiduque, que residia em Milão e governava em nome do Imperador, seu primo, tivera a ideia lucrativa de fazer o comércio de trigo. Em consequência disso, veio a proibição aos camponeses de vender seus grãos até que Sua Alteza abarrotasse seus próprios depósitos.
Em maio de 1796, três dias depois da entrada dos franceses, um jovem pintor miniaturista, um tanto aloucado, chamado Gros, mais tarde célebre, e que viera com o Exército, ouvindo contar no grande café dos Servi (então na moda) as façanhas do arquiduque, que além do mais era muito volumoso, pegou a lista dos sorvetes, impressa em cartaz numa folha ordinária de papel amarelado. Nas costas da folha desenhou o avantajado arquiduque; um soldado francês dava uma baionetada na barriga, e, em vez de sangue, dela saia uma quantidade incrível de trigo. Essa coisa chamada chalaça ou caricatura não era conhecida nessa terra de despotismo cauteloso. O desenho deixado por Gros em cima da mesa do café dos Servi foi considerado um milagre caído do céu: fizeram gravações dele durante a noite, e no dia seguinte venderam vinte mil exemplares.
Nesse mesmo dia, foram afixados cartazes com o aviso de uma contribuição de guerra de seis milhões, lançada para as necessidades do Exército francês, o qual, tendo acabado de vencer seis batalhas e de conquistar vinte províncias, carecia somente de sapatos, calças, casacos e chapéus.
A soma de felicidade e de prazer que irrompeu na Lombardia com aqueles franceses tão pobres foi tal, que somente os padres e alguns nobres se aperceberam do peso daquela contribuição de seis milhões, que, em breve, foi seguida de muitas outras. Esses soldados franceses riam e cantavam todo o dia; tinham menos de vinte e cinco anos, e seu general em chefe, que tinha vinte e sete, passava por ser o homem mais idoso de seu Exército. Essa alegria, essa mocidade, essa despreocupação, respondiam de modo pilhérico às furibundas prédicas dos frades que, havia seis meses, anunciavam do alto do púlpito sagrado que os franceses eram monstros, forçados, sob pena de morte, a queimar tudo e a cortar a cabeça de todo o mundo. Para esse fim, cada regimento marchava com a guilhotina à frente.
Nos campos, à porta das choupanas, viam-se soldados franceses ocupados em embalar o bebê da dona da casa, e quase todas as noites algum tambor, tocador de violino, improvisava um baile. Sendo as contradanças por demais complicadas e técnicas para que os soldados, que, aliás, não as sabiam, pudessem ensiná-las às mulheres da terra, eram estas que mostravam aos jovens franceses la monferina, la saltarina e outras danças italianas.
Os oficiais, tanto quanto possível, tinham sido alojados em casa da gente rica; muito precisavam de refazer-se. Um tenente chamado Roberto, por exemplo, recebeu um boleto para o palácio da marquesa Del Dongo. Esse oficial, jovem recrutado bastante destorcido, possuía, ao entrar naquele palácio, apenas um escudo de seis francos que acabava de receber em Placência. Depois da travessia da ponte de Lodi, ele tirou de um belo oficial austríaco, morto por uma bala de canhão, uma calça magnífica, de nanquim, completamente nova, e jamais peça de vestuário veio mais a propósito. As dragonas de oficial do jovem tenente eram de lã e a fazenda da sua túnica era cosida no forro das mangas a fim de que os pedaços não se despegassem; havia, porém, uma circunstância mais triste ainda: as solas dos seus sapatos eram feitas de pedaços de chapéu, igualmente recolhidos do campo de batalha, além da ponte de Lodi. Essas solas improvisadas estavam presas na parte superior dos sapatos por meio de barbantes bem visíveis, de modo que, quando o mordomo da casa se apresentou no quarto do tenente Roberto a fim de convidá-lo para jantar com a senhora marquesa, este se viu metido em sérios apuros. Sua ordenança e ele passaram as duas horas que os separavam desse fatal jantar tentando costurar um pouco o uniforme e tingir de preto, com tinta de escrever, os desgraçados barbantes dos sapatos. Finalmente chegou o momento terrível. Em toda a minha vida nunca me senti tão contrafeito
, dizia-me o tenente Roberto; aquelas senhoras pensavam que eu as ia amedrontar, e eu estava mais trêmulo do que elas. Olhava para meus sapatos e não sabia como caminhar com garbo. A marquesa Del Dongo
, acrescentou, "estava então em todo o esplendor de sua beleza: o senhor conheceu-a com seus olhos tão belos e de uma doçura angelical, e seus lindos cabelos de um louro escuro que tão bem desenhavam o oval daquele rosto encantador. Eu tinha no meu quarto uma Herodíade de Leonardo da Vinci, que parecia ser seu retrato. Quis Deus que eu me impressionasse tanto com aquela beleza sobrenatural que cheguei a esquecer meu vestuário. Fazia dois anos que eu só via coisas feias e miseráveis nas montanhas da região de Gênova; ousei dirigir algumas palavras a respeito de meu deslumbramento.
