Nobel
De Jacques Fux
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Pré-visualização do livro
Nobel - Jacques Fux
1ª edição
Rio de Janeiro, 2018
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
Fux, Jacques
F996n
Nobel [recurso eletrônico] / Jaques Fux. – 1. ed. – Rio de Janeiro: José Olympio, 2018.
recurso digital
Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-85-03-01353-6 (recurso eletrônico)
1. Romance brasileiro. 2. Livros eletrônicos. I. Título.
18-47696
CDD: 869.3
CDU: 821.134.3(81)-3
Copyright © Jacques Fux, 2018
Design e ilustração de capa: Frede Tizzot
Este livro foi revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito.
Reservam-se os direitos desta edição à
EDITORA JOSÉ OLYMPIO LTDA.
Rua Argentina, 171 – 3º andar − São Cristóvão – 20921-380 – Rio de Janeiro, RJ – Tel.: (21) 2585-2000
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ISBN 978-85-03-01353-6
Produzido no Brasil
2018
Inventas vitam juvat excoluisse per artes.
Aos inventores das artes graciosas que a vida embelezam.
(Trecho da Eneida, de Virgílio, inscrito na medalha do Nobel de Literatura)
Sumário
NOBEL DE LITERATURA | Jacques Fux
Livro
NOBEL DE LITERATURA
Jacques Fux
Eminentes senhores da Academia,
Após anos de escolhas polêmicas, algumas vezes equivocadas e até vergonhosas, finalmente os nobres cavalheiros se redimiram e tomaram uma decisão acertada. Caríssimos, o vosso dever foi cumprido. Parabéns. Eu, sem dúvida alguma, sou merecedor incontestável desta premiação.
Sim, desde muito jovem devoto a minha existência à literatura. Não exatamente à leitura e aos estudos dos clássicos, o que é muito banal e nada inédito, mas à transfiguração desse meu eu, real e biográfico, em um eu ficcional e ventríloquo da memória e da obra dos outros. Em prol deste sublime momento, ilustres colegas, eu me dediquei a metamorfosear e a introjetar a vida e a experiência dos escritores que estiveram antes de mim neste púlpito. Eu sou todos eles. Sou, inquestionavelmente, a obra de excelência numa direção ideal
, como bem vos instruiu Alfred Nobel em seu testamento, com a intenção de agraciar os heróis-vencedores deste Prêmio.
O propósito desta láurea é reverenciar aqueles que, a partir da arte, dignificaram e ampliaram a concepção da vida. Que vislumbraram algo de divino e de supremo nessa sórdida devassidão humana. Que coibiram os próprios interesses comezinhos para alcançar um outro patamar na pesquisa e na exploração da linguagem literária. Eu represento essa utopia. Sou o vosso protagonista. E sou também a vossa voz. Assim, com imensa alegria e orgulho, mas convicto de que a minha escolha foi correta, aceito humildemente esta honraria. Muitíssimo obrigado.
Acredito que muitos estejam incomodados com o início do meu discurso. Arrogante? Presunçoso? Falsário? Será que os senhores já estarão pensando em uma maneira de retirarem a minha condecoração? Afinal, desde 1901, que os laureados sobem aqui e dissimulam modéstia, surpresa e gratidão diante do Prêmio. Mas, sejamos honestos, não há mais tempo para sofismas: todo escritor é um amálgama de Narciso e Dorian Gray. Todo escritor é pedante, insolente, arrogante, vaidoso. Essa é sua essência. E, mesmo que ela seja velada, não há como escondê-la. Permitam-me, portanto, expor, escancarar e assolar o lado obtuso, clandestino, furtivo e maldito — mas essencial para a criação — da nossa casta de escritores.
Se a função da arte é desvelar a alma, as vicissitudes e a experiência humana, eu vos ofereço o seu âmago. Todos, todos que algum dia escreveram um livro sonharam com este instante de glória. Todos — até os que negaram — sentiram que foram reconhecidos e condecorados de forma merecida, ou criminosamente obliterados e perseguidos. Não há dúvida de que qualquer escritor, inclusive os de internet, tem certeza de possuir um dom extraordinário e sagrado.
Reza a tradição honrar e homenagear os que aqui estiveram. Aclamá-los como mestres, ídolos, fontes de inspiração e reverência. Colocá-los num patamar sacralizado e quase inatingível. No Hall da Fama e da Glória. Olímpicos. Mas concedam-me outra digressão. É no desvio, nos atos indecorosos, nos recalques obscenos, sórdidos, sorrateiros que repousa o verdadeiro autor e as suas mais sensíveis e honestas palavras.
