Mobilidade Urbana: Conceito e Planejamento no Ambiente Brasileiro
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Mobilidade Urbana - Dario Rais Lopes
Para nossos filhos e netos.
PREFÁCIO
Este excelente trabalho, desenvolvido por autores de reconhecida capacidade intelectual e técnica, abre grande frente de novas e interessantes batalhas desafiadoras
para voltarmos a pensar, desenvolver e criar soluções via amplos estudos da mobilidade. O conteúdo didático reúne material suficiente para orientar técnicos das prefeituras, pesquisadores e demais estudiosos do tema, tanto para responderem às necessidades de resolver o caos criado pela circulação desorganizada que penetra no tecido urbano como para planejar o desenvolvimento de sistemas de apoio à circulação de modo a mitigar os efeitos ou mesmo evitar o caos anteriormente referido.
Oportuno e necessário, este livro, em virtude da escassez de conhecimento formal nessa área, não é só para estudantes, mas também para técnicos que trabalham para organizar os deslocamentos urbanos, empreendedores e empresas privadas que podem entrar na produção tecnológica de soluções para que atinjamos um diálogo tecnológico mais sensibilizado sobre o tema.
Talvez nos surpreenda sua boa didática e facilidade da leitura para um tema tão complexo, e estimule novas abordagens ao problema, alertando, a priori, que soluções exigem tempo de resposta, ultrapassam governos eleitos, não havendo em nosso país vontade explícita de planejar a longo prazo, mas que temos que lutar por isso – os estudos de mobilidade têm soluções que, quando aplicadas, são de longa duração.
A ideia de um livro abordando a mobilidade vem da experiência dos autores na Secretaria Nacional do Transporte e da Mobilidade Urbana, do Ministério das Cidades, quando trabalharam no desenvolvimento e implantação de uma nova forma de abordar as questões da mobilidade – a integração entre trânsito, transporte e uso do solo; a prioridade aos modos de deslocamento não motorizados; a construção de redes multimodais com integração planejada, partindo dos deslocamentos a pé e evoluindo para modos de maior capacidade até as alternativas sobre trilhos, ampliando a participação desses modais nos deslocamentos urbanos e garantindo a redução das externalidades negativas – acidentes, poluição e congestionamentos.
A consolidação e as orientações sobre como aplicar esses conceitos estão distribuídas ao longo de cinco capítulos, agrupados em duas grandes partes.
A primeira parte, Conceito e Planejamento
, aborda conceitos, aspectos de planejamento e toda a estrutura legal afeta às questões da mobilidade urbana, e compreende os três primeiros capítulos. O primeiro desses três capítulos contextua historicamente os deslocamentos urbanos, apresenta e discute o conceito de mobilidade sustentável, seus fatores de influência e métricas. Toda a legislação pertinente, tendo como referência a Lei Federal 12.587 de 2012, que instituiu a Política Nacional de Mobilidade Urbana, é tratada no segundo capítulo; enquanto o terceiro capítulo dedica-se aos conceitos e à estrutura do planejamento da mobilidade sustentável – sua importância, seus componentes, sua abrangência, concluindo com o principal elemento de consolidação desse planejamento: o plano de mobilidade urbana.
Na segunda parte do livro, Plano de Mobilidade Urbana
, composta pelos dois últimos capítulos, o plano de mobilidade é analisado em sua estrutura e processo de elaboração (capítulo quarto), sendo descrita uma metodologia simplificada para a elaboração do plano em municípios com menos de 100 mil habitantes – a grande maioria daqueles municípios para os quais o plano é obrigatório.
Assim, o livro percorre toda a trajetória da mobilidade, tendo como contexto o Brasil: apresenta conceitos, a legislação nacional pertinente, aprofunda-se no principal instrumento de apoio às ações de mobilidade (o Plano de Mobilidade) e orienta sua elaboração, focando a parcela majoritária dos municípios que têm a obrigatoriedade do desenvolvimento do plano.