"Tinha, entretanto, bom senso de sobra para me deter muito tempo no gênero galanteador. Ao mesmo tempo que preparava minhas frases, eu via numa sala de jantar toda de mármore doze lacaios e criados de quartos vestidos como que então se me afigurava o cúmulo da magnificência. Imagine que aqueles biltres tinham não somente bons sapatos, mas, ainda por cima, fivelas de prata. De soslaio via todos aqueles olhares estúpidos fixados no meu traje, e possivelmente sobre meus sapatos, coisa que me pungia o coração. Com uma única palavra eu poderia amedrontar toda essa gente, mas como pô-la em seu devido lugar sem correr o risco de assustar as damas? Porque a marquesa, a fim de cobrar um pouco de coragem, como me disse cem vezes depois, tinha mandado buscar no convento, onde era pensionista naquela época, Gina del Dongo, irmã do seu marido, a qual mais tarde se tornou a encantadora condessa Pietranera: ninguém na prosperidade a sobrepujou pela alegria e pelo espírito amável, assim como ninguém a excedeu na adversidade pela coragem e serenidade de alma.
Gina, que podia então ter treze anos, mas que aparentava dezoito, e era viva e franca, como sabe, estava com tanto medo de arrebentar de riso em presença do meu vestuário, que não se atrevia a comer; a marquesa, pelo contrário, cumulava-me de cortesias constrangidas; via perfeitamente em meus olhos fulgores de impaciência. Em resumo, eu fazia um triste papel, mastigava o desprezo, coisa que dizem ser impossível para um francês. Por fim, uma ideia caída do céu veio iluminar-me: comecei a contar àquelas damas a minha miséria e o que tínhamos sofrido durante dois anos nas montanhas da região de Gênova, onde nos retinham velhos generais imbecis. Lá, dizia eu, davam-nos
assinados" que não tinham curso na região, e três onças de pão por dia. Não cheguei a falar dois minutos e já a boa marquesa tinha lágrimas nos olhos, e Gina ficara séria.
— Como, senhor tenente — disse-me está —, três onças de pão?
— Sim, mademoiselle; mas, em compensação, a distribuição falhava três vezes por semana, e, como os camponeses que nos hospedavam eram mais indigentes ainda do que nós, dávamos um pouco do nosso pão.
"Ao saímos da mesa, ofereci o braço à marquesa até a porta do salão; depois, voltando atrás rapidamente, dei ao criado que me servira à mesa aquele único escudo de seis francos, sobre cujo emprego tantos castelos no ar eu construíra.
Oito dias depois
, continuou Roberto, quando ficou bem averiguado que os franceses não guilhotinavam ninguém, o marquês Del Dongo voltou do seu castelo de Grianta no lago de Como, onde valentemente se refugiara quando da aproximação do Exército, abandonando aos azares da guerra sua jovem esposa tão bela e sua irmã. O ódio que esse marquês tinha por nós igualava seu medo, o que, vale dizer, era incomensurável; seu largo rosto pálido e devoto era divertido de se ver quando me tributava cortesias. No dia seguinte ao de sua volta a Milão, recebi três varas francesas de pano e duzentos francos da contribuição militar de seis milhões: enfarpelei-me de ponto em branco, e tornei-me o cavaleiro dessas damas, porquanto os bailes começaram.
A história do tenente Roberto foi pouco mais ou menos a de todos os franceses; ao invés de zombarem da miséria desses bravos soldados, tiveram piedade deles e lhes quiseram bem.
Essa época de felicidade imprevista e de embriaguez não durou mais do que dois curtos anos; a loucura fora tão excessiva e geral, que me seria impossível dar uma ideia dela, a não ser por esta reflexão histórica e profunda: aquele povo se entediava fazia cem anos.
A voluptuosidade natural dos países meridionais reinara outrora na corte dos Visconti e dos Sforza, esses famosos duques de Milão. Mas desde o ano de 1624 os espanhóis tinham-se apoderado do milanês, e por se mostrarem senhores taciturnos, desconfiados, orgulhosos, e temendo sempre uma revolta, a alegria fugira. Os povos, adquirindo os costumes de seus senhores, pensavam antes em vingar-se do mais insignificante insulto por meio de uma punhalada do que em gozar o momento presente.
