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Labirinto filosófico
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Labirinto filosófico
E-book399 páginas5 horas

Labirinto filosófico

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Sobre este e-book

Na origem dos diversos discursos sobre o "fim da filosofia" – muitos dos quais "na moda" – que, ao menos desde Nietzsche, tanto caracterizam o pensamento do Ocidente, está a "sentença" hegeliana: que a philo-sophía deixe de chamar-se "amante" e se afirme, finalmente, como puro saber, Sophia ou mesmo Ciência. Amor e Saber devem dizer adeus um ao outro. E que o sophós dispense sua veste de eterno peregrino e fixe sua morada. É esse o destino de nossa época? Ou ainda há "aquilo" que não podemos exprimir, representar, indicar a não ser amando-o? O discurso filosófico-metafísico carrega em si o rastro dessa tensão, e é justamente aí que encara seu problema, sua aporia constitutiva: o ente é, em sua singular identidade jamais coincide com as determinações que o lógos lhe predica, e sua substância não pode desvelar-se na finitude de seu aparecer. Toda ontologia deve estar baseada nessa diferença – não diferença entre ser e essente, mas diferença imanente à realidade do próprio essente, e, em particular, exatamente desse extra-ordinário essente que tem corpo e mente. Para além do exercício cada vez mais vazio das des-construções, para além das abstratas especializações, para além da academia e das escolas, será a tal problema – eterno aporoúmenon – e ao "temor e tremor" que ele suscita que este livro pretende retornar para, escutando alguns grandes clássicos da tradição metafísica, desenvolvê-lo mais uma vez. Partindo dele, ou sempre reativando-o, talvez inconscientemente, a filosofia conduziu a própria busca por diversas trilhas, de certa forma contemporâneas, que se contradizem e se cruzam ao mesmo tempo, numa espécie de inimizade fraterna. Com seu próprio modo de proceder, essas trilhas acabam por criar o "lugar" de um paradoxal labirinto, que obriga a sair de seu centro em direção a imprevisíveis saídas – ou a formar uma grande árvore da qual essas trilhas são ramos, raízes e rizomas.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de jan. de 2021
ISBN9786586683523
Labirinto filosófico

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    Labirinto filosófico - Massimo Cacciari

    T.]

    1. Seguir o rastro. «É necessário, para exceder a metafísica, que um rastro esteja inscrito no texto metafísico, fazendo signo [...] em direção a um texto totalmente outro. Semelhante rastro não pode ser pensado more metaphysico² Assim escreve Derrida em um ensaio fundamental de 1968, «Ousía e grammé». Na passagem que omiti, Derrida explicita o pressuposto da «superação» que se gostaria de operar — e em torno dela será elaborada a discussão que segue. De modo absolutamente preliminar, é preciso se perguntar: o «rastro inscrito», se pôde chegar ao intérprete que agora adverte sobre seu «apagamento», não deverá ser compreendido como uma «linha» não interrompida, uma «linha» que soube durar? O que significa, então, o «totalmente outro»? Essa diversidade, se indicada pelo rastro imanente no texto, deverá ser encontrada, ao menos em potência, no próprio texto. Esse texto poderá «trespassar» naquele outro, não pensável nas formas do primeiro, mas, todavia, deverá em geral ser pensado a partir das condições que no primeiro já estavam colocadas. E  aqui, assim, o «trespassar» deverá ser compreendido hegelianamente, isto é, como uma «volta», não apenas à qual a estrada percorrida conduz, mas que de algum modo esta última já indicava e da qual já carregava o «sinal». Ou, pelo contrário, sustenta-se que «instalar-se» no rastro, interrogá-lo, já não seja necessário? Ou que se trata exclusivamente de um louvável exercício histórico-filológico? Se é assim, ou o texto «completamente diverso» se apresenta como um fim inatingível, uma palavra que sempre falta, ou se assume, talvez de forma sub-reptícia, que ele já tenha chegado e que nós vivemos no interior de seu acontecimento. Qual seria então a natureza desse texto foi o objeto de várias, e até mesmo complementares, correntes de pensamento: a do texto poético ou de certos textos poéticos (e de sua hermenêutica); por outro lado, a do cumprimento da metafísica no «saber absoluto» (e absoluto, como veremos, justamente em seu «sempre prosseguir») do que é compreensível e transmissível na linguagem e na escrita da matemática, dos mathémata em sentido próprio; a da experiência mística, especulativamente compreendida como o que tal cumprimento jamais poderia subsumir e muito menos criticar, uma vez que ele se limita necessariamente (sob pena de contradição) a valer como cumprimento apenas da metafísica. Em vez disso, o texto «totalmente outro» não poderá, por princípio, consistir naquele da «desconstrução», na dimensão essencialmente aporética do des-construir. A  «desconstrução», com efeito, ou apenas visa a dissolver o texto metafísico (então, o que se tornam os mathémata senão a «consciência» histórica daquilo que operaram ou sustentam ter operado?) ou acabará por colocar-se nos rastros das possíveis interpretações agora indicadas.

