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Todos nós estaremos bem
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E-book205 páginas5 horas

Todos nós estaremos bem

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Sobre este e-book

Roberto é um empresário que enriqueceu durante a ditadura e que vive imerso em obsessões sexuais por outros homens – e em mentiras para encobri-las. Lúcia, sua esposa, é uma ex-guerrilheira do MR-8 que atuou em sequestros e assaltos a bancos, até ser presa e torturada antes de ir para o exílio. E é no entrelaçar dessas trajetórias, que vão do final dos anos 60 ao alvorecer do novo milênio, que Sérgio Tavares retrata uma geração que lutou por liberdade, mas que não estava pronta para vivê-la quando a conquistou.
IdiomaPortuguês
EditoraDublinense
Data de lançamento17 de fev. de 2023
ISBN9786555530926
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    Todos nós estaremos bem - Sérgio Tavares

    folha1folha2

    É preciso duas pessoas para fazer alguém, e uma para morrer. É assim que o mundo vai acabar.

    william faulkner, Enquanto agonizo

    Índice

    Câncer: primeira parte

    Capítulo I

    Capítulo II

    Capítulo III

    Capítulo IV

    Aids: segunda parte

    Capítulo I

    Capítulo II

    Capítulo III

    Capítulo IV

    Capítulo V

    Capítulo VI

    Sobre o autor

    Créditos

    Ele presume que, se ficar completamente imóvel, entregue à paralisia incondicional da desatadura do sono, do corpo tomado pela anestesia e pela quentura conservada sob a coberta, poderá ouvir o raspar das bainhas das cortinas contra a folha do batente. Sim, ele poderá ouvir o vento, que se esgueira pela fresta da janela, roçar a superfície das coisas, os objetos robustos e os planos, as telas frágeis dos porta-retratos de mesa. Se ficar em total silêncio, acredita, a cabeça colada no travesseiro, poderá ouvir o que está fora do apartamento, o novo dia que canta ao nascer, a orquestra dos eixos de renovação.

    Agora é ele quem assovia rumo ao banheiro. Ataca a dormência do rosto com as palmas juntas, cheias de água fria, sentindo as gotas se prenderem nas pontas moles do cabelo, os veios plásticos escorrerem até o queixo. Sorri para o espelho. Em seguida, escova os dentes, massageando as gengivas. Após o último bochecho, olha o reflexo do corpo nu curvado sobre a porcelana. Dá um passo para trás e o contempla. Uma estrutura bem-disposta e firme para alguém no quarto final da vida. Admira a constituição física recortada na lâmina, a ereção. Toca a ereção e sente-se bem, ainda que não passe de um efeito involuntário.

    Entra no boxe e toma uma ducha fria. Veste camisa Hering e jeans, e pulveriza o plexo com colônia. Está pronto. Sente-se pronto para o novo dia. Marcha até a porta principal, gira a chave e se detém na maçaneta. Um aceno de confiança o procura através do olho mágico. Retoma o movimento, e a crispação do metal frio o liberta.

    O dia lá fora está banhado por uma claridade pálida infiltrada por ocasiões de outras cores. O ar morno ficará mais quente. É verão, ele concede ao acaso as surpresas da descoberta. As primeiras pessoas que vê transitam sem pressa, mobilizadas pelo circuito que alimenta a construção da nova manhã. O canto dos pássaros, o céu transparente, as ondas invisíveis que fluem sob o asfalto. Ele anda rente às calçadas com os pulmões cheios, escuta as despedidas nas soleiras dos portões, as primeiras notícias do dia escapando de um rádio oculto na tela escura da janela. Se ficar totalmente imóvel, poderá ouvir a motricidade ao redor, o mundo se desenvelopando, mas logo vem o cheiro da massa do pão sendo cozida, do café fumegando pelas válvulas cromadas. E assim tem início mais um dia na vida deste homem que inspira a mornidão enquanto caminha, certo de que todos nós estaremos bem.