A tresloucada alegria, o contentamento, a voluptuosidade, o olvido de todos os sentimentos tristes, ou mesmo razoáveis, foram levados a tais extremos desde 15 de maio de 1796, dia em que os franceses entraram em Milão, até abril de 1799, data em que foram expulsos, como consequência da batalha de Cassano, que foi possível citarem-se velhos negociantes milionários, velhos usurários e velhos notários que, durante esse intervalo, tinham esquecido de ser rabugentos e de ganhar dinheiro.
Quando muito poder-se-iam contar algumas famílias pertencentes à alta nobreza, que se haviam retirado para os seus palácios no campo, como que para se mostrarem enfadados contra o júbilo geral e a expansão de todos os corações. Manda a verdade dizer, entretanto, que essas famílias nobres e ricas tinham sido distinguidas de modo pouco agradável na partilha das contribuições de guerra pedidas pelo Exército francês.
O marquês Del Dongo, contrariado por ver tanta alegria, fora um dos primeiros a regressar ao seu magnífico castelo de Grianta, além de Como, para onde as damas levaram o tenente Roberto. Esse castelo, situado numa posição talvez única no mundo, sobre um planalto a cento e cinquenta pés acima desse lago sublime, do qual domina uma grande parte, fora uma praça forte. A família Del Dongo fizera-o construir no século XV, como o demonstravam, por todos os lados, os mármores gravados com as armas da família; viam-se nele ainda pontes levadiças e fossos profundos, na verdade sem água; mas, com esses muros de oitenta pés de altura e seis de espessura, esse castelo estava ao abrigo de uma surpresa: e era por isso que tanto gostava dele o desconfiado marquês. Cercado de vinte e cinco a trinta criados, que ele supunha dedicados, aparentemente porque nunca lhes falava senão por meio de injúrias, sentia-se menos atormentado pelo medo do que em Milão.
Esse medo não era totalmente gratuito: o marquês correspondia-se muito ativamente com um espião, colocado pela Áustria na fronteira suíça, a três léguas de Grianta, para fazer evadir os prisioneiros feitos no campo de batalha, coisa que poderia ser levada a sério pelos generais franceses.
O marquês deixara a jovem esposa em Milão; ela dirigia ali os negócios da família, estava encarregada de satisfazer as contribuições impostas à casa Del Dongo, como se diz na região; ela tentava obter que as diminuíssem, o que a obrigava a ver de entre os nobres aqueles que tinham aceitado funções públicas, e mesmo alguns que não eram nobres, mas muito influentes. Sobreveio nessa família um grande acontecimento. O marquês arranjara o casamento de sua jovem irmã Gina com um personagem muito rico e do mais elevado nascimento, mas que usava pó; por esse motivo, Gina recebia-o com gargalhadas, e breve cometeu a loucura de desposar o conde Pietranera. Era, na verdade, um excelente gentil-homem, tipo de bela aparência, porém arruinado de pais a filhos, e, para cúmulo da infelicidade, partidário fogoso das novas ideias. Pietranera era segundo-tenente da legião italiana, mais um motivo de desespero para o marquês.
Após esses dois anos de loucura e de felicidade, o Diretório de Paris, dando-se ares de soberano seguro de sua posição, demonstrou um ódio mortal por tudo o que não era medíocre. Os generais ineptos que deu ao Exército da Itália perderam uma série de batalhas naquelas mesmas planícies de Verona, testemunhas dos anos antes dos prodígios de Arcole e de Lonato. Os austríacos aproximaram-se de Milão; o tenente Roberto, já chefe de batalhão e ferido na batalha de Cassano, foi aboletar-se pela última vez em casa de sua amiga a marquesa Del Dongo. As despedidas foram tristes; Roberto partiu com o conde Pietranera, que seguia os franceses na sua retirada para Novi. A jovem condessa, a quem o irmão recusou pagar sua legítima, seguiu o Exército trepada numa carreta.
Começou então essa época de reação e de volta às ideias antigas que os milaneses chamam i tredici mesi (os treze meses), porque efetivamente quis a sorte deles que esse retomo à tolice não durasse senão treze meses, até Marengo. Tudo o que era velho, devoto e rabugento, tornou a aparecer à frente dos negócios e retomou a direção da sociedade: não tardou que as pessoas que haviam permanecido fiéis às boas doutrinas espalhassem nas aldeias que Napoleão fora enforcado pelos mamelucos no Egito, como por tantos motivos merecia.
