Direitos humanos e sociedade: Perspectivas, enquadramentos e desafios
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Sobre este e-book
Organizado em 12 textos devidamente contextualizados e banhados nas perspectivas que pautam a questão dos direitos humanos, afim de discutir a temática, os autores objetivam difundir os conceitos que o envolvem, problematizando-o com a complexa relação entre o homem e a sociedade, considerando as mais diversas esferas e os mais amplos setores da sociedade.
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Direitos humanos e sociedade - Adaylson Wagner Sousa de Vasconcelos
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Revisão: Márcia Santos
Capa e Diagramação: Larissa Codogno
Imagem da capa: Fresco in the Sala di Costantino, Raphael
Edição em Versão Impressa: 2020
Edição em Versão Digital: 2021
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Conselho Editorial
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Prof. Dr. Antonio Cesar Galhardi (FATEC-SP) (Lattes)
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Paco Editorial
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SUMÁRIO
FOLHA DE ROSTO
APRESENTAÇÃO
Adaylson Wagner Sousa de Vasconcelos
1. AS VEIAS ABERTAS DA AMÉFRICA LADINA: DENEGRINDO OS DIREITOS HUMANOS
Diego dos Santos Reis
Malu Stanchi
2. DEMOCRACIA EM TEMPOS SOMBRIOS E PROTAGONISMO JUDICIAL
Gabriela Soares Balestero
3. O PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL
Andreia Gianon Bruno Faria
Filipe Casellato Scabora
4. OS DIREITOS E PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA PESSOA HUMANA
João Francisco C. Ribeiro
5. OS MILITARES E OS DIREITOS HUMANOS: O CASO MÁRCIO LAPOENTE
Fábio Gomes de França
6. A CARICATURIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: REFLEXÕES SOBRE O DISCURSO DE LEGITIMAÇÃO DO BANDICÍDIO
Bruno Antonio Barros Santos
7. DESAFIOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM DIREITOS HUMANOS – ESTUDO COMPARADO: BRASIL E PORTUGAL
Jurema Iara Reis Belli
Maria Luísa Frazão Rodrigues Branco
8. POLÍTICAS EDUCACIONAIS: DISCURSO NEOCONSERVADOR E NEOLIBERAL QUE SOMBREIA A EDUCAÇÃO ATUALMENTE
Christiano Roberto Lima de Aguiar
Gilvânia Queiroz Madeira de Aguiar
9. GÊNEROS TEXTUAIS JURÍDICOS NO ESPAÇO ESCOLAR: PELA CONSOLIDAÇÃO DA CIDADANIA
Adaylson Wagner Sousa de Vasconcelos
10. O INSTITUTO DO TELETRABALHO À LUZ DA REFORMA TRABALHISTA E OS IMPACTOS SOBRE OS DIREITOS HUMANOS DO TRABALHADOR
Danilo Scramin Alves
Paulo Henrique Silva de Oliveira
11. IDADE: FATOR DE DESIGUALDADE OU DE DIREITO?
Graziela Nasato
12. NUMA ANALOGIA COM A ESCRITA DE SI, DE MICHEL FOUCAULT – FALAR DE SI, REVELAR-SE, ENCONTRAR-SE: UMA EXPERIÊNCIA NA TERCEIRA IDADE
Euridice Tobias
SOBRE OS AUTORES
PÁGINA FINAL
APRESENTAÇÃO
Viver em sociedade, por excelência, já imprime um sentido de adversidade e, ao mesmo tempo, de necessidade de cooperação entre instituições, sujeitos e o meio como um todo. Ao longo de suas existências, homem e sociedade atravessaram as mais distintas crises, assim influenciando e sendo influenciados por fatos históricos e pelos próprios desdobramentos de seus atos, sejam estes eivados de ações ou de omissões.
Aqui nos encontramos e, mais uma vez, em um cenário de crises que carece de ressignificação de visões, de tomadas de decisões e de reflexões sobre o futuro para mesmo decidir como edificar o que está por chegar: como construir uma nova ideia de mundo, mas não mais na mera construção teórica. A prática se faz mais que necessária, é urgente.
E, dentro dessa construção, intermediando esses agentes, homem e sociedade, mas também outros tantos, está o direito e suas instituições, como cediço, com o fito de tornar o convívio humano mais harmonioso, capaz de estabelecer diálogos e saídas para os impasses que enfrentamos hodiernamente.
