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O Primado do Corpo a partir da Filosofia de T.W. Adorno
O Primado do Corpo a partir da Filosofia de T.W. Adorno
O Primado do Corpo a partir da Filosofia de T.W. Adorno
E-book350 páginas4 horas

O Primado do Corpo a partir da Filosofia de T.W. Adorno

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Este livro explora as noções de corpo possíveis de serem apreendidas na filosofia de T. W. Adorno.
Em Adorno, há uma crítica ao tratamento dado ao corpo (Körper) como "coisa morta", corpus, pura matéria orgânica entregue à atividade científica e ao controle ideológico. Ao mesmo tempo, temos a noção de um corpo vivo (Leib), orgânico e dialeticamente atravessado pelo espírito.
Procuramos demostrar que a compreensão sobre o corpo nos textos adornianos passa inevitavelmente por uma relação com outros conceitos importantes como natureza, espírito, sujeito, objeto, identidade, não-idêntico.
Abordou-se também o caráter corporal de boa parte das produções artísticas contemporâneas como nas performances, em um diálogo entre estética filosófica e psicanálise.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento25 de fev. de 2021
ISBN9786558771470
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    O Primado do Corpo a partir da Filosofia de T.W. Adorno - Thiago Ferreira de Borges

    vir.

    CAPÍTULO 1. UMA LEITURA SOBRE O MATERIALISMO EM THEODOR W. ADORNO

    A racionalização da cultura, que abre as janelas para a natureza, ao fazê-lo a absorve inteira e junto com a diferença remove também o princípio da cultura, a possibilidade da reconciliação. Theodor Adorno¹

    1.1 NATUREZA E HISTÓRIA NATURAL.

    O conceito de natureza na filosofia de Theodor W. Adorno já foi exemplarmente tratado na tese de Rodrigo Duarte². Naquele trabalho, o professor e filósofo brasileiro desenvolveu esclarecimentos acerca do referido conceito, a partir de uma problemática central em Adorno, a saber, a ideia de Domínio da natureza. Assim, sem qualquer pretensão de repetir em um espaço mais reduzido o ótimo trabalho de Duarte, buscamos reexaminar e imergir nos momentos do conceito de natureza em Adorno³ e, então, emergir com o que desses momentos podemos transportar para a temática central do trabalho, ou seja, o corpo.

    Neste primeiro capítulo, colocamos a pergunta orientadora sobre a ideia de natureza, ou ainda, que conceito de natureza se pode apreender dos trabalhos de Adorno, bem como o lugar dessas reflexões em seu pensamento em geral. Por fim, demarcamos nossas posições diante do que pôde ser encontrado e interpretado a respeito do assunto.

    O tema da natureza surge na filosofia de Adorno, salvo engano, primeiramente com alguma evidência associada à reflexão sobre o conceito de história. Também aparece próximo à utilização de categorias marxianas, como valor de uso e também à ideia de constelação herdada, como sabemos, de W. Benjamin.

    Pois bem, estamos falando aqui da tese de habilitação de Adorno, Habilitationsschrift, o trabalho sobre Sören Kierkegaard dos anos de 1920⁴. No capítulo II, A constituição da interioridade, na seção Intérieur, o termo natureza já figura, ainda que discretamente, ora como adjetivo (natural), ora como substantivo, o que se pode acompanhar nas seguintes passagens:

    No símbolo do espelho, no arcaico e no moderno, aparece a melancolia como aprisionamento em si mesmo do espírito puro. Este aprisionamento, contudo, é ao mesmo tempo um aprisionamento na relação natural: a ligação ambígua de pai e filho. A imagem do intérieur concentra, portanto, toda a filosofia de Kierkegaard em sua perspectiva, porque nessa imagem se apresentam sem mediações, a partir de sua doutrina, os momentos da natureza primitiva e persistente, como momentos da constelação histórica que domina sobre essa imagem.

