Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Ela se chama Rodolfo
Ela se chama Rodolfo
Ela se chama Rodolfo
E-book230 páginas3 horas

Ela se chama Rodolfo

Nota: 4.5 de 5 estrelas

4.5/5

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Murilo acaba de se mudar para um apartamento no qual a antiga moradora, Francesca, deixou uma tartaruga. Seguindo ordens recebidas por e-mail, tenta entregar o animal por meia Porto Alegre.
A peregrinação parece inocente, mas a escritora Julia Dantas sabe que não há nada mais radical e transformador do que o encontro entre pessoas, quando minimamente desarmadas.
Comovente, espirituoso, inesperado, o segundo romance da autora é narrado de forma tão firme que poderia ser utilizado em aulas sobre como contar uma história, criar cenas perfeitas, compor um personagem.
Como as vias que o protagonista percorre na cidade, a jornada é sinuosa e cheia de ladeiras. Em embates com a morte, a doença e o fim dos relacionamentos, os personagens se abrem em suas vulnerabilidades, conflitos e anseios. Assim, ensaiam arranhar a couraça de dinâmicas de opressão, especialmente relacionadas a gênero.
MOEMA VILELA
IdiomaPortuguês
Data de lançamento23 de mar. de 2022
ISBN9786558260318
Ela se chama Rodolfo

Leia mais títulos de Julia Dantas

Autores relacionados

Relacionado a Ela se chama Rodolfo

Ebooks relacionados

Ficção Literária para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de Ela se chama Rodolfo

Nota: 4.5 de 5 estrelas
4.5/5

2 avaliações0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Ela se chama Rodolfo - Julia Dantas

    Julia Dantas

    Ela se chama Rodolfo

    SUMÁRIO

    Capa

    Folha de Rosto

    Ela se chama Rodolfo

    Créditos

    Landmarks

    Cover Page

    Cover

    Half Title Page

    Title Page

    Copyright Page

    Era uma vez um homem. Murilo empurra e se joga contra a porta, sacode-a e chuta, mas a chave não funciona. O arranjo, que desde o início parecera improvável, se mostra agora estúpido. Alugar o apartamento de uma desconhecida, sem contrato nem garantias, era o tipo de ideia que ele jamais teria levado adiante sob circunstâncias habituais. Mas as imobiliárias o escorraçavam: seu nome está sujo pelas dívidas que Gabbriela deixou no cartão dele. O acordo informal com uma pessoa que Murilo nem conhecia apareceu como última e única possibilidade, e o levou a aceitar uma fila de pessoas que fizeram a transação se concretizar, começando pela faxineira do prédio em que Murilo trabalha, passando pelo namorado dela até chegar a uma ex-aluna do homem: a dona do apartamento. O problema é que agora a chave não funciona, talvez sequer pertença àquela fechadura, talvez nem haja apartamento algum, ex-aluna nenhuma, a senhora da faxina bem pode estar comprando uma nova geladeira com o dinheiro da caução que ele lhe entregou e que ela prometeu repassar à corrente de gente. Toda essa rede de transferências se formou porque a suposta ex-aluna estava viajando. Ninguém sabia direito para onde. Murilo deveria acreditar que essa ex-aluna caíra no mundo e deveria acreditar que ela deixara um apartamento vazio para trás e deveria acreditar que ela encarregara outras pessoas de alugá-lo. E Murilo acreditara. Sente enjoo só de pensar que terá que rastrear toda essa trilha de gente para reaver o dinheiro. Tinha a esperança de que poderia se poupar das interações com outras pessoas pelo menos até o fim do ano, e agora precisará não apenas encontrar pessoas, como também brigar com elas. Diante da porta fixa, com os dedos que tentam fuçar nas entranhas da fechadura, ele se pergunta como pôde cair num golpe tão precário.