Entre esses homens que tinham ido emburrados para as suas fazendas, e que voltavam sequiosos de vingança, o marquês Del Dongo distinguia-se por seu furor; seu exagero levou-o naturalmente à chefia do partido. Esses senhores, pessoas muito honestas quando não tinham medo, mas que sempre tremiam, conseguiram influenciar o general austríaco. Bom sujeito, no fundo, deixou que o persuadissem ser a severidade uma alta política, e fez prender cento e cinquenta patriotas: era justamente então o que havia de melhor na Itália.
Sem tardança foram deportados para as bocas de Cattaro, e, atirados em grutas subterrâneas, a umidade e, sobretudo, a falta de pão, fizeram boa e pronta justiça a todos aqueles patifes.
O marquês Del Dongo teve um grande posto, e, como somava uma avareza sórdida a uma porção de outras belas qualidades, gabou-se publicamente de não mandar um escudo que fosse à sua irmã, a condessa Pietranera, a qual, sempre loucamente apaixonada, não queria separar-se do marido e morria de fome, em França, com ele. A boa marquesa estava desesperada; finalmente conseguiu subtrair alguns pequenos diamantes do seu escrínio, que o marido lhe retomava todas as noites para encerrá-lo numa caixa de ferro, embaixo da cama: a marquesa trouxera oitocentos mil francos de dote ao marido, e recebia oitenta francos por mês para suas despesas pessoais. Durante os treze meses que os franceses passaram fora de Milão, essa mulher tão tímida achou pretextos e vestiu-se sempre de preto.
Confessaremos que, seguindo o exemplo de muitos autores sisudos, começamos a história do nosso herói um ano antes do seu nascimento. Esse personagem essencial não é outro, na verdade, que Fabrício Valserra, marchesino{2} Del Dongo, como se diz em Milão. Ele acabava exatamente de se dar ao trabalho de nascer quando os franceses foram expulsos, e vinha a ser, pelos azares do nascimento, o segundo filho desse marquês Del Dongo, tão grão-senhor, e do qual já conhecem o grande rosto lívido, o sorriso falso e o ódio sem limites pelas ideias novas. Toda a fortuna da casa estava clausulada ao filho primogênito Ascânio del Dongo, digno retrato do pai. Tinha ele oito anos, e Fabrício, dois, quando repentinamente aquele general Bonaparte, que toda a gente de elevado nascimento julgava ter sido enforcado fazia muito, desceu do monte São-Bernardo. Entrou em Milão. Foi um momento até agora único na história: imaginem um povo inteiro loucamente apaixonado. Poucos dias depois, Napoleão venceu a batalha de Marengo. É inútil dizer o resto. A embriaguez dos milaneses chegou ao auge: desta vez, porém, estava mesclada de ideias de vingança: tinham ensinado o ódio àquele povo bom. Dentro em pouco viu-se chegar o que restava dos patriotas deportados nas bocas de Cattaro; o regresso deles foi celebrado por uma festa nacional. Seus semblantes pálidos, seus grandes olhos espantados, seus membros emagrecidos, formavam um estranho contraste com a alegria que explodia por toda a parte. Sua chegada foi o sinal da partida para as famílias mais comprometidas.
O marquês Del Dongo foi dos primeiros a fugir para o seu castelo de Grianta. Os chefes das grandes famílias estavam transbordando de ódio e de medo; mas suas mulheres e suas filhas recordavam-se das alegrias da primeira estada dos franceses, e tinham saudade de Milão e dos bailes tão alegres, que, logo depois de Marengo, se organizaram na Casa Tanzi. Poucos dias depois da vitória, o general francês encarregado de manter a tranquilidade na Lombardia percebeu que todos os granjeiros dos nobres, que todas as mulheres velhas do campo, muito longe de continuar pensando naquela admirável vitória de Marengo que mudara o destino da Itália e reconquistara treze praças fortes em um dia, não tinham outro pensamento no espírito que não fosse uma profecia de são Giovita, o primeiro padroeiro de Brescia. Segundo essa palavra sagrada, a prosperidade dos franceses e de Napoleão devia cessar treze semanas justas depois de Marengo. O que desculpava um pouco o marquês Del Dongo, e todos os nobres emburrados do campo, é que realmente e sem fingimento eles acreditavam na profecia. Toda essa gente não tinha lido quatro volumes em toda a vida; faziam abertamente preparativos para voltar a Milão ao cabo de treze semanas; o decorrer do tempo, porém, assinalava novos triunfos para a causa da França. De regresso a Paris, Napoleão, por meio de sábios decretos, salvava a revolução no interior, como a salvara em Marengo contra os estrangeiros. Aí, então, os nobres lombardos, refugiados em seus castelos, descobriram que em princípio tinham interpretado mal a predição do santo padroeiro de Brescia: não se tratava de treze semanas, e sim de treze meses. Os treze meses se foram, e a prosperidade da França parecia aumentar todos os dias.
