Tempo pelo avesso
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Sobre este e-book
Regina Taccola
Carioca, Regina Taccola, médica, psicanalista e escritora publica seu terceiro livro de contos. Em 2016, sai ‘Uma tarde embalada pelo mar’ (ed. Frutos). Vai à Festa Literária de Santa Maria Madalena e emociona a plateia lendo ‘Chapeuzinho Vermelho Surrealista’, último conto do livro. Em 2017 nasce ‘Vida louca’ (ed. Chiado) elogiado pelo escritor Sergio Sant’Anna. Reconhecimentos vieram na web como ‘um estilo que me leva ao êxtase’ (A. S. Martins Catatau) e ‘narrativas breves de alta qualidade’ (Eire Rossi). Assim estimulada, Regina lança ‘Um cisne na noite’ que agora abre as asas para cumprir o seu destino.
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Tempo pelo avesso - Regina Taccola
VERA
1
Rio de Janeiro. Ipanema. 2095.
Vera se vê refletida no espelho.
Não me acostumo com essa nova juventude, essa beleza cheia de luz e vida. Sou malabarista andando na corda bamba, meio solta, do tempo pelo avesso. Vivo a idade que escolhi e onde ficarei imune ao passar dos anos, a salvo de todas as doenças.
Chego a ter saudades dos meus setenta e tantos e suas marcas. Então, eu conhecia cada ruga de meu rosto e podia relembrar, com alegria ou tristeza, o acontecimento que a havia gerado.
Relembrar não é reviver. São coisas diferentes. É mais do que memória aquilo que me puxa para trás. Não controlo esses mergulhos em profundezas de outra vida, nem consigo parar, desviar o olhar para fora e continuar no momento presente. Vou fundo, sem querer, as cenas antigas acontecem, são reais.
Ainda não sei direito como funciona essa poção que nos protege, embora não nos livre da morte, acidental ou provocada. Os telômeros, as células refeitas… Sou da primeira geração e procuro entender.
Sempre gostei de novos caminhos, da magia das descobertas, mas me aborrece repetir e repetir e repetir, à minha revelia. Quero apagar as situações ruins, revivê-las nunca mais. Das agradáveis, gosto muito.
Resolvi fazer uma bouillabaisse. Essa é uma memória boa dos meus tempos de curso de cozinha. Divertido e criativo.
As moças, porque agora somos todas quase meninas, vêm comemorar aqui os três anos de Oficina. E a tecnologia atual ajuda muitíssimo. Já programei minha robô com a receita do chefe francês, famoso desde o início desse século.
Tem sido interessante estudar literatura e escrever. É um modo de viajar pelo tempo sem me perder, tão cheio de abismos esse tempo está.
Vou comprar os frutos do mar.
Expostos atrás dos vidros, robalos, enchovas, corvinas, um vermelho e as pequenas sardinhas amontoadas como se fosse o resultado de um desastre ou uma estranha hecatombe. Os corpos estão inteiros, sem ferimentos. Apenas mortos.
E os olhos, ah esses olhos escancarados, sem pálpebras, nunca que eu iria apertá-los para sentir sua resistência, observar se têm brilho ou abrir-lhes as guelras para atestar o vermelho dessas mortes. Nunca.
Vera para, a boca entreaberta numa careta de nojo e aflição. Ali é o IML do mercado, com cheiro de peixe em vez de formol. Um espasmo a sacode e traz sua alma para o presente.
Respiro fundo e faço o pedido. Que tirasse as escamas e limpasse um robalo, uma enchova e um vermelho, separasse as cabeças e os rabos para fazer o caldo. Mais um quilo de camarão cinzento, guardando também cabeças e casca. O vôngole com as conchas bem fechadas, o mesmo para os mexilhões. Duzentos e cinquenta gramas de cada um.
A massa de pão francês vai despertar do sonho de farinha gelada e nos lembrar o início da história da humanidade com seu aroma hipnotizante. Tudo muda, menos esse prazer que dá o cheiro de pão saído do forno, quentinho, pronto para acompanhar a sopa.
Percorro as aleias. Levo batata média, alho, ovos, açafrão para fazer o rouille, que é a espécie de maionese onde quem quiser molha os pedaços de peixe e o pão. Da caixinha de açafrão retirarei um fiapo para diluir no vinho branco e botar no caldo.
Escolho um vinho de alta qualidade, duas garrafas.
Pronto.
Volto em meia hora para apanhar o embrulho.
De repente, tudo some. Vera estaca.
É criança, de novo. Uma sala muito limpa, chão brilhante de cera recente, flores nos vasos. Ela está lá, e treme. Saiu do mercado, saiu de sua vida atual.
Vou confessar para mamãe. Ela está sentada no fim da sala, o sofá se encosta na janela. Será que lê o jornal? Não sei. Devo ter uns oito ou nove anos. É como se filmasse do teto com uma câmara invisível.