    A leitura do texto metafísico tem sentido somente se assume um caráter re-velador. Se o des-construir não «apaga» mas, antes, revela o «signo» da superação como imanente ao próprio texto, e demonstra escutá-lo-compreendê-lo. Mas, se a desconstrução é, por sua vez, índice desse possível êxito, ela pressupõe o oposto de um «fechamento» do texto: pelo contrário, está indicando nele justamente a abertura (entendendo-se esta como abertura a uma «origem» não escutada ou a um adveniens «totalmente outro», que pode combinar-se com essa mesma origem de vários modos — nesse caso, vê-se obrigada a «fingir» de novo, curiosamente, a figura do círculo, da qual pretendia sair).

    A partir dessas considerações, segue-se outra: que a prática desconstrutiva assim compreendida contradiz in rebus ipsis toda «reconstrução» em geral da história-destino da metafísica. Os  rastros são reduzidos a destroços ao longo da estrada, caso não possam ser compreendidos como reais signos de linhas falhas. Se a «voz» da metafísica é atribuível substancialmente a alguém e, portanto, sustenta-se ser possível conhecer o que ela é, torna-se, por fim, um objeto desmontável-analisável, «à disposição», e para ela nos voltamos exatamente na forma que se presume ser a sua própria e que se pretenderia superar. O  que nesse texto permanece in-audito? O que nele se apresenta como destinado ao esquecimento? O texto é um conjunto de rastros e signos que excedem constitutivamente a letra, mesmo que só na letra possam se re-velar. Em torno desses signos o texto dá vida a interpretações contrastantes, a um pensar-seguido-de-outros (o nach-denken de Arendt). O  rastro não é um «dado» que se apresenta no texto, mas um elemento que carrega a interrogação, exigido pelo caráter desse próprio texto. É  uma só, sempre substancialmente idêntica a si, a «voz» que regeria o discurso, lógos, da metafísica? É essa voz, a consciência dessa voz, a impor um fundamental dualismo entre corpo e alma? E a conseguinte hipótese da imortalidade da alma seria concebida em função de uma radical Abschaffung, remoção-apagamento, da morte? A evidência racional a que visa a epistéme remete sempre e necessariamente à consideração do ente como absoluta presença e ao primado do tempo presente? Não existem diferenças entre esse Macrotexto e os signos nele inscritos, que se movem «em direção» de suas possíveis ultrapassagens? Ou a diferença já age no interior de sua estrutura, impedindo esta de realizar-se como tal, desconstruindo-a e abrindo-a à interrogação? Também é a voz-lógos da metafísica sempre semaínein, signo, grámma, corpo? Ou apenas sobrevém a seu cumprimento, como a coruja de Minerva, a «descoberta» do rastro esquecido? Caso se sustente que a primeira alternativa pode ser percorrida, o texto metafísico poderá ser considerado rastro em si, em sua concretude e inteireza, portanto algo digno de ser re-pensado exatamente por aquilo que nele se afirma como essencial, uma vez que seu saber, em sua completude e integralidade, é ao mesmo tempo saber de proveniências e destinações apenas indicáveis, que se faz signo, isto é, exprimível somente em formas diferentes daquelas da predicação da presença do ente, da ousía ou parousía.


    2 Jacques Derrida, «Ousia e Gramme». In: _______. Margens da Filosofia. Trad. Joaquim Torres Costa e António M. Magalhães. Campinas: Papirus, 1991. p. 103. [N. T.]

