Olhos secos
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Sobre este e-book
O protagonista é Leon Zaguer, um jovem de 18 anos que, após conhecer os kibutzim de Israel, se lança a uma viagem pela Europa, vendo de perto a efervescência política que marcou os anos 1970 em Atenas, Belgrado e Paris. Anos depois, o leitor se depara com um Leon escrevente de cartório que, na São Paulo de 1998, chega aos 40 anos em meio a um casamento falido, uma filha distante, um pai moribundo que o rejeita e nenhum plano realizado.
Olhos Secos é uma história de formação em que o narrador mantém um diário durante a longa viagem feita na juventude. Nele expőe sua dúvida entre ficar na Europa ou regressar ao Brasil, então sob o regime militar. Vinte anos depois, o resultado é um homem angustiado que vê sua vida chegar a uma encruzilhada. O romance é também um painel dos dilemas e afinidades da geraçăo que cresceu sob o regime militar, buscando na democracia europeia e no socialismo alternativas à ditadura brasileira.
Para compor este duplo, Ajzenberg alterna entre o relato ingênuo e idealista do jovem Leon e a narrativa onisciente, cortante e incisiva do escrevente, já na idade madura. Além das incertezas, o personagem é marcado por sua incapacidade de superar a barreira que o separa do mundo e o impede, entre outras coisas, de chorar, ou de ter esperança. É somente a partir da necessidade de reagir às ameaças que Leon, a principio relutante, toma a decisão que poderá alterar profundamente a sua vida.
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Olhos secos - Bernardo Ajzenberg
Capa
Rosto
Bernardo Ajzenberg
OLHOS SECOS
Créditos
Copyright © 2010 by Bernardo Ajzenberg
Direitos desta edição reservados à
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Printed in Brazil/Impresso no Brasil
Conversão para E-book
Freitas Bastos
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE.
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
A263o
Ajzenberg, Bernardo, 1959-
Olhos secos [recurso eletrônico] / Bernardo Ajzenberg. – Rio de Janeiro: Rocco, 2010.
recurso digital (Selo Rocco digital)
Formato: PDF e e-Pub
Requisitos do sistema: Windows XP e MAC
Modo de acesso: Adobe Digital Editions
ISBN 978-85-64126-13-8 (recurso eletrônico)
1. Ficção brasileira. 2. Livros eletrônicos. I. Título. II. Série.
10-6544 CDD-869.93
CDU-821.134.3(81)-3
"Ocorre-me frequentemente não conseguir
diferenciar o passado e o presente.
Gosto dessa indistinção, que atesta a minha
continuidade e confere uma relativa coesão
aos meus fragmentos dispersos."
J.-B. Pontalis, L’Enfant des limbes
Para meus pais,
Gueda e Matheus
A estadia foi boa e continua sendo (ainda tenho, creio, um mês por aqui), mas ela foi também forçosamente monótona, quer dizer, vida de kibutz e passeios (houve a prisão
ao grupo, que tanto temia, não consegui evitar). Revirei as cidades, mas acabei fazendo um registro de memória. Preguiça, talvez. Agora, me quedo sozinho, e um diário pode me ajudar. Sinto começar uma viagem que, a cada dia, deve ser registrada. Estou com muita vontade de escrever, aqui na sede da Organização Sionista Mundial, onde espero o Clóvis e o Joseph. Espero e curto o dia passar. Ainda hoje vou a Tel-Aviv e de lá ao kibutz Ruhama, onde pretendo permanecer. Consegui do Joseph o casaco Dubon para minha viagem, dá sorte. Cheguei ao kibutz e me encontrei com a Gina e a Lídia. Elas me esperavam e me serviram um café gostoso. Depois rodei por ali, tomei um bom banho, jantei e passeei com as duas. Estou agora num quarto com dois russos que só falam a língua deles e arranham pouquíssimo o hebraico (então é assim que me comunico com eles, além da mímica, é claro); estranharam que eu estivesse lendo Trotsky, mas não pudemos conversar (por enquanto). O olhar deles foi de reprovação, o mesmo do meu pai quando apareci com esse livro em casa umas semanas antes da viagem. Mas os motivos certamente são outros. Meu pai tem ojeriza a Trotsky por uma razão ideológica. Nunca conversamos sobre isso, mas ele já deixou claro que, apesar de tudo, ainda preferia o Stálin. Não entendo como... Preferia para aquela época, bem entendido, nos anos 1920 e 1930, ele disse uma vez, porque, se compreendi bem a história dele, se afastou da política e do Partidão no final dos anos 1950, quando eu já tinha nascido; por desilusão, talvez, não sei, nunca me contou direito. Um dia ainda pretendo conversar sobre esse assunto, abrir essa porta. Mas preciso saber ao certo essa história do meu nome. Por que cargas-d’água ele foi me chamar de Leon? Difícil. Não sei qual de nós dois é mais fechado! Amanhã falarei com o encarregado do kibutz para ver a possibilidade de me oferecer como voluntário.