Creio ser esse o caminho que nossos autores trilharam em profundidade na realização deste volume explicativo das metodologias, tecnologias, soluções, necessidades, enfim, da real carência e das possíveis soluções para essa mobilidade em todo o país.
Uma boa leitura a todos!
Cyro Laurenza
Engenheiro civil, presidente do Conselho do Instituto para o Desenvolvimento de Sistemas de Transporte – Idestra e do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo – Conpresp. Membro da Academia Pan-americana de Engenheiros – API e Conselheiro da Fundação para o Desenvolvimento Tecnológico da Engenharia – FDTE.
APRESENTAÇÃO
A apresentação deste nosso livro não se enquadra nos padrões clássicos das apresentações
de obras literárias. Estamos longe daquele texto elaborado pelos autores sobre o conteúdo do livro de forma a despertar o interesse do leitor
. Isso porque, quando concluímos todo o trabalho que antecede o processo de publicação, fomos atropelados pela pandemia de Covid-19, para usar uma imagem compatível com o objeto do livro.
Uma percepção quase que universal é a de que o mundo não será o mesmo depois da Covid-19. Nesse momento, o que se experimenta é uma transformação radical nas formas de trabalho, estudo e relacionamento humano. E o que se experimenta pode, com grande probabilidade, ser o novo normal
– os novos hábitos pós-pandemia.
A mobilidade urbana também foi fortemente impactada. A Covid-19 mudou radicalmente a forma como se utiliza o espaço público urbano para os deslocamentos diários para trabalho, estudos, lazer e serviços.
Segundo dados do Google, Agência Brasil, em São Paulo e no Rio de Janeiro – primeiro e segundo estados, respectivamente, com mais casos confirmados da doença, a queda na frequência de indivíduos em lojas, espaços de lazer e parques ficou acima de 70% nos primeiros 30 dias da quarentena (a partir da segunda quinzena de março de 2020). Já em locais de trabalho, foi de 37% nos dois estados. Santa Catarina foi o estado que apresentou maior queda de movimento em: parques, com a diminuição de 84%; lojas e estabelecimentos de lazer, 80%; em locais de trabalho, 40%.
Um grupo de trabalho coordenado pela WRI Brasil, com a participação de mais de 15 cidades, indicou que a queda no número de passageiros após as medidas de isolamento social foi de 75% em média. As medidas de isolamento social e de restrição à circulação em São Paulo resultaram numa redução de 85% dos passageiros no metrô e 83% nos trens metropolitanos, o que significa uma perda de receita anual da ordem de R$ 800 milhões. No plano nacional, os sistemas sobre pneus operaram atendendo a cerca de 20% da demanda, mas mantendo 60% da oferta anterior.
Esse cenário incentivou o acontecimento de um sem número de artigos, posts
, "webinars", mesas-redondas virtuais e eventos dedicados a avaliar o impacto da Covid e as perspectivas da mobilidade urbana. De comum, uma discussão centrada (e exclusiva) no transporte coletivo: perdas de receita, medidas para mitigar o risco de contágio e propagação do vírus, formas de financiamento para recuperar o setor, e por aí vai.
Aqui, reside o primeiro ponto que nos dá o conforto necessário para assegurar a necessidade de um livro como o que agora apresentamos: a confusão conceitual entre mobilidade urbana e transporte, que distorce o processo de planejamento e reduz a eficiência da alocação de recursos para o setor.
Mobilidade não é sinônimo de transporte. Mobilidade significa a capacidade de viabilizar, com qualidade, os deslocamentos diários pela cidade para fins de trabalho, estudos, lazer e serviços. Esses deslocamentos podem (ou não) ser feitos utilizando-se um dos modos disponíveis de transporte. A extinta Secretaria Nacional de Mobilidade Urbana, do também extinto Ministério das Cidades, afirmava que a mobilidade urbana é ao mesmo tempo causa e consequência do desenvolvimento econômico-social, da expansão urbana e da distribuição espacial das atividades
(BRASIL, 2015).