    2. O  essente: o aporoúmenon. Para tentar justificar essa abordagem, é preciso partir do próprio tema que, sem dúvida, domina a metafísica e, com ela, todo o Ocidente: a interrogação sobre «o que é o ente». Ente traduz tò ón, particípio substantivado. Não «ser», eînai. A  diferença é evidente, ainda que continuamente mal-entendida: de fato, a pergunta sobre o ente não pode coincidir com aquela sobre o infinito «ser». Procuraremos esclarecer isso ao longo de nosso itinerário, mas é bom fixar desde já: o problema que nos incomoda diz respeito à predicabilidade e ao conhecimento do «isto» do ente. Por que o tóde ti, o ente como este aqui, Da-sein? O ente se determina segundo características e partes que serão objeto das ciências particulares, mas em todas as suas determinações se manifesta como presença concreta, esta que «resiste» à nossa frente, ob-iectum, Gegen-stand. Essa presença deve ser interrogada. Ela absolutamente não tem o caráter da imediata dadidade. O  ente se torna real quando é efetivamente percebido. (Podem existir entes, potenciais objetos de qualquer órgão de sentido, sensibilia, que atualmente não percebemos? Por certo, sim, mas, agora, eles não são reais.) O ente está diante de nós a ponto de nos impressionar. Nossa correspondência com ele é simultânea a seu aparecer. A  evidência de sua presença não é algo pressuposto e já destinado a ser compreendido nas categorias do lógos, a transformar-se em legómenon. O  tò ón não «está» à frente, «à espera» de ser predicado, mas age: seu aparecer suscita a interrogação (tornando assim possível que na interrogação se manifeste a finitude do ser-aí,³ daquele Da-sein de todo extra-ordinário que se caracterizará justamente no cuidado do interrogar). Sua presença «está» apenas como gegen, contra o Da-sein, o ser-aí que, tocado por essa presença, adverte em si a urgência, a necessidade da interrogação. No fato de Aristóteles não se colocar o problema da demonstração do mundo externo já não se delineariam, por isso, in nuce, as razões da crítica heideggeriana ao idealismo e ao realismo, contida, em particular, no parágrafo 43 de Sein und Zeit? Tò ón, o essente, na Metafísica, de fato não é nem aniquilado nem ressuscitado por meio de algum processo gnosiológico. Também aqui interrogação e ente intramundano se desvelam juntos. O  próprio mŷthos, a palavra mítica, é, por isso, interrogação: uma forma em que o ser-aí corresponde ao «golpe» que sofre pela presença do ente. O  Achsenzeit, a idade axial do século VI, transforma-a radicalmente; o dizer em torno do ente se torna o problema da determinação da essência do ente. Muda o tratamento do thaûma, mas este, e sua originariedade, de fato não falta.

    E o movimento desse desvelamento é indicado justamente pelo termo thaûma-thaumázein, no qual de novo se contra-dizem atividade e passividade. Movimento e não instante, átimo, puro nŷn, agora. O  thaûma se desenvolve no thaumázein, que não é estupor, mas cuidado (também no sentido de deinón, tremendo, da angústia), pois o espetáculo do essente e da multiplicidade do essente deve apreender e conturbar, para poder abrir à interrogação. E  a decisão de perdurar nessa abertura parece indicada por Aristóteles na famosa passagem «é dià tò thaumázein, por sua capacidade de maravilhar-se, que os homens começaram a filosofar (arché da filosofia, de todo modo, aparece o thaumázein), e isso vale tanto agora quanto na origem, kaì nŷn kaì tò prôton». Assim, continuamente se renova a maravilha-e-a pergunta sobre o essente. E, com esta, a experiência da aporia (Metafísica, I, 982b 12-17), a experiência do ignorar o caminho que ainda deve ser percorrido e, de uma só vez, da vontade de realizá-lo, libertando-se assim da ignorância. O  ser-aí é, sim, no interrogar, para dizer com Heidegger, sempre além do ente, transcendens o ente, mas apenas na medida em que sempre o interroga e sempre diante dele se maravilha. O  ser-aí é «transcendente» porque sempre «em meio» ao ente, à totalidade dos ónta, porque é o ente que jamais é weltlos, sem-mundo, mas sempre a caminho de dar forma a um mundo. No thaûma o aparecer do ente, o «resistir» do ente intramundano ao ser-aí que nele quer traçar o próprio caminho, passividade do ser-golpeado e atividade da interrogação, desvelam juntos a pergunta «o que é o essente?». O  texto metafísico diz respeito, portanto, ao ente como tal, o maximamente concreto. Meta-física é a interrogação em torno à phýsis do ente que nos maravilhou tremendamente. Mas como se articula tal perguntar? Sobre o pressuposto simples da absoluta presença do ente? E o perguntar metafísico manifesta a audácia, como se exprime Heidegger, de exaurir a própria pergunta, eliminando, por fim, a diferença entre ente e ser do ente? Aqui, não se trata de perguntar se o sujeito corre o risco ou não de corresponder ao thaûma, até fazer estar (stand) o ente que estava contra (gegen) ele. Trata-se de compreender se o ente, justamente em sua concretude, é resolvível em pura presença — e se essa assunção constitui o pressuposto não discutido a partir do qual tem início e se cumpre o discurso metafísico, seu alfa e ômega, como parecem sustentar as mais diversas práticas hermenêutico-desconstrutivas.

