Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Cidades afundam em dias normais
Cidades afundam em dias normais
Cidades afundam em dias normais
E-book258 páginas4 horas

Cidades afundam em dias normais

Nota: 4.5 de 5 estrelas

4.5/5

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Cidades não reaparecem do fundo de lagos todos os dias. Quando a seca do Cerrado revelou Alto do Oeste, cidade que ficou submersa no início do milênio, Kênia Lopes soube que precisava fotografar as ruínas, como se em busca da resposta para uma questão jamais respondida: o que faziam os moradores enquanto aquele pequeno apocalipse se aproximava?
Esta exposição reúne os relatos e rostos que Kênia captou em uma investigação que mudou dramaticamente o foco de seu trabalho, justamente por ter sido um projeto tão pessoal: Kênia crescera em Alto do Oeste. Conhecia todas as pessoas que retratou.
Uma professora de História obstinada em preservar memórias. A jornada artística de um grafiteiro. Um padre náufrago. Um argentino tentando entender um idioma cheio de ruídos e feridas. Uma jovem escrevendo o fim do mundo enquanto ele acontecia. Em cada história, a tragédia do povo alto-oestino apresenta-se como um espelho que reflete as tragédias que se infiltram em nosso cotidiano, nos buracos abertos pelo abandono e pela violência.
As fotografias de Kênia, como se fossem pinturas encontradas em uma caverna, parecem exigir a participação do nosso olhar para buscar as respostas. Se a verdade desaparece no instante em que é registrada, como podemos determinar o que realmente aconteceu? As galerias a seguir nos provocam com um lembrete: se uma cidade inteira pode afundar, talvez a memória seja o único lugar onde podemos permanecer.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento14 de set. de 2020
ISBN9786555950069
Cidades afundam em dias normais

Relacionado a Cidades afundam em dias normais

Ebooks relacionados

Ficção Literária para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de Cidades afundam em dias normais

Nota: 4.666666666666667 de 5 estrelas
4.5/5

6 avaliações0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Cidades afundam em dias normais - Aline Valek

    Capa do livro Cidades afundam em dias normaisFolha de rosto do livro Cidades afundam em dias normais. Autora: Aline Valek

    Para a garota que eu fui.

    Sumário

    Para pular o Sumário, clique aqui.

    GALERIA I: SECA

    Capítulo 1

    Capítulo 2

    Capítulo 3

    Capítulo 4

    Capítulo 5

    Capítulo 6

    Capítulo 7

    Capítulo 8

    Capítulo 9

    Capítulo 10

    Capítulo 11

    Capítulo 12

    Capítulo 13

    Capítulo 14

    Capítulo 15

    Capítulo 16

    Capítulo 17

    Capítulo 18

    Capítulo 19

    Capítulo 20

    Capítulo 21

    Capítulo 22

    Capítulo 23

    Capítulo 24

    Capítulo 25

    Capítulo 26

    Capítulo 27

    Capítulo 28

    Capítulo 29

    Capítulo 30

    Capítulo 31

    Capítulo 32

    Capítulo 33

    Capítulo 34

    Capítulo 35

    GALERIA II: ÁGUA

    Capítulo 36

    Capítulo 37

    Capítulo 38

    Capítulo 39

    Capítulo 40

    Capítulo 41

    Capítulo 42

    Capítulo 43

    Capítulo 44

    Capítulo 45

    Capítulo 46

    Capítulo 47

    Capítulo 48

    Capítulo 49

    Capítulo 50

    Capítulo 51

    Capítulo 52

    Capítulo 53

    Capítulo 54

    Capítulo 55

    Capítulo 56

    Capítulo 57

    Capítulo 58

    Capítulo 59

    Capítulo 60

    Capítulo 61

    Capítulo 62

    Capítulo 63

    Capítulo 64

    Capítulo 65

    Capítulo 66

    Capítulo 67

    Capítulo 68

    Capítulo 69

    Capítulo 70

    Epílogo

    Mapa da exposição

    Agradecimentos

    Créditos

    A Autora

    Fotos, que em si mesmas nada podem explicar, são convites inesgotáveis à dedução, à especulação e à fantasia.