É com esse afã que propusemos Direitos humanos e sociedade: perspectivas, enquadramentos e desafios
, coletânea de doze contribuições, editada pela Paco Editorial, e que surge da observância dos dilemas que permeiam a consolidação dos direitos humanos atualmente. Por mais que disciplinados na nossa Carta Maior, a cada instante é preciso a reafirmação dos direitos humanos, seja por ação da sociedade civil organizada, seja pela intermediação do poder judiciário, posto que, muito infelizmente, o seu principal fiador e concretizador, inúmeras vezes corresponde ao maior algoz que trabalha para minimizá-los, quando não reduzi-los. A constatação está diante de nossos olhos, nos telejornais diários, em breves e rápidas consultas na rede mundial de computadores. Apesar do registro normativo, falta saúde, falta educação, falta moradia, falta meio ambiente preservado, falta dignidade e respeito a pessoa humana. Enfim, longa é a lista de ferimentos e agressões aos nossos direitos básicos e universais.
Frente a essa constatação apresentamos a obra que se segue, bem como os capítulos, contribuições essenciais para a consolidação deste projeto, que trazem provocações, incômodos, reflexões e proposituras sobre uma forma consolidadora de desenvolver a real compreensão acerca dos direitos humanos frente a sociedade civil.
Assim, sem delongas, partamos para as contribuições:
Propondo um novo enfoque para os estudos em direitos humanos, Diego dos Santos Reis e Malu Stanchi, em As veias abertas da Améfrica Ladina: denegrindo os direitos humanos
, utilizam de análises alicerçadas nos estudos de decolonialidade e imersos na negritude para questionar a primazia eurocêntrica que permeia o tema.
Fator primordial para a consolidação de direitos correspondentes a democracia. Apenas pelas vias do estado de direito que podemos requerer, pressionar, sugerir a implementação de novos direitos e a materialização de tantos outros que já restam positivados. Todavia, a democracia, não só no cenário brasileiro, ultrapassa por tensões e choques e, nesse aspecto, o judiciário se mostra como agente fundamental para evitar ou minimizar ações de retrocessos sociais e civis. Abordando esse diálogo entre democracia e judiciário, temos Democracia em tempos sombrios e protagonismo judicial
, de Gabriela Soares Balestero, ao mesmo tempo que salienta com extrema atenção, as problemáticas inerentes ao ativismo judicial.
Permanecendo no debate sobre direitos humanos, consolidação de direitos e o judiciário pátrio como ferramenta possível para essa instauração de estado de direitos, Andreia Gianon Bruno Faria e Filipe Casellato Scabora trazem contribuições valorosas em O papel do Supremo Tribunal Federal na efetivação dos Direitos Humanos no Brasil
.
Os direitos e princípios fundamentais da pessoa humana
, de João Francisco C. Ribeiro, está voltado para o debate principiológicos da área, bem como imerso na compreensão filosófica, mas, ao mesmo tempo, lança reflexões sobre o direito à educação.
Voltado para um estudo de caso que detém diálogo entre violação de direitos humanos e militarismo brasileiro, Fábio Gomes de França, em Os militares e os Direitos Humanos: o caso Márcio Lapoente
, discute violência institucional e como o estado, de efetivador de direitos, encorpora as vestes de perpetrador de situações violentas
.
O meio de comunicação televisivo que denuncia para nós os excessos do estado é o mesmo que pulveriza na mente dos populares o desapreço aos direitos humanos vendendo uma versão mal adornada dos mesmos como direitos dos manos
e isso, drasticamente, caiu no imaginário popular. Diante dessa constatação, A caricaturização dos Direitos Humanos: reflexões sobre o discurso de legitimação do bandicídio
, de Bruno Antônio Barros Santos, historiciza essa construção por meio da caricatura, ao mesmo tempo refuta o pensamento do senso comum que é alimentado e difundido por parte significativa da mídia nacional, principalmente em programas voltados para as classes mais hipossuficientes. Esse discurso de ódio ao outro, de busca por legitimação do extermínio de populações, pode, sem dúvidas, ser cravado como um dos elementos que possibilitou as fissuras democráticas que hoje experenciamos. Afinal hoje temos uma frente que defende o exercício da autotutela no seu sentido mais absoluto, e com o aberto e frequente apoio de agentes públicos.