Passamos por alto dez anos de progresso e de felicidade, de 1800 a 1810.
Fabrício passou os primeiros no castelo de Grianta, dando e recebendo socos a granel no meio dos pequenos camponeses da aldeia, e não aprendendo nada, nem sequer a ler. Mais tarde, mandaram-no para o colégio dos jesuítas em Milão. O marquês seu pai exigiu que lhe ensinassem o latim, não através desses velhos autores que vivem falando em república, mas em um magnífico volume enriquecido por mais de cem gravuras, obra-prima dos artistas do século XVII; era a genealogia em latim dos Valserra, marqueses Del Dongo, publicada em 1650 por Fabrício del Dongo, arcebispo de Parma. Sendo a grandeza dos Valserra sobretudo militar, as gravuras representavam inúmeras batalhas, e viam-se sempre alguns heróis desse nome desferindo formidáveis golpes de espada. Esse livro muito agradava ao jovem Fabrício. Sua mãe, que o adorava, obtinha de quando em quando autorização para ir vê-lo em Milão; mas, nunca lhe oferecendo o marido dinheiro para essas viagens, era a cunhada, a amável condessa Pietranera, quem lhe emprestava. Com o regresso dos franceses, a condessa tornara-se uma das mais brilhantes damas da corte do príncipe Eugênio, vice-rei da Itália.
Depois de Fabrício ter feito a primeira comunhão, ela obteve do marquês, sempre exilado voluntário, a permissão de o fazer sair algumas vezes do colégio. Achou o menino singular, espirituoso, muito sério, mas bonito rapaz, e não destoando muito no salão de uma mulher na moda; de resto, ignorante a mais não poder, sabendo mal e mal escrever. A condessa, que punha em tudo o fogo de seu caráter entusiasta, prometeu sua proteção ao chefe do estabelecimento caso seu sobrinho Fabrício fizesse progressos admiráveis, e se no fim do ano conquistasse muitos prêmios. Para dar os meios de merecê-los, mandava-o buscar todos os sábados à tarde, e com frequência não o restituía aos professores senão na quarta ou quinta-feira. Os jesuítas, embora ternamente queridos do príncipe vice-rei, eram repelidos da Itália pelas leis do reino, e o superior do colégio, homem hábil, compreendeu todo o partido que poderia tirar de suas relações com uma mulher todo-poderosa na corte. Absteve-se de queixar-se das ausências de Fabrício, o qual, mais ignorante do que nunca, obteve no fim do ano cinco primeiros prêmios. Nessas condições, a brilhante condessa Pietranera, acompanhada pelo marido, general-comandante de uma das divisões da guarda, e por cinco ou seis dos mais notáveis personagens da corte do vice-rei, foi assistir à distribuição dos prêmios no colégio dos jesuítas. O superior foi felicitado por seus chefes.
A condessa levava o sobrinho a todas as brilhantes festas que assinalaram o reinado excessivamente curto do amável príncipe Eugênio. Por sua exclusiva autoridade fizera-o oficial de hussardos, e, com doze anos de idade, Fabrício envergava aquele uniforme. Um dia, a condessa, seduzida por seu porte gentil, pediu ao príncipe, para Fabrício, um posto de pajem, o que significava que a família Del Dongo aderia à situação. No dia seguinte teve de empregar toda a sua influência para conseguir que o vice-rei esquecesse aquele pedido, ao qual nada mais faltava que o consentimento do pai do futuro pajem, consentimento que ele teria recusado ruidosamente. Em consequência dessa loucura que fez o emburrado marquês fremir, este achou um pretexto para chamar o jovem Fabrício a Grianta. A condessa desprezava soberanamente o irmão; considerava-o um papalvo tristonho, que se tornaria um malvado se acaso tivesse poder para tanto. Era, porém, louca por Fabrício, e, após dez anos de silêncio, escreveu ao marquês para reclamar o sobrinho: sua carta não teve resposta.
Em seu regresso àquele formidável palácio, edificado pelos mais belicosos dos seus antepassados, Fabrício nada mais sabia neste mundo senão fazer exercícios e montar a cavalo. Seguidamente, o conde Pietranera, tão louco pelo garoto quanto a esposa, fazia-o montar a cavalo e levava-o consigo à parada.