Parece que só hoje resolvi pensar em mim... e decidi fazer a viagem que me apraz de verdade e sei ser importante. Os russos dormem e o ronco deles é muito forte; e o odor... o cheiro deles é muito desagradável. Não devem tomar banho há dias. Estranho não ter recebido sequer uma carta da Débora. Gostei das cartas que vieram de casa ontem (Sônia foi quem as trouxe). Os russos realmente fedem nesse quarto pequeno.
Dê uma chance à virtude, Leon. Uma chance à virtude. Dê uma chance à virtude, seu grande merda.
Pronunciava a frase diante do espelho em voz baixa, num apelo velado, sempre que o vício ameaçava tomar conta dele.
Dê uma chance à virtude.
Mas era apenas uma frase de efeito, dessas que, remoídas dentro da cabeça, não repercutem no coração ou no estômago e que, por isso mesmo, nunca surtem efeito algum. Ao contrário: bastava Leon pronunciá-la para que o próprio vício zombasse dela, voltasse num ritmo vulcânico, ainda mais forte.
Dê uma chance à virtude...
Em que consistia esse vício? De qual virtude, afinal, ele zombava tanto? O que eram, então, esse vício e essa virtude, sintonizados, em revezamento contínuo? E a dúvida principal: sabia, ele, Leon, diferenciar uma coisa da outra? Havia mesmo fronteira entre elas?
Talvez em fatos menores, no dia a dia do trabalho, fosse mais fácil identificá-la. O escrevente à esquerda, por exemplo, o tal Jessebom, sempre mimava seus gestos. Coçar a orelha, rasgar uma folha de papel, sentar com a perna esquerda dobrada sobre a outra. Beber do copo d’água a cada dois minutos. Sem dúvida o fazia inconscientemente, com defasagem de um ou dois segundos em cada gesto, mas quem os observasse veria algo semelhante a um macaquear bizarro.
Leon sabia disso, e sabia que o ideal – o virtuoso –, ali, seria adverti-lo (escuta, amigo, você não se dá conta mas está sempre me imitando nas reuniões...
) – como fizera com o caipira imberbe do almoxarifado, cujo cheiro corporal devido ao uso muito parcial de um desodorante barato era insuportável, contaminando a sala em quinze minutos de encontro (e Leon advertira-o, sim, com clareza, olha, o verdadeiro amigo fala de frente até mesmo as coisas mais embaraçosas e não cala temendo ofender, viu? Faço isso, entenda, não só por questões profissionais ou pelo incômodo, é também uma forma de ajudar você, um cara tão jovem, com esses traços firmes, ajudar você a conquistar mulheres, entende?, você tem um grande futuro com as mulheres
, vaticinava Leon, sem hesitação, desde que se cuide
) –, mas não o fazia, não advertia o escrevente sentado à esquerda, na certa não apenas por se tratar, no fundo, de algo absolutamente inofensivo (aquele macaquear inesgotável), mas também por temer uma perda: sem aquilo o dia ficaria ainda mais sonolento. Constatava, na verdade, que, com o passar dos anos, a mímica de Jessebom se lhe tornara essencial. É duro sobreviver em reuniões sem graça e previsíveis, sempre lerdas, repetitivas e modorrentas. Um vício? Admitia que sim. Pois ele próprio se habituara a mimar outras pessoas no trabalho: observava gestos e fazia igual, às vezes sem nem mesmo perceber, de forma que, na realidade, o escrevente que o imitava acabava imitando, a rigor, um terceiro colega, e assim por diante. Esse é o passatempo de mímica coletiva bolado por Leon ao acaso, praticado por ele sozinho, apesar da contribuição involuntária de tantos outros. Um de seus planos bolados na solidão e jamais executados era justamente instalar uma câmera, gravar imagens das reuniões e se entreter depois, em casa, na análise dos movimentos corporais daquele jogo, única diversão no trabalho durante várias semanas, meses, anos. Diversão, diversão. Não chegava a se constituir num vício... Diversão inconsequente, mera diversão, e pronto. Por que abrir mão dela em nome da virtude?
Para Leon, porém, a distinção entre vício e virtude, se era óbvia no mundo cartorial tosco e minúsculo, parecia nebulosa nas circunstâncias mais difíceis e decisivas. E este sempre foi o terreno no qual ele conheceu as complicações maiores, as dores lentas e os momentos menos divertidos.