    2.1. Diaporeîn. O problema que o thaûma abre é, portanto, este: impossível indagar partes ou elementos do ente antes de ter estabelecido a natureza do ente em geral, e como este, igualmente em geral, possa ser predicado. Essa interrogação preliminar e fundamental falta, para Aristóteles, nas origens da filosofia (à próte philosophía). As  obras assim chamadas lógicas e a Física não podiam, por sua vez, levá-la a termo. No conjunto do Organon o enraizamento ontológico dos esquemas da predicação (schémata tês kategorías) permanece pressuposto, mas não diretamente discutido; na Física, a investigação dirige-se, assim, ao ente físico, intramundano, sobre a constituição material (ou substrato: hypokeímenon ou hýle) e sobre o princípio de seu movimento, mas nela não encontra lugar a consideração do essente segundo seus dois significados fundamentais: «tò tí ên eînai» e ousía (988a 34-35). A  «tradução» dessas expressões constituirá o problema das páginas que seguem.

    A ordem da argumentação se inicia a partir da ousía. O  termo deriva do particípio ón. Na linguagem não filosófica, ele pode designar um bem possuído, uma terra, uma casa, uma fonte à disposição. Parousía explicita e reforça a mesma ideia: a ousía presente e ao alcance da mão. Apousía indica sua subtração ou ausência. Nada mais evidente, seria possível dizer. A  filosofia pretende chegar a uma determinação do ente em sua própria ousía, a conceber com a máxima clareza a constituição do ente em sua presença estável, em seu continuado permanecer diante de nosso olhar, do olhar da theoría, e a exprimi-lo com a voz do lógos, não por meio de signos-sinais-símbolos, mas exaustivamente, predicando-o segundo todas as formas em que ele se oferece à visão. Ao aparecer do ente deve corresponder perfeitamente a ideia que o significa. O  «tò tí ên eînai», o «quod quid erat esse» da Escolástica, acrescenta algo essencial? Desvela essa expressão a uma perspectiva que aprofunda o tema da ousía-presença em um sentido não resolvível nessa determinação? Por ora, deixemos a questão suspensa, lembrando, porém, que ela constitui um rastro ainda a ser seguido. De modo preliminar, já poderemos nos perguntar: como é possível equiparar ousía ao presente, «exauri-la» em sua referência ao tempo presente, se, «no mesmo tempo», resulta necessário predicá-la também por meio do imperfeito do verbo eînai-ser? Pode, de fato, ser parada no Anwesend, no ser-presente da ousía, uma filosofia que acompanha essa predicação com aquela do «tò tí ên eînai» (aqui, o confronto é com Heidegger, Introdução à metafísica, cap. II)? É preciso, porém, prosseguir sem pressa.

    O famoso incipit do Livro IV («Há uma epistéme que considera teoricamente o ente como ente, o ens in quantum ens, e as propriedades que lhe competem como tal», que lhe competem enquanto é, no sentido indubitável do existir, ciência que se distingue daquelas que, justamente com base nessa definição, serão chamadas «empíricas», que estudam aspectos particulares do essente, determinadas características — distinção destinada a fundar a hierarquia dos saberes no Ocidente por quase dois milênios), preparado pelo desenvolvimento dos livros precedentes, abre-se ao exame de todos os diversos modos em que tò ón pode ser dito (1003a 21; 1004b 15). Que esse légein pretenda corresponder «realisticamente» à constituição do ente parece algo, com franqueza, demasiado óbvio para nele ter de insistir. Por isso, é ainda mais interessante aprofundar-lhe a dimensão linguística e, precisamente, compreender os limites de uma interpretação «presencialista» da ousía. Mas a isso voltaremos mais tarde. Basta, por ora, colocar em relação o nexo problemático originário entre o aparecer do ente-thaûma-interrogação e a pluralidade dos modos em que se articula a predicação do ente: desenvolvimento autêntico da própria interrogação. Não se trata, em suma, de um simples responder à aporia, mas de diaporeîn, de um proceder nela e por meio dela.

