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Entre ossos agora
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E-book200 páginas1 hora

Entre ossos agora

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Sobre este e-book

Nova e definitiva edição da estreia literária da atriz e escritora Maitê Proença
Em 2003, Maitê Proença saiu de seu lugar de conforto como atriz consagrada e arriscou-se – numa atitude pioneira – a abrir-se em uma coluna na revista Época. Nelas, a atriz e escritora revisitava memórias, opinava sobre o Brasil e o mundo, revelava-se sem pudores ou temores. O melhor de sua produção foi reunido em Entre ossos e a escrita, publicado em 2004, com grande sucesso. Uma década depois, aquele passo mostrou-se apenas o primeiro de uma carreira literária ousada e bem-sucedida, e Maitê decidiu revisitar sua estreia com o olhar de uma autora experiente, reconhecida pelos romances Uma vida inventada e Todo vícios.
O resultado é este delicioso Entre ossos agora, que, mais que uma reedição, é um novo e surpreendente livro. São 22 novas crônicas, que se somam a 36 revistas pela autora. Cada vez mais dona de seu estilo, sem medo de temas espinhosos e de confissões dolorosas, aqui encontramos uma autora fascinante, exposta sem rodeios e capaz de emocionar e encantar com a palavra.
IdiomaPortuguês
EditoraRecord
Data de lançamento24 de jul. de 2015
ISBN9788501106070
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    Entre ossos agora - Maitê Proença

    amigos.

    Uma mulher também chora

    Miguel Sousa Tavares

    Aprendi neste livro de crónicas da Maitê Proença que as mulheres também choram, não são só os homens. E, como mostra a escrita exposta da Maitê, choram com as coisas normais que fazem chorar os seres humanos: a dor da perda, a saudade, a solidão, o ciúme, o amor, a traição, o abandono.

    Oh, que ventania de ar fresco! Eu estava convencido, lendo as crónicas femininas-feministas das nossas cronistas portuguesas, que as mulheres tinham conseguido sublimar definitivamente essas fraquezas da alma e pairar lá no alto, num território etéreo onde não existem vícios nem fraquezas, apenas iogurtes magros, saladas verdes, carreiras profissionais sempre em ascensão e o inigualável prazer de se contemplarem no espelho — horas, dias, anos a fio — e todas essas horas, dias, anos, gostarem do que vêem, sem uma dúvida, sem um estremecimento. Eu estava quase à beira de me deixar ficar convencido pela veemência das nossas cronistas que as mulheres de hoje vivem ao abrigo de enganos e desenganos e, sobretudo, ao abrigo do bicho-homem e das suas miudezas.

    Nelas me vi reduzido à simples função de ocasional instrumento de prazer ou de escort-boy para fins sociais, a uma luz tão crua e aparentemente tão fria, que nem no tempo do meu bisavô os machos ousavam imaginar assim a função das mulheres. E, aos poucos, fui-me conformando à ideia de que, fora excepcionais situações de pura sorte, o destino inelutável de ambos os sexos era o de definitivamente se separarem e cada um aprender a viver por si — não apenas fisicamente, mas culturalmente, emocionalmente. Nas minhas piores previsões, antevi os tempos em que a ciência trataria de encontrar uma resposta para este desencontro, inventando um terceiro sexo no qual os outros dois se abasteceriam — para fins sexuais, de procriação ou simplesmente para passar férias ou conversar um pouco, de vez em quando.

    Mas olha que, afinal, uma actriz de talento consagrado, uma mulher bonita, inteligente e sensível, me vem dizer, sem pudor nem medo, aquilo em que eu sempre acreditei: que o amor é o verdadeiro motor da história (desculpa lá, Marx!), que toda escrita é sobre amor ou não presta, toda música é sobre amor ou não presta, mesmo toda solidão é por causas de amor ou é inútil, toda vida é em nome do amor ou não faz sentido. E por isso é que, porra!, gritamos, choramos, silenciamos, acordamos felizes ou adormecemos tristes, por isso é que há manhãs limpas ou dias cinzentos, noites de luar ou noites de breu, por isso é que nenhum pôr-do-sol é igual a outro.

    A Maitê faz isso, escreve isso, sem cerimónias, sem disfarces, sem embustes. Conta ela, numa das crónicas, que às vezes lhe perguntam se o que escreve sobre si e sobre a sua vida é verdade ou é invenção. A pergunta é insidiosa e estúpida e só dá vontade de dar duas estaladas ao leitor que assim pergunta. Todos os escritores misturam verdade com ficção e toda a ficção é uma forma de verdade mais íntima, mais escondida: para ser descoberta e não para ser devassada. O sal e a pimenta, a luz das crónicas da Maitê, é exactamente esse jogo entre o confessado e o imaginado, entre o que foi e o que podia ter sido, entre a vida que passa e se agarra e aquela que escorrega diante de nós e só a agarramos em pensamento.