O conjunto de modos de transporte disponíveis em uma cidade contribui para melhorar as condições de mobilidade urbana, mas não as define. Essas condições são o produto de uma abordagem sistêmica sobre toda a movimentação de bens e de pessoas, envolvendo todos os modos e todos os elementos que produzem as necessidades desses deslocamentos.
Portanto, discutir transporte coletivo não é discutir mobilidade urbana. Em tempo: discutir transporte coletivo é muito importante; apoiamos e participamos de vários grupos e fóruns para avaliar as condições e perspectivas dos serviços de transporte coletivo, mas, como já exposto, não é discutir mobilidade. A diferença entre esses conceitos é exaustivamente explorada neste livro – entendemos que essa compreensão é fundamental para a construção de cidades sustentáveis.
Há outro ponto, que entendemos justificar nossos esforços na elaboração deste livro, e que, de certa forma, decorre do primeiro. É consensual nas diversas discussões sobre o transporte coletivo, que esse serviço ficará sob forte questionamento no período pós-pandemia (já chamado por muitos de novo normal
).
Os sistemas urbanos de transporte coletivo no Brasil são dimensionados tendo como referência uma taxa de ocupação de seis passageiros em pé por metro quadrado, que se traduz em forte aglomeração de pessoas nos veículos (trens ou ônibus), agravando-se nos períodos de pico.
Mesmo com uma ampla flexibilização das medidas de isolamento social, essa taxa de ocupação não se repetirá. Isso significa que, no cenário de pós-pandemia, haverá menos passageiros por veículo, ou seja, menos receitas. E com maior custo (para manutenção das condições de sanitização de veículos e estações), o que vai comprometer ainda mais o resultado das operadoras.
O mais provável nesse cenário pós-pandemia é uma fuga de clientes dos sistemas coletivos. As análises de mobilidade urbana
, na verdade análises transporte centradas, sugerem que essa transferência dar-se-á para sistemas individuais, preferencialmente os serviços por meio de aplicativos.
A ampliação dos modos virtuais de trabalho, compra e interação social que se observou durante a pandemia tende a, pelo menos, consolidar-se no período novo normal, com provável reflexo nas soluções de economia compartilhada por meio de aplicativos.
Em termos práticos, o que se vislumbra é o aumento do número de veículos particulares circulando nas cidades, com todas suas externalidades negativas: poluição, congestionamentos, acidentes.
Daí a necessidade de se pensar e planejar esse novo normal das cidades com foco na mobilidade, priorizando o uso do solo como estratégia para aproximar origens e destinos, e fortalecendo as formas não motorizadas de locomoção.
Essa visão de planejamento, suas bases legais e toda uma metodologia voltada para a elaboração de planos de mobilidade constitui parte significativa deste nosso livro. Por isso, entendemos que nosso trabalho pode ser de grande valia no período pós-pandemia, subsidiando o desenho de uma estrutura de mobilidade urbana que auxilie nossas cidades a se tornarem mais resilientes, equitativas, não poluídas, sustentáveis!