    O essente se diz pollachôs (e de muitos modos é necessário dizê-lo para dizê-lo em sua totalidade como é), mas sempre em referência a mía phýsis, a uma «natureza». A  expressão assume um duplo significado: aqui, phýsis indica não só o «princípio» ao qual o lógos se refere quando fala de um conjunto de entes (como quando dizemos «são» para coisas muito diversas entre si), mas também a natureza unitária e determinada do ente específico que é predicado. A  referência é sempre a tò ón, que jamais é «abstrato» e cuja unidade nunca é «apagada» pelo theoreîn (para então, talvez, como se dizia, ser ressuscitada na predicação que sobre ele realiza o filósofo-cientista). O  ente permanece sempre em sua presença, presença que participa de todas as outras e que existe por força dessa participação (de fato, em que outro sentido tò ón seria particípio? Não deriva do radical verbal quase indicando seu «mover-se» à comunalidade com os outros essentes?). O  ente é sempre considerado um tóde ti, um este determinado, íntegro no aparecer de sua forma. Por isso, ente e uno se implicam reciprocamente. Não é concebível nenhum uno separado do ente. A  «henologia» aristotélica considera o uno apenas como imanente à unidade determinada de cada essente, em explícita polêmica com a platônica. (Sobre isso Enrico Berti escreveu páginas que esgotam o tema, «L’essere e l’uno in Metaph. B», in: Nuovi studi aristotelici ii, 2005). Nenhuma ék-stasis, em suma, do uno ao Unum. Mas deveríamos nos perguntar: aqui não se denuncia uma autêntica falha no suposto Macrotexto da metafísica? Se o uno não significa simplesmente-claramente o uno-do-ente, como poderá então o este do ente resolver-se na pura presença? E, por outro lado, a crítica aristotélica, quando exige que se tenha firme a unidade do ente, que toda predicação seja em referência ao uno, não acabará problematizando o caráter universal dos esquemas categoriais, ou das formas e dos gêneros, com o qual o próprio ente é predicado? Uma vez que, se ens et unum convertuntur, o estudo do ente como ente deverá realizar-se como análises da diversidade dos entes, cada um deles uno em si, ou dos diversos modos do aparecer-ser presente do ente em geral. O  estudo da ousía deverá ser feito, isto é, análises das ousíai.À polivocidade do ente corresponde a multiplicidade das ousíai, comuns tanto no ser cada uma delas una quanto pelas formas em que são predicáveis. A  metafísica deve compreendê-las todas (1004a) e, portanto, necessariamente, também a primeira, a do Ente que é arché de toda outra ousía, sumo Ente, motor imóvel, divino. Por isso, é evidente como o problema teo-lógico é inseparável, nessa perspectiva, do ontológico e gnosiológico. O  nexo onto-teo-lógico permanece no texto metafísico indiscutível e insuperável (mas veja-se ainda E. Berti, capítulos XII e XIII do volume citado, que sublinha justamente o caráter de Pensamento da Primeira Ousia aristotélica). Mas isso não significa nem que se possa falar de ousía de modo indiferenciado nem que a unidade do ente sensível possa ser compreendida sem problemas como essencialmente análoga à da ousía primeira. Também a esse propósito, é redutivo compreender a «passagem» ontológica-teológica da Metafísica como se se tratasse de variações sobre um texto que permaneceria inalterado; antes, são compreendidas como autênticos rastros que do texto excedem os significados (para Aristóteles) explícitos, como aporias que esse texto mesmo exige que sejam desenvolvidas.