    Três páginas à frente, tem-se:

    A arrumação das coisas na habitação chama-se arranjo. Objetos historicamente aparentes são arranjados ali como aparência da natureza imutável. Imagens arcaicas brotam no intérieur: a das flores como imagem da vida orgânica. (...) Essa não é apenas, como é o caso na filosofia de Kierkegaard, a indiferença de sujeito e objeto, mas sim a do histórico e do natural.

    É de se notar que o uso que Adorno faz dos termos natureza e história sugere, inicialmente, dois aspectos identificadores dos conceitos que não obstante servem ao revés de indiferenciação que Adorno interpreta na imagem do intérieur kierkegaardiano: (i) que a natureza remete a algo de primitivo, nostálgico, temporalmente pretérito, perdido talvez; e, nesta esteira, a história é algo a posteriori;(ii) que esta natureza é também imutável, cíclica, repetitiva, enquanto a história apresentaria momentos constelatórios, indicando um dinamismo distinto. Porém, na análise do intérieur, Adorno indica uma aproximação imagética da condição histórica à natureza, como nostalgia daquilo que se repete, como o mesmo.

    É a história em Kierkegaard que se aparenta à natureza em um contexto de indiferenciação. Essa unidirecionalidade mimética sugere, mais uma vez, a ancestralidade temporal da natureza, não por acaso apareça o termo melancolia, que, enquanto estado subjetivo, remete ao passado para algo que se perdeu⁷, contrariamente à angústia que mira o futuro.

    Para se aparentar à natureza, é preciso que a história, como espírito, aja, atue, seja ativa, mesmo que esta atividade seja em direção à passividade objetiva do natural, a mimese não somente como resultado, mas, sobretudo, como processo é uma atividade. Há que se lembrar, contudo, como assinala Duarte (1993), que não há no pensamento adorniano algo como uma natureza primeira, originária, embora seja fundamental à perspectiva crítica de Adorno, o reconhecimento de uma imagem mítica da natureza, algo que será desenvolvido mais à frente. Interpenetração é a palavra que Duarte utiliza sobre a relação entre história e natureza no Kierkegaard de Adorno.

    Gostaríamos ainda de ressaltar que, ao menos nas passagens supracitadas, o movimento dialético que Adorno reconhece na obra de Kierkegaard é incipiente, na medida em que a unidirecionalidade mencionada parece resguardar uma independência maior ao conceito de natureza, se comparado ao de história. Em todo caso, nos desenvolvimentos posteriores, com os quais trabalharemos, é possível que reste uma diferença de grau que porte, segundo uma hipótese ainda a ser tematizada, uma relação mais ou menos semelhante às diferenças de grau entre sujeito e objeto.

    Nos anos de 1930, uma conferência intitulada Ideia da história natural (HN)⁸ trouxe à tona, de forma pungente, não somente alguns dos problemas filosóficos que ocupavam o jovem filósofo de Frankfurt, mas também os indicativos dos diálogos fundamentais para o pensamento de Adorno sobre a história e, no que tange ao nosso interesse deste capítulo, sobre a natureza.

    Aguilera⁹, assim como Duarte (1993), comenta como o ensaio HN contém subsídios importantes para desenvolvimentos ulteriores na Dialética do Esclarecimento (DE)¹⁰ e na Dialética Negativa (DN)¹¹, por exemplo, a questão ontológica dos anos de 1930. Neste caso, Adorno confronta o historicismo como estrutura da ontologia, justamente com a perspectiva de uma história natural.

    Mas, afinal de contas, do que trata esta ideia de história natural, qual o seu lugar na filosofia adorniana e o que ela nos diz sobre um conceito possível de natureza em Adorno? No ensaio inaugural dos anos de 1930, Adorno se ocupa tanto em contextualizar suas preocupações a respeito da temática, primeiramente com a localização da ideia de história natural, como alternativa crítica à historicidade ontológica de Martin Heidegger¹², como, por outro lado, apresentar explicitamente as origens mais diretas de sua reflexão na noção de segunda natureza, em A teoria do romance, de Georg Lukács¹³, bem como a imbricação seminal entre história e natureza, em A Origem do drama barroco alemão, de Walter Benjamin.