    – Susan Sontag

    "as viagens são daqueles

    que nunca deixaram sua aldeia

    como as fotografias por direito pertencem

    aos que não saíram na fotografia"

    – Ana Martins Marques

    GALERIA I: SECA

    AS FOTOGRAFIAS E DEPOIMENTOS REUNIDOS NESTA EXPOSIÇÃO SÃO, ACIMA DE tudo, um retrato de ruínas impossíveis de reconstruir: uma cidade aos pedaços, relações que se romperam, pessoas que partiram.

    Henri Cartier-Bresson dizia que fotógrafos são aqueles que lidam com coisas que estão continuamente desaparecendo; e que, uma vez que elas desaparecem, não há mecanismo no mundo que as faça reaparecer. Resta apenas a fotografia e, dentro dela, um momento extinto.

    Por isso, diante de uma foto, nada acontece; há apenas uma cena a se observar. Fotografias são imagens incapazes de se mover. Quem as põe em movimento é quem observa.

    1.

    NINGUÉM SABIA COMO A LTO DO O ESTE HAVIA COMEÇADO A AFUNDAR, NEM como, dezesseis anos depois, a cidade ficou novamente descoberta. Os começos se perdem escorregadios, tanto numa ponta da história quanto na outra.

    As primeiras fotos, no entanto, são alaranjadas. Disso se sabe porque ficou o registro: a água do lago, que não era das mais limpas, corroeu concreto, asfalto, metal. Lambeu das árvores as cores, deixou-as duras feito esculturas de argila seca.

    O movimento silencioso de imagens sendo sobrescritas: as paredes da igreja, que lembravam pedras transparentes no fundo de um riacho quando antes cintilavam ao meio-dia, ficaram foscas como a alma de um pagão; os bancos da praça, monocromáticos, já não mostravam a variedade de caligrafias das pichações que antes os cobriam; pedaços de entulho, amontoados como restos de um navio naufragado devolvido pelo mar, dormiam onde um dia existiu uma parada de ônibus; um pequeno calango se arrastava desconfiado no banco de uma moto, abandonada, nada mais que uma escultura inútil no meio da praça.

    Fogo.

    As imagens começam assim: Kênia acendendo um cigarro, porque era muito desconfortável ficar diante da câmera quando o seu lugar, de verdade, era atrás dela. Não foi em razão disso que foram registrar essas imagens? Cidades-fantasma não emergiam do fundo de lagos todos os dias.

    Essa história não é minha, ela fez questão de lembrar.

    Querendo ou não, você cresceu nesta cidade, morou aqui antes de tudo afundar. No sotaque de Facundo, um vestígio sutil de espanhol portenho.

    A câmera num tripé, apontada para a parede descascada que escolheram usar como pano de fundo.

    Do recorte da câmera, não dava para saber se estavam numa casa com as paredes destruídas ou dentro de uma caverna. O tipo de ambiguidade de que Kênia gostava quando escolhia seus ângulos.

    Você tem fotos daquela época?

    Nenhuma. Ela riu. Eu nem pensava em ser fotógrafa. Se pudesse voltar no tempo, arranjaria uma forma de se convencer a fotografar qualquer coisa — a rua de casa, o interior do colégio, o lago avançando sobre a pista, o rosto dos colegas que tiveram as casas engolidas pela água. Fariam suas fotos de agora valerem uma grana. Não tinha. Restavam a ela apenas as memórias, que tinham a tendência de ficar distorcidas como uma paisagem vista por uma grande angular.

    Você já sabe como isso funciona. Facundo tossiu para limpar a garganta. Kênia soltou a fumaça e balançou a cabeça, sinal de que estava pronta para começar. Ele perguntou: Quando Alto do Oeste começou a afundar?

    Ninguém sabe, na verdade. Sua resposta ecoou junto com a dos outros entrevistados.

    Ninguém lembrava, ninguém tinha uma data exata, diziam olha, não sei e faziam uma cara confusa, como se de repente percebessem o ridículo de não terem resposta para aquela pergunta tão óbvia. Na edição, essa sequência de respostas imprecisas ficaria linda.

    Quando começou a afundar para você?