Carrego uma culpa avassaladora. Caminho em passos pequenos, arrastada pelo medo.
Sento ao lado de mamãe e conto, morta de vergonha, minhas brincadeiras de médico com as crianças do vizinho.
Vejo os olhos negros dela se estatelarem de puro horror. Iguais aos dos peixes mortos.
A mãe tem nojo de mim. Não briga comigo, o que seria bem melhor. Eu tive prazer e isso era como se roubasse algo dela. Menina má. Tão terrível que nem choro.
Abaixo a cabeça, vencida.
Ela diz: Vai lavar essas mãos, está com cheiro de peixe.
A cena desaparece.
Vera empurra seu carrinho até o balcão de frutos do mar, pega os embrulhos e segue para o caixa.
Mora perto.
Pressiona o peito até o coração ficar tranquilo. Está esgotada.
Dessa vez caí no mais fundo de mim. Foi preciso isso para entender a fobia que me atormentou até adulta. Fiz análise por muito tempo, vivenciei até a medula de meus ossos que meu prazer estava em mim, em mais ninguém. Meu prazer era meu, meu e apenas meu.
Até então, fugi de peixes mortos como se fosse uma condenação à minha própria e iminente morte. Teve vez que atravessei a rua sem me importar com a buzina dos carros, os xingamentos de Maluca! Quer morrer?
, o primo a me atazanar agarrado a uma enchova morta, recém pescada.
Enfiei-me no meu quarto, fechei a porta aos gritos, lágrimas molhavam meu vestido; escutei a discussão entre mamãe e ele. Chega! Não adianta! Para com isso. Deixa a menina em paz!
dizia minha mãe. E o primo: Histérica, histérica
. Só saí do quarto depois que ele foi embora.
Sigo pela calçada mais livre do peso. Foi preciso reviver isso. Várias vezes, até gastar.
2
Chego em casa.
A robô, acelerada, me ajuda com as compras. Pega logo a massa e enrola no feitio de baguettes, dá dois cortes na superfície e as cobre com o pano de prato úmido para que cresçam mais. Dez minutos antes de servir irão para o forno preaquecido.
Deixo tudo encaminhado. A casa num instante já cheira a festa e coisas gostosas. Dá água na boca.
Verifico se a toalha que a amiga mais antiga me deu de presente está posta na mesa. Quadradinhos vermelhos e brancos rebordados em ponto de cruz por ela, artesanato gaúcho. Levou quase um ano para terminar.
Sorte que o antigo analista emergiu em meu socorro. A análise acabou, mas ele resta entranhado como um pai bom dentro da pessoa, depois que cresce. Tenho vivo o contato com o macio do couro das poltronas e do divã e a certeza da aceitação. Enfim, os peixes mortos já não me enlouquecem mais. O desejo é uma coisa boa. A não ser quando sou arrastada até aquela parte da infância. Mas volto sempre, cada vez mais livre.
Começo a me preparar para o almoço de hoje.
Daqui a pouco as meninas chegam.
Tomo um banho de lavar a alma. Visto a roupa mais cômoda e bonita. Comemoramos o aniversário do grupo.
Normalmente a festa seria lá no apartamento de Teresa, a Teca, que chefia o grupo. Dessa vez fiz questão de convidar. Três anos de escrita quinzenal. Uma das participantes já foi premiada e duas publicaram livros de contos. Publicar é uma festa, quem consegue é que sabe. Eu consegui.
A primeira a chegar é Malva. Na verdade Malvina. Nome abreviado porque ela às vezes precisa ser contida e Malva, para!
é mais rápido e eficiente do que se Teresa levasse o tempo de três sílabas para interromper seu ataque ao que escrevemos. Às vezes ela é certeira e, se você tiver paciência, o ataque até ajuda.
Malva parece filha única de rainha, educada por tutora alemã. Daquelas do norte da Alemanha, bem brabas. A gente diz que seus ataques raivosos não são tapas com luvas de pelica, ela espanca os braços do sofá com as mãos delicadas. Um paradoxo.
Sentamos no jardim entre bouganvilles vermelhos, brancos e dourados. Ela elogia a profusão de cores. Conto sobre o beija-flor que foi me chamar dentro de casa. Entrou na sala para avisar que a mamadeira estava vazia. Parou no ar batendo as asinhas a mil por segundo e olhando bem na minha cara. Fui ver e o vidro dependurado no galho da poncã estava seco, mesmo.
Deixei a porta entreaberta.
Chega Teca, a organizadora da oficina. Ela não gosta de chamar nossos encontros de oficinas. Parece que soa a seus ouvidos como um lugar antigo de conserto de carros. Prefere dizer que é aula. Acho oficina muito melhor. O texto chega lá ruinzinho do freio, aperta daqui, aperta dali, sai justo e confiável como uma Mercedes da fábrica.
O exemplo não