    Senta no chão, cola as costas contra a porta e estica as pernas, exausto. Prefere nem olhar para o chaveiro que pende da fechadura, uma farsa incapaz de virar para qualquer lado. Tem os olhos vidrados nas próprias mãos entrecruzadas sobre o colo quando sente que está prestes a pegar no sono. Poderia dormir ali mesmo. Cogita, por um segundo, morar no corredor. Se não fosse visto pelos vizinhos, se eles não se queixassem para o síndico, poderia com facilidade morar no corredor. Já está pensando em como acomodar suas malas sem atrapalhar a passagem das escadas, mas, de repente, sem nem mesmo se dar conta, decide tentar uma última vez.

    Vira a chave para a direita, empurra a porta. Nada. Olha para os lados em busca de ajuda. Nada. Vira a chave para a direita mais uma vez, só que agora deixa que a mão volte com suavidade para a esquerda, como quem solta ou liberta alguma coisa, e ouve então um clique. Sem que ele empurre, a porta destrava e se abre sob seu próprio peso. Murilo mais uma vez olha em volta, agora para se certificar de que ninguém foi testemunha do seu desnecessário sofrimento prévio. Sente-se envergonhado e, em alguma medida, ofendido pela porta.

    Entra rápido no apartamento escuro e tem a sorte de ali ainda haver lâmpadas, e, ainda, energia elétrica. Os poucos móveis estão dispostos sem ordem, como se alguém tivesse abandonado pela metade a tarefa de levá-los embora: uma mesa, três cadeiras, uma poltrona de couro e um colchão sobre um sofá puído amontoam-se no meio da sala; na cozinha, a geladeira está grudada de frente contra a pia, ao lado de marcas de arrasto na cera vermelha do piso. Encontra, no quarto, os estrados da cama erguidos em frente à janela, as portas do guarda-roupa abertas a revelarem nada. Descobre um tapete enrolado dentro do banheiro, equilibrado sobre a quarta cadeira que pertencia à sala. Passa a mão sobre a superfície empoeirada do espelho e é através do reflexo que, no canto de azulejos verdes formado pela junção do box com a parede, ele a avista. Pequenina, ensimesmada, sobrevivente a sabe-se-lá quais privações, uma tartaruga verdíssima descansa.

    Murilo demora a entender. Supõe, por um instante, que tartarugas sejam como lagartixas ou rãs ou outro desses bichos que se materializam dentro das casas sem revelar sua origem e, de maneira também misteriosa, desaparecem ao nascer do sol. Percebe o engano ao ver que a tartaruga está sofrendo. Não sabe como pode ter certeza de que esteja, mas tem, e a toma na concha da mão, conclui que ela deve ter ido ao banheiro em busca de água e pousa a criaturinha dentro da pia. Tapa o ralo com o dedão e abre a torneira. A pia se transforma em represa. Como ressuscitada, a tartaruga estica mais as patas e o pescoço e nada em círculos até deslizar, calma e certeira, para o espaço côncavo da louça destinado aos sabonetes. Tem o tamanho de um sabonete. Murilo se tranquiliza. Deixa quieta a tartaruga e sai pelo Partenon em busca de algum mercado. Precisa se aclimatar ao bairro. Voltará com panos de limpeza, desinfetantes, uma tampa de ralo e um pé de alface.

    Acorda cedo no dia seguinte com o corpo ainda dolorido pelo arrastar dos móveis do dia anterior. Sabe que não deveria acordar cedo, pois isso vai bagunçar os ritmos do corpo quando voltar ao trabalho. Conseguiu dois dias de folga para a mudança apenas porque o chefe lhe devia um favor, mas logo estará, de novo, virando as noites na portaria, chegando em casa às sete e meia da manhã para dormir, começando depois seu dia enquanto o resto do mundo toma o cafezinho pós-almoço. Mas sente saudade da luz da manhã: os raios amarelos entram pela janela e envolvem o quarto num tom de sépia. O calor do verão deixa a iluminação mais pesada. O ar quente preenche o apartamento e parece querer empurrar as paredes mais para fora. Vai ao banheiro conferir se a tartaruga continua bem. Lava as mãos e o rosto no chuveiro para não bagunçar o microcosmo criado na pia. A tartaruga segue no espaço do sabonete, imóvel. Ele estende o dedo indicador. Dá um cutucão de leve. Ela se assusta, recolhe as patinhas e a cabeça num movimento rápido que, por sua vez, assusta Murilo e, diante de tanto sobressalto, ele pede desculpas.