    Ela pareceu procurar a resposta nalgum lugar do seu passado, o olhar perdido. Num canto, um cachorro cor de barro se deitava com a barriga e a cabeça no chão, os olhos em pingue-pongue passando de Facundo para Kênia, de Kênia para Facundo. Esperava por qualquer oportunidade de descolar comida.

    Teria sido mais fácil se tivesse acontecido de uma vez, ela disse. Como nos filmes de ação. A vida pode ser meio decepcionante. Parece que nada acontece, até você reparar que acabou. Que chegou num ponto que não tem mais volta. Foi assim que começou pra mim, acho: quando vi que nada ia voltar a ser como antes.

    Kênia apagou o cigarro antes de começar a contar.

    2.

    ALTO DO O ESTE HAVIA SIDO CONSTRUÍDA EM CIMA DE UM MORRO, QUASE QUE cuspida por acaso no meio do mapa. Cerrado e BR por todos os lados, localização geográfica perfeita para continuar no esquecimento.

    O lago, que ficava na borda da cidade, levava um pouco de umidade para os moradores e amenizava um pouco a seca, que, como o sol, não abandonava aquele lugar.

    O mesmo lago que trazia alívio, quem ia imaginar?, traria também a perdição.

    Suas águas escuras permaneciam em silêncio na entrada da cidade, como se não tivessem nada a ver com aquilo, nada a declarar, nada para ver aqui. A pista continuava submersa, o que dificultava o acesso e se impunha como mais uma barreira para as histórias que pareciam esperar do outro lado.

    Os urubus deslizavam em círculos num céu sem nuvens. Já não chovia havia meses.

    Naquela região, costumava existir o antigo Rio dos Patos, desaparecido fazia quase duzentos anos — a única fonte sobre isso era um documento em que Goiás ainda era escrito com Y, e que descrevia as fronteiras e o território de uma fazenda. Não era possível saber por que o rio desaparecera, ou mesmo por que levava aquele nome. Difícil imaginar patos vivendo por ali. De que tipo eram? Marrecos? Pés-vermelhos? Aqueles grandes, do pescoço verde, que partiam para cima das pessoas? Não importava, ficaram no passado.

    A questão é que o lago — artificial — passou a existir no mesmo ponto por onde o curso desse rio um dia passara. Coincidência ou planejamento, aquela parecia uma informação importante, apesar de pouco documentada.

    Facundo não achou muito sobre Alto do Oeste na pesquisa que fez antes de embarcar na proposta de Kênia. Achou uma ou duas notícias mais recentes, que falavam do misterioso fenômeno da cidade que reaparecia depois de quase vinte anos submersa. Tudo impreciso, com um tom de notícia curiosa, daquelas que se lê o título e pensa puxa, que mundo maluco, antes de partir para a seção de fofocas.

    ATLÂNTIDA DO CERRADO: CIDADE PERDIDA REAPARECE DEPOIS DE DEZESSEIS ANOS NO FUNDO DE UM LAGO

    Lembra de Alto do Oeste? Nós da Redação também não. Submersa há dezesseis anos no fundo de um lago, a cidade deu as caras novamente graças ao agravamento do período de seca, que fez o lago que cobria a região recuar quase a ponto de desaparecer. Foi reportado que ex-moradores voltaram a ocupar o lugar, que está reduzido a ruínas. Até o fechamento desta edição não conseguimos contato com nenhum alto-oestino, mas há uma imagem circulando na rede onde se vê o estado atual das ruas da antiga cidade. O professor Abadia Feijó, do Instituto de Estudo do Meio Ambiente, afirma que não é possível determinar uma causa ou explicação para o fenômeno, mas especula que pode ter acontecido em decorrência das mudanças climáticas que vêm castigando a região Centro-Oeste com a seca mais severa dos últimos anos.