    cancer9

    CAPÍTULO I

    Um homem nu, mesmo queimando de desejo, não consegue deter o rapto dos sentidos quando posicionado de quatro diante de outro homem nu, vinte anos mais jovem. Um paralelo encontrado no reino animal é o do coelhinho que, em sua primeira incursão ao largo da toca, depara-se com a raposa. Algo capturado por um daqueles documentários que sucedem o show de calouros que a menina vê, e a voz em off que narra a cena chama de instante elementar, o infinitésimo de segundo que o instinto de sobrevivência leva para disparar a carga de eletricidade pelo corpo, acionando o dispositivo de reação. Ainda que desconheça o mundo e seus perigos, um estímulo nervoso retesa os tendões das patas traseiras do animal, engatilhando sua coluna num arco que projeta a provável presa para longe da ameaça. O caso é que ali está o coelhinho que não contava com o inusitado em sua estreia fora do núcleo familiar. Todas as suas reações são estancadas pelo medo, a inércia está no comando. Ele quer fugir de alguma forma, mas não consegue vencer a paralisia. Não há chance de escapatória e, inevitavelmente, será devorado pela cabeça vermelha da raposa, enrijecida atrás do longo focinho lustroso. Esse coelhinho sou eu.

    Seis horas antes, meus mocassins transitavam sobre o palco de um auditório na ala recreativa de um hotel quatro estrelas que ora acolhia apresentações de danças regionais, ora eventos corporativos. À minha frente, uma plateia atenta, acomodada em cadeiras de couro bege e com porta-braço, aspirava fumaça de cigarro e gravitava no conforto do ar-condicionado, imune ao calor derradeiro de novembro em Pernambuco. Certamente eu era o único lunático, em todo o território nordestino, que vestia, naquele momento, calça de flanela, gola rolê e paletó tweed musgo, contudo isso fazia parte do plano de transmissão de credibilidade que tinha preparado duas semanas antes, enquanto afinava as pausas respiratórias à ordenação dos slides.

    Sou diretor de uma agência de assessoria de comunicação e marketing cujo faturamento majoritário provém de uma holding de empresas com capital estrangeiro. Entre meus clientes, estão joint ventures que representam bancos americanos ou empresas de cigarro que querem pôr em prática uma campanha publicitária para fixar sua marca no mercado nacional ou lançar novos produtos. Como de praxe, o merchandising irá envolver anúncios, que serão publicados nos principais jornais e revistas do país, associando o fumo a um estilo de vida glamoroso e moderno, e comerciais rechearão a grade de programação da tevê com jovens esportistas, mulheres elegantes e caubóis montados em cavalos selvagens. Porém, além da audiência maciça, existe o interesse que essa informação seja vendida a um público específico, fora da moldura da propaganda. E aí eu entro. Minha função é fazer com que a campanha publicitária vire notícia nas redações. O método é vincular o briefing a um acontecimento, convencendo o consumidor a comprar o mesmo produto com embalagens de cor diferente. Qual tipo de público a indústria de cigarro tem como alvo? Meninos e meninas entrando na puberdade? Minha agência então elabora um festival de música com a marca incorporada ao slogan, ao jingle e em estampas de camisetas, montando um time de atrações internacionais e nacionais que será pauta para revistas especializadas e cadernos de cultura dois meses antes e uma semana depois do último aplauso. Alguns podem considerar isso reprovável, mas eu não tenho do que me envergonhar: o retorno financeiro é ótimo, as ações da agência estão em alta e permanecem imunes ao martírio econômico do país.

    A autoria não é minha, não mereço a fama. Eu apenas adaptei o expediente ao jogo de oferta e procura. Assim como na seleção natural, prospera nos negócios aquele que se utiliza de estratégia e instinto para melhor se adaptar. Apesar de chefiar uma assessoria de comunicação e marketing, minha origem não é da publicidade ou do jornalismo. Sou advogado, formado, por entusiasmo do meu falecido pai, na Faculdade Paulista de Direito da PUC. Naquele fim dos anos 50, os centros acadêmicos, principalmente os de direito, fervilhavam de jovens idealistas, que transpiravam planos para fortalecer o desenvolvimento nacional, na esteira do superlativo econômico ventilado pelo governo Kubitschek e pela primeira conquista da Copa do Mundo nos dribles mágicos do jovem Pelé. Era uma coqueluche, impossível não se contagiar.