Mais que difundir os preceitos dos direitos humanos, urge promover uma educação que esteja embasada em tais princípios. É com essa perspectiva, e enfocando nos desafios que é essa construção de novos professores que Jurema Iara Reis Belli e Maria Luísa Frazão Rodrigues Branco apresentam Desafios da formação de professores em Direitos Humanos – estudo comparado: Brasil e Portugal
, promovendo um traço comparativo entre essas nações irmãs.
Ainda na educação, nas políticas educacionais, temos, de Christiano Roberto Lima de Aguiar e Gilvânia Queiroz Madeira de Aguiar, Políticas educacionais: discurso neoconservador e neoliberal que sombreia a educação atualmente
que aponta como o novo modelo instaurado na política nacional se volta contra a educação, seja ela básica ou superior, unicamente com o propósito de fomentar o desmonte das estruturas e das políticas públicas que restavam em desenvolvimento.
A partir do diálogo entre os estudos linguísticos e jurídicos, Adaylson Wagner Sousa de Vasconcelos, em Gêneros textuais jurídicos no espaço escolar: pela consolidação da cidadania
, aponta para o exercício dos gêneros textuais jurídicos como um mecanismo capaz de oportunizar ao aluno o conhecimento e o exercício prático de textos que, em uma realidade próxima, podem se tornar em instrumentos capazes de exercitar sua cidadania em plenitude, cobrando das instituições a consolidação e implementação de direitos para si, enquanto sujeito individual, ou para a comunidade que habita, tendo assim uma atuação ativa e coletiva.
Nessa atual realidade de danos aos direitos, o direito do trabalho se tornou área bastante desejada por aqueles que buscam a degradação de direitos consolidados. A reforma trabalhista está aí para catalogarmos os contínuos prejuízos prestados aos trabalhadores. Dialogando direitos humanos e direito do trabalho, particularmente no exercício do teletrabalho, Danilo Scramin Alves e Paulo Henrique Silva de Oliveira propõem O instituto do teletrabalho à luz da reforma trabalhista e os impactos sobre os direitos humanos do trabalhador
.
Lançando argumentação a partir da principiologia constitucional, Graziela Nasato, em Idade: fator de desigualdade ou de direito?
, foca debate a respeito da idade que estabelece esse critério objetivo como elemento capaz de proporcionar estágios de desigualdade, mas também de direitos a depender do caso concreto. Assim, aduz a autora que a idade tem esse caráter ambivalente de proporcionar desvantagens e de assegurar direitos, principalmente quando a pessoa em análise é idosa.
Ainda na temática da pessoa idosa, mas agora expondo a relevância do projeto de Falar de si, Revelar-se, Encontrar-se: uma experiência na terceira idade, Euridice Tobias explicita a importância do processo de escuta, bem como do relato de si, de vivências e aprendizados com pessoas da terceira idade em Numa analogia com a escrita de si, de Michel Foucault – Falar de si, Revelar-se, Encontrar-se: uma experiência na terceira idade
.
Com uma variedade de abordagens a respeito dos direitos humanos que se faz congregada, convidamos pesquisadores e leitores para o estabelecimento de diálogos e ações com os estudos aqui verificados.
Tenham proveitosas leituras!
Adaylson Wagner Sousa de Vasconcelos
O Organizador
1. AS VEIAS ABERTAS DA AMÉFRICA LADINA: DENEGRINDO OS DIREITOS HUMANOS
Diego dos Santos Reis
Malu Stanchi
"Não há na violência
que a linguagem imita
algo da violência
propriamente dita?"
(Cacaso)
Introdução
O debate em torno dos direitos humanos, nos últimos decênios, tem sido alargado por concepções e experiências de grupos que assumiram o compromisso ético-político de discuti-lo, tensionando seu arcabouço teórico, seu alcance e seus limites. Sobretudo, com a emergência de perspectivas políticas e epistemológicas que reposicionam a abordagem dos direitos, para além da concepção hegemônica, pautada na universalidade de um sujeito geopoliticamente localizado.
Em que pese a reivindicação da existência de garantias e tutelas de caráter geral e abstrato, tais como invocadas pelas convenções internacionais, é notória a circunscrição dos efeitos cautelares e reparatórios dos dispositivos de direitos humanos a determinados grupos. Ao que se soma, frequentemente, a impossibilidade mesma de populações subalternizadas acionarem as instituições protetivas enunciadas por um sistema global de direitos.