Hoje é sábado, acabei de jogar futebol aqui no kibutz Ruhama (onde estou aguardando a resposta que será dada amanhã). O pessoal aqui me chama pelo sobrenome. Zaguer
... é esquisito, ainda mais que não jogo de zagueiro (hahaha...). Muito pelo contrário: fiz três gols. Ontem, finalmente, escrevi a carta para casa falando do meu plano de passear pela Europa depois de ficar aqui cerca de um mês. Não foi fácil... é claro que decisões desse tipo são fundamentais para mim, pois tenho muito tempo para gastar. Vou colocá-la amanhã no correio. Acho que deve haver um, por aqui. Os russos foram passar o fim de semana fora e fiquei sozinho num quarto, onde não me queriam deixar ficar. O cheiro deles ficou impregnado... Estava no auditório do anfiteatro, ao ar livre, e recordei a época em que queria – sonhava –, me tornar um dramaturgo... Foi uma experiência muito importante, essa do teatro. Estudei-o com carinho, confiante no valor do esforço. Lembro perfeitamente dos ensaios do Cristóvão Reflexões, da atuação do Moti, nós dois, inexperientes, experimentando com força de vontade. Depois o mergulho em Brecht, um pouco apressado e ansioso, a adoração. O resto... depois conto. Os russos devem voltar hoje... Preciso arranjar um jeito de dizer a eles que têm que se lavar... No quarto ao lado há um brasileiro de Minas Gerais, Arthur, e ele está escutando a fita do Chico Buarque com Bethânia, onde eles cantam o Sinal fechado
do Paulinho da Viola. Isso me fez lembrar a interpretação que o Fagner deu à mesma música, num tom mais desesperado, mais teatral. Ontem, à noite, comecei a ler o Reflexos do baile, do Antonio Callado, pela quarta vez; parece que agora o autor resolveu se concentrar mais na linguagem e utilizar-brincar com a sintaxe. Isso o torna difícil, mas muito bom. A vida no kibutz é, de fato, a vida que se leva em uma estação de águas. A única diferença é que lá são oferecidas seis horas a mais de descanso (e aqui trabalha-se durante todo o tempo). Preciso arrumar a melhor maneira de vivê-las... no duro, a própria vida cuida disso para mim... Antes de sair para o futebol, estava no quarto com a Gina conversando (ela contando a vida no Recife)... e estava gostoso. Li também o Aurora, semanário em espanhol, com uma notícia falando sobre um manifesto de empresários paulistas (pessoal do Papa Júnior) contra a ausência de um Estado de Direito. Só agora eles se tocaram da merda que estavam apoiando? Na verdade, eles representam a burguesia desuniforme e desesperada do Brasil (uau!, é isso aí, é isso aí, aqui ninguém me segura!), que boia sobre uma lagoa onde a água é trocada, posta, retirada, suja, pelas forças estrangeiras (viva o sr. Simonsen!) e pelos financistas nacionais (viva!). O que dizer do restante da população? É por isso – entre outras coisas –, que pretendo retornar ao Brasil, fazer o que puder... Essas exaltações no final são de matar... Não me agrada o jeito como as escrevi.
Parado no hall de entrada do hospital, Leon engolia em seco e olhava para o alto. Pendia do teto do vão livre monumental um móbile de formas metálicas: gotas gigantescas pretas e douradas do tamanho de bebês. Uma dúzia de bebês brilhantes flutuando sem olhos nem bocas ou narizes, ao sabor de um sopro difuso, numa coreografia de movimentos milimétricos, imperceptíveis. Olhava as gotas de metal soltas no ar, mas logo buscava, também, o piso de granito, depois as poltronas e os sofás de couro preto, simetricamente distribuídos. E o piano de cauda, silencioso.
Engoliu em seco mais uma vez, fechou os olhos energicamente, como se a suntuosidade do edifício e o fraco movimento de pessoas (para o começo de uma tarde de domingo de céu inteirinho azul, malgrado o vento outonal, frio e traiçoeiro) reforçassem, nele, a ansiedade e a angústia que se impunham desde aquela manhã.
Passeou em torno da cafeteria, lentamente. Demorou-se de olho na vitrine da lojinha de presentes. Circundou os caixas eletrônicos próximos ao banheiro masculino. Metros adiante, percorreu a passos doentiamente lerdos o labirinto de painéis fotográficos que contavam, como num museu itinerante, a história do hospital Albert Einstein. Da concepção megalomaníaca à glória da inauguração. Numa das imagens, registrada para imortalizar o início das obras, viam-se as placas das firmas integrantes do empreendimento. E lá estava, em letras nítidas de estilo clássico, o nome do pai: Adolpho Zaguer, responsável pelas instalações elétricas. Bela placa – e o pai tinha, naquele começo dos anos 1960, quase a idade que ele próprio tinha agora. A mesma idade, porém um histórico de realizações muito mais consistente. Uma distância imensa podia ser verificada entre ele, um homem ainda a engatinhar nos carpetes do trabalho, e