    No que concerne ao primeiro ponto, a passagem que a neo-ontologia promove entre a dualidade história-natureza, para a noção, segundo Adorno, subjetivista, de historicidade, calcada nas bases da racionalidade do idealismo alemão, consistirá em um momento crítico constante nos trabalhos do filósofo de Frankfurt, a saber, a crítica ao subjetivismo identitário, cujos primeiros fragmentos talvez possamos localizar já no trabalho sobre Kierkegaard. Além disso, já se reconhece ao longo do texto os traços combativos a partir de uma objetividade inspirada em Karl Marx, claramente anunciada nas últimas linhas,

    Eu gostaria de falar ainda sobre a relação dessas coisas ao materialismo histórico, mas somente posso dizer o seguinte: não se trata do complemento de uma teoria por outra, mas sim da interpretação piamente de uma teoria. Eu me coloco, por assim dizer, submetido à instância julgadora da dialética materialista. Poderia ser mostrado que o que apresentei é apenas uma interpretação d3e certos elementos fundamentais da dialética materialista.¹⁴

    O materialismo, como resposta ao subjetivismo, reside no movimento dos conceitos de história e natureza e subjaz à ideia de história natural. Se há movimento e a presença de dois termos, algo da ordem da identidade é preservado na própria desconstrução dialética da rigidez e separação abstratas.

    O que Adorno indica na ideia de história natural como a suprassunção (aufheben) da habitual antítese entre natureza e história¹⁵ não deve ser confundido, segundo pensamos, com qualquer possibilidade de suspensão da dualidade, se partirmos, inclusive, do fato de que, em um mundo não reconciliado, o que foi durante toda a vida, o diagnóstico primeiro de Adorno, isto seria, no domínio da linguagem e do trabalho conceitual, arbitrário e ingênuo.

    Assim, discordamos da observação de Brian O’Connor¹⁶ quando ele afirma que Adorno dissolve o dualismo, mostrando que o que é identificado como natural suporta uma dimensão histórica, enquanto o que parece ser histórico tem bases naturais.¹⁷ O problema da passagem reside na dissolução do dualismo. É verdade que o próprio Adorno sugere algo nesse sentido como no trecho a seguir:

    Permanece a necessidade de se afirmar que a divisão do mundo em um ser natural e outro espiritual, ou em um ser natural e outro histórico, tal como legado pelo idealismo subjetivo, precisa ser suprassumida, e que em seu lugar deve surgir um questionamento que efetue em si a unidade concreta de natureza e história.¹⁸

    Caso ainda olhemos para o termo história natural como o momento final da dialética clássica hegeliana em que a síntese superaria (aufheben) os momentos parciais anteriores, é de se notar o quanto os termos história e natureza são retomados por Adorno ao longo de sua vida, em contextos argumentativos que exigem um mínimo de independência não direcionada para algum tipo de conclusão identificadora. Em certo sentido, a dialética de Adorno é um esforço de correção das dualidades petrificadas, assim como um resguardo às dissoluções identificadoras igualmente rígidas. Fredric Jameson¹⁹ também advoga no sentido da nossa interpretação acerca da questão da dualidade,

    O dualismo, em outros termos, não pode ser desfeito pela captura de um pensamento, ou por um ataque frontal – tais dualismos são, de qualquer modo, a marca e a cicatriz de profundos desenvolvimentos e contradições históricas -, mas pode-se admitir, dialeticamente, que seus polos entram em curto-circuito entre si. (...) O que está em jogo aqui é um recíproco estranhamento entre os dois polos incomensuráveis do dualismo da Natureza e da História, mas de modo bastante claro, e na própria formulação de Adorno, esse deve ser um processo histórico, no qual termo algum permanece em repouso, assim como não emerge uma síntese última.²⁰