    Uma crónica é um género literário muito especial, com regras próprias: exige entrega e desprendimento. Entrega quando se escreve, desprendimento quando se acaba e se passa à seguinte. Não existe nelas verdade nem mentira, existe entrega e desprendimento. É nossa e deixa de o ser, depois. Mistura sonhos com realidades, factos com possibilidades, encontros com eternas buscas, amores impossíveis com amores verdadeiros — que são os possíveis. Por isso, não há cronistas verdadeiros e cronistas mentirosos. Há, sim, cronistas sérios e entertainers da escrita. Pegamos no livro da Maitê e sabemos, vemos logo, que ela é séria e que o assunto é sério. Não escreve por passatempo mas porque o tempo passa e escrever é o único remédio, o único alívio, a única vingança contra o tempo que escorre.

    Aqui, actriz e autora do seu próprio texto, ela resgata, com brio e com paixão, a imagem de mulher sobre a qual gerações de escritores escreveram, compositores cantaram, pintores deslizaram e aos deuses inspiraram. Bem-aventurados os que sentem: os que choram, que sofrem, que têm vícios e fraquezas, dúvidas e não certezas, os que caminham à toa ou aos tropeções, os que buscam a luz no meio da escuridão, os que são honestos com a vida, os que partilham a alegria e o sofrimento, os generosos.

    E os que confiam à escrita o que nem às paredes confessam.

    Lisboa, agosto de 2005

    Prefácio à primeira edição

    Carlos Heitor Cony

    Pergunta comum feita a escritores:

    — Por que você escreve?

    Deve-se responder com outras perguntas:

    — Escrever o quê?

    — Escrever para quê?

    Ou com a resposta definitiva:

    — Por que não escrever?

    Se a pergunta é banal para qualquer um que se aventura no alucinado universo do texto, para Maitê Proença é específica. Por que uma atriz de sucesso, de larga exposição no universo audiovisual, sempre interpretando (ou interpenetrando) textos alheios, decide encarar o próprio texto?

    Este livro responde a esta e a muitas perguntas. Tendo uma coluna na revista Época, e sendo, como é, uma figura de larga exposição na mídia e na vida pública, em suas crônicas não há referência nem marketing de sua atividade artística. Não seria nada extravagante se aproveitasse o novo espaço, que agora conquistou, para explicações, desabafos e confissões, na interminável viagem em torno ou dentro de seu cenário habitual. Outros o fizeram e fazem.

    Eventualmente, ponteando seu dia ou seus compromissos, ela faz breve marcação: depois de gravar. Como se dissesse: depois do almoço, ou antes de dormir. E todos conhecemos a sua atividade profissional, sendo uma das atrizes mais constantes do cinema, teatro e TV, vestida como a amante de um imperador, ou nua em cima do cavalo, como Lady Godiva e Dona Beija.

    Lembro propositadamente os papéis que ela viveu em dois dos três projetos que fiz para TV, num estágio circunstancial e distanciado de minha atividade principal. Ao entrar naquele serpentário, que é o mundo do espetáculo, receava ter problemas com artistas e técnicos cuja autoestima frequentemente exige prioridades e tratamento diferenciado dos demais operários do mesmo empreendimento. Maitê foi para mim uma surpresa, sendo como é uma profissional competente e responsável.

    Como protagonista de duas histórias de época, nela admirei a mesma consciência e acabamento que encontro em suas crônicas. Nesta primeira coletânea, ela própria se pergunta por que resolveu escrever, supondo que se trata de uma carência pessoal — quando, na realidade, é o exercício de uma visão do mundo, uma reflexão diante de si mesma.

    Escrever é verbo transitivo, pede complemento direto, que em latim exige o acusativo. E Maitê acusa, acusa no sentido de estar presente, e não em termos de libelo, denúncia ou queixa, mas de expressão de seu mar interior.

    Tem um buraco que fica entre os dois peitos, parece uma moleira, mas chamam de plexo solar. Por ali me entra cada coisa... Outro dia entrou o mar inteiro, subiu até a garganta, apertou tudo e está lá, não quer sair. Vou te mandar um pouco.

    Nada pretende ensinar ou revelar, apenas constatar:

    Não basta que haja amor para viver um amor. Quando um se sente em paz, o outro quer a guerra. É preciso me traduzir a cada centímetro do caminho enquanto ele explica que eu também não entendi nada. Discordamos sobre o tempo, o tamanho das ondas, a cor da cadeira. O desacerto é de lascar e não há cama que resista a tantas reconciliações — um dia a cama cai.