Ao chegar ao castelo de Grianta, Fabrício, com os olhos ainda vermelhos pelas lágrimas derramadas ao deixar os belos salões da tia, nada encontrou a não ser as carícias apaixonadas da mãe e das irmãs. O marquês estava encerrado em seu gabinete com o filho primogênito, o marchesino Ascânio. Fabricavam ali cartas cifradas que tinham a honra de serem enviadas a Viena, só se apresentando pai e filho às horas das refeições. O marquês repetia com afetação que estava ensinando o seu sucessor natural a estabelecer, em partidas dobradas, a conta dos produtos de cada uma das suas fazendas. Na realidade, o marquês era por demais cioso de seu poder para falar dessas coisas a um filho, herdeiro necessário dessas terras clausuladas. Empregava-o em cifrar despachos de quinze ou vinte páginas que duas ou três vezes por semana mandava levar à Suíça, de onde eram encaminhados a Viena. O marquês pretendia fazer seus soberanos legítimos conhecerem o estado interior do reino da Itália, que ele próprio não conhecia; isso, entretanto, não impedia que suas cartas obtivessem muito êxito. Eis como: o marquês mandava um agente seguro contar, na estrada real, o número dos soldados de tal regimento francês ou italiano que mudava de guarnição, e comunicava o fato à corte de Viena, tendo o cuidado de diminuir de uma boa quarta parte o número dos soldados contados. Essas cartas, de resto ridículas, tinham o mérito de desmentir outras mais verídicas, razão pela qual agradavam. Por isso, pouco tempo antes de Fabrício chegar ao castelo, o marquês recebera a medalha de uma ordem afamada: era a quinta que ornava seu uniforme de camarista. Tinha, efetivamente, o desgosto de não se atrever a usar esse uniforme fora de seu gabinete; mas nunca se permitia ditar uma mensagem sem antes vestir o traje bordado, com todas as suas ordens. Pareceria uma falta de respeito agir de outra maneira.
A marquesa ficou maravilhada ao ver a gentileza do filho. Conservara, porém, o hábito de escrever duas ou três vezes por ano ao general conde d’A***: era o nome atual do tenente Roberto. A marquesa tinha horror de mentir às pessoas a quem amava; interrogou o filho e ficou espantada da ignorância dele.
— Se me parece pouco instruído — disse ela consegue — a mim que não sei nada, Roberto, que é tão culto, acharia a educação dele absolutamente nula; ora, presentemente é necessário ter mérito.
Outra particularidade que a espantou quase outro tanto foi Fabrício ter levado a sério todas as coisas religiosas que lhe tinham ensinado no colégio dos jesuítas. Conquanto ela própria fosse muito devotar, o fanatismo do menino fê-la amedrontar-se.
— Se o marquês tem espírito bastante para adivinhar esse meio de influência, vai roubar-me o amor de meu filho.
Chorou muito, e sua paixão por Fabrício aumentou.
A vida daquele castelo, povoado por trinta ou quarenta criados, era muito triste; por isso, Fabrício passava os dias caçando ou a percorrer o lago em um barco. Pronto ligou-se estreitamente com os cocheiros e os serventes das estrebarias; todos eram partidários extremados dos franceses e zombavam abertamente dos criados de quarto, devotos achegados à pessoa do marquês ou à de seu filho mais velho. O grande motivo de gracejo contra esses graves personagens era que eles usavam pó, a exemplo de seus patrões.
CAPÍTULO II
… Alors que Vesper vient embrunir nos yeux,
Tout épris d’avenir; je contemple les cieux,
En qui Dieu nous écrit, par notes non obscures,
Les sorts et les destins de toutes créatures.
Car lui, du fond des cieux regardant un humain,
Parfois, mu de pitié, lui montre le chemin,
Par les astres du ciel qui sont ses caractères,
Les choses nous prédit et bonnes et contraires; mais les hommes, chargés de terre et de trépas,
Méprisent tel écrit, et ne le lisent pas.{3}
Ronsard
O MARQUÊS PROFESSAVA um ódio vigoroso pelas luzes. As ideias, dizia ele, é que perderam a Itália
; não sabia bem ao certo de que modo conciliar esse santo horror da instrução com o desejo de ver seu filho Fabrício aperfeiçoar a educação tão brilhantemente iniciada com os jesuítas. Para correr o mínimo de riscos possível, encarregou o bom padre Blanès, cura de Grianta, de fazer Fabrício continuar seus estudos em latim. Teria sido preciso que a própria cura soubesse essa língua; ora, ela era objeto de seu desprezo, seus conhecimentos nesse assunto limitavam-se a recitar, de cor, as orações do seu missal, cujo sentido ele mais ou menos podia explicar às suas ovelhas. Mas essa cura não era por isso menos respeitado e até mesmo temido no cantão; sempre dissera que não era em treze semanas, nem mesmo em treze meses, que se veria realizar a célebre profecia de são Giovita, o padroeiro de Brescia. Acrescentava, quando falava com amigos de confiança, que esse número treze devia ser interpretado de um modo que assombraria a mais de um, se fosse permitido dizer tudo (1813).