Essas populações são identificadas pelo signo do perigo iminente ficcionalizado, instanciado em seus corpos racializados como ameaças permanentes de quebra das prerrogativas da ordem hegemônica. Cria-se, consequentemente, uma polarização que determina o funcionamento da díade dominador/dominado, que pressupõe uma única possibilidade de existência e matriz ontológica de humanidade: branca, europeia, patriarcal e cristã. Daí a emergência de mais um tensionamento à pretensa universalidade dos Direitos Humanos, localizado na necessidade de redefinição dos parâmetros e das representações que pautam tanto o sujeito titular de direitos quanto os alvos penalizáveis.
Nos fóruns internacionais, discutem-se os mecanismos de proteção da vida humana; ao mesmo tempo, autorizam-se bombardeios, chacinas, extermínios e encarceramentos em massa como modo de seleção e exclusão dos indivíduos indesejáveis (Stanchi; Reis, 2018). Desviantes, terroristas, delinquentes e marginais são suspeitos facilmente identificáveis como inimigos e colocados sob custódia – sem presunção de inocência, devido processo legal e direito à ampla defesa. Inimigos da espécie humana, criminalizados e designados racialmente são, de imediato, lançados no campo de anomia daqueles que são indignos de viver.
Ora, de qual paradigma humanitário se parte? Em quais pressupostos e experiências está assentado o modelo de racionalidade que sustenta o ideário salvacionista
dos direitos humanos? Os direitos humanos de que humanidade a ser resguardada? Não é novidade. Os direitos humanos são repletos de fissuras indefinitórias. Não à toa, essa concepção abstrata, generalista e idealizada do ser humano tem sido taticamente instrumentalizada para manutenção da estrutura de domínio de matriz colonial direcionada aos países do Sul global.
O fato é que as premissas materiais da discriminação e da subjugação raciais já haviam sido fornecidas pelo modelo da escravidão instituído nas Américas e pelo sistema colonial da plantation. E talvez mesmo o que podemos compreender como terror moderno. Porque ali se operaria uma cisão entre a humanidade da pessoa escravizada e sua objetificação como mera força (re)produtiva de um sistema mercantil. Em um campo de dominação, desprovidos de estatuto político e reduzidos a seus corpos biológicos, essas pessoas escravizadas – simultaneamente concebidas como propriedades dotadas de valor a serem conservadas e objetos de todo tipo de violência –, encontram-se no lugar da mais absoluta conditio inhumana (Agamben, 2015, p. 41). Pois, como afirma Mbembe,
De fato, a condição de escravizado resulta de uma tripla perda: perda de um lar
, perda de direitos sobre seu corpo e perda do estatuto político. Essa tripla perda equivale a uma dominação absoluta, uma alienação de nascença e uma morte social (que é expulsão fora da humanidade)¹. (Mbembe, 2018, p. 27)
Expulsos da comunidade dos sujeitos autônomos, dotados de razão e de consciência para gozar os direitos e as liberdades cidadãs, os corpos negros escravizados só puderam se constituir em mercadoria e instrumentos de trabalho enquanto alienados de si mesmos e de qualquer traço de humanidade que os aproximassem da comunidade dos falantes/pensantes². Mantidos em estado de injúria, em um mundo espectral de horrores, crueldade e profanidade intensos
(Carneiro, 2005, p. 28) homens e mulheres negros foram mutilados à medida que a desigualdade do poder sobre a vida do outro adquiria a forma comercial.
Posteriormente, quando destituído o estatuto jurídico da escravidão, o colonialismo é ressignificado e passa a operar em novos moldes: a colonialidade do poder (Quijano, 2005), revestida da racionalidade administrativa do governo democrático da emergência (Reis, 2020), que culmina na naturalização das relações políticas e sociais ancoradas em violentas dinâmicas de subordinação. A colonialidade do poder se alicerça na perpetuação da hierarquização racial e na consequente desconsideração da humanidade das pessoas não-brancas, o que gera reflexos nos construtos relacionais incidentes nos processos cotidianos. Disseminados pelos diferentes espectros estruturais das concepções de poder, os padrões de privilégios brancos se retroalimentam da subjugação, expropriação, apagamento e extermínio dos povos periféricos no engendrado sistema-mundo moderno/colonial.