    Admitindo que seja lícito suspender o exame daquele algo sobre o qual não poderia haver ciência — aquele algo de fato «próximo ao não-ente» (1026b 31), que se indica com o termo symbebekós, algo que por vezes acontece, sem nenhuma relação com a ousía determinada que se dá (e que, portanto, não devemos entender mal ao traduzi-lo por «contingente», uma vez que contingente pode também indicar não-necessário ou «sobretudo», enquanto a acidentalidade do symbebekós é a tal ponto «absoluta» que sobre ele nem mesmo se pode dizer haver geração e corrupção) — e omitindo, a respeito disso, também o ente no pensamento, como verdadeiro e como falso (as condições de verdade do lógos são o argumento do Organon —que, pelo contrário, de rebus agitur!), parece que apenas dois outros modos de dizer o essente restam: segundo os esquemas do kategoreîn e segundo potência e ato, dynámei e entelecheíai (1017b 1; dynámei kaì energeíai em 1026b 2). O  problema de como o symbebekós possa dizer-se «quase um puro nome» (qual a natureza do signo-nome nesse contexto?) e, ao mesmo tempo, é necessário que seja (1027a 10) — uma vez que, de outro modo, ocorreria ex anánkes, por necessidade —, inquieta toda atitude da ontologia e coloca até agora em crise o «preconceito» da ousía como perfeita presença. Com efeito, que relação de fato constitutiva transparece e se revela entre a existência necessária do não-necessário e a própria ousía, substância da presença do ente, aquilo que o constitui como o ente que é, até poder ser definida como sua causa (1017b 15)? Não seria o texto da metafísica também todo marcado por essas interrogações? E quais conclusões ou «fechamentos» esse texto então garantiria? Em outros termos, pode haver ousía à qual não pertençam «casos»? É possível despir a ousía da multiplicidade dos «casos» que lhe dizem respeito, absolutamente indeterminados e indetermináveis? Existe algo como uma pura e simples presença? Se ela não existe (ou existe só no caso da ousía primeira, do Ente supremo), por necessidade cada ousía será sempre em potência «aflita» pela symbebekós, pelo poder-ser sýn, ou ainda: pelo não poder não se acompanhar ao indeterminado. Ao menos esse aspecto da sua figura real, concreta, permanece indefinível por parte do lógos. E, é óbvio, a própria ideia de dýnamis acabará por se coimplicar à perspectiva que se abre por causa da «irrupção» do symbebekós.

    O discurso deverá ser retomado; mas agora nos voltamos para o desenvolvimento «mais amplo» que nosso problema fundamental conhece com o Livro VII. Mais uma vez se repete que o ente pode ser dito segundo cada uma das categorias, mas, agora, em primeiro plano se apresenta seu significado como tò tí esti kaì tóde ti (1028a 11-12). Se a primeira expressão é traduzida por «essência» ou por termos equivalentes, perde-se a diferença que, como veremos, deve ser tomada com a maior atenção em relação ao «tò tí ên eînai». Aqui, a ênfase recai inteiramente sobre o estí. O  ente é — essa é a determinação primeira e fundamental: que o ente indubitavelmente existe. O  ente é e se dá sempre como este aqui, só se manifesta como ente determinado. O  ente como ente, e não o ser como ser. Na linguagem da Escolástica: «hic incipit determinare de ente per se quod est extra animam» (definição que se esquece da «cumplicidade» originária entre o interrogador e o ente intramundano, mas tem o valor de sublinhar a «resistência» deste último e de trazer novamente à realidade do estí qualquer forma de predicação: é a visão do estí a impor o estudo dos modos de dizer o ente, a análise das formas do lógos). Tò tí esti? Hoc quid est? Tóde ti. Hoc aliquid. Primeira pergunta e primeira resposta. O  que é «este» que está diante de nós? É algo, por certo. De onde? Por que algo existe? Talvez a interrogação não se desenvolva nesse sentido radical desde já, mas certamente já nos pergunta como o ente se manifesta e os limites de nosso predicá-lo. Ousía não indica nada mais do que o ser-aí manifesto do ente. Aliás, ousía é o primeiro dos modos em que dizemos o ente. Ou, de maneira ainda mais própria: dentre os modos em que o ente é dito (légein), o primeiro é o que diz o tò tí estin, e o tò tí estin indica a ousía (1027a 10-15). Prestou-se toda a atenção necessária a essa «declinação»? O ente se diz de muitos modos, mas ao mesmo tempo também se indica — e o primeiro dos modos em que se diz, aquele por meio do qual se afirma que é um tóde ti, indica, semaínei, a ousía. Entre os modos com os quais o ente é predicado, um, e justamente aquele absolutamente fundamental, não predica, não se exprime por meio de categorias, mas faz signo. A  parousía do ente não é afirmável sem recorrer também ao semaínein.