O fato é que o padre Blanès, personagem de honestidade e virtude primitivas, e, ademais, homem de espírito, passava as noites no alto de seu campanário, pois era louco pela astrologia. Depois de ter gastado seus dias em calcular conjunções e posições de estrelas, empregava a maior parte das noites a segui-las pelo céu. Devido à sua pobreza, não tinha outro instrumento além de um óculo comprido com tubo de cartão. Pode-se aquilatar do desprezo que tinha pelo estudo das línguas um homem que passava a vida a investigar a época precisa da queda dos impérios e das revoluções que transformam a face do mundo. "Que sei eu a mais a respeito de um cavalo depois que me ensinaram que em latim ele se chama equus?" — dizia ele a Fabrício.
Os camponeses temiam Blanès como a um grande mágico: quanto a ele, auxiliado pelo medo que suas estadas no campanário inspiravam, impedia-os de roubar. Seus confrades, as curas das redondezas, invejosos de sua influência, detestavam-no; o marquês Del Dongo, esse desprezava-o simplesmente por ele argumentar demais para um homem de tão baixa esfera. Fabrício adorava-o; para agradar, ele passava às vezes tardes inteiras a fazer adições ou multiplicações enormes. Depois subia ao campanário: era um grande favor e que o padre Blanès jamais concedera a ninguém; é que queria àquele garoto por sua ingenuidade. Se não te tornares hipócrita, dizia, serás talvez um homem.
Duas ou três vezes por ano, Fabrício, intrépido e ardoroso nos seus prazeres, por pouco não se afogava no lago. Era chefe de todas as expedições dos pequenos camponeses de Grianta e da Cadenabia. Essas crianças tinham conseguido algumas chaves pequenas e, quando a noite era bem escura, tentavam abrir os cadeados dessas correntes que prendem os barcos em alguma pedra grande ou em alguma árvore da margem. É preciso saber que no lago de Como a indústria da pesca coloca linhas de fundo a grande distância da beira. A extremidade superior da corda é atada a uma tabuinha forrada de cortiça, e um galho de aveleira muito flexível, fixado naquela tabuinha, sustenta uma pequena campainha que tilinta quando o peixe, fisgado, imprime sacudidas à linha.
O grande objetivo dessas expedições noturnas, que Fabrício comandava como chefe, era visitar as linhas de fundo antes de os pescadores ouvirem o aviso dado pelas pequenas campainhas. Escolhiam as noites de tormenta; e, para essas expedições arriscadas, embarcavam de madrugada, uma hora antes da alvorada. Ao subirem no barco, essas crianças julgavam afrontar os maiores perigos, e era esse o lado belo da empresa; e, seguindo o exemplo dos pais, recitavam devotamente uma Ave Maria. Ora, acontecia muitas vezes que, no momento da partida e no instante que sucedia à Ave Maria, Fabrício era assaltado por um presságio. Era esse o fruto que retirara dos estudos astrológicos de seu amigo o padre Blanès, em cujas predições não acreditava. De acordo com a sua jovem imaginação, esse presságio anunciava com certeza o bom ou mau êxito; e, como era mais resoluto do que qualquer dos companheiros, a pouco e pouco o bando todo habituou-se de tal forma àqueles presságios, que, se no momento de embarcar, viam na costa um padre, ou se viam voar um corvo à mão esquerda, repunham apressadamente os cadeados na corrente do barco e cada qual ia deitar-se. Assim, pois, embora o padre Blanès não tivesse comunicado sua difícil ciência a Fabrício, inoculara, sem que suspeitasse, uma confiança ilimitada nos sinais que podem predizer o futuro.
O marquês sabia que um acidente na sua correspondência cifrada podia colocá-lo à mercê da irmã; por isso, todos os anos, no dia de santa Ângela, festa onomástica da condessa Pietranera, Fabrício obtinha permissão para ir passar oito dias em Milão. Vivia o ano inteiro à espera desses oito dias ou com saudades deles. Nessa grande ocasião, a fim de realizar essa viagem política, o marquês entregava ao filho quatro escudos, e à esposa, que acompanhava o filho, de acordo com seus hábitos, nada lhe dava. Mas um dos cozinheiros, seis lacaios e um cocheiro com dois cavalos partiam para como na véspera da viagem, e, cada dia, em Milão, a marquesa tinha uma carruagem às suas ordens, e um jantar de doze talheres.
O gênero de vida emburrado que o marquês Del Dongo levava era evidentemente muito pouco divertido; mas tinha a vantagem de enriquecer para sempre as famílias que tinham a bondade de praticá-lo. O marquês, que possuía mais de duzentos mil francos de rendimento, não gastava a quarta parte dessa quantia; vivia de esperanças. Durante os treze anos de 1800 a 1813, acreditou constante e firmemente que Napoleão seria derrubado antes de seis meses.