Da complexidade transcrita pelo desenvolvimento do conceito de colonialidade do poder, emergem perspectivas que oferecem resistência às dimensões sociológicas, históricas, econômicas, educativas e sociais dominantes. Consequentemente, as articulações para quebra do ciclo firmado e perpetuado desde uma lente europeia colonialista implicam em uma desconstrução de toda perspectiva naturalizada do ser, do saber e do poder. Todavia, como destaca Lélia Gonzalez (1988, p. 71),
agora, em face da resistência dos colonizados, a violência assumirá novos contornos, mais sofisticados; chegando, às vezes, a não parecer violência, mas ‘verdadeira superioridade’.
Por isso, reivindicar uma concepção dos direitos humanos que implique a crueza da violência herdada do colonialismo requer tensionar as categorias e instituições atuais desde outras geopolíticas do direito. Para dar conta de etnogeografias diversas e propor outros caminhos de efetivação prática das tutelas, reivindica-se a repaginação, o giro decolonial (Mignolo, 2010) dos direitos humanos desde a Améfrica Ladina (Magno, 1980; Gonzalez, 1984). Deste modo, pleiteia-se o reconhecimento do legado das dinâmicas culturais afrocentradas, denegadas nas entranhas da instituição violenta da América Latina³. Estatuir garantias desde a concepção amefricana designa, portanto:
[...] uma criação nossa e de nossos antepassados no continente em que vivemos, inspirados em modelos africanos. Por conseguinte, o termo amefricana/amefricano designa toda uma descendência: não só a dos africanos trazidos pelo tráfico negreiro, como a aqueles que chegaram à AMÉRICA muito antes de Colombo. Ontem como hoje, amefricanos oriundos dos mais diferentes países têm desempenhado um papel crucial na elaboração dessa Amefricanidade que identifica, na Diáspora, uma experiência histórica comum que exige ser devidamente conhecida e cuidadosamente pesquisada. (Gonzalez, 1988, p. 77)
E pautada na construção de uma nova epistemologia dos direitos humanos. Por isso, adota-se aqui uma perspectiva crítica à concepção hegemônica dos direitos humanos e indissociável do debate acerca das novas formas de colonialismo, de genocídio e de opressão atuais. Logo de saída, não se trata de afirmar, por meio da crítica tecida a esta concepção, a irrelevância da defesa impulsionada pelos direitos humanos. Muito pelo contrário. Como afirma Herrera Flores (2002), pretende-se defender a ideia dos direitos como processos de lutas históricas pela afirmação da dignidade. Conceber os direitos não como privilégios inerentes à branquitude ou como concessões filosófico-jurídicas diante do reconhecimento de uma natureza humana a-histórica.
A monocultura dos direitos
Se os direitos humanos partem de um repertório monocultural, cuja proveniência dos conceitos pode ser geograficamente localizada, a estruturação dos parâmetros e seus termos precisam ser contextualizados, sob o risco de deslegitimar aquilo mesmo a que formalmente se propõem: responder aos excessos dos governos e proteger a dignidade de toda pessoa humana diante das arbitrariedades temerárias. Inclusive daquelas pessoas que, historicamente, estão submetidas às relações de terror, justificadas pela própria defesa dos direitos humanos e do direito humanitário.
Dissociadas da realidade, as palavras de ordem forjam a imagem mítica de uma humanidade dividida e da necessária sustentação jurídica de documentos que encriptam usos e abusos de toda espécie. Com o agravante de, nessa cisão, traçar os limites raciais, que definem a escala de violência ou o recurso a meios legais e diplomáticos como ferramentas políticas operatórias. As fronteiras entre a zona do ser e a zona do não ser são delimitadas pela experiência da opressão racial, que, como afirma Fanon (2008), desloca subjetividades e divide os projetos de humanidade. De acordo com Grosfoguel:
As pessoas classificadas acima da linha do humano são reconhecidas em suas humanidades como seres humanos e, portanto, desfrutam do acesso a direitos (direitos humanos, direitos civis, direitos das mulheres e/ou direitos trabalhistas), recursos materiais, e reconhecimento social das suas subjetividades, identidades, epistemologias e espiritualidades. As pessoas abaixo da linha do humano são consideradas subhumanas ou não humanas; isto é, suas humanidades são questionadas e, desta forma, negadas. (Grosfoguel, 2016, p. 10. Tradução nossa)
Abaixo da linha do Equador, o braço armado dos Estados pode se tornar, por meio das intervenções armadas por razões humanitárias, instrumento de intensificação da