    De fato, o que Adorno promove a todo instante, é a denúncia do projeto civilizador como dissonante em relação a si mesmo, na medida em que se orientou primordialmente por um entendimento da humanidade como domínio da natureza. O que esteve em jogo explicitamente desde os tempos da DE redigida com Max Horkheimer e publicada nos anos de 1940, não somente no nível da constituição subjetiva do Eu, quando pensamos no excurso sobre Ulisses, mas também da totalidade social, por exemplo, no conceito de Esclarecimento, situa-se na constatação dos limites e insuficiências de uma noção de identidade predominante no percurso histórico da humanidade, herdeira do legado greco-romano e cristão.

    O esforço para o impossível da identificação completa, como dominação completa, pelo conceito e pela vida prática, longe de sugerir erros de cálculo ou estágios tecnicamente precários, que um dia então poderiam ser superados em definitivo pela ciência, apontou, segundo as linhas gerais do grupo fundador do Instituto para pesquisa social, problemas éticos, epistêmicos e estéticos completamente distintos da positividade orientadora das ciências da natureza, assim como de outros campos filosóficos, como a neo-ontologia e o pragmatismo da lógica e filosofia da linguagem. A expressão dialética do esclarecimento condensa o sentido de tais problemas enquanto desvelamento das formas ideológicas que acompanharam e acompanham o pensamento e a política em seus aspectos mais amplos.

    Neste sentido, quando Adorno observa a falsidade do todo em referência direta contra Hegel, o que está em jogo é uma crítica às tentativas de suprimir o que é da ordem da singularidade, mas também uma crítica à tentativa de que o todo pareça harmônico, em falsas figuras da diferença, sustentadas pelo discurso da livre concorrência, que em sentido strictu nem existe mais. Percebe-se o estado de coisas nas reflexões que Adorno propõe sobre a ambiguidade do progresso enquanto ideia e enquanto experiência vivida; no problema relativo ao sofrimento que deveria ter sua expressão como parte da tarefa que a filosofia poderia levar a cabo, mas que é administrado conforme os interesses de Estado; no esforço de propaganda a favor do empobrecimento estético dos objetos da cultura e, ao mesmo tempo da esterilização social e política como entretenimento abstrato; por fim, a mania de identificação entre teoria e prática, sujeito e objeto, ancorada em um subjetivismo escondido por detrás da fetichização dos dados, que falariam por si, mas que remetem ao discurso do especialista e sua autoridade científica sobre o mundo vivido.

    Ao modelo hipostasiado de história enquanto dominação da natureza levado a termo pela cultura moderna europeia, Adorno sugere, partido de Lukács e Benjamin, a ideia reguladora de história natural,

    quando o próprio ser histórico, em sua máxima determinidade histórica, onde el é mais histórico, puder ser conceibido como um ser natural, ou se a natureza, // onde ela aparentemente se fixa o mais profundamente em si mesma como natureza, pudesse ser concebida como um ser histórico²¹

    Mas, afinal de contas, de que história e de que natureza se fala na ideia dialética desenvolvida por Adorno? Adorno não pensa a história como um percurso unidirecional rumo ao progresso (em sentido positivo) e ao sempre melhor. Isto seria, para o filósofo, pré-dialético, e pouco ou nada razoável em termos de interpretação da experiência vivida, o que vários escritos adornianos e da Escola de Frankfurt em geral tentaram apresentar²². Sua noção de história tem raízes hegelianas e marxistas, como nos lembra O’Connor (2008), além de ser devedora do pensamento de Walter Benjamin. Para Adorno, a história é a união do contínuo e do descontínuo, ela não se faz apesar das dissonâncias e rupturas, mas essas são sua própria condição. A história humana, a história do domínio progressivo da natureza, dá prosseguimento à história inconsciente da natureza, do devorar e do ser devorado.²³

    Se entendemos que não há, na concepção adorniana de história, uma evolução linear em direção ao mais avançado, como melhor, ao menos se considerarmos o que quer que seja melhor, como uma marca diferenciadora da totalidade das produções e experiências do tempo presente comparativamente ao passado mais remoto, tampouco encontramos algo da ordem do originário. Há, sim, o que se repete, o que não necessariamente indica que sua ocorrência no passado seja geradora de algo substancialmente diferente no presente/futuro.