Imagine-se, pois, seu contentamento, quando, em começos de 1813, teve notícias dos desastres do Beresina! A tomada de Paris e a queda de Napoleão estiveram a ponto de lhe fazer perder o juízo; permitiu-se então os mais ultrajantes comentários em relação à esposa e à irmã. Enfim, após catorze anos de espera, teve a alegria inexprimível de ver as tropas austríacas voltarem a Milão. Segundo ordens vindas de Viena, o general austríaco recebeu o marquês Del Dongo com uma consideração vi do respeito; apressaram-se em lhe oferecer um dos primeiros postos no governo, e ele o aceitou como pagamento de uma dívida. Seu filho mais velho teve um posto de tenente em um dos mais belos regimentos da monarquia; o segundo, porém, não quis nunca aceitar um posto de cadete que lhe ofereciam. Esse triunfo, do qual o marquês gozava com rara insolência, durou apenas alguns meses, e foi seguido de um revés humilhante. Ele jamais tivera talento para negócios, e catorze anos passados no campo, entre seus lacaios, seu notário e seu médico, somados ao mau humor da velhice que sobreviera, tinham feito dele um homem de uma incapacidade completa. Ora, em terras austríacas não é possível conservar um cargo importante sem ter a qualidade de talento exigida pela administração lenta e complicada, mas muito razoável, dessa velha monarquia. As cincadas do marquês Del Dongo escandalizavam os empregados e detinham mesmo a marcha dos negócios. Suas falas ultra monárquicas irritavam as populações que se queria mergulhar no sono e na incúria. Um belo dia, soube que Sua Majestade dignara-se aceitar graciosamente a demissão que ele pedia de seu emprego na administração, e ao mesmo tempo conferia o lugar de segundo grande mordomo-mor do reino lombardo-veneziano. O marquês ficou indignado com a injustiça atroz de que era vítima; fez com que um amigo imprimisse uma carta, ele que tanto execrava a liberdade de imprensa. Finalmente, escreveu ao Imperador dizendo que seus ministros o traíam e não eram mais do que jacobinos. Feito isso, voltou tristemente para seu castelo de Grianta. Teve um consolo. Após a queda de Napoleão, certos personagens poderosos de Milão fizeram espancar na rua o conde Prina, antigo ministro do rei da Itália, e homem de grande mérito. O conde Pietranera expôs a vida para salvar a do ministro, que foi morto a golpes de guarda-chuva, e cujo suplício durou cinco horas. Um padre, confessor do marquês Del Dongo, teria podido salvar Prina, abrindo-lhe a grade da igreja de São João, em frente à qual arrastavam o infeliz ministro que, durante um instante, foi abandonado na sarjeta, no meio da rua; recusou, porém, abrir a grade com um riso de desprezo, e, seis meses depois, o marquês teve a satisfação de conseguir para ele uma bela promoção.
Detestava o conde Pietranera, seu cunhado, o qual, não tendo cinquenta luíses de renda, atrevia-se a viver contente, tinha a audácia de mostrar-se fiel ao que amara durante toda a vida, e tinha a insolência de enaltecer esse espírito de justiça sem preferências, que o marquês classificava de jacobinismo infame. O conde recusara pôr-se ao serviço da Áustria; fizeram valer essa recusa, e, alguns meses após a morte de Prina, os mesmos personagens que tinham pagado os assassinos conseguiram que o general Pietranera fosse atirado em um cárcere. A vista disso, a condessa, sua esposa, tirou um passaporte e encomendou cavalos de posta para ir a Viena dizer a verdade ao Imperador. Os assassinos de Prina amedrontaram-se, e um deles, primo da senhora Pietranera, veio trazer à meia-noite, uma hora antes da partida para Viena, a ordem de pôr o marido em liberdade. No dia seguinte, o general austríaco mandou chamar o conde Pietranera, recebeu-o com a máxima distinção e assegurou que sua pensão de reforma não tardaria a ser liquidada nas mais vantajosas condições. O bravo general Bubna, homem de espírito e de coração, aparentava um ar envergonhado pelo assassínio de Prina e pela prisão do conde.
Após essa tormenta, evitada pelo caráter firme da condessa, os dois esposos viveram, bem ou mal, com a pensão da reforma, a qual, graças à recomendação de Bubna, não se fez esperar.
Por sorte, acontecia que a condessa, fazia cinco ou seis anos, mantinha grande amizade com um rapaz muito rico, o qual também era íntimo amigo do conde e não deixava de pôr à