    O ente haplôs, considerado simpliciter antes de qualquer determinação, como noção primeira (ou primeiro lógos, primeira «palavra»), primeira consciência-interrogação, primeira presença de que há pró-blema na ordem da própria sucessão temporal, o tóde ti — é isso que indica a ousía. O  absolutamente determinado, o simples este, antes de toda especificação. Poderemos dizer: o «eis» que saúda a imediata epifania do ente. Esse é o primeiro, o fundamento de toda pesquisa e de toda predicação. Perguntar-se o que é o ente equivale a interrogar-se sobre a ousía. Já se disse: o início da filosofia, agora, como há um tempo e como sempre será, é o thaumázein. E  aqui se diz: o aporoúmenon, aquilo que constitui a aporia, o caminho que continuamente se interrompe, falta, e continuamente o ser-aí que somos reconsidera, lembra e retoma. O  pró-blema eterno, que assombra «pálai te kaì nýn» (1028b 3), tanto nos tempos antigos como agora, é constituído pela ousía do ente, por aquilo que torna possível o estar do tóde ti, o consistir do simples isto. A  tradução escolástica de substancia não parece fazer justiça à primazia do termo aporoúmenon. Como pensar, com efeito, em um fundamento substancial daquilo que é sempre aporoúmenon? Como pensar que o «fundo» da ousía não seja precisamente o limite-horizonte em que se tolhe a própria ideia de fundamento último? Primeira é a ousía — mas a ousía se nos mostra como aquilo que primariamente é digno de interrogação, daquela interrogação tão antiga quanto atual, que não só se origina pelo thaumázein, mas que continuamente o renova. Como poderia se fechar, assim, em perfeito círculo, esse pensar? E o rastro da referência é de fato nele tão fugaz e in-audito? Ainda que rastro, este é todavia explícito; digo: «eis, isto é», mas esse meu dizer de fato não se conecta de forma linear à predicação do que esse «é» seja em sua substância. O  tóde ti, a presença do isto-aqui, remete à ousía; a forma em que a ousía «se diz» é a do semaínein. Digo o ente tóde ti — mas esse dizer não equivale à afirmação e determinação da ousía do ente. Aqui, portanto, emerge uma diferença que é assinalada por dever recorrer ao termo semaínein. A  evidência primeira do isto-aqui implica o reenviar à ousía, à interrogação sobre o porquê de seu indubitável aparecer, sobre aquilo que o manifesta como este ente em si e para si, inconfundivelmente si mesmo. Diante dessa aporia, o légein, o predicar do lógos, assume o caráter do semaínein. A  ipseidade do ente (Wesenwas, traduziu Bonitz) é problema imposto pelo aparecer, pela presença do simples, haplôs, tóde ti. O  aparecer é seu sinal. E  o dizer pode apenas seguir seu rastro. Mas como? As categorias, a relação potência-ato, não constituem seus predicados efetivos e exaustivos? Que diferença, que distinção de princípio, é possível colocar entre os modos de dizer o ente por meio de categorias e este semaínein a ousía? Talvez também não seja dizível a ousía: «dicitur autem substancia-ousía [...] légetai d’he ousía...» (1028b 33)? Para responder à objeção torna-se necessário ver em que sentido ela na realidade é «dizível», em quais limites o essente pode valer como legómenon.

    2.1.1. Primeira ousía. Como se coloca a questão nas obras propriamente lógicas — sem prejudicar o fato de que o nexo gnosiológico-ontológico é obviamente pressuposto também para elas? O problema não consiste em explicar que os termos do discurso têm sempre em mira a determinação do essente, mas em compreender como o que é dito corresponde ao é do ente, e o que significa esse corresponder, quais reenvios se operam entre as formas com base nas quais os entes são ditos e os entes em si, qual é a natureza da «passagem» entre Categorias 1 a 16 e Categorias 1 a 20: «tôn legoménon — das coisas que são ditas...», isto é, do ente assim como em seu ser ele é predicado; «tôn ónton — das coisas que são...», isto é, dos essentes como simplesmente tais. Difícil traçar de imediato uma ponte entre as duas formulações. A  natureza das coisas que são ditas é a dos nomes-substantivos e do lógos-proposição. Substantivo remete a substância e, portanto, por certo à ousía, no sentido antes discutido. Mas aqui ela vale como nome. A  outra forma é a da symploké, da conexão, essencialmente entre nome e verbo, constitutiva da frase. A  conexão não é de fato um simples estar ao lado de partes distintas do discurso. A  symploké manifesta formas e leis próprias, aquelas do discurso com base nas quais nomes, verbos etc. se conectam. Essas formas e leis, por si sós, não têm, obviamente, nada a ver com o ente como ente. Traduz-se nas «coisas que são ditas», mas o sentido é: substância e formas do discurso são os nomes, os verbos e a forma de seu poder conectar-se. É  certo que tudo isso pode ter a pretensão de valer apenas enquanto corresponda ao é do ente e consiga dizê-lo como ele é. Mas a proposição jamais será um simples molde ou uma simples representação das coisas.