Em meu discurso, farei questão de enaltecer os atos e os textos infames. Tudo que foi e é clandestino e vergonhoso. A infâmia, amigos, é um efeito com valor de sentido. É uma exaltação. Uma necessidade de dar atenção especial ao que não foi inventariado, mas ao que pode ser inferido, resgatado e recriado nas falhas, nas calúnias, nos esquecimentos. Àquilo que nem a própria ficção alcança.
Eminentes senhores da Academia
, meus caros, foi usado por Franz Kafka — um dos grandes esquecidos aqui — em seu acalorado discurso de ex-símio. Irônico, sarcástico, renegado, maldito, deicida, Kafka nos brinda com o desnorteio. Com o absurdo das palavras, com a originalidade do simples, com a atemporalidade da barbárie cotidiana. Ele é, foi e será sempre único. Narrador bíblico. Místico. Mítico. Precursor dos escritores que o seguiram, que o perseguiram, e também dos que o antecederam. E ele, senhores, indignem-se ou não, nessa sua célebre conferência, nos chamou de macacos. Ele nos insultou e nos acusou de sermos seres irracionais, ilógicos, perversos. Ele nos imputou a capacidade de brincar com nossas próprias fezes, gentlemen! Que bela infâmia. Mas será que ele teria tido coragem de proferir tal discurso neste auditório? Teria tido colhões simiescos para nos afrontar in loco — nós, nobres e pomposos detentores do saber? Ou será que se refugiou nos braços da ficção? Do absurdo? Do extraordinário? Suspeito de que não teria tido coragem, se agraciado fosse. Porém achei fundamental começar o meu discurso da mesma forma que ele. Entendam como quiserem.
Eu sempre me espanto com Kafka. A sua capacidade e inspiração para escrever tamanhas obras. Sinto sadismo ao tentar descobrir o que aterrorizava o seu ser e seu espírito. Desvendar seus monstros. Suas ficções curtas — desconcertantes e intensas —, suas ficções longas — inacabadas e perturbadoras — vieram, meu Diabo, de onde? Da vidinha banal como funcionário de uma companhia de seguros, ou dos mais íntimos e secretos tormentos, arroubos e indiscrições?
Conjecturo leviandades em busca de perdão.
Não me deterei nos livros, nos estudos e nos tratados acadêmicos. Todos já estão enfadados disso. Delicio-me com o vulgar desnudado em sua correspondência. Quero honrar e me confundir com esse homem, com esse verme mole
que se desvestiu para Felice Bauer, nunca imaginando que suas imprudências pudessem vir à tona. Ou será que ele, senhores, o demoníaco escritor, engendrou até isso? Não sei. Mas não duvido.
Kafka, enquanto perscrutava os martírios mirabolantes para seus livros, ficou noivo de Felice por duas vezes, mas nunca se casou. Por anos, iludiu sua Dulcineia. Os amantes viveram um romance apenas epistolar, deixando um legado de textos e poemas para que nós, reles escafandristas literários, pudéssemos criar uma versão usurpada do passado. E da literatura.
Os conspícuos colegas sabem que Kafka conheceu Felice durante um jantar na casa de seu amigo Max Brod — aquele que nos amaldiçoou ao salvaguardar e publicar a obra assombrosa e magistral do tcheco. Foi invenção à primeira vista. Quando cheguei à casa dos Brod, Felice estava sentada à mesa. Não senti a menor curiosidade por saber quem era, porque em seguida foi como se nos conhecêssemos a vida toda.
Os jovens fabulosos começaram a se corresponder, fazer planos e se amar: Uma aura de encantamentos rodeava a figura de Felice
, imortaliza o escriba em uma carta. O decrépito funcionário da empresa de seguros e a iludida executiva se comprometeram pela primeira vez dois anos após esse encontro. (Se os senhores desconhecem essa história, perdão, mas que se levantem e sumam logo daqui. Estão no lugar errado.)
O gênio da arte das palavras, das incoerências do cotidiano e da cobiça pelas paixões, aterrorizado pelas suas fantasias e delírios, internou-se em um sanatório. (Lugar terrível, seus monstros.) E a sua Felice, a quilômetros de distância do seu amor, rogou para que sua melhor amiga, Greta Bloch, a auxiliasse no tratamento do amado. O burocrata galanteador, transviado e paradoxal, mesmo agradecido pelo zelo de Felice, flertou sem escrúpulos com a melhor amiga da noiva. E foi nesse instante, sádicos comparsas, que sua epistolografia se apurou: ao mesmo tempo que escrevia para Felice planejando o casamento, redigia cartas calientes (arguto amigo) para Greta (perdoe-me, mas não posso deixar de glorificar esse sugestivo nome.) Isso, sim, é