    Para por um segundo.

    Dá um passo atrás. Ri sozinho.

    Pediu desculpas a uma tartaruga. Quer voltar ao quarto e contar a Gabbriela, entre os lençóis, essa novíssima anedota que acaba de intitular desculpas a uma tartaruga, e então, assim, de súbito, a lembrança de Gabbriela, a lembrança de que Gabbriela não está nos lençóis, nem no quarto, nem sequer na cidade, é o suficiente para lhe destituir do sorriso e levá-lo de volta à cama. Precisa terminar de arrumar a casa, precisa encontrar nas malas o uniforme do trabalho, precisa telefonar para Gabbriela mais uma vez. Considerando tudo isso, puxa o lençol e dorme pelo resto do dia.

    À noite, sairá de casa desorientado pelo sono fora da rotina, procurando um lugar onde possa comprar cervejas e comida barata, e encontrará, no minimercado mais próximo, garrafas retornáveis, salgados fritos horas antes e balas de morango que o comoverão, pois não as via desde a infância.

    Depois de três dias com a tartaruga, já tem o banheiro de volta para si. Para ela, instalou no canto da sala uma bacia cheia d'água. Uma caixinha de CD aberta serve de rampa para que o animal possa entrar e sair à vontade. Espalhados pela bacia, três potes de plástico, embocados para baixo, formam pequenas ilhas. Murilo ainda não sabe que destino dar à criatura. Não tem nada contra os animais nem contra as tartarugas em específico, mas está sozinho há meses e tem mais seis semanas para aperfeiçoar a autossuficiência antes de viajar. As férias já foram aprovadas, ele tem quase o dinheiro, quase a concordância de Gabbriela para que vá até ela consertar as coisas. Então precisa pôr a tartaruga no seu rumo. É por isso que, depois de cumprir o turno de trabalho virando a noite na portaria, gastou quase uma manhã inteira conversando com a intransigente faxineira do prédio, até conseguir um endereço de e-mail da suposta ex-aluna e proprietária do apartamento. Escreveu, e agora espera pela resposta. Enquanto a mensagem não vem, ele tenta entender o que terá levado alguém a escolher uma coisa tão estranha como bicho de estimação: não dá para acariciar, não protege a casa, não esquenta os pés.

    Todas as tardes, pelo resto da semana, depois de largar uma folha de alface dentro da piscina caseira, Murilo inspeciona a tartaruga em gestos repetidos: agarra-a com dois dedos em pinça pelas laterais do casco e ergue-a até a altura dos olhos. Assim que começa o movimento, a tartaruga puxa as patas e a cabeça para dentro, e Murilo fica ali, sentado no chão, incerto quanto a que exatamente deveria inspecionar naquele caquinho de bicho, uma pastilha que é dura por cima e molenga na barriga. Todos os dias, constata que o animal está saudável. Come, move-se, esconde a cabeça, o que mais poderia fazer?

    O celular de Gabbriela está desligado, como de costume. Só conversaram três vezes desde que ela foi embora. Fora isso, trocam mensagens esporádicas. Ele gostaria de lhe dizer que tem certeza de que conseguirá pagar a passagem de avião para ir até ela. Está convicto de que é o melhor modo para o reencontro. Buscaria Gabbriela na comunidade do seu retiro espiritual e depois viajariam juntos. Não seria nada ruim que a primeira viagem do casal fosse por cachoeiras e chapadas.

    Não tinham discutido os detalhes, por mais que ele quisesse, pois Gabbriela se recusa a falar de futuro, concentrada que está em viver o momento presente. Ele envia uma mensagem tomando o cuidado de não dar nenhuma informação concreta sobre as passagens. Queria despertar a curiosidade dela, queria que ela ligasse e perguntasse dos seus planos, perguntasse dele.

    Enfia o celular no bolso e, segundos depois, sente-o vibrar. Rápido, pega-o de volta, mas não é ela. Apenas a notificação de um novo e-mail.