    Agora, no entanto, o que é dito sem conexão não parece ser constituído apenas pelos nomes (homem, cavalo etc.), mas também pelas próprias categorias, das quais se formula um esboço geral (1b 25 ss.). Como é possível distinguir as categorias da ideia de relação? Não está no centro de seu sistema a do prós ti (duplo, meio, maior etc.)? Sua universalidade garante sua aplicação a muitos. Sua função é justamente a de conectar os múltiplos. É  evidente que aqui se pensa na categoria apenas como o meio para dizer o ente como tal, o este-aqui haplôs, segundo seu onde, seu quando, seu pontual agir ou sofrer: «eis, é aqui, jaz ou está em pé, corta ou é cortado». Mas isso não constitui ainda uma verdadeira katáphasis, a afirmação de algo plenamente determinado em relação ao ente. As  categorias são aqui consideradas todas na perspectiva da primeira e fundamental, da ousía, portanto: a «coisa dita», o legómenon, segundo seu sentido prótos kaì málista, aquilo por meio do qual ele é o que é, a ipseidade de seu aparecer. Essa ousía é a kyriótata legoméne, é kýrios, senhorio sobre qualquer outro significado atribuível ao termo; formas e gêneros (eíde e gene) também podem ser chamados ousíai, mas segundas. Elas devem sempre se referir à primeira. É  por força dos gêneros (animais) e espécies (homem) que o lógos chega a definir algo, a apresentar-se como katáphasis. Mas as deúterai ousíai se reduziriam a puros nomes ou, até mesmo, a flatus vocis se não se referissem sempre à ousía do este-aqui, ao tódi ti. Elas devem sempre significar, por fim, algo unitário e absolutamente determinado. «Se não fossem as substâncias primeiras, seria impossível que existissem as outras» (2b 5-6); e seria possível compreender no sentido ontologicamente mais consistente: é a ousía primeira que faz ser o ente; nenhum ente é possível sem a «causa» da primeira ousía. Mas se trata de uma causa imanente para a constituição de todo ente. Todo ente parece tê-la em si e manifestá-la-fazer-lhe signo por meio da própria irredutível ipseidade. Causa e coisa se «convertem» reciprocamente. (O significado das categorias aristotélicas, na qualidade de perì tôn ónton, é de todo assumido no neoplatonismo, também em polêmica com a lógica estoica: vejam-se os primeiros dois tratados da VI Enéade).

    A Metafísica realiza, aprofundando-o, um percurso análogo. «Tudo o que está contido no horizonte de uma definição (en tôi horismôi) deve ser uno; a definição, com efeito, é um lógos que se refere à ousía, e, portanto, deve ser o lógos de qualquer um» (1037b 24-26); «Parece impossível que seja ousía aquilo que se predica (tôn legoménon) de forma universal. Principalmente, é ousía de cada ente aquilo que é própria e exclusivamente dele» (1038b 8-10); «É evidente que nada do que é universal [podendo-se atribuir a mais coisas, das quais mais coisas participam] é ousía; que nada do que é predicável em comum indica, semaínei, o tóde ti, mas só toiónde, a qualidade, o caráter do ente [de que espécie ou gênero ele é etc.]» (1038b 35-1039a 2); «A ousía não pertence a nada mais senão a si mesma e ao sujeito que a possui e do qual é a ousía» (1040b 23-24). O  tò tí estin indica a ousía (1028a 15) e a ousía parece indicar o tóde ti (Categorias, 3b 10). Os  dois termos se implicam necessariamente, sem, no entanto, se sobreporem. Indicando (semaínein) a ousía, o aparecer do é do ente desvela à interrogação sobre a própria ousía; indicando (semaínein ainda!) a individual realidade do tóde ti, a ousía explicita que está exclusivamente no referir-se o próprio fundamento a este último. É  alethés, plenamente evidente, como a ousía significa o «aquilo que aparece manifesto», tò deloúmenon, na qualidade de «átomon kaì hèn arithmôi», «indivisível e um em número» (3b,

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