    Foi tomado por essa mesma febre que comecei a participar dos seminários elaborados pelo Instituto Nacional de Estudos Superiores, discutindo política e economia tête-à-tête com políticos e intelectuais que faziam girar as engrenagens do novo Brasil realinhado pelo prumo getulista. Num desses encontros, recebi o convite para estagiar em um escritório que defendia os interesses da Brascan, que ampliava seu campo de atuação em redes hoteleiras e imobiliárias no sudeste do país. Quando eu estava há dois meses no cargo, um economista contratado pela Folha de S. Paulo para mapear, através de uma série de artigos, as empresas que sustentavam o chamado milagre econômico brasileiro solicitou uma entrevista com um superintendente regional e, como sabiam da minha experiência com a organização de seminários, fui convocado às pressas para intermediar o contato da empresa com o jornal. O resultado foi um relatório de bom empreendedorismo, disposto em três páginas ilustradas com estatísticas e fotos. A publicação desencadeou o interesse de outros veículos, que passaram a telefonar diretamente no meu ramal, e a partir de então somei às minhas atividades jurídicas o assessoramento de imprensa.

    Com a crescente demanda de entrevistas e envios de estudos técnicos, fui convocado para uma reunião onde me foi oferecida uma vaga no Departamento Interno de Relações Públicas da Light, que era vinculada à Brascan, assumindo a intermediação da empresa com os meios de comunicação. Era a primavera de 64, o país estava sob controle dos militares e a censura abria espaço para as reportagens institucionais. O trabalho ganhava um corpo de atribuições e o salário era satisfatório, porém eu me sentia mais um entusiasta que um profissional. Resolvi, portanto, saltar da prática à teoria e, em junho de 66, ingressei no curso de relações públicas da Escola de Comunicação e Cultura da usp. Eu me aproximava dos trinta anos e achava que era o momento de me preparar para a crise de identidade que acomete todos que entram na fase ingovernável da perda da juventude. Não podia ter acertado mais.

    De volta ao campus universitário, me deparei com um Brasil totalmente distinto daquele visto pelo ponto de vista empresarial. Os militares promoviam torturas, desaparecimento de pessoas. Estudantes defendiam ideologias com lutas armadas, atentados, sequestros. Grêmios eram invadidos, incendiados. Artistas buscavam exílio em outros países. Não concluí o curso. Pedi transferência para o Rio de Janeiro, onde aluguei um apartamento no bairro litorâneo onde nasci e passei a maior parte da infância. Em novos ares, contudo, não tinha vontade de trabalhar. A confluência de uma desilusão política e outra profissional me esgotava.

    Então, em 71, quando eu estava na organização de um congresso, reencontrei um repórter com o qual estabeleci um trato de cortesia na época em que respondia pela relação da Light com a mídia. Ao fim do evento, durante o coquetel, nos servimos de doses de uísque e conversamos sobre os rumos do país e da profissão. Entre baforadas de Camel, ele me contou que dois jornalistas estavam causando um alvoroço em São Paulo por conta da abertura de uma empresa com uma nova proposta de assessoria de imprensa. A Unipress causava discórdia por tirar repórteres das redações, o que era visto como traição pelos colegas mais conservadores e como aventura pelos focas. Nesse tempo se defendia que o jornalista que não trabalhasse numa organização jornalística fosse afastado do sindicato e perdesse o direito de exercer a profissão. Eu não era jornalista, mas, depois de um longo período, voltei a ficar entusiasmado.

    Depois de uma consulta nas páginas amarelas e uma série de interurbanos, finalmente agendei uma reunião na própria sede da Unipress com um dos seus fundadores, Alaor José Gomes, egresso da Folha de S. Paulo. Ele me explicou que, da experiência obtida na criação do setor de imprensa da Volkswagen no Brasil, criou a agência, em parceria com Reginaldo Finotti, para servir de sucursal para as redações no diálogo com o mundo corporativo, em especial no trato direto com os jornais do interior. Eu discorri sobre minhas qualificações, e um aperto de mão selou minha saída da Light e ingresso na Unipress. Foi quando conheci a profissão sem encantamento. A assessoria de imprensa, em alguns casos, envolve interesses difusos aos imperativos do jornalismo. Na relação entre empresa e mídia, nem todo fato é notícia, assim como nem toda notícia é fato. E aqui não há subversão da verdade, somente omissão. Cinco anos depois, a agência já contava com dez clientes exclusivos e um quadro de quarenta e cinco funcionários, desenvolvendo, principalmente, peças institucionais. Ainda assim, nossa atuação no meio continuava sendo motivo de queixume dos repórteres da militância.