    CIDADE QUE AFUNDOU HÁ VINTE ANOS RETORNA E EX-MORADORES QUEREM SUAS CASAS DE VOLTA

    Nos últimos dias, os habitantes de Entrepassos não falam de outra coisa: a cidade vizinha, que havia afundado dentro de um lago há vinte anos, está de volta à terra seca. A notícia, que circulou em grupos de WhatsApp com ares de boato, ouriçou ex-moradores do município, que iniciaram um movimento de retorno a Alto do Oeste, também chamada de Atlântida do Cerrado. O que encontraram por lá? Muita lama e casas em ruínas. Mesmo assim, querem ficar. Em mensagem, Deusiane, alto-oestina que retornou à sua antiga casa, explica: Tem que voltar, né? Ou daqui a pouco começa a aparecer gente querendo ocupar sua casa. Sempre tem alguém querendo tirar proveito da terra dos outros.

    3.

    "P OR QUE VOCÊ RESOLVEU VOLTAR, C LEITON?"

    Facundo ajeitou o gravador enquanto Kênia fotografava o rapaz sentado diante deles. Tinha o mesmo tom pardo que as paredes tingidas pelo lago, inclusive os olhos, iluminados do jeito que Kênia gostava. O foco ficava perfeito.

    Ah, pra começar algo novo, acho. Ele coçou o pescoço.

    Começar do zero: não havia eletricidade, saneamento básico, governo, endereços, trabalho, nada. Mas o espaço vazio era algo: casas para ocupar, oportunidades de renda para criar, uma história em branco pela frente.

    Cleiton gostava do novo trabalho: receber os visitantes, contar as histórias das ruínas, levar num tour pela cidade. Apresentava com conhecimento de causa. Eu era daqui. Sou daqui. Como se a cidade nunca tivesse afundado, como se nunca tivesse precisado partir. Não precisava decorar roteiro; apontava que ali funcionava um restaurante, ali o colégio, contava dos campeonatos que aconteciam no ginásio. Ainda eram poucos os turistas, mas o suficiente para tirar o sustento. De alguma forma, mais compensador do que calejar as mãos batendo laje, andar de cidade em cidade à procura de trabalho de mexer com os braços. Ali, era só ficar, esperar, conversar. Andar de bicicleta.

    Estava animado. A notícia logo ia se espalhar e atrair mais turistas. Vocês foram os primeiros a vir aqui fazer uma reportagem.

    Não é bem uma reportagem, Kênia disse.

    É mais um documentário, Facundo completou.

    Já tinham explicado algumas vezes; o povo ali era muito curioso.

    Cleiton não ligava, Cleiton estava otimista: De um jeito ou de outro, vai espalhar a história. Vai ajudar no movimento, com certeza. Trazer mais gente.

    Quem sabe umas gatas? Kênia apertou o botão no momento exato da risada. Algo de embaraço naquele sorriso.

    Mulher bonita é sempre bem-vinda, Cleiton disse, a mão na nuca.

    Passou a olhar para as lentes de Kênia, um vínculo criado ali. Arriscou fazer as vezes de entrevistador e perguntou para a fotógrafa: E você, por que resolveu voltar?

    Ela não via por essa perspectiva. Não era voltar de verdade se ela não resolvesse ficar, certo? Estava de passagem. Trabalho, ela respondeu, levantando a câmera, mostrando o motivo — único e óbvio — de estar ali.

    4.

    PROVÁVEL QUE C LEITON FOSSE O PRIMEIRO ROSTO QUE UM VISITANTE VERIA depois de atravessar o lago num ônibus-balsa.

    A viagem não era das mais agradáveis — o veículo, uma carcaça de um ônibus antigo montada em cima de uma balsa improvisada, fazia um barulho desgraçado, com o motor alimentando os giros da hélice dentro da água. As boias iam penduradas aqui e ali, e não passavam a impressão de estarem confiantes quanto à sua capacidade de cumprir o papel que lhes cabia, caso fosse preciso jogá-las no lago. Faltava a elas a autoestima característica das boias, infladas, firmes, seguras de que flutuavam. Serviam no máximo como um lembrete: Vai achando que isso aqui não pode afundar, se essa cidade inteira já afundou.

    Nas fotografias que Kênia fez mais de perto, dava para ler a marca da viação Rio dos Patos, inscrita na carcaça, com as letras cobertas por muitas camadas de tempo.