    Dois textos da DE, O conceito de esclarecimento e Ulisses ou mito e esclarecimento, são bons exemplos de uma ideia de história em que, paralelamente às marcas diferenciadoras de cada recorte temporal na sucessão cronológica, encontram-se os indícios de uma ou mais condições que se repetem na experiência da humanidade. Usando dois conceitos fundamentais em Marx como imagens desses dois aspectos interpenetrantes da visão de história de Adorno, pode-se dizer que as transformações culturais, tecnológicas, ético-morais (até certo ponto), são de caráter superestrutural, enquanto a condição de violência e dominação como formas estruturantes das relações entre os seres humanos e entre os seres humanos e a natureza, no fluxo do tempo, se repetem de forma infraestrutural. Adorno insistirá durante toda a sua filosofia nos problemas da dominação e da violência, do mesmo modo que as análises de ordem infraestrutural são predominantemente de esquerda, como sugere Jameson (1997) em uma nota. Essa dimensão que aqui chamamos quase alegoricamente de infraestrutural é que permite, segundo pensamos, a aproximação com a natureza e os paralelos polêmicos da DE, por exemplo, a ideia do nostos de Ulisses como proto-forma dos processos de formação da subjetividade moderna.

    A questão da continuidade e descontinuidade na história da razão, como diz Jameson (1997) ou na história em linhas gerais, deve, segundo o comentador, sua compreensão dialética à ideia de retorno (do recalcado), de matriz psicanalítica. Faz sentido no que tange ao movimento constante que pressupõe a contradição, pois essa ideia permite (como o conceito de mimese para Jameson), que os momentos de ruptura revelem cada um sua especificidade, ao mesmo tempo que não se apresentam todos como rupturas radicais, ou ainda, que a radicalidade de uma ruptura se mede na medida em que ela reluz seu contrário, ou seja, um retorno.

    O próprio Adorno adverte que não se trata de pensar a natureza tal qual é concebida e ao menos em parte, dominada, pelas ciências duras. Assim, o próprio termo história natural, aplicado a museus que tratam do percurso evolutivo das espécies não porta, obviamente, o mesmo sentido empregado pelo filósofo de Frankfurt.

    O conceito de natureza empregado aqui não tem nada a ver com o das ciências naturais matemáticas. (...) basta afirmar que se trata de um conceito que, caso eu quisesse traduzi-lo na linguagem conceitual filosófica usual, poderia ser traduzido perfeitamente pelo mítico. (...) Ele significa o que existe desde sempre, o que sustenta a história humana como um ser imposto de forma predestinada e preexistente, manifestando-se nela como o que lhe é substancial. O que se delimita com essas expressões, é o que entendo aqui por natureza.²⁴

    1.2 SOBRE A ANTERIORIDADE MÍTICA DA NATUREZA

    Se, como afirma Jameson (1997), o esclarecimento para Adorno e Horkheimer sempre esteve aí, podemos dizer o mesmo da natureza. Também é importante lembrar neste momento, como a ideia de uma segunda natureza de Luckács²⁵, foi absorvida por Adorno, no sentido da reprodução na cultura e nas formas humanas de vida, de determinadas categorias parcialmente definidoras para Adorno do que seria a natureza em sentido geral.