    Então estourou a grande greve de 79 e o panorama mudou de maneira radical. Com demissões em massa nas redações, muitos jornalistas começaram a considerar a assessoria de imprensa uma alternativa menos indigna para a profissão. Foi a aplicação do que os yuppies chamam de know-how. Os grupos dissidentes passaram a conversar, a trocar experiências. Congressos eram realizados em vários sindicatos, com a proposta de se estabelecer regimentos e legislações. O desaparelhamento do governo militar, a revogação do ai-5 e a abertura política anunciavam o início de uma nova era, um país propício para a entrada das multinacionais. Uma coisa leva a outra, e os detratores de outros tempos, a patota esquerdista do pingado no bar, agora dirigiam arrojados Voyages e Landaus. Foi o tempo do dinheiro, e confesso que eu soube aproveitar.

    Próximo ao Natal de 80, pedi demissão da Unipress e abri a minha própria agência, levando dois jornalistas experientes comigo. O primeiro desafio veio no ano seguinte, quando uma subeditora de economia do Jornal do Brasil me ligou para repassar uma notícia de bastidores. A Mesbla tinha contratado uma consultoria de mercado para esclarecer as razões pelas quais a empresa perdera a hegemonia no ramo de varejo no país e iria passar por uma reformulação geral, desde a aparência das lojas à relação com os clientes, com atenção proporcional à publicidade, em especial aos famosos catálogos de produtos e comerciais para a tevê. Como ela conhecia alguns nomes no conselho gestor, disse que tentaria agendar uma reunião comigo. Da noite pro dia, preparamos um projeto de campanha baseado na modernização da identidade visual da marca a partir do conceito tipográfico da Mestre & Blatgé, firma à qual a Mesbla originalmente fora filiada. Assim, em busca de desvendar o passado, viajei para Paris três dias depois. Fiquei hospedado à margem sul do Rio Sena, próximo à Universidade Paris-Sorbonne. Um francês exumado de leituras acadêmicas me socorreu numa visitação guiada com o diretor do bureau e os associados que cuidavam da comunicação da empresa. Esses mesmos executivos me levaram ao autódromo de Dijon-Prenois, onde foi realizado o Grande Prêmio da França daquele ano, vencido pela McLaren de Alain Prost, apesar da minha torcida enrustida por Nelson Piquet, que viria a ser o campeão da temporada.

    Na volta, antes de retornar ao hotel, parei para tomar um café na área externa de um bistrô, apreciando a exuberância de um flamboyant, quando senti um toque macio no meu ombro. Me virei e um frio esmagador tomou meu peito. Era Lúcia, ou melhor, uma versão desnaturada da Lúcia que eu não via há anos, gravitando no ar cambiante do fim de tarde no Quartier Latin. Ainda que reagisse com mais descrença do que comoção, dadas as circunstâncias na qual ela desaparecera, era sumariamente Lúcia, meu grande amor.

    Conheci Lúcia num encontro organizado pela une no campus da usp, em 66. Na época, ela integrava a Dissidência Comunista da Guanabara e percorria o distrito discente distribuindo propaganda política, com gana de cooptar novos alunos à causa. Lúcia tinha dezoito anos, dez a menos que eu, e, embora possa parecer algo comprometido por um encantamento patético, uma palermice antiquada, o que de fato me chamou a atenção nela foi o esforço para ter um aspecto rude e terroso em resistência à sua beleza natural.

    Nas horas seguintes, entrevi seus passos e tomei algumas daquelas cartilhas sem qualquer interesse ideológico, até que encontrasse uma chance de acessá-la fora do círculo de sujeitos esquálidos,

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