    Temos, enfim, a Maitê que deixa de ser o peixinho dourado e azul do aquário iluminado, no qual estamos a vê-la e admirá-la. Ela se oferece, agora, na densidade das águas submersas, onde nem sempre chega a luz do sol, mas tem o mar inteiro para se exprimir. Penetra com lucidez no sombrio átrio onde se realiza o solitário rito que fica, eleva e consola.

    1

    Assinatura não é tattoo

    Será?

    — De onde você escreve tem vista?

    — Vejo o mar.

    — Deve ser por isso que não quer publicar seus textos.

    Foi assim que o editor da revista entendeu minha resistência inicial em publicar estas crônicas. Ao longo dos anos ele havia percebido que os que escrevem em local fechado gostam de mostrar suas coisas, e quem o faz olhando pro mundo tende a guardar na gaveta. Pois, como se vê, minha resistência encolheu, e não foi preciso tirar o mar da frente, mas o fato é que, quando a cabeça encrenca e a noia aposta que nunca mais terei uma ideia que preste, baixo a persiana e pronto… as palavras vão chegando.

    Será a beleza tão dispersiva que nos põe bobos a contemplá-la? Será que ela rouba a vaidade de se exibir pro outro? Será que a janela do García Márquez dá pra lixeira pública? Não, não pode ser uma questão estética. É questão de vista simplesmente — feia ou bonita, da fábrica, ou das montanhas de Machu Picchu, tanto faz —, quando se escreve olhando o mundo a gente não tem como negar que tirou tudo dali, e talvez por pudor não queira repetir pra ele o que nos havia sido mostrado. Pode ser. Por outro lado, Joyce, Stendhal, Flaubert, Shakespeare, Jorge Amado… nenhum era cego, como se poderia supor. Tem o Ray Charles, Stevie Wonder, mas são músicos, e Beethoven…

    Vamos tentar pelas paralelas. O sujeito que mora no subúrbio se esbalda aos sábados no baile funk, enquanto o morador da Vieira Souto se tranca em casa pra proteger-se da violência urbana. E tem o outro que construiu um piscinão no jardim, três meses se passam, fim da novidade, ele paga os tubos por férias em Itacaré. Requinte de rico é a simplicidade — casa de pescador, praia deserta e luz de lampião. Você prefere ver o Mick Jagger no Maracanã ou no teatrinho da esquina? Se for na esquina e você estiver $podendo, saiba que seu ídolo deu pra fazer pockets de Satisfaction em microcasas de cem lugares. Com o mundo aos britânicos pés, Jagger prefere, agora, encantar um punhadinho. Caetano e outros deuses também.

    No quesito sexo, sempre indispensável em considerações como estas, aquela transa escondidinha na cama apertada do quarto dos fundos é menos excitante do que a da suíte aclimatada, com travesseiros de pena de ganso? Temo que não. Acho até que tem gente ralando por uma king-size, pra depois ficar esparramada e tensa gastando neurônio em papo-cabeça, enquanto os da caminha xumbrega desencucam o desejo em baixas fantasias de alta voltagem.

    Será?

    Será que é mesmo assim? Será que enquanto minhas possibilidades aumentam o encanto retrai e as ideias encurtam? Será que o horizonte me leva pra dentro de mim? Será que me mudo pro outro lado do túnel? Será que ele volta se eu trocar minha king por uma mini de mola? Será que o Luis Fernando Verissimo tem tantos serás? Será que consigo uma última frase que responda a tantas perguntas?

    O pai, a mãe, e o que mora no meu coração

    Desde que comecei a escrever pra revistas e jornais, as pessoas me perguntam se é tudo verdade, se tive outro filho além da Maria, se tomei hormônio de crescimento, se passei mesmo a calçar 42, se minha história de amor é assim ou assado, por aí vai. Give me a break, gente. Se até em autobiografias a criatura escreve o que ficou na memória, e esta, como se sabe, guarda as coisas como lhe convém, o que dizer de mim, que nem memória tenho mais… A verdade depende de quem conta, e, ainda que escancare as minhas aqui, muitas vezes simplesmente invento. Porque a versão da coisa é mais divertida, e entre uma mentira bem contada e uma verdade, escolho a primeira! Outro dia uma leitora reclamou de leviandade na escolha do tema: paus. Talvez eu devesse, para não incomodá-la, ter chamado de pênis, membro ou o falo. O senhor poderia introduzir o seu falo de forma a não provocar ardência em meus lábios vaginais? E o humor iria para onde, minha senhora? Pra Sibéria. Enquanto a gente ficasse aqui discutindo moralismos, eles estariam lá às gargalhadas. Não. Quanto mais sério o assunto, que venha embalado na graça divina! E quase sempre é melhor. Quase. Mas agora não. Peço perdão e licença pra pesar no tema.

    De uns tempos pra cá, desde que certa senhora resolveu fazer dinheiro com a tragédia

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