    Sabe-se que, em parte, o caráter mítico da natureza para Adorno contém em um dos momentos que compõe a trama da dialética do esclarecimento, o aspecto irracional, bárbaro, já que para Adorno e Horkheimer, uma das figuras da natureza, (a não reconciliada), encontra-se justamente nas vivências de dominação, aqui entendida como sinônimo de violência. Nesse contexto, tanto externamente como internamente aos seres humanos, a natureza assume provisoriamente esse oposto da razão, ilustrado no Excurso I da DE, como a mítica imagem das sereias e o despertar do desejo. Apesar da violência do seu desejo (de Ulisses/TB), que reflete a violência das próprias semideusas...²⁶, Ulisses, vive interna e externamente a condição hostil e estranha da natureza; seus desejos se confundem com a própria impulsividade irresistível do natural na figura das sereias.

    Outra maneira de se interpretar o estranhamento da razão perante o mundo e a si mesma pode seguir a via do que aqui chamaremos de sem sentido. O sem sentido encarna na história da humanidade aquilo que se apresenta cifrado e que colocou e coloca os seres humanos a trabalho para o seu deciframento. Dar sentido às coisas do mundo é próprio ao funcionamento básico de nossa racionalidade e essa é certamente uma das características que aproxima mito e esclarecimento na equação dos frankfurtianos, fazendo parte, sem dúvida, do movimento de autoconservação, tanto da espécie quanto do indivíduo.

    Agora, atentemo-nos ao seguinte: o que se encontra cifrado já é, por sua sorte, mediatizado de alguma maneira. O termo cifra vem do árabe, cifr, vazio, nada, e na linguagem numérica arábica, que por sua vez tem raízes indianas, ocupa o lugar do zero. Assim, decifrar é justamente o trabalho de interpretar, colocar sentido e tornar compreensível algo que, de outra maneira, seria o mesmo que o vazio, o nada para o ser humano. Por sua vez, a lingugaem humana, em sentido geral, está longinquamente ligada aos modos de enfrentamento e defesa contra a hostilidade e caoticidade do mundo natural. Como mostrou Verlaine Freitas²⁷ no primeiro capítulo de sua tese de doutorado, o medo é um dos sentimentos primevos e constitutivos da atividade de autopreservação da espécie humana; sob certo aspecto, ele é fomentador da linguagem, pois, desde tempos imemoriais, está associado ao ato de apaziguar. Na história humana, o medo sempre esteve associado, em parte, ao que se mostra objetivamente sem um correspondente de significação, um símbolo, um sentido/explicação, um conceito.

    A cifra é um meio termo entre o nada, o que não pode ser dito e a possibilidade de explicação, desvelamento da coisa. Em todo caso, justamente por remeter ao trabalho de decifração, o que está colocado como cifrado, codificado, remete ainda a algo inatingível para a experiência humana.

    Retomando a discussão do ensaio sobre história natural, Adorno, após citar integralmente a passagem da teoria do romance de Lukács que reproduzimos na nota 24, comenta o status similar da segunda natureza, comparativamente à primeira no raciocínio de Lukács,

    Essa realidade do mundo da convenção, tal como produzida historicamente, a das coisas alienadas de nós que não podem ser decifradas, mas com que nos defrontamos como cifras, (...). Visto a partir da filosofia da história, o problema da história natural coloca-se, inicialmente, com a questão de como é possível conhecer e interpretar esse mundo alienado, coisificado e morto. Lukács já havia visto esse problema em se caráter estranho e enigmático.²⁸

    Adorno, linhas à frente, cita novamente o texto lukácschiano para demarcar as diferenças da segunda natureza relativamente à primeira, no fluxo mesmo de reprodução de uma condição para outra. O que se repete, como temos visto, é o enigma, a necessidade de decifração. Porém,

    essa natureza não é muda, manifesta e alheia aos sentidos como a primeira: é um complexo de sentido petrificado que se tornou estranho, já de todo incapaz de despertar a interioridade; é um ossuário de interioridades putrefatas, e por isso só seria reanimada – se tal fosse possível – pelo ato metafísico de uma ressurreição do anímico que ela, em sua existência anterior ou de dever ser, criou ou preservou, mas jamais seria reavivada por outra interioridade. Ela é por demais familiar às aspirações da alma para ser tratada como simples matéria-prima dos estados de ânimo e, no entanto, por demais alheia para lhe ser a expressão adequada.²⁹