    O desembarque do ônibus-balsa dava de frente para uma placa, onde o asfalto surgia de repente de dentro do lago. Bem-vindos a Alto do Oeste, a Atlântica do Cerrado. Se repararam que escreveram Atlântida errado, não se deram ao trabalho de corrigir.

    Mais adiante, Cleiton aparecia para receber os visitantes, montado numa bicicleta. Seu protocolo era simples: dar as boas-vindas e dizer que o tour custava trinta por pessoa, mas só até as cinco da tarde.

    Depois que escurece, só tem um lugar para ficar, o hotel, ele explicou, estendendo o braço fino para o outro lado da praça, onde ficava o prédio do Hotel Aconchego — o único lugar com energia elétrica, por algumas horas do dia.

    O terceiro e último andar do hotel era o único que não tinha aquela cor de achocolatado ralo; as paredes, que ficaram fora d’água todos aqueles anos, estavam descascadas e foram esbranquiçadas pelo sol. Aquela marca era espantosa: mostrava o quanto a água havia subido — ou a cidade descido? Não era difícil imaginar o terceiro andar como o sobrevivente de um naufrágio, esperando por resgate com a cabeça erguida para respirar, rodeado de água por todos os lados.

    Cleiton começava seu tour no centro da praça. Ali era o coração da cidade, onde — como manda o Manual das Cidadezinhas Que Se Prezem — ficava a igreja de Nossa Senhora dos Esquecidos. Em algum lugar por ali costumava ter uma estátua da santa, ele avisou, apontando para o vazio. Seria reformada. Depois para a cruz: Teve que ser reconstruída, foi pregada na semana passada.

    Kênia não precisava de guia para saber o que fotografava. Conhecia bem aquele pedaço. Sua lente procurava os pontos principais em volta da praça, e os registrou em sequência.

    Primeiro, a igreja.

    Ao lado, o único posto de gasolina, desativado. As bicicletas eram, por enquanto, o meio de transporte favorito. Mais por falta de opção.

    Uns restos de parede marcavam o lugar onde antes existiam os quiosques que serviam cachorro-quente e outras boas pedidas, como o xis-granada, talvez a única contribuição de Alto do Oeste para a gastronomia regional.

    Na avenida principal, algumas construções ainda de pé, outras nem tanto. Ali costumava funcionar boa parte do comércio local. Kênia fotografou uma a uma: "Ali era uma loja de coisas baratas para casa. Do lado, a lan house principal." Carcaças de computador amontoavam-se no interior da loja.

    Onde funcionava uma das várias padarias, havia uma faixa amarrada que anunciava: Em breve, Café dos Afogados.

    A loja sem vitrine e sem porta costumava ser uma livraria, a única de Alto do Oeste. Mas só de livros evangélicos, Kênia explicou, quase que pedindo desculpas.

    Fechando a volta em torno da praça, ficava o hotel, reocupado por alguém que viu uma oportunidade de negócios. O gerador era investimento: fazia o hotel ser o mais próximo de civilização por ali, um lugar para dormir e tomar banho com alguma dignidade. Luz atraía dinheiro.

    O hotel parecia fazer mais sentido naquele contexto; Alto do Oeste nunca foi para turista. O que alguém ia fazer naquele fim de mundo? Na época, funcionava mais como um ponto de encontro de amantes, Kênia explicou, entre uma foto e outra.

    Facundo sentiu falta de prédios públicos. Prefeitura? Câmara de Vereadores? Hospital?

    Ficavam no final dessa rua. Cleiton apontou. Naquela parte, debaixo d’água. Também foram os primeiros prédios a afundar, junto com a pista de entrada. Foi por ali que tudo começou.

    5.

    A CAVERNA TINHA PAREDES ÚMIDAS E CHEIAS DE REENTRÂNCIAS, COMO A GARGANTA de um animal muito grande. Quando Kênia passou por aquelas galerias, as mãos deslizando em rochas com o frescor de milhões de anos, ia logo atrás de Facundo e do guia, tentando se convencer de que o som que ouvia vindo de todos os lados não era o de aranhas gigantes fazendo tricô, mas de seus próprios passos ecoando infinitos no subterrâneo.

    O guia apontou para as pinturas com a cerimônia de quem apresenta uma galeria

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1