Os autores
Sumário
PARTE I – CONCEITO E PLANEJAMENTO
1
Conceito de Mobilidade Urbana Sustentável 21
1.1 Perspectiva Histórica 22
1.2 Mobilidade e Mobilidade Sustentável 45
1.2.1 O conceito de mobilidade 45
1.2.2 Mobilidade urbana sustentável 49
1.3 Fatores de Influência 54
1.3.1 Fatores Geográficos e Ambientais 54
1.3.2 Desenho Urbano 55
1.3.3 Uso e Ocupação do solo 56
1.3.4 Fatores Econômicos 56
1.3.5 Fatores Tecnológicos 57
1.4 Medidas da mobilidade 58
2
Marco Legal Brasileiro 61
2.1 Constituição Federal e Transporte
como Direito Social 62
2.2 Histórico da Política Nacional
de Mobilidade Urbana 64
2.3 A Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU) 65
2.3.1 Regulação dos serviços 69
2.3.2 Direito dos usuários 71
2.3.3 Atribuições 71
2.3.4 Planejamento e Gestão 74
2.4 Leis Brasileiras Correlacionadas com
a Mobilidade Urbana 76
2.4.1 Estatuto da Cidade 76
2.4.2 Estatuto da Metrópole 79
2.4.3 Lei Brasileira de Inclusão 79
3
Planejamento da Mobilidade Urbana 83
3.1 Planejamento Urbano Sustentável 83
3.2 Mobilidade Urbana e Mudanças Climáticas 87
3.3 Importância do Planejamento
da Mobilidade Urbana 91
3.4 Componentes do Sistema
de Mobilidade Urbana 92
3.4.1 Transporte Ativo 93
3.4.2 Transporte Público Coletivo 99
3.4.3 Transporte Público Individual 103
3.4.4 Transporte Privado Individual Motorizado 105
3.4.5 Transporte Urbano de Cargas 107
3.5 Gestão da Demanda 108
3.6 Aglomerações, Rides e Regiões Metropolitanas 117
3.7 Plano de Mobilidade Urbana 119
PARTE II – PLANO DE MOBILIDADE URBANA
4
Plano Municipal de Mobilidade Urbana 125
4.1 Especificidades das Cidades 125
4.2 Participação da Sociedade 127
4.3 Diagnóstico e Prognóstico 130
4.4 Objetivos, Metas e Ações Estratégicas 132
4.4.1 Objetivos 132
4.4.2 Metas 133
4.4.3 Ações Estratégicas 133
4.5 Conteúdo do Plano de Mobilidade Urbana 134
4.5.1 Conteúdo mínimo obrigatório 135
4.6 Processo de Elaboração do Plano
de Mobilidade Urbana 143
5
Metodologia Simplificada para Municípios com menos de 100 mil Habitantes 149
5.1 Desafios e Oportunidades das Cidades Menores 149
5.2 Conteúdo mínimo 151
5.2.1 Apresentação 152
5.2.2 Histórico da Cidade 153
5.2.3 Caracterização do Município 153
5.2.4 Serviço de Transporte Público Coletivo 153
5.2.5 Circulação Viária 160
5.2.6 Infraestruturas do Sistema de Mobilidade Urbana 169
5.2.7 Acessibilidade para Pessoas com Deficiência e
Restrição de Mobilidade 175
5.2.8 Integração dos Modos de Transporte Público e destes com os
Privados e os não Motorizados ١٨٠
5.2.9 Operação e o Disciplinamento do Transporte de Carga na
Infraestrutura Viária 183
5.2.10 Polos Geradores de Viagens 186
5.2.11 Áreas de Estacionamentos Públicos
e Privados, gratuitos ou onerosos 188
5.2.12 Áreas e Horários de Acesso e Circulação Restrita ou Controlada 192
5.2.13 Mecanismos e Instrumentos de Financiamento do Transporte
Público Coletivo e da Infraestrutura de Mobilidade Urbana 193
5.2.14 Sistemática de Avaliação, Revisão e Atualização Periódica do Plano
de Mobilidade Urbana em Prazo não Superior a 10 (Dez) Anos. 195
5.3 Validação e Implementação do Plano
de Mobilidade Urbana 195
REFERÊNCIAS 197
ÍNDICE REMISSIVO 203
PARTE I
CONCEITO E PLANEJAMENTO
1
Conceito de Mobilidade
Urbana Sustentável
O tema mobilidade urbana ganhou destaque na agenda da sociedade a partir das manifestações populares de junho de 2013. Até então, era assunto a cada quatro anos, quando das eleições municipais. Em todas as situações em que se retomou a discussão sobre mobilidade urbana, a referência era as demandas associadas à garantia de acesso ao transporte público, comprometida pela incapacidade da população em arcar com os valores das tarifas. Isso introduziu um viés nas discussões e