    Em seus comentários desses momentos do texto de Lukács, Adorno aparenta ser muito claro quanto ao problema de fundo da ideia de história natural. A natureza tem certa primazia quanto ao fluxo direcional que orienta o histórico a reproduzi-la em suas próprias estruturas. Para tentarmos acompanhar Adorno, é preciso dizer que primazia, se aqui é realmente pertinente o termo, deve afastar-se de uma interpretação ontológica no sentido de algo originário e, sem perder os aspectos elementar e geral de substrato orgânico onde a vida se apresenta, demarcar com o termo (primazia ou primado) o empuxo a si própria que a natureza realiza, como possibilidade relacional marcada pela impossibilidade do imediato, puro.

    O problema desse despertar, que aqui é admitido como possibilidade metafísica é o problema que constitui o que entendemos aqui como história natural. Lukács visa a metamorfose do histórico, concebido como passado, em natureza; a história paralisada é natureza, ou o ser vivo paralisado da natureza é o mero devir histórico.³⁰

    Se o ser vivo natural paralisado é marcado historicamente como sugere o final da citação, então o movimento dos conceitos de natureza e história indica o reflexo da dialeticidade das coisas no mundo, como Adorno apresenta nas suas lições sobre dialética.³¹

    Continuando na esteira das análises do texto adorniano, entra em cena Walter Benjamin, segundo Adorno, em uma posição complementar a Lukács. Essa complementariedade se daria pelo teor filosófico que as posições de Benjamin forneceriam à discussão sobre as relações entre os conceitos de história e natureza.

    O conceito de história em Benjamin é importante para a melhor compreensão das observações de Adorno. Primeiro, podemos destacar, a respeito desse conceito, sua posição crítica em relação a uma visão positiva de história, basicamente ancorada na preponderância da temporalidade física e linear, além da positividade não dialética da ideia de progresso. Frente a essa posição, o filósofo berlinense responde com a ideia de catástrofe como uma espécie de par dialético do progresso, além da noção de transitoriedade viva como característica histórica da experiência concreta dos indivíduos.

    Segundo Cantinho³², a partir das observações de Stéphane Mosès, três paradigmas demarcam a perspectiva de história em Benjamin, o teológico, o estético e o político. Entre eles, o estético cumpre uma função especial de mediação entre os outros dois. Recorrendo, uma vez mais, ao ensaio sobre história natural, vemos Adorno resgatar o papel mediador do conceito estético de alegoria:

    Há inicialmente duas passagens em Benjamin que completam as de Lukács: ‘A natureza é contemplada por eles (os poetas alegóricos) como um transiente [Vergängnis] eterno, no qual unicamente o olhar saturnal daquelas gerações conheceu a história’ (...) A ‘história’ manifesta-se na face da natureza através da escrita cifrada do transiente [Vergängnis]’³³

    Na sequência do texto, Adorno aponta a diferença da posição de Benjamin em relação à de Lukács, a partir da ideia de transitório, e caminha em direção ao conceito benjaminiano de alegoria.

    Em relação à filosofia da história de Lukács, acrescenta-se algo essencialmente diferente; em ambas as vezes aparecem as palavras "transiente’ [Vergängnis] e ‘transitoriedade’ [Vergänglichkeit]. O //ponto mais fundo no qual história e natureza convergem situa-se precisamente naquele momento da transitoriedade. Se Lukács retransformou o histórico (concebido como passado) em natureza, aqui se oferece a outra face

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