    CARO MURILO,

    que alegria trepidante receber a sua mensagem. Andei preocupadíssima com Rodolfo. Tive de abandoná-lo nas circunstâncias mais impiedosas e temi que ele precisasse aprender a se virar sozinho. Já deve ter visto que Rodolfo é muito inteligente, mas eu não saberia medir sua possibilidade de sobreviver desassistido. Murilo, sei que você já fez muito, mas peço que se desvie ainda um pouco mais dos seus caminhos para garantir o bem-estar de Rodolfo. Vejo que ele já o cativou, e disso entendo melhor do que ninguém: como resistir àquele ar contagiante de placidez, à maneira de um quadro de Manet, porém com patas gordinhas? Bem, um dos meus melhores amigos é dono de um pequeno bar na subida para a Tristeza. Mando abaixo o endereço. Seria pedir demais que você deixe Rodolfo aos cuidados dele? Lisandro é um homem de coração doce, ficará feliz em ter uma nova companhia.

    Com profundo agradecimento,

    FRANCESCA RAMOS

    Murilo acaba de acordar. Deve ser o início da tarde. Sai da cama procurando as calças e o casaco pelo chão. Atravessa a sala ainda pensando nas palavras do e-mail. Teria sido um deboche? Ninguém escreve daquele jeito no século 21, embora, talvez, a tal Francesca Ramos pudesse ser uma senhora de muita idade, o que explicaria o tom formal falsamente simpático. Poderia ser uma velhinha. Mas muito bem poderia ser um deboche. Ainda está ponderando sobre o que pensa daquela resposta quando ouve a campainha pela terceira vez.

    Sei que você está aí, a irmã grita do lado de fora, não vou embora enquanto não me deixar entrar. Murilo se arrasta até a sala, de má vontade. Abre a porta sem erguer os olhos e já dá meia-volta para sentar no sofá. Lídia entra cuidando para que seus passos façam mais barulho do que o necessário. Detém-se em frente ao irmão, como quem espera uma resposta a uma pergunta não feita. Só não pisa na tartaruga, Murilo pede enquanto, na busca de algum indício do motivo da visita, passa os olhos pela bolsa de couro, a camisa com punhos de renda, a calça vincada e os sapatos altos.

    — Onde ela fica? Pela tua mensagem, até achei que fosse piada.

    A tartaruga está abocanhando as farpas que escapam dos pés da mesa de madeira. Embora Lídia seja alguns anos mais jovem do que o irmão, sempre o repreendeu por todas as coisas que julgava inadequadas, como se remendasse o trabalho mal-acabado dos pais. Ela ordena que compre logo uma gaiola e armazene a tartaruga corretamente. Murilo esfrega os olhos ainda encobertos pelo sono.

    — Não vou engaiolar um bicho que nunca me fez mal.

    — Ela está fazendo mal à mesa.

    — Bom, foda-se. Essa mesa deve custar menos que o teu corte de cabelo.

    A irmã larga a bolsa sobre uma das cadeiras. Percorre o apartamento inspecionando os cantos. Abre a janela, passa os dedos pelo pó que se acumula na parte interna das persianas, recolhe papéis de bala de morango de cima dos móveis (faz questão de anunciar que são catorze), recusa-se a contar as garrafas no lixo da cozinha (como se Murilo tivesse pedido, ela grita da despensa: Me recuso a contar as garrafas de cerveja desse chão!), retira a lâmpada queimada do banheiro, mas não encontra outra para repor. Lídia fala com o tom de voz que o irmão imagina ser o que ela usa no fórum com as testemunhas de processos de guarda de filhos, brigas por heranças e outros desastres familiares. Ela volta a parar diante dele.

    — Você não tem condições de assumir uma responsabilidade dessas.

    — Que responsabilidade, Lídia? Faça-me o favor.

    — A tartaruga. Você não consegue tirar o lixo de dentro de casa, vai lembrar de dar comida pra ela?

    Murilo abre os braços.

    — Eu não preciso. Ela vai comer a mesa.

    Gabbriela não estava ali porque buscava coisas. Tinha um